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Universidade de São Paulo Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto
FILIPE JOSÉ DAL’BÓ DE ANDRADE
OUTRAS BASES COLONIZADORAS:
Moral e Escravidão no processo de formação econômica do Brasil
Ribeirão Preto
2012
Filipe José Dal’Bó de Andrade
OUTRAS BASES COLONIZADORAS:
Moral e Escravidão no processo de formação econômica do Brasil
Monografia entregue como requisito
parcial à obtenção do título de Bacharel em
Economia Empresarial e Controladoria da
Faculdade de Economia, Administração e
Contabilidade de Ribeirão Preto.
Área de concentração: História Econômica
Orientador: Prof. Dr. Julio Manuel Pires
Ribeirão Preto
2012
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por
qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e
pesquisa, desde que citada a fonte.
AGRADECIMENTOS
À minha família, por todo amor. Base fundamental para a minha formação pessoal.
Ao Prof. Dr. Julio Manuel Pires, pela atenção, orientação e liberdade para desenvolver
minhas ideias.
Aos meus amigos da Faruska, lugar onde aprendi o prazer no exercício de pensar.
À Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto, pelos
anos de aprendizado que servirão de base estrutural por toda uma vida.
Esta população escrava longe de dever ser
considerada como hum bem; he certamente grande
mal. Estranha aos interesses publicos, sempre em
guerra domestica com a população livre, e não
poucas vezes apresentando no moral o quadro
fizico dos volcões em irrupção contra as massas
que reprimem sua natural tendencia; gente que
quando he preciso defender a honra, fazenda, e
vida, he o inimigo mais temivel existindo
domiciliada com as familias livres; jamais se
poderá contar com bem real, e nem ainda como
simplesmente fazendo parte da população; mas
sim como maquinas, fabricas, ou forças moventes.
A força do vento, da agoa, do vapôr, e gados,
quando mais apreciaveis são que a d’esta porção
mizera de especie humana assim degradada e
metamorfoseada!
José Elóy Pessoa Silva, 1826.
RESUMO
ANDRADE, F. J. D. Outros Elementos Colonizadores: Moral e Escravidão no
processo de formação econômica do Brasil. 2012. (Bacharel). Faculdade de
Economia, Administração e Contabilidade de Ribeirão Preto, Universidade de São
Paulo, Ribeirão Preto.
Este trabalho se propõe a integrar diferentes elementos que estavam por trás da
escravidão no processo de colonização do Brasil. Inclui uma análise da dinâmica da
moral junto às transformações histórico-sociais, propõe hipóteses para seu surgimento e
o surgimento da escravidão. Também descreve bases jurídicas, econômicas e sociais
que permearam a sociedade durante os três primeiros séculos de domínio português.
0
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 1
2. BASES MORAIS .................................................................................................... 4
2.1. Uma Hipótese ................................................................................................... 4
2.2. Estrutura e Estudo Sistêmico .......................................................................... 5
2.3. Curso Histórico .............................................................................................. 10
2.3.1. Antiguidade Clássica ...................................................................................................... 10
2.3.2. Moral Ibero-Cristã ......................................................................................................... 15
3. ECONOMIA, ESCRAVIDÃO E MORAL ........................................................ 22
3.1. Outra Hipótese ............................................................................................... 22
3.2. Poder espiritual x Poder temporal ............................................................... 25
3.3. Estrutura Jurídica Sucinta ........................................................................... 28
3.4. Madeira ........................................................................................................... 34
3.4.1. Uma Nova Humanidade ................................................................................................. 34
3.4.2. Da Extração à Ocupação, .............................................................................................. 38
Da Expropriação à Dominação
3.4.3. Ordenações Indígenas .................................................................................................... 43
3.5. Açúcar ............................................................................................................. 46
3.5.1. Bases Econômicas ................................................................................... 46
3.5.2. A Economia Cristã ................................................................................. 51
4. CONCLUSÕES ..................................................................................................... 60
5. REFERÊNCIAS ................................................................................................... 62
1
1. INTRODUÇÃO
A história do Brasil não começa em 1500. As concepções sociais, culturais, morais,
tecnológicas e econômicas que desembarcaram no litoral brasileiro são, na verdade,
resultados de constantes transformações com origem num passado anterior à própria
compreensão humana dos fatos históricos. A natureza é uma categoria tão abrangente de
elementos que, em sua totalidade, estão muito além do nosso campo de percepção, nos
restando apenas uma simples tentativa de compreender o mundo ao nosso redor,
utilizando de limitados instrumentos que foram desenvolvidos ao longo do curso
evolutivo. Esse esforço se torna ainda mais desafiador quando o agente observador é o
próprio objeto de observação, o que exige um esforço de abstração sobre-humano.
Porém, a simples possibilidade de tentar entender o próprio funcionamento deve ser
considerada como um precioso privilégio humano. Este trabalho nasceu do
estranhamento surgido ao me deparar com um homem fazendo de seu semelhante uma
outra espécie, alheia à sua própria natureza. Ao perceber que a escravidão no Brasil,
por assim classificada, possui raízes comuns a mim. Que sou seu resultado direto e
indireto. Que, de alguma forma, o sofrimento de pretos e vermelhos e marrons não
estava apenas camuflado nas camadas sociais e econômicas do meu ambiente, mas,
acima de tudo, em camadas subcutâneas da minha própria pele.
Seguindo a ideologia sistêmica de Bertalanffy (1940)1, minha proposta é resgatar as
origens comuns de áreas do conhecimento que, tanto tomaram rumos distintos e
parcialmente satisfatórios ao longo do tempo, que algumas vezes nem parecem dividir o
mesmo objeto de observação. Enquanto for atribuída à Economia a formatação das
ações em forma numérica e concisa, e à Sociologia, em seu devido lugar, a investigação
de elementos subjetivos e abstratos, pouco será possível entender a totalidade da qual
somos composição. Dessa maneira, acredito que os sistemas econômicos, as relações
sociais e as concepções morais devem ser entendidos como subprodutos das relações
um mesmo elemento humano. Estuda-los de maneira distinta, apesar de proporcionar
1 Cf. BERTALANFFY, 1940.
2
importantes reflexões, é desconsiderar justamente a simbiose que torna magnífico o
estudo de suas relações.
A leitura deste trabalho começa com uma hipótese fundamental sobre o surgimento da
Moral e da Escravidão2. Minha principal intenção nesta parte é ter um ponto de partida
semântico e lógico. Esta primeira parte também incluí um breve entendimento sobre o
comportamento destes elementos ao longo do tempo e em diferentes sociedades3. Achei
pertinente, neste sentido, buscar na Antiguidade Clássica um ponto de comparação para
aquilo que chegaria a Europa do pós-renascimento sob a forma de Moral Cristã e
Escravidão Econômica. É quando faço uma segunda hipótese, baseada no trabalho de
Evsy Domar (1970)4, sobre o surgimento e manutenção da escravidão em economias de
orientação Capitalista Agrária5. O trabalho continua com uma investigação sobre a
maneira que a Moral e a Economia se relacionam. Para tanto, a subsecção “Poder
Espiritual x Poder Temporal” elucida a estreita relação entre suas entidades supremas na
colonização: a Coroa portuguesa e a Companhia de Jesus6. Partindo daquilo que
Montesquieu nomeou de “Espírito das leis” (1748), achei pertinente entender as bases
jurídicas pelas quais a escravidão se estruturava7.
Relativamente são raros os estudos sobre a escravidão dos primeiros habitantes destas
terras. Foi quando percebi a necessidade de transpor à discussão a imagem do flagelado
indígena como base fundamental para a primeira atividade exploratória destas terras.
Nesse sentido, tive a felicidade de me encontrar com o belo trabalho da antropóloga (e
matemática) Manuela Carneiro, e sua dedicação “as coisas brasileiras”. Além disso,
busquei essa discussão em fragmentos dos clássicos de Caio Prado Jr. Roberto
Simonsen e Celso Furtado8. O trabalho de Charles Ralph Boxer
9 serviu de suporte
histórico e tem particular característica por ser uma semiótica portuguesa. Finalizando, a
Moral que permeou a escravidão negra, que aconteceu nas lavouras e nos engenhos de
cana-de-açúcar - principal atividade econômica dos três primeiros séculos de domínio
2 Cf. VÁZQUEZ, 2008 e MACINTYRE, 2002, at. al
3 Idem
4 Cf. DOMAR, 1970, et. al.
5 Idem, VERSANI, 1994; CONNING, 2004, at. al.
6 Cf. BOXER, 1981; ASSUNÇÃO, 2009; at. al.
7 Cf. LARA, 2000.
8 Cf. CUNHA, 2009; PRADO JR., 1970; SIMONSEN, 1967; FURTADO, 2003.
9 Cf. BOXER, 1981.
3
português – foi cuidadosamente investigada a partir da obra Economia Cristã dos
Senhores no Governo dos Escravos (1705) do jesuíta Antônio Benci10
.
10
Cf. FIGUEIRA; MENDES, 1977
4
2. BASES MORAIS
2.1. Uma Hipótese
Uma hipótese seria que o surgimento da moral acontece quando o homem supera a sua
“natureza puramente natural, instintiva” e passa a possuir uma “natureza social” ao
conviver em grupo. A ideia é que, através do trabalho e do desenvolvimento técnico, o
homem primitivo passa a por a natureza a seu favor. Porém, a sua própria fragilidade
diante do mundo faz com que a reunião de ações coletivas se torne uma necessidade
vital e uma estratégia interessante para o seu sucesso individual. É dessa forma que,
diante da gigantesca força da natureza, o trabalho em grupo se torna essencial para a
subsistência das primeiras tribos. É aí que surge a necessidade de estabelecer normas e
mandamentos a fim de assegurar a concordância de cada indivíduo com os interesses
coletivos. Ao mesmo tempo, nasce a primeira linha divisória entre o comportamento
positivo (bom) e o negativo (mau), junto à qualidade de moral coletiva baseada em
predicados que se considera bom ou útil para toda comunidade. A moral é limitada a
cada grupo, perdendo a validade além das suas fronteiras geográfico-culturais. Isso faz
com que outros gens, com seus próprios padrões morais, sejam vistos como rivais frente
à escassez dos recursos. Após as batalhas, os povos dominados que tinham suas vidas
poupadas, são escravizados em favor do desenvolvimento coletivo da tribo vitoriosa.
Supondo assim, o desenvolvimento dos primeiros agrupamentos humanos, com a
colaboração do aumento da força de trabalho pela transformação dos prisioneiros de
guerra em escravos nas atividades produtivas (Cf. VÁZQUEZ, 2008 e MACINTYRE,
2002, at. al).
Somado ao aumento da produtividade do trabalho pelo desenvolvimento da agricultura
e da criação de gado, a mão-de-obra escrava colaborava para a geração de produção
excedente às necessidades imediatas. Do ponto de vista socioeconômico, a produção de
excedentes acabou por gerar desigualdades entre os diferentes grupos, criando
indivíduos com mais posses do que outros. A desigualdade, por sua vez, age como
realimentador e permite a apropriação do trabalho dos grupos desfavorecidos. A divisão
5
entre os homens chegou à idade antiga e aconteceu na estreita relação entre
proprietários e propriedade, homens livres e escravos. Os escravos não eram pessoas,
mas sim objetos. Dessa forma, podiam ser comercializados, mortos e até mesmo
apostados em jogos de carta por seus proprietários. A existência de dois grupos
antagônicos se acentuou com o surgimento da propriedade privada. Foi quando a
consciência moral deixou de ser um conjunto de normas aceitas conscientemente por
todos da sociedade e passou a ser relativa e mais individual (Cf. VÁZQUEZ, 2008 e
MACINTYRE, 2002, at. al).
2.2. Estrutura e Estudo Sistêmico
Partindo dessa premissa, MacIntyre (2002) sugere que os conceitos de “certo” ou
“errado” podem variar de pessoa para pessoa, de sociedade para sociedade. Ambos não
carregam necessariamente o mesmo significado universal nas diversas circunstâncias
sociais em que são (ou foram) empregados. “Os conceitos morais mudam à medida que
a vida social muda” (MACINTYRE, 2002, tradução do autor), não por simples
causalidade, mas sim sugerindo que a moralidade é uma forma parcialmente constituída
da própria vida social. Para identificar as diferentes formas de organização social, é
preciso identificar as diferenças entre os diversos conceitos morais. Porém, a
dificuldade desse esforço começa com mais que um mero defeito linguístico de se tentar
encontrar um correspondente preciso entre os termos. Por exemplo, a diferença de
conceito resultado da tradução do grego δικαιοσύνη para o português moderno justiça,
indica, acima de tudo, as diferenças existentes entre duas formas de vida sociais
(MACINTYRE, 2002). Da mesma forma, quando comparamos a palavra ética com seu
correspondente moderno, é possível observar o quão radicalmente diferente pode
assumir o seu verdadeiro significado. Os filósofos gregos subordinavam a ética aos
valores do bem, ou da felicidade das pessoas, a ponto da moral assumir o papel de
encontrar significado que possibilitasse que a felicidade estivesse ao alcance de todos.
Da mesma forma, a virtude grega é entendida como simplesmente a posse de uma
qualidade natural, enquanto que no conceito moderno pode ser definida como “hábito
6
de obedecer a uma lei nitidamente definida e de origem supra-sensível” (NOVAES,
1992, p. 7-8).
Macntyre (2002) acredita que para se aproximar do real significado de um conceito
social de uma sociedade é preciso entender de que maneira e em quais circunstâncias as
palavras são ou eram empregadas por seu governo. Isso indica, novamente, que
diferentes estruturas sociais promovem diferentes conceitos morais. Mesmo que alguns
termos sofram menos mudanças temporais em seu real significado, é impossível dizer
que há termos imunes a qualquer tipo de mudança. As diferenças entre as concepções
morais reais começam com a imparcialidade natural daqueles que as analisam. O
filósofo “não consegue ser filosoficamente neutro” (MACNTYRE, 2002, p. 3). Apesar
disso, não se deve desconsiderar completamente a visão dos moralistas e filósofos do
passado para analisar as discussões do presente, por exemplo. Neste caso, tais
considerações são importantes mecanismos para quebrar preconceitos contemporâneos
(MACINTYRE, 2002).
“So it would be a fatal mistake to write as if, in the
history of moral philosophy, there had been one
single task of analyzing the concept of, for
example, justice, to the performance of Plato,
Hobbes, and Bentham all set themselves, and for
their achievement at which they can be awarded
higher or lower masks”(MACINTYRE, 2002, p.
2).
Ao mesmo tempo, reduzir a distância cronológica e cultural que separa o pensamento
do passado com o do presente seria um erro e tornaria inútil todo o esforço científico de
entendimento de um padrão moral. Ao contrário disso, quando usado como perspectiva
de comparação, este afastamento pode ser tomado como fator de compreensão de
fenômenos morais mais recentes e contemporâneos.
7
Tudo indica que a as diferenças nas concepções morais possuem forte correlação com as
variáveis tempo e espaço. Como levanta Adolfo Sánchez Vázquez (2008), filósofo da
Universidade do México, ao introduzir seu conceito de doutrinas éticas:
“As doutrinas éticas fundamentais nascem e se
desenvolvem em diferentes épocas e sociedades
como respostas aos problemas básicos
apresentados pelas relações entre os homens e em
particular pelo seu comportamento moral efetivo.
