FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa...
Transcript of FICHA TÉCNICA - repositorio-aberto.up.ptuma mulher viajante e escrever relatos de viagem, numa...
FICHA TEacuteCNICA
TIacuteTULO LIBRETOS MATERIAIS PARA O FIM DO MUNDO ndash 12
Maio de 2020
PROPRIEDADE E EDICcedilAtildeO INSTITUTO DE LITERATURA COMPARADA MARGARIDA LOSA WWWILCMLCOM | VIA PANORAcircMICA SN 4150-564 PORTO PORTUGAL E-MAIL ilcletrasuppt TEL +351 226 077 100
CONSELHO DE REDACCcedilAtildeO DE LIBRETOS DIRECTORES ANA LUIacuteSA AMARAL ANA PAULA COUTINHO JOANA MATOS FRIAS MARIA DE FAacuteTIMA OUTEIRINHO
ORGANIZADOR DO LIBRETO Nordm 21 PEDRO EIRAS
AUTORES MARIA DE FAacuteTIMA LAMBERT PATRIacuteCIA LINO PEDRO EIRAS
ASSISTENTE EDITORIAL LURDES GONCcedilALVES
CAPA Fotografia de Pedro Eiras (placa indicativa de nomes de praias entre Leccedila da Palmeira e Vila do Conde)
PUBLICACcedilAtildeO NAtildeO PERIOacuteDICA
VERSAtildeO ELECTROacuteNICA ISBN 978-989-54784-0-8 DOI 10217479789895478408fdm12
OBS Os textos seguem as normas ortograacuteficas escolhidas pelos autores O conteuacutedo dos ensaios eacute da responsabilidade exclusiva dos seus autores
copy INSTITUTO DE LITERATURA COMPARADA MARGARIDA LOSA 2020
Esta publicaccedilatildeo eacute desenvolvida e financiada por Fundos Nacionais atraveacutes da FCT ndash Fundaccedilatildeo para a Ciecircncia e a Tecnologia no acircmbito do Programa Estrateacutegico ldquoUIDP005002020rdquo
21 Materiais para o Fim do Mundo - 12
Org Pedro Eiras
052020 5 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a1
Nota de abertura
No dia 21 de Dezembro de 2012 a expectativa de um fim do mundo ndash tatildeo
espectacular quanto improvaacutevel ndash foi vivida agrave escala planetaacuteria Entre terrores genuiacutenos e
um iroacutenico ambiente de festa a data fatiacutedica passou sem incidentes e profecias de novas
datas para uma destruiccedilatildeo do planeta comeccedilaram imediatamente a surgir
O que eacute o fim do mundo Um juiacutezo universal da humanidade conforme dizem os
textos vetero- e neotestamentaacuterios Uma cataacutestrofe ecoloacutegica global e iminente provocada
pelo homem A alegoria de um mundo que perdeu as suas (meta)narrativas vogando sem
verdade e sem destino apoacutes Auschwitz e Sarajevo O pretexto para a seduccedilatildeo do
espectaacuteculo entre filmes-cataacutestrofe e um delicioso imaginaacuterio da destruiccedilatildeo Ou o confronto
de cada qual com a sua morte proacutepria Por que nos fascina e aterroriza este tema milenar
nunca resolvido ndash e o que temos a ganhar com a exploraccedilatildeo do nosso proacuteprio terror
Para estudar o imaginaacuterio do fim do mundo o Instituto de Literatura Comparada
Margarida Losa organizou entre 2013 e 2018 uma seacuterie de seminaacuterios abertos coincidindo
com os equinoacutecios e os solstiacutecios Os libretos Materiais para o Fim do Mundo recolhem
alguns ensaios apresentados nesses seminaacuterios ou textos afins Neste uacuteltimo libreto da seacuterie
Materiais para o Fim do Mundo Maria de Faacutetima Lambert analisa as viagens a vaacuterios confins
do mundo da escritora Maria Graham Callcott (1775-1842) avaliando o que significa ser
uma mulher viajante e escrever relatos de viagem numa interminaacutevel dialeacutectica entre o
conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar Patriacutecia Lino retoma algumas
questotildees do seu ensaio ldquolaquoComeccedilava soacute para ti o fim do mundoraquordquo (Materiais para o Fim do
Mundo 1 2014) pensando a dimensatildeo poliacutetica da poesia a invenccedilatildeo e a resistecircncia ao
cacircnone a criaccedilatildeo do mundo e a observaccedilatildeo ldquoempaacutetica e humilderdquo do mundo do outro e eu
proacuteprio faccedilo um saldo dos seminaacuterios realizados entre 2013 e 2018 gizando algumas
conclusotildees possiacuteveis antevendo novas pesquisas a realizar
Pedro Eiras
5
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2 7
[Quase] ateacute ao fim do mundo viajantes intreacutepidas
Maria de Faacutetima Lambert
InED - Escola Superior de EducaccedilatildeoPoliteacutecnico do Porto
Resumo As viagens transcontinentais ao tempo de Maria Graham eram jornadas [quase] ateacute ao fim do
mundo As mulheres que as empreendiam cumpriam premissas especiacuteficas que se constata hoje serem
manifestaccedilotildees identitaacuterias ousadas inovadoras pois [com subtileza] transgrediam as convicccedilotildees e
procedimentos societaacuterios dominantes Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica ou
expediccedilatildeo cientiacutefica Todavia a atividade que concretizou aproxima-se (senatildeo supera) o impacto da
produccedilatildeo literaacuteria e visual de outros protagonistas europeus que cumpriam objetivos cientiacuteficos
expliacutecitos A autora inglesa integrando de um panorama histoacuterico preenchido por figuras emblemaacuteticas
afirmou desempenhos pessoais resilientes e luacutecidos ao envolver-se na sociedade brasileira (portuguesa)
tendo-se aproximado das comunidades autoacutectones para mais corretamente entretecer as suas
consideraccedilotildees decorrendo da sua experiecircncia in loco e de estudos multidisciplinares
Palavras-chave ateacute ao fim do mundo Maria Graham viajantes intreacutepidas
Abstract Transcontinental journeys at the time of Mary Graham were journeys towards [almost] the
end of the world The women who undertook them fulfilled specific assumptions that today are found to
be bold and being innovative manifestations of their identities because they [although subtly]
transgressed the prevailing societal beliefs and procedures Maria Graham was not part of any artistic
mission or scientific expedition However the activity that she accomplished approaches (if not
surpasses) the impact of her literary and visual production close to other European protagonists that
fulfilled explicit scientific goals The English woman-author being part of a historical panorama filled with
emblematic figures affirmed a resilient and lucid personal performances by getting involved in Brazilian
(Portuguese) society having approached the indigenous communities to more correctly entertain her
considerations from their on-site experience and multidisciplinary studies
Keywords until the end of the world Maria Graham intrepid women travelers
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Stop the world I want to get out
Sammy Davies Jr
Todas as acircnsias e inquietudes do mundo natildeo se modificaratildeo
Augusto Alfred Schmidt
1 Onde eacute o fim do mundo O que eacute o fim do mundo O fim do mundo eacute de
qualquer um e eacute diferente
Yinka Shonibare Boy with a Globe 4 2011
Yinka Shonibare Girl on Globe 2012
A compreensatildeo do mundo e a compreensatildeo da Arte entretecem-se na escrita e
em imagens que se indispotildeem ou conciliam ao longo de uma vasta literatura e de uma
produccedilatildeo graacutefica e pictoacuterica relevante a que se adicionaram os registos fotograacuteficos
cinematograacuteficos e videograacuteficos Na compilaccedilatildeo de autores que aquiesceram agrave
tendecircncia ou compulsatildeo por partilhar conservar (ou apenas fruir) as suas viagens um
nuacutemero muito significativo de mulheres viajantes destaca-se A que imago do mundo se
destinavam os impulsos que efabulaccedilotildees ou confrontos com a realidade lhes dava
reacuteplica que fim lhes cabia atingir Questione-se quais mapas orientavam os itineraacuterios
quantas vezes se mostraram insuficientes ou falseando a verdade in locohellip remetendo
8
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
para viagens histoacutericas a um tempo em que os contornos dos continentes ainda
precisavam de reconfigurar a factualidade do espaccedilo e seu tempo
Quais os elementos ndash em termos cosmogoacutenicos ndash que (melhor) clamam e
correspondem agraves representaccedilotildees entranhadas que elaboramos quanto ao fim do mundo
isto de acordo com as nossas pulsotildees a sensibilidade primaacuteria os toacutepicos filosoacuteficos e
culturais que a nossa formaccedilatildeo imediatamente convoca seraacute o fogo seraacute a aacutegua seraacute a
terra seraacute o ar Bachelard serve muito justamente para o efeito assim como agraves suas
obras intrinsecamente se associaraacute Charles Mauron e as suas Imagens Obcecantes e as
derivas de Jean-Jacques Wunenburger acerca das Fontes do Imaginaacuterio e a Utopiahellip
passando obviamente por Gilbert Durand ndash Estruturas Antropoloacutegicas do Imaginaacuterio e
ainda as beliacutessimas Iconologias privilegiando Cesare Ripa ndash no relativo agrave representaccedilatildeo
destes Elementos e de todos os conceitos e ideias que estejam associadoshellip e satildeo muitos
A 15 de janeiro de 1941 Olivier Messiaen apresentou o seu Quatuor pour la Fin du
Temps na Barrack 27 Stalag VIIIA perante um puacuteblico de cerca de 400 pessoas entre
prisioneiros e guardas Estava-se em plena 2ordf Guerra Mundial e o compositor francecircs
era prisioneiro de guerra no campo alematildeo de Goumlrlitz (atualmente territoacuterio da Poloacutenia)
Os quatro muacutesicos foram Henri Akoka (clarinetista) Jean le Boulaire (violinista)
Eacutetienne Pasquier (violoncelista) e o proacuteprio Messiaen ao piano A peccedila estrutura-se em 8
partes com as designaccedilotildees francesas
I Liturgie de cristal
II Vocalise pour lAnge qui annonce la fin du Temps
III Abicircme des oiseaux
IV Intermegravede
V Louange agrave lEacuteterniteacute de Jeacutesus
VI Danse de la fureur pour les sept trompettes
VII Fouillis drsquoarcs-en-ciel pour lAnge qui annonce la fin du Temps
VIII Louange agrave lImmortaliteacute de Jeacutesus
Olivier Messiaen e o seu Quarteto para o Fim do Tempo (1940) poderia ser uma espeacutecie
de fundo existencial para afinidades eletivashellip um pouco como se fosse aquela muacutesica
das esferas que Pitagoacuteras elucidou O compositor tomou como referecircncia o Apocalipse de
Satildeo Joatildeo ndash Livro da Revelaccedilatildeo no seu Cap 101-2 e 5-7 ldquoJe vis un autre ange puissant
9
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
qui descendait du ciel enveloppeacute dune nueacutee au-dessus de sa tecircte eacutetait lrsquoarc-en-ciel et
son visage eacutetait comme le soleil et ses pieds comme des colonnes de feu (hellip) Et lange
que je voyais debout sur la mer et sur la terre leva sa main droite vers le ciel et jura par
celui qui vit aux siegravecles des siegravecles (hellip) quil ny aurait plus de tempshelliprdquo (Le Livre de la
Reacuteveacutelation sd 110) ldquoNatildeo haveria [mais] tempohelliprdquo no sentido de quem natildeo se puder
aguardar mais para quehellip ateacute quehellip O tempo estaria condicionado pelas condiccedilotildees e
circunstacircncias da histoacuteria A circunscrever a accedilatildeo e a obrigaacute-la quer em termos
individuais quer gregaacuterios
Clarice Lispector advertiu quanto agrave polissemia na sua A Descoberta do Mundo
compilaccedilatildeo das 468 croacutenicas escritas para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973
