FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs....

57
FICHA TÉCNICA Título original: If This Is a Woman Inside Ravensbrück: Hitler’s Concentration Camp for Women Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah Helm Edição publicada originalmente em 2015, em língua inglesa, no Reino Unido, por Little, Brown, uma chancela de Little, Brown Book Group Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015 Tradução: Ana Saldanha Imagem da capa: Shutterstock Arranjo gráfico: Catarina Sequeira Gaeiras/Editorial Presença Composição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda. 1. a edição, Lisboa, setembro, 2015 Depósito legal n. o 397 101/15 Reservados todos os direitos para a língua portuguesa (exceto Brasil) à EDITORIAL PRESENÇA Estrada das Palmeiras, 59 Queluz de Baixo 2730‑132 BARCARENA E‑mail: [email protected] www.presenca.pt

Transcript of FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs....

Page 1: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

FICHA TÉCNICA

Título original: If This Is a WomanInside Ravensbrück: Hitler’s Concentration Camp for WomenAutora: Sarah HelmCopyright © 2015 by Sarah HelmEdição publicada originalmente em 2015, em língua inglesa, no Reino Unido, por Little, Brown, uma chancela de Little, Brown Book GroupTradução © Editorial Presença, Lisboa, 2015Tradução: Ana SaldanhaImagem da capa: ShutterstockArranjo gráfico: Catarina Sequeira Gaeiras/Editorial PresençaComposição, impressão e acabamento: Multitipo — Artes Gráficas, Lda.1.a edição, Lisboa, setembro, 2015Depósito legal n.o 397 101/15

Reservados todos os direitospara a língua portuguesa (exceto Brasil) àEDITORIAL PRESENÇAEstrada das Palmeiras, 59Queluz de Baixo2730 ‑132 BARCARENAE ‑mail: [email protected]

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 6 8/31/15 4:54 PM

Page 2: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

11

ÍNDICE

PRÓLOGO .................................................................................................. 13

PRIMEIRA PARTE

1. Langefeld .............................................................................................. 23 2. Sandgrube ............................................................................................... 45 3. Blockovas ................................................................................................ 68 4. A Visita de Himmler ............................................................................ 85 5. A Dádiva de Estaline ............................................................................ 94 6. Else Krug .............................................................................................. 109 7. Doutor Sonntag .................................................................................... 121 8. Doutor Mennecke ................................................................................. 136 9. Bernburg ............................................................................................... 157

SEGUNDA PARTE

10. Lublin ................................................................................................... 179 11. Auschwitz ............................................................................................. 199 12. Costura ................................................................................................. 212 13. Coelhas ................................................................................................. 229 14. Experiências Especiais ........................................................................... 240 15. Cura ...................................................................................................... 254

TERCEIRA PARTE

16. Exército Vermelho ................................................................................ 279 17. Yevgenia Klemm .................................................................................. 288 18. Doutor Treite ........................................................................................ 303 19. Quebrar o Círculo ................................................................................. 325 20. Transporte Negro .................................................................................. 343

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 11 8/28/15 6:04 PM

Page 3: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

12

QUARTA PARTE

21. Vingt ‑Sept Mille ...................................................................................... 365 22. Queda ................................................................................................... 376 23. Aguentar ............................................................................................... 388 24. Contacto ............................................................................................... 400

QUINTA PARTE

25. Paris e Varsóvia ..................................................................................... 417 26. Kinderzimmer .......................................................................................... 427 27. Protesto................................................................................................. 436 28. Abordagens Secretas .............................................................................. 448 29. Doutora Loulou ..................................................................................... 456

SEXTA PARTE

30. Húngaros .............................................................................................. 475 31. Uma Festa Infantil ................................................................................ 484 32. A Marcha da Morte ............................................................................... 498 33. Campo da Juventude ............................................................................. 505 34. Esconder ‑se ........................................................................................... 526 35. Königsberg ........................................................................................... 538 36. Bernadotte ............................................................................................ 550 37. Emilie ................................................................................................... 560 38. Nelly..................................................................................................... 578 39. Masur .................................................................................................... 592 40. Autocarros Brancos ............................................................................... 610 41. Libertação ............................................................................................. 628

EPÍLOGO .................................................................................................... 650

NOTAS ........................................................................................................ 677

BIBLIOGRAFIA .......................................................................................... 714

AGRADECIMENTOS ................................................................................. 730

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 12 8/28/15 6:04 PM

Page 4: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

13

PRÓLOGO

Do aeroporto de Tegel, em Berlim, demora ‑se pouco mais de uma hora a chegar a Ravensbrück de automóvel. Da primeira vez que fiz essa viagem, em fevereiro de 2006, demorei mais tempo, porque caía muita neve e um camião tinha ‑se atravessado na via de cintura de Berlim.

Heinrich Himmler ia muitas vezes de automóvel a Ravensbrück, mesmo quando fazia um tempo atroz como este. O chefe da SS tinha amigos na zona e aproveitava para fazer uma visita de inspeção ao campo de concentração. Raramente partia sem deixar novas ordens. Uma vez, ordenou que fossem incluídos mais tubérculos na sopa das prisioneiras. Noutra ocasião, disse que o extermínio não estava a avançar com suficiente rapidez.

Ravensbrück foi o único campo de concentração construído especificamente para mulheres. O campo tomou o nome da pequena vila adjacente à cidade de Fürstenberg e situa ‑se a cerca de oitenta quilómetros a norte de Berlim, junto à estrada para Rostock, na costa báltica da Alemanha. As mulheres que che‑gavam à noite julgavam por vezes estar perto da costa, porque sentiam o sal no vento; por vezes, sentiam também areia debaixo dos pés. Quando amanhecia, viam que o campo tinha sido construído na margem de um lago e que estava rodeado por uma floresta. Himmler gostava que os seus campos de concen‑tração se localizassem em zonas de beleza natural e que, de preferência, não estives sem ao alcance da vista. Atualmente, o campo de concentração conti‑nua a não estar ao alcance da vista; os crimes horrendos ali perpetrados e a cora‑gem das suas vítimas permanecem ainda, em grande medida, desconhecidos.

Ravensbrück entrou em funcionamento em maio de 1939, pouco menos de quatro meses antes da eclosão da guerra, e os Russos liberta ram ‑no seis anos mais tarde — foi um dos últimos campos de concentração a que os Aliados chegaram. No primeiro ano, contava com menos de 2000 prisio‑neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas de Jeová, que chamavam Anticristo a Hitler. Outras foram detidas simplesmente porque os nazis as consideravam seres inferiores e queriam removê ‑las da sociedade: prosti‑tutas, criminosas, mulheres sem ‑abrigo e ciganas. Mais tarde, o campo de

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 13 8/28/15 6:04 PM

Page 5: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

14

concentração viria a receber milhares de mulheres capturadas em países ocu‑pados pelos nazis, muitas delas pertencentes à resistência. Para lá, também eram levadas crianças. Uma pequena percentagem das prisioneiras — cerca de dez por cento — era judia, mas o campo não foi formalmente designado como um campo de concentração para judias.

No seu auge, o campo de Ravensbrück contava com uma população de cerca de 45 000 mulheres; ao longo dos seis anos da sua existência, cerca de 130 000 passaram pelos seus portões, para serem espancadas, obrigadas a passar fome e a trabalhar até à morte, envenenadas, executadas e assassinadas com gás. Segundo as estimativas, o número total de mortes oscila entre 30 000 e 90 000; provavelmente, o número efetivo de mortes situa ‑se entre esses dois, mas a quantidade de documentos da SS sobre o campo de concentração que che‑garam até aos nossos dias é tão reduzida que nunca será possível saber ao certo. A destruição maciça de provas em Ravensbrück é mais uma das razões por que a história do campo de concentração se manteve na obscuridade. Nos últimos dias, todos os dossiês de todas as prisioneiras foram queimados no crematório ou em fogueiras, juntamente com os corpos. As cinzas foram lançadas ao lago.

Fiquei a par da existência de Ravensbrück quando estava a escrever um livro sobre Vera Atkins, uma oficial da organização Special Operations Executive (SOE) [Executivo de Operações Especiais] dos serviços secretos britânicos durante a guerra. Imediatamente após o fim da guerra, Vera Atkins decidiu fazer uma pesquisa sobre mulheres do SOE que tinham sido lançadas de para quedas na França ocupada para ajudar a resistência, muitas das quais tinham já desaparecido. Vera seguiu ‑lhes a pista e descobriu que várias tinham sido detidas e levadas para campos de concentração.

Numa tentativa de reconstituir a pesquisa de Vera Atkins, comecei pelos seus documentos pessoais, que se encontravam arquivados em caixas de cartão na posse da sua cunhada, Phoebe Atkins, na sua casa na Cornualha. A palavra «Ravensbrück» estava escrita numa das caixas. Lá dentro, havia apontamentos manuscritos de entrevistas com sobreviventes e com elementos suspeitos da SS — algumas das provas recolhidas inicialmente sobre o campo de concen‑tração. Folheei os papéis. «Tivemos de nos despir e raparam ‑nos o cabelo», disse uma mulher a Vera. Havia «uma coluna de fumo azul sufocante».

Uma das sobreviventes falava de um hospital do campo de concen tração onde «os germes da sífilis eram injetados na medula espinal». Uma outra des‑crevia a chegada de mulheres ao campo de concentração depois de uma «mar‑cha da morte» pela neve, vindas de Auschwitz. Um dos agentes do SOE, detido em Dachau, escrevera uma mensagem a dizer que tinha ouvido falar de mulhe‑res de Ravensbrück que eram forçadas a trabalhar num bordel em Dachau.

Várias das entrevistadas mencionavam uma jovem guarda chamada Binz, que tinha cabelo «claro, com um corte à pajem». Outra guarda tinha em tempos sido ama em Wimbledon. Entre as prisioneiras encontrava ‑se «a nata das mulheres da Europa», segundo um investigador britânico; incluía ‑se nesse grupo uma sobri‑nha do general De Gaulle, uma antiga campeã de golfe e várias condessas polacas.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 14 8/28/15 6:04 PM

Page 6: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

15

Comecei a procurar datas de nascimento e moradas para o caso de algumas das sobreviventes — ou até mesmo algumas das guardas — ainda estarem vivas. Alguém tinha dado a Vera a morada de uma tal Sra. Chatenay, «que sabe pormenores sobre a esterilização de crianças no Bloco 11». Uma médica chamada Louise Le Porz prestara uma declaração muito pormenorizada em que afirmava que o campo de concentração tinha sido construído numa pro‑priedade que pertencia a Himmler e que o seu Schloss privado, o seu castelo, ficava nas imediações. O endereço dela era Mérignac, Gironde, mas, pela data do seu nascimento, era provável que já não estivesse viva. Uma mulher de Guernsey, chamada Julia Barry, vivia em Nettlebed, no condado de Oxford. Outras moradas eram extremamente vagas. Pensava ‑se que uma sobrevivente russa trabalhava «na unidade materno ‑infantil, na estação de caminhos de ferro de Leninegrado».

Na parte de trás da caixa, encontrei listas manuscritas de prisionei ras, trazi‑das clandestinamente para o exterior por uma polaca que tinha tirado aponta‑mentos no campo de concentração e fizera esboços e mapas. «As polacas tinham a melhor informação», aparecia no apontamento. A mulher que escrevera a lista tinha morrido havia já muito tempo, mas algumas das moradas eram de Londres e algumas das prisioneiras ainda se encontravam vivas.

Levei comigo os esboços na primeira visita a Ravensbrück, na esperança de que me ajudassem a orientar ‑me quando lá chegasse. No entanto, com a neve a cair com mais intensidade, perguntava ‑me se conseguiria chegar até ao campo de concentração.

Muitas pessoas tentaram e não conseguiram chegar a Ravensbrück. Alguns elementos da Cruz Vermelha que tentaram ir ao campo de concen‑tração no caos dos últimos dias da guerra tiveram de voltar para trás, tal era o fluxo de refugiados que avançava no sentido contrário. Alguns meses depois do fim guerra, quando Vera Atkins se dirigiu a Ravensbrück para iniciar a sua investigação, mandaram ‑na parar num posto de inspeção russo; o campo de concentração encontrava ‑se dentro da zona de ocupa ção russa, pelo que pessoas dos países aliados dificilmente eram autorizadas a visitá ‑lo. Nesta fase, a iniciativa de Vera para encontrar as mulheres desaparecidas já se encontrava integrada numa investigação britânica mais alargada do campo de concentração, resultando nos primeiros julgamentos por crimes de guerra em Ravensbrück, que se iniciaram em Hamburgo em 1946.

Nos anos 1950, com o início da Guerra Fria, Ravensbrück ficou por trás da Cortina de Ferro, que dividiu as sobreviventes — do Leste e do Ocidente — e separou a história do campo de concentração em duas partes.

Fora da vista do Ocidente, o local tornou ‑se um santuário das heroínas comunistas do campo de concentração, sendo os seus nomes dados a ruas e a escolas por toda a Alemanha de Leste.

Entretanto, no Ocidente, Ravensbrück literalmente desapareceu de vista. As sobreviventes do Ocidente, os historiadores e os jornalistas nem sequer podiam aproximar ‑se do local. Nos seus países de origem, as ex ‑prisionei‑ras deparavam com dificuldades para verem as suas histó rias publicadas.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 15 8/28/15 6:04 PM

Page 7: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

16

O acesso às provas era difícil. As transcrições dos julgamentos de Hamburgo tinham sido classificadas como «secretas» e encerradas trinta anos antes.

«Onde ficava?», era uma das questões mais comuns que me colocavam quando comecei a escrever sobre Ravensbrück, juntamente com: «Porque é que havia um campo de concentração separado para mulheres? As mulheres eram judias? Era um campo de morte? Era um campo de trabalhos forçados? Ainda há alguma mulher que esteja viva?»

Nos países que perderam um grande número de pessoas no campo de con‑centração, os grupos de sobreviventes tentaram manter viva a memória dos acon‑tecimentos. Cerca de 8000 francesas, 1000 holandesas, 18 000 rus sas e 40 000 polacas foram feitas prisioneiras. No entanto, por diferentes razões em cada país, a sua história foi ocultada.

No Reino Unido, que não teve mais do que vinte mulheres nesse campo de concentração, a ignorância é assombrosa, o mesmo podendo dizer ‑se em relação aos Estados Unidos. Os Britânicos estão a par da existência de Dachau, o primeiro campo de concentração, e talvez de Belsen, por terem sido as tropas britânicas a libertá ‑lo e porque os horrores que lá encontraram, captados em filme, se gravaram indelevelmente na consciência coletiva. Para além desses dois campos de concentração, só Auschwitz, sinónimo do extermínio de judeus nas câmaras de gás, tem verdadeira ressonância.

Depois de ler os arquivos de Vera, tentei encontrar o que tinha sido escrito sobre o campo de concentração para mulheres. Os principais histo‑riadores — quase todos homens — não tinham praticamente nada a dizer. Até mesmo os livros sobre os campos de concentração escritos desde o final da Guerra Fria pareciam descrever um mundo inteiramente masculino. Mas foi então que uma pessoa amiga, que trabalhava em Berlim, me emprestou um volume de ensaios, na sua maior parte da autoria de investigadoras ale‑mãs. Na década de 1990, as historiadoras feministas tinham encetado um contra ‑ataque. Este livro prometia «libertar as mulheres do anonimato que se encontra por trás da palavra prisioneira». Seguiu ‑se uma série de outros estudos, com outros autores — usualmente alemães — a retalharem partes de Ravensbrück e a examinarem ‑nas «cientificamente», o que parecia abafar a história. Reparei numa menção a um «Livro de Memórias», que me soou muito mais interessante, e tentei contactar a sua autora.

Tinha ‑me chegado igualmente às mãos um punhado de memórias de prisio‑neiras, na maior parte dos casos remontando aos anos 1950 e 1960, encontrados em prateleiras recônditas de bibliotecas públicas, muitas vezes com capas sen‑sacionalistas. Na capa de um livro de memórias de uma professora de literatura francesa, Micheline Maurel, podia ver ‑se a imagem de uma mulher voluptuosa, qual namorada de James Bond, por trás do arame farpado. Um livro sobre Irma Grese, uma das primeiras guardas de Ravensbrück, intitulava ‑se A Bela Fera. A linguagem destes livros de memórias parecia datada e, a princípio, irreal. Uma escritora falava de «lésbicas com rostos abrutalhados» e outra da «bestia‑lidade» das prisioneiras alemãs, «que dava muito que pensar quanto à virtude

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 16 8/28/15 6:04 PM

Page 8: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

17

fundamental da raça». Estes textos eram desorientadores; era como se ninguém soubesse bem como contar a história. Num prefácio a um livro de memórias, o escritor francês François Mauriac escreveu que Ravensbrück era «uma abomi‑nação que o mundo resolveu esquecer». Talvez eu devesse escrever sobre outra coisa. Fui encontrar ‑me com Yvonne Baseden, a única sobrevivente do campo que eu sabia estar viva, para lhe pedir a sua opinião.

Yvonne era um das mulheres do SOE de Vera Atkins, detida enquanto colaborava com a Resistência em França e em seguida enviada para Ravens‑brück. Ela sempre se mostrara disponível para falar sobre o seu trabalho na Resistência, mas quando eu abordava o assunto de Ravensbrück, dizia que «não sabia nada» e desviava a conversa.

Desta vez, eu contei ‑lhe que estava a planear escrever um livro sobre o campo de concentração, na esperança de que dissesse mais alguma coisa, mas ela olhou para cima, horrorizada.

«Oh, não!», disse. «Não pode fazer isso.»Perguntei ‑lhe porque não. «É demasiado horrível. Não poderia escrever

sobre outra coisa? O que vai dizer aos seus filhos sobre o que está a fazer?», perguntou.

Ela não achava que se devia contar aquela história? «Oh, sim. Ninguém sabe nada sobre Ravensbrück. Ninguém quis saber, desde o momento em que voltámos.» Olhou pela janela lá para fora.

Quando me vinha embora, deu ‑me um pequeno livro. Era mais um livro de memórias, com uma sobrecapa particularmente monstruosa, figuras con‑torcidas a preto e branco. Não o tinha lido, disse Yvonne, pon do ‑mo nas mãos. Era como se o quisesse longe da vista.

Quando cheguei a casa, a sobrecapa sinistra soltou ‑se e revelou uma capa azul simples. Li o livro de uma assentada. A autora era uma jovem advogada francesa chamada Denise Dufournier, que tinha escrito um relato simples e comovente de resistência heroica. A «abominação» não era a única parte da história de Ravensbrück que estava a ser esquecida; também a luta pela sobrevivência o estava a ser.

Alguns dias depois, ouvi uma voz francesa no meu atendedor automático de chamadas. Era a Dra. Louise Le Porz (agora Liard), a médica de Mérignac que eu pensava já ter falecido. Convidou ‑me para ir a sua casa em Bordéus, onde vivia agora. Eu poderia ficar o tempo que quisesse, já que havia muito sobre que conversar. «Mas é melhor que se apresse. Eu tenho noventa e três anos.»

Pouco depois, estabeleci contacto com Bärbel Schindler ‑Saefkow, a autora do «Livro de Memórias». Bärbel, que era filha de uma prisioneira comunista alemã, estava a compilar uma base de dados das prisioneiras; tinha viajado por toda a parte a recolher listas de nomes existentes em arquivos escondi‑dos. Enviou ‑me a morada de Valentina Makarova, membro da resistência da Bielorússia que sobrevivera à marcha da morte de Auschwitz. Valentina respondeu ‑me sugerindo que a visitasse em Minsk.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 17 8/28/15 6:04 PM

Page 9: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

18

Quando cheguei aos subúrbios mais afastados de Berlim, a neve começava a abrandar. Passei por uma placa sinalizadora a indicar Sachsen hausen, o local do campo de concentração dos homens, o que significava que seguia na dire‑ção certa. Sachsenhausen e Ravensbrück mantinham contactos estreitos. No campo de concentração dos homens fazia ‑se o pão para o campo das mulhe‑res; o pão era transportado por esta estrada todos os dias. Ao princípio, cada mulher recebia meio pão à noite. Perto do final da guerra, quase nem uma fatia recebiam, e as «bocas inúteis» — como os nazis chamavam às pessoas de quem se queriam livrar — não recebiam nada.

Os oficiais da SS, os guardas e os prisioneiros eram frequentemente transfe‑ridos entre os dois campos de concentração, numa tentativa da administração de Himmler de rentabilizar ao máximo os recursos existentes. Na fase inicial da guerra, abriu uma secção para mulheres em Auschwitz — e mais tarde noutros campos de homens — para a qual Ravensbrück fornecia e treinava as guardas. Numa fase mais avançada da guerra, vários elementos do pessoal da SS em Auschwitz foram transfe ridos para Ravensbrück. As prisioneiras eram tam‑bém transferidas entre os dois campos. Por consequência, embora Ravensbrück possuísse um cariz distintamente feminino, tinha igualmente uma cultura em comum com os campos de concentração para homens.

O império da SS de Himmler era vasto: a meio da guerra, havia cerca de 15 000 campos de concentração nazis, entre os quais se contavam campos tem‑porários de trabalho e milhares de subcampos, ligados aos principais campos de concentração, espalhados por toda a Alemanha e pela Polónia. Os maiores e os mais monstruosos eram os que tinham sido construídos em 1942, segundo os termos da Solução Final. Até ao fim da guerra, foram exterminados cerca de seis milhões de judeus. Os factos do genocídio dos judeus são atualmente tão bem conhecidos e tão avassaladores que muitas pessoas supõem que o pro‑grama de extermínio de Hitler consistiu apenas no Holocausto Judeu.

