Fichamento Aristoteles

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FICHAMENTO BIBLIOGRÁFICO Obra: ARISTÓTELES. A política. Tradução: Mário da Gama Kury . 3. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997. Síntese da Obra por Renata Ovenhausen Albernaz A política de Aristóteles consiste em três elementos básicos: o primeiro é que ela é a ciência da felicidade humana; o segundo, é que essa felicidade se realiza em um ente natural capaz de gerar o maior bem possível, qual seja, a cidade; e o terceiro, é que as cidades, como comunidades políticas, são dotadas de uma constituição que as conforma e substancia. Nesses termos, segundo Mario da Gama Kury, em comentários à tradução da obra, “a felicidade humana consistiria em uma certa maneira de viver, e a vida de um homem é o resultado do meio em que ele existe, das leis, dos costumes e das instituições adotadas pela comunidade à qual ele pertence” (p. 7). Portanto, em face dessas considerações, e talvez instigado pelos estudos que realizou sobre as constituições de várias cidades à época, na “A Política”, Aristóteles procura evidenciar a natureza e os elementos da política, afirmando-a como a ciência da realização da justiça e do interesse comum e analisando os seus componentes. As preocupações de Aristóteles com a política aparecem tanto no sentido de determinar o modo ótimo da comunidade política – esta que possibilite a felicidade plena e a autonomia das cidades (aliás, a autonomia, ou seja, o ser a cidade um fim em si mesma, é, justamente, o atributo que Aristóteles confere a esse tipo de comunidade humana) – quanto no de afirmar os meios (forma de governo, instituições, educação dos cidadãos) para que essa felicidade seja alcançada. A ciência política é, aliás, classificada pelo autor como uma ciência prática que, ao contrário das ciências teóricas (para as quais o conhecimento é um fim em si mesmo), busca um meio para a ação (na política, busca-se uma maneira de agir que é, em si mesma, a felicidade). Na primeira parte da obra, Aristóteles procura definir a cidade como uma forma de comunidade que tem um fim que a justifica (sua natureza), e descrevê-la através de um método analítico que evidencie as partes que a compõe. A cidade é concebida por Aristóteles como uma comunidade política que, como as demais comunidades, formam-se para um bem; mas o seu fim é o mais elevado estado de bem. Ela é, segundo o filósofo, “uma união de famílias e de clãs para viverem melhor, com vistas a uma vida perfeita e independente” (p. 94). Não é, assim, apenas uma reunião de pessoas para evitarem ofensas recíprocas ou para intercambiar produtos, mas aquela na qual essas pessoas guardam entre si um vínculo de amizade que é o vínculo para o bem viver (e não para apenas o conviver ou o sobreviver), experimentando a justiça e as qualidades morais. Além disso, como uma comunidade específica, a cidade exige qualidades diferenciadas de seus membros e governantes em relação àquelas que vigoram em outros tipos de comunidade, como na comunidade doméstica, por exemplo. Daí ser Aristóteles destoante do modelo platônico, este que pressupunha que certas qualidades 1

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FICHAMENTO BIBLIOGRÁFICO

Obra: ARISTÓTELES. A política. Tradução: Mário da Gama Kury . 3. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

Síntese da Obra por Renata Ovenhausen Albernaz

A política de Aristóteles consiste em três elementos básicos: o primeiro é que ela é a ciência da felicidade humana; o segundo, é que essa felicidade se realiza em um ente natural capaz de gerar o maior bem possível, qual seja, a cidade; e o terceiro, é que as cidades, como comunidades políticas, são dotadas de uma constituição que as conforma e substancia. Nesses termos, segundo Mario da Gama Kury, em comentários à tradução da obra, “a felicidade humana consistiria em uma certa maneira de viver, e a vida de um homem é o resultado do meio em que ele existe, das leis, dos costumes e das instituições adotadas pela comunidade à qual ele pertence” (p. 7). Portanto, em face dessas considerações, e talvez instigado pelos estudos que realizou sobre as constituições de várias cidades à época, na “A Política”, Aristóteles procura evidenciar a natureza e os elementos da política, afirmando-a como a ciência da realização da justiça e do interesse comum e analisando os seus componentes.