Ruben A o escritor portuguecircs que residiu e lecionou em Inglaterra expressou
em O Mundo agrave minha Procura um projeto autobiograacutefico em 3 volumes publicados numa
primeira ediccedilatildeo parceria com Antoacutenio Maria Pereira (Lisboa) em 1964 1966 e 1968
Imensidatildeo do mundo | Mundo eacute redondo ndash sagrado | Mundo eacute em linha reta ndash
humano
Claire Fontaine ndash Estrangeiros em Todo Lugar (foreigners everywhere) 2009
httpsmamorgbrexposicao31o-panorama-da-arte-brasileira
As alusotildees ao fim do mundo satildeo recorrentes na histoacuteria da Arte e da Cultura
[Europeias] Ocidentais evidenciando quanto eacute um estigma independentemente de
prevalecerem causas religiosas eou sagradas Sendo recorrentes evocam precisamente
o ciacuterculo e a esfera que contecircm o dinamismo e a quietude o comprometimento e a
isenccedilatildeo O mundo eacute uma bela metaacutefora do mito para aleacutem de o oposto ser vaacutelido Pois a
10
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
linha que fecha sem comeccedilar pode estender-se desenrolar-se e perder-se ateacute o fim A
linha reta do mundo que eacute humano e cuja topografia impede seja plano Sempre imenso
preenchido pelas incontaacuteveis evocaccedilotildees que ao longo da histoacuteria da cultura integraram a
palavra a ideia a imagem o som o cheirohellip e assim por diante de algo que se escreve m
u n d o Por esse motivo a investigaccedilatildeo para este desafio do Seminaacuterio do Fim do Mundo
num primeiro momento consistiu na recuperaccedilatildeo de leituras soltas que aludiam ao
mundo A partir destas leituras em tempo deslocado configurou-se mais nitidamente a
exigecircncia a convocatoacuteria da viagem que fosse (quase) ateacute ao fim do mundo
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 1 ndash Mundo que natildeo chega ao fim ou talvez
Joyce Kozloff ndash Targets 2000-2003 wwwjoycekozloffnet2000-2003-targets-rocking-the-cradle
Le monde nous deacuterobe agrave nous-mecircmes et la solitude nous y rend Le monde nest quune troupe de
fugitifs deux-mecircmes
Madame de Lambert
Ainda natildeo eacute o fim nem o princiacutepio do mundo calma eacute apenas um pouco tarde
Manuel Antoacutenio Pina
O mar estaacute sempre em movimento para natildeo sair do lugar Se o mar saiacutesse do lugar teriacuteamos de
mudar os mapas
Arnaldo Antunes
11
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Era a minha cidade ao norte do mapa
numa velocidade chamada
mundo sombrio (hellip)
E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol no mapa
do mundo
Herberto Helder
Teus ombros suportam o mundo
E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila
Carlos Drummond de Andrade
Chamar-te visatildeo seria
malconhecer as visotildees
de que eacute cheio o mundo
e vazio
Carlos Drummond de Andrade
Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera
Clarice Lispector
Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou
(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel
Clarice Lispector
A uacuteltima casa desta aldeia estaacute
tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo
Rainer Maria Rilke
Eu estou aqui
no mundo das palavras-objectos
que mudamente me falam
com quem mudamente falo
ao usaacute-las
mas que uso fazem elas de mim
Ana Hatherly
12
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O mundo eacute grande
incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)
Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi
agrave minha custa e agrave das coisas para
criar real o mundo e os olhos que
no mundo reconhecem o real
Jorge de Sena
Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber
a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com
faca
b) O modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que eacute que as borboletas de tarjas
vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia
num fagote tem salvaccedilatildeo
Manoel de Barros
Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o
poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e
os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a
nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem
em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo
Sophia de Mello Breyner Andresen
Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute
algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro
Pascal Quignard
2 Viagens ateacute ao fim do mundo
Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando
pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo
cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias
subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que
13
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o
final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim
Wenders (1991)
Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia
que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem
Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php
httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim
Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos
Porque sou ainda muito mau poeta
Porque o universo me ultrapassa
Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro
Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas
E tenho medo
Blaise Cendrars
Quero ver o que haacute no mundo
O que resta
O que deitaram fora
O que deixou de se apreciar
O que teve de se sacrificar
O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem
Susan Sontag
14
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o
explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar
Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital
Michel Maffesoli
La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par
des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le
genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une
singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des
reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme
reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas
Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement
dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se
fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe
Jean Starobinski
3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham
Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-
by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english
Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute
ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me
nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott
15
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao
debate que se venha a seguir
Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar
Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de
viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por
literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente
todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute
um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia
de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do
imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e
demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo
A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)
alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que
indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os
seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se
guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia
Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do
mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela
forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra
Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip
Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo
de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe
o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi
prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo
necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam
aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e
espessavam as topografias
Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours
sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa
Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du
monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute
16
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes
ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le
nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau
aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle
peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il
ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les
marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres
classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation
sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les
autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de
pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent
(Rousseau 1754 95)
Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus
que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que
lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais
Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-
Jacques Rousseau
1 Marinheiros
2 Comerciantes
3 Soldados
4 Missionaacuterios
E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que
deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas
Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash
Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse
escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo
literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que
mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma
caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja
distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se
com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo
17
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos
primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e
concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave
semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres
Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-
alten-ansichtenrom-egeriahtml
Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria
wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-
egeriahtml
Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do
tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma
classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio
cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no
prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos
anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe
quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da
viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla
die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst
einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit
es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen
muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das
suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos
As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no
contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada
18
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que
teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda
imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os
investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo
recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina
Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio
natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante
Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2
- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do
Egipto
- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra
Prometida
- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute
- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e
Calcedoacutenia
Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres
empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo
qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao
fim do mundo
Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo
experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo
trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um
recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de
embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)
As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio
suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados
apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se
ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e
fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-
lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como
19
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
21 Materiais para o Fim do Mundo - 12
Org Pedro Eiras
052020 5 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a1
Nota de abertura
No dia 21 de Dezembro de 2012 a expectativa de um fim do mundo ndash tatildeo
espectacular quanto improvaacutevel ndash foi vivida agrave escala planetaacuteria Entre terrores genuiacutenos e
um iroacutenico ambiente de festa a data fatiacutedica passou sem incidentes e profecias de novas
datas para uma destruiccedilatildeo do planeta comeccedilaram imediatamente a surgir
O que eacute o fim do mundo Um juiacutezo universal da humanidade conforme dizem os
textos vetero- e neotestamentaacuterios Uma cataacutestrofe ecoloacutegica global e iminente provocada
pelo homem A alegoria de um mundo que perdeu as suas (meta)narrativas vogando sem
verdade e sem destino apoacutes Auschwitz e Sarajevo O pretexto para a seduccedilatildeo do
espectaacuteculo entre filmes-cataacutestrofe e um delicioso imaginaacuterio da destruiccedilatildeo Ou o confronto
de cada qual com a sua morte proacutepria Por que nos fascina e aterroriza este tema milenar
nunca resolvido ndash e o que temos a ganhar com a exploraccedilatildeo do nosso proacuteprio terror
Para estudar o imaginaacuterio do fim do mundo o Instituto de Literatura Comparada
Margarida Losa organizou entre 2013 e 2018 uma seacuterie de seminaacuterios abertos coincidindo
com os equinoacutecios e os solstiacutecios Os libretos Materiais para o Fim do Mundo recolhem
alguns ensaios apresentados nesses seminaacuterios ou textos afins Neste uacuteltimo libreto da seacuterie
Materiais para o Fim do Mundo Maria de Faacutetima Lambert analisa as viagens a vaacuterios confins
do mundo da escritora Maria Graham Callcott (1775-1842) avaliando o que significa ser
uma mulher viajante e escrever relatos de viagem numa interminaacutevel dialeacutectica entre o
conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar Patriacutecia Lino retoma algumas
questotildees do seu ensaio ldquolaquoComeccedilava soacute para ti o fim do mundoraquordquo (Materiais para o Fim do
Mundo 1 2014) pensando a dimensatildeo poliacutetica da poesia a invenccedilatildeo e a resistecircncia ao
cacircnone a criaccedilatildeo do mundo e a observaccedilatildeo ldquoempaacutetica e humilderdquo do mundo do outro e eu
proacuteprio faccedilo um saldo dos seminaacuterios realizados entre 2013 e 2018 gizando algumas
conclusotildees possiacuteveis antevendo novas pesquisas a realizar
Pedro Eiras
5
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2 7
[Quase] ateacute ao fim do mundo viajantes intreacutepidas
Maria de Faacutetima Lambert
InED - Escola Superior de EducaccedilatildeoPoliteacutecnico do Porto
Resumo As viagens transcontinentais ao tempo de Maria Graham eram jornadas [quase] ateacute ao fim do
mundo As mulheres que as empreendiam cumpriam premissas especiacuteficas que se constata hoje serem
manifestaccedilotildees identitaacuterias ousadas inovadoras pois [com subtileza] transgrediam as convicccedilotildees e
procedimentos societaacuterios dominantes Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica ou
expediccedilatildeo cientiacutefica Todavia a atividade que concretizou aproxima-se (senatildeo supera) o impacto da
produccedilatildeo literaacuteria e visual de outros protagonistas europeus que cumpriam objetivos cientiacuteficos
expliacutecitos A autora inglesa integrando de um panorama histoacuterico preenchido por figuras emblemaacuteticas
afirmou desempenhos pessoais resilientes e luacutecidos ao envolver-se na sociedade brasileira (portuguesa)
tendo-se aproximado das comunidades autoacutectones para mais corretamente entretecer as suas
consideraccedilotildees decorrendo da sua experiecircncia in loco e de estudos multidisciplinares
Palavras-chave ateacute ao fim do mundo Maria Graham viajantes intreacutepidas
Abstract Transcontinental journeys at the time of Mary Graham were journeys towards [almost] the
end of the world The women who undertook them fulfilled specific assumptions that today are found to
be bold and being innovative manifestations of their identities because they [although subtly]
transgressed the prevailing societal beliefs and procedures Maria Graham was not part of any artistic
mission or scientific expedition However the activity that she accomplished approaches (if not
surpasses) the impact of her literary and visual production close to other European protagonists that
fulfilled explicit scientific goals The English woman-author being part of a historical panorama filled with
emblematic figures affirmed a resilient and lucid personal performances by getting involved in Brazilian
(Portuguese) society having approached the indigenous communities to more correctly entertain her
considerations from their on-site experience and multidisciplinary studies
Keywords until the end of the world Maria Graham intrepid women travelers
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Stop the world I want to get out
Sammy Davies Jr
Todas as acircnsias e inquietudes do mundo natildeo se modificaratildeo
Augusto Alfred Schmidt
1 Onde eacute o fim do mundo O que eacute o fim do mundo O fim do mundo eacute de
qualquer um e eacute diferente
Yinka Shonibare Boy with a Globe 4 2011
Yinka Shonibare Girl on Globe 2012
A compreensatildeo do mundo e a compreensatildeo da Arte entretecem-se na escrita e
em imagens que se indispotildeem ou conciliam ao longo de uma vasta literatura e de uma
produccedilatildeo graacutefica e pictoacuterica relevante a que se adicionaram os registos fotograacuteficos
cinematograacuteficos e videograacuteficos Na compilaccedilatildeo de autores que aquiesceram agrave
tendecircncia ou compulsatildeo por partilhar conservar (ou apenas fruir) as suas viagens um
nuacutemero muito significativo de mulheres viajantes destaca-se A que imago do mundo se
destinavam os impulsos que efabulaccedilotildees ou confrontos com a realidade lhes dava
reacuteplica que fim lhes cabia atingir Questione-se quais mapas orientavam os itineraacuterios
quantas vezes se mostraram insuficientes ou falseando a verdade in locohellip remetendo
8
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
para viagens histoacutericas a um tempo em que os contornos dos continentes ainda
precisavam de reconfigurar a factualidade do espaccedilo e seu tempo
Quais os elementos ndash em termos cosmogoacutenicos ndash que (melhor) clamam e
correspondem agraves representaccedilotildees entranhadas que elaboramos quanto ao fim do mundo
isto de acordo com as nossas pulsotildees a sensibilidade primaacuteria os toacutepicos filosoacuteficos e
culturais que a nossa formaccedilatildeo imediatamente convoca seraacute o fogo seraacute a aacutegua seraacute a
terra seraacute o ar Bachelard serve muito justamente para o efeito assim como agraves suas
obras intrinsecamente se associaraacute Charles Mauron e as suas Imagens Obcecantes e as
derivas de Jean-Jacques Wunenburger acerca das Fontes do Imaginaacuterio e a Utopiahellip
passando obviamente por Gilbert Durand ndash Estruturas Antropoloacutegicas do Imaginaacuterio e
ainda as beliacutessimas Iconologias privilegiando Cesare Ripa ndash no relativo agrave representaccedilatildeo
destes Elementos e de todos os conceitos e ideias que estejam associadoshellip e satildeo muitos
A 15 de janeiro de 1941 Olivier Messiaen apresentou o seu Quatuor pour la Fin du
Temps na Barrack 27 Stalag VIIIA perante um puacuteblico de cerca de 400 pessoas entre
prisioneiros e guardas Estava-se em plena 2ordf Guerra Mundial e o compositor francecircs
era prisioneiro de guerra no campo alematildeo de Goumlrlitz (atualmente territoacuterio da Poloacutenia)
Os quatro muacutesicos foram Henri Akoka (clarinetista) Jean le Boulaire (violinista)
Eacutetienne Pasquier (violoncelista) e o proacuteprio Messiaen ao piano A peccedila estrutura-se em 8
partes com as designaccedilotildees francesas
I Liturgie de cristal
II Vocalise pour lAnge qui annonce la fin du Temps
III Abicircme des oiseaux
IV Intermegravede
V Louange agrave lEacuteterniteacute de Jeacutesus
VI Danse de la fureur pour les sept trompettes
VII Fouillis drsquoarcs-en-ciel pour lAnge qui annonce la fin du Temps
VIII Louange agrave lImmortaliteacute de Jeacutesus
Olivier Messiaen e o seu Quarteto para o Fim do Tempo (1940) poderia ser uma espeacutecie
de fundo existencial para afinidades eletivashellip um pouco como se fosse aquela muacutesica
das esferas que Pitagoacuteras elucidou O compositor tomou como referecircncia o Apocalipse de
Satildeo Joatildeo ndash Livro da Revelaccedilatildeo no seu Cap 101-2 e 5-7 ldquoJe vis un autre ange puissant
9
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
qui descendait du ciel enveloppeacute dune nueacutee au-dessus de sa tecircte eacutetait lrsquoarc-en-ciel et
son visage eacutetait comme le soleil et ses pieds comme des colonnes de feu (hellip) Et lange
que je voyais debout sur la mer et sur la terre leva sa main droite vers le ciel et jura par
celui qui vit aux siegravecles des siegravecles (hellip) quil ny aurait plus de tempshelliprdquo (Le Livre de la
Reacuteveacutelation sd 110) ldquoNatildeo haveria [mais] tempohelliprdquo no sentido de quem natildeo se puder
aguardar mais para quehellip ateacute quehellip O tempo estaria condicionado pelas condiccedilotildees e