Por isto, existe uma estreita vinculação entre os
conceitos morais e a realidade humana, social,
sujeita historicamente à mudança.” (VÁZQUEZ,
2008, p. 33)
Dessa maneira, a ideia de transitoriedade nos obriga a especular sobre o comportamento
do ator das ações e escritor das concepções sociais do objeto social que estamos
estudando. Na presente proposta de trabalho, respeitar esta lógica significa investigar a
sociedade europeia, sobretudo luso-brasileira, contemporânea aos séculos de escravidão
econômica nas colônias americanas, sobretudo a brasileira, utilizando uma ótica
contemporânea a estes fenômenos. Porém, a investigação moral baseada numa simples
leitura contemporânea poderia provocar distorções naturais que invalidariam seu
esforço. Tirar conclusões a respeito do passado significa entender de que maneira
trabalhavam as mentes humanas de seu tempo sem nos deixar contaminar pela
assimilação ingênua dos valores e normas vigentes na sociedade em que nos
encontramos. O apego às especificidades deve acontecer apenas com a finalidade de
estudar a lógica usada por diferentes vertentes, de qualquer pensamento, em diferentes
momentos. Se considerada como sendo um mecanismo intrínseco de interpretação
humana, a comparação entre a moral frente ao escravo e os limites da cobiça de
diferentes realidades sociais deve acontecer por pura analogia. Uma vez que cada
sociedade possui parâmetros únicos, tais comparações servem de importante
instrumento analítico, porém, não provando uma plena identidade com a realidade
daqueles indivíduos que compõem o ambiente usado como parâmetro de comparação.
8
Um estudo desta natureza não permite um corte temporal preciso. O próprio estudo
filosófico dos elementos que compõem a moral exige um método que não permite
limites temporais às indagações. Acredito que um esforço de encontrar os parâmetros
que compõem, modificam e constroem as estruturas morais, inclui leituras que vão da
Antiguidade Clássica ao período conhecido como Idade Moderna, onde a mão-de-obra
escrava fez parte do processo de construção social das sociedades ocidentais. Da mesma
forma, somente com um corte transversal que ignore fronteiras abstratas entre ciências
de objeto comum, que é possível entender a totalidade dos fenômenos resultados da
natureza humana.
Tudo indica que houve uma evolução na forma unilateral de interpretação destes
fenômenos. No passado prevaleceu uma visão reducionista, onde eram
independentemente resultados de elementos geradores específicos, como uma
instituição de poder político, social e espiritual, ou uma conjuntura econômica. A
ordenação desse tipo de pensamento tem como origem as ideias fixadas por Descartes.
Trata-se de recurso analítico poderoso, porém limitado ao ser utilizado para o estudo
sistêmico do comportamento. Na verdade, a totalidade do homem só é possível de ser
investigada mediante a consideração conjunta dos diversos elementos que o compõem.
Sendo assim, é indispensável entender a conjuntura de sua dinâmica interna e da sua
funcionalidade externa. Os fenômenos econômicos e sociais que compõe o ambiente do
homem devem ser vistos de maneira holística, não apenas sob o aspecto estrutural, mas
também o funcional. Similar ao que Montesquieu chamou de “espírito das leis”, quando
esclareceu que as leis devem ser resultado da constituição de diversos fatores, como os
elementos de cada governo, costume, clima, religião etc. Dessa maneira, uma
interpretação moral, bem como a aceitação das leis geradas pela moral, apenas deve ser
digna de consideração por ser o resultado de uma composição de diversos elementos
humanos e não humanos (COMPARATO, 2006).
É o que preconiza a teoria sistêmica originalmente proposta por Bertalanffy (1940, p.
28), onde os organismos animais e os mecanismos autorregulados se conectam seguindo
uma lógica sistemática, sugerindo que cada parte, independentemente, possui
9
participação fundamental no funcionamento do todo. Dessa forma, para serem
estudados, os fenômenos encontrados na biosfera do mundo devem ter seus resultados
interpretados sinergicamente. Seguindo esta filosofia, Comparato (2006) sugere que “se
quiser enxergar, de modo simplificado a estrutura de um grande grupo social
organizado, uma sociedade política ou uma civilização, [...] pode-se recorrer” ao
entendimento dos seus “fatores determinantes e condicionantes”, onde os primeiros
impulsionam a vida social, já os segundos, estabelecem seus limites.
“Os valores coletivos de determinada sociedade e
suas instituições de poder relacionam-se, sempre,
em uma espécie de jogo dialético entre passado e
futuro, movimento e repouso, desequilíbrio e
reequilíbrio, mudança e preservação da ordem
tradicional” (COMPARATO, 2006, p. 21)
Aquilo que a sociedade julga em determinada época como “certo” ou “errado”, seja por
constituição formal (institucionalizada) ou real (organizada em costumes e maneiras de
vida), pode assumir um caráter perturbador em outra época, inclusive entrando em
contraste com as instituições jurídicas vigentes. As leis não são a representação fiel dos
costumes. A diferença é em decorrência das circunstâncias que levam ao surgimento de
cada um desses elementos. Enquanto os costumes emergem do seio da sociedade, as leis
procedem de estâncias superiores de poder, causando um desvio natural em sua
concepção. Conforme o poder do Estado se consolida, por pressão, os costumes
adquirem menos importância. Entretanto, como observa Comparato (2006, p. 23), “nem
sempre a lei consegue abolir usos e costumes de fundo religioso”.
“O sistema ético em vigor na sociedade exerce
sempre a função de organizar a sociedade, em
vista de uma finalidade geral. Não existe ordem
social desvinculada de um objetivo último, pois é
justamente em função dele que se pode dizer se o
grupo humano é ordenado ou desordenado; [...] A
ordem é um conceito relacional, subordinado a
10
definição de uma finalidade. Essa verdade lógica
elementar é, no presente, desconhecida pelos
ideólogos da ordem por si mesma (law and order).
O que se esconde, por trás dessa fórmula de
propaganda, é obviamente o favorecimento de
determinadas classes sociais ou corporações
específicas, em detrimento do bem comum de todo
o povo.” (COMPARATO, 2006, p. 23, grifo meu)
2.3. Curso Histórico
2.3.1. Antiguidade Clássica
Na Antiguidade Clássica, o trabalho tinha um significado diferente das concepções
produtivas de hoje. O homem nascia predestinado a ocupar determinada posição na
estrutura social, uma vez que as mais diversas tarefas dependiam das diferentes
qualidades humanas de quem as executava. Dessa forma, as profissões tinham sucesso
pelo saber prático adquirido pela aprendizagem no curso da vida social do indivíduo.
Nessa época, acontecia uma divisão entre a moral dos homens livres e a moral dos
escravos. A primeira era fundamentada e justificada por grandes doutrinas éticas da
antiguidade, como Platão, Sócrates e Aristóteles. Como observa Victor Brochard (1912,
Apud VÁZQUEZ, 2008), seria uma moral sujeita às circunstâncias exteriores e à
fortuna. Por outro lado, a moral dos escravos nunca alcançou a um nível teórico de
justificativa filosófica. Ela surgiu naturalmente à medida que os dominados adquiriram
consciência da própria liberdade, ou a ausência dela (VÁZQUEZ, 2008, p. 43).
O estatuto da escravidão não foi uniforme entre as diferentes sociedades. Na Grécia
arcaica, por exemplo, a escravidão assumia inicialmente um caráter patriarcal, que seria
substituído em seu apogeu por um caráter de extensão das atividades servis.
Grosseiramente pode ser dividida em dois grandes grupos: a escravidão mercadoria e a
servidão comunitária. A primeira delas, que se insere no foco do presente trabalho,
11
detém o escravo como simples propriedade e, dessa forma, consegue distorcer a sua
própria identidade. O escravo deixa de ser “alguém” para ser “de alguém”. A segunda,
representada pelos hilotas espartanos, atingia populações tomadas pela força no resultado de
conquistas de guerras. Esses agrupamentos viviam em famílias ou aldeias, não eram
comercializados e deviam assegurar a produtividade do lote de terra que habitavam (SIMÕES,
2008).
Na Grécia de Homero, a divisão acontecia entre escravos de confiança, ou
“privilegiados”, e aqueles que não mereciam confiança. Em Odisséia, a escrava
Euricléia é tratada de forma honrosa por sua lealdade ao herói de guerra Odisseu. É
possível reconhecer esse tratamento na passagem em que a escrava reconhece a
identidade de Odisseu enquanto lavava seus pés. (SIMÕES, 2008)
“[...] Nenhuma mulher há de neles tocar-me, de
todas essas criadas, que servem aqui no palácio, a
menos que se encontrasse uma velha, bem velha e
zelosa, que muito na alma já tenha sofrido torturas
das minhas. [...] Disse-lhe, então, em resposta,
Penélope muito sensata: [...] tenho em casa uma
velha dotada de espírito justo, que serviu de ama a
Odisseu, o infeliz, e o criou dedicada, desde o
momento do parto, ao lho pôr a mãe dele nos
braços. Ela, conquanto mui fraca, há de os pés,
cuidadosa, lavar-te. Vamos, prudente Euricléia,
levanta-te e os pés lava presto de quem a idade
atingiu de teu amo” (HOMERO, VIII a.C, Apud
MENDES, 2000).
Vernant e Vidal-Naquet (1989, p. 99), ao analisarem o viajante Teopompo de Quios
(380 a.C.), sugerem que a escravidão mercadoria e a escravidão hilótica:
“[...] baseia-se numa série de oposições muito
claras. Oposições cronológicas: antes, a velha
12
escravidão [...]; depois, a nova escravidão.
Oposições como: os antigos escravos são gregos,
os novos são bárbaros. Quanto ao modo de
aquisição: os antigos escravos foram reduzidos à
escravidão pela conquista militar; os novos, foram
adquiridos com dinheiro por mecanismos de
mercado [...]” (VERNANT; VIDAL-NAQUET,
1989, p. 99)
Analisando o poeta Hesíduo (Século VIII a.C.), fica claro para os autores a preocupação
com a origem e o desenvolvimento do homem. Na Antiguidade, o trabalho não é um
mecanismo de produzir meios úteis ao grupo por meios técnicos. Ao invés disso, “trata-
se, antes de tudo, de uma nova forma de experiência e comportamento religioso [...]”
(VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1989, p. 12-14).
Para Xenofontes de Atenas (430 – 355 a.C.), a estabilidade que constitui a ordem grega
chama-se justiça (díkê). A justiça carrega uma qualidade que não necessariamente garante
uma divisão proporcional ou igualitária dos bens, dos poderes e condições de vida. O
equilíbrio, ou a justiça, se baseia numa qualidade estática, onde cada um e cada coisa ocupa
um lugar determinado. Dessa forma, a distinção fundamental entre os homens e os bárbaros
é determinada por quem comanda e quem é comandado, sendo que essa última classificação
dos homens se funde com a categoria dos animais. O que diferencia um comandado de um
animal de rebanho (agélai) é simplesmente seu temperamento teimoso que o impede de
obedecer de grado aos comandos de um pastor. É aí que reside a arte de comandar e, assim,
se distanciar da espécie puramente animal (PESCHANSKI-DARBO, 2007).
Garlan (1991, p. 73) acredita que o discípulo de Sócrates segue a ideia geral do pensamento
Grego.
“Quem não sabe que os vencedores guardam seus
bens e a eles acrescentam os dos vencidos, ao
passo que os vencidos perdem simultaneamente
13
suas pessoas e seus bens? [...] o vencedor pode
apoderar-se de tudo ao mesmo tempo, homens,
mulheres, seus bens e todas as suas terras [...] é
uma lei universal e eterna que numa cidade
tomada por inimigos em estado de guerra, tudo,
pessoas e bens, pertença ao vencedor. Tácito (55-
117 d.C.), era advogado, seguindo, depois, a
carreira senatorial. Escreveu, no conjunto de sua
obra, a história do primeiro século do Império
romano. (CYROPAEDIA III, 3, 45; IV, 2, 26; VII,
5, 73, 1914, Apud SIMÕES, 2008)
Platão (428 a.C.) pode ser interpretado como uma forma de representação do
pensamento do período que compreende o declínio de Atenas até a ascensão da
Macedônia. Ao construir a concepção de “Estado Ideal” em A República (IV a.C.), o
filósofo acredita que, para a manutenção da harmonia deste estado, cada indivíduo, em
sua determinada classe social, deve exercer a tarefa que lhe compele.
“Se se quiser usar corretamente o trabalho servil, é preciso que os escravos sejam de
certa forma pulverizados socialmente, isto é, que não sejam todos eles da mesma pátria e
nem falem a mesma língua [...]” (PLATÃO, República, 777d, Apud SIMÕES, 2008, p.
13).
Seu discípulo e fundador da Academia de Atenas, o Estagirita Aristóteles (IV a.C.),
inicia a sua Ética a Nicômaco definindo a ética como sendo subordinada à política
(politikê), que tem, por sua vez, a função de garantir o bem (tó agarhón) à comunidade
(kinônía) ou à cidade (pólis). No livro II desta sua obra, o filósofo define a natureza das
ações de acordo com a virtude do homem que as pratica. Dessa forma são consideradas
justas e moderadas as ações concebidas por um homem justo e moderado. O ato de
quem as pratica se relaciona, segundo Pierre Aubenque (Apud. NOVAES, 1992),
diretamente com sua essência. Como o homem possui basicamente duas essências, uma
racional e outra irracional, existem duas classes de virtudes, as intelectuais e as éticas.
As primeiras levam tempo para serem desenvolvidas, já que são adquiridas
14
principalmente através do ensino. Já às virtudes éticas nascem no seio da sociedade,
como forma de desdobramento dos próprios costumes11
. Em A Política, o filósofo
considera que na natureza sempre encontramos o superior e o inferior. Para ambas as
partes é preferível haver governantes e governados. Em sua época, os gregos eram
naturalmente vistos como superiores em alma aos bárbaros. Dessa forma, seria condição
por natureza e correto ter os estrangeiros como escravos (SIMÕES, 2008).
“Dessa forma, aqueles que diferem entre si como a
alma do corpo e o homem do animal (e estão nesta
condição aqueles cuja atividade se reduz à
utilização das forças físicas, sendo esse o máximo
proveito que se pode tirar deles) são escravos por
natureza e o melhor para eles (hois béltión estin) é
se submeterem à aquela forma de autoridade”
(ARISTÓTELES, Política, Pol., I,5, 1254b 15-20,
Apud TOSI, 2003).
“[...] Comandar e obedecer faz parte das coisas
não só inevitáveis, mas também úteis; certos
indivíduos, a partir de sua nascença,
imediatamente se acham destinados a obedecer,
outros a comandar [...] contudo, a melhor
autoridade é sempre aquela que se exerce sobre os
melhores: por exemplo, sobre um homem, de
preferência que sobre uma besta”
(ARISTOTELES, Política, I, V,2,1254a, Apud
SIMÕES, 2008).
Dessa maneira, para a mentalidade greco-romana, a escravidão era considerada lícita e
teria duas justificativas principais: a primeira se baseava na filosofia estoica, que
11
Cf. NOVAES, A. Ética. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ISBN 8571642109.
15
utilizava de uma explicação metafísica, segundo a qual existia a predestinação de alguns
indivíduos à escravidão. A segunda, fundamentada na filosofia aristotélica, acreditava
que a condição de ser escravo era determinada fisicamente, uma vez que alguns seres
humanos nasciam com condições físicas propícias ao trabalho escravo (DIEHL, 2007).
“No mundo antigo havia todo um espectro de situações de dependência entre a
escravidão e a liberdade. A escravidão representava apenas uma das pontas desse
espectro” (GUARINELLO, 2006, p. 229).
2.3.2. Moral Ibero-Cristã
“A representação da alteridade civilizacional na
arte portuguesa anterior à época dos
descobrimentos baseia-se não na experiência do
real, mas sim e imagens mentais que se constituem
em uma reserva cultural inesgotável, espécie de
floresta de mitos, símbolos, de remotíssimas
origens” (GOULÃO, 1999, p. 173).