As preocupações de Aristóteles com a política aparecem tanto no sentido de determinar o modo ótimo da comunidade política – esta que possibilite a felicidade plena e a autonomia das cidades (aliás, a autonomia, ou seja, o ser a cidade um fim em si mesma, é, justamente, o atributo que Aristóteles confere a esse tipo de comunidade humana) – quanto no de afirmar os meios (forma de governo, instituições, educação dos cidadãos) para que essa felicidade seja alcançada. A ciência política é, aliás, classificada pelo autor como uma ciência prática que, ao contrário das ciências teóricas (para as quais o conhecimento é um fim em si mesmo), busca um meio para a ação (na política, busca-se uma maneira de agir que é, em si mesma, a felicidade).

Na primeira parte da obra, Aristóteles procura definir a cidade como uma forma de comunidade que tem um fim que a justifica (sua natureza), e descrevê-la através de um método analítico que evidencie as partes que a compõe. A cidade é concebida por Aristóteles como uma comunidade política que, como as demais comunidades, formam-se para um bem; mas o seu fim é o mais elevado estado de bem. Ela é, segundo o filósofo, “uma união de famílias e de clãs para viverem melhor, com vistas a uma vida perfeita e independente” (p. 94). Não é, assim, apenas uma reunião de pessoas para evitarem ofensas recíprocas ou para intercambiar produtos, mas aquela na qual essas pessoas guardam entre si um vínculo de amizade que é o vínculo para o bem viver (e não para apenas o conviver ou o sobreviver), experimentando a justiça e as qualidades morais. Além disso, como uma comunidade específica, a cidade exige qualidades diferenciadas de seus membros e governantes em relação àquelas que vigoram em outros tipos de comunidade, como na comunidade doméstica, por exemplo. Daí ser Aristóteles destoante do modelo platônico, este que pressupunha que certas qualidades eram genéricas a qualquer extensão e tipo de ser humano sobre a qual elas se realizassem, de modo a pressupor que um bom pai de família, o que exercia um bom comando na comunidade doméstica, também o faria na comunidade política. Para Aristóteles, não é a qualidade algo universal, mesmo porque as comunidades têm diferentes naturezas e não apenas distintas extensões. Enquanto a família é uma relação de dependência e que envolve o comando do homem sobre seres de diferente natureza ou que lhe são inferiores, na cidade o comando se dá sobre seres de mesma natureza e iguais em dignidade, daí sua distinção por natureza da comunidade doméstica.

As cidades são compostas, segundo Aristóteles (1997, p. 14 – 15), de famílias que se reúnem em povoados e destes que se associam formando as cidades. A família é constituída por seres incapazes de existir um sem o outro, ou seja, ligados fortemente por relações de dependência: o homem e a mulher que só se podem reproduzir um com o outro, o senhor e o escravo, que são ligados pela capacidade do primeiro em prever e do outro, através de seu corpo, de prover os meios de subsistência, e dos pais e dos filhos, no qual os primeiros os mantém e os segundos aos primeiros obedecem até se tornarem homens livres e completos. O povoado é a reunião de várias famílias que se dá para a satisfação de outros fins que não os de apenas garantir as necessidades diárias. A cidade é uma reunião de povoados a tal ponto em que passa a existir uma auto-suficiência praticamente completa, e é considerada por Aristóteles como o estágio final da associação humana, seu estado completo e perfeito, aquele em que sua natureza se revela por inteiro.

Essas cidades são uma criação natural para a qual tendem as comunidades humanas porque, segundo o autor, o homem é, por natureza, um animal social, tem os sentimentos de bem e de mal, de justo e de injusto, além de outras qualidades morais que só são passíveis de serem realizadas nas comunidades políticas; é, aliás, essa natureza que distingue o homem dos demais animais e que afirma sua identidade e perfeição. Assim, em relação à cidade, que é o todo completo, os indivíduos, as famílias e os povoados, bem como as relações entre eles, são apenas partes.

