FIDEICOMISSO OU DOAÇÃO A TERMO

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APELACÃO CÍVEL DATA: 9/12/1991 FONTE: 013903-0/1 LOCALIDADE: SÃO PAULO Relator: Onei Raphael Legislação: FIDEICOMISSO OU DOAÇÃO A TERMO Controvérsia acerca da natureza da cláusula que estipulou condições do ato de alienação: fideicomisso ou doação a termo? Impossibilidade de verificar, de plano, em sede de procedimento administrativo de dúvida, questões acerca da interpretação de cláusulas que gravam o imóvel. Íntegra: APELAÇÃO CÍVEL N.º 13.903-0/1 – CAPITAL Excelentíssimo Senhor Desembargador Corregedor Geral da Justiça: Trata-se de recurso interposto por IBF – INDÚSTRIA BRASILEIRA DE FORMULÁRIOS contra decisão do MM. Juiz Corregedor Permanente do 6.º Cartório de Registro de Imóveis da Comarca da Capital, que, nos autos deste procedimento de dúvida, negou registro à escritura de venda e compra com pacto adjeto de hipoteca por intermédio da qual a recorrente adquiriu de VIOLETA BASÍLIO JAFET E ANGELA BASÍLIO JAFET um prédio situado na Rua Bom Pastor, 798, denominado “Palacete Basílio Jafet”, objeto da Transcrição n.º 59.218, do 1.º Cartório de Registro de Imóveis da Capital. O óbice decretado pelo Magistrado decorreu, principalmente, da existência de restrições à alienação do bem, asseverando Sua Excelência, por seu turno, que as demais exigências, muito embora satisfeitas no curso deste procedimento, eram igualmente legítimas. Sustenta a recorrente, em síntese, que a hipótese retrata caso claro de fideicomisso, observando que os fideicomissários são os filhos das donatárias-fiduciárias (Violeta e Angela). E, como não há possibilidade de fideicomisso de terceiro grau (art. 1.739 do C. Civil, jamais o Governo do Estado de São Paulo poderia figurar como fideicomissário, de tal forma que, ante a renúncia dos netos, efetivos fedeicomissários, caducou o fideicomisso, sendo, pois, legítima a alienação perpetrada pelas fiduciárias. Sustenta que a cláusula de inalienabilidade teve em visto tão só o resguardo da clara intenção dos doadores-fideicomitentes de que o imóvel fosse, com a morte de suas filhas, entregue aos descendentes diretos deles doadores ou, na sua falta, ao Governo do Estado de São Paulo. Pede a reforma do julgamento (folhas 131). A Ilustrada Curadoria de Registros Públicos, por parecer de seu culto titular, sustenta que a dúvida é procedente tendo em conta a cláusula de inalienabilidade instituída pelos doadores, ressaltando, mais, que a hipótese retrata caso de fideicomisso, figurando como fideicomissário o Governo do Estado de São Paulo, não os filhos das fiduciárias, netos dos doadores. Insiste na manutenção da decisão recorrida (folhas 141). No mesmo sentido é o pronunciamento da Douta Procuradoria Geral de Justiça (folhas 150). É o relatório. Opino. O casal BASÍLIO JAFET E ADMA JAFET transmitiu por doação a suas filhas VIOLETA e ANGELA, o imóvel da Rua Bom Pastor n.º 88, como consta da Transcrição n.º 59.218, do 1.º Cartório de Registro de Imóveis da Capital (folhas 12). A doação foi feita com as condições seguintes: “1.ª) A doação é feita em parte iguais; 2.ª) Que o Palacete se destina perpetuamente a residências

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 APELACÃO CÍVELDATA: 9/12/1991  FONTE: 013903-0/1  LOCALIDADE: SÃO PAULORelator: Onei RaphaelLegislação:

FIDEICOMISSO OU DOAÇÃO A TERMO

Controvérsia acerca da natureza da cláusula que estipulou condições do ato de alienação:fideicomisso ou doação a termo? Impossibilidade de verificar, de plano, em sede de procedimentoadministrativo de dúvida, questões acerca da interpretação de cláusulas que gravam o imóvel.