circunstacircncias da histoacuteria A circunscrever a accedilatildeo e a obrigaacute-la quer em termos
individuais quer gregaacuterios
Clarice Lispector advertiu quanto agrave polissemia na sua A Descoberta do Mundo
compilaccedilatildeo das 468 croacutenicas escritas para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973
Ruben A o escritor portuguecircs que residiu e lecionou em Inglaterra expressou
em O Mundo agrave minha Procura um projeto autobiograacutefico em 3 volumes publicados numa
primeira ediccedilatildeo parceria com Antoacutenio Maria Pereira (Lisboa) em 1964 1966 e 1968
Imensidatildeo do mundo | Mundo eacute redondo ndash sagrado | Mundo eacute em linha reta ndash
humano
Claire Fontaine ndash Estrangeiros em Todo Lugar (foreigners everywhere) 2009
httpsmamorgbrexposicao31o-panorama-da-arte-brasileira
As alusotildees ao fim do mundo satildeo recorrentes na histoacuteria da Arte e da Cultura
[Europeias] Ocidentais evidenciando quanto eacute um estigma independentemente de
prevalecerem causas religiosas eou sagradas Sendo recorrentes evocam precisamente
o ciacuterculo e a esfera que contecircm o dinamismo e a quietude o comprometimento e a
isenccedilatildeo O mundo eacute uma bela metaacutefora do mito para aleacutem de o oposto ser vaacutelido Pois a
10
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
linha que fecha sem comeccedilar pode estender-se desenrolar-se e perder-se ateacute o fim A
linha reta do mundo que eacute humano e cuja topografia impede seja plano Sempre imenso
preenchido pelas incontaacuteveis evocaccedilotildees que ao longo da histoacuteria da cultura integraram a
palavra a ideia a imagem o som o cheirohellip e assim por diante de algo que se escreve m
u n d o Por esse motivo a investigaccedilatildeo para este desafio do Seminaacuterio do Fim do Mundo
num primeiro momento consistiu na recuperaccedilatildeo de leituras soltas que aludiam ao
mundo A partir destas leituras em tempo deslocado configurou-se mais nitidamente a
exigecircncia a convocatoacuteria da viagem que fosse (quase) ateacute ao fim do mundo
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 1 ndash Mundo que natildeo chega ao fim ou talvez
Joyce Kozloff ndash Targets 2000-2003 wwwjoycekozloffnet2000-2003-targets-rocking-the-cradle
Le monde nous deacuterobe agrave nous-mecircmes et la solitude nous y rend Le monde nest quune troupe de
fugitifs deux-mecircmes
Madame de Lambert
Ainda natildeo eacute o fim nem o princiacutepio do mundo calma eacute apenas um pouco tarde
Manuel Antoacutenio Pina
O mar estaacute sempre em movimento para natildeo sair do lugar Se o mar saiacutesse do lugar teriacuteamos de
mudar os mapas
Arnaldo Antunes
11
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Era a minha cidade ao norte do mapa
numa velocidade chamada
mundo sombrio (hellip)
E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol no mapa
do mundo
Herberto Helder
Teus ombros suportam o mundo
E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila
Carlos Drummond de Andrade
Chamar-te visatildeo seria
malconhecer as visotildees
de que eacute cheio o mundo
e vazio
Carlos Drummond de Andrade
Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera
Clarice Lispector
Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou
(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel
Clarice Lispector
A uacuteltima casa desta aldeia estaacute
tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo
Rainer Maria Rilke
Eu estou aqui
no mundo das palavras-objectos
que mudamente me falam
com quem mudamente falo
ao usaacute-las
mas que uso fazem elas de mim
Ana Hatherly
12
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O mundo eacute grande
incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)
Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi
agrave minha custa e agrave das coisas para
criar real o mundo e os olhos que
no mundo reconhecem o real
Jorge de Sena
Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber
a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com
faca
b) O modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que eacute que as borboletas de tarjas
vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia
num fagote tem salvaccedilatildeo
Manoel de Barros
Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o
poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e
os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a
nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem
em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo
Sophia de Mello Breyner Andresen
Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute
algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro
Pascal Quignard
2 Viagens ateacute ao fim do mundo
Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando
pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo
cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias
subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que
13
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o
final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim
Wenders (1991)
Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia
que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem
Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php
httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim
Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos
Porque sou ainda muito mau poeta
Porque o universo me ultrapassa
Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro
Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas
E tenho medo
Blaise Cendrars
Quero ver o que haacute no mundo
O que resta
O que deitaram fora
O que deixou de se apreciar
O que teve de se sacrificar
O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem
Susan Sontag
14
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o
explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar
Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital
Michel Maffesoli
La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par
des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le
genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une
singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des
reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme
reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas
Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement
dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se
fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe
Jean Starobinski
3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham
Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-
by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english
Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute
ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me
nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott
15
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao
debate que se venha a seguir
Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar
Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de
viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por
literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente
todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute
um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia
de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do
imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e
demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo
A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)
alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que
indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os
seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se
guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia
Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do
mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela
forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra
Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip
Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo
de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe
o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi
prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo
necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam
aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e
espessavam as topografias
Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours
sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa
Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du
monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute
16
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes
ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le
nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau
aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle
peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il
ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les
marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres
classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation
sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les
autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de
pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent
(Rousseau 1754 95)
Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus
que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que
lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais
Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-
Jacques Rousseau
1 Marinheiros
2 Comerciantes
3 Soldados
4 Missionaacuterios
E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que
deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas
Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash
Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse
escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo
literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que
mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma
caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja
distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se
com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo
17
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos
primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e
concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave
semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres
Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-
alten-ansichtenrom-egeriahtml
Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria
wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-
egeriahtml
Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do
tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma
classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio
cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no
prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos
anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe
quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da
viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla
die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst
einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit
es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen
muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das
suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos
As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no
contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada
18
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que
teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda
imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os
investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo
recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina
Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio
natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante
Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2
- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do
Egipto
- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra
Prometida
- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute
- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e
Calcedoacutenia
Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres
empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo
qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao
fim do mundo
Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo
experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo
trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um
recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de
embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)
As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio
suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados
apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se
ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e
fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-
lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como
19
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 5 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a1
Nota de abertura
No dia 21 de Dezembro de 2012 a expectativa de um fim do mundo ndash tatildeo
espectacular quanto improvaacutevel ndash foi vivida agrave escala planetaacuteria Entre terrores genuiacutenos e
um iroacutenico ambiente de festa a data fatiacutedica passou sem incidentes e profecias de novas
datas para uma destruiccedilatildeo do planeta comeccedilaram imediatamente a surgir
O que eacute o fim do mundo Um juiacutezo universal da humanidade conforme dizem os
textos vetero- e neotestamentaacuterios Uma cataacutestrofe ecoloacutegica global e iminente provocada
pelo homem A alegoria de um mundo que perdeu as suas (meta)narrativas vogando sem
verdade e sem destino apoacutes Auschwitz e Sarajevo O pretexto para a seduccedilatildeo do
espectaacuteculo entre filmes-cataacutestrofe e um delicioso imaginaacuterio da destruiccedilatildeo Ou o confronto
de cada qual com a sua morte proacutepria Por que nos fascina e aterroriza este tema milenar
nunca resolvido ndash e o que temos a ganhar com a exploraccedilatildeo do nosso proacuteprio terror
Para estudar o imaginaacuterio do fim do mundo o Instituto de Literatura Comparada
Margarida Losa organizou entre 2013 e 2018 uma seacuterie de seminaacuterios abertos coincidindo
com os equinoacutecios e os solstiacutecios Os libretos Materiais para o Fim do Mundo recolhem
alguns ensaios apresentados nesses seminaacuterios ou textos afins Neste uacuteltimo libreto da seacuterie
Materiais para o Fim do Mundo Maria de Faacutetima Lambert analisa as viagens a vaacuterios confins
do mundo da escritora Maria Graham Callcott (1775-1842) avaliando o que significa ser
uma mulher viajante e escrever relatos de viagem numa interminaacutevel dialeacutectica entre o
conhecimento do estranho e o reconhecimento do familiar Patriacutecia Lino retoma algumas
questotildees do seu ensaio ldquolaquoComeccedilava soacute para ti o fim do mundoraquordquo (Materiais para o Fim do
Mundo 1 2014) pensando a dimensatildeo poliacutetica da poesia a invenccedilatildeo e a resistecircncia ao
cacircnone a criaccedilatildeo do mundo e a observaccedilatildeo ldquoempaacutetica e humilderdquo do mundo do outro e eu
proacuteprio faccedilo um saldo dos seminaacuterios realizados entre 2013 e 2018 gizando algumas
conclusotildees possiacuteveis antevendo novas pesquisas a realizar
Pedro Eiras
5
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2 7
[Quase] ateacute ao fim do mundo viajantes intreacutepidas
Maria de Faacutetima Lambert
InED - Escola Superior de EducaccedilatildeoPoliteacutecnico do Porto
Resumo As viagens transcontinentais ao tempo de Maria Graham eram jornadas [quase] ateacute ao fim do
mundo As mulheres que as empreendiam cumpriam premissas especiacuteficas que se constata hoje serem
manifestaccedilotildees identitaacuterias ousadas inovadoras pois [com subtileza] transgrediam as convicccedilotildees e
procedimentos societaacuterios dominantes Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica ou
expediccedilatildeo cientiacutefica Todavia a atividade que concretizou aproxima-se (senatildeo supera) o impacto da
produccedilatildeo literaacuteria e visual de outros protagonistas europeus que cumpriam objetivos cientiacuteficos
expliacutecitos A autora inglesa integrando de um panorama histoacuterico preenchido por figuras emblemaacuteticas
afirmou desempenhos pessoais resilientes e luacutecidos ao envolver-se na sociedade brasileira (portuguesa)
tendo-se aproximado das comunidades autoacutectones para mais corretamente entretecer as suas
consideraccedilotildees decorrendo da sua experiecircncia in loco e de estudos multidisciplinares
Palavras-chave ateacute ao fim do mundo Maria Graham viajantes intreacutepidas
Abstract Transcontinental journeys at the time of Mary Graham were journeys towards [almost] the
end of the world The women who undertook them fulfilled specific assumptions that today are found to
be bold and being innovative manifestations of their identities because they [although subtly]
transgressed the prevailing societal beliefs and procedures Maria Graham was not part of any artistic
mission or scientific expedition However the activity that she accomplished approaches (if not
surpasses) the impact of her literary and visual production close to other European protagonists that
fulfilled explicit scientific goals The English woman-author being part of a historical panorama filled with
emblematic figures affirmed a resilient and lucid personal performances by getting involved in Brazilian
(Portuguese) society having approached the indigenous communities to more correctly entertain her
considerations from their on-site experience and multidisciplinary studies
Keywords until the end of the world Maria Graham intrepid women travelers
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Stop the world I want to get out
Sammy Davies Jr
Todas as acircnsias e inquietudes do mundo natildeo se modificaratildeo
Augusto Alfred Schmidt
1 Onde eacute o fim do mundo O que eacute o fim do mundo O fim do mundo eacute de
qualquer um e eacute diferente
Yinka Shonibare Boy with a Globe 4 2011
Yinka Shonibare Girl on Globe 2012
A compreensatildeo do mundo e a compreensatildeo da Arte entretecem-se na escrita e
em imagens que se indispotildeem ou conciliam ao longo de uma vasta literatura e de uma
produccedilatildeo graacutefica e pictoacuterica relevante a que se adicionaram os registos fotograacuteficos
cinematograacuteficos e videograacuteficos Na compilaccedilatildeo de autores que aquiesceram agrave
tendecircncia ou compulsatildeo por partilhar conservar (ou apenas fruir) as suas viagens um
nuacutemero muito significativo de mulheres viajantes destaca-se A que imago do mundo se
destinavam os impulsos que efabulaccedilotildees ou confrontos com a realidade lhes dava
reacuteplica que fim lhes cabia atingir Questione-se quais mapas orientavam os itineraacuterios
quantas vezes se mostraram insuficientes ou falseando a verdade in locohellip remetendo
8
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
para viagens histoacutericas a um tempo em que os contornos dos continentes ainda
precisavam de reconfigurar a factualidade do espaccedilo e seu tempo
Quais os elementos ndash em termos cosmogoacutenicos ndash que (melhor) clamam e
correspondem agraves representaccedilotildees entranhadas que elaboramos quanto ao fim do mundo
isto de acordo com as nossas pulsotildees a sensibilidade primaacuteria os toacutepicos filosoacuteficos e
culturais que a nossa formaccedilatildeo imediatamente convoca seraacute o fogo seraacute a aacutegua seraacute a
terra seraacute o ar Bachelard serve muito justamente para o efeito assim como agraves suas
obras intrinsecamente se associaraacute Charles Mauron e as suas Imagens Obcecantes e as
derivas de Jean-Jacques Wunenburger acerca das Fontes do Imaginaacuterio e a Utopiahellip
passando obviamente por Gilbert Durand ndash Estruturas Antropoloacutegicas do Imaginaacuterio e
ainda as beliacutessimas Iconologias privilegiando Cesare Ripa ndash no relativo agrave representaccedilatildeo
destes Elementos e de todos os conceitos e ideias que estejam associadoshellip e satildeo muitos
A 15 de janeiro de 1941 Olivier Messiaen apresentou o seu Quatuor pour la Fin du
Temps na Barrack 27 Stalag VIIIA perante um puacuteblico de cerca de 400 pessoas entre
prisioneiros e guardas Estava-se em plena 2ordf Guerra Mundial e o compositor francecircs
era prisioneiro de guerra no campo alematildeo de Goumlrlitz (atualmente territoacuterio da Poloacutenia)
Os quatro muacutesicos foram Henri Akoka (clarinetista) Jean le Boulaire (violinista)
Eacutetienne Pasquier (violoncelista) e o proacuteprio Messiaen ao piano A peccedila estrutura-se em 8
partes com as designaccedilotildees francesas
I Liturgie de cristal
II Vocalise pour lAnge qui annonce la fin du Temps
III Abicircme des oiseaux
IV Intermegravede
V Louange agrave lEacuteterniteacute de Jeacutesus
VI Danse de la fureur pour les sept trompettes
VII Fouillis drsquoarcs-en-ciel pour lAnge qui annonce la fin du Temps
VIII Louange agrave lImmortaliteacute de Jeacutesus
Olivier Messiaen e o seu Quarteto para o Fim do Tempo (1940) poderia ser uma espeacutecie
de fundo existencial para afinidades eletivashellip um pouco como se fosse aquela muacutesica
das esferas que Pitagoacuteras elucidou O compositor tomou como referecircncia o Apocalipse de
Satildeo Joatildeo ndash Livro da Revelaccedilatildeo no seu Cap 101-2 e 5-7 ldquoJe vis un autre ange puissant
9
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
qui descendait du ciel enveloppeacute dune nueacutee au-dessus de sa tecircte eacutetait lrsquoarc-en-ciel et
son visage eacutetait comme le soleil et ses pieds comme des colonnes de feu (hellip) Et lange
que je voyais debout sur la mer et sur la terre leva sa main droite vers le ciel et jura par
celui qui vit aux siegravecles des siegravecles (hellip) quil ny aurait plus de tempshelliprdquo (Le Livre de la