A Europa medieval também foi uma cruel e dura escola. A moral cristã, nascida com a
morte do mundo antigo, em Roma, era uma moral subalterna à religião, restrita por
elementos religiosos e dogmáticos que regulavam o comportamento humano visando
um mundo extraterreno: o reino de Deus. O dogma do pecado original, com suas raízes
na filosofia judaico-cristã, lança sob a humanidade o estigma da transgressão e da
natureza humana corrupta. A utilização da mão-de-obra escrava no mundo cristão não
foge a esta regra e encontra aí bases para explicar a sua existência. Sob as tutelas de um
ser absolutamente misericordioso, a escravidão é vista como uma forma de reabilitação
e salvação por meio de uma vida terrena de sofrimentos (PIMENTEL, 2005).
Os padrões morais assumiram uma orientação inédita com o Renascimento Europeu. A
nova forma de reorganização socioeconômica, que caracterizou a transição de uma
16
sociedade feudal para uma sociedade fundamentada no capital, desbravadora, trouxe
profundas mudanças.
“Surge a idéia do progresso, e com essa idéia a
conservação da tradição [passa a ser] [...] vista
como algo profundamente negativo [...]. Segundo
o mito do progresso que está na base das nossas
sociedades modernas, não há limite às ações
humanas. ‘Querer é poder!’” (SUNG, 2007, p. 35).
Contrariando a imagem vangloriosa que autores brasileiros, como Gilberto Freyre,
narram da mistura de raças e cores no Brasil, em Goa e Moçambique, o Prof. Boxer
aponta uma realidade mais cruel de um Império rígido, ortodoxo, preconceituoso, de
alta competência técnica e exatidão náutica, cuja cobiça por riqueza e a paixão por Deus
nunca estiveram em conflito (BOXER, 1981, p. 20-28). Se o Novo Mundo era
idealizado pelo europeu entre a inocência e o pecado, o continente africano foi visto,
quase sempre, como a própria manifestação diabólica. Como nas trêmulas palavras do
poeta Joseph Conrad, em seu romance Heart of Darkness (1902), no qual descreve
cenas terríveis que os desbravadores europeus enfrentavam naquele território hostil:
"[...] everywhere death, barbarity and blood, and smells that it hardly seems right for
human beings to smell and yet live!"12
. De maneira ampla, no século XV, um cristão
ibérico médio frequentemente se referia às outras religiões com ódio e intolerância.
Mouros, Sarracenos e Judeus eram popularmente condenados ao Inferno (BOXER,
1981, p. 20–28).
A sociedade portuguesa da época, como a de muitos outros países da Europa, era
composta em sua maioria por camponeses que se dividiam em duas categorias
preponderantes. Iam dos ricos que lavravam a própria terra e contratavam trabalhadores
dela destituídos, passando por camponeses arrendatários, que pagavam uma quantia em
gêneros ou dinheiro aos senhores da terra, que podiam ser a Coroa, a Igreja ou membros
do primeiro grupo. Este segundo grupo, apesar de ter uma situação relativamente
12
“Coração das trevas”: “[...] por todo lado morte, barbaridade e sangue e cheiros que dificilmente é certo
que um humano sinta e continue vivo.” Cf. CONRAD, 1958.
17
estável, estava sujeito a dispor de 10 a 50% de sua produção, além das frequentes taxas
semifeudais, sobretudo o dízimo devido à Igreja. A estes camponeses das classes mais
baixas restava, ainda, o dever de fornecer alimentação e alojamento grátis, bem como
ceder, até mesmo, dois ou três dias da semana de seu trabalho à Coroa e aos senhores
supremos da terra13
. Muitas vezes a soma chegava a 70% de toda a sua produção anual
(BOXER, 1981, p. 31).
Os historiadores estão longe de encontrar respostas precisas sobre o que levou Portugal
a tomar a dianteira daquilo que é conhecido como a Época dos Descobrimentos.
Entretanto, tudo leva a crer que fora uma miscelânea de fatores religiosos, econômicos,
estratégicos, científicos e políticos. Do ponto de vista econômico, relevante neste
estudo, os vários povos da Europa atuariam como traficantes em cada uma das empresas
resultantes do esforço ultramar. Portugal dominaria o tráfico de marfim, ouro e escravos
na costa africana. Espanha, frente à concorrência portuguesa, tomaria um caminho
alternativo às Índias, onde acabariam por topar com um obstáculo que deveria ser
devidamente contornado (PRADO JR, 1970, p. 15).
Do ponto de vista religioso, estas múltiplas motivações impulsionadoras estão
visivelmente expressas nas bulas papais promulgadas ainda no reinado de Dom Afonso
V e seus sucessores imediatos. As mais importantes delas foram a Dum diversas, de
1452 e a Romanus Pontifex, de 1455. A primeira, dirigida pelo Papa Nicolau V a Dom
Afonso V, concede ao rei de Portugal a “plena e livre permissão de invadir, buscar,
capturar e subjugar os sarracenos e pagãos e quaisquer outros incrédulos e inimigos
de Cristo [...]." A segunda bula começa por resumir a obra realizada pelo Infante e seu
zelo apostólico como verdadeiro soldado de Cristo na conquista de Ceuta. Nela, o
pontífice relembra o esforço de conquistar as ilhas da Madeira e Açores, e atribui ao
desbravador o contato com os habitantes das Índias em nome da fé. Além disso, essa
bula concedeu ao reino Português propriedade exclusiva de mares já descobertos ou a
descobrir (BOXER, 1981, p. 43-45).
13
Na forma de serviços públicos, transporte de mercadorias e obrigações militares. Cf. BOXER, 1981.
18
“De modo próprio, e depois de amadurecida
reflexão, em plenitude do poder apostólico,
queremos que o teor daquelas cartas se considere,
palavra por palavra, inserto nesta com todas e cada
uma das cláusulas nelas contidas, vigorando até
para quanto foi adquirido antes da data daquela
faculdade, como para quanto posteriormente pode
ou possa ser conquistado aos infiéis e pagãos,
províncias e ilhas, portos e mares, incluindo ainda
a conquista desde os cabos Bojador e Não até toda
a Guiné e, além dela, toda a extensão meridional;
tudo declaramos pertencer de direito in perpetuum
aos mesmos D. Afonso e seus descendentes, e ao
Infante” (DEVENPORT, 1868)
É dessa forma que o emprego da mão-de-obra escrava chega até a Europa do século XV
rodeada por um sentimento genuíno e missionário, num contexto em que a população
africana era vista de maneira bastante preconceituosa: uma terra hostil povoada por
animais e tribos negras pré-históricas, incapazes de qualquer tipo de desenvolvimento.
A missão de resgate herdada pelo europeu acabou por servir, principalmente, como
combustível para a ampla utilização da servidão nas suas colônias, afirmando o fardo do
homem branco em garantir o desenvolvimento de um povo e uma região (LINHARES,
2000). Na verdade, a realidade econômica do período dependia da estabilidade social, o
que fazia da ideia da salvação uma forma de recomendar os sofrimentos terrenos e
apaziguar qualquer tipo de sentimento de revolta que viesse a prejudicar sua harmonia.
A virtude se definia como a estreita relação com Deus, o ser supremo e único mediador
entre os indivíduos. É quando se reforça o poder do livre-arbítrio, sendo este capaz de
conduzir o individuo em direção ao bem ou ao mal. É assim que se estabelece a
concepção cristã de dever e conduta moral.
“Pretendia-se que esse commercio traria a
vantagem de civilisar a Africa, e de evitar que os
19
negros se destruissem nas suas guerras; assim
como fossem eles reduzidos á fé catholica e
civilisação Européia” (AGOSTINHO, 1866, III, p.
27).
Com o passar do tempo, o ensinamento cristão começou a esbarrar na estrutura
socioeconômica da colônia, tornando impossível a aplicação literal das escrituras que
equalizam todos os homens perante Deus. É quando a própria cor negra de suas peles é
interpretada como um sinal de maldição divina. Se opondo ao branco da pureza, o preto
é carregado de conotações negativas associadas ao mal. Hoje há um discurso
preponderante dentro de algumas correntes de interpretação que defende a ideia que
estas conotações seriam extraídas das escrituras, no pecado original, quando Noé
proferia grande maldição à Canaã por ter quebrado a privacidade de seu pai. Como
escrito no Genesis, após o grande dilúvio, Noé lavrou a terra e plantou uma vinha. Com
o produto da destilação de sua colheita, embriagou-se e veio a adormecer desnudo em
sua barraca. Canaã, ao ver as condições em que se encontrava o pai, erra ao
simplesmente dizer aos irmãos Sem e Jafé à não tomar partido sobre a sua integridade e
não o cobrir.
“Maldito seja Canaã; servo dos servos será de seus irmãos” (Gênesis 9:25)14
Bastava Cam, que no hebraico significa “preto”, ser identificado como pai dos povos
africanos para que estes fossem amaldiçoados por Noé e a sua servidão baseada na
sensatez de instrumentos sofisticados de interpretação das escrituras. O instrumento
moral e a sua importância na estrutura socioeconômica, acabaram por motivar a ampla
utilização desse tipo de trabalho (PIMENTEL, 2005). É dessa forma que mesmo
libertados da culpa pelo batismo, os negros continuam socialmente condenados e, em
muitas ocasiões, usurpados pela própria instituição religiosa. Ao mesmo tempo, a ideia
de escravidão como um castigo divino é integrada ao um sistema de salvação, já que o
homem negro condenado poderia se reabilitar servindo como cristão. É possível sentir
este teor no próprio discurso pragmático dos sermões do Padre Antônio Vieira, nas
14
A Bíblia de Jerusalém. 1 ed. Paulus, 2002. ISBN 8534919771
20
obras de São Tomás de Aquino. Para os canônicos, o negro era composto por carne e
espírito, sendo que o domínio do senhor sobre o escravo só acontecia dentro da
jurisdição do corpo. A alma, eterna, pertencia a Deus.
“Oh, se a gente preta, tirada das brenhas da sua
Etiópia, e passada ao Brasil, conheceram bem
quanto deve a Deus e a sua Santíssima Mãe por
este que pode parecer desterro, cativeiro e
desgraça, e não é senão milagre, e grande
milagre!” (VIEIRA, Sermão XIV, Apud
ALENCASTRO, 2000)
“[...] que um homem seja servo e outro não, é
coisa que, de um ponto de vista absoluto, não tem
razão natural, mas só razão de utilidade, porquanto
é útil ao escravo ser governado por um homem
mais prudente, e é útil a este último ser auxiliado
pelo escravo” (AQUINO, XIII, Summa
Theologiae, in Corpus Thomisticum, tradução
minha).
É neste contexto que clérigos letrados, como os jesuítas Jorge Benci, João Antonil e
Ribeiro Rocha, utilizando-se de um discurso alternativo ao discurso pragmático do
mundo senhorial, se esforçaram em buscar o ético no eclesiástico a fim de fundamentar
o trabalho escravo em termos políticos, morais e religiosos. (VAINFAS, 1986 e
SOUZA, 1989) Para tanto, recorriam ao livro sagrado em busca de justificativas para as
condições de ser escravo (RAMOS, 2005). É o que hoje se conhece como ética teônoma
ou moral essencialista, na qual existe o homem como criatura de um Deus onisciente
que exige sua obediência e sujeição. O cumprimento dessa condição pode ser
assegurado por critérios pessoais ou coletivos, uma vez seguindo suas convicções
conforme a vontade de Deus e/ou cedendo às pressões por parte da sociedade.
21
Como sugere Silvia Lara, estes padres pareciam estar mais interessados com os
senhores do que com os próprios escravos, pretendendo “conciliar a salvação de suas
almas com a manutenção de um comércio que tantos benefícios traziam ao Reino e a
Deus” (LARA, 2000, p. 28). Estes autores foram responsáveis por encontrar nas
mesmas bases utilizadas por Vieira, Agostinho e Aquino a legitimação da escravidão
dentro de limites moralmente aceitos, tornando-a aceita diante das leis da igreja e dos
homens. Estas bases proviam basicamente, além da bíblia, de textos latinos, obras de
jurisconsultos e textos legais.
22
3. ECONOMIA, ESCRAVIDÃO E MORAL
3.1. Outra Hipótese
Como é possível observar com a leitura deste trabalho – e que acaba por justificar a sua
própria relevância – a servidão foi e é um ponto central em diversas formas de
organização humana em sociedade. Apesar dos diferentes arranjos onde ela pode
acontecer e as diferentes formas pela qual pode se expressar, os economistas vêm
dedicando relativo esforço teórico e analítico para estudar o trabalho “não livre”. É
possível dizer que os primeiros estudos se focaram em desenvolver um levantamento
empírico bastante detalhado, porém, com o foco em análises de equilíbrio parcial15
.
Outros se dedicaram a entender os mecanismos que levam à chamada escravidão
voluntária em economias agrícolas, aplicando teorias de informação assimétrica e
imperfeições de mercado16
. Um modelo bastante satisfatório foi desenvolvido por Evsy
Domar (1970)17
que, a partir de uma análise de equilíbrio geral, constitui importantes
bases para o estudo sobre a origem da escravidão. Apesar de seu modelo ter sido
constituído a partir da realidade histórica da Rússia dos Czares, seu país de origem, é
frequentemente utilizado, com e sem rigor, para se concluir sobre outras sociedades
escravocratas de orientação Capitalista Agrária18
.
Utilizando de terminologia neoclássica, Domar parte de uma simples descrição de um
mercado competitivo em equilíbrio e retornos constantes ou decrescentes de escala. O
argumento de Domar é que o trabalho coercivo surge em economias onde há escassez
de mão-de-obra relativamente à abundância de terras. Determinada pela
competitividade, ceteris paribus, a renda da terra decresce em decorrência do aumento
dos salários dos trabalhadores. Isso acabaria incentivando o proprietário da terra a
expropriar o trabalho destes camponeses com a restrição de sua liberdade. De acordo
com este modelo, em uma economia agrária só é possível coexistir simultaneamente
15
Os primeiros autores se limitavam a desenvolver estudos de equilíbrio parcial sobre os incentivos, não
as causas. Cf. CONRAD, 1958; FINDLAY, 1975, at. alia. 16
Cf. SRINIVASAN, 1989. 17
Cf. DOMAR, 1970. 18
Cf. ibid.; CONNING, 2004, at. alia.
23
dois dos seguintes elementos: terra livre, trabalhadores livres e proprietários ociosos
(CONNING, 2004).
A disponibilidade de terra livre somada à ociosidade do senhor-da-terra inibem a
existência do trabalhador livre. Para praticarem o ócio, os proprietários da terra são
obrigados a contratar trabalhadores livres. No caso de terras com escassa oferta de mão-
de-obra livre, o equilíbrio das forças acontece a um nível de preço de salários
demasiadamente alto, reduzindo os benefícios marginais do senhor a níveis de
insatisfação suficientemente capazes de não haver mais incentivo econômico para
contratar trabalhadores. Dessa forma, nas terras livres que os camponeses tem
possiblidade de cruzar a fronteira agrícola e se apropriar de um lote e, assim,
trabalharem por sua subsistência, o resultado seria uma ocupação baseada em pequenas
fazendas familiares. Neste caso, somente restringindo a mobilidade do trabalhador –
liberdade para buscar um lote próprio ou disputar por salários em outras propriedades –
que se torna possível o proprietário praticar sua ociosidade. Neste caso, como estes
proprietários deixam de competir por mão-de-obra, maximizam sua utilidade
oferecendo uma renda de trabalho mínima, suficiente para cobrir a parcela mínima de
subsistência do trabalhador, síntese da escravidão.