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Descendo ao estudo dessas partes que compõe a cidade, Aristóteles, realiza uma análise da família, tanto no sentido descritivo como no prescritivo. Os elementos que compõe a família são classificados em dois grupos: os homens livres e os escravos. Na primeira classificação se enquadram o chefe de família, a mulher e os filhos e na segunda, os escravos. A família tem como fim enriquecer e preservar a riqueza, além de gerar novos cidadãos que dêem continuidade àqueles que os geraram. Ao homem incumbe a primeira função no que se refere à riqueza e à mulher, a segunda. Logo, todos os instrumentos de produção e de ação que promovem a riqueza, sejam eles animados ou inanimados, devem estar submetidos aos homens. E o escravo, para Aristóteles, é um desses instrumentos, no caso, o instrumento de ação, que não é considerado como tendo por natureza a capacidade de pertencer a si mesmo e, portanto, pertencendo a outro, não pode ser livre. Isso porque Aristóteles pressupõe que há, por natureza, os seres nascidos para mandar e aqueles nascidos para obedecer. Tal como a alma deve dominar o corpo, e como todo ser humano é corpo e alma, também o escravo deve obedecer à inteligência e autoridade de seu senhor para o seu próprio bem, para a realização de sua própria natureza. A mulher é livre, haja vista que é nascida de homens livres, mas é, por natureza, segundo o filósofo, inferior ao homem no que se refere à capacidade de comando, e, por conta disso, também deve estar sujeita ao esposo. Além disso, suas qualidades morais são, por natureza, distintas das do homem. Logo, tal como assevera Aristóteles, “é enganoso dar uma definição geral de qualidade moral”, haja vista que homens e mulheres as têm, mas que elas assumem formas distintas para um e para outro. Os filhos, por serem ainda homens não completamente formados, também devem se sujeitar aos pais, homens mais completos.

Como a casa é a comunidade da manutenção, conveniente se torna para Aristóteles discutir a aquisição da riqueza que garante essa mantença. Segundo ele, várias são as formas como o homem pode prover a casa de riqueza: pela agricultura, por atividades pastoris, pela pesca, pelo comércio, pela caça etc. Adquiridos, os bens são usados, ou seja, são aproveitados da melhor forma possível e preservados, nos que se preservam, através da economia doméstica. Essa aquisição, no entanto, não pode ser infinita, tal como pressupõe os que advogam uma arte de enriquecer infinitamente, que não é natural, e que se realiza por meio das atividades de comércio e da cumulação de dinheiro. A arte natural de enriquecer é a da economia doméstica. Aristóteles chega a criticar as pessoas que se engajam em enriquecer infinitamente, pois são escravas do viver, que é o que a riqueza garante, e não do viver bem, que envolve uma superação dessa busca de satisfação das necessidades vitais. A riqueza é meio e não é fim, e torná-la fim é ir contra a natureza criando um supérfluo que escraviza o homem ao seu corpo. Para adquirir, assim, o homem deve conhecer aquilo que possui, o que é mais vantajoso e sob que condições pode extrair maior vantagem.

Várias famílias se agrupam formando um povoado e vários desses formam uma cidade quando todos reconhecem um algo em comum que os une, no caso, uma organização da vida para o alcance de fins mais elevados. Esse algo comum é o que Aristóteles denomina “constituição”. Ter algo em comum, no entanto, assevera Aristóteles contrastando Sócrates, não significa que tudo é absolutamente comum, que se é uma unidade, pois, pelo contrário, a cidade é marcada também pela pluralidade, é composta por seres humanos diferentes. Ela não é uma aliança marcada pela homogeneidade. A igualdade, na cidade, é qualificada, e não pura e simples. Desse modo, todos os cidadãos são capazes tanto de comandar quanto de serem comandados, devendo se alternar no governo. Além disso, é a diversidade que garante a autonomia das cidades. Um grau mínimo de comunidade apenas garante que essa união de distintos seja a melhor possível. O que mantém essa comunidade, segundo Aristóteles, porém, não é a propriedade comum de bens, pois acredita o autor que a propriedade privada promove o maior zelo e proteção, logo deve prevalecer esta em relação à propriedade comum. O que pode ser comum é o uso desses bens e que esse uso seja promovido de maneira sóbria e liberal. Assim, a regulamentação adequada da propriedade não é o único ou o mais importante ponto de uma constituição da comunidade.