As pessoas que perguntam sobre Ravensbrück ficam muitas vezes sur‑preendidas por a maioria das mulheres ali mortas não ser judia.

Atualmente, os historiadores diferenciam os campos, mas os rótulos podem ser enganadores. Ravensbrück é frequentemente considerado um campo de «trabalho escravo», um termo que atenua o horror do que aconteceu e que pode também ter contribuído para a sua marginalização. Foi sem dúvida um local importante de trabalho escravo — a Siemens, a grande empresa elétrica, tinha aí uma fábrica —, mas tratava ‑se de um estádio na via para a morte. As prisioneiras da época chamavam a Ravensbrück um campo de morte. A sobrevivente francesa e etnóloga Germaine Tillion chamou ‑lhe um local de «extermínio lento».

Saindo de Berlim, a estrada para norte atravessa campos brancos antes de mergulhar entre árvores. De tempos em tempos, eu passava por cooperativas agrícolas abandonadas, resquícios da era comunista.

Nas profundezas da floresta, a neve tinha ‑se espalhado e tornava ‑se difí‑cil encontrar o caminho. As mulheres de Ravensbrück eram muitas vezes levadas para o bosque, para cortar árvores, debaixo de neve. Esta agarrava ‑se

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 18 8/28/15 6:04 PM

Page 10: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

19

aos seus socos de madeira, de modo que caminhavam sobre plataformas de neve, torcendo os tornozelos. Os cães, lobos ‑da ‑alsácia, seguros pela trela por guardas, saltavam ‑lhes em cima se elas caíssem.

Os nomes das vilas da floresta começavam a parecer ‑me familiares, devido aos testemunhos que tinha lido. Altglobsow era a vila de onde provinha a guarda com o cabelo cortado à pajem — Dorothea Binz. A seguir, avistei o pináculo da igreja de Fürstenberg. Do centro da cidade, o campo de concentração era totalmente invisível, mas eu sabia que se encontrava do outro lado do lago. As prisioneiras falavam sobre ver o pináculo da igreja quando saíam pelos portões do campo de concentração. Passei pela estação de Fürstenberg, onde tinham ter‑minado tantas terríveis viagens de comboio. As mulheres do Exército Vermelho chegaram da Crimeia numa noite de fevereiro, apinhadas em vagões de gado.

Do outro lado de Fürstenberg, uma estrada pavimentada de floresta — construída pelas prisioneiras — conduzia ao campo de concentração. Do lado esquerdo apareceram umas casas com telhados inclinados; pelo mapa de Vera, sabia que eram as casas onde tinham vivido as guardas. Uma delas tinha sido convertida num albergue da juventude, onde eu iria passar a noite. A decoração original das guardas tinha há muito sido retirada e substituída por mobiliário moderno e impecável, mas as suas ocupantes anteriores ainda assombravam os velhos aposentos.

O lago espraiava ‑se à minha direita, vasto e de uma brancura gelada. Mais acima, viam ‑se as instalações do comandante e um muro alto. Alguns minutos depois, encontrava ‑me à entrada do complexo. À minha frente, estendia ‑se mais um vasto espaço branco salpicado por árvores — tílias, fiquei a saber mais tarde, plantadas aquando da construção do campo de concentração. Todos os barracões que em tempos se encontravam à sombra das árvores tinham desaparecido. Durante a Guerra Fria, os Russos usaram o campo como base de um regimento de tanques e demoliram muitos dos edifícios. Os soldados russos jogavam futebol onde em tempos tinha sido a Appellplatz do campo de concentração, a praça onde as prisioneiras se perfilavam para a chamada. Eu ouvira falar da base russa, mas não contava com tanta destruição.

O campo da Siemens, a algumas centenas de metros do muro, na parte sul, estava cheio de ervas daninhas e era difícil chegar até ele, assim como até ao anexo, o chamado Campo da Juventude, onde tantas das mortes foram perpetradas. Eu teria de os imaginar, mas não precisava de imaginar o frio. As prisioneiras ficavam aqui, na praça do campo de concentração, horas e horas a fio, vestidas só com roupas de algodão. Procurei abrigo no «bunker», o edifício de pedra da prisão, com as suas celas convertidas durante o período da Guerra Fria em memoriais às vítimas comunistas. Havia listas de nomes inscritos em granito preto polido.

Numa das salas, alguns trabalhadores retiravam os memoriais para pin‑tar as paredes. Agora que o Ocidente tinha novamente tomado posse do campo de concentração, historiadores e arquivistas dedicavam ‑se à elabora ção de uma nova narrativa e à organização de uma nova exposição memorial.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 19 8/28/15 6:04 PM

Page 11: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

20

Fora dos muros do campo de concentração encontrei outros memoriais, mais íntimos. Perto do crematório, havia uma travessa comprida e escura entre muros altos conhecida como a galeria de tiro. Estava ali depositado um pequeno ramo de rosas; as flores já estariam murchas se não tivessem congelado. Havia uma etiqueta com um nome.

Vi três pequenos ramos de flores no crematório, colocados em cima dos fornos, e algumas rosas espalhadas pela beira do lago. Como voltara a haver acesso ao campo de concentração, este era visitado por antigas prisioneiras que vinham aqui recordar as suas amigas mortas. Eu precisava de encontrar mais sobreviventes enquanto era ainda possível.

Compreendi nesse momento o que este livro deveria ser: uma biografia de Ravensbrück, a começar no princípio e a acabar no fim, reconstituindo a sua história fragmentária o melhor que pudesse. Com o livro, tentaria lan‑çar luz sobre os crimes dos nazis contra as mulheres, mostrando ao mesmo tempo como a compreensão do que aconteceu no campo de concentração para mulheres pode esclarecer a história nazi.

Uma grande parte das provas foi destruída, muito foi esquecido e dis torcido. Todavia, salvou ‑se bastante documentação, e novas provas ficavam disponíveis a todo o momento. As transcrições britânicas dos julgamentos já podiam ser consultadas há muito tempo e continham uma grande abundância de pormeno‑res; começavam também a ficar disponíveis documentos de julgamentos reali‑zados por trás da Cortina de Ferro. Desde o final da Guerra Fria que os Russos permitiam um acesso parcial aos seus arquivos, e em várias capitais europeias apareciam testemunhos nunca antes examinados. As sobreviventes do Leste e do Ocidente começavam a partilhar memórias. Os filhos das prisioneiras faziam perguntas, encontravam cartas e diários escondidos.

O mais importante para este livro seriam as vozes das próprias prisio‑neiras; elas seriam o meu guia do que realmente aconteceu. Alguns meses depois, na primavera, regressei da cerimónia do aniversário da libertação do campo de concentração e encontrei ‑me com Valentina Makarova, a sobrevivente da marcha da morte de Auschwitz, que me tinha escrito de Minsk. Ela tinha o cabelo branco ‑azulado e um rosto que parecia cor‑tado à faca. Quando lhe perguntei como sobrevivera, disse: «Porque nós acreditávamos na vitória», como se fosse algo que eu já devesse saber.

O sol trespassou as nuvens por breves momentos quando me aproximei da galeria de tiro. Uns pombos piavam no topo das tílias, competindo com os sons do trânsito que passava na estrada. Um autocarro com estudantes franceses estava estacionado e os jovens andavam por ali a fumar.

Olhei para o outro lado do lago gelado, para o pináculo da igreja de Fürstenberg. À distância, via uns trabalhadores a movimentarem ‑se de um lado para o outro num cais com barcos; no verão, os turistas andam de barco no lago sem saberem que lá no fundo há cinzas do campo de concentração. A brisa fazia voar uma rosa vermelha sobre o gelo.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 20 8/28/15 6:04 PM

Page 12: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

PRIMEIRA PARTE

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 21 8/28/15 6:04 PM

Page 13: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

23

CAPÍTULO 1

LANGEFELD

«O ano é 1957. A campainha do meu apartamento está a tocar», escreve Grete Buber ‑Neumann, uma antiga prisioneira de Ravensbrück. «Abro a porta. Está uma mulher diante de mim, com a respiração ofegante, e faltam ‑lhe dentes no maxilar inferior. Balbucia: “Já não me conheces? Sou a Johanna Langefeld, a antiga chefe das guardas em Ravensbrück.” A última vez que a vi foi há catorze anos, no seu gabinete no campo de concentração. Eu era prisioneira e trabalhava como sua secretária... Ela rezava a Deus para que Ele lhe desse forças para deter o mal, mas se uma judia entrasse no seu gabinete, o seu rosto enchia ‑se de ódio...

Então, ela senta ‑se à mesa comigo. Diz ‑me que gostava de ter nascido homem. Fala de Himmler, a quem por vezes chama Reichsführer. Fala durante muitas horas, confunde os anos e tenta explicar o seu comportamento.»

* * *

No início de maio de 1939, uma pequena caravana de camiões surgiu de entre as árvores e chegou a uma clareira perto da minúscula vila de Ravensbrück, nas profundezas da floresta de Mecklenburg. Os camiões avançaram para lá de um lago, altura em que as suas rodas começaram a girar no mesmo sítio e os seus eixos se enterraram na areia ensopada. Algu‑mas pessoas salta ram dos veículos para os desatolar, enquanto outras des‑carregavam caixotes.

Uma mulher de uniforme — casaco e camisa cinzentos — saltou tam‑bém para fora. Os pés enterraram ‑se ‑lhe na areia, mas ela soltou ‑se, subiu um pouco a encosta e olhou à sua volta. Havia árvores cortadas ao lado do lago cintilante. O ar cheirava a serradura. Fazia calor e não havia sombra. À direita dela, na margem mais distante, encontrava ‑se a pequena cidade de Fürstenberg. Barracões com barcos pontilhavam a margem. Via ‑se um pináculo de uma igreja.

No lado oposto do lago, à esquerda, erguia ‑se um vasto muro cinzento com cerca de cinco metros de altura. O caminho da floresta ia dar a uns portões com barras de ferro, para o lado esquerdo do complexo. Viam ‑se tabuletas com

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 23 8/28/15 6:04 PM

Page 14: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

24

os dizeres «Proibida a Entrada a Pessoas Estranhas». A mulher — de estatura média, entroncada, com cabelo castanho ondulado — avançou a passos deci‑didos na direção dos portões.

Johanna Langefeld tinha vindo com um pequeno grupo de guardas e de prisioneiras para trazer equipamento e inspecionar o novo campo de concen‑tração para mulheres; a abertura do campo estava prevista para daí a alguns dias e Langefeld iria ser a Oberaufseherin — a chefe das guardas. Já tinha visto o interior de muitas instituições penais para mulheres ao longo da sua vida, mas nunca um lugar como aquele.

No último ano, Langefeld tinha trabalhado como guarda sénior em Lich‑tenburg, uma fortaleza medieval perto de Torgau, na margem do rio Elve. Convertido num campo de concentração temporário para mulheres enquanto Ravensbrück estava a ser construído, Lichtenburg tinha câmaras e masmorras húmidas que eram acanhadas e pouco salubres; impróprias para prisioneiras. Ravensbrück era novo e tinha sido construído de raiz. O complexo ocupava cerca de vinte e cinco mil metros quadrados, suficientemente espaçoso para as primeiras cerca de mil mulheres ali esperadas, com espaço de sobra.

Langefeld entrou pelos portões de ferro e andou à volta da Appellplatz ensaibrada, a praça do campo de concentração. Do tamanho de um campo de futebol, tinha espaço suficiente para reunir todas as prisioneiras ao mesmo tempo. Havia altifalantes pendurados de postes acima da cabeça de Lange‑feld, embora o único som por agora fosse o do martelar de pregos. Os muros bloqueavam a vista do exterior, com a exceção do céu.

Ao contrário dos campos de concentração para homens, Ravensbrück não tinha torres de vigia ao longo dos muros nem espaldões de artilharia. No entanto, havia uma vedação elétrica fixada ao interior do muro a toda a volta e tabuletas de onde em onde, com uma caveira com uma cruz de ossos por cima a alertar para a alta voltagem. Só para além dos muros, para sul, à direita de Langefeld, o terreno era suficientemente elevado para poderem ver ‑se os topos das copas das árvores numa colina.

Grandes blocos de barracões cinzentos dominavam o complexo. Os barra‑cões de madeira, ordenados numa grelha, eram de um só piso e tinham jane‑las pequenas; dispunham ‑se à volta da praça. Duas filas de blocos idênticos — embora um pouco maiores — estavam dispostas de cada lado da Lagers‑trasse, a rua principal.

Langefeld inspecionou os blocos um a um. Logo a seguir ao portão, o pri‑meiro bloco à esquerda era a cantina do pessoal da SS, mobilada com cadei‑ras e mesas bem esfregadas. Também à esquerda da Appellplatz encontrava ‑se a Revier do campo de concentração, um termo militar alemão que significa enfermaria. Do outro lado da praça, entrou no balneário, equipado com dezenas de chuveiros. Havia caixotes empilhados numa das extremidades, contendo vestuário de algodão às riscas, e a uma mesa uma mão ‑cheia de mulheres estava ocupada a empilhar triângulos de feltro colorido.

Ao lado do balneário, sob o mesmo telhado, ficava a cozinha do campo de concentração, onde brilhavam enormes panelas e chaleiras de aço. O edi fício

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 24 8/28/15 6:04 PM

Page 15: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

25

ao lado era o armazém do vestuário das prisioneiras, ou Effektekammer, onde se encontravam sacos grandes de papel pardo empilhados em cima de uma mesa, e a seguir a Wäscherei, a lavandaria, com as suas seis máquinas de lavar e centrifugar — Langefeld gostaria que fossem em maior número.

Nas imediações, estava a ser construído um aviário. Heinrich Himmler, o chefe da SS, que dirigia os campos de concentração e muitas outras coisas na Alemanha nazi, queria que os seus campos de concentração fossem tão autossuficientes quanto possível. Haveria uma coelheira, um galinheiro e uma horta, assim como um pomar e um jardim de flores. Os arbustos de gro‑selha transplantados dos jardins de Lichtenburg e transportados em camiões estavam já a ser plantados ali. O conteúdo das latrinas de Lichtenburg tinha também sido trazido para Ravensbrück, para ser usado como fertilizante. Himmler exigia que os seus campos de concentração partilhassem os recur‑sos disponíveis. Como Ravensbrück não dispunha de fornos para cozer pão, este era trazido diariamente de Sachsenhausen, o campo de concentração dos homens, a oitenta quilómetros a sul.

A Oberaufseherin avançou a passos largos pela Lagerstrasse, que começava do lado mais afastado da Appellplatz e levava às traseiras do campo. Os blocos de habitação estavam dispostos perpendicularmente à Lagerstrasse, alinhados de tal modo que as janelas de um bloco davam para a parede das traseiras do seguinte. Seriam os blocos de habitação das pri sioneiras, oito de cada um dos lados da «rua». Tinham sido plantadas flores vermelhas — sálvias — no exterior do primeiro bloco; havia tílias a intervalos regulares entre os restantes.

Como em todos os campos de concentração, a disposição em grelha foi usada em Ravensbrück principalmente para assegurar que as prisioneiras poderiam ser sempre vistas, o que implicava menos guardas. Foi destacado um grupo de cinquenta e cinco guardas do sexo feminino e uma brigada de quarenta homens da SS, todos sob o comando geral do Hauptsurmführer Max Koegel.

Johanna Langefeld acreditava que poderia dirigir um campo de concen‑tração para mulheres melhor do que qualquer homem, e certamente melhor do que Max Koegel, cujos métodos ela desprezava. Himmler, no entanto, não tinha dúvida de que Ravensbrück deveria ser dirigido, no geral, segundo as mesmas linhas dos campos de concentração para homens, o que significava que Langefeld e as suas guardas teriam de responder perante um comandante da SS.

Oficialmente, nem ela nem nenhuma das suas guardas tinham qualquer tipo de estatuto. As guardas não só estavam subordinadas aos homens como não tinham qualquer crachá ou patente e eram meras «auxiliares» da SS. A maioria não estava armada, embora algumas das guardas que vigiavam os grupos de trabalho no exterior estivessem munidas de pistola e muitas tivessem cães. Himmler acreditava que as prisioneiras receavam mais os cães do que os homens.

No entanto, a autoridade de Koegel no campo de concentração não seria absoluta. Foi nomeado comandante temporariamente e certos poderes

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 25 8/28/15 6:04 PM

Page 16: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

26

tinham ‑lhe sido recusados. Por exemplo, não haveria uma prisão ou «bun‑ker» no campo de concentração na qual pudessem manter ‑se em detenção elementos desordeiros, como era o caso em todos os campos de concentração para homens. Koegel também não teria autoridade para ordenar castigos corporais «oficiais». Irritado por estas omissões, Koegel escreveu aos seus superiores da SS solicitando maiores poderes para punir as prisioneiras, mas o seu pedido foi indeferido.

A Langefeld, no entanto, que acreditava mais na rotina militar e na dis‑ciplina do que em castigos corporais, agradavam estas regras, especialmente porque tinha conseguido obter concessões significativas na gestão do dia a dia. No exaustivo livro de regras do campo de concentração, o Lagerordnung, estava escrito que a chefe das guardas aconselharia o Schutzhaftlagerführer (o comandante interino) em «questões femininas», embora não ficasse definido quais eram.

Entrando num dos barracões de habitação, Langefeld olhou à sua volta. Como tantas outras coisas aqui, a organização dos dormitórios era novidade para ela; em vez de dormirem em celas partilhadas ou em camaratas, como Lan gefeld estava acostumada a ver, mais de 150 mulheres iriam dormir em cada bloco. Os interiores eram idênticos, com dois grandes dormitórios — A e B — a ladearem uma zona de balneário, com uma fila de doze lavatórios e doze sanitas, bem como uma sala comum onde as mulheres fariam as suas refeições.

As zonas de dormitório estavam ocupadas por dezenas de beliches triplos feitos de tábuas. Cada prisioneira teria um colchão cheio de serradura e uma almofada, assim como um lençol e um cobertor aos quadrados azuis e brancos dobrado aos pés da cama.

A importância da rotina militar e da disciplina tinha sido instilada em Langefeld desde a mais tenra idade. Filha de um ferreiro, Joahnna Langefeld, cujo nome de solteira era Johanna May, nasceu na cidade de Kupferdreh, no Ruhr, em março de 1900. Ela e a sua irmã mais velha foram criadas num luteranismo estrito; os pais vincavam ‑lhes bem a importân cia da frugalidade, da obediência e da oração diária. Como qualquer outra boa menina protes‑tante, Johanna sabia que o seu papel na vida seria o de esposa e mãe modelar: «Kinder, Küche, Kirche» — filhos, cozinha, igreja — era um credo familiar no lar da família May. No entanto, já desde a infância que Johanna ansiava por mais. Os seus pais falavam ‑lhe também do passado da Alemanha. Depois de irem à igreja ao domingo, recordavam a humilhação da ocupação francesa do seu amado Ruhr sob Napoleão, e a família ajoelhava ‑se e rezava para que Deus ajudasse a Alemanha a tornar ‑se grande de novo. Ela idolatrava a sua homónima Johanna Prohaska, uma heroína das guerras de libertação que se tinha disfarçado de homem para combater os Franceses.

Johanna Langefeld contou tudo isto a Grete Buber ‑Neumann, a antiga prisioneira, depois de aparecer à porta da sua casa em Frankfurt anos depois, procurando «tentar explicar o seu comportamento». Grete, que esteve presa em Ravensbrück durante quatro anos, ficou sobressaltada com o reapareci‑mento em 1957 da antiga chefe das guardas; sentiu ‑se também fascinada pelo relato de Langefeld da sua «odisseia» e registou ‑o por escrito.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 26 8/28/15 6:04 PM

Page 17: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

27

Em 1914, quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial, Johanna, na altura com catorze anos, deu vivas com o resto da multidão enquanto os jovens de Kupferdreh marchavam para a guerra para seguirem o sonho de tornar a Alemanha grande de novo, só para vir a descobrir que ela e todas as mulheres alemãs teriam um papel muito limitado a desempenhar. Dois anos depois, quando se tornou claro que a guerra não terminaria em breve, subitamente as mulheres foram mandadas trabalhar nas minas, nas fábricas e nos escritórios; ali, na «frente doméstica», teriam uma oportunidade de prestar provas do que valiam realizando os trabalhos dos homens, só para serem arredadas desses mesmos postos de trabalho quando eles regressassem da guerra.

Dois milhões de alemães não voltaram das trincheiras, mas outros seis milhões, sim, e Johanna assistiu ao regresso dos soldados de Kupferdreh, muitos mutilados e todos humilhados. Nos termos da rendição, a Alemanha pagaria reparações, que tolheriam a economia, exacerbando a hiperinflação; em 1924, o amado Ruhr de Langefeld foi mais uma vez ocupado pelos Franceses, que «roubaram» o carvão alemão como punição pelas reparações não pagas. Os pais de Joahnna perderam as suas poupanças e ela viu ‑se na penúria e à procura de emprego. Nesse mesmo ano, encontrou marido, um mineiro chamado Wilhelm Langefeld, que morreu dois anos depois de uma doença dos pulmões.

A «odisseia» de Johanna sofreu uma interrupção; ela «perdeu ‑se nos anos», escreveu Grete. Os meados da década de 1920 foram um período som brio que ela não conseguia explicar a não ser dizendo que teve uma ligação com outro homem, que a deixou grávida e dependente de grupos pro testantes de caridade.