Seguindo a lógica utilizada por Marx em “O Capital” (1867), alguns estudiosos19
partem da suposição comum de que o trabalho escravo é mais oneroso que o
assalariado. O argumento utilizado é que, uma vez que os trabalhadores escravos não se
identificam com a atividade que executam, não se deve esperar se empenhem em
realizá-la bem. Esta suposição não deixa de ser verdade enquanto ignoramos a
distinção entre atividades de “esforço intensivo” e atividades de “habilidade intensiva".
Evidentemente, em atividades que exigem um grau maior de destreza, habilidade,
criatividade e conhecimento, a insatisfação do trabalhador causaria fortes impactos
negativos na qualidade de seus frutos. Nestes casos, a coerção não é o suficiente para
garantir a qualidade do trabalho. Ela apenas despertaria ansiedade, insatisfação, revolta,
que, como consequência natural, somente subtrairiam os resultados. Entretanto, em
atividades que exigem apenas habilidades físicas, como o transporte de uma carga,
19
Cf. PRADO JR, 1970; SIMONSEN, 1967, et al.
24
empilhamento, a tração, é possível interferir positivamente no desempenho do
trabalhador por meio de métodos coercivos – punições físicas e torturas psicológicas.
Apesar de que mesmo nestes casos, em algum nível, a coerção refletir negativamente
nos resultados, seu efeito é, no mínimo menor em relação ao reflexo negativo que teria
em atividades de intensa habilidade20
(VERSIANI, 1994).
Os modelos mais sofisticados normalmente partem da compreensão econômica do
trabalho livre. Um trabalhador livre, de acordo com suas próprias demandas, distribui o
seu tempo diário – líquido do tempo mínimo de sobrevivência, utilizado para recuperar
as energias – entre trabalho e lazer. Dado a remuneração dos salários, os trabalhadores
livres escolhem qual é a proporção do seu tempo que será vendida, conforme sua curva
de utilidade. Isto leva a crer que, nos casos onde a remuneração do trabalho é
extremamente pequena, o trabalhador pode estar impelido a trabalhar à margem da
subsistência. O escravo, no entanto, não tem o poder de escolha e decisão sobre a
propriedade do trabalho próprio. A distribuição de seu tempo é determinada pela voz de
seu proprietário. Neste caso, a menos que aconteça uma deturpação da lógica racional
do senhor, o escravo será impelido a dedicar ao trabalho um número de horas próximo
ao máximo biológico, aquele suportado pelo corpo, recebendo em troca uma
remuneração mínima de subsistência. Pode-se assim dizer que, em algum nível de
pobreza, o trabalho livre pode ser igualado ao trabalho escravo (VERSIANI, 1994).
Ao se estudar os fatores relevantes na determinação do tipo de trabalho de uma
economia agrária, outros dois fatores são bastante relevantes (VERSIANI, 1994):
1) o custo de aquisição e o custo de coerção21. Optar pelo trabalho escravo à força de
trabalho assalariado é considerar que o benefício alcançado com o investimento de
capital na compra e manutenção de escravos supere o benefício alcançado com a
remuneração periódica de trabalhadores assalariados.
20
Esse aspecto diferenciador é conhecido como “Produtividade Diferencial”. Cf. FENOALTA, 1984. 21
A coerção gera um “custo de violência”, levado em consideração junto aos demais custos associados ao
uso de escravos.
25
2) a taxa de desconto praticada pelo mercado de escravos, considerada a expectativa de
vida dos cativos. Este fator também tem relação inversa com a sua distância do
mercado fornecedor de mão-de-obra. Da mesma maneira, optar pelo trabalhador
escravo é entender que os benefícios líquidos dos custos adicionais de manutenção;
como supervisão, vigilância e punição, superem os benefícios líquidos possíveis com o
uso do trabalhador livre.
3.2. Poder espiritual x Poder temporal
“As duas espadas do poder civil e do eclesiástico
andaram sempre tão unidas na conquista do
Oriente que raramente encontramos uma a ser
utilizada sem a outra; porque as armas só
conquistaram através do direito que a pregação do
Evangelho lhes dava, e a pregação só servia para
alguma coisa quando era acompanhada e protegida
pelas armas” (franciscano Frei Paulo da Trindade,
“Conquista Espiritual do Oriente” Goa, 1638,
Apud BOXER, 1981, p. 224).
Essa condição sine qua non exemplificada no exercício da atividade da Coroa e da
Igreja no ultramar foi uma das prerrogativas mais tenazmente mantida durante toda a
jornada de expansão das duas entidades. Uma série de privilégios e deveres que faziam
parte da relação entre o padroado real e a Coroa portuguesa advinham de bulas e breves
papais, a começar pela Inter Caetera emitida por Calixto III em 1456, concedendo
definitivamente ao reino de Portugal a propriedade exclusiva das ilhas, terras portos e
mares desde os cabos do Bojador e Não, por toda Guiné até a Índia. Devido à forte
ameaça turca ao Mediterrâneo, combinada com a crescente manifestação do movimento
protestante, os Bórgias e outros papas do Renascimento, a princípio, não se
preocuparam com a evangelização dos novos mundos desvendados pelos portugueses e
26
espanhóis, deixando o padroado ibérico a mercê de concessões recebidas das duas
coroas (BOXER, 1981, p. 223-225).
Ainda que as viagens fossem extremamente dispendiosas, é possível identificar razões
tanto de natureza religiosa quanto econômica para a persistência dos portugueses em se
jogar em naus e caravelas em direção ao sul do cabo Não. Os rendimentos portugueses
advindos das terras da Ordem de Cristo, bem como aqueles do monopólio de sabão e
pesca, há muito tempo não eram suficientes para cobrir o dispendioso estilo de vida da
corte, junto aos seus inúmeros cavaleiros e escudeiros. Além disso, o desenvolvimento
do comércio de escravos viria a ajudar a financiar os elevados custos das viagens ao
longo da costa ocidental da África. Inicialmente os escravos eram oriundos de incursões
diretas a acampamentos tuaregues do litoral saariano. Posteriormente, de aldeias da
região senegalesa. É quando a primeira feitoria portuguesa foi estabelecida em Arguim,
por volta de 1445, na região da Alta Guiné (BOXER, 1981, p. 46-47).
“Depois de alguns anos de contacto com as
populações negras Senegâmbia e da Alta Guiné,
os Portugueses compreendem que podiam obter
escravos muito mais facilmente através duma
troca pacífica com os chefes e mercadores locais.
Nunca faltaram, naquele tempo e mais tarde,
africanos dispostos a vender os seus semelhantes,
quer fossem criminosos condenados, prisioneiros
de guerra ou vítimas de feitiçaria, aos
comerciantes europeus” (BOXER, 1981, p. 47).
“[...] em 1442 foram levados por Antônio
Gonçalves a Portugal 40 homens pretos oriundos
da Africa Occidental, sendo portanto os primeiros.
[...] Em breve a cobiça despertou a especulação
mercantil; o amor do ganho descobrio no
commercio dessa misera gente uma fonte de
27
lucros e riqueza; o negro foi transformado em
mercadoria” (AGOSTINHO, 1866, p. 2-14).
Depois da descoberta da América em 1492, o comércio escravo se mostrou uma boa
fonte de mão-de-obra e consequente lucrativa forma de comércio. As expedições até a
África se intensificaram rapidamente e, na mesma velocidade, os horrores durante as
capturas, a ponto do governo português ter de intervir. A Igreja, por sua vez, se mostrou
contra a captura de negros e o seu uso como ferramenta, como observado na bula papal
de Paulo III em 1537 e mais tarde, entre outras, de Urbano VIII em 1639. Porém, com o
desenvolvimento da indústria colonial, o negro passou a ser visto como mais apto à
jornada de trabalho frente ao indígena, que já era considerado mais forte frente ao
europeu. As atividades econômicas nas empresas europeias dependiam amplamente de
uma força de tração destra que só a humana era capaz de oferecer. Então, diante da
escassez de mão-de-obra que assolava a Europa, a importação de negros da África fora
autorizada pelos governos de Portugal e Espanha para serem usados nas atividades de
suas empresas. Ambos expediram patentes de monopólio de comércio a companhias da
França e da Inglaterra. Nestes contratos o carregamento de negros se tornou tão vasto
que chegou a ser computado em toneladas (AGOSTNHO, 1866).
Ao chegarem ao Brasil, os membros da Companhia de Jesus se depararam com uma
realidade bem diferente daquela existente em Portugal. Aqui, a entidade não dispunha
de rendas dos mosteiros e dízimos, exigindo a sua obtenção por meios alternativos aos
de costume. Dessa maneira, a Coroa portuguesa teve um papel muito importante para a
instalação dos inacianos na terra dos brasis (BOXER, 1981, p. 224-225). A fim de
garantir a ordem, o controle e evitar desvios, cabia à Coroa favorecer os jesuítas para
que pudessem por em execução o projeto de catequização e conversão espiritual do
indígena e da sociedade colonial. A escassez de recursos fez com que os religiosos
reivindicassem e obtivessem privilégios logo após a instalação do Governo Geral em
1549, por Tomé de Souza. Sob a forma de subsídios, doações em dinheiro e escravos,
isenções de impostos sobre produtos que circulavam na alfândega entre a América
Portuguesa, as Ilhas Atlânticas e a metrópole, os jesuítas conseguiram recursos
indispensáveis para a manutenção de suas atividades nas terras luso-brasileiras em
28
reconhecimento aos serviços prestados à Coroa. A posse da terra proporcionou tanto aos
inacianos quanto à Coroa Portuguesa a integração no universo colonial. Por meio da
bem sucedida atividade agrícola, somada à cobrança de dízimos e a caridade da coroa
portuguesa, foi possível a construção de residências e colégios, na qual pode-se destacar
a próspera fundação da sesmaria de Água dos Meninos, na Bahia. Terra doada por
Tomé de Souza em 1550 à Pe. Manuel da Nóbrega (ASSUNÇÃO, 2009, p. 151-159).
“[...] a mentalidade do descobrimento e da
conquistam que uniu interesses econômicos com a
fé, não ficou restrita à monarquia nem à camada
mercantil ávida por auferir lucros e riquezas. Os
jesuítas compartilharam desse universo novo e
incorporaram valores da mentalidade moderna
para dar prosseguimento ao crescimento da
Instituição empreendido por seus membros [...]”
(ASSUNÇÃO, 2009, p. 239).
O crescimento da Companhia gerou necessidades financeiras que a obrigavam a manter
um controle minucioso sobre o seu patrimônio, indicando que o exercício do poder
temporal e do poder espiritual eram indissociáveis. Quando atacados em relação à posse
de bens, os jesuítas defendiam-se afirmando ser impossível manter a Instituição sem que
existisse um mecanismo capaz de compensar as vultosas despesas que envolviam a
construção de colégios e igrejas e a manutenção de ordem como um todo. Dessa forma,
o lucro das atividades comerciais da Companhia não era incompatível com o trabalho de
salvar almas.
3.3. Estrutura Jurídica Sucinta
“Desgraçadamente todas as leis e tratados em
favor do que ha de mais sagrado no homem, não
tem vingado apezar do zelo das sociedades
29
inglesas, e vigilancia das esquadras destinadas á
reprimir os infractores. Desgraçadamente ainda ha
quem esgote a arte sofisticada o comercio do
sangue humano, e mostrar que infracções das leis
da humanidade constitui hum direito politico,
procurando assim espiritos servis tornar duvidosas
as maximas de justiça, sem as quais não ha
verdadeira civilização” (SILVA, 1826, p.14).
Dispensando reflexões de causa e efeito, pode se dizer que do ponto de vista jurídico a
evolução das leis portuguesa aconteceu simultaneamente ao processo econômico-
evolutivo da colônia. Aspectos regulatórios, como aquele que dizia respeito ao uso da
mão-de-obra escrava, foram sendo progressivamente inseridos ao corpo legislativo. De
acordo com o progresso e das circunstâncias, foi-se definindo fronteiras entre a
escravidão “legítima” e a escravidão “ilegítima”.
“Nos séculos XV e XVI a questão da legitimidade da escravidão havia tido relação
direta com o início do processo colonizador e com o debate acerca da guerra justa
contra os índios. Foi sobretudo a escravidão dos índios do Brasil e não dos africanos
que esteve em causa” (LARA, 2000, p. 32).
O exercício do poder absoluto no Antigo Regime pressupunha uma fundamentação
hierárquica da organização social, fazendo com que houvesse uma separação absoluta
entre o público e o privado. A ampla autoridade jurídico-administrativa e militar dos
donatários se limitava às próprias unidades territoriais. A própria forma retórica
encontrada nos textos de leis e normas jurídicas do período colonial evidencia o amplo
poder do soberano sobre terras, gentes e práticas, indicando que o modo de produção
das leis era baseado, principalmente, na sua vontade. O sistema era basicamente
composto pelo Conselho Ultramarino, instituição por onde as representações de
30
autoridades coloniais remetiam seus pedidos e pareceres. Estas solicitações
atravessavam o Atlântico para a concordância real22
.
“A correspondência ultramarina era, neste sentido,
bem mais que uma simples troca de informações:
também instrumento de circulação de poder, de
delegação, distribuição e controle do domínio e da
dominação. A correspondência entre o soberano e
seus braços dalém mar contém dois princípios
fundamentais: o súdito comunica e pede, o rei
ordena e concede” (LARA, 2000, p. 14).
Uma característica inerente ao poder monárquico era que os interesses das camadas
coloniais e os interesses do rei nem sempre convergiam. A abordagem deste ponto de
tensão se torna mais interessante quando consideradas as jurisdições limitadas ao
território colonial hereditário, enquanto a soberania do monarca estendia-se por diversos
territórios além do seu reino. Se a lei era uma expressão da vontade do Rei ou de grupos
sociais, e estas diferentes camadas sociais (que incluíam o papado, as missões e
ordenações) não partilhavam necessariamente dos mesmos interesses, acontecia uma
divisão entre leis formuladas para a Coroa e leis formuladas especificamente para outros
grupos. Neste cenário, para uma análise coesa, Hespanha (1984, Apud LARA, 2000)
aponta que os perigos da projeção de conceitos jurídicos contemporâneos para a análise
do passado não está naquela separação de interesses, mas sim em concebê-la como uma
“contraposição, um antagonismo”. Os próprios laços que ligavam o monarca às outras
camadas sociais podem ser considerados como componentes harmônicos de uma
unidade mais vasta, a unidade do “bem comum”.
Silvia Lara, utilizando de uma análise do núcleo urbano da colônia do início do século
XIX, observa que a presença e o poder político do soberano era constantemente
22
Transações que deram origem as cartas régias. Cf. LARA, 2000.
31
reafirmado pelas festas e execuções públicas, procissões e exercícios militares,
indicando seus traços feudalizantes. “Nas praças as vozes dos que eram açoitados e o
rufar dos tambores dos editais e séquitos punitivos lembravam a todos o poderio a que
estavam submetidos” (LARA, 2000, p. 16). Como era interesse da Coroa estar de
acordo com as necessidades econômicas, mesmo que buscasse limitar abusos, a
legislação produzida aos Senhores não foi criada para interferir no real poder que
tinham sobre seus escravos (LARA, 2000).