Reacuteveacutelation sd 110) ldquoNatildeo haveria [mais] tempohelliprdquo no sentido de quem natildeo se puder
aguardar mais para quehellip ateacute quehellip O tempo estaria condicionado pelas condiccedilotildees e
circunstacircncias da histoacuteria A circunscrever a accedilatildeo e a obrigaacute-la quer em termos
individuais quer gregaacuterios
Clarice Lispector advertiu quanto agrave polissemia na sua A Descoberta do Mundo
compilaccedilatildeo das 468 croacutenicas escritas para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973
Ruben A o escritor portuguecircs que residiu e lecionou em Inglaterra expressou
em O Mundo agrave minha Procura um projeto autobiograacutefico em 3 volumes publicados numa
primeira ediccedilatildeo parceria com Antoacutenio Maria Pereira (Lisboa) em 1964 1966 e 1968
Imensidatildeo do mundo | Mundo eacute redondo ndash sagrado | Mundo eacute em linha reta ndash
humano
Claire Fontaine ndash Estrangeiros em Todo Lugar (foreigners everywhere) 2009
httpsmamorgbrexposicao31o-panorama-da-arte-brasileira
As alusotildees ao fim do mundo satildeo recorrentes na histoacuteria da Arte e da Cultura
[Europeias] Ocidentais evidenciando quanto eacute um estigma independentemente de
prevalecerem causas religiosas eou sagradas Sendo recorrentes evocam precisamente
o ciacuterculo e a esfera que contecircm o dinamismo e a quietude o comprometimento e a
isenccedilatildeo O mundo eacute uma bela metaacutefora do mito para aleacutem de o oposto ser vaacutelido Pois a
10
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
linha que fecha sem comeccedilar pode estender-se desenrolar-se e perder-se ateacute o fim A
linha reta do mundo que eacute humano e cuja topografia impede seja plano Sempre imenso
preenchido pelas incontaacuteveis evocaccedilotildees que ao longo da histoacuteria da cultura integraram a
palavra a ideia a imagem o som o cheirohellip e assim por diante de algo que se escreve m
u n d o Por esse motivo a investigaccedilatildeo para este desafio do Seminaacuterio do Fim do Mundo
num primeiro momento consistiu na recuperaccedilatildeo de leituras soltas que aludiam ao
mundo A partir destas leituras em tempo deslocado configurou-se mais nitidamente a
exigecircncia a convocatoacuteria da viagem que fosse (quase) ateacute ao fim do mundo
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 1 ndash Mundo que natildeo chega ao fim ou talvez
Joyce Kozloff ndash Targets 2000-2003 wwwjoycekozloffnet2000-2003-targets-rocking-the-cradle
Le monde nous deacuterobe agrave nous-mecircmes et la solitude nous y rend Le monde nest quune troupe de
fugitifs deux-mecircmes
Madame de Lambert
Ainda natildeo eacute o fim nem o princiacutepio do mundo calma eacute apenas um pouco tarde
Manuel Antoacutenio Pina
O mar estaacute sempre em movimento para natildeo sair do lugar Se o mar saiacutesse do lugar teriacuteamos de
mudar os mapas
Arnaldo Antunes
11
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Era a minha cidade ao norte do mapa
numa velocidade chamada
mundo sombrio (hellip)
E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol no mapa
do mundo
Herberto Helder
Teus ombros suportam o mundo
E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila
Carlos Drummond de Andrade
Chamar-te visatildeo seria
malconhecer as visotildees
de que eacute cheio o mundo
e vazio
Carlos Drummond de Andrade
Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera
Clarice Lispector
Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou
(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel
Clarice Lispector
A uacuteltima casa desta aldeia estaacute
tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo
Rainer Maria Rilke
Eu estou aqui
no mundo das palavras-objectos
que mudamente me falam
com quem mudamente falo
ao usaacute-las
mas que uso fazem elas de mim
Ana Hatherly
12
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O mundo eacute grande
incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)
Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi
agrave minha custa e agrave das coisas para
criar real o mundo e os olhos que
no mundo reconhecem o real
Jorge de Sena
Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber
a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com
faca
b) O modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que eacute que as borboletas de tarjas
vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia
num fagote tem salvaccedilatildeo
Manoel de Barros
Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o
poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e
os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a
nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem
em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo
Sophia de Mello Breyner Andresen
Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute
algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro
Pascal Quignard
2 Viagens ateacute ao fim do mundo
Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando
pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo
cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias
subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que
13
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o
final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim
Wenders (1991)
Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia
que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem
Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php
httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim
Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos
Porque sou ainda muito mau poeta
Porque o universo me ultrapassa
Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro
Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas
E tenho medo
Blaise Cendrars
Quero ver o que haacute no mundo
O que resta
O que deitaram fora
O que deixou de se apreciar
O que teve de se sacrificar
O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem
Susan Sontag
14
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o
explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar
Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital
Michel Maffesoli
La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par
des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le
genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une
singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des
reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme
reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas
Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement
dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se
fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe
Jean Starobinski
3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham
Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-
by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english
Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute
ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me
nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott
15
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao
debate que se venha a seguir
Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar
Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de
viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por
literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente
todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute
um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia
de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do
imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e
demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo
A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)
alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que
indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os
seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se
guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia
Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do
mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela
forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra
Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip
Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo
de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe
o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi
prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo
necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam
aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e
espessavam as topografias
Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours
sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa
Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du
monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute
16
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes
ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le
nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau
aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle
peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il
ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les
marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres
classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation
sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les
autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de
pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent
(Rousseau 1754 95)
Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus
que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que
lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais
Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-
Jacques Rousseau
1 Marinheiros
2 Comerciantes
3 Soldados
4 Missionaacuterios
E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que
deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas
Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash
Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse
escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo
literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que
mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma
caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja
distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se
com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo
17
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos
primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e
concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave
semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres
Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-
alten-ansichtenrom-egeriahtml
Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria
wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-
egeriahtml
Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do
tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma
classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio
cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no
prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos
anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe
quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da
viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla
die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst
einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit
es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen
muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das
suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos
As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no
contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada
18
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que
teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda
imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os
investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo
recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina
Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio
natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante
Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2
- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do
Egipto
- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra
Prometida
- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute
- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e
Calcedoacutenia
Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres
empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo
qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao
fim do mundo
Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo
experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo
trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um
recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de
embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)
As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio
suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados
apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se
ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e
fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-
lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como
19
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2 7
[Quase] ateacute ao fim do mundo viajantes intreacutepidas
Maria de Faacutetima Lambert
InED - Escola Superior de EducaccedilatildeoPoliteacutecnico do Porto
Resumo As viagens transcontinentais ao tempo de Maria Graham eram jornadas [quase] ateacute ao fim do
mundo As mulheres que as empreendiam cumpriam premissas especiacuteficas que se constata hoje serem
manifestaccedilotildees identitaacuterias ousadas inovadoras pois [com subtileza] transgrediam as convicccedilotildees e
procedimentos societaacuterios dominantes Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica ou
expediccedilatildeo cientiacutefica Todavia a atividade que concretizou aproxima-se (senatildeo supera) o impacto da
produccedilatildeo literaacuteria e visual de outros protagonistas europeus que cumpriam objetivos cientiacuteficos
expliacutecitos A autora inglesa integrando de um panorama histoacuterico preenchido por figuras emblemaacuteticas
afirmou desempenhos pessoais resilientes e luacutecidos ao envolver-se na sociedade brasileira (portuguesa)
tendo-se aproximado das comunidades autoacutectones para mais corretamente entretecer as suas
consideraccedilotildees decorrendo da sua experiecircncia in loco e de estudos multidisciplinares
Palavras-chave ateacute ao fim do mundo Maria Graham viajantes intreacutepidas
Abstract Transcontinental journeys at the time of Mary Graham were journeys towards [almost] the
end of the world The women who undertook them fulfilled specific assumptions that today are found to
be bold and being innovative manifestations of their identities because they [although subtly]
transgressed the prevailing societal beliefs and procedures Maria Graham was not part of any artistic
mission or scientific expedition However the activity that she accomplished approaches (if not
surpasses) the impact of her literary and visual production close to other European protagonists that
fulfilled explicit scientific goals The English woman-author being part of a historical panorama filled with
emblematic figures affirmed a resilient and lucid personal performances by getting involved in Brazilian
(Portuguese) society having approached the indigenous communities to more correctly entertain her
considerations from their on-site experience and multidisciplinary studies
Keywords until the end of the world Maria Graham intrepid women travelers
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Stop the world I want to get out
Sammy Davies Jr
Todas as acircnsias e inquietudes do mundo natildeo se modificaratildeo
Augusto Alfred Schmidt
1 Onde eacute o fim do mundo O que eacute o fim do mundo O fim do mundo eacute de
qualquer um e eacute diferente
Yinka Shonibare Boy with a Globe 4 2011
Yinka Shonibare Girl on Globe 2012
A compreensatildeo do mundo e a compreensatildeo da Arte entretecem-se na escrita e
em imagens que se indispotildeem ou conciliam ao longo de uma vasta literatura e de uma
produccedilatildeo graacutefica e pictoacuterica relevante a que se adicionaram os registos fotograacuteficos
cinematograacuteficos e videograacuteficos Na compilaccedilatildeo de autores que aquiesceram agrave
tendecircncia ou compulsatildeo por partilhar conservar (ou apenas fruir) as suas viagens um
nuacutemero muito significativo de mulheres viajantes destaca-se A que imago do mundo se
destinavam os impulsos que efabulaccedilotildees ou confrontos com a realidade lhes dava
reacuteplica que fim lhes cabia atingir Questione-se quais mapas orientavam os itineraacuterios
quantas vezes se mostraram insuficientes ou falseando a verdade in locohellip remetendo
8
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
para viagens histoacutericas a um tempo em que os contornos dos continentes ainda
precisavam de reconfigurar a factualidade do espaccedilo e seu tempo
Quais os elementos ndash em termos cosmogoacutenicos ndash que (melhor) clamam e
correspondem agraves representaccedilotildees entranhadas que elaboramos quanto ao fim do mundo
isto de acordo com as nossas pulsotildees a sensibilidade primaacuteria os toacutepicos filosoacuteficos e
culturais que a nossa formaccedilatildeo imediatamente convoca seraacute o fogo seraacute a aacutegua seraacute a
terra seraacute o ar Bachelard serve muito justamente para o efeito assim como agraves suas
obras intrinsecamente se associaraacute Charles Mauron e as suas Imagens Obcecantes e as
derivas de Jean-Jacques Wunenburger acerca das Fontes do Imaginaacuterio e a Utopiahellip
passando obviamente por Gilbert Durand ndash Estruturas Antropoloacutegicas do Imaginaacuterio e
ainda as beliacutessimas Iconologias privilegiando Cesare Ripa ndash no relativo agrave representaccedilatildeo
destes Elementos e de todos os conceitos e ideias que estejam associadoshellip e satildeo muitos
A 15 de janeiro de 1941 Olivier Messiaen apresentou o seu Quatuor pour la Fin du
Temps na Barrack 27 Stalag VIIIA perante um puacuteblico de cerca de 400 pessoas entre
prisioneiros e guardas Estava-se em plena 2ordf Guerra Mundial e o compositor francecircs
era prisioneiro de guerra no campo alematildeo de Goumlrlitz (atualmente territoacuterio da Poloacutenia)
Os quatro muacutesicos foram Henri Akoka (clarinetista) Jean le Boulaire (violinista)
Eacutetienne Pasquier (violoncelista) e o proacuteprio Messiaen ao piano A peccedila estrutura-se em 8
partes com as designaccedilotildees francesas
I Liturgie de cristal
II Vocalise pour lAnge qui annonce la fin du Temps
III Abicircme des oiseaux
IV Intermegravede
V Louange agrave lEacuteterniteacute de Jeacutesus
VI Danse de la fureur pour les sept trompettes
VII Fouillis drsquoarcs-en-ciel pour lAnge qui annonce la fin du Temps
VIII Louange agrave lImmortaliteacute de Jeacutesus
Olivier Messiaen e o seu Quarteto para o Fim do Tempo (1940) poderia ser uma espeacutecie
de fundo existencial para afinidades eletivashellip um pouco como se fosse aquela muacutesica
das esferas que Pitagoacuteras elucidou O compositor tomou como referecircncia o Apocalipse de
Satildeo Joatildeo ndash Livro da Revelaccedilatildeo no seu Cap 101-2 e 5-7 ldquoJe vis un autre ange puissant
9
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
qui descendait du ciel enveloppeacute dune nueacutee au-dessus de sa tecircte eacutetait lrsquoarc-en-ciel et
son visage eacutetait comme le soleil et ses pieds comme des colonnes de feu (hellip) Et lange
que je voyais debout sur la mer et sur la terre leva sa main droite vers le ciel et jura par
celui qui vit aux siegravecles des siegravecles (hellip) quil ny aurait plus de tempshelliprdquo (Le Livre de la
Reacuteveacutelation sd 110) ldquoNatildeo haveria [mais] tempohelliprdquo no sentido de quem natildeo se puder
aguardar mais para quehellip ateacute quehellip O tempo estaria condicionado pelas condiccedilotildees e
circunstacircncias da histoacuteria A circunscrever a accedilatildeo e a obrigaacute-la quer em termos
individuais quer gregaacuterios
Clarice Lispector advertiu quanto agrave polissemia na sua A Descoberta do Mundo
compilaccedilatildeo das 468 croacutenicas escritas para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973
Ruben A o escritor portuguecircs que residiu e lecionou em Inglaterra expressou
em O Mundo agrave minha Procura um projeto autobiograacutefico em 3 volumes publicados numa
primeira ediccedilatildeo parceria com Antoacutenio Maria Pereira (Lisboa) em 1964 1966 e 1968
Imensidatildeo do mundo | Mundo eacute redondo ndash sagrado | Mundo eacute em linha reta ndash
humano
Claire Fontaine ndash Estrangeiros em Todo Lugar (foreigners everywhere) 2009
httpsmamorgbrexposicao31o-panorama-da-arte-brasileira
As alusotildees ao fim do mundo satildeo recorrentes na histoacuteria da Arte e da Cultura
[Europeias] Ocidentais evidenciando quanto eacute um estigma independentemente de
prevalecerem causas religiosas eou sagradas Sendo recorrentes evocam precisamente
o ciacuterculo e a esfera que contecircm o dinamismo e a quietude o comprometimento e a
isenccedilatildeo O mundo eacute uma bela metaacutefora do mito para aleacutem de o oposto ser vaacutelido Pois a
10
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
linha que fecha sem comeccedilar pode estender-se desenrolar-se e perder-se ateacute o fim A
linha reta do mundo que eacute humano e cuja topografia impede seja plano Sempre imenso
preenchido pelas incontaacuteveis evocaccedilotildees que ao longo da histoacuteria da cultura integraram a
palavra a ideia a imagem o som o cheirohellip e assim por diante de algo que se escreve m
u n d o Por esse motivo a investigaccedilatildeo para este desafio do Seminaacuterio do Fim do Mundo
num primeiro momento consistiu na recuperaccedilatildeo de leituras soltas que aludiam ao
mundo A partir destas leituras em tempo deslocado configurou-se mais nitidamente a