Enquanto Langefeld e milhões como ela se debatiam com dificulda‑des, outras alemãs encontraram a libertação nos anos 1920. Com o apoio financeiro americano, a república socialista de Weimar estabilizou o país e encaminhou ‑o para uma via liberal. As mulheres adquiriram o direito ao voto e pela primeira vez aderiram a partidos políticos, particularmente de esquerda. Inspiradas por Rosa Luxemburgo, a líder do movimento comu‑nista Spartacus, raparigas da classe média, Grete Buber ‑Neumann entre elas, cortaram o cabelo, assistiam a peças de Bertolt Brecht e faziam caminhadas pelas florestas com camaradas do Wandervogel, um movimento de juventude comunista, falando da revolução. Entretanto, por todo o país mulheres da classe operária recolhiam fundos para a «Ajuda Vermelha», inscreviam ‑se em sindicatos e distribuíam panfletos de apoio a greves à porta de fábricas.

Em 1922, em Munique, onde Adolf Hitler atribuía a culpa dos proble‑mas da Alemanha ao «judeu inchado», uma precoce jovem judia chamada Olga Benario fugiu de casa para aderir a uma célula comunista, renegando os seus pais, pessoas da classe média abastada. Tinha catorze anos. Poucos meses depois, a jovem estudante de olhos escuros já liderava camaradas em caminhadas pelos Alpes da Baviera, mergulhava em ribeiros da montanha e a seguir lia Marx à volta da fogueira do acampamento e planeava a revolução

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 27 8/28/15 6:04 PM

Page 18: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

28

comunista da Alemanha. Em 1928, tornou ‑se famosa ao invadir um tribu‑nal em Berlim e libertar um destacado comunista que ia ser guilhotinado. Em 1929, Olga trocou a Alemanha por Moscovo para se treinar com a elite de Estaline, antes de se dirigir para o Brasil para começar uma revolução.

No pobre vale do Ruhr, Johanna Langefeld era nessa altura uma mãe solteira sem futuro. A queda da Bolsa de Nova Iorque, o chamado «Wall Street Crash», desencadeou uma depressão económica e financeira a nível mundial, fazendo mergulhar a Alemanha numa nova crise económica mais profunda que atirou com milhões de pessoas para o desemprego e criou uma instabilidade generalizada. O receio mais forte de Langefeld era que lhe fosse tirado o seu filho, Herbert, se ela caísse na pobreza. No entanto, em vez de engrossar as fileiras dos miseráveis, optou por os ajudar, virando‑‑se para Deus. «Foi a convicção religiosa que me levou a trabalhar com os pobres mais pobres», disse ela todos aqueles anos depois à mesa da cozinha do apartamento de Grete em Frankfurt. Arranjou trabalho nos serviços de assistência social, ensinando prendas domésticas a mulheres desempregadas e «reeducando prostitutas».

Em 1933, Johanna Langefeld encontrou um novo salvador em Adolf Hitler. O programa de Hitler para as mulheres não podia ser mais claro: as alemãs deviam ficar em casa, criar tantos filhos arianos quantos pudessem e obedecer aos maridos. As mulheres não estavam talhadas para a vida pública; a maior parte dos empregos ser ‑lhes ‑ia barrada e o acesso à universidade limitado.

Tais atitudes poderiam ser facilmente encontradas em qualquer país europeu nos anos 1930, mas a linguagem dos nazis em relação às mulheres era singularmente «tóxica»; o séquito de Hitler não só desprezava aber‑tamente o «estúpido» e «inferior» sexo feminino como também exigia repetidamente a «separação» das mulheres dos homens, como se estes não vissem para que serviam as mulheres a não ser como adornos ocasionais e, é claro, para terem filhos.1 Os judeus não eram os únicos bodes expiató‑rios de Hitler para os males que afligiam a Alemanha: as mulheres que se tinham emancipado durante os anos da república de Weimar eram culpadas de tomarem os empregos dos homens e de corromperem a moral do país.

No entanto, Hitler tinha a capacidade de seduzir os milhões de mulheres que ansiavam por um homem «forte como o aço» que restaurasse a ordem e o orgulho do Reich. Foram admiradoras dessas, muitas delas profundamente religiosas e todas elas inflamadas pela propaganda antissemítica de Josef Goebbels, que encheram o comício de vitória de Nuremberga em 1933, onde o repórter americano William Shirer se misturou com a multidão. «Hitler entrou hoje nesta cidade medieval ao cair da noite, passando por sólidas falanges de nazis a darem vivas entusiásticos... Dezenas de milhares de bandeiras com a suástica encobrem as belezas góticas deste local...» Mais

1 Os nazis apontavam para estudos científicos que mostravam que as mulheres tinham o cérebro mais pequeno do que o dos homens e, por consequência, eram obviamente inferiores.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 28 8/28/15 6:04 PM

Page 19: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

29

tarde, nessa mesma noite, à porta do hotel de Hitler: «Fiquei um pouco chocado com os rostos, especialmente com os das mulheres... Olhavam para cima, para ele, como se fosse um Messias...»

Que Langefeld votou em Hitler é quase certo. Ela ansiava por corrigir a humilhação do seu país. Também acolhia de bom grado o novo «respeito pela vida da família» proclamado por Hitler. E Langefeld tinha razões pessoais para se sentir agradecida ao novo regime: pela primeira vez, tinha um emprego assegurado. A maior parte das carreiras estava fechada às mulheres, particularmente às mães solteiras, exceto aquela que Langefeld tinha escolhido. Do serviço de assistência social tinha sido promovida ao serviço prisional. Em 1935 foi de novo promovida, dessa vez ao posto de Hausmutter em Brauweiler, uma casa de correção para prostitutas perto de Colónia. O emprego dava ‑lhe direito a alojamento e creche para o seu filho, Herbert.

Enquanto esteve em Brauweiler, no entanto, parece que não se adaptou facilmente a todos os métodos nazis para ajudar «os pobres mais pobres». Em julho de 1933, foi aprovada a Lei para a Prevenção de Prole com Doenças Hereditárias, legalizando a esterilização em massa como meio de eliminar os fracos, os ociosos, os criminosos e os loucos. O Führer acreditava que todos esses degenerados eram uma sangria desnecessária do erário público e que deviam ser removidos da cadeia da hereditariedade, para tornar mais forte a Volksgemeinschaft, a comunidade de alemães de raça pura. O diretor de Brauweiler, Albert Bosse, declarou em 1935 que 95 por cento das suas prisioneiras eram «incapazes de se emendarem e teriam de ser esterilizadas por razões morais e com o objetivo de manter a saúde do Volk».

Em 1937, Bosse despediu Langefeld. A razão dada nos registos de Brau‑weiler é roubo, mas tratava ‑se certamente de uma desculpa para ocultar a oposição de Langefeld aos seus métodos. Os registos revelam também que Langefeld não tinha ainda aderido ao Partido Nazi, um dever exigido a todo o pessoal das prisões.

O «respeito» de Hitler pela vida da família nunca enganou Lina Haag, a mulher de um membro comunista do parlamento estatal em Württem‑berg. Mal ouviu na rádio, em 30 de janeiro de 1933, que Hitler tinha sido nomeado chanceler, soube com toda a certeza que a nova polícia de segu‑rança, a Gestapo, viria buscar o seu marido: «Nos nossos comícios, tínhamos avisado o país contra Hitler. Contávamos com um levantamento popular, não se verificou.»

No dia seguinte, em 31 de janeiro, a previsão de Lina concretizou ‑se, quando ela e o marido estavam a dormir; às cinco da manhã, chegaram os capangas do regime. A caça aos comunistas tinha começado. «Os capacetes, os revólveres, os bastões. Pisavam os lençóis limpos com um entusiasmo repelente. Nós não éramos estranhos para eles — eles conheciam ‑nos e nós conhecíamo ‑los a eles. Eram homens crescidos, cidadãos como nós — vizi‑nhos, pais de família. Gente comum, normal. E olhavam para nós agora cheios de ódio, com as pistolas apontadas.»

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 29 8/28/15 6:04 PM

Page 20: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

30

O marido de Lina começou a vestir ‑se. Porque é que vestiu o casaco tão depressa perguntou ‑se Lina. Será que iria deixar ‑se levar sem uma palavra?

«O que é que se passa?», perguntou ‑lhe ela.«Ah, bem», disse ele, encolhendo os ombros.«Ele é membro do parlamento estatal», berrou ela aos polícias que empu‑

nhavam bastões. Eles riram ‑se.«Ouviram aquilo? Comunistas, é o que vocês são, mas agora nós vamos

acabar com estes vermes todos.»Lina afastou à força da janela a filha do casal, Katie, uma menina de dez

anos, que gritava enquanto o pai era levado. «Eu pensei que as pessoas não tolerariam aquilo por muito tempo», disse Lina.

Quatro semanas depois, em 27 de fevereiro de 1933, quando Hitler estava ainda a esforçar ‑se por consolidar o poder do seu partido, o parlamento ale‑mão, o Reichstag, foi incendiado. Os comunistas foram acusados, embora muitas pessoas suspeitassem de que o fogo tinha sido posto por capangas nazis como pretexto para aterrorizar todos os adversários políticos no país. Hitler aprovou imediatamente um édito abrangente chamado «detenção preventiva», que permitia que qualquer pessoa fosse detida por «traição» e ficasse presa por um período indefinido de tempo. A dezasseis quilómetros a norte de Munique, estava prestes a abrir um campo novinho em folha para receber os «traidores».

Inaugurado em 22 de março de 1933, Dachau foi o primeiro campo de concentração nazi. Ao longo das semanas e dos meses seguintes, a polícia de Hitler procurou todos os comunistas ou suspeitos de serem comunistas e levou‑‑os para lá, para esmagar a sua oposição. Os sociais ‑democratas foram também detidos, assim como sindicalistas e quaisquer outros «inimigos do Estado».

Alguns dos detidos, particularmente entre os comunistas, eram judeus, mas nos primeiros anos do domínio nazi os judeus não foram presos em números significativos; os que foram levados para os primeiros campos de concentração tinham sido presos, como os restantes, por resistência a Hitler, não simplesmente devido à sua raça. O único objetivo dos cam‑pos de concentração de Hitler nos primeiros tempos era esmagar toda a oposição interna alemã; só depois de se cumprir este objetivo tentariam alcançar ‑se outros. Esse esmagamento foi uma tarefa atribuída ao homem mais competente para a desempenhar: Heinrich Himmler, o chefe da SS, que em breve se tornaria também chefe da polícia, incluindo a Gestapo.

Heinrich Luitpold Himmler era um chefe de polícia improvável, pequeno e gordo, com um rosto pálido e sem queixo e óculos de aros dourados empo‑leirados no seu nariz afilado. Nascido em 7 de outubro de 1900, o segundo de três rapazes, era filho de Gebhard Himmler, um vice ‑diretor de uma escola perto de Munique. Os serões no confortável apartamento da família em Munique eram passados a ajudar o pai na sua coleção de selos ou a escutar histórias de feitos heroicos do seu avô militar, enquanto a sua adorada mãe, uma católica devota, costurava a um canto da sala.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 30 8/28/15 6:04 PM

Page 21: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

31

O jovem Heinrich era um excelente aluno, mas os colegas consideravam‑‑no um marrão, e ele era muitas vezes vítima de perseguições e ataques; como no ginásio mal conseguia chegar às barras paralelas, os professores obriga‑vam ‑no a contorcer ‑se em flexões sob o olhar dos colegas, que o vaiavam. Anos depois, nos campos de concentração para homens, Him mler introduziu um tipo de tortura em que os prisioneiros eram acorrentados uns aos outros em círculo e forçados a saltar para cima e para baixo até caírem por terra e, em seguida, obrigados ao pontapé a levantarem ‑se até tombarem de vez.

Ao sair da escola, o sonho de Himmler era obter uma comissão militar, mas, embora tenha prestado serviço militar como cadete por um breve período de tempo, a falta de saúde e os problemas de visão excluíram ‑no da classe dos oficiais. Estudou Agricultura, dedicou ‑se à criação de galinhas e deixou ‑se absorver por outro sonho romântico, um retorno à Heimat — o lar pátrio alemão —, passando os seus tempos livres a caminhar nos seus amados Alpes, frequentemente com a mãe, ou a estudar Astrologia e Genea‑logia, ao mesmo tempo tomando apontamentos no seu diário sobre todos os pormenores triviais da sua vida diária. «Os pensamentos e as preocupações perseguem ‑se na minha cabeça», queixou ‑se.

No final da adolescência, Himmler recriminava ‑se pela sua incompetên‑cia social e sexual. «Sou um tagarela incorrigível», escreveu, e em relação ao sexo: «Estou a controlar ‑me com um freio de ferro.» Nos anos 1920 aderiu a um grupo masculino de Munique chamado Sociedade Thule, que debatia as raízes da supremacia ariana e a ameaça dos judeus. Foi também acolhido nas unidades paramilitares da extrema ‑direita em Munique. «É tão agradável andar outra vez de uniforme», escreveu. Nas fileiras do Par‑tido Nacional‑Socialista (Nazi), as pessoas começavam a dizer: «O Heinrich resolve as coisas.» As suas capacidades de organização e a sua atenção aos pormenores eram de primeira ordem, e ele revelou uma grande aptidão para prever os desejos de Hitler. Era útil, descobriu Himmler, ser «tão ardiloso como uma raposa».

Em 1928, casou ‑se com uma enfermeira chamada Margarete Boden, sete anos mais velha do que ele. Tiveram uma filha, Gudrun. Profissionalmente, Himmler fazia também progressos, e em 1929 foi nomeado chefe da SS (Schutzstaffel), o esquadrão paramilitar formado inicialmente como guarda‑‑costas pessoal de Hitler. Quando Hitler subiu ao poder em 1933, Himmler tinha já transformado a SS numa força de elite. Uma das suas incumbências era dirigir os novos campos de concentração.

Hitler propôs a utilização dos campos de concentração como locais onde internar e esmagar a sua oposição, tomando como modelo os campos de concentração usados pelos Britânicos para o internamento maciço do ini‑migo durante a Guerra Sul ‑Africana de 1899 ‑1902. O estilo dos campos de concentração nazis, no entanto, seria definido por Himmler, que escolheu pessoalmente o local para o seu protótipo em Dachau. Foi também ele quem selecionou o comandante de Dachau, Theodor Eicke, que se tornaria chefe das unidades dos «Cabeças de Morte», como os esquadrões de guardas dos

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 31 8/28/15 6:04 PM

Page 22: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

32

campos de concentração da SS eram conhecidos — usavam no boné um emblema com uma caveira com ossos cruzados por cima para denotar a sua lealdade à morte. Himmler encarregou Eicke de conceber um modelo para aterrorizar todos os «inimigos do Estado».

Em Dachau, foi precisamente isso que Eicke fez, criando uma escola para homens da SS, que lhe chamavam «Papá Eicke» e que ele «endurecia» antes de serem enviados para outros campos de concentração. Esse endurecimento significava que os homens deviam aprender a nunca revelar fraqueza perante o inimigo e só deviam «arreganhar os dentes» — por outras palavras, deviam odiar. Entre os primeiros recrutas de Eicke encontrava ‑se Max Koegel, o futuro comandante de Ravensbrück, que chegou a Dachau à procura de emprego após um breve período na prisão por desfalque.

Nascido numa cidade nas montanhas do Sul da Baviera chamada Füssen, famosa pelo fabrico de alaúdes e pelos seus castelos góticos, Koegel era filho de um pastor. Órfão aos doze anos, passou os anos seguintes como pastor nos Alpes antes de procurar outro trabalho em Munique, onde começou a dar ‑se com grupos völkische de extrema ‑direita e aderiu ao Partido Nazi em 1932. O «Papá Eicke» rapidamente encontrou uma utilidade para Koegel, agora um homem de trinta e oito anos de uma dureza profunda‑mente vincada.

Em Dachau, Koegel conviveu com outros homens da SS, como Rudolf Höss, um dos outros primeiros recrutados, que viria a tornar ‑se comandante de Auschwitz e que desempenhou igualmente um papel em Ravensbrück. Höss recordaria mais tarde com afeto os seus tempos em Dachau, falando de um quadro de homens da SS que aprenderam a «amar» Eicke e que nunca esqueceram as suas regras, «que se mantiveram firmes e se tornaram parte da sua carne e do seu sangue».

Tal foi o sucesso de Eicke que não tardaram a ser construídos vários outros campos de concentração seguindo o modelo de Dachau. Mas naqueles pri‑meiros tempos nem Eicke, nem Himmler, nem mais ninguém pensava ainda num campo de concentração para mulheres; as mulheres que se opunham a Hitler não eram tomadas suficientemente a sério para serem consideradas uma ameaça genuína.

É certo que nas purgas de Hitler milhares de mulheres foram detidas. Muitas delas tinham encontrado a sua libertação pessoal durante o período da república de Weimar — sindicalistas, médicas, professoras universitárias, jornalistas. Muitas eram comunistas ou mulheres de comunistas. Ao serem detidas, eram vítimas de maus tratos, mas não as levavam para campos de concentração ao estilo do de Dachau nem se contemplava a hipótese de abrir secções femininas nos campos de concentração dos homens. Eram detidas em prisões para mulheres ou em casas de correção, onde o regime vigente era duro mas não intolerável.

Muitas das prisioneiras políticas foram levadas para Moringen, uma casa de correção adaptada perto de Hanôver. As 150 mulheres que ali se encon‑travam em 1935 dormiam em dormitórios que não eram fechados à chave

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 32 8/28/15 6:04 PM

Page 23: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

33

e as guardas faziam ‑lhes recados, indo comprar ‑lhes lã para trico tarem, por exemplo. No átrio da prisão, ouvia ‑se o matraquear de máquinas de costura. Havia uma mesa de «notáveis» à parte das outras, entre elas os membros mais destacados do Reichstag e mulheres de industriais.

No entanto, tal como Himmler calculara, as mulheres podiam ser tor‑turadas de maneiras diferentes das dos homens; para a maior parte das mulheres, o simples facto de os maridos terem sido mortos e de os filhos lhes terem sido tirados — usualmente enviados para lares de acolhimento nazis — era provação suficiente. A censura excluía a possibilidade de pedir auxílio.

Barbara Fürbringer, ouvindo dizer que o seu marido, um membro comu‑nista do Reichstag, tinha sido torturado até à morte em Dachau e que os seus filhos tinham sido levados para um lar de acolhimento nazi, tentou alertar a sua irmã na América:

Querida IrmãInfelizmente, estamos mal. O Theodor, o meu querido marido, morreu subitamente em

Dachau há quatro meses. Os nossos três filhos foram internados num lar de acolhimento em Munique. Eu estou no campo de mulheres em Moringen. Já não tenho dinheiro.

Como o censor rejeitou a carta, ela escreveu de novo:

Querida Irmã,Infelizmente, as coisas não estão a correr exatamente como seria nosso desejo. O Theodor,

o meu querido marido, morreu há quatro meses. Os nossos três filhos vivem em Munique, no número 27 de Brenner Strasse, eu vivo em Moringen, perto de Hanôver, no número 32 de Breite Strasse. Ficar ‑te ‑ia agradecida se me enviasses uma pequena quantia de dinheiro.

Himmler calculava também que, se a repressão dos homens fosse sufi‑cientemente terrível, todas as outras pessoas não tardariam a mostrar ‑se aquiescentes. E esse cálculo revelou ‑se em grande medida correto, como Lina Haag, detida poucas semanas depois do marido e enviada para outra prisão, não tardaria a observar. «Ninguém viu para onde nos estávamos a encaminhar? Ninguém viu para lá da demagogia desavergonhada dos artigos de Goebbels? Eu conseguia vê ‑lo mesmo através dos muros grossos da prisão; um número cada vez maior de pessoas lá fora estava a seguir a linha oficial.»

Até 1936, não só tinha sido eliminada toda a oposição política como as organizações humanitárias e as igrejas alemãs estavam a seguir a linha oficial. O movimento alemão da Cruz Vermelha tinha aderido à causa nazi; nas reuniões, a bandeira da Cruz Vermelha era adejada ao lado da bandeira com a cruz suástica, e os guardiães da Convenção de Genebra, o Comité Internacional da Cruz Vermelha, inspecionaram os campos de concentração de Himmler — ou, pelo menos, os blocos ‑modelo — e concederam ‑lhes a sua aprovação. As capitais do mundo ocidental adotaram a posição de que

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 33 8/28/15 6:04 PM

Page 24: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

34

os campos de concentração nazis eram uma questão interna da Alemanha e não algo com que devessem preocupar ‑se. Em meados dos anos 1930, a maior parte dos líderes ocidentais ainda acreditava que a maior ameaça à paz mundial era o comunismo, não a Alemanha nazi.

No entanto, apesar da ausência de uma oposição significativa, inter na ou externa, o Führer prestava uma especial atenção à opinião pública nos pri‑meiros tempos do seu domínio. Num discurso num campo de treino da SS em 1937, disse: «Sei sempre que não devo dar um só passo que venha a ter de recuar. Há que ter faro para avaliar a situação, para perguntar: “Ora bem, com o que é que me posso safar e com o que é que não posso?”»

Até mesmo o movimento contra os judeus da Alemanha avançou mais lentamente ao princípio do que muitos elementos do partido deseja riam. Nos primeiros anos, Hitler aprovou leis que impediam o acesso dos judeus ao trabalho e à vida pública, incitando ao ódio e à perseguição, mas leva‑ria ainda algum tempo, considerava ele, até se conseguir fazer mais do que isso impunemente. Himmler também tinha «faro» para avaliar as situações.