Desde o início do desenvolvimento do comércio ultramarino, no litoral Africano, e
depois com a Ásia, Portugal vinha criando órgãos especialmente encarregados da
administração pública. A Casa da Guiné e, posteriormente, a Casa da Índia, Mina e
Guiné, são exemplos de estâncias administrativas bastante complexas, especialmente
criadas antes mesmo da ocupação da América pelos portugueses para tratar de questões
extraterritoriais. Em 1540, com a nomeação de Secretário da Índia, as repartições
coloniais ficaram diretamente ligadas ao rei Dom. Sebastião. Em 1591 foi criado o
Conselho da Fazenda, que significou uma reunião dos tribunais específicos do Reino,
Índia, África e Contos. A posterior criação do Conselho da Índia criava mais um cargo,
o de Secretário da Índia, sendo este responsável pelas Índias, enquanto o outro para
assuntos do Brasil, Guiné, Ilhas de São Tomé e Cabo Verde. Da evolução deste
conselho foi criado o Conselho Ultramarino em 1643. Este conselho composto
inicialmente por três representantes, e posteriormente quatro, cuidava de "todas as
matérias e negócios de qualquer qualidade que forem tocantes aos ditos Estados da
Índia, Brasil e Guiné, Ilhas de São Tomé e Cabo Verde e de todas as mais partes
ultramarinas e lugares de África". Os pareceres, ou consultas geradas na reunião deste
conselho subiam, posteriormente, para a resolução do monarca (LARA, 2000, p. 16-
19).
Os domínios ultramarinos se ergueram nas novas terras pela divisão político-
administrativa do território em lotes conhecidos como capitanias hereditárias. Os
capitães-mores que receberam as primeiras unidades de terra eram portugueses
pertencentes à pequena nobreza, burgueses e funcionários da burocracia monárquica.
Estas figuras, além de possuírem o completo poder jurídico, administrativo e militar
sobre as unidades, sobretudo representavam legitimamente o soberano. Após a criação
32
do Governo Geral, com a evolução da ocupação em decorrência da penetração e das
características econômicas individuais, algumas capitanias foram sendo agrupadas e
novas unidades políticas, cargos e jurisprudências foram sendo criados.
O corpus legislativo português é composto por Ordenações e decisões reais tomadas
junto aos seus ministros e conselheiros. As Ordenações Afonsinas, o primeiro código de
leis portugueses, apontam forte influência do direito romano e canônico em textos que
remontam ao tempo de Dom Afonso II. Estas ordenações demonstram a forte influência
do papado e a valorização do direito canônico. Ao decorrer do século XVI, e de todo
período colonial, as ordenações são recodificadas, dando origem às Ordenações
Manuelinas (1521) de forte influência do papado e, posteriormente às Ordenações
Filipinas (1643) após a separação da Espanha. Esta última se constituiria como a
principal referência legal durante todo domínio metropolitano (LARA, 2000).
Além das Ordenações, outros documentos legais exprimiam a vontade régia. As leis,
que são expressão ordem de caráter geral, são iniciadas pela expressão “Dom [...] por
graça de Deus rei de Portugal e dos Algarves [...]”, e as cartas régias, que eram
dirigidas a uma autoridade ou uma pessoa e principiavam formalmente por seu nome
seguido de “Eu el-rei vos envio muito saudar [...]”. Também completavam o quadro
conhecido como “legislação extravagante”, os decretos, as provisões e os avisos. As leis
escravistas da época refletiam um procedimento considerado “lícito, válido e justo
diante de leis divinas, do direito natural e do das gentes”. As Ordenações reais tanto
nunca se desvincularam da realidade econômico-social das terras do Novo Mundo, que
autoridades portuguesas no século XVI chegaram a expulsar por “excesso de
escrúpulos” os padres jesuítas e franciscanos que sustentaram ilícito o cativeiro entre
negros e índios diante das leis de Deus (LARA, 2000).
Como já foi dito, a estrutura de construção das leis sofria forte influência das opiniões
diferentes grupos de interesse colonial. Da mesma forma, cada um desses grupos
possuía um valor próprio para o Rei, de acordo com os interesses do império. A figura
de representante consanguíneo de Deus já não era capaz de superar os interesses
terrenos, mais imediatistas de um soberano pós-renascentista. Sendo assim, se for
necessário precisar questões de causa e efeito, pode-se dizer que o fluxo de poder na
construção legislativa portuguesa colonial partia dos interesses econômicos para os
33
demais. No caso dos interesses de ordem espiritual, esse contra fluxo se confirma com a
deportação dos padres no século XVI por “excesso de escrúpulos”. Mais recentemente,
se ilustra com a preocupação em carta do governador da Bahia, dom Fernando José,
com as ideias libertárias do frei capuchinho, José de Bolonha, no ano de 1794 (LARA,
2000).
"se persuadiu ou o persuadiram de que a
escravidão era ilegítima e contrária à religião, ou
ao menos, que sendo esta umas vezes legítima,
outras ilegítima, se devia fazer a distinção e
diferença de escravos tomados em guerra justa ou
injusta, chegando a tal ponto a sua persuasão, que,
confessando pela festa do Espírito Santo a várias
pessoas, pôs em prática esta doutrina, obrigando-
as a que entrassem na indagação desta matéria tão
dificultosa, por não dizer impossível de se
averiguar, a fim de se dar a liberdade a aqueles
escravos que ou fossem furtados, ou reduzidos a
uma escravidão injusta" (Gov. Fernando José de
Portugal, 1794, Apud LARA, 2000)23
.
A respeito da escravidão dos africanos, foram poucas as personalidades cristãs que
chegaram a contestá-la de fato. Missionários como Benci, Antonil e Ribeiro Rocha se
limitaram a conciliar os interesses econômicos dos comerciantes e senhores - que
traziam tantos benefícios ao Reino e a Deus - com uma realidade um pouco menos cruel
dos escravizados. A lógica utilizada por estes autores é a mesma: a propriedade de
escravos gerava obrigações múltiplas, tanto para senhores, quanto para escravos. As
obrigações dos escravos são tão evidentes quanto toda a lógica que os fundamentava
como escravos. No entanto, as obrigações dos senhores eram abstratas e relativas,
23
Cf. PORTUGAL, 1794.
34
ponderadas por sua percepção a respeito da “força justa” ao se aplicar um número
“digno” de açoites nas costas do negro.
É possível concluir que a construção das leis que regulavam o trabalho (escravo) nas
terras do Novo Mundo acabou por expressar o sentido de toda a colonização. Como na
obra de Luiz Antônio de Oliveira Mendes (1793), a legislação produzida para limitar os
abusos contra os escravos não passa, acima de tudo, de "uma rigorosa necessidade [...]
para a promoção das nossas fábricas, e estabelecimentos no Brasil [...] e nos quais a
Real Coroa percebe os seus justos, e devidos Direitos” (MENDES, 1793, p. 88, Apud
LARA, 2000, p. 31).
3.4. Madeira
3.4.1. Uma Nova Humanidade
“Na armada de Pedro Álvares Cabral iam alguns
franciscanos, missionários da Índia. O superior
deles, Fr. Henrique de Coimbra, disse missa no
Recife da Coroa Vermelha, costa de Pôrto-Seguro,
no dia 26 de Abril de 1500 (domingo de Pascoela).
Assistiu a gente da armada e junto do Capitão via-
se ‘a bandeira de Cristo, com que saíra de Belém,
a qual esteve sempre alta da parte do Evangelho’”
(LEITE, 1937, p. 11).
Em seu extenso e profundo estudo sobre a Companhia de Jesus, Serafim Leite (1937)
sugere que o sucesso do projeto ultramar possui uma forte relação simbiótica com a
consolidação do poder espiritual cristão. De fato, a moralidade cristã esteve presente em
todas as etapas do empreendimento português de se lançar em direção às Índias
Orientais em busca de riqueza comercial. Inevitavelmente, o celebre explorador
português dividiu seu sentimento de descoberta com a instituição espiritual
35
personificada em Fr. Henrique de Coimbra. Leite vai além e sugere que a história da
Companhia de Jesus é a própria história da formação do Brasil “nos seus elementos
catequéticos, morais, espirituais, educativos e em grande parte coloniais” (LEITE,
1937, p. 14), o que nos leva perceber uma profunda relação de mutualidade entre a
igreja e a coroa portuguesa. Seguindo essa ideia, Joaquim Nabuco de Araújo24
desacredita na construção de uma unidade brasileira, à forma que observamos hoje, sem
que houvesse acontecido, da mesma maneira, a unidade da Companhia de Jesus.
Provavelmente, o vasto território brasileiro que conhecemos seria fragmentado entre
seus diversos colonizadores e, portanto, não se tornaria uma das “maiores casas da
Terra”.
“Acreditais se não fosse o Catolicismo, que o
Brasil seria o grande bloco de continente que vai
das Guianas do Amazonas às Missões do Paraná?
Acreditais, se não fosse o Catolicismo, que esse
território não se teria pelo menos dividido em três
ou quatro imensos fragmentos: um huguenote,
outro holandês, o terceiro espanhol, o quarto
apenas brasileiro como somos hoje?” (ARAÚJO,
1900, p. 326-327, Apud LEITE, 1937).
O resultado inesperado do projeto ultramarino português pode ser entendido como o
símbolo de uma semente promessa que viria a ser absolutamente selada cinquenta e
nove anos depois da primeira missa profanada pelo padre Fr. Henrique em 26 de abril
de 1500, com a instituição do Governo Geral e a chegada definitiva da Companhia de
Jesus (LEITE, 1937, p. 12). A parceria entre o governo português e a grande instituição
da fé aconteceria em torno de objetivos distintos que, entretanto, utilizariam de vias
comuns para serem impetrados. Do ponto de vista da coroa, encontrar utilidade
econômica para um território recém-descoberto e sob constante ameaça externa, porém,
repleto de elementos desconhecidos e um tanto quanto desafiadores. Do outro lado, uma
instituição religiosa que avistava nestes mesmos elementos um caminho para a
24
Joaquim Nabuco de Araújo foi embaixador do Brasil nos Estados Unidos de 1905 a 1910.
36
concretização de sua suprema campanha de cristianização da terra. No início deste
tratado que se estenderia por mais de três séculos, o elemento comum às duas
instituições era o indivíduo rudimentar com o qual haviam avistado antes mesmo do
desembarque na Terra de Vera Cruz, à meia légua da costa de Porto Seguro.
“Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse
suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas
setas. [...] A feição deles é serem pardos, um tanto
avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem
feitos. [...] traziam o beiço de baixo furado e
metido nele um osso verdadeiro, de comprimento
de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de
algodão, agudo na ponta como um furador. [...]
Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata
nela, ou outra coisa de metal, ou ferro. [...]
Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar
parece-me que será salvar esta gente”
(CAMINHA, 1500 Apud. GOULÃO, 1999).
Uma vasta história se procede à carta de Caminha, incluindo o sucesso extraterritorial
do reinado português e a completa edificação de uma entidade religiosa além do
Atlântico. Já no período pré-colonial é sugerido que a forma de atuação destas duas
instituições europeias aconteceria dentro do binômio fé e lucro, sendo que, por meio da
exploração física e mental de homens “atrasados”, ambos alcançariam seus porquês. A
partir do estigma da transgressão inerente à natureza corruptível do homem, que sempre
esteve no pensamento cristão representado pelo mito do “Pecado Original”, em
composição com a luz de um Deus misericordioso, ambos encontrariam razões para
compactuarem com uma prática tão amplamente aplicada aos homens brutos: a
escravidão.
“A descoberta da America, a sêde das riquezas, o
aumento da cultura n’este Novo Mundo, a falta de
37
braços para tamanhas empresas como as suscitava
a cobiça, avareza, e egoísmo dos aventureiros,
mais que a felicidade das Nações a que pertencião;
originárão a escravidão dos indigenas
Americanos: que forão inteiramente livres
gozando da liberdade civil e politica por ley de
1755, tendo antes sido promulgadas em seu favor
as leys de 1680, 1713, e 1741” (SILVA, 1826, p.
8-9).
Propagados desde o “Diário da primeira viagem” de Colombo, os escritos da época
eram baseados em relatos “reais ou imaginários” de exploradores como Marco Pólo,
John Mandeville e Frei Odoric Pordenone, sobre tesouros e terras paradisíacas além dos
mares, povoadas por belas amazonas. Confrontado com mitos de origem medieval que
povoavam o imaginário dos “descobridores”, o encontro do europeu com os
Tupinambá, os Guaraí e os Aimoré serviu para o estabelecimento rápido de um corpo
canônico de saber sobre o Novo Mundo, “realimentador de observação”. Vendo aquele
povo nu, “sem nenhuma coisa que lhes cobrisse suas vergonhas”, na primeira obra
legitimamente brasileira, Caminha relata o índio com forte sentimento de pureza, que,
porém, seria logo contra posicionado pela convicção portuguesa popular de que era um
povo “selvagem irremediável”, sem “sem fé, sem rei, sem lei25
” (CUNHA, 2009, p.
180-181). Vespúcio, em sua Carta a Lourenço de Medici (Lisboa, 1501) escrita após
viajar 10 meses pela costa brasileira, menciona com certa ambivalência a ausência de
jogo político e religioso entre aquela gente.
“Gente ‘bestial’ a ser amansada [...]; não têm
nenhuma idolatria ou adoração [...]; são argila
moldável, uma tábula rasa, uma página em branco
– ‘e imprimir-se-á com ligeireza neles qualquer
cunho, que lhes quiserem dar’” (VESPÚCIO,
1501, Apud CUNHA, 2009, p. 182)
25
As letras F, R e L estavam ausentes do vocabulário indígena. Cf. CUNHA, 2009.
38
Nas primeiras décadas do século XV, os portugueses ainda não conheciam os desafios
de lidar diretamente com uma população selvagem, no limiar da civilização. Na costa
africana, o abastecimento de ouro, marfim e escravos acontecia por intermédio de
comerciantes muçulmanos que já conheciam esse gênero de comércio e montavam
caravanas através dos desertos africanos. Aqui, “de nada valeriam aqui os processos de
força com que Portugal impôs a sua suserania e seu monopólio comercial na Ásia”
(SIMONSEN, 1967, p. 52).
A partir da década de 1550 a produção literária a respeito do Brasil se afirma em duas
linhas diferentes: uma composta por autores ibéricos que estavam diretamente
relacionados à colonização – onde se classificam os missionários, e autores não-ibéricos
ligados ao escambo. Da mesma forma, essa divisão acontecia entre autores usados por
protestantes e autores usados por católicos, como o franciscano André Thevet e o
calvinista Jean de Léry (Apud CUNHA, 2009, p. 185). Com o Novo Mundo há também
a descoberta de uma Nova Humanidade. Portanto, o que restava a estes autores é inserir
este povo na genealogia dos homens, uma vez que todos os homens são descendentes de
Adão e Eva e, portanto, de um dos filhos de Noé. “Provavelmente do maldito Cam,
aquele que desnudou seu pai – por razão” (NÓBREGA, [1549-1560], Apud CUNHA,
2009, p. 191-192), especula Nóbrega.
3.4.2. Da Extração à Ocupação,
Da Expropriação à Dominação.
“Pode-se dizer que não encontramos nada de proveito”26
(VESPÚCIO, 1504)
Após a chegada da esquadra de Cabral à Terra de Santa Cruz, logo se encontrou um
novo nome na madeira vermelha que possuía em relativa abundância ao longo do
26
Américo Vespúcio (1504), Apud BUENO, 2003.
39
litoral. Na realidade, estas terras foram tratadas com desdém durante as três primeiras
décadas, enquanto a coroa portuguesa ainda deslumbrava-se pelos lucros auferidos de
outras empresas, como a rota de comércio com a Índia e de ouro na Guiné, o que
impediu que dedicassem devida atenção à região recém-descoberta. Nesse período, a
relativa facilidade com que os primeiros portugueses se juntaram aos Ameríndios pode
ser vista como uma “reacção natural de marinheiros sexualmente esfomeados”
(BOXER, 1981, p. 99). Os primeiros contatos portugueses com o Brasil limitavam-se a
simples troca de utensílios de metal por animais selvagens, comida e trabalho. A
princípio, os Ameríndios não sabiam distinguir entre as nações europeias, colaborando
para que o escambo também acontecesse entre Tupinambás e marinheiros franceses
(BOXER, 1981, p. 99-100).