Íntegra:

APELAÇÃO CÍVEL N.º 13.903-0/1 – CAPITAL

Excelentíssimo Senhor Desembargador Corregedor Geral da Justiça:

Trata-se de recurso interposto por IBF – INDÚSTRIA BRASILEIRA DE FORMULÁRIOS contradecisão do MM. Juiz Corregedor Permanente do 6.º Cartório de Registro de Imóveis da Comarcada Capital, que, nos autos deste procedimento de dúvida, negou registro à escritura de venda ecompra com pacto adjeto de hipoteca por intermédio da qual a recorrente adquiriu de VIOLETABASÍLIO JAFET E ANGELA BASÍLIO JAFET um prédio situado na Rua Bom Pastor, 798,denominado “Palacete Basílio Jafet”, objeto da Transcrição n.º 59.218, do 1.º Cartório de Registrode Imóveis da Capital.

O óbice decretado pelo Magistrado decorreu, principalmente, da existência de restrições àalienação do bem, asseverando Sua Excelência, por seu turno, que as demais exigências, muitoembora satisfeitas no curso deste procedimento, eram igualmente legítimas.

Sustenta a recorrente, em síntese, que a hipótese retrata caso claro de fideicomisso, observandoque os fideicomissários são os filhos das donatárias-fiduciárias (Violeta e Angela). E, como não hápossibilidade de fideicomisso de terceiro grau (art. 1.739 do C. Civil, jamais o Governo do Estadode São Paulo poderia figurar como fideicomissário, de tal forma que, ante a renúncia dos netos,efetivos fedeicomissários, caducou o fideicomisso, sendo, pois, legítima a alienação perpetradapelas fiduciárias. Sustenta que a cláusula de inalienabilidade teve em visto tão só o resguardo daclara intenção dos doadores-fideicomitentes de que o imóvel fosse, com a morte de suas filhas,entregue aos descendentes diretos deles doadores ou, na sua falta, ao Governo do Estado de SãoPaulo. Pede a reforma do julgamento (folhas 131).

A Ilustrada Curadoria de Registros Públicos, por parecer de seu culto titular, sustenta que a dúvidaé procedente tendo em conta a cláusula de inalienabilidade instituída pelos doadores, ressaltando,mais, que a hipótese retrata caso de fideicomisso, figurando como fideicomissário o Governo doEstado de São Paulo, não os filhos das fiduciárias, netos dos doadores. Insiste na manutenção dadecisão recorrida (folhas 141). No mesmo sentido é o pronunciamento da Douta ProcuradoriaGeral de Justiça (folhas 150).

É o relatório.

Opino.

O casal BASÍLIO JAFET E ADMA JAFET transmitiu por doação a suas filhas VIOLETA e ANGELA,o imóvel da Rua Bom Pastor n.º 88, como consta da Transcrição n.º 59.218, do 1.º Cartório deRegistro de Imóveis da Capital (folhas 12).

A doação foi feita com as condições seguintes:

“1.ª) A doação é feita em parte iguais; 2.ª) Que o Palacete se destina perpetuamente a residências