Em novembro de 1936, o Reichsführer SS, que por esta altura não só era chefe da SS mas também chefe da polícia, viu ‑se a braços com uma tempes‑tade internacional que se desencadeou devido a uma comunista alemã que saiu de um navio nas docas de Hamburgo para as mãos da Gestapo, que a aguardava. Ela estava grávida de oito meses. Tratava ‑se de Olga Benario. A menina intrépida de Munique que tinha fugido de casa para se tornar comunista tinha agora trinta e cinco anos e estava prestes a tornar ‑se uma causa célebre para os comunistas em todo o mundo.

Depois do seu treino em Moscovo no início da década de 1930, Olga foi escolhida para o Comintern (a organização internacional comunista) e em 1935 foi enviada por Estaline para ajudar a organizar um golpe contra o Presidente do Brasil Getúlio Vargas. O chefe da operação era o lendário líder rebelde brasileiro Luís Carlos Prestes. A insurreição destinava ‑se a promover uma revolução comunista no maior país da América do Sul, proporcionando assim a Estaline um ponto de entrada nas Américas. No entanto, em conse‑quência de uma informação dos serviços secretos britânicos, a conspiração foi abortada, Olga foi detida e, juntamente com uma outra conspiradora, Elise Ewert, enviada a Hitler «como uma oferenda».2

Das docas de Hamburgo, Olga foi levada para a prisão de Barmins‑trasse em Berlim, onde deu à luz uma menina, Anita, quatro semanas mais tarde. Comunistas por todo o mundo lançaram uma campanha para as libertar. O caso atraiu muita atenção, em grande medida porque o pai do bebé era o famoso Carlos Prestes, o líder do golpe falhado; o casal

2 Os serviços secretos britânicos boicotaram igualmente uma tentativa de manifestantes comunistas de tirar Olga do navio, quando atracasse em Southampton a caminho de Ham‑burgo. Moscovo tinha avisado antecipadamente o Partido Comunista britânico em Londres, apelando a que fossem organizados protestos, mas o sinal foi intercetado pelo MI6 e o navio seguiu diretamente para a Alemanha sem entrar em mais nenhum porto.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 34 8/28/15 6:04 PM

Page 25: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

35

tinha ‑se apaixonado e casado no Brasil. A coragem de Olga e a sua beleza morena e delicada tornavam o caso ainda mais comovente.

Esta publicidade negativa no estrangeiro não era bem ‑vinda, especial‑mente porque que se estava no ano dos Jogos Olímpicos em Berlim e por‑que tinham sido feitos tantos esforços para melhorar a imagem do país.3 Os chefes da Gestapo de Himmler tentaram inicialmente debelar o escândalo propondo que o bebé fosse entregue à mãe de Olga, Eugenia Benario, que ainda vivia em Munique, mas Eugenia recusou ‑se a receber a criança; há muito tempo, tinha renegado a sua filha comunista e agora renegava também a neta. Em seguida, Himmler deu permissão à mãe de Prestes, Leocadia, para levar Anita, e, em novembro de 1937, a avó brasileira foi buscar a bebé à prisão de Barminstrasse. Olga, agora destroçada, ficou sozinha na sua cela.

Numa carta a Leocadia, explicou que não tinha tido tempo para se pre‑parar para a separação: «Por isso, tem de me perdoar o estado das coisas da Anita. Recebeu a minha descrição da rotina dela e do gráfico do peso? Organizei o gráfico o melhor que pude. Os órgãos internos dela estão bem? E os ossos, as perninhas dela? Talvez tenha sofrido com as circunstâncias extraordinárias da minha gravidez e do seu primeiro ano de vida.»

Em 1936, o número de mulheres detidas em prisões alemãs começava a aumentar. Apesar do terror, as mulheres continuavam a operar clandestina‑mente, muitas delas agora inspiradas pela eclosão da guerra civil espanhola. Entre as que foram levadas para o «campo de concentração» para mulheres de Moringen, em meados da década de 1930, encontravam ‑se mais mulheres comunistas e ex ‑membros do Reichstag, assim como as que operavam em grupos minúsculos ou sozinhas, como a artista gráfica deficiente Gerda Lissack, que elaborava panfletos antinazis. Ilse Gostynski, uma jovem judia, que aju‑dava a imprimir artigos de ataque ao Führer na sua impressora, foi detida por engano. A Gestapo queria a sua irmã gémea, Else, mas, como Else estava em Oslo a organizar rotas de evasão para crianças judias, levaram Ilse na sua vez.

Em 1936, 500 donas de casa alemãs com bíblias na mão e lenços brancos na cabeça chegaram a Moringen. As mulheres, testemunhas de Jeová, protestaram quando os seus maridos foram convocados para o ser‑viço militar. Hitler era o Anticristo, diziam; Deus é que era o governante da Terra, não o Führer. Os seus maridos e outros homens testemunhas de Jeová foram enviados para o campo de concentração mais recente de Hitler, Buchenwald, onde lhes foram aplicadas vinte e cinco chicotadas com um chicote de couro. No entanto, como Himmler sabia que nem mesmo os seus homens da SS estavam ainda suficientemente empedernidos para espancarem donas de casa alemãs, em Moringen as testemunhas de Jeová simplesmente viram as suas bíblias confiscadas pelo diretor da prisão, um bondoso militar aposentado que era coxo.

3 Por exemplo, todos os ciganos em Berlim foram arrebanhados antes do início dos Jogos Olímpicos. Para os tirar da vista do público, foram metidos num vasto campo construído num pantanal em Marzhan, um subúrbio de Berlim.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 35 8/28/15 6:04 PM

Page 26: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

36

Em 1937, a aprovação de uma lei contra a «Rassenschande» — literal‑mente, «vergonha da raça» —, que tornava ilegais as relações entre judeus e não ‑judeus, trouxe mais um influxo de mulheres judias a Moringen. Na segunda metade de 1937, as prisioneiras que ali se encontravam notaram um aumento súbito no número de mulheres sem ‑abrigo que eram trazidas «a coxearem, algumas com faixas, muitas outras a cuspirem sangue». Em 1938, chegaram dezenas de prostitutas.

Else Krug estava a trabalhar como de costume quando um grupo de polí‑cias de Düsseldorf lhe bateu com força à porta, no número 10 de Corneliuss‑trasse, berrando ‑lhe que a abrisse; eram duas da madrugada do dia 30 de julho de 1938. As rusgas policiais eram habituais e Else não tinha motivo para receios, embora ultimamente fossem mais frequentes. A prostituição era legal perante a lei nazi, mas a polícia podia usar qualquer desculpa; talvez uma das mulheres tivesse faltado à inspeção da sífilis ou talvez um agente policial pretendesse obter informações sobre uma nova célula comunista nas docas de Düsseldorf.

Vários agentes da polícia de Düsseldorf conheciam estas mulheres pes‑soalmente. Else Krug era muito procurada, quer pelos serviços especiais que prestava — dedicava ‑se ao sadomasoquismo — quer pelos seus mexericos; mantinha ‑se atenta ao que se passava. Else também era popular na rua; aco‑lhia sempre uma rapariga se pudesse, especialmente se a garota fosse nova na cidade. A própria Else tinha chegado assim às ruas de Düsseldorf dez anos antes — sem trabalho, longe de casa e na penúria.

No entanto, a rusga policial de 30 de julho era diferente das anteriores na Corneliusstrasse. Clientes aterrorizados agarraram no que puderam e fugi‑ram meio despidos para a rua. Na mesma noite, ocorreram rusgas similares numa casa na vizinhança, onde Agnes Petry estava a trabalhar. O marido de Agnes, um proxeneta da zona, foi igualmente detido. Depois de mais uma rusga pela Bahndamm, os agentes policiais detiveram um total de vinte e quatro prostitutas, e pelas seis da manhã estavam já todas atrás das grades, sem data prevista para a sua libertação.

O tratamento dado às mulheres na esquadra era também diferente. O agente de serviço — o sargento Peine — conhecia a maior parte das mulheres, por terem já anteriormente pernoitado nas celas, e, pegando no seu grande livro de registos preto, tomou nota dos seus nomes, das suas moradas e dos seus pertences. Na coluna intitulada «razão para a detenção», no entanto, Peine escreveu cuidadosamente «Asoziale», «associal», diante de cada um dos nomes — uma palavra que nunca tinha usado no livro até àquele momento. E ao fundo da coluna, também pela primeira vez, escreveu a vermelho: «Transporte.»

As rusgas aos bordéis de Düsseldorf repetiram ‑se por toda a Alemanha ao longo de 1938, com a purga nazi contra as suas classes desfavorecidas e indesejadas a entrar num novo estádio. Foi implementado um programa chamado «Aktion Arbeitsscheu Reich» (Ação contra os Ariscos ao Trabalho),

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 36 8/28/15 6:04 PM

Page 27: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

37

visando todos os que eram considerados marginais sociais. Em grande medida sem que o mundo exterior se apercebesse e sem ser noticiado dentro da Alemanha, mais de 20 000 alegados «associais» — vagabundos, prosti‑tutas, desempregados, mendigos e ladrões — foram detidos e enviados para campos de concentração.

Em meados de 1938 ainda faltava um ano para começar a guerra, mas a guerra da Alemanha contra os seus próprios elementos indesejados já estava lançada. O Führer fez saber que, como o país tinha de ser «puro e forte» enquanto se preparava para a guerra, as «bocas inúteis» deveriam ser removidas. Desde o momento em que Hitler subiu ao poder, empreen‑deu ‑se a esterilização em massa dos doentes mentais e dos degenerados sociais. Em 1936, os ciganos foram fechados em reservas perto das grandes cidades. Em 1937, milhares de «criminosos habituais» foram enviados para campos de concentração, sem qualquer processo legal. Hit ler autorizou as medidas, mas o instigador da repressão foi o seu chefe de polícia e dirigente da SS, Heinrich Himmler. Foi também Himmler que, em 1938, apelou a que todos os «associais» fossem detidos em campos de concentração.

O momento era significativo. Bem antes de 1937, os campos de concen‑tração, criados inicialmente para remover a oposição política, começaram a esvaziar ‑se. Os comunistas, os sociais ‑democratas e outros, detidos nos primeiros anos do domínio de Hitler, foram em grande medida esmagados, e a maioria foi libertada, eram homens despedaçados. Himmler, que se opu‑sera a estas libertações em massa, via o seu império em perigo de declínio e procurou novos usos para os seus campos de concentração.

Até àquele momento, ninguém sugerira seriamente que se usassem os campos de concentração para outros elementos a não ser os da oposição polí‑tica, mas se os enchesse com criminosos e marginais Himmler poderia come‑çar a expandir de novo o seu império. Via ‑se como muito mais do que um mero chefe de polícia; o seu interesse pela ciência — por todas as experiências que pudessem ajudar a criar uma raça ariana perfeita — era sempre o seu principal objetivo. Ao trazer aqueles degenerados para dentro dos campos de concentração, começava por se assegurar de um papel central na experiência mais ambiciosa do Führer, cujo objetivo era uma limpeza genética do povo alemão. Além disso, os novos prisioneiros proporcionariam uma força de tra‑balho imediata para a reconstrução do Reich.

A natureza e o objetivo dos campos de concentração sofreriam agora uma alteração. Com o número de prisioneiros políticos alemães a diminuir, os rejeitados sociais viriam substituí ‑los em grandes números. Entre os detidos pela primeira vez, haveria certamente tantas mulheres — prostitutas, peque‑nas criminosas, miseráveis — como homens.

Uma nova geração de campos de concentração iria agora ser construída de raiz. E com Moringen e outras prisões de mulheres já sobrelotadas, e dispendiosas, Himmler apresentou a proposta de construção de um campo de concentração para mulheres. Em 1938, convocou os seus conselheiros para debaterem a sua possível localização. É provável que tenha sido um

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 37 8/28/15 6:04 PM

Page 28: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

38

amigo de Himmler, o Gruppenführer Oswald Pohl, um administrador sénior da SS, quem apresentou a proposta de que o novo campo de concentração fosse construído na zona do lago Mecklenburg, perto de uma vila chamada Ravensbrück. Pohl conhecia a zona, porque tinha uma propriedade ali.

Mais tarde, Rudolf Höss diria que avisou Himmler de que o local era dema siado pequeno: o número de mulheres detidas aumentaria com toda a certeza, especialmente quando a guerra começasse. Outros chamaram a atenção para o facto de o terreno ser pantanoso e para a possibilidade de o campo de concentração demorar demasiado tempo a construir. Himmler arredou todas as objeções. A sua localização a apenas oitenta quilómetros de Berlim seria conveniente para inspeções, e ele viajava frequentemente para essas bandas, para visitar o seu amigo de infância, o famoso cirurgião da SS Karl Gebhardt, que dirigia a clínica médica Hohenlychen, a oito quilómetros de Ravensbrück.

Himmler ordenou então que os prisioneiros do campo de concentra‑ção de Sachsenhausen, nos arredores de Berlim, começassem a construir Ravensbrück logo que possível. Entretanto, o campo de concentração para homens em Lichtenburg, perto de Torgau, que estava já meio vazio, iria ser evacuado e o resto dos homens levados para o novo campo de concentração de Buchenwald, que abrira em julho de 1937. As mulheres destinadas ao novo campo de concentração poderiam ser detidas em Lichtenburg enquanto Ravensbrück estava a ser construído.

Dentro de um vagão de um comboio com grades, Lina Haag não fazia ideia de para onde se dirigia. Depois de quatro anos numa cela da prisão, foi ‑lhe dito, a ela e a dezenas de outras mulheres, que iam ser «transporta‑das». De algumas em algumas horas, o comboio parava numa estação, mas os nomes — Frankfurt, Estugarda, Mannheim — proporcionavam poucas pistas. Lina fitava as «pessoas comuns» nas plataformas — uma visão que já não tinha há anos — e as pessoas comuns olhavam fixamente, por sua vez, «para aquelas figuras fantasmagóricas com olhos encovados e cabelo enri‑çado». À noite, as mulheres eram tiradas do comboio e alojadas em prisões locais. Lina sentia ‑se horrorizada com as guardas. «Era inconcebível como, em face de toda aquela desgraça, elas conseguiam tagarelar e rir ‑se nos cor‑redores. A maior parte é devota, mas com uma espécie peculiar de devoção. Parecem esconder ‑se por trás de Deus, enojadas com a sua própria maldade.»

As mulheres da casa de correção de Moringen vieram juntar ‑se às outras no comboio e mantiveram ‑se juntas, em choque. Uma médica chamada Doris Maase entrou em Estugarda, juntamente com uma chusma de prostitutas de Düsseldorf. Doris, descrita na sua ficha da Gestapo como uma «estudante ver‑melha», tinha meio pente, que emprestou a Lina. A toda à volta, as «rameiras» e os «estafermos» soltavam gargalhadas, embora, como Lina admitiu a Doris, ao fim de quatro anos numa prisão, era provável que também ela parecesse uma «rameira».

Em Lichtenburg, os SS estavam à espera, com luvas de camurça e revól‑veres. Johanna Langefeld também estava à espera. Depois de ser despedida

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 38 8/28/15 6:04 PM

Page 29: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

39

da casa de correção de Brauweiler, Langefeld foi readmitida pelo gabinete de Himmler e foi ‑lhe oferecida uma promoção a guarda em Lichtenburg. Langefeld viria a afirmar que só aceitou o emprego na crença, mais uma vez, de que poderia cumprir a sua vocação de «reeducar prostitutas», o que era obviamente uma mentira: tinha ‑lhe sido oferecida uma promoção, um aumento de salário e alojamento para si e para o seu filho. De qualquer modo, Brauweiler já tinha demonstrado a Langefeld que as prostitutas e outras marginais deveriam ser eliminadas da sociedade, não reeducadas.

Ao mesmo tempo, chegou também a Lichtenburg Gertrud Kröffges, uma mulher de quem Langefeld provavelmente se recordava dos tempos da casa de correção. Kröffges fora parar a Brauweiler por não manter em dia os pagamen‑tos para o sustento dos seus filhos. Agora, estava a ser enviada para Lichtenburg porque «era incapaz de se emendar», como se afirmava na sua ficha da polícia, e porque, «devido ao seu estilo de vida imoral e associal, a Volksgemeinschaft [a comunidade racialmente pura] tem de ser protegida dela».

Nem mesmo o funcionário da prisão que registou as mulheres em Lich‑tenburg via razão para prender tais pessoas destituídas de tudo. Agnes Petry, uma das detidas em Düsseldorf, chegou «sem dinheiro», escreveu ele no cartão de registo. A única coisa que trazia era uma fotografia do marido. A palavra «Stutze» ficou registada na sua ficha, o que significava que era uma pessoa «dependente do Estado». «Poderia ser mandada para trás?», pergun‑tava ele numa carta ao chefe da polícia de Düsseldorf. «Ela tem alguém no mundo que possa ajudá ‑la?»

Lina Haag há muito tempo que tinha abandonado a esperança de que alguém ajudasse alguma delas. Em 12 de março de 1938, a Áustria foi anexada e, pouco depois, começaram a chegar à fortaleza resistentes austría‑cas, entre elas uma médica, uma cantora de ópera e uma carpinteira; todas tinham sido espancadas e violadas. «Se o mundo não protestava nem sequer contra a anexação brutal de territórios estrangeiros, era provável que protes‑tasse contra as chicotadas sofridas por algumas pobres mulheres que tinham protestado contra ela?», perguntava Lina.

A notícia de que Olga Benario, um nome dos tempos áureos da resistência comunista, se encontrava na fortaleza deu esperança a algumas mulheres. Olga foi trazida sozinha de Berlim numa carrinha da Gestapo, e escoltada diretamente para as masmorras de Lichtenburg. Algumas camaradas comu‑nistas conseguiram estabelecer contacto e encontraram ‑na desolada devido à recente separação da sua filha. Conseguiram passar mensagens e minúsculos presentes à socapa para a sua cela. Recordando o assalto espantoso ao tri‑bunal de 1928, algumas sonhavam com a evasão, mas Lina Haag disse que «não fazia sentido» tentar fosse o que fosse. «O Führer fica sempre na mó de cima e nós não passamos de pobres diabos — absolutamente esquecidas, desgraçadas...» Então, uma trapezista cigana chamada Katharina Waitz tentou escalar os muros da fortaleza. Foi detida e espancada. O comandante de Lichtenburg, Max Koegel, gostava de bater. Lina recorda que no dia de Páscoa ele espancou três mulheres nuas «até já não conseguir continuar».

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 39 8/28/15 6:04 PM

Page 30: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

40

Em 1 de outubro de 1938, o dia em que as forças de Hitler tomaram o Sudetenland, Koegel assestou mangueiras sobre as prisioneiras. Tinha ‑lhes sido ordenado que fossem para o pátio da prisão para escutarem o discurso de vitória do Führer, mas as testemunhas de Jeová recusaram ‑se a descer os degraus e as guardas forçaram ‑nas, arrastando mulheres de idade pelos cabelos. Quando começavam a ouvir ‑se os primeiros acordes de melodias prussianas, alguém segredou «vem aí a guerra», e de súbito a fortaleza irrompeu num clamor. Todas as testemunhas de Jeová começaram a berrar histericamente antes de tombarem de joelhos e se porem a rezar. As guardas começaram a atacar as prisioneiras e a multidão reagiu. Koegel ordenou que as mangueiras de incên‑dio fossem dirigidas contra as mulheres que rezavam, que foram derrubadas e esmagadas pela força dos jatos de água e mordidas por cães. Agarrando ‑se umas às outras, quase se afogaram, «como ratos a pingar», disse Marianne Korn, uma das mulheres que rezavam.

Pouco depois do motim, Himmler visitou a fortaleza para se assegurar de que a ordem tinha sido restaurada. O Reichsführer SS inspecionou Lichtenburg várias vezes, fazendo ‑se acompanhar pela chefe do movimento nazi de mulhe‑res, Gertrud Scholtz ‑Klink, para lhe exibir as suas prisioneiras. Nas suas visi‑tas, por vezes autorizava libertações. Um dia, libertou Lina Haag, na condição de que ela não falasse do tratamento que tinha recebido.

Himmler inspecionava também as guardas. Deve ter notado que Johanna Langefeld tinha uma certa autoridade — um jeito para acalmar as prisionei‑ras sem grande aparato —, porque a selecionou para futura chefe das guardas.

Foram as crianças da zona quem primeiro suspeitou de que alguma coisa ia ser construída na margem norte do Schwedtsee — ou lago Schwedt —, mas quando contaram aos pais, estes ordenaram ‑lhes que não dissessem nada. Até 1938, as crianças brincavam num terreno baldio perto do lago, onde havia menos árvores e podiam tomar banho. Um dia, disseram ‑lhes que o local estava interdito. Ao longo das semanas seguintes, os habitan‑tes da cidade local de Fürstenberg — da qual a vila de Ravensbrück é um pequeno subúrbio — assistiram à chegada de barcaças pelo rio Havel acima com materiais de construção. As crianças diziam aos pais que tinham visto homens com uniformes às riscas a cortarem árvores.

Ravensbrück, oitenta quilómetros a norte de Berlim, no extremo sul da região do lago Mecklenburg, era, como Himmler reconheceu em 1938, uma boa localização para um campo de concentração. As ligações ferroviárias e fluviais eram boas. Fürstenberg, rodeada por três lagos, o Röblinsee, o Baa‑lensee e o Schwedtsee, é atravessada pelo rio Havel, que se divide em vários canais na cidade.