O que há, então, em comum? Quais são os elementos da constituição? O primeiro deles é o cidadão. E para tanto, Aristóteles procura evidenciar a natureza do cidadão

advertindo que não é o convívio no mesmo território que o define. A natureza do cidadão, segundo Aristóteles, é a daquele ser humano que é capaz de administrar a justiça e exercer funções públicas, mesmo que de forma temporária e intercalar. Além disso, pela continuidade da natureza, a cidadania, na prática, deve ser reservada aos que forem filhos de cidadãos pelo lado paterno e materno. Também, segundo Aristóteles (p. 87), para ser cidadão é preciso não ser sujeito às atividades servis, mesmo que essas atividades sejam consideradas indispensáveis à cidade, o que faz com que escravos, que servem ao indivíduo, e os artífices, que servem à cidade, não devam ser contados como cidadãos. A qualidade ou excelência desse cidadão, assevera o autor, não decorre de ser ele, em si, bom, mas da garantia maior que ele dá à segurança da comunidade política, respeitando e seguindo a sua constituição. Excelência do cidadão consiste na capacidade de mandar e obedecer igualmente bem. Mesmo porque, se se deve assegurar que todos os homens sejam bons cidadãos, não se pode dizer o mesmo de exigir que todos sejam homens bons, apesar de que, quando governante, o cidadão também deva ter a sensatez de um homem bom. Além disso, segundo Aristóteles, só saberá bem comandar aquele que soube, anteriormente,

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obedecer a um bom governante, apesar do comando e da obediência exigirem virtudes distintas – o governante precisa possuir discernimento, além de outras qualidades que compartilha com os demais cidadãos, e os governados devem ter sinceridade de opinião, além de outras qualidades.

Esses cidadãos são sujeitos a uma mesma forma de governo que, no entanto, pode ser alterada, modificando a constituição e, em conseqüência, a própria cidade. Assim, não é a sucessão de cidadãos que altera a cidade, mas a alteração em sua constituição. Nesses termos, afirma Aristóteles que “a cidade é a mesma principalmente por causa de sua constituição, e ela pode ser designada ou não pelo mesmo nome, quer seus habitantes sejam os mesmos homens ou sejam diferentes”. A constituição seria “o ordenamento de uma cidade quanto às suas diversas funções de governo, principalmente a função mais importante de todas”.

“O governo, em toda parte, detém o poder soberano sobre a cidade, e a constituição é o governo” (p, 89). Há várias espécies diferentes de sistemas de governo e, assim, vários tipos de cidade. Mas todos, em sua forma natural, devem ser exercidos no interesse da cidade, dos cidadãos e não nos dos próprios governantes. O governo é o poder de comando em uma cidade e que pode estar nas mãos de uma única pessoa, de poucas pessoas ou da maioria. Mas ele, nas suas formas corretas, é sempre exercido com vistas ao bem comum. O governo de um único homem é denominado monarquia, o de poucas pessoas, mas daquelas que representam os melhores, é a aristocracia, e quando o comando está nas mãos da maioria, atribui-se a essa forma de governo o nome genérico de governo constitucional. Contrariamente a essas formas corretas, Aristóteles apresenta seus respectivos desvios, que são a tirania, na qual o comando é exercido no interesse do tirano, a oligarquia, na qual ele é exercido no interesse dos ricos, e a democracia, cujo interesse tutelado é apenas o dos pobres (em todas as formas desviadas não é a comunidade, com seus interesses como um todo, que é considerada). Para a seleção de quais as pessoas devem atuar nas funções públicas, principalmente na maior de todas que é a do governo, as constituições, segundo Aristóteles, devem dispor de tal forma que todos possam, de alguma maneira, gozar das prerrogativas do exercício de funções públicas, mesmo que algumas restrições se façam necessárias de modo que o exercício das mais altas funções deva ser fundado na necessidade de um estado superior de qualidades essenciais para a existência da cidade. A cidade está em primeiro lugar, logo ela deve ser governada aproveitando o mérito de cada um para com o todo. E é daí que decorrerá a equidade, a justiça na distribuição de funções e honrarias públicas.

