Fichamento - Peculiaridades do gênero, do enredo e da composição das obras de Dostoiévski

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Por sua natureza mesma, o gênero literário reflete as tendências mais estáveis, “perenes” da evolução da literatura. O gênero sempre conserva os elementos imorredouros da archaica. É verdade que nele essa archaica só se conserva graças à sua permanente renovação, vale dizer, graças à atualização. O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gênero. O gênero vive do presente mas sempre recorda o seu passado, o seu começo. É o representante da memória criativa no processo de desenvolvimento literário. É precisamente por isto que tem a capacidade de assegurar a unidade e a continuidade desse desenvolvimento. P.100 A cosmovisão carnavalesca é dotada de uma poderosa força vivificante e transformadora e de uma vitalidade indestrutível. Por isto, aqueles gêneros que guardam até mesmo a relação mais distante com as tradições do sério- cômico conservam, mesmo em nossos dias, o fermento carnavalesco que os distingue acentuadamente entre outros gêneros. Tais gêneros sempre apresentam uma marca especial pela qual podemos identificá-los. Chamaremos literatura carnavalizada à literatura que, direta ou indiretamente, através de diversos elos mediadores, sofreu a influência de diferentes modalidades de folclore carnavalesco(antigo ou medieval). P.101 A primeira peculiaridade de todos os gêneros do sério- cômico é o novo tratamento que eles dão à realidade. A atualidade viva, inclusive o dia-a-dia, é o objeto ou, o que é ainda mais importante, o ponto de partida da interpretação, apreciação e formalização da realidade. Pela primeira vez, na literatura antiga, o objeto da representação séria (e simultaneamente cômica) é dado sem

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Fichamento do texto Peculiarid​ades do gênero, do enredo e da composição das obras de Dostoiévsk​i de Mikhail Bakhtin

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Por sua natureza mesma, o gênero literário reflete as tendências mais estáveis, “perenes” da evolução da literatura. O gênero sempre conserva os elementos imorredouros da archaica. É verdade que nele essa archaica só se conserva graças à sua permanente renovação, vale dizer, graças à atualização. O gênero sempre é e não é o mesmo, sempre é novo e velho ao mesmo tempo. O gênero renasce e se renova em cada nova etapa do desenvolvimento da literatura e em cada obra individual de um dado gênero.

O gênero vive do presente mas sempre recorda o seu passado, o seu começo. É o representante da memória criativa no processo de desenvolvimento literário. É precisamente por isto que tem a capacidade de assegurar a unidade e a continuidade desse desenvolvimento.P.100

A cosmovisão carnavalesca é dotada de uma poderosa força vivificante e transformadora e de uma vitalidade indestrutível. Por isto, aqueles gêneros que guardam até mesmo a relação mais distante com as tradições do sério-cômico conservam, mesmo em nossos dias, o fermento carnavalesco que os distingue acentuadamente entre outros gêneros. Tais gêneros sempre apresentam uma marca especial pela qual podemos identificá-los.

Chamaremos literatura carnavalizada à literatura que, direta ou indiretamente, através de diversos elos mediadores, sofreu a influência de diferentes modalidades de folclore carnavalesco(antigo ou medieval).P.101

A primeira peculiaridade de todos os gêneros do sério-cômico é o novo tratamento que eles dão à realidade. A atualidade viva, inclusive o dia-a-dia, é o objeto ou, o que é ainda mais importante, o ponto de partida da interpretação, apreciação e formalização da realidade. Pela primeira vez, na literatura antiga, o objeto da representação séria (e simultaneamente cômica) é dado sem qualquer distância épica ou trágica, no nível da atualidade, na zona do contato imediato e até profundamente familiar com os contemporâneos vivos e não no passado absoluto dos mitos e lendas. Nesse gênero, os heróis míticos e as personalidades históricas do passado são deliberada e acentuadamente atualizados, falam e atuam na zona de um contato familiar com a atualidade inacabada. Daí ocorrer, no campo do sério-cômico, uma mudança radical da zona propriamente valorativo-temporal de construção da imagem artística.

A segunda peculiaridade é inseparável da primeira: os gêneros do sério-cômico não se baseiam na lenda nem se consagram através dela. Baseiam-se conscientemente na experiência (se bem que ainda insuficientemente madura) e na fantasia livre; na maioria dos casos seu tratamento da lenda é profundamente crítico, sendo, às vezes, cínico-desmascarador. Aqui, por conseguinte, surge pela primeira vez uma imagem quase liberta da lenda, uma imagem baseada na experiência e na fantasia livre.

A terceira peculiaridade são a pluralidade de estilos e a variedade de vozes de todos esses gêneros. Eles renunciam à unidade estilística (em termos rigorosos, à unicidade estilística) da epopéia, da tragédia, da retórica elevada e da lírica. Caracterizam-se pela

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politonalidade da narração, pela fusão do sublime e do vulgar, do sério e do cômico, empregam amplamente os gêneros intercalados: cartas, manuscritos encontrados, diálogos relatados, paródias dos gêneros elevados, citações recriadas em paródia, etc. Em alguns deles observa-se a fusão do discurso da prosa e do verso, inserem-se dialetos e jargões vivos (e até o bilingüismo direto na etapa romana), surgem diferentes disfarces de autor. Concomitantemente com o discurso de representação, surge o discurso representado. Em alguns gêneros os discursos bivocais desempenham papel principal. Surge neste caso, conseqüentemente, um tratamento radicalmente novo do discurso enquanto matéria literária,

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Para dominar essa linguagem, ou seja, para iniciar-se na tradição do gênero carnavalesco na literatura, o escritor não precisa conhecer todos os elos e todas as ramificações dessa tradição. O gênero possui sua lógica orgânica, que em certo sentido pode ser entendida e criativamente dominada a partir de poucos protótiposou até fragmentos de gênero. Mas a lógica do gênero não é uma lógica abstrata. Cada variedade nova, cada nova obra de um gênero sempre a generaliza de algum modo, contribui para o aperfeiçoamento da linguagem do gênero. Por isso é importante conhecer as possíveis fontes do gênero de um determinado autor, o clima do gênero literário em que se desenvolveu a sua criação. Quanto mais pleno e concreto for o nosso conhecimento das relações de gênero em um artista, tanto mais a fundo poderemos penetrar nas particularidades de sua forma do gênero e compreender mais corretamente a relação de reciprocidade entre a tradição e a novidade nessa forma

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Salientamos mais uma vez que não interessa a influência de autores individuais, obras individuais, temas, imagens e idéias individuais, pois estamos interessados precisamente na influência da própria tradição do gênero, transmitida através dos escritores que arrolamos. Neste sentido, a tradição em cada um deles renasce e renova-se a seu modo, isto é, de maneira singular. É nisto que consiste a vida da tradição. Interessa-nos – usemos a comparação – a palavra linguagem e não o seu emprego individual num determinado contexto singular, embora, evidentemente, um não exista sem o outro

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A cosmovisão carnavalesca ajuda a Dostoiévski superar o solipsismo tanto ético quanto gnosiológico. Uma pessoa que permanece a sós consigo mesma não pode dar um jeito na vida nem mesmo nas esferas mais profundas e íntimas de sua vida intelectual, não pode passar sem outra consciência. O homem nunca encontrará sua plenitude apenas em si mesmo

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