Um outro fator que influenciou a escolha de Himmler foi a localização numa zona de beleza natural. Himmler acreditava que a purificação do sangue alemão deveria começar junto da natureza, e as forças revigorantes das flores‑tas alemãs desempenhavam um papel central na mitologia do Heimat — o solo alemão. Buchenwald — que significa floresta de faias — localizava ‑se

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 40 8/28/15 6:04 PM

Page 31: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

41

numa famosa zona florestal perto de Weimar, e vários outros campos de concentração foram deliberadamente construídos em locais de grande beleza. Algumas semanas depois da abertura de Ravensbrück, um curso de água aí existente foi declarado «uma fonte orgânica para a raça ariana». Fürstenberg sempre tinha sido popular junto dos amantes da natureza, que vinham andar de barco nos lagos ou visitar o palácio barroco de Fürstenberg.

No início da década de 1930, a cidade foi temporariamente um reduto comunista, e, nas tentativas iniciais dos nazis de estabelecerem o seu con‑trolo, houve várias batalhas de rua, mas ainda antes de Hitler se tornar chanceler a oposição já tinha sido erradicada. Foi nomeado um presidente da câmara nazi, e um sacerdote nazi, o pastor Märker, ficou encarregado da igreja evangélica da cidade. Os «cristãos alemães» de Hitler, uma força em zonas rurais como aquela, organizavam festas e desfiles nacionalistas.

No final da década de 1930, já quase não havia judeus em Fürstenberg. Eva Hamburger, uma hoteleira judia, resistiu à expulsão, mas depois do pogrom da «Kristallnacht», a «noite dos vidros partidos», de 9 e 10 de novem bro de 1938, também ela abandonou a cidade. Em Fürstenberg, nessa noite, o cemi‑tério judeu foi destruído e o hotel de Eva Hamburger atacado. Pouco depois, o jornal local noticiava que a última propriedade de judeus, o número 3 de Röbinsee, tinha sido vendida.

Como a maior parte das pequenas cidades alemãs, Fürstenberg sofrera bastante com a crise económica, e o aparecimento de um campo de con‑centração traduzia ‑se em postos de trabalho e mais comércio. O facto de as prisioneiras serem mulheres não era controverso. Valesca Kapler, a mulher de meia ‑idade de um lojista, era a líder eficiente do Frauenschaft local (o grupo nazi de mulheres), e fazia frequentes palestras às senhoras da cidade em que explicava os malefícios da maquilhagem, do tabaco e do álcool e o fardo que os «associais» constituíam para o Estado. Josef Goebbels chegou até a fazer um discurso em Fürstenberg em que disse às pessoas da cidade: «Se a família é a fonte de força da nação, a mulher é o seu cerne e o seu centro.»

Na primavera de 1939, com a data de abertura do campo de concentração a aproximar ‑se, as mulheres eram instadas a «servir na frente doméstica» —, o que incluía trabalharem como guardas do campo de concentração —, mas nada de oficial foi dito sobre o recrutamento; de facto, nada de oficial foi dito sobre o campo de concentração. Só uma pequena referência no Forest News* a «um acidente perto do grande estaleiro de construção» proporcio‑nava alguma pista de que o campo de concentração estivesse a ser construído.

No início de maio, realizou ‑se um concerto de música de Haydn e Mozart, e a Gestapo local promoveu um evento desportivo de tiro e lança‑mento de granadas. No cinema passou uma comédia romântica. Os jornais noticiavam que, após um inverno duro, se procuravam donativos para obras de caridade, e apareciam avisos de falências.

* Inglês no original. (NR)

* Em inglês no original. (NT)

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 41 8/28/15 6:04 PM

Page 32: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

42

Durante todo este tempo, a eclusa do rio abria ‑se constantemente para deixar passar barcaças com materiais de construção, e o muro do campo de concentração tornava ‑se visível da margem do lago onde se localizava a cidade. Várias mulheres da zona candidataram ‑se a um emprego no campo, entre elas Margarete Mewes, uma jovem mãe que era criada de servir. No pri‑meiro domingo de maio, realizaram ‑se as tradicionais comemorações do Dia da Mãe em Fürstenberg. Frau Kaper entregou Cruzes de Mãe às mulheres que tinham tido mais do que quatro filhos e que assim tinham respondido ao apelo de Hitler para multiplicar os genes arianos.

Em 15 de maio, numa manhã de sol, vários autocarros azuis passaram pela cidade e viraram para o «estaleiro de construção». Antes do nascer desse dia, os mesmos autocarros azuis tinham estacionado diante dos portões do castelo de Lichtenburg, a cerca de 480 quilómetros a sul. Momentos depois, pela ponte levadiça do castelo desfilaram figuras femininas, com pequenos sacos nas mãos, e entraram para os veículos. Era uma noite sem nuvens, mas dentro dos autocarros estava bastante escuro. Mulher alguma teve pena de ver a fortaleza preta e maciça desaparecer por trás delas na escuridão, embora nenhuma fizesse ideia do que as aguardava.

Algumas das mulheres atreviam ‑se a esperar que a viagem as levasse a algum lugar melhor, e uma viagem — qualquer viagem — era por si só uma amostra de liberdade, mas as prisioneiras políticas avisaram que não havia hipótese de irem para algo melhor. A incursão seguinte de Hitler na Checoslováquia era só uma questão de tempo. Maridos, irmãos, pais, filhos estavam a morrer mais depressa do que nunca em Buchenwald, Sachsenhau‑sen e Dachau. Várias mulheres andavam com avisos oficiais dessas mortes nos seus sacos, juntamente com fotografias dos filhos e maços de cartas.

As mulheres judias pensavam nos que tinham sido detidos no pogrom da Kristallnacht.4 No entanto, paradoxalmente, precisamente porque eram judias, estas mulheres tinham mais razões do que muitas outras para acalentarem esperanças naquele momento. O horror da Kristallnacht seis meses antes tinha traumatizado os judeus alemães e chocado o resto do mundo, levando ‑o não a intervir, mas a oferecer mais vistos aos que agora estavam desesperados por fugir. Os nazis estavam a encorajar a partida dos judeus para poderem apoderar ‑se das suas propriedades e dos seus bens. Seis meses depois dos pogroms de novembro, mais de cem mil judeus alemães já tinham emigrado e muitos mais estavam ainda à espera dos documentos necessários para o fazer.

Os judeus que se encontravam nas prisões e nos campos de concen tração tinham ficado a saber que também eles poderiam emigrar, desde que tives‑sem um visto e fundos para a viagem. Entre os que acalentavam a esperança de receberem em breve os documentos necessários encontrava ‑se Olga

4 Dezenas de milhares de judeus alemães do sexo masculino foram detidos em campos de concentração depois da Kristallnacht, mas as mulheres judias não tinham sido detidas, prova‑velmente por receio de criar controvérsia e por não haver ainda espaço suficiente para as pôr atrás das grades naquela altura.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 42 8/28/15 6:04 PM

Page 33: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

43

Benario. Embora a sua mãe a tivesse renegado, a sogra brasileira de Olga, Leocadia, bem como a irmã de Carlos Prestes, Lígia, empenhavam ‑se incan‑savelmente no caso de Olga desde que tinham conseguido obter a libertação da sua bebé, Anita.

Imediatamente antes de sair de Lichtenburg, Olga escreveu a Carlos, que se encontrava detido numa prisão no Brasil. «A primavera chegou finalmente e os rebentos verde ‑claros das árvores olham curiosos por cima dos muros do pátio da nossa prisão. Mais do que nunca anseio por algum sol, por beleza e sorte. Virá o dia em que nos reuniremos com Anita e Leocadia, nós os três felizes? Perdoa ‑me estes pensamentos, eu sei que tenho de ser paciente.»

Quando amanheceu na zona campestre da região de Mecklenburg, a luz do sol penetrou pelas fendas do oleado e as prisioneiras sentiram ‑se mais animadas. As austríacas cantavam. Quando os autocarros chegaram perto de Ravensbrück, era meio ‑dia e fazia um calor sufocante. As mulheres respira‑vam a custo. Os autocarros saíram da estrada e pararam. Abriram ‑se as portas e as que estavam à frente viram um lago cintilante. O odor do pinhal encheu o autocarro. Uma comunista alemã, Lisa Ullrich, reparou numa «aldeia esparsamente povoada situada junto a um pequeno lago idílico, rodeada por uma escura floresta de abetos».

O coração das mulheres «saltou de alegria», recordou Lisa, mas antes de todos os autocarros pararem ouviram ‑se gritos, berros, estalar de chicotes e os latidos de cães. «Recebeu ‑nos um chorrilho de ordens e de insultos quando começámos a sair dos autocarros. Apareceram hostes de mulheres por entre as árvores — guardas de saia, blusa e boné, com chicotes nas mãos, algumas com cães a ganirem e a precipitarem ‑se para os autocarros por entre as árvores.»

Ao descerem dos autocarros, várias mulheres desmaiaram e as que se debruçavam para as ajudarem eram derrubadas por terra pelos cães ou chico‑teadas. Não o sabiam ainda, mas uma das regras do campo de concentração era que ajudar outra prisioneira constituía uma infração. «Cadela, cabra suja, põe ‑te de pé. Cadela preguiçosa.» Uma outra regra era que as prisioneiras tinham sempre de formar filas de cinco. «Achtung, Achtung. Filas de cinco. Mãos ao lado do corpo.»

As ordens ecoavam por entre as árvores enquanto as prisioneiras que ficavam para trás eram pontapeadas por botas militares. Petrificadas com o terror, de olhos pregados no solo arenoso, as mulheres faziam os possíveis por não darem nas vistas. Evitavam o olhar umas das outras. Algumas gemiam. Mais um estalar de chicotes e fez ‑se silêncio total.

A rotina bem ensaiada da SS cumprira o seu objetivo — causar o máximo de terror no momento da chegada. Quem tivesse pensado em oferecer resis‑tência, a partir daquele momento ficaria submissa. O ritual já se desenrolara centenas de vezes em campos de concentração masculinos e estava agora a ser representado pela primeira vez nas margens do Schwedtsee. Seria pior para as prisioneiras que chegaram mais tarde, pela calada da noite, ou em tempo de neve, sem compreender a língua. Mas todas as sobreviventes de Ravensbrück recordariam o trauma da chegada; todas recordariam o seu próprio silêncio.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 43 8/28/15 6:04 PM

Page 34: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

44

* * *

Este primeiro grupo mantém ‑se de pé e em silêncio ao calor durante cerca de duas horas. Quando começa a contagem, Maria Zeh, de Estugarda, olha para cima e vê que a colza está em flor. É esbofeteada. «Die Nase nach vorne!», berra uma guarda — o nariz para a frente.

As mulheres são contadas de novo e a seguir mais uma vez — mais uma lição a aprender: se alguém sair da fila ou desmaiar ou se a contagem estiver errada, começa tudo de novo. «E antes de marcharmos entregam um papel à chefe das guardas com a contagem», recorda Lisa Ullrich. A chefe das guardas é Johanna Langefeld. Está à parte e verifica agora os números. Dá sinal para as mulheres marcharem. A figura corpulenta de Max Koegel também lá está.

Avançando, as prisioneiras passam por casas meio construídas à sua esquerda, mas só se apercebem vagamente do que as rodeia. Entram para uma vasta clareira onde todas as árvores foram cortadas e todas as ervas arran‑cadas, deixando areia e pântano. Neste terreno baldio ergue ‑se um enorme muro cinzento. As mulheres entram por um portão e apercebem ‑se de que entraram no novo campo de concentração.

«Achtung, Achtung, filas de cinco.» Estão de pé numa praça inóspita de areia, com marcas no chão como as de uma parada militar. Cheira ‑lhes a madeira nova e a tinta fresca. A toda a volta há sombrios barracões de madeira. Algumas das mulheres reparam em canteiros de flores verme‑lhas. O sol brilha impiedoso. O portão fecha ‑se por trás das mulheres.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 44 8/28/15 6:04 PM

Page 35: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

45

CAPÍTULO 2

SANDGRUBE

«Mãos ao lado do corpo. Filas de cinco. Olhar para a frente.» Em grupos, as prisioneiras marcham na direção de um edifício novo à direita do por‑tão, onde se inicia o ritual seguinte: o banho. O primeiro grupo entra e vê mesas com guardas atrás delas e pilhas de peças de vestuário às riscas. Tudo tem de ser despido. As mulheres começam a tirar a roupa. «Schnell, schnell.» Algumas ficam paradas, com fitas a segurarem panos para o fluxo menstrual, e olham para as guardas, que lhes berram: «Tirem tudo.»

E tudo é tirado e atirado para grandes sacos de papel pardo, juntamente com todas as peças de roupa e todos os bens materiais. As prisioneiras entregam tudo: últimas cartas, fotografias de filhos, lenços bordados, gorros, pequenos cestos, poemas, pentes. «Até não restar nada.» Alianças de casa‑mento também.

Completamente nuas, as mulheres fitam de novo os pés, mas algumas olham para cima e gritam ao verem que os oficiais da SS estavam ali presentes desde o início, a olharem fixamente para elas. Eles riem ‑se e berram insultos ao verem a humilhação das mulheres.

A seguir, chegam as barbeiras e algumas das mulheres são empurradas para o lado. «Beeilt euch, beeilt euch!» — Avancem — e o cabelo das mulhe‑res selecionadas é rapado. A seguir aparece outra mulher. Manda as mesmas mulheres afastarem as pernas e rapa ‑lhes os pelos púbicos.

Poucas horas depois da sua chegada, em 15 de maio de 1939, as primei‑ras das 867 prisioneiras transferidas de Lichtenburg para Ravensbrück já se despiram, foram lavadas, inspecionadas para ver se tinham piolhos e em muitos casos rapadas, porque a Oberaufseherin não permite infestações ali. As prisioneiras receberam em seguida novo vestuário: vestidos e casacos de algodão às riscas azuis e brancas, um lenço de cabeça branco, meias e calçado grosseiro de madeira, como socos.

A cada uma foi dado um número, impresso num pequeno pedaço de tecido branco. Era o mesmo número que lhes tinha sido atribuído à chegada a Lichtenburg — de 1 a 867. Também lhes foi dado um triângulo colorido de feltro. Passaram ‑lhes para as mãos uma agulha e linha e ordenaram ‑lhes

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 45 8/28/15 6:04 PM

Page 36: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

46

que cosessem os triângulos ao ombro esquerdo dos seus casacos. A cor do triângulo indicava em que categoria a prisioneira tinha sido colocada: preto para «associais» — prostitutas, mendigas, pequenas criminosas, lésbicas; verde para criminosas habituais; vermelho para prisioneiras políticas; lilás para testemunhas de Jeová; amarelo para judias. Estas foram subdivididas, dependendo da razão para a sua detenção. Todas as judias usavam um triân‑gulo amarelo, mas as identificadas como «Pol. Jude» — detidas por crimes políticos — usavam um triângulo amarelo sobre um fundo vermelho. Nas judias políticas incluía ‑se a categoria mais numerosa, as que tinham sido presas por Rassenschande, relações com um não ‑judeu; destas havia noventa e sete. As judias presas por serem associais usavam um triângulo amarelo sobre um fundo preto.

Depois de serem cosidos os números e os triângulos, ouviu ‑se o som de uma sirene pelo sistema de altifalantes e as mulheres perfilaram ‑se de novo na Appellplatz antes de marcharem, por categoria, para blocos separados, lide‑radas pela sua Blockführer, a guarda do bloco. As judias foram levadas para o «Judenblock», exceto Olga Benario, que foi levada para o outro lado.

Dentro dos blocos, a cada mulher foram atribuídos uma cama num beli‑che, uma tigela, um prato, um copo de alumínio, uma faca, um garfo e uma colher, assim como um pequeno pano para secar e polir os utensílios. Qual‑quer mancha nos utensílios acarretaria uma participação a Langefeld, que tinha dado instruções exatas sobre o polimento. Tal como estava acordado ao abrigo do Lagerordnung do campo de concentração, a Langefeld competia o controlo de «questões femininas», que incluía autoridade exclusiva sobre os blocos de habitação; Koegel e os seus homens não tinham autorização de entrada neles a não ser que fossem acompanhados por uma guarda.

Para a sua higiene pessoal, foram dados a cada mulher uma escova de den‑tes, um copo, um pedaço de sabão e uma toalha pequena. Qualquer item que fosse perdido implicaria uma «participação» à Oberaufseherin. A cada mulher foi atribuída uma minúscula prateleira para guardar os seus pertences; o desaparecimento de qualquer objeto seria motivo para uma «participação».

Havia uma série de regras para fazer a cama. Tinha de ser feita «ao estilo prussiano», como se requeria em todos os campos de concentração, mas ali Langefeld deu também as suas próprias instruções específicas: as almofadas deveriam ser sacudidas de modo a que os cantos formassem ângulo reto com a cama; o colchão deveria ficar perfeitamente liso, o que era impossível, visto que o seu enchimento era de serradura.

Todas as mulheres recordavam que lhes era requerida uma precisão parti‑cular na forma de dobrar o cobertor aos quadrados azuis e brancos. «O cober‑tor tinha de tapar a almofada e de ficar alinhado com a beira da cama, com a linha de quadrados absolutamente direita», recordou Fritzi Jaroslavsky, uma prisioneira austríaca, dobrando nervosamente a bainha de uma toalha de mesa enquanto falava. «Até mesmo dois centímetros para fora do colchão implicavam que a guarda se pusesse a berrar “Vaca preguiçosa, cadela estú‑pida” e a dar ‑nos pontapés ou a bater ‑nos e a berrar “Participação”.»

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 46 8/28/15 6:04 PM

Page 37: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

47

O pior de tudo eram as regras da Appell, a chamada. Às cinco da manhã, o campo de concentração era acordado por uma sirene e as prisioneiras mar‑chavam para fora dos blocos para se perfilarem em filas de cinco, de mãos ao lado do corpo e em sentido enquanto era feita a contagem. Mesmo naqueles primeiros tempos, demorava cerca de meia hora a acertar com os números, e às cinco da manhã soprava um vento frio do Schwedtsee, trespassando o vestuário de algodão. «Achtung! Achtung! Mãos ao lado do corpo, filas de cinco.» Por vezes, Langefeld fazia a Appell em pessoa, mas usualmente dei‑xava essa tarefa à sua delegada, Emma Zimmer, que também tinha vindo de Lichtenburg. Zimmer, uma mulher de cinquenta e um anos que tinha o «pulso solto» — gostava de esbofetear as prisioneiras —, percorria as filas com um dossiê grande, com o qual batia nas cabeças das prisioneiras ao menor movimento ou som. Por vezes, usualmente quando estava bêbeda, Zimmer — a quem as prisioneiras puseram a alcunha de «Tia Emma» — também as pontapeava com as suas botas militares.

Langefeld nunca batia nem dava pontapés, embora por vezes pregasse uma forte bofetada numa prisioneira, particularmente quando ouvia uma «participação». A prisioneira culpada da infração era levada ao gabinete de Langefeld para responder à acusação — de ter perdido uma caneca, de não ter dobrado bem o cobertor —, que podia tentar justificar. Em seguida, Lan‑gefeld tomava a sua decisão e, se a acusação ficasse provada, ela esbofeteava a prisioneira e anunciava o castigo, que podia ser limpar as casas de banho, embora a punição preferida de Langefeld fosse obrigar a prisioneira a per‑manecer de pé durante várias horas sem comer. Se a mulher castigada caísse, seria deixada por terra durante algum tempo antes de ser levada. Para casos sérios, Langefeld estava habilitada a usar camisas de forças e jatos de água.

Depois de Zimmer terminar a contagem matinal, as mulheres regressa‑vam aos seus blocos, onde um líquido preto que passava por café era ser‑vido com um pedaço de pão, a porção diária, que podia ser comida naquele momento ou guardada na prateleira para mais tarde. A sirene soava mais uma vez e começavam as seleções para os grupos de trabalho. As prisionei‑ras perfilavam ‑se de novo e em seguida era ‑lhes ordenado que pegassem em ferramentas e marchassem para o trabalho — recolher areia às pazadas ou construir uma estrada — a cantar marchas alemãs. No regresso, ao fim do dia, eram contadas novamente.

Ao fim de alguns dias, a maior parte das prisioneiras de Lichtenburg já tinha sido transferida para Ravensbrück. As regras de Langefeld já tinham sido decoradas e a ordem estava estabelecida. Os sacos de papel pardo com as roupas e os pertences das prisioneiras já tinham sido levados para a Wäs‑cherei, para as roupas serem lavadas e em seguida passadas a ferro com um gigantesco ferro a vapor. Cada item era depois colocado de novo no seu saco de papel pardo numerado e enviado para a Effektenkammer, na porta ao lado.

A Effektenkammer estava dividida em quatro compartimentos. Num deles encontrava ‑se uma mesa comprida assente em cavaletes, onde todas as peças de vestuário e todos os pertences das prisioneiras eram espalhados para serem

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 47 8/28/15 6:04 PM

Page 38: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

48

em seguida cuidadosamente arrumados. O compartimento ao lado era um gabinete com duas secretárias, duas máquinas de escrever e um grande armá‑rio de metal contendo centenas de fichas, nas quais estavam escritos o nome e o número de cada prisioneira e pormenores sobre todas as peças de vestuário e todos os bens pessoais, com cópias enviadas para o gabinete de Langefeld.5

Os objetos de valor eram guardados nos armários de metal, fechados à chave por uma questão de segurança, e cuidadosamente registados. As roupas eram dobradas e colocadas em sacos de papel pardo novos, que eram pendurados em cabides; os cabides eram levados para serem pendurados em varões no sótão grande por cima do gabinete de Langefeld. Quando alguma prisioneira era libertada, mandavam ‑na à Effektenkammer, onde dizia o seu número a uma funcionária, que ia ao sótão e tirava o seu saco de roupas usando um varão com um gancho.