Pode acontecer que um único cidadão seja dotado desses méritos superiores, sendo os dos outros cidadãos aos dele incomparáveis. Também pode ocorrer que poucos detenham esses méritos. A justiça deve considerar essa desigualdade. No primeiro caso tem-se a monarquia, no segundo, a aristocracia.

Quanto à monarquia, Aristóteles esclarece que há várias espécies de governo monárquico e que o modo de governar em cada uma delas não é idêntico. Há monarquias vitalícias, outras eletivas, temporárias ou hereditárias, mas todas envolvem a obediência à lei, um comando militar heróico ou o consentimento dos súditos. Um dos problemas da monarquia, no entanto, é saber se é conveniente ou não manter um comando vitalício e hereditário (ser governado pelos melhores homens ou pelas melhores leis) e se é ou não melhor que o soberano o seja por todas as matérias. Aristóteles parece se posicionar no sentido do governo das leis e da sua supremacia, pois a lei é imparcial e não está sujeita às paixões ou às particularidades (o justo é o imparcial). A monarquia, no entanto, deixa de se justificar quando mais homens de grande mérito surgem e, assim, não seria justo que se sujeitassem a alguém com o mérito igual ao seus. Cada qual deve receber honrarias de acordo com sua igualdade e desigualdade, e todos os iguais devem exercer alternadamente o poder, pois essa é uma lei. A existência dos homens no governo é necessária sempre para criar a lei e para completá-la.

A melhor forma de governo, no entanto, para Aristóteles, é aquela que é exercida pelos melhores homens, ou seja, a aristocrática, seja ele um único, uma família ou um grupo mais ou menos extenso de pessoas superiores em qualidade a todos os demais cidadãos juntos. A constituição ideal, no entanto, nem sempre é possível de ser realizada, de modo que o legislador e estadista deverão levar em conta, não apenas o tipo ideal de constituição para o seu povo, mas aquele que é o melhor em face das circunstâncias da constituição vigente, das dificuldades de superá-la e modificá-la e da correção necessária dos possíveis desvios que a nova ordem criada poderá vir a ter. O governo e suas diferentes formas são necessários, pois as cidades são compostas de diferentes partes: há os ricos, os pobres e os que estão no meio; há os agricultores, os artífices, os comerciantes, pessoas com a função de administrar e realizar a justiça, os soldados, os trabalhadores braçais e todos precisam se compor para o melhor modo de convívio para todos.

O governo constitucional, segundo Aristóteles, “é uma mescla de democracia e oligarquia” (p. 137), estando baseada na existência de boas leis vigentes e de uma disposição incondicional de todos em obedecê-las. É uma forma de governo intermediária e de harmonização, e pode ser considerada a base para as demais formas acima discutidas, pois inclui um governo constitucional (estabelecido pela constituição) e pode engendrar instituições participativas de governo. Sustenta-se sobre a classe média e a pressupõe a mais numerosa que as demais juntas. Como, para Aristóteles, a forma aristocrática é difícil de ser constituída, a forma constitucional, a

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do meio termo, parece, em considerações práticas, a mais passível de concretização. A melhor forma de constituição é, assim, a que se sustenta e é realizada pelo meio termo, pela classe média. E esse meio termo deve ser estabelecido não apenas em função da quantidade como também da qualidade (pois, às vezes, a maior qualidade supera a maior quantidade ou vice versa). Se a superioridade numérica dos pobres for maior que a superioridade qualitativa dos ricos, o governo deverá ser democrático; se for o contrário, o governo deverá ser oligárquico. Se a quantidade e a qualidade da classe média superam a das outras duas, o governo deverá ser constitucional.

A forma democrática tenta nivelar essas diferenças. Ela afirma que nenhuma dessas partes é soberana às demais. Além disso, podem ocorrer casos de democracia em que se evidencia o governo das massas, e não da lei. Mas, como as massas são geralmente pobres, ela acaba sendo a forma de governo em que apenas se ventilam os interesses dos pobres.