As primeiras inspeções indicaram possibilidades mercantis apenas de algumas espécies
vegetais, como a cana-fístula, e animais, como bugios, papagaios e outras aves exóticas.
Na larga costa brasileira, traficantes portugueses e espanhóis encontraram em relativa
densidade uma espécie vegetal espinhenta, vermelho alaranjada, cujas propriedades já
eram conhecidas de uma espécie semelhante que haviam encontrado na Ásia. O pau-
brasil, que mais tarde seria cientificamente batizado de Caesalpinia echinata, possuía
características de grande valor comercial na Europa. Sua resina vermelha podia ser
utilizada como corante na indústria têxtil, de forma alternativa aos de origem terrosa.
Além disso, sua madeira era estimada pela arte de confeccionar objetos decorativos e
utensílios. A expedição enviada por Dom Manuel em 1501 voltou a Portugal carregada
deste artigo, despertando grande interesse da Coroa que logo declarou monopólio sobre
seu comércio. Até meados do século XVI, os traficantes europeus carregaram suas
embarcações com uma grande quantidade da mercadoria. O desenvolvimento de uma
indústria de fato só foi possível com a ajuda das tribos nativas, uma vez que a extração
da madeira seria limitada pela reduzida tripulação das embarcações (PRADO JR, 1970,
p.24-25).
“Não foi difícil obter que os indígenas
trabalhassem; miçangas, tecidos e peças de
40
vestuário, mais raramente canivetes, facas e outros
pequenos objetos os enchia de satisfação; e em
troca dessa quinquilharia, de valor ínfimo para os
traficantes, empregavam-se arduamente em servi-
los. Para facilitar o serviço e apressar o trabalho,
também se presenteavam os índios com
ferramentas mais importantes e custosas: serras,
machados” (PRADO JR, 1970, p. 25).
A exploração da floresta nativa ao longo da costa brasileira fora responsável pelo
estabelecimento dos primeiros entrepostos coloniais. Entretanto, a atividade de simples
extração possui características nômades, o que inviabilizava a fixação de qualquer
núcleo de povoamento. Os portugueses se deslocavam ao longo da costa, construindo e
abandonando fortificações de acordo com o esgotamento do recurso em função do seu
corte intensivo. Apesar da escassez de fontes de informações a respeito da primeira
atividade econômica no Brasil, sabe-se que, a princípio, a sua evolução fora por meio de
concessões de arrendamento expedidas pela coroa portuguesa (PRADO JR, 1970, p. 26-
27). A primeira delas foi outorgada em 1501 a um rico mercador de Lisboa, Fernão de
Loronha, por ser julgado alinhado com os interesses imediatistas da Coroa. O contrato
que fora renovado por alguns anos, exigia, em troca da exploração, o envio de 1/5 do
valor da madeira extraída ao soberano português, além da construção de fortalezas em
defesa dos novos territórios27
(SIMONSEN, 1967, p. 53-54).
A França apresentava uma crescente indústria e um proeminente mercado para as
madeiras tintoriais. É daí que surge nas terras americanas uma forte presença francesa
junto a constantes investidas comerciais com os índios. Portugal sofria duas classes de
prejuízos por partes dos franceses: a dos mercadores, que organizavam grandes
expedições; e a dos corsários, munidos de cartas de corso concedidas pelo rei da França.
Encantados com as bugigangas, os indígenas preparavam grandes depósitos de pau-
brasil ao longo da costa para serem comercializados com os europeus. Simonsen (1967)
faz um balanço aproximado da exploração da madeira e estima, com base na cota de ¼
27
Estima-se que a Coroa tenha recebido 4000 cruzados de Loronha nos dos primeiros anos de concessão.
Cf. SIMONSEN, 1967.
41
do material extraído, que Portugal tenha recebido 120.000 contos de réis nos trinta
primeiros anos do século XV, que corresponderia à 4000 cruzeiros28
em valores
atualizados. A extração, rudimentar, indiscriminada, ineficiente, muitas vezes à base de
fogo que se propagava por vasto território de floresta, causou a rápida decadência da
atividade em função do esgotamento das matas costeiras que possuíam o pau-brasil e
outras espécies vegetais (SIMONSEN, 1967, p. 58-59).
É possível dizer que a ocupação efetiva do território brasileiro é, em medida, uma
consequência das constantes pressões políticas exercidas por outras nações europeias -
Holanda, França e Inglaterra - que contestavam o direito soberano dos espanhóis e
portugueses senão àquelas regiões onde haviam efetivamente ocupado. Sob o ponto de
vista dos portugueses, essa força vinha da forte presença francesa na costa brasileira e
sua tentativa de criar colônia de povoamento nestas terras. Ficava claro que, se
pretendiam garantir a propriedade das terras americanas, deveriam deslocar para cá uma
quantidade significativa de recursos de suas empresas produtivas do Oriente
(FURTADO, 2003, p. 12). É dessa forma que, inspirado pela miragem dos tesouros
encontrados pelos espanhóis, D. João III promove a colonização do Brasil dentro dos
limites estabelecidos pelo tratado de Tordesilhas. Para tanto, baseando-se em
experiências anteriores na ilha da Madeira e nos Açores, adota o sistema de ocupação ao
longo da costa brasileira por meio de doações a titulares. O clima quente e úmido,
somado às características propícias do solo fértil, formaram bases para uma ocupação
baseada na cultura em larga escala de uma especiaria muito apreciada no mercado
europeu: o açúcar. Os problemas relativos à mão-de-obra, inerentes à monocultura,
foram facilmente superados com a relativa abundância de populações indígenas
pacíficas ao longo da costa brasileira (PRADO JR, 1970, p. 32-33). Dessa maneira, os
primeiros colonos dependiam sobremaneira da constante troca com os Ameríndios
locais (BOXER, 1981, p. 101).
A mudança na relação entre o europeu e o índio aconteceu como consequência do
desenvolvimento da indústria. Enquanto a grande nobreza se interessava mais pelas
Índias, os donatários que receberam as primeiras concessões de terra em 1534 eram, em
28
Em valores de 1967.
42
sua maioria, membros da classe média, da pequena nobreza e funcionários da
burocracia monárquica, o que tornava limitados os recursos para serem investidos nos
lotes de terra (BOXER, 1981, p. 101). Altas somas foram exigidas pelas empresas nesta
primeira etapa, obrigando os donatários a levantaram fundos de banqueiros e
negociantes judeus de Portugal e Holanda (PRADO JR, 1970, p. 32). A parceria com a
Holanda também foi de extrema importância para a penetração no mercado europeu.
Enquanto os lusitanos eram responsáveis pela produção do melaço, os flamengos
refinavam e colaboravam com sua experiência nas rotas comerciais do interior daquele
continente (FURTADO, 2003, p. 14).
A produção na lavoura, dentro dos moldes economicamente viáveis destas terras,
demandava imensa quantidade de mão-de-obra para ser usada em suas diversas etapas.
Em algum momento deste processo, a utilização da força indígena, à maneira com qual
acontecia, baseada no escambo, se tornou inviável. O trabalho produtivo era incoerente
com o trabalho do índio. Os indígenas do Brasil possuíam uma mentalidade bem
diferente da mentalidade do europeu, que possuía a contínua ambição de acumulação de
riqueza. “Os aborígenes estavam dispostos a trabalhar intermitentemente pelos
utensílios e adornos que queriam, mas de maneira nenhuma durante longos períodos de
tempo, ainda menos durante uma vida inteira no trabalho exaustivo da roça” (BOXER,
1981, p. 101). Foi então que os colonos recorreram à mentalidade europeia da época e
passaram a tê-los como escravos. Para isso, faziam incursões diretas em aldeamentos ou
compravam cativos capturados nas frequentes guerras intertribais (BOXER, 1981).
Neste último caso, o escravo resultado de guerras representava um transtorno para o
estilo de vida nômade de boa parte das tribos indígenas. Um homem aprisionado
acabava sendo mais útil quando utilizado como alimento ou artefato de cunho espiritual,
o que fazia comum a prática da antropofagia e do canibalismo. Portanto, negociá-los em
troca de utensílios domésticos, ferramentas e até “magias”, acabou por viabilizar a
indústria canavieira em seus primeiros estágios de desenvolvimento. Parte daí uma
sangrenta realidade para as tribos indígenas. Devido à devastação causada pela loucura;
pelas guerras intertribais, pelas incursões de captura, pela fadiga, pelas doenças
introduzidas pelos europeus, em poucos anos o número de habitantes originais desta
terra foi brutalmente reduzido.
43
“O trabalho sedentário e contínuo, as doenças
adquiridas ao contato dos brancos, ou pela adoção,
forçada ou espontânea, dos seus costumes a sífilis,
a bexiga, a disenteria, os catarros foram dando
cabos dos índios: do seu sangue, da sua vitalidade,
da sua energia. [...] O sistema escravocrata por um
lado, e o missionário por outro, continuariam a sua
obra de devastação da raça nativa, embora mais
lenta e menos cruel que a na América espanhola
ou na inglesa. E com aspectos criadores que se
opõem aos destruidores” (FREYRE, 2003, p. 227).
3.4.3. Ordenações Indígenas
Sob a ótica dos silvícolas, os padres eram incapazes de perceber a sua singularidade
cultural e, ao defrontarem com diferenças radicais em seus costumes e práticas, logo se
preocuparam em introduzir a dialética da fé e do pecado. O plano de conversão jesuítico
foi marcado pelo normativo da ordem, da obediência e da hierarquia, que tinha raízes
profundas na própria origem da ordem dos inacianos. Sob o comando de Padre Manuel
de Nobrega (1517-1570), ordenado aos 27 anos pela Companhia de Jesus, o projeto de
catequização do Novo Mundo se baseava à imagem das concepções religiosas
ocidentais. Seu desejo expressado em carta direcionada a Tomé de Souza em 1559 era o
de “ver o gentio sujeito e metido no jugo da obediência dos cristãos” (LEITE, 1937, p.
72). Em seu texto “Diálogo Sobre a Conversão do Gentio”, escrito entre os anos de
1556 e 1557, Nóbrega fundamenta a natureza bruta dos indígenas com origens no
pecado original.
“Isso podem-vos dizer chãmente, falando a
verdade, que lhes veo por maldição de seus avoz,
porque estes creemos serem descendentes de
44
Chaam, filho de Noé, que descobriu as vergonhas
de seu pai bêbado, e em maldição, e por isso,
fiquarão nus e tem outras mais misérias. Os outros
gentios, por serem descendentes de Set e Japher,
era razão, pois eram filhos de benção, terem mais
alguma avantagem” (NÓBREGA, 1556-1557).
A identificação dos mecanismos de ordenação indígenas, como a figura do “pajé” e o
sistema de parentesco, servia apenas para sofisticar as técnicas de conversão do gentio.
Apontando para a desordem generalizada das comunidades portuguesas coloniais,
Nóbrega atentava para a importância da instauração de uma conduta normativa que
garantisse a punição dos salteamentos e de outras violências praticadas pelos colonos
contra os índios. Só assim seria possível a execução do plano de evangelização daquela
nova raça de humanos, como observado na sua carta ao provincial de Portugal, Padre
Simão Rodrigues: "[...] e assim também que as leis positivas não obriguem ainda este
gentio, até que vão aprendendo de nós por tempo, scilicet, jejuar, confessar cada ano
como outras coisas semelhantes" (LEITE, 1937, p. 124, Apud. CHAMBOULEYRON,
p. 43).
O problema com o gentio residia basicamente em seus costumes seculares de
antropofagia, poligamia, nomadismo, feitiçaria, nudez e embriaguez. A erradicação
deste males era objetivo central de sua atuação frente à ordem religiosa nas terras do
Novo Mundo. Uma estratégia sugerida por Nóbrega em uma carta direcionada ao
provincial, em 1552, é a aproximação do indígena ao modo de vida cristão. Para isso, os
inacianos utilizaram de meios mais diversos possíveis (CHAMBOULEYRON, 1996).
“A ideia de que "a semelhança é causa de amor"
indicava, por um lado, que os jesuítas deviam
tornar-se semelhantes aos indígenas para melhor
convertê-los. Mas, mais ainda, ilustrava a noção
de que os indígenas deviam se tornar iguais aos
europeus; essa semelhança era causa de amor, pois
45
era a obra de conversão” (CHAMBOULEYRON,
1996, p. 44).
Por pressões dos inacianos, que apelavam para aspectos morais e teológicos da
necessidade da conversão do gentio, a escravatura do indígena foi substancialmente
proibida pela coroa portuguesa em 1570, porém, com a ressalva para aqueles casos onde
estes escravos eram resultado das “guerras justas” (BOXER, 1981, p.101). Neste caso, é
preciso compreender a legislação não como um elemento estático, pois era sujeita a
interpretações e jogos de poder da administração política. Dessa forma, o critério de
“guerras justas” é um critério muito difícil de ser julgado precisamente. Contudo, como
observou Manuela Carneiro, essa dificuldade se torna irrelevante quando considerado o
contexto em que as leis não eram obedecidas à risca. Mas sim, em que eram utilizadas
como brechas legais para se afirmar a propriedade dos escravos (CUNHA, 2009,
p.174.).
A lei promulgada por Dom Sebastião fez por gerar o primeiro conflito entre jesuítas e
colonos, que viam no trabalho forçado dos indígenas a única forma de garantir as bases
para a colonização. Em um contexto de plena expansão da economia açucareira e
consequente aumento na demanda por força de trabalho para a indústria, senhores-de-
engenho também foram contrários à lei e, em muitos casos, apelavam para o subterfúgio
de instigar os indígenas a atacarem núcleos cristões, para que, dessa forma,
justificassem a sua escravização dentro dos seus limites (ASSUNÇÃO, 2009, p. 168). O
processo de substituição da força negra pela vermelha aconteceria (ou não) de forma
distinta nas diferentes indústrias, de acordo com a realidade econômica de cada região.
A dinâmica aconteceria de acordo com as demandas de regiões mais pobres, onde a
economia ainda era relativamente atrofiada29
, que portanto não conseguiam pagar pelo
alto valor do escravo africano. Esta foi realidade do índio em toda história do Norte, e
em São Paulo até o século XIX.
“Os bosques, as espessas matas Americanas
servirão de ultimo azilo aos míseros Indios, e á sua
ameaçada liberdade; desprezárão as vantagens de
29
A exemplo disso Sao Vicente, atual São Paulo. Cf. PRADO JR, 1970, p. 36
46
hum melhor estado social; despreázão huma
melhor liberdade civil para gozar para quase huma
melhor liberdade natural. Os poucos que jazião na
escravidão, já não bastavão para o argumento das
grandes plantações de cana, assucar, algodão etc.:
esses mesmos erão inábeis por a natural inercia e
fraqueza de seu temperamento; ou mais
naturalmente por a falta de habito de trabalho em
que forão creados” (SILVA, 1826).
É possível atribuir à atual dimensão territorial do Brasil os ataques efetuados pelas
“bandeiras” aos núcleos tribais do interior do país. Estas expedições, de certa forma,
expandiriam aqueles limites imprecisamente conhecidos por Portugal e Espanha no
coração do continente. Foram frequentes as incursões que toparam com populações que
estavam sob jurisdição jesuítica espanhola “desde o rio Uruguai, no Sul, até o alto do
Amazonas [...]” (PRADO JR, 1970, p. 36).