Mais tarde, quando chegaram prisioneiras da Polónia, da Rússia e da França, algumas traziam malas cheias de bens pessoais, que eram todos meti‑dos em sacos de papel e registados da mesma maneira, disse Edith Sparmann, uma prisioneira alemã da Checoslováquia que trabalhava na Effektenkammer. Os sacos eram enormes e de um papel pardo muito forte, alinhavados dos lados. Um dos compartimentos estava exclusivamente reservado para estes sacos de papel pardo, prontos para os grandes transportes. «Havia uma série de objetos de valor mais tarde», disse Edith, que também se recordava de como Langefeld ia frequentemente à Effektenkammer para verificar as coisas. «Ela não era tão má como algumas das outras. Deixou a minha mãe ficar com a aliança de casamento.»

Nos primeiros dias, foram também atribuídas tarefas na cozinha às prisioneiras e as rações para cada bloco foram cuidadosamente calculadas, dependendo da contagem das prisioneiras na noite anterior. Na Revier, a enfermaria, todas as prisioneiras eram submetidas a um exame vaginal; se alguma delas tivesse sífilis, que era o caso de Agnes Petry, esse facto ficava registado na sua ficha. As mulheres que estivessem grávidas iam ter o bebé a um hospital das redondezas, em Templin. O bebé era dado para adoção e a mulher voltava para o campo de concentração.

Ao fim dos primeiros sete dias, a contagem — incluindo algumas novas chegadas a acrescentar às de Lichtenburg — perfazia um total de 974 prisio‑neiras no campo de concentração. Destas, 114 usavam um triângulo vermelho (prisioneiras políticas); 388 testemunhas de Jeová usavam um triângulo lilás; 119, verde (criminosas habituais); 240, preto (associais); 137, amarelo (judias) e algumas das categorias sobrepunham ‑se. A partir daquele momento, a cada nova mulher que chegava era dado um número em sequência, de modo que, simplesmente com base no número, era imediatamente evidente, tanto para as guardas como para as outras prisioneiras, quem já estava há mais tempo

5 Segundo prisioneiras secretárias, quando o campo de concentração foi libertado cinco anos depois, os ficheiros de algumas das prisioneiras continham uma quantidade de papel suficiente para cobrir três metros quadrados.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 48 8/28/15 6:04 PM

Page 39: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

49

no campo de concentração e quem tinha chegado mais tarde. A primeira prisioneira a quem foi dado um número «puramente» de Ravensbrück (ou seja, que não tinha sido transferida de Lichtenburg) era uma professora alemã de trinta e sete anos detida por resistência comunista, chamada Clara Rupp. Chegou em 25 de maio e foi ‑lhe atribuído o número 1415.

Até ao final da primeira semana, as fichas de todas as primeiras mulheres a chegarem já tinham sido copiadas e arquivadas e as suas roupas arrumadas em sacos de papel pardo pendurados acima da cabeça de Langefeld. O tra‑balho de Langefeld, no entanto, ainda mal tinha começado.

O gabinete de Johanna Langefeld, dentro de um bloco como os outros perto do portão, não era tão grandioso como as instalações vastas do coman‑dante, construídas em pedra, mas a localização do seu bloco era ideal. Da secretária, avistava a Appellplatz, o que lhe permitia observar muito do que ali se passava.

O seu gabinete contava também com bastante pessoal. Uma série de funcionários e de datilógrafas sentava ‑se a secretárias, com as prisioneiras em fila à espera de darem pormenores sobre a sua detenção, o seu historial médico e o contacto do familiar mais próximo, que eram anotados em várias fichas diferentes. Em seguida, o mensageiro de Langefeld levava cópias das informações sobre as prisioneiras aos departamentos relevantes no campo de concentração.

Nos primeiros dias, houve uma série de questões administrativas a tra‑tar. Chegavam pedidos de informação de departamentos policiais. «O KZ [Konzentrationslager, campo de concentração] paga o preço do bilhete de comboio de uma prisioneira?», queria saber a polícia de Hamburgo. «Düs‑seldorf devia mandar chapéu?» Chegavam cartas da Cruz Vermelha alemã, transmitindo pedidos de informação sobre prisioneiras recebidas da Cruz Vermelha internacional em Genebra. Uma filha, Tanja Benesch, queria notícias da sua mãe, Susi. E Langefeld viu ‑se obrigada a dizer a Max Koegel que as máquinas de lavar roupa do campo de concentração eram só para o vestuário das prisioneiras e para a roupa de cama; ele teria de mandar lavar as suas roupas noutra parte.

Mais trabalhos foram atribuídos às prisioneiras. Hanna Sturm, uma car‑pinteira comunista austríaca, foi incumbida de construir vedações e martelar pregos. Surgiram bastantes problemas de disciplina. Uma outra austríaca, cha‑mada Marianne Wachstein, chegou de camisa de noite e não sabia quem era.

Hedwig Apfel, que dizia ser cantora de ópera e de Viena, atirou o seu colchão ao chão no primeiro dia e mal tinha parado de gritar desde então. Alguns dias depois da abertura do campo de concentração, lançou ‑se uma busca a nível nacional por Katharina Waitz, a trapezista cigana, que escapara novamente, embora ninguém soubesse como.

As testemunhas de Jeová causaram mais problemas a Max Koegel, desta vez recusando a sua oferta de as libertar. A troco da sua libertação, fora dito às mulheres, simplesmente teriam de assinar um papel a renegar a sua fé,

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 49 8/28/15 6:04 PM

Page 40: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

50

mas todas recusaram, repetindo que o Führer era o Anticristo. Foi em grande medida devido ao motim das testemunhas de Jeová em Lichtenburg que Koe‑gel inicialmente solicitou a construção de um bloco de detenção em Ravens‑brück. Disse ao seu superior da SS, Theodor Eicke, algumas semanas antes da abertura do campo de concentração: «Vai ser impossível manter a ordem se não pudermos vergar aqueles estafermos histéricos. Privá ‑las de comida não vai pô ‑las submissas sem alguma forma de detenção rigorosa.»

Embora aquele seu primeiro pedido tenha sido recusado, Koegel obteve autorização para converter um bloco de alojamento num «bloco de puni‑ção», um Strafblock, e vários «estafermos histéricos» não tardaram a ser atirados lá para dentro. O Strafblock situava ‑se a alguma distância dos outros blocos, por trás de arame farpado. As prisioneiras eram enviadas para lá por crimes tais como chegarem repetidamente atrasadas à Appel, não fazerem a cama de acordo com as regras ou se recusarem a cumprir uma ordem. As prisioneiras do Strafblock eram forçadas a trabalhar mais horas, nos piores grupos, sem dia livre. Eram usadas formas de punição como camisas de forças e jatos de água.

Anexadas a um dos extremos do Strafblock, foram construídas algumas celas solitárias em madeira. A Gestapo de Berlim tinha solicitado a cons‑trução dessas celas para encarcerar prisioneiras que ainda estivessem sob interrogatório, embora começassem também a ser detidas outras mulheres em prisão solitária, entre elas Marianne Wachstein, a austríaca que tinha chegado de camisa de noite. Fecharam ‑na numa cela depois de ela se recusar a assinar um documento relacionado com a sua detenção e por ter protestado que os seus direitos humanos estavam a ser violados.

Como Marianne explicou mais tarde, recusou ‑se a assinar porque não fazia ideia do motivo por que estava ali; vinte e quatro horas antes, tinha sido arrancada, inconsciente, de uma cela numa prisão em Viena onde estava detida por «insultar» o Führer. «Do que me lembro a seguir é de acordar em camisa de noite num vagão de um comboio. Belisquei ‑me, porque julguei que estava a sonhar; não era sonho, era a realidade.»

Um guarda no comboio disse ‑lhe inicialmente que ela estava a ser levada para um manicómio. «Isso pôs ‑me feliz.» Depois, o comboio pas sou por Salzburgo «e eu compreendi que estava a ser raptada para a Alemanha. Sentia ‑me muito perturbada e não conseguia pôr ‑me de pé nem andar». Um guarda berrou ‑lhe e começou a desferir ‑lhe pancadas na cabeça. «Comecei a vomitar. Ele agarrou em mim, puxou ‑me para cima, atirou ‑me para um banco e fechou a porta.» Sem saber o que estava a passar ‑se, Marianne foi conduzida para Ravensbrück e obrigada a assinar um documento que não lhe permitiram ler. «Então, eu disse, Deus vai vingar ‑me e os comunistas vão ter a sua vingança do que os nazis fizeram.»

Nessa altura, Marianne foi levada à presença do comandante e punida com quarenta e dois dias de «detenção agravada», o período máximo segundo as regras do Strafblock, um documento com várias páginas. Para as prisioneiras condenadas a prisão solitária, a «detenção simples» permitia ‑lhes ter um

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 50 8/28/15 6:04 PM

Page 41: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

51

colchão e um cobertor na cela e alguma luz; era ‑lhes dado café e pão uma vez por dia e uma refeição quente a cada quatro dias. As prisioneiras condenadas a «detenção agravada» recebiam as mesmas rações, mas ficavam fechadas numa cela escura sem colchão nem cobertor, só com um balde e nada mais.

Koegel decidia todos os casos do Strafblock sem consultar Langefeld, embora a delegada dela, Emma Zimmer, que dirigia o bloco, mantivesse a Oberaufsehe‑rin bem informada. Segundo Ilse Gostynski, algumas guardas sentiam ‑se tão obviamente descontentes com as condições nos primeiros tempos que foram despedidas. Entre as que tinham vindo de Lichtenburg havia «uma lésbica, muito decente para com as prisioneiras, mas frequentemente bêbeda», que foi despedida por ser «demasiado bondosa». Três outras foram ‑se embora porque «já não conseguiam aguentar mais aquilo».

A própria Langefeld afirmaria mais tarde que, quando chegou a Ravens‑brück, acreditava ainda que o seu papel seria o de «reeducar prostitutas». A verdade é que ela não podia recusar uma promoção como aquela, especial‑mente vinda do próprio Reichsführer da SS. Era agora a mulher mais importante no império dos campos de concentração de Himmler. E por si só as condições oferecidas eram tão atraentes que seria muito difícil desistir do emprego.

Langefeld e todas as suas guardas devem ter ficado agradavelmente sur‑preendidas ao verem o seu alojamento. Várias destas mulheres eram viúvas ou divorciadas e, tal como Langefeld, tinham sido transferidas de Lichten‑burg, depois de trabalharem vários anos em prisões e em casas de correção. Uma mulher de meia ‑idade chamada Ella Pietsch, treinada para ser guarda de casas de correção, não tinha mais nenhum sítio para onde ir, uma situa‑ção em que se encontrava também Jane Bernigau, que anteriormente traba‑lhara em orfanatos. Ambas concorreram ao emprego em Ravensbrück por causa do salário e da segurança que proporcionava.

Outras eram operárias fabris que tinham perdido o emprego. Ottilie Lotz con‑seguiu aquele emprego por acaso. Depois de o seu marido mor rer, Lotz mudou‑‑se para Lichtenburg para estar mais perto da filha; arranjou emprego como funcionária administrativa na fortaleza e foi promovida a guarda.

Estas mulheres do quadro do pessoal do campo de concentração estavam alojadas em boas casas com telhados inclinados situadas entre os pinheiros e com vista para o lago. A cerca de cem metros, fora dos muros do campo de concentração, ficavam perto, mas ao mesmo tempo estavam suficiente‑mente distantes dele para possibilitar uma sensação de separação do trabalho. Muitas dessas casas estavam ainda a ser construídas e havia prisioneiros a trabalharem por toda a parte — a carregarem tijolos das barcaças atracadas no lago —, mas algumas das casas já se encontravam acabadas. Os interiores estavam decorados com gosto. Os quartos ficavam dos lados de uma esca‑daria central, e cada um deles tinha cortinados bonitos e mobiliário novo. Cada quarto era partilhado por duas mulheres, tendo cada uma delas o seu guarda ‑fatos e a sua cómoda.

O apartamento da chefe das guardas era maior do que os outros e ela teve autorização para trazer consigo Herbert, agora com onze anos, para viver

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 51 8/28/15 6:04 PM

Page 42: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

52

com ela; ele frequentaria a escola local. Às guardas que tinham filhos foram prometidas vagas grátis no infantário do pessoal, que abriria em breve — várias mães solteiras tencionavam trazer os filhos com elas.

Mais acima na encosta, por entre as árvores, ficavam as casas mais grandio‑sas dos oficiais da SS, rodeadas por grandes jardins. A casa de Koegel, onde ele vivia com a sua mulher, Marga, tinha soalhos de parquet e uma escadaria elegantemente esculpida. Pela casa havia chifres de veados e outros troféus de caça pendurados; havia também chifres de veados pendurados por cima do pórtico exterior.

A localização das moradias do pessoal da SS, distante do campo de con‑centração, num local natural agradável, era uma característica comum a todos os campos. A intenção era levar os funcionários da SS a sentirem ‑se contentes no seu ambiente. Em Ravensbrück, os homens tinham o seu pró‑prio campo de jogos da SS, enquanto as mulheres podiam ir andar de barco no lago no verão ou fazer piqueniques nos bosques.

Para as mulheres mais jovens, não eram só o salário e as condições que as atraíam: a perspetiva de conhecerem um atraente oficial da SS era outro fator apelativo; ao mesmo tempo, às que eram lésbicas — uma minoria sig‑nificativa —, Ravensbrück oferecia oportunidades especiais para conhecerem outras mulheres, particularmente numa época em que o lesbianismo, como a homossexualidade em geral, era fortemente reprovado. As novas recrutas ficaram também satisfeitas ao encontrarem uma cantina do pessoal bem abas‑tecida, e na bonita cidade de Fürstenberg havia um cinema, vários bares e um salão de cabeleireiro onde se podia fazer uma ondulação permanente à moda. Pouco tempo depois de chegarem, as mulheres enviaram postais à família e aos amigos descrevendo o seu novo emprego com orgulho. Várias guardas tinham álbuns de fotografias e diários do período passado em Ravensbrück com imagens da decoração «luxuosa» dos seus apartamentos.

As guardas com cães, que tinham um estatuto especial, tiravam fotografias com os seus cães ao lado. Gertrud Rabenstein, a guarda conhecida em Lich‑tenburg como «Gustav de Ferro», tirou fotografias com Britta, a sua cadela pastora ‑alemã, de pé junto ao muro do campo de concentração. Rabenstein era divorciada e tinha perdido a custódia do seu filho. Organizou um álbum de fotografias para lhe dar a conhecer algo da sua vida no campo de concentração. «Os cães foram treinados para atacar pessoas com uniforme de prisioneiro», disse ela. Ao lado das imagens de Gertrud com Britta aparecem cenas felizes de mãe e filho de férias.

No julgamento de Rabenstein no pós ‑guerra, o filho foi chamado a pres‑tar declarações sobre a mãe e disse que o lema dela era: «Sê dura. Sê dura. Ser dura é bom. Não sejas sentimental.» Disse que ela costumava contar ‑lhe uma história sobre como uma vez tinha visto um ferreiro a bater o metal e este a endurecer. «Isso foi bom.»

As guardas depressa se instalaram e Langefeld atribuiu ‑lhes as suas tare‑fas. Várias ficaram encarregadas dos blocos enquanto outras deveriam vigiar os grupos de trabalho no exterior. Langefeld deu a todas instruções sobre o

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 52 8/28/15 6:04 PM

Page 43: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

53

comportamento a adotar; por exemplo, cruzar os braços ou sentar ‑se na pre‑sença de prisioneiras era proibido e os mexericos constituíam uma infração que poderia ser punida com despedimento. As guardas só poderiam visitar as instalações masculinas com a permissão de Langefeld.

Em questões mais alargadas relativamente ao tratamento das prisioneiras, no entanto, rapidamente se tornou evidente que muitas das guardas — par‑ticularmente as que vigiavam os grupos de trabalho no exterior — seguiam as indicações de Koegel, não as de Langefeld. Do seu gabinete, Langefeld via as mulheres que eram trazidas diariamente do areeiro com as pernas e os braços em sangue. E mesmo do seu apartamento conseguia ouvir os gritos das mulheres.

Edith Fraede deixava os cães rosnarem e morderem as mulheres entre os portões do campo de concentração e o areeiro — ou Sandgrube, como era conhecido. Se uma prisioneira aterrorizada deixasse cair a pá, Fraede dava‑‑lhe pontapés ou pegava na pá e batia ‑lhe com ela nas costas. Fraede tinha cerca de trinta anos e era grande e loura. Rabenstein, no entanto, usualmente esperava até o trabalho já estar em curso para extravasar, mas nessa altura já Britta estava a puxar pela trela.

Nos primeiros tempos, as guardas com cães não conseguiam controlá ‑los. Eram novatas e na primavera e no verão era difícil, porque os cães estavam muitas vezes com cio. Por isso, quando uma prisioneira caía ou corria para o lago para beber água, os cães puxavam com tanta força que as guardas simplesmente os soltavam da trela.

Nesta altura, o areeiro ficava mesmo junto aos muros do campo de concentra‑ção, perto do lago e do local onde estavam a ser construídas as casas para os SS.

Mal os grupos de trabalho chegavam ao areeiro, as mulheres tinham de se perfilar e começar a cavar. Às nove da manhã, o sol já era forte e elas sentiam o suor a escorrer ‑lhes pelas costas. Tinham de encher uma pá de areia de um monte e atirá ‑la para outro até toda a areia ter sido transferida de um lado para o outro. A seguir, voltavam a passá ‑la para outro monte, com as guardas a berrarem «Schnell, schnell, cadelas preguiçosas». Outro grupo atirava com a areia para um monte a um ou dois metros pela encosta acima. «Pás cheias, pás cheias. Vacas imundas. Escumalha. Cadelas. Vacas imundas.» As pás eram demasiado curtas ou demasiado compridas, estavam dobradas ou partidas.

Por vezes, um grupo tinha de amontoar a areia num vagão e pô ‑lo em cima de uns trilhos improvisados. Muitas vezes, o vagão saltava dos trilhos e as mulheres tentavam impedir que se virasse, mas quando caía, espalhava o seu conteúdo e elas tinham de voltar a enchê ‑lo. Com a temperatura a subir, as guardas berravam e praguejavam ainda mais alto; batiam nas costas das mulheres e pontapeavam as que desmaiavam.

Outros grupos descarregavam coque e pedras de uma barcaça no lago. As mulheres punham sacos às costas, enquanto mais acima na encosta outro grupo puxava cilindros de pedra para alisar a terra para a construção

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 53 8/28/15 6:04 PM

Page 44: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

54

de uma estrada. Pelo menos o alisamento da terra tinha um objetivo. Não havia qualquer objetivo prático em retirar pazadas de areia de um lado para o outro.6

As prisioneiras não tardaram a detestar a areia. As testemunhas de Jeová achavam que aquele trabalho tinha sido concebido especificamente para elas, «para as fazer renegar o seu Deus», mas muitas notavam que eram as judias quem mais sofria: pareciam mais fracas e estavam menos acostuma das a provações físicas, diziam outras. Ao meio ‑dia, as mulheres no Sandgrube estavam já com os braços e o rosto queimados do sol e as bocas secas. Quando a areia se metia nos seus socos de madeira, queimava ‑lhes as solas dos pés e rebentava ‑lhes as bolhas. O Sandgrube não tardava a ficar manchado com sangue.

Rabenstein e Britta supervisionavam o grupo que fazia as descargas. Mais acima na colina, observavam as prisioneiras a pegarem em sacos de carvão ou de pedras e a empilhá ‑los em carroças na margem do lago. As mulheres empurravam as carroças pela colina acima para uma entulheira, mas para lá chegar tinham de atravessar uma ponte improvisada feita de tábuas, e mui‑tas vezes as mulheres de mais idade caíam das tábuas à água. Quando isso acontecia, as guardas berravam e davam pontapés a quem caísse. Um dia, uma mulher deu com uma enxada na cabeça de Rabenstein, para se vingar. Foi enviada para o Strafblock e nunca mais voltou a ser vista.

Por vezes, Rabenstein selecionava um grupo de mulheres aleatoriamente, mandava ‑as perfilarem ‑se por trás de um monte de pedras e dava ‑lhes pon‑tapés com as suas botas. Ou ordenava a uma prisioneira que tirasse terra de um monte enorme cavando um túnel a partir de baixo até o monte começar a desabar. A prisioneira tinha de continuar a tirar terra com uma pá até o monte desabar por fim em cima dela e ela ser enterrada viva. Rabenstein considerava isto um jogo, a que chamava «Abdecken» — «telhado a cair». Depois, a prisioneira, pisada e a sufocar, era retirada pelas colegas.

De pé, em cima de uma cadeira na sua cela de madeira, Marianne Wachstein viu desenrolar ‑se pela janela um «jogo» semelhante lá fora:

Olhei lá para fora e vi o seguinte: uma jovem fraca — ouvi mais tarde dizer que se chamava Langen, sofria de lúpus e tinha um pedaço de carne cosido no nariz — recusou ‑se a retirar areia. Bateram ‑lhe com força, mas ela continuou a recusar ‑se a pegar na pá. Segurando ‑a firmemente, arrastaram ‑na até a um poço e assestaram jatos fortes de água sobre ela. Puseram ‑na assim num monte de areia só com a cabeça descoberta. Atiraram ‑lhe areia para a cabeça e para o rosto. Ela estava constantemente a tentar libertar ‑se. Este jogo prolongou ‑se por tanto tempo que por várias vezes desci da pequena cadeira e sentei ‑me.