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das outorgadas e suas respectivas famílias e descendentes; 3.ª) Logo depois da morte de ambosos outorgantes o prédio se tornará residência de VIOLETA e de ANGELA que, sempre de acordoagirão para o não quebramento da condição imposta e, no caso de não ser possível a ambas asresidências comum, concordarão, amigavelmente, tendo em vista a memória de seus paes paranão ser deshabitado o Palacete pela família descendente em linha directa do casal BASÍLIOJAFET. Outrossim, as filhas das doadoras e os descendentes directos dos doadores, poderão, setiverem necessidade, arrendar o palacete e usufruir a respectiva renda; 4.a) Alem do que ficou aquiestipulado os outorgantes farão em disposição testamentária egual recomendação; 5.a) Asdisposições desta escriptura só prevalecerão após a morte de ambos os doadores; 6.a) Queextincta a descendência legal dos outorgantes o Palacete Bazílio Jafet, objeto desta escriptura,passará de pleno direito a pertencer ao Governo do Estado de São Paulo, a quem os outorgantesdoam, sob a condição de nelle installarem um Museu de Antiguidade com o título de “PalaceteBazilio e Adma Jafet”, que jamais poderá ser substituído. O Estado só entrará na posse do referidoPalacete depois de completa extinção dos descendentes directos dos outorgantes; 7.a) Nenhumadas partes poderá ser doada, alienada ou gravada de onus (onerada); 8.a) O palacete, em tempoalgum, sob qualquer pretexto, de qualquer ordem, não poderá ser objeto de subrogação judicial,dada em garantia de dívidas ou tomado para pagamento dellas..!”.

Tais disposições estão a gerar dúvida acerca da natureza da doação.

Sustenta a recorrente que a hipótese é de fideicomisso e que a alienação era possível tendo emconta que os fideicomissários, netos dos doadores, renunciaram à doação, lembrando, mais, que obem não poderia ser transferido para o Estado de São Paulo, à vista do que dispõe o artigo 1.739do Código Civil, que veda o fideicomisso, além do segundo grau.

No mesmo sentido é o pronunciamento da Ilustrada Curadoria de Registros Públicos, que aponta,no entanto, o Estado de São Paulo como fideicomissário, o que, de resto, impediria a alienaçãoperpetrada pelas fiduciárias.

O Ilustre Magistrado, por seu turno, lembrando que a alienação foi irregular em face da existênciade cláusula de inalienabilidade, assevera que a hipótese é de doação a termo.

Esse quadro, por si só, mostra que a matéria não pode ser definida em sede de meroprocedimento administrativo de dúvida, porque, em verdade, a definição da natureza da doação(fideicomisso ou doação a termo) depende de prévia interpretação da cláusula que estipulou ascondições do ato, merecendo observar que não há elementos seguros para a interpretação davontade dos doadores nesta via (artigo 1.666 do C. Civil).

Do contexto da declaração de vontade manifestado pelos doadores pode se inferir que a intençãotenha sido, efetivamente, de instituição do fideicomisso. Mas restaria a definição de quem figurariacomo fideicomissário: o Estado, tendo em conta que a intenção foi de transferência aosdescendentes diretos, ANGELA e VIOLETA; ou os netos dos doadores, filhos dasfiduciárias-donatárias, tendo em conta o disposto no artigo 1.739 do Código Civil?

Todavia, igualmente razoável é a interpretação de que a hipótese seria de doação a termo, tendoem conta que, da manifestação de vontade dos doadores, há referências claras à intenção depreservar o imóvel na família, para desfrute dos descendentes em linha direta (filhos, netos, etc...),até a extinção do último descendente, circunstâncias que implicaria na transferência do imóvel aoEstado, para instalação de um Museu.

O fato é que a matéria não comporta definição na via administrativa, como, de resto, proclamou olúcido Magistrado.

Por outro lado, não se pode simplesmente desconsiderar, como pretende o recorrente, a cláusulade inaliebilidade que grava o imóvel, instituída na doação, lembrando-se, ainda, a existência decláusula vedando a subrogação do vínculo.

Ainda que se admita, para argumentar, que na hipótese de fideicomisso figurem comofideicomissário os netos dos doadores-fideicomitentes, a renúncia quanto aos direitos sobre oimóvel não teria o condão de modificar a intenção do doador quanto à inalienabilidade, queremanesceria. E disso decorre a ilegitimidade da alienação e impede o acesso do título a registro,como já proclamado nos autos.