“[...] os padres desalojados abandonarão em
partida; e o território, antes ocupado por eles (e
incluídos por isso até então, porque eles eram de
origem espanhola, nos domínios castelhanos)
ficará livre para a expansão da colonização
portuguesa. A caça ao índio será um dos principais
fatores da grandeza atual do Brasil” (PRADO JR,
1970, p. 36).
3.5. Açúcar
3.5.1. Bases Econômicas
A cultura da cana-de-açúcar só tem viabilidade econômica quando feita em larga escala.
A atividade de plantio, colheita, transporte e processamento do caldo primário exigia tal
47
esforço que inviabilizava a subsistência de pequenos produtores isolados. Tais
circunstâncias, somadas às características geológicas, climáticas e espaciais do Novo
Mundo, sobretudo fundamentaram um tipo de exploração baseado na grande
propriedade. Assemelhando-se aos tipos agrários encontrados nas colônias de natureza
subtropical - quente e úmida – do Sul da América do Norte e nas ilhas Barbados, o
plantation era um sistema baseado na monocultura e exigia uma quantidade
demasiadamente grande de força de trabalho (PRADO JR, 1970, p. 32-34). O efetivo
êxito de toda empresa açucareira além do Atlântico só aconteceria com a completa
extinção do problema de mão-de-obra. Estima-se que a escassa população europeia do
século XVI era em torno de 50 milhões de habitantes (SIMONSEN, 1967, p. 30), sem
que os parcos 2 milhões de portugueses já estavam sendo sobremaneira utilizados nas
expedições orientais, o que impedia novas sangrias. Deslocar esta população da Europa
para o Brasil em quantidade suficiente “teria requerido uma inversão demasiadamente
grande, que provàvelmente tornaria antieconômica tôda a empresa” (PRADO JR,
1970, p. 31). A baixa concentração de capital tornava inviável à Coroa oferecer lotes de
terra em troca do trabalho do europeu. Como recurso, somente oferecer salários
demasiadamente altos seria possível atrair mão-de-obra suficiente do outro lado do
Atlântico. Provando mais uma vez sua inviabilidade (FURTADO, 2003, p. 15).
“Considerando o elemento colonizador português
em massa, não em exceções como Duarte Coelho
– tipo perfeito de grande agricultor – pode dizer-se
que seu ruralismo no Brasil não foi espontâneo,
mas de adoção, imposto pelas circunstâncias. Para
os portugueses o ideal teria sido não uma colônia
de plantação mas outra Índia, [...] ou um México
ou Peru donde pudessem extrair ouro e prata”
(FREYRE, 2003).
A légua náutica, medida itinerária utilizada pelos países ibéricos na época, produzia
resultados um tanto quanto imprecisos. O tamanho das distâncias possuía forte relação
48
com o julgamento pessoal que o navegador fazia do diâmetro da terra e de seu
posicionamento longitudinal. De qualquer forma, as implicações negativas de encontrar
um Novo Mundo há mais de 1300 delas era uma realidade duramente imposta tanto a
hispanos quanto a lusitanos. Isso contribuiu para que as empresas americanas se
caracterizem pelo rápido padecimento e morte dos povos nativos em decorrência da
violência nas capturas, da fadiga muscular e das condições sub-humanas de nutrição e
saúde as quais eram submetidos. Após esgotadas as fontes de mão-de-obra tribais, a
Espanha encontrou alternativa em experiências anteriores que suas indústrias nas
Canárias e na Península Ibérica tinham do mercado africano de escravos. Portugal, em
decorrência da evolução nas operações de guerra para a captura de negros pagãos
iniciadas por Dom Henrique no século anterior, também era grande conhecedor do
mercado de negros. Com a evolução do trabalho nos engenhos, pelo desenvolvimento
da indústria, na segunda metade do século XVI, escravos oriundos da África foram
sendo introduzidos aos poucos. Por volta de 1600 eles existiam em número em torno de
20.000 (SIMONSEN, 1967, p. 132).
A princípio, os negros oriundos da África eram distribuídos nas poucas capitanias de
peso econômico na Bahia e no Norte. No Sul, a escravidão vermelha continuou como
resultado da pouca importância econômica da região pela menor fertilidade das terras e
da inviabilidade do frete transoceânico. Para o Sul, enquanto um indígena alcançava o
preço de 4$000 a 70$000, o negro custava em torno de 50 a 300 réis30
. Só após a
expulsão dos franceses e da fundação do Rio de Janeiro é que se foram aproveitando as
crescentes oportunidades de investimento na lavoura baseada em escravos importados
(SIMONSEN, 1967, p. 132).
O africano possuía naquele momento todos os pré-requisitos que o fizeram preferível ao
indígena como mão-de-obra. A “hecatombe” do instituto da escravidão negra era
baseado em premissas suficientemente capazes de justificar a exploração do africano,
em contraposição à servidão indígena. Não era apenas uma questão de cor. O negro
africano era carregado de maldições muito além das que estavam à flor da pele. Afinal
de contas, como era largamente reconhecido, a escravidão já era uma realidade para os
negros em seu próprio continente, em suas guerras particulares, antes mesmo de serem
30
Em Valores de 1967.
49
vendidos e utilizados (SIMONSEN, 1967, p. 132). Sua condição natural de preservados
de guerras (servatus) já os faziam retentores de grande misericórdia. O próximo trecho é
frequentemente selecionado em trabalhos dedicados ao estudo do Brasil colonial nas
diversas áreas da ciência humana. Disfarçado de literatura, em uma fração de sua obra
“Casa Grande e Senzala”, Gilberto Freyre faz muito além de um discurso lírico sobre a
realidade libertária indígena, moral portuguesa e adaptativa negra.
“Sua substituição [do índio] pelo negro – mais
uma vez acentuamos – não se deu pelos motivos
de ordem moral que os indianófilos tanto se
dedicam em alegar; sua altivez diante do
colonizador luso em contraste com a passividade
do negro. O índio, precisamente pela sua
inferioridade de condições de cultura – a nômade,
apenas tocada pelas primeiras e vagas tendências
para a estabilização agrícola – é que falhou no
trabalho sedentário. O africano executou-o com
decidida vantagem sobre o índio, principalmente
por vir de condições de cultura superiores. Cultura
já fracamente agrícola. Não foi questão de altivez
nem de passividade moral” (FREYRE, 2003).
Padre Antonil, jesuíta italiano, insigne observador e comentarista da economia
brasileira, em sua obra Cultura e Opulência do Brasil por suas Drogas e Minas (1711),
produziu um arquivo valiosíssimo sobre a vida econômica e social do Brasil em
princípios do século XVIII. Esta obra está inserida no contexto da contração da
economia açucareira e o eventual deslocamento de capital das lavouras nordestinas de
cana e tabaco para a região correspondente hoje ao estado de Minas Gerais. Ao
discursar em defesa do engenho, o pontífice cria um manual prático e rico em detalhes
para os agricultores da preciosa gramínea que foi base da economia nacional até o
século XIX (TAUNAY, 1922, in ANTONIL, 1982). Em sua obra, Antonil aborda o
50
senhor-de-engenho não só com moralismos relativos à prática da fé cristã dentro da
atmosfera da fazenda - como a conduta na escolha do capelão-mor e o tratamento a seus
escravos – mas, também, com conselhos sobre a administração geral; como compra e
manutenção de terras e equipamentos. O nível de detalhamento das diversas etapas do
processo produtivo do açúcar e seus respectivos custos enriquece ainda mais sua obra.
Segundo Antonil, as atividades no engenho-de-açúcar dependiam de uma parcela
bastante reduzida de trabalho qualificado, ou intensivo em habilidade. Como é muito
comum se encontrar na literatura, o trabalho na lavoura é baseado sobremaneira em
atividades do tipo trabalho intensivo, que não exigiam maiores habilidades de quem o
executava. Essas atividades incluíam a extração de madeira para ser usada na
construção de maquinaria, preparação da terra, eliminação de ervas daninha, abertura de
sulcos, plantio, corte e condução da gramínea. No início do século XVIII, cerca de um
quinto dos escravos dos engenhos eram do tipo “enxada e foice” (ANTONIL, 1982).
Nos engenhos da Bahia, o número de escravos girava em torno de sessenta a setenta por
lavoura (ALBUQREQUE, 2006). Alguns estudos apontam que a jornada de trabalho de
um escravo podia alcançar dezoito horas diárias. Bem próximo ao máximo biológico
(Cf. GORENDER, 2011).
A indústria da escravidão, sobretudo a negra, desenvolveu-se de acordo com o
desenvolvimento da indústria do açúcar. Reconhecendo as divergências históricas,
baseado em cronistas como Vieira, Gaspar dias Ferreira e Saint-Hilaire, Roberto
Simonsen (1967) estima que a produção de açúcar do século XVII tenha absorvido
cerca de 520.000 escravos, sendo dois terços oriundos da África. Outros dados mostram
que no início do século XIX, 50% da população de 3.818.000 habitantes eram escravos
(GORENDER, 2011). Considerando a evolução desta e de outras atividades
econômicas, junto às oscilações conhecidas nas condições de mercado dos primeiros
séculos de vida econômica do Brasil, Simonsen estima um número em torno de
1.350.000 de escravos negros trazidos da África entre 1600 e 1850. Com o preço médio
do escravo africano oscilando em torno de 20 e 30 libras esterlinas, chegando a 100 em
alguns momentos, uma importação de 3.300.00 escravos chegou a representar uma
receita de 100 milhões de libras esterlinas. Este cenário, associado ao resultado bastante
51
cruel dos povos escravizados e dizimados nos territórios espanhóis, foi responsável pelo
aumento da importância econômica relativa do mercado – legal e ilegal – de negros31
.
Aquela que, a princípio, podia ser considerada como sendo uma atividade fora do eixo
produtivo da lavoura, foi sendo naturalmente internalizada e passou a representar uma
parcela significante dos rendimentos europeus. A partir desde veio, tanto a Coroa,
quanto comerciantes e traficantes passaram a se beneficiar de altos rendimentos com a
negociação com mercenários, o transporte e o comércio nas costas americanas e
africanas. No período compreendido entre 1693 e 1743, apenas nos contratos de
“asientos” assinados entre a Espanha e nações como Portugal, França e Inglaterra,
foram vendidos 246.000 mil humanos (“peças”) provenientes da África para serem
utilizados nas Índias Espanholas. Carlos Pereyra (1946) avalia que, ao todo, 10 milhões
de negros foram transferidos da África para a América32
(Cf. PEREYRA, 1946).
A Coroa portuguesa auferiu lucros pela venda e a cobrança de direitos de entrada. A
evolução nestes valores observada ao longo do tempo está de acordo com a evolução da
economia e da ganância. Um negro que na segunda metade do século XVII era taxado
em valores entre 3$000 e 3$500 chegou a 8$700 quando Portugal, insatisfeito, assumiu
o monopólio. Por meio de cartas régias estabeleceu preços unitários que oscilaram
entre 160$000 e 300$000 no início daquele século. Impostos e taxações adicionais
foram sendo introduzidos progressivamente (SIMONSEN, 1967, 136-137).
3.5.2. A Economia Cristã
Jorge Benci, como os demais padres enviados ao Brasil, teve um papel importante para
a adequação das práticas cristãs ao cenário econômico-social que viveu. Em suas
palavras brotava o figurativo inquestionável do pecado para então estabelecer uma
relação mútua de obrigações entre senhores e escravos dentro dos preceitos cristãos. A
31
Mineração de 170 milhões de libras e açúcar de 400 milhões de libras. Cf. SIMONSEN, 1967, 135-138. 32
O cálculo foi baseado em dados extraídos por Simonsen (1967) dos contratos da Espanha com Portugal
em 1639, com a França e 1701 e a Inglaterra em 1713. Esses números incluem os escravos que pereciam
nas desgastantes e cruéis viagens nos “Tumbeiros”. O “asiento” assinado em 1639 entre George Scelle e
o governo Espanhol prometia o fornecimento de 10.000 toneladas de escravos em 9 anos e 8 meses para
as Índias de Castela.
52
desobediência é o grande pecado que traria catástrofe social. Entretanto, sua postura, tal
como a dos outros clérigos enviados à colônia, não fora muito além de minimizar os
maus tratos aos cativos dentro dos limites da razão e dos princípios religiosos. De fato,
inserido nesta relação, pecadores por natureza e condenados pela cor, restavam aos
negros a salvação por meio do trabalho e obediência, de acordo com a justiça divina e a
lei natural das coisas.
Em sua obra Economia Cristã dos Senhores no Governo dos Escravos (1705)33
, Benci
atribui a servidão como consequência do próprio pecado e tem sua origem nos primeiros
descendentes de Deus: Adão e Eva.
“O pecado foi o que abriu as portas por onde entrou
o cativeiro no mundo; porque rebelando-se o
homem contra seu Criador, se rebelaram nele e
contra ele os seus mesmos apetites. Destes tiveram
sua origem as dissensões e guerras de um povo
contra outro povo, de uma nação contra outra nação
e de um reino contra outro reino. E porque nas
batalhas que contra si davam a gentes se achou que
era mais humano não haver tanta efusão de
sangue, introduziu o direito das mesmas gentes que
se perdoasse a vida aos que não resistiam e
espontaneamente se entregavam aos vencedores,
ficando estes com o domínio e senhorio perpétuo
sobre os vencidos e os vencidos com perpétua
sujeição e obrigação de servir aos vencedores.”
(BENCI, 1954, p. 27-29)
Para Benci, a servidão vai contra a própria natureza humana de ser senhor de si e do
meio ambiente. Ser filho de Deus, dominador e não dominado. Caso Adão
permanecesse em seu estado de pureza e inocência em que Deus o criou, não haveria
33
Esta seção foi construida a partir de um estudo preliminar feito por Pedro de Alcântara Figueira e
Claudinei M.M. Mendes em 1977. Cf. FIGUEIRA; MENDES, 1977.
53
cativeiro nem senhores. O domínio é a tradução do sofrimento, uma vez que aquele que
serve aliena a personalidade de outrem com o fruto do trabalho que deveria pertencer a
si. A princípio, no estado de inocência não haveria o domínio do homem sobre outro
homem, uma vez que Deus deu a ordem de dominar os animais. Após ter criado a luz,
as águas, os répteis, aves, grandes baleias, Deus criara o homem e a mulher e os
abençoara:
“Frutificai e multiplicai-vos, e enche a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do
mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.”
(Genesis 1:28).
Enquanto o pontífice atribui a servidão de alguns povos a outros povos no mito do
pecado original, justifica especialmente a escravidão dos negros africanos, herdeiros de
Cam, pela maldição proferida por Noé. A sua contradição acontece ao dizer, ao mesmo
tempo, que escravizar é pecado, porém mais humano frente a derrubar o sangue dos
povos derrotados. Na interpretação original da bíblia, entretanto, humano é ser livre e
desumano é perder a liberdade. Dessa forma, ao dizer que escravizar é mais humano à
matar, Benci baseia seu argumento no ius gentium34
com aplicação plena do brocardo
latino minima de malis, ou “dos males o menor”. Todavia, o mal é sempre um erro
(FIGUEIRA; MENDES, 1977).
Prevalecendo a ideia da escravidão como consequência do pecado, ao final das guerras
entre os povos, os servatus, ou “preservados da morte”, tinham como forma de piedade
a dívida que o levava a condição de ser servo. De fato, é daí que vem a origem da
palavra servo, que, posteriormente, tomou o significado de escravo.