6 Em contraste, os prisioneiros nos novos campos de concentração de Himmler para homens de Mauthausen e Flossenbürg trabalhavam em pedreiras, britando granito para recons truir Berlim como a nova capital de fantasia da Germânia de Hitler.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 54 8/28/15 6:04 PM

Page 45: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

55

Wachstein reparou que algumas guardas estavam a assistir à cena e um dos assistentes principais do comandante também.

Hanna Sturm, a carpinteira austríaca, demorou pouco tempo a fazer a sua avaliação do campo de concentração. Nem todas as prisioneiras eram enviadas para o trabalho no exterior; como as competências de Hanna — era serralheira e vidraceira, para além de carpinteira — eram demasiado valiosas para serem desperdiçadas em trabalhos inúteis, começou a ser empregada como faz ‑tudo, o que lhe permitia bisbilhotar dentro de escritórios e de blocos e surripiar coisas — um número atrasado de um jornal ou talvez uma faca —, que trazia às escondidas para o seu bloco. A sua melhor descoberta, logo ao princípio, foi um exemplar já muito manuseado de Guerra e Paz. Há muito tempo que Goebbels tinha banido todos os livros de Tolstoi, jun‑tamente com outras obras sediciosas de autores como Kipling, Hemingway, Remarque e Gide. Usualmente, os livros eram queimados ou usados como papel higiénico, e é provável que Hanna tenha encontrado o livro numa das latrinas. Ela tinha a esperança de arranjar uma oportunidade para o ler com as suas camaradas.

Dado que cada minuto de cada dia era agora regulado por sirenes estri‑dentes e por regras, falar com as amigas era difícil. Não havia cantos nem becos escondidos para onde as prisioneiras pudessem escapulir ‑se sem serem vistas. Os barracões estavam tão sobrelotados e as mulheres eram tão aperta‑damente vigiadas — sempre em movimento constante — que os contactos individuais ou a formação de pequenos grupos eram virtualmente impossí‑veis, precisamente o objetivo da forma como estava organizada a vida das prisioneiras.

A médica Doris Maase detestava a companhia constante de «gentalha», mas exprimiu o seu desagrado de modo cuidadoso na carta censurada que mandou para casa: «Gostava de ser daquelas pessoas a quem a estupidez e a falta de interesse não incomodam tanto, mas não consigo evitá ‑lo. Talvez soe paradoxal, mas com o passar do tempo começa a preferir ‑se ser uma eremita a estar sempre rodeada de pessoas.»

Algumas prisioneiras, conhecidas como Blockovas, tinham a seu cargo os blocos e competia ‑lhes fazer cumprir as regras. Por vezes, mesmo antes de as luzes se apagarem, se a Blockova de Hanna Sturm não estivesse por perto, ela batia na cama abaixo da sua, onde dormia a sua amiga Käthe Rentmeis‑ter, e Käthe alertava outra camarada, Tilde Klose, que dormia na cama por baixo da dela. As mulheres trocavam algumas palavras sobre a mais recente descoberta de Hanna ou, se a Blockova estivesse de bom humor, poderia até permitir uma pequena conversa de tempos em tempos.

Uma ou duas destas novas prisioneiras com poder — a maioria com triângulos verdes ou pretos — comportavam ‑se como tiranas desde o início; certos nomes — Kaiser, Knoll e Ratzeweit — eram já conheci‑dos entre as prisioneiras políticas desde Lichtenburg como sinónimo de problemas. Mas muitas destas primeiras prisioneiras a chegar ao campo

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 55 8/28/15 6:04 PM

Page 46: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

56

de concentração já estavam juntas na prisão há muitos anos e tinham aprendido a dar ‑se umas com as outras, fossem quais fossem os seus ante‑cedentes. Um pedaço de feltro de uma cor diferente cosido nos seus casacos às riscas não ia transformá ‑las em inimigas de um momento para o outro.

Aos domingos, havia uma pausa. Nem todas as prisioneiras tinham folga ao domingo: o bloco das prisioneiras judias, o Bloco 11, e as prisioneiras do Strafblock tinham de trabalhar como de costume. Havia também uma Appell aos domingos ao meio ‑dia e limpezas a fazer. Mas ao fim da tarde as prisio‑neiras iam todas dar um «passeio» obrigatório — uma espécie de caminhada recreativa forçada ao longo da Lagerstrasse, ao som de música. As guardas na guarita ligavam o sistema de altifalantes a uma estação alemã de rádio e soavam marchas militares, o que, pelo menos, significava que as mulheres podiam conversar livremente, já que as guardas não conseguiriam ouvi ‑las.

Depois da marcha, por vezes era possível deitarem ‑se tranquilamente na cama, lavarem a sua roupa, serem «normais». Tinham direito a uma colher de compota ao domingo, a um quadrado de margarina e a uma salsicha. As prisioneiras que tinham a sorte de receber dinheiro de casa podiam gastá ‑lo na loja do campo de concentração, que se situava na cantina do pessoal e vendia bolachas, pasta dos dentes e sabão. Durante este «tempo livre», o grupo de Hanna tentava reunir ‑se na parte de trás do bloco para lerem o seu livro; uma delas lia em voz alta enquanto outra ficava de vigia. Mal conseguiam acreditar na sua sorte por terem encontrado Tolstoi num campo de concentração.

Aos domingos, as prisioneiras liam também cartas recebidas de casa e respondiam ‑lhes. Era autorizada uma carta por mês, que, naquela época antes da guerra e desde que não se fizesse menção à política ou ao campo de concentração, podia ainda ser bastante longa. Nas suas cartas à família, Doris Maase mencionava que andava a ler livros. Doris trabalhava como enfermeira na Revier, onde também passava as noites. Ainda era possível receber enco‑mendas de casa, incluindo livros, e havia até uma espécie de biblioteca no campo de concentração — uma coleção de livros aprovados, entre eles vários exemplares de Mein Kampf.

«Hoje, tento passar o domingo», escreveu Doris à sua irmã em junho de 1939. «Estou a ler Para lá dos Bosques, de [Trygve] Gulbrannssen.» Como o marido de Doris, Klaus, estava em Buchenwald, os dois troca vam cartas censuradas, lendo nas entrelinhas. Pelo menos, como era prisioneiro em Buchenwald, Klaus fazia uma ideia daquilo por que Doris estava a passar; é claro que ela não podia contar ‑lhe nada sobre a brutalidade a que assistia.

Sabemos pelo testemunho de Doris mais tarde que ela costumava ver pela janela da Revier os grupos a serem levados para o portão, conduzidos por um oficial da SS que deliberadamente obrigava as mulheres a passar por um lago grande, de modo que começavam a trabalhar completamente encharcadas.

Em junho, a camarada de Olga Benario, Sabo (Elise Saborowski Ewert), a sua aliada na conspiração dos tempos do Brasil, subitamente caiu de joelhos e desmaiou quando trabalhava no Sandgrube. Sabo tinha sido violada e tor‑turada numa prisão brasileira e nunca recuperara. Fraede pontapeou ‑a, mas

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 56 8/28/15 6:04 PM

Page 47: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

57

Sabo não conseguiu levantar ‑se e acabou por ser levada para a Revier, onde se encontrava Doris, que pôde ajudá ‑la. «A Maase, onde é que está a Maase?», era o berro que se ouvia todos os dias na zona onde se faziam os curativos. «Há tantas coisas de que mal posso falar, está tanto à tua espera», escreveu ela numa carta a Klaus.

Num outro domingo, numa carta à sua irmã, Doris mostrava entusiasmo pelas boas notícias de casa — «Ao princípio, não conseguia acreditar que algo assim tão agradável ainda exista. Quase sinto que lá estive» —, mas a sua tentativa de parecer animada não conseguia disfarçar o receio que sentia pelo que poderia acontecer à sua família no exterior. O pai de Dora, tam‑bém médico, era judeu, e ela sabia que, com a aproximação da guerra, o seu lado da família correria cada vez mais riscos; as novas leis estavam a tornar impossível qualquer forma de vida normal na Alemanha e o pai de Doris tinha sido proibido de exercer a sua profissão. Embora a sua mãe não fosse judia — o que explica porque é que Doris recebeu melhor tratamento do que outras prisioneiras judias no campo de concentração —, a pressão sobre esses «casamentos mistos» estava a aumentar, com os casais a verem ‑se forçados a contemplar a hipótese de uma separação ou da emigração.

A certa altura, Doris pergunta: «Os pais andam a descontrair ‑se como deviam? Imagino rosas a desabrocharem aí e todos os dias mais qualquer coisa para colher no jardim», mas na carta seguinte fica a saber que a sua mãe e o seu pai vão «atravessar o canal», e fica à espera de mais notícias.

«Quanto a mim, estou bem», escreveu Doris à sua irmã, e é quase ten‑tador acreditar nela, porque prosseguiu dizendo: «Uso o cabelo comprido e bem preso e estou cheia de viço, por dentro e por fora» — embora seja impossível saber o que ela queria dizer com «viço». Sabemos pelos seus testemunhos mais tarde que nos finais de junho a temperatura no Sandgrube era escaldante e que as mulheres que Doris tratava tinham a pele queimada, chagas e furúnculos. O que preocupava as prisioneiras ainda mais eram os gritos aterrorizadores que vinham agora do Strafblock. As prisioneiras tinham recentemente descoberto que Olga Benario estava detida numa das sufo‑cantes celas de madeira. Doris escreveu numa das cartas à família: «Meus queridos, faz tanto calor.»

Foi Ilse Gostynski a primeira a descobrir que Olga se encontrava em pri‑são solitária. Ilse estava encarregada de despejar os baldes das celas e conse‑guiu trocar algumas palavras com Olga, que conhecia de Lichtenburg e cuja história lhe causara uma profunda impressão. Ilse recordava ‑se de Olga como uma «jovem de Munique, muito bela, muito inteligente. Em Ravensbrück, tratavam ‑na mal, não lhe davam quase nada para comer».

As celas eram feitas de madeira fina, com apenas dois metros de compri‑mento por dois metros de largura, e não dispunham de ventilação. Olga não tinha nada a não ser um colchão de palha e um balde. Ilse pôs Hanna Sturm ao corrente da difícil situação de Olga e Hanna conseguiu arranjar bolachas e pão para Olga, que Ilse levou à socapa quando foi despejar os baldes na

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 57 8/28/15 6:04 PM

Page 48: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

58

vez seguinte. As suas camaradas enviavam ‑lhe mensagens. Se Zimmer visse Ilse, também ela seria detida em prisão solitária. «Deixava algumas doçarias ou um pedaço de papel com palavras reconfortantes das suas colegas... Ela estava muito mal», recordou Ilse.

Pouco depois de encontrar Olga, Ilse foi informada de que iria ser liber‑tada, o que deixaria Olga sem intermediária.

Talvez o aspeto «normal» mais surpreendente do campo de concen‑tração fosse o facto de, ao mesmo tempo que a brutalidade aumentava, serem libertadas prisioneiras regularmente. Os contactos ingleses de Ilse tinham ‑lhe conseguido um visto. Foi ‑lhe dito que podia ir embora e mandaram ‑na primeiro à Effektenkammer, onde as roupas que trazia vesti‑das à chegada lhe foram entregues juntamente com os seus bens pessoais, e em seguida ficou livre de partir. Nesse mesmo dia, Ilse apanhou um comboio para Berlim e daí a uma ou duas semanas já estava num comboio em direção a De Hoek, na Holanda, onde apanhou um ferry para atravessar o canal da Mancha para Harwick, na costa do Essex. Ali, esperavam ‑na amigos comunistas, os mesmos que tinham obtido os documentos neces‑sários para a sua libertação.

A salvo em Inglaterra, Ilse contou aos seus amigos o que se passava com Olga Benario e instou ‑os a contactarem a família do marido dela no Brasil; Ilse acreditava que o seu caso pessoal daria à família de Olga a esperança de conse‑guir obter também a sua libertação, mas teriam de arranjar um visto antes de rebentar a guerra. Alguns meses depois de chegar a Inglaterra, Ilse, como cidadã alemã, foi declarada estrangeira inimiga e internada num campo na ilha de Man.

Depois da guerra, Ilse casou ‑se e teve uma filha, Marlene. Voltou a encon‑trar ‑se com a sua irmã gémea, Else, que tinha passado a guerra escondida na Noruega. Ao fim de algum tempo, as irmãs descobriram que os seus pais tinham morrido em Auschwitz e que muitos dos seus amigos tinham tido o mesmo des‑tino. Em 1951, Ilse tentou escrever a sua história, descrevendo resumidamente os anos passados em Moringen, Lichtenburg e Ravensbrück. Insatisfeita com a sua incapacidade de descrever «o medo e o sofrimento intermináveis», desculpou ‑se num posfácio aos seus leitores: «Ao reler o meu relato, sinto pena por não parecer conseguir descrever a verdadeira tragédia do campo de concentração.»

Segundo a sua filha, Marlene, depois de escrever o relato Ilse nunca mais voltou a falar sobre o campo de concentração. «Sofria da dor e da culpa próprias dos que tiveram a sorte de sair antes de começar o pior.» Sentada num café na zona norte de Londres, Marlene, que é artista, mostrou ‑me um quadro que pintou em que Ilse e Else aparecem como meninas da burguesia alemã, com vestidos de musselina, «antes de se rebelarem e irem acampar para os bosques para lerem Marx», diz Marlene.

Numa outra pintura, chamada Bars*, Marlene representa a mãe nos seus últimos dias, deitada na cama a dormir. «Voltou a ficar bela na velhice», diz

* Em português: grades (de prisão). (NT)

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 58 8/28/15 6:04 PM

Page 49: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

59

a legenda de Marlene. «Tratam dela como se fosse um bebé e nunca fala nem sorri. Vejo a sombra da sua prisão a projetar ‑se no fim da sua vida, um assunto por encerrar. Num outro lugar ou num outro tempo, a sombra poderia ter ‑se projetado sobre mim ou sobre o meu filho. Eu saberia como ser corajosa?»

Depois de Ilse partir para Inglaterra, o número de chegadas começou a aumentar. Entre as novas prisioneiras encontrava ‑se uma jornalista checa chamada Jozka Jaburkova, detida em Praga no dia a seguir à invasão alemã, 16 de março de 1939. Logo que a capital checa caiu nas mãos do inimigo, toda a resistência foi erradicada, os intelectuais foram alvo de perseguições e algumas publicações periódicas foram encerradas, entre elas A Semeadora, uma revista feminina comunista de que Jozka era editora.

Ao chegar ao campo de concentração, Jozka sofria de terríveis dores de cabeça por ter sido violentamente espancada nos interrogatórios a que foi submetida, mas não tardou a encontrar camaradas comunistas que cuidassem dela. A sua chegada levantou os ânimos no bloco político, onde o seu nome já era conhecido. Pela sua parte, Jozka ficou encantada por saber que Olga se encontrava ali; tinha colaborado na sua campanha de libertação.

Hanna convidou Jozka a juntar ‑se ao grupo de leitura de Tolstoi, e Jozka não só divertia as outras mulheres com as suas previsões da vindoura revolu‑ção comunista como com os seus contos de fadas; em tempos, publicara um livro de contos de fadas chamado Eva no País das Maravilhas.

Em 28 de junho chegou a maior caravana de novas prisioneiras desde a abertura do campo dois meses antes. A meio da noite, 450 ciganas de Bur‑genland, na Áustria, entraram a marchar pelos portões, muitas delas a tremer nas suas camisas de noite, algumas acorrentadas umas às outras e outras grávidas ou com filhos ao colo. A maioria tinha tranças negras compridas e todas pareciam estar a gritar e a chorar.

Com a guerra a grande escala agora iminente, Hitler abriu uma nova frente na guerra racial, ordenando o arrebanhamento de 3000 sinti e roma austríacos, a maior parte dos quais já vivia em Burgerland há várias gera‑ções. Mulheres e homens foram arrastados das suas camas e levados sem qualquer aviso, e em seguida foram separados por sexo. Uma adolescente de quinze anos chamada Bella estava ainda de camisa de noite quando foi levada: «A minha mãe, que estava grávida, correu atrás do veículo, a gritar que parasse.» A maior parte das mulheres foi reunida, primeiro num salão local em Pinkafeld, onde estavam à sua espera rufiões da zona fazendo ‑se passar por agentes policiais e SS alemães. Muitas foram violadas «pelos SS da vila», como chamavam aos capangas locais de Hitler. As mulheres foram levadas em camiões para uma prisão perto de Graz. Antes de par‑tirem, um comandante da polícia que acompanhava a caravana ofereceu um sanduíche a Bella. «“Olha, toma”, disse ele. “Não, eu não como.” Ele disse: “Sim, comes. Eu sei como a fome dói”, por isso eu aceitei ‑a.»

Na prisão de Feldbach, em Graz, havia guardas com cães ‑polícias. As mulheres aqui reunidas tinham sido arrancadas a um sem número de vilas

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 59 8/28/15 6:04 PM

Page 50: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

60

de Burgenland e todas falavam do mesmo terror. Gisela Sarkozi foi detida com a sua irmã: «Eles vieram a meio da noite, por toda a parte, os SS, e o presidente da câmara também veio; ele era um “chefão” hitleriano. Arrom‑baram as portas e tiraram as pessoas para fora. Não nos deixaram vestirmo‑‑nos.» Gisela foi transportada para a cidade de Oberwart, aonde a sua mãe foi levar ‑lhe roupa; daí levaram ‑na para Graz.

Theresia Pfeifer e a irmã, Anna, foram expulsas da sua casa e em seguida amarradas e acorrentadas depois de algumas detidas terem tentado fugir. Meteram ‑nas em vagões para gado e viajaram de comboio durante dois dias e duas noites. Os homens foram enviados para Dachau, as mulheres para Ravens‑brück. Quando o comboio parou em Fürstenberg, estava escuro como breu e ninguém fazia ideia de onde estavam. Os SS estavam por ali com os seus cães.

«Tivemos de nos perfilar em pares e fomos levadas para o banho. Pri‑meiro tivemos de nos despir diante dos SS. Todas chorávamos e gritávamos. Diziam ‑nos que tínhamos de ficar em silêncio, ou davam ‑nos um tiro.» As tranças de Theresia foram ‑lhe cortadas, os pelos do corpo rapados. Deram‑‑lhe um triângulo de feltro preto e mandaram ‑na cosê ‑lo ao vestido às riscas de prisioneira. Várias mulheres aos gritos foram levadas para o Strafblock, onde Zimmer se encarregou delas. Outras foram distribuídas pelos blocos e marcharam para o Sandgrube na manhã seguinte com as outras prisioneiras.

Em julho, já toda a gente na Alemanha sabia que a invasão da Polónia estava iminente. As pessoas de etnia alemã que viviam na Polónia regressa‑vam à Alemanha em grandes números, a guerra de propaganda de Goebbels contra os Polacos estava a intensificar ‑se e as guardas do campo de concen‑tração promoviam o ódio contra «as imundas eslavas». As guardas falavam também dos seus maridos, irmãos e filhos convocados para a guerra. Até mesmo o pastor Märker, o sacerdote de Fürstenberg, se tinha oferecido como voluntário para a guerra.7

Como se o próprio campo de concentração estivesse em pé de guerra, altas patentes militares vinham regularmente inspecioná ‑lo, o que levava a que Langefeld estivesse sempre a postos. Depois de ela manter todas as prisioneiras em parada ao longo de várias horas durante uma inspeção da Luftwaffe, ouviu ‑se um oficial perguntar: «Onde é que está o comandante? Não ouço uma voz de comando», ao que Langefeld respondeu que não tinha necessidade de berrar.

Antes da guerra, as medidas de segurança foram apertadas em todo o campo de concentração, para o caso de haver «amotinamento». O Strafblock encheu ‑se e à volta da Appellplatz viam ‑se mulheres, hora após hora, de pé, descalças, viradas para a parede como «punição» por «crimes».

No bloco político, o grupo comunista sentia mais dificuldade em falar, porque havia espias de Koegel por toda a parte. Jozka Jaburkova foi traída

7 As páginas do livro de registos da igreja de Fürstenberg relativas aos anos da guerra foram arrancadas, provavelmente por Märker, para encobrir as suas atividades.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 60 8/28/15 6:04 PM

Page 51: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

61

por uma espia um dia depois de deitar um farrapo na sanita, o que provocou o entupimento do sistema de esgotos. Odiada pelo seu «rosto arrogante», Jozka era sempre incumbida das tarefas mais imundas. Naquela altura, tam‑bém ela foi obrigada a ficar de pé muitas horas, virada para a parede.

Mas então, em 18 de julho, soube‑se que a cela de Olga Benario estava vazia; ela tinha sido levada do campo de concentração sob escolta da Gestapo. As suas camaradas do grupo de leitura de Tolstoi acreditavam que tinha sido levada para Berlim para ser interrogada pela polícia secreta de Hitler. O facto de ela ter sido selecionada no período imediatamente antes da guerra demons‑trava o quanto os fascistas ainda receavam a resistência comunista, diziam, e o alto preço que atribuíam ainda à cabeça de Olga. Algumas provas mais recentes apontam para uma explicação diferente: provavelmente, ela não foi levada do campo de concentração em julho de 1939 para ser interrogada, mas porque a Gestapo tinha acedido a libertá ‑la.

A prova de que Olga estava prestes a ser libertada encontra ‑se em parte num relatório da Gestapo sobre as circunstâncias da sua partida de Ravens‑brück, incluindo uma descrição curiosamente pormenorizada do que levava vestido: «Um vestido multicolorido com um cinto vermelho, um casaco preto a três quartos, sapatos beges, meias de cor pálida e uma mala de mão amarela.» Claramente, antes da partida foi levada à Effektenkammer e vestiu ‑se com as suas roupas de civil; as únicas prisioneiras que partiam de Ravensbrück com roupas de civil em 1939 eram as que estavam prestes a ser libertadas.