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Por tais razões, o parecer que, respeitosamente, submeto ao elevado exame de Vossa Excelência,é pelo improvimento do apelo, procedendo-se na forma do artigo 203, inciso I, da Lei Federal n.º6.015/73.

São Paulo, 12 de novembro de 1.991.

(a) GERALDO FRANCISCO PINHEIRO FRANCO, Juiz Auxiliar da Corregedoria

A C Ó R D Ã O

Vistos, relatados e discutidos estes autos de APELAÇÃO CÍVEL N.º 13.903-0/1, da Comarca daCAPITAL, em que é apelante IBF – INDÚSTRIA BRASILEIRA DE FORMULÁRIOS LTDA, apeladoo OFICIAL DO 6.º CARTÓRIO DE REGISTRO DE IMÓVEIS e interessadas VIOLETA BASÍLIOJAFET e ÂNGELA BASÍLIO JAFET.

A C O R D A M os Desembargadores do Conselho Superior de Magistratura, por votação unânime,negar provimento ao recurso.

Cuida-se de recurso interposto contra decisão que, em sede de dúvida, negou registro a escriturade venda e compra, por intermédio da qual a recorrente adquiriu o imóvel denominado PalaceteBasílio Jafet, localizado na Rua Bom Pastor, nesta Capital.

O óbice ao registro decorreu da existência de restrições à alienação do bem, instituídas ao ensejode sua doação às alienantes.

Sustenta a recorrente que a hipótese retrata caso de fideicomisso, observando que figuram comofiduciárias as alienantes e como fideicomissários os filhos destas, netos dos doadores, querenunciaram aos direitos sobre o imóvel, disso resultando caduco o fideicomisso, circunstância quepermitiu a venda. Pugna pela reforma do julgado.

O pronunciamento do Ministério Público, nas duas Instâncias, é pelo improvimento do apelo. Nomesmo sentido é o parecer do MM. Juiz Auxiliar da Corregedoria.

É o relatório.

O casal Basílio e Adma Jafet transmitiu por doação a suas filhas Violeta e Ângela, o imóvel da RuaBom Pastor, 88, denominado “Palacete Basílio Jafet”, como consta da Transcrição n.º 59.218.

A doação foi feita com condições, que, dada a redação duvidosa, estão a gerar indagações acercade sua natureza.

Sustentam, recorrente o Ministério Público, que a hipótese retrata caso de fideicomisso,divergindo, no entanto, quanto à figura do fideicomissário: os netos das fiduciárias, segundo arecorrente; o Estado de São Paulo, segundo a Curadoria. O Ilustre Magistrado, por seu turno,entende que a hipótese é de doação a termo e lembra que a cláusula da inalienabilidade estaria aimpedir, de qualquer forma, a alienação por parte das donatárias.

Esse quadro permite verificar, de plano, e impossibilidade do exame da matéria na viaadministrativa. Indispensável é a discussão acerca das cláusulas contidas na doação. Einterpretação da Cláusula não se faz em sede de dúvida.

Por outro lado, não se pode desconhecer a existência de cláusula de inalienabilidade gravando oimóvel, o que, por si só, está a impedir sua alienação, merecendo observar, na esteira dopronunciamento do MM. Juiz Auxiliar, que a renúncia dos supostos fideicomissários, netos dosdoadores, quanto aos direitos sobre o imóvel não tem o condão de alterar a vontade dos doadoresquanto a esse gravame em especial.

O título, assim, não reúne condições de acesso.

O improvimento do apelo é de rigor.

Custas na forma da lei.

Participaram do julgamento, com votos vencedores, os Desembargadores ANICETO LOPESALIENDE, Presidente do Tribunal de Justiça e ODYR JOSÉ PINTO PORTO, Vice-Presidente do

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Tribunal de Justiça.

São Paulo, 09 de dezembro de 1991.

(a) ONEI RAPHAEL, Corregedor Geral da Justiça e Relator