Na oligarquia, a qualificação para o exercício do poder se dá em termos de posses, tantas que tornem impossível a participação dos pobres nas funções públicas. Para participar das funções públicas é preciso estar disponível ao lazer, e os pobres, por lutarem constantemente pela sobrevivência, estão afastados desse lazer. Por isso que na democracia o exercício das funções públicas é remunerado, de modo que ele possa ocorrer com os pobres. O último estágio das oligarquias se dá quando, por assumirem tamanho poder e por privarem, cada vez mais, um número maior de pessoas do governo, esses ricos passam a desconsiderar as leis e a reger as cidades por suas próprias vontades – tal qual as massas o faziam no extremo da democracia.

Além das formas de governo, as constituições devem dispor sobre a boa ordenação das partes que a compõe. Uma delas é a que trata sobre a deliberação dos assuntos públicos, outra, a da instituição, autoridade e investidura nos cargos de funções públicas e a terceira se refere ao modo como deve ser o poder judiciário. E, também, para essas partes, várias são as formas de substantivá-las (participação total ou de membros especializados nas deliberações; divisão ou concentração das matérias a serem decididas, etc.). Essas partes, ainda, quando são substancializadas e determinadas em seu funcionamento, submetem-se à forma de governo adotada. Além disso, como são instituídas as funções judiciárias, quem as ocupará e como serão locadas, tudo isto deve ser estabelecido nas constituições e estar conforme às formas de governo.

Várias são as funções que uma cidade necessita, entre elas, Aristóteles destaca a superintendência do mercado, das propriedades privadas e públicas, a que guarda e faz a gestão das rendas públicas, a que registra contratos, a de proferimento e a de execução de sentenças, a guarda dos presos e a cobrança de multas, funções militares, auditorias, de examinadores e de controladores das demais funções, de superintendentes da guarda do culto aos deuses, de guardiães das crianças e das leis etc.

De qualquer forma, nos modos corretos de governo, as leis, frutos de vários cidadãos, devem ser soberanas, restando aos governantes atuarem e decidirem onde as leis não sejam precisas ou estejam lacunosas. Tais leis também devem estar conformes às constituições, ou seja, às formas de governo.

As constituições vigentes, no entanto, podem sofrer revoluções e devem instituir mecanismos que as preservem disto. Elas contêm um critério de justiça que pode ser transformado se algumas classes importantes de cidadãos comecem a se inconformar a ele. Essas classes acabam transformando as constituições por movimentos faccistas. Além disso, as revoluções podem ocorrer por temor, insolência, desdém, crescimento desproporcional de uma classe, manobras políticas, negligências e mesquinharias. E tais revoluções são operadas por meio da força ou da fraude. Em termos gerais e corretos, no entanto, as revoluções se dão quando a desigualdade e a igualdade não estão devidamente tratadas na constituição, e isso gera desconfortos e desobediência civil aos comandos dos governos. Assim, além de movimentos de dentro para fora, também movimentos de fora para dentro podem causar revoluções que modifiquem as constituições.

Para se preservarem, os governos, cada qual da sua maneira, devem se resguardar contra as causas e origens de tais revoluções, ou seja, devem promover que seus destruidores sejam imunizados, que os descontentamentos sejam contidos, que as mudanças nas condições sejam controladas, que os funcionários sejam bem escolhidos, que as conspirações sejam evitadas ou expurgadas, entre outras medidas que assegurem que os cidadãos desejosos na manutenção da constituição sejam sempre superiores em quantidade e qualidade aos que desejam sua revolução. Na oliguarquia devem ser tomados cuidados referentes aos conflitos dos oligarcas entre si, referentes às concentrações de honrarias e ao tratamento excessivamente displicente aos pobres. Nas aristocracias, cuidados se concentram para que pessoas excelentes não fiquem privadas das honrarias públicas. Mas, tanto a aristocracia como governos constitucionais geralmente caem quando se desviam da constituição e da justiça. Na tirania, o temor e a seriedade do tirano, além de outras medidas que enfraquecem, segregam os súditos ou os tornam excessivamente humildes, cortam os mais importantes e destacados e impedem reuniões e associações, além da força das armas, são medidas que a manterão. Na monarquia, na forma hereditária, assegurar que os herdeiros não sejam governantes desprezíveis e, nas demais, que a divisão do poder e a limitação do tempo de governo a tornem mais sólidas e duradouras. Na democracia, a manutenção dos princípios