Anita Benario Prestes, a filha de Olga, que vive atualmente no Brasil e é professora na Universidade do Rio de Janeiro, tem mais provas de que a sua mãe estava prestes a ser libertada. Evidentemente, Anita era demasiado nova para compreender as negociações da libertação de Olga, mas a sua avó Leocadia e a sua tia Lígia contaram ‑lhe mais tarde o que aconteceu. Deram também a Anita a sua correspondência com a Gestapo, assim como todas as cartas escritas pela sua mãe a elas e a Carlos.

Enquanto Carlos Prestes continuava encarcerado numa prisão brasileira, Leocadia e Lígia prosseguiram na sua campanha para tirar Olga de Ravens‑brück. Ao princípio, tinham poucas esperanças, disse Anita, mas sentiram ‑se encorajadas por uma carta de Ilse Gostynski enviada de Inglaterra na qual as persuadia a continuarem a tentar. Assim, em junho de 1939, Leocadia e Lígia Prestes escreveram novamente às autoridades alemãs pedindo a libertação de Olga. Pouco depois, receberam uma resposta do gabinete de emigração judaico ‑alemão, segundo a qual a Gestapo estava disposta a libertar Olga «na condição de ela emigrar imediatamente para o estrangeiro». A carta sugeria até, numa atitude prestável, que elas deveriam requerer «logo que possível ao México» um visto para Olga.

Leocadia deslocou ‑se ao México e, com algum atraso, conseguiu obter o visto e outros documentos mexicanos oficiais e enviou ‑os por correio para a Alemanha, via Nova Iorque, como era necessário na altura. «Ela tinha a esperança de que a minha mãe fosse libertada, mas sabia que o período de

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 61 8/28/15 6:04 PM

Page 52: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

62

tempo era muito curto. Depois de rebentar a guerra, seria impossível a Olga vir reunir ‑se a nós», disse Anita. Leocadia ficou no México a aguardar con‑firmação de que o visto tinha chegado a Berlim, mas até 25 de agosto essa confirmação ainda não tinha chegado. «Nessa fase, ela já estava desesperada», disse Anita. «E a minha mãe também.»

Anita sabe quais eram os sentimentos da sua mãe através das numero‑sas cartas de Olga para Leocadia e para Carlos, nas quais o seu desespero por se reunir à filha que lhe tinha sido tirada da cela de Berlim em 1937 é dolorosamente claro. Como se numa tentativa de ser uma mãe presente para Anita à distância, faz perguntas sobre todos os pormenores da saúde da sua filha e dos cuidados que lhe são prestados, dando instruções a Leocadia para que Anita apanhe sol e use o cabelo curto e vestuário simples. «Ela não deve julgar ‑se especial.» E Olga preocupava ‑se com a possibilidade de a filha não poder aprender o português que falava a sua família brasileira. «Na prisão, eu podia pelo menos falar ‑lhe em francês. Eu só sei a linguagem das crianças na minha língua materna — e mais uma vez suponho que o culpado é o meu velho otimismo, que me fez ter a esperança de não virmos a ser separadas.»8

Em meados de agosto de 1939, um mês depois de partir de Ravensbrück, Olga aguardava ainda na sua prisão temporária em Berlim a confirmação de que os documentos requeridos para a sua emigração tinham chegado. Permitiam ‑lhe ler o jornal nazi Völkischer Beobachter, e sabia que a guerra estava iminente. Uma vez desencadeadas as hostilidades, não teria qualquer hipótese de sair da Alemanha.

«Não se zangue comigo, mas sinto o mais profundo pessimismo», escre‑veu a Leocadia em 15 de agosto. Na carta seguinte, parecia ter perdido a vontade de escrever, pura e simplesmente: «Olhe, eu fiquei furiosa ao prin‑cípio por este papel ser pequeno, mas agora vejo ‑me sem mais nada para escrever. Dê mil beijos meus à minha adorada filha.»

Enquanto Olga aguardava em Berlim, as suas camaradas em Ravensbrück defrontavam ‑se com novos terrores. Pouco tempo depois de Olga partir do campo de concentração, Hanna Sturm e o seu grupo de leitura foram apa‑nhados em flagrante a recitar Tolstoi. Enviada à presença de Koegel para ser punida, Hanna viu a espia que as tinha traído de pé ao lado dele e cuspiu‑‑lhe, levando Koegel a esbofeteá ‑la e a prometer que lhe «ensinaria alguma disciplina». Em seguida, Hanna foi fechada numa cela de madeira escura e sem nada, como Olga antes dela.

Hanna Sturm estava tão bem preparada para sobreviver a estas celas solitárias como qualquer outra mulher. Nascida numa família de lavradores pobres de Burgenland, com origens étnicas na minoria checa, foi trabalhar nos campos aos oito anos e já martelava pregos nas vedações muito antes de

8 Atualmente, Anita não fala uma palavra de alemão e mandou traduzir as cartas da sua mãe para português.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 62 8/28/15 6:04 PM

Page 53: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

63

aprender a ler. Na juventude, foi atraída para a «Viena vermelha» e durante o período conturbado dos anos 1930 na Áustria filiou ‑se num sindicato e envolveu ‑se em lutas antifascistas, acabando frequentemente atrás das gra‑des. Também tinha estado detida nas masmorras de Lichtenburg. Todavia, Hanna nunca vira uma cela como aquela e, quando escreveu a sua história, anos depois, as suas recordações deste primeiro bloco de celas eram ainda tão vívidas como tudo o que lhe aconteceu depois. O relato de Hanna Sturm é também extremamente valioso, porque só duas prisioneiras deixaram um testemunho do primeiro bloco de celas de madeira de Ravensbrück, que nos finais de 1939 já tinha sido demolido, tendo as provas de que alguma vez tivesse existido sido destruídas.

Para além da luz que entrava por algumas fendas na parede, a cela de Hanna estava completamente às escuras. Era como «um caixote pequeno», recordou ela, com dois metros de comprimento por dois metros de lar‑gura. Como Hanna tinha sido condenada a «detenção agravada», não tinha cama nem colchão e nada onde se sentar a não ser o chão. Era ‑lhe fornecida uma refeição por semana, à quinta ‑feira. Nos outros dias, os únicos alimentos eram cem gramas de pão e uma tigela de uma espécie de café.

Quando Hanna entrou na cela, começou por fechar os olhos, para tentar habituar ‑se à escuridão. Quando queria fazer as suas necessidades, tinha de tatear a parede até encontrar o balde. No entanto, embora fosse impossível ver fosse o que fosse, Hanna conseguia ouvir bastantes coisas.

Pouco depois, ouviu berros e gritos no pátio lá fora. Espreitando por uma fenda na parede, viu que os gritos vinham de uma cigana, louca de terror, que estava a ser arrastada para dentro do Strafblock do outro lado. A seguir, ouviu os sons de um espancamento e a voz de Zimmer a berrar: «Espera até eu te enfiar a camisa de forças, vais ‑te calar, cadela.» Hanna reconheceu outra voz familiar, a de Margot Kaiser, uma prisioneira alemã que era ajudante de Zimmer e que era profundamente odiada em todo o campo de concentração. Kaiser afastou ‑se para ir buscar a camisa de forças. Os gritos pararam subi‑tamente e Hanna só conseguiu ouvir uns gemidos e a seguir nada. Zimmer pareceu esquecer ‑se da cigana até várias horas depois, quando começaram de novo a ouvir ‑se berros e se tornou claro que ela tinha sido encontrada morta noutra cela.

Hanna ouviu Zimmer dizer: «Está aqui morta como um cão.» Zimmer berrou uma ordem a Kaiser e a outras para que a ajudassem. Hanna não ouviu mais nada, mas outras prisioneiras viram o cadáver da cigana a ser arrastado da zona do Strafblock pelos cabelos e puxado para a lavandaria, com o corpo coberto de sangue e de agulhas de pinheiro.

As prisioneiras viriam a saber que a cigana ficara enlouquecida de dor porque o seu bebé de seis semanas lhe tinha sido arrancado dos braços. Ela estava a amamentar e tinha ficado com os seios inchados e duros, o que acentuava ainda mais o seu sofrimento. Ninguém sabia o nome da cigana e não há registo oficial da sua morte. Talvez tenha sido a primeira prisioneira

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 63 8/28/15 6:04 PM

Page 54: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

64

a ser assassinada em Ravensbrück, embora, segundo os registos do campo de concentração, tenha sido uma outra cigana do transporte de Burgenland, Amalie Pfeiffer, uma mulher de cinquenta anos, a primeira prisioneira a morrer no campo de concentração.

A morte de Amalie foi cuidadosamente registada e existe até uma certi‑dão de óbito. Nela, diz ‑se que, em 24 de agosto de 1939, Amalie Pfeiffer, nascida Karoly em 5 de julho de 1890 (cigana), residente em Neustift an der Lafnitz (Áustria), faleceu às 16h00 no campo de concentração para mulheres de Ravensbrück . Causa da morte: «Suicídio por ferimentos provocados por golpes de faca na artéria cervical esquerda.»

Após a morte da cigana, o bloco de celas ficou mais silencioso. Hanna arranjou maneiras de melhorar as condições da sua cela. Zimmer não a tinha revistado exaustivamente e, como sempre, ela tinha algo útil escondido nas roupas, desta vez uma tesoura, e não tardou a descobrir que conseguia falar num sussurro com as mulheres ao lado. Uma das suas vizinhas chamava ‑se Lene e disse a Hanna que era testemunha de Jeová. Mas Zimmer ouviu as vozes e berrou: «Silêncio, suas macacas.»

Ao fim de algum tempo, Hanna ouviu gargalhadas loucas vindas da cela do outro lado. «É assim que deve ser um manicómio», pensou ela, mas então reparou que a mulher «louca» ria sempre que ouvia a voz de Zimmer. Escu‑tando os mexericos das guardas, Hanna descobriu que a mulher era Hedwig Apfel e que era música, talvez cantora de ópera. Apfel era judia e a sua família pagara uma fortuna aos nazis na tentativa de obter a sua libertação. Hanna sabia também da presença de uma americana no bloco de celas, que «rezava todo o tempo muito alto, usando palavras ininteligíveis» — presu‑mivelmente em inglês. A «americana» talvez fosse a colega de conspiração de Olga, Sabo, que tinha vivido muitos anos no Canadá e esteve detida no bloco de celas nesse verão. Sempre que Sabo rezava, desencadeava o riso histérico de Hedwig Apfel.

Hedwig estava a provocar Zimmer. Quando Zimmer abria a porta de Hedwig, ela estava à espera com um balde das suas necessidades, que lhe despejava na cabeça. Zimmer berrava: «Judensau!» (porca judia). Hedwig imitava ‑a: «Judensau, Judensau.» Por vezes, Hedwig corria da sua cela para o espaço exterior do bloco de detenção, e Margot Kaiser ia em sua perseguição e apanhava ‑a.

Hanna conseguira fazer minúsculos buracos nas paredes da sua cela e via para as celas dos dois lados. Um dia, Zimmer abriu a porta de Hanna de rompante e atirou com Hedwig Apfel lá para dentro. Hedwig soltou uma risadinha e ficou visivelmente assustada com a escuridão. Quando viu que Hanna estava na cela, convidou ‑a para dançar. Hanna sugeriu que, em vez de dançar, cantassem. Hedwig começou a cantar: «Para ti, por que és uma de nós.» E Hanna pensou então: «Talvez afinal ela não seja louca.» Hedwig disse: «Eu só estou a fazer de conta que sou louca. Die Alte [a velha — Zimmer] tem medo de mim desde que eu lhe despejei o balde na cara. Da próxima vez, vou ‑lhe cuspir na cara e vais ver como ela foge.»

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 64 8/28/15 6:04 PM

Page 55: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

65

A partir daquele momento, Apfel e Sturm tornaram ‑se boas amigas, o que não agradou a Zimmer; tirou Hedwig da cela e Hanna voltou a ficar sozi‑nha. Hedwig foi transferida da sua cela, que foi ocupada por outra mulher de quem Hanna tentou também tornar ‑se amiga.

Batendo na parede, perguntou: «Quem és tu?»«Sou a Susi, e tu?» «Chamo ‑me Hanna.»No dia seguinte, Hanna ficou a saber que Susi era a comunista austríaca

Susi Benesch. Susi estava muito doente, com furúnculos por todo o corpo. Não conseguia deitar ‑se nem sentar ‑se e como à noite andava de um lado para o outro todo o tempo, ninguém em todo o bloco de celas conseguia dormir. Numa manhã, Zimmer tirou Susi da cela e mandou ‑a trabalhar, aparentemente julgando que se ela se cansasse a carregar com pedras dor‑miria melhor à noite. Quando Susi regressou ao fim do dia, disse a Hanna: «É duro carregar pedras. Mas pelo menos vi o sol e estive com pessoas.» No dia seguinte, Susi não regressou. Hanna voltou a não ter ninguém com quem falar e começou a perder a conta aos dias. Mas ouvia outras prisioneiras a mexerem ‑se e por vezes a falarem e a gritarem.

Uma das prisioneiras cujos movimentos Hanna ouvia devia ser Marianne Wachstein, a mulher que tinha chegado em camisa de noite de Viena. Tal como Hanna, Marianne deixou um relato pormenorizado do tempo que passou no bloco de celas de madeira, e a descrição de muito daquilo por que passou condiz com a de Hanna, embora as circunstâncias em que pres‑taram os seus respetivos testemunhos fossem muito diferentes.

Hanna só pôde contar a sua história depois da guerra, mas Marianne escreveu um relato não censurado do que tinha visto seis meses depois da sua ocorrência. Em fevereiro de 1940, Marianne foi inesperadamente liber‑tada para prestar depoimento no julgamento do seu marido, um homem de negócios judeu acusado de corrupção por um tribunal nazi. Ela escreveu o seu relato nas primeiras semanas depois de ser libertada, enquanto recuperava num hospital em Viena. Por consequência, ele é único, por ser virtualmente contemporâneo. «O campo de concentração de Ravensbrück, perto de Fürs‑tenberg, é um campo de trabalho escravo», começou ela.

O trabalho que temos de fazer lá (eu sofria dos nervos e não podia trabalhar por essa razão) é empurrar cilindros usando duas cordas e uma pega. É essa pega que as mulheres têm de agarrar e puxar. Têm de carregar areia em caixas de madeira, trabalhando ao sol, nove horas por dia. Três vezes por dia e duas aos sábados há a dita chamada. As prisioneiras têm de se perfilar à frente dos barra‑cões e de se manter imóveis, como soldados, com as mãos ao lado do corpo, até serem contadas pela Frau Oberaufseherin [Langefeld]. O campo tem 17 barracões. Um dos barracões é para judias.

Marianne fala em seguida da sua chegada a Ravensbrück e conta o que lhe aconteceu na cela de madeira. Não havia luz. A guarda, Zimmer, entrou e

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 65 8/28/15 6:04 PM

Page 56: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

66

começou a berrar ‑lhe: «Agora vais passar fome e não vais sair daqui.» Marianne respondeu ‑lhe: «Se for a vontade de Deus, morrerei aqui.» Ao ouvir aquilo, Zimmer levou Marianne para o corredor e mandou que se despisse até ficar em camisa. «Vestiram ‑me uma camisa de forças. Fiquei com as mãos tão apertadas que me incharam. Agarraram ‑me pelo pescoço e atiraram ‑me para dentro da cela e, por causa da camisa de forças, desmaiei e tive um ataque de nervos e pus ‑me aos gritos.»

Quando Marianne acordou, estava um homem de uniforme a empurrá‑‑la. Era o delegado de Koegel, Egon Zill, que a socava no nariz e nos pés enquanto Zimmer lhe puxava pelo cabelo. Incapaz de se proteger, como estava ainda com a camisa de forças, Marianne desmaiou outra vez com as dores e, quando acordou, viu que estava deitada nos seus próprios excremen‑tos e que a camisa de forças lhe tinha sido tirada. Passou essa noite na cela, em camisa de noite, com os dentes a baterem.

No dia seguinte deram ‑lhe um cobertor e no terceiro dia um saco de palha e outro cobertor, mas não comeu durante três dias. A seguir, disseram a Marianne que tinha sido condenada a mais três semanas de detenção «por gritar na cela e ficar deitada nos seus próprios excrementos».

Tal como Hanna Sturm, Marianne foi apresentada a Hedwig Apfel. E, tal como Hanna, foi obrigada a partilhar a cela com Hedwig como punição. Ao contrário de Hanna, no entanto, Marianne não tinha dúvida de que Hedwig Apfel era louca. Quando Zimmer vinha à porta delas, Apfel atirava ‑lhe a sua água e cuspia para a porta e para o saco de palha. «Ela tem diarreia e não se limpa. Cospe nas mãos e esfrega o rosto.»

Havia um beliche na cela e Apfel dormia na cama de cima. À noite, vinha sentar ‑se na cama de Marianne, mas Marianne não tinha qualquer desejo de travar amizade com ela e dizia ‑lhe que se fosse embora. Em retaliação, Apfel rasgava os cobertores de Marianne e desfazia ‑lhe a cama. «E fala toda a noite, a praguejar contra Deus. Tem as mãos, os braços e as pernas tão magros como uma aranha.»

Devido ao ruído, as guardas não se atreviam a entrar na cela. Ao terceiro dia, a «louca» Apfel sentou ‑se na cama de cima, verteu o café na cabeça de Marianne e pôs ‑se a atirar ‑lhe coisas e a berrar ‑lhe. Zimmer abriu a porta da cela, mas não se atreveu a entrar. Por fim, Zimmer ordenou a Margot Kaiser que entrasse na cela e Marianne foi retirada e fechada de novo sozinha, antes de ser libertada e enviada para o seu bloco.

No início de setembro, muito depois de Marianne Wachstein ter saído do bloco de celas, Hanna ainda lá continuava, fechada sozinha no escuro e sem qualquer esperança de libertação. Tinha perdido a conta ao tempo, mas ainda espreitava pelos buracos para as celas vizinhas para ver se alguém se encon‑trava nelas. Uma das celas, comparada com a dela, parecia bastante confor‑tável; tinha uma cama com um cobertor e um banco, mas continuava vazia. Algum tempo depois — Hanna não sabia quanto —, ouviu alguém a falar na cela e reconheceu a voz dessa pessoa. Era Olga Benario.

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 66 8/28/15 6:04 PM

Page 57: FICHA TÉCNICA Autora: Sarah Helm Copyright © 2015 by Sarah ... · neiras, quase todas alemãs. Muitas tinham sido detidas por se oporem a Hitler — comunistas, por exemplo, e testemunhas

67

* * *

Como Leocadia e Olga receavam nos últimos dias de agosto, o visto mexi‑cano de Olga tinha ficado retido no correio — de facto, não tinha chegado a sair de Nova Iorque. Em 1 de setembro, forças alemãs entraram na Polónia e eclodiu a guerra, anulando qualquer hipótese de Olga sair da Alemanha. Em 8 de setembro, a Gestapo levou ‑a de volta a Ravensbrück.

Como a consideravam agora uma ameaça menos importante (por razões não explicadas), as condições da sua detenção não eram tão rigorosas como antes; traziam ‑lhe comida regularmente e estava autorizada a receber cartas, entre elas um envelope do consulado mexicano em Hamburgo com uma cópia do seu visto, que tinha acabado por chegar. Como Olga bem sabia, no entanto, era demasiado tarde — e, de qualquer modo, uma cópia não bastava.

Sob novas e mais estritas regras de censura em tempos de guerra, Olga escreveu a Leocadia e a Lígia em 13 de setembro:

Minhas queridas!Voltei para o campo de Ravensbrück. Recebi visto de entrada no México do con‑

sulado mexicano em Hamburgo, mas receio bem que não poderei fazer uso dele. No entanto, sei que continuarão a fazer tudo o que é possível por mim. Entre‑guem a carta inclusa a Carlos e por favor deem ‑me mais pormenores sobre a Anita.

Com todo o meu afeto, beijos à minha filhinha.A vossa Olga.

Logo que pôde, Hanna deu a conhecer a sua presença a Olga, segre dando ‑lhe por um dos minúsculos buracos que tinha feito na parede. Olga ficou espan‑tada por encontrar a sua amiga na cela ao lado, dizendo ‑lhe que ouvira falar da detenção do grupo de leitura de Tolstoi quando voltou para o campo.

Hanna disse que estava a passar fome e Olga ofereceu ‑se para partilhar a sua comida; conseguiram alargar o buraco na parede para Olga poder dar pão a Hanna — tal como Hanna tinha feito chegar comida a Olga quando estavam a fazê ‑la passar fome alguns meses antes. «Precisas de comida quente, mas como é que havemos de nos arranjar?», perguntou ‑se Olga. «O melhor era aproximares a boca do buraco e eu dou ‑te de comer. De manhã dou ‑te o pão, logo depois de a Zimmer trazer o café.»

Olga disse então a Hanna que tinha uma notícia para ela, mas que teriam de falar rapidamente, antes de «die Alte» voltar. A notícia era que a guerra tinha rebentado. Na sua cela solitária, Hanna não fazia ideia do que se pas‑sava no exterior e Olga transmitiu ‑lhe tudo o que tinha ficado a saber em Berlim. Daí a pouco tempo, todas as prisioneiras do bloco de celas estavam já a par dos acontecimentos, porque Zimmer andava a «celebrar e a gabar‑‑se às prisioneiras das “gloriosas” notícias das conquistas nazis que estão a acontecer todos os dias na guerra».

SeIstoEMulher-PDF_imac.indd 67 8/28/15 6:04 PM