“Isto se colhe do mesmo nome de servo, que vale
o mesmo que servatus; porque, como diz o
Imperador Justiniano, os servos se apelidam assim
do patrocínio e conservação, com que os
34
“Direito das gentes”. Normas do direito romano aplicáveis aos estrangeiros.
54
Imperadores os livravam da morte” (BENCI,
1711, Apud. FIGUEIRA; MENDES, 1977).
É pertinente neste instante abrir um paralelo com John Locke, um dos ideólogos do
iluminismo, que contemporaneamente compartilhava da ideia lícita da escravidão como
pena substitutiva à pena de morte. Em seu “Segundo Tratado Sobre o Governo”, a
escravidão é tratada como consequência do direito de propriedade, aplicação plena da
lei da natureza.
“Ninguém pode dar mais poder do que possui; e
quem não pode tirar de si a própria vida não pode
conceder a outrem qualquer poder sobre ela. De
fato, tendo por culpa própria perdido o direito à
vida por algum ato que mereça a morte, aquele
que a entregou pode, quando o tem entre as mãos,
demorar em tomá-la, empregando-o a seu próprio
serviço; e com isso não lhe causa dano, porquanto,
sempre que achar ultrapasse o sofrimento da
escravidão ao valor da própria vida, esta nas suas
mãos, pela resistência à vontade do senhor, atrair
sobre si a morte que deseja” (LOCKE, 2003, p.
35-36).
O título de proprietário muitas vezes conduzia o senhor ao domínio absoluto sobre os
escravos, fazendo-os esquecer do contrato divino que existira entre as duas partes. O
escravo deveria obedecer, enquanto o senhor deveria ser obrigado em proceder de
acordo com a razão e ao direito natural: Servorum servus dominus est35
. Coloca o
pecado como um perigo iminente no qual o senhor incorre ao possuir escravos e não
cumprir com sua parte do acordo estabelecido. Benci não os fala de libertação, mas os
persuadia a tratá-los ponderadamente, dando-lhes sustento para o corpo, educação,
impondo-lhes atividades proporcionais a sua força e aplicando-lhes castigo racional.
35
Como manifesto de um dos quatro Padres do Oriente, São João Crisóstomo (334-405): também serão
servos dos mesmos que os servem.
55
Seguia o versículo 25 do Eclesiástico, na Bíblia de Jerusalém, que diz: “Para o asno
forragem, chicote e carga; para o servo pão, correção e trabalho”36
(BENCI, 1711,
Apud. FIGUEIRA; MENDES, 1977).
Doutro ponto de vista, a comparação feita entre o servo e o jumento acaba por mostrar,
na realidade, em que posição o escravo se encontrava naquela estrutura social. Sua
subordinação, por consagrar prejuízo a sua humanidade (BENCI, 1711, Apud.
FIGUEIRA; MENDES, 1977).
“Mas que obrigações pode dever o senhor ao
servo? O mesmo Espírito Santo no-las dirá; o qual
distinguindo no Eclesiástico o trato que se há de
dar ao jumento e ao servo, diz que ao jumento se
lhe deve dar o comer, a vara, e a carga: Cibaria, et
virga, et onus asino (1) Eccli. 33, 26. Deve-se o
pão ao servo, para que não desfaleça, panis, ne
succumbat; o ensino, para que não erre, disciplina,
ne erret; e o trabalho, para que se não faça
insolente, opus, ne insolescat.” (BENCI, 1711,
Apud. FIGUEIRA; MENDES, 1977)
Ele cita o Eclesiástico, porém há uma grande diferença entre este livro e a Consumação
da Revelação em Cristo Jesus, citada pelo Apóstolo Paulo, que se encontra num nível de
evolução anterior. No Eclesiástico, não há diferença entre a conotação cultural por traz
de “pão, ensino e trabalho” e a natural em “comida, vara e carga”, uma vez que a
diferença entre o servo e o jumento só irá aparecer posteriormente, nas escrituras do
apóstolo Paulo, na qual Jesus diz que o Pai não criou o homem para que fosse igual ao
jumento, mas, no princípio, para ser senhor de si e dos animais. Além disso, o discurso
de Benci não adiciona naquela trilogia algum outro elemento que proporcione mais
humanidade ao servo ou que o diferencie do jumento, como havia na relação primitiva,
no Gênesis, que o ser humano, como pessoa livre e senhor de si, tem o poder de
36
Uma tríplice muito semelhante é observada na obra de João Antonil: “pau, pão e pano”.
56
dominar criação, e não, de ser dominado (BENCI, 1711, Apud. FIGUEIRA; MENDES,
1977).
Seguindo aquela trilogia, a primeira obrigação do senhor com seus escravos é o “pão”.
A obrigação do senhor era dar-lhes alimento o suficiente para sobreviver sem que
tenham que recorrer ao furto. Para tanto, além do direito divino, toma por base
argumentos do direito positivo e do direito natural. Dado que a manutenção da vida é
um imperativo, seguindo a lei natural, pecador é o senhor por faltar ao escravo com o
sustento de seu servo. Novamente pecador ao obrigá-lo a furtar para sustentar a vida.
“Aquele faz o dano, que é ocasião e causa de se fazer tal dano: Verum est, eum, qui
causam praebuit damni dandi, da mnum dedisse”, ou, no brocardo popular “a ocasião
faz o ladrão”. Uma alternativa muito utilizada é dar-lhes um dia livre na semana para
que provessem a própria lavoura. Entretanto, Benci condena essas folgas serem aos
domingos e dias santos, já que prejudica os escravos a cumprirem com seus deveres
religiosos (BENCI, 1711, Apud. FIGUEIRA; MENDES, 1977).
“E quem lhes tira esse tempo (me direis vós) se
não proibimos a nossos escravos, que nos
domingos e dias santos busquem sua vida e
trabalhem para si? Nos Domingos! Nos dias
Santos! Dizei-me, senhores meus: onde vivemos?
[...] não vedes que pecais gravemente, contra o
terceiro Mandamento da Lei de Deus?” (BENCI,
1711, Apud. FIGUEIRA; MENDES, 1977)
Embutido na primeira obrigação do senhor está o cuidado que devem ter com seus
servos em suas enfermidades e com seu vestuário. Para Benci, a saúde era o único bem
do qual o escravo podia gozar, pois em sua condição natural não era capaz de alcançar o
bem da “riqueza”, das “delícias” (prazer) e da “honra”. A porta da Santa Casa da
Misericórdia não se abria para os escravos, portanto, a estes só restava a compaixão dos
senhores. A própria legislação Civil e Canônica decretava a perda do domínio de
senhores sobre escravos abandonados. Também eram responsáveis para que seus
57
escravos, sem luxo, andassem decentemente vestidos, “visto que a servidão e cativeiro
teve sua primeira origem do ludíbrio, que Cam fez, da desnudez de Noé, seu pai.” A
condição de seus escravos também refletia a posição social do senhor. Vã era eram as
desculpas dos senhores que não podiam vestir seus escravos, já que se tinham posses
para vesti-los, não teriam para tê-los como propriedade (BENCI, 1711, Apud.
FIGUEIRA; MENDES, 1977).
O “ensino” era a segunda obrigação embutida no seu discurso. Justificava essa
obrigação como consequência natural do domínio dos senhores sobre seus servos.
Diferentemente da primeira, esta se relacionava com o desenvolvimento do caráter do
escravo. Estavam incluídos aí o aprendizado dos bons costumes, dos preceitos
religiosos e o castigo como ferramenta educativa. “Não só deve o senhor dar-lhes
sustento corporal para que não pereçam os corpos, mas também o espiritual para que
não desfaleçam com suas almas, panis, ne succumbat”37
(BENCI, 1711, Apud.
FIGUEIRA; MENDES, 1977). O alimento espiritual consiste, na verdade, no
ensinamento da “Doutrina Cristã, [n]o uso dos Sacramentos, e o bom exemplo da vida”
(BENCI, 1711, Apud. FIGUEIRA; MENDES, 1977). Entretanto, os escravos eram
vistos como brutos, boçais, incapazes de serem educados. Benci não contraria este
pensamento, porém, argumenta que mesmo boçais, devem ser instruídos dentro dos
mistérios da Fé, mesmo que para isso seja necessário o uso de semelhanças, exemplos
palpáveis e persistência38
.
“Diz Cristo: todas as gentes, por brutas, por boçais e rudes que sejam, todas sem
excepção hão de ser instruídas nos mistérios da Minha Fé e nos Mandamentos da minha
Lei: Docete omnes gentes” (BENCI, 1711, Apud. FIGUEIRA; MENDES, 1977).
O castigo é elemento essencial na Economia Cristã e importante mecanismo de
manutenção do equilíbrio entre as forças envolvidas na relação senhor-servo.
Entretanto, é nele que se reafirma de forma depressiva a inferioridade com que os
37
O pão ao servo, para que não desfaleça. 38
Benci usa o figurativo da chuva como sendo os ensinamentos e da pedra como sendo o rude escravo.
“Lá disse o Poeta, que a água abrandava e fazia mossa nas pedras, gutta cavar lapidem. Mas como? Não
caindo uma só vez, é mas caindo uma e outra e muitas vezes
58
negros são vistos. Apesar de ser tratado independentemente no sermão do missionário, o
castigo pode ser identificado como parte integrante da obrigação do proprietário em
educar. O autor parte do principio que os negros são naturalmente “voluntários, rebeldes
e viciosos”. Portanto, sustentar o escravo sem dar-lhe ocupação e castigo é querer tê-lo
“contumaz e rebelde”, vulnerável aos prazeres do pecado. Não puni-lo, quando assim
for necessário, é uma forma de violência e tirania. É a “filha da incúria, mãe da
insolência” (BENCI, 1711, Apud. FIGUEIRA; MENDES, 1977). É dessa forma que
Benci não condena a violência, mas faz apenas por relativizar a força com que o açoite é
aplicado na pele. De qualquer maneira, ponderada pelas costas e braços e beiços, dor e
sofrimento que não é capaz de imaginar, dimensionar ou sentir (BENCI, 1711, Apud.
FIGUEIRA; MENDES, 1977).
Para o padre, o ócio é a escola de todos os males, fonte de insolência. Portanto, a última
obrigação fundamental do senhor é dar “trabalho” ao escravo. De fato, este é o elemento
fundamental na existência do escravo dentro daquela estrutura econômico-social.
Partindo de Aristóteles, ele sustenta a dialética do trabalho e do pão com reciprocidade:
não é possível o trabalho sem o sustento, da mesma forma, o sustento só é merecido se
“fosse ganhado com o suor de seu rosto, e fosse paga do seu trabalho” (BENCI, 1711,
Apud. FIGUEIRA; MENDES, 1977). Fazendo novamente a comparação com o
jumento, reafirma a percepção depreciativa a respeito do negro. Naturalmente “viciosos,
vagabundos e propensos à rebeldia” (BENCI, 1711, Apud. FIGUEIRA; MENDES,
1977), os escravos precisam do trabalho para que a fadiga muscular os faça mais
“sujeitos, sossegados e mansos”. Da mesma forma, é obrigação dos senhores que seus
escravos sejam poupados de trabalhos excessivos e superiores à sua força. Tão pouco,
poupados devem ser do trabalho aos domingos e dias santos, períodos destinados ao
exercício da doutrina, de acordo com os preceitos.
“Mas não é esta a maior razão, porque devem os
senhores ocupar aos servos e não, lhes, permitir
que andem ociosos e vagabundos. A razão mais
eficaz e urgente é a dizíamos. Para que não façam
insolentes, e para que não busquem traças e modos
59
com que se livrem da sujeição do seu senhor,
fazendo-se rebeldes e indómitos: opus, ne
insolescat” (BENCI, 1711, Apud. FIGUEIRA;
MENDES, 1977)
60
4. CONCLUSÕES
A moral não é algo superposto a conduta humana, uma vez que todas as nossas ações
possuem uma carga moral. O surgimento da moral acontece juntamente ao processo de
organização do homem em sociedade e está diretamente ligado ao agir individual. Tem
origens num passado onde a convivência em grupo se torna um elemento essencial para
o sucesso frente a severas condições ambientais. Juntamente ao desenvolvimento
histórico-social das civilizações humanas, a moral adquire formatos que correspondem
as suas necessidades instantâneas. A escravidão nasce no seio dessas necessidades,
quando o homem percebe que aqueles que eram dominados nas guerras poderiam
auxiliar nas atividades produtivas dos povos vencedores. Por se tratar de um conjunto
de normas e regras destinadas a regular as relações dos indivíduos, a moral frente à
escravidão sofre transformações e chega a Antiguidade Clássica como resultado da
estrutura social que a compunha. Não havia a concepção de trabalho produtivo, mas sim
do trabalho que garantisse o Bem Comum. A escravidão era lícita e se baseava
principalmente na filosofia aristotélica que acreditava que a condição de ser escravo era
inerente estava determinada fisicamente.
Os padrões morais assumiram uma orientação não muito diferente na Europa dos
séculos XV ao XVIII. A moral cristã, herdada do período medieval, era uma moral
subalterna à religião, onde elementos religiosos e dogmáticos regulavam o
comportamento humano visando uma vida extraterrena, ao lado de um Deus
extremamente misericordioso. É esta moral que desembarca no litoral brasileiro em
1500 e permeia toda a sociedade nos séculos seguintes. O sentimento de progresso,
surgido após o Renascimento Comercial, fez com que não houvessem limites para as
ações humanas. É quando Portugal, munido de todo um arsenal tecnológico herdado de
reinados progressistas, se lança aos mares em busca de riqueza comercial.
O “achamento” do Brasil foi um resultado inesperado. A princípio as novas terras foram
ignoradas pela miopia causada pelos altos rendimentos dos produtos indianos e
ofuscadas pelo brilho dos metais preciosos encontrados nos quinhões espanhóis.
Entretanto, com a colaboração de seres até então mitológicos, os portugueses foram
capazes esgotar rapidamente todo estoque de maneira vermelha que haviam encontrado
61
ao longo de seu litoral. Uma ocupação efetiva só aconteceu por pressões externas,
quando Portugal percebeu que a posse destas terras era relativamente viável com o
cultivo da cana-de-açúcar. Entretanto, essa indústria demandaria uma grande quantidade
de mão-de-obra, resultando nas primeiras barbaridades com os povos considerados
“inferiores”. A população nativa, que incluíam Tupinambás e Aimorés, foi brutalmente
reduzida em decorrência da violência das capturas e guerras intertribais. A Hipótese
microeconômica do surgimento da escravidão de Domar (1970) é confirmada ao passo
que, a abundância de terras frente a uma Corte ociosa, ambiciosa e glamorosa, abriu
margem para o início de uma das atividades comerciais mais sangrentas da história.
Apesar das divergências entre fontes, sabe-se que um quarto de todo contingente
fornecido pelo mercado negro de escravos africanos teve como destino o Brasil.
A Companhia de Jesus esteve presente em todas as etapas deste processo. As bulas
papais promulgadas desde séculos anteriores confirmam a forte relação simbiótica entre
os interesses da Igreja Católica e os da Coroa portuguesa. As bases morais que
habilitavam a exploração física e mental de “homens atrasados” foram encontradas por
sofisticados mecanismos de interpretação de textos latinos, obra de jurisconsultos, leis,
além da bíblia, de origem judaico-cristã, onde a maldição proferida por Noé ao filho
Cam, o “preto”, acabara por traçar o destino cruel de homens por suas cores e tons.
Entre outros, o jesuíta Jorge Benci, em sua “Economia Cristã”, se limitou a ponderar os
maus tratos com castigos “justos”. Afinal de contas, a entidade na qual era representante
espiritual dependia dos rendimentos da Coroa para continuar sua eterna missão de
“cristianização da terra”.
62
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