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da liberdade, de que o homem deve viver como quer e da igualdade numérica, e suas expressões sobre os meios de funcionamento desse governo, devem ser resguardados bem como que a população não se torne excessivamente pobre. Além disso, a forma democrática mais sólida é aquela em que todos estejam tão completamente ocupados que não possam participar do governo (formas agrícolas e pastoris).

Além dessa discussão acerca das formas de governo e das funções pertinentes à cidade, Aristóteles também discorre acerca da predominância que a cidade deve dar à gestão dos bens da alma (virtudes) e sua prevalência em face dos bens exteriores (ou do corpo), sem, no entanto, que esses sejam negligenciados a ponto de não ser garantida uma boa sobrevivência aos cidadãos. O território da cidade também imprime na constituição dela certos limites, bem como o número de cidadãos também deve ser analisado a fim de que se garanta que a ordem seja mantida pelo cumprimento da lei que a impõe. Quanto à extensão, o melhor tamanho de cidade é aquele que pode ser conhecido pelo estadista como um todo. O território também deve oferecer boas condições de defesa contra os inimigos e de fuga quando de ataques; deve ser facilitador da comunicação e de transporte de riquezas e produtos; salubre e produtivo. Além disso, deve a cidade ser dotada de todos os serviços de que necessita e prover a educação de seus cidadãos para respeitar a constituição, para serem governantes e governados ou, ainda, para assumirem as outras funções que a cidade envolve, educando-se, para tanto, no uso da razão e no controle dos impulsos.

Enfim, discutir a política é discutir a constituição das cidades em todos esses aspectos que a envolve, assimilando as diversas delas que são possíveis, as que são ideais e as que são reais a cada povo na busca da felicidade do bem viver. Considerações pessoais

A “política” de Aristóteles nos parece um mapa ou estrutura das cidades onde são destacados aspectos como a distinção entre os cidadãos e os não-cidadãos, as formas de governo adequadas a cada condição que a cidade esteja envolvida, as funções públicas necessárias e os modos de provê-las, aspectos importantes acerca do território, as leis e os modos de sua criação. Esse mapa apresenta algumas virtudes e alguns vieses: como virtudes, a política de Aristóteles apresenta a de afirmar a política como espaço de igual dignidade entre os homens (cidadãos), mesmo que esses se destaquem em suas diferenças substanciais. Além disso, afirma que essas diferenças são a justificativa da política e das leis, e que são imprescindíveis para a melhor concretização do fim da cidade, que é a mais elevada felicidade humana e a autonomia.

Afirmar a condição que envolve a política, desprendendo-a de virtudes essenciais ou de uma natureza humana está sendo recuperada em alguns autores de destaque na atualidade. Entre eles podemos citar Hannah Arendt. Além de antepor-se ao modelo platônico, no qual a política era a prerrogativa de alguns, chamados filósofos, por natureza capazes de entender a natureza das coisas, o modelo político de Aristóteles também destoa da atual forma de apresentar a política como uma apreciação teleológica ou materialista de construção da ordem social. A cidade, para Aristóteles, assim, mesmo contendo em si várias formas de comunidade, enlaça-se pela comunidade política e, é graças a esse enlace, que a felicidade verdadeiramente humana (e não, apenas, a satisfação de necessidades animais de sobrevivência física) se concretiza. Um dos vieses da abordagem de Aristóteles para os dias de hoje é o de ainda afirmar algumas diferenças essenciais entre os homens: escravos (que não eram por ele considerados homens), mulheres e crianças são tidos como seres menos completos ou incapazes dessa regência política dos destinos da cidade, decorrentes de sua visão de natureza das coisas, hoje questionada.

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