exigecircncia a convocatoacuteria da viagem que fosse (quase) ateacute ao fim do mundo
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 1 ndash Mundo que natildeo chega ao fim ou talvez
Joyce Kozloff ndash Targets 2000-2003 wwwjoycekozloffnet2000-2003-targets-rocking-the-cradle
Le monde nous deacuterobe agrave nous-mecircmes et la solitude nous y rend Le monde nest quune troupe de
fugitifs deux-mecircmes
Madame de Lambert
Ainda natildeo eacute o fim nem o princiacutepio do mundo calma eacute apenas um pouco tarde
Manuel Antoacutenio Pina
O mar estaacute sempre em movimento para natildeo sair do lugar Se o mar saiacutesse do lugar teriacuteamos de
mudar os mapas
Arnaldo Antunes
11
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Era a minha cidade ao norte do mapa
numa velocidade chamada
mundo sombrio (hellip)
E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol no mapa
do mundo
Herberto Helder
Teus ombros suportam o mundo
E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila
Carlos Drummond de Andrade
Chamar-te visatildeo seria
malconhecer as visotildees
de que eacute cheio o mundo
e vazio
Carlos Drummond de Andrade
Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera
Clarice Lispector
Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou
(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel
Clarice Lispector
A uacuteltima casa desta aldeia estaacute
tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo
Rainer Maria Rilke
Eu estou aqui
no mundo das palavras-objectos
que mudamente me falam
com quem mudamente falo
ao usaacute-las
mas que uso fazem elas de mim
Ana Hatherly
12
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O mundo eacute grande
incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)
Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi
agrave minha custa e agrave das coisas para
criar real o mundo e os olhos que
no mundo reconhecem o real
Jorge de Sena
Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber
a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com
faca
b) O modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que eacute que as borboletas de tarjas
vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia
num fagote tem salvaccedilatildeo
Manoel de Barros
Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o
poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e
os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a
nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem
em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo
Sophia de Mello Breyner Andresen
Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute
algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro
Pascal Quignard
2 Viagens ateacute ao fim do mundo
Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando
pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo
cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias
subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que
13
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o
final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim
Wenders (1991)
Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia
que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem
Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php
httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim
Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos
Porque sou ainda muito mau poeta
Porque o universo me ultrapassa
Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro
Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas
E tenho medo
Blaise Cendrars
Quero ver o que haacute no mundo
O que resta
O que deitaram fora
O que deixou de se apreciar
O que teve de se sacrificar
O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem
Susan Sontag
14
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o
explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar
Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital
Michel Maffesoli
La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par
des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le
genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une
singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des
reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme
reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas
Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement
dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se
fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe
Jean Starobinski
3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham
Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-
by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english
Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute
ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me
nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott
15
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao
debate que se venha a seguir
Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar
Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de
viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por
literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente
todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute
um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia
de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do
imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e
demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo
A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)
alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que
indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os
seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se
guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia
Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do
mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela
forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra
Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip
Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo
de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe
o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi
prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo
necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam
aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e
espessavam as topografias
Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours
sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa
Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du
monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute
16
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes
ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le
nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau
aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle
peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il
ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les
marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres
classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation
sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les
autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de
pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent
(Rousseau 1754 95)
Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus
que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que
lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais
Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-
Jacques Rousseau
1 Marinheiros
2 Comerciantes
3 Soldados
4 Missionaacuterios
E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que
deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas
Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash
Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse
escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo
literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que
mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma
caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja
distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se
com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo
17
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos
primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e
concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave
semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres
Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-
alten-ansichtenrom-egeriahtml
Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria
wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-
egeriahtml
Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do
tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma
classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio
cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no
prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos
anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe
quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da
viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla
die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst
einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit
es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen
muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das
suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos
As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no
contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada
18
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que
teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda
imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os
investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo
recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina
Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio
natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante
Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2
- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do
Egipto
- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra
Prometida
- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute
- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e
Calcedoacutenia
Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres
empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo
qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao
fim do mundo
Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo
experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo
trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um
recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de
embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)
As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio
suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados
apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se
ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e
fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-
lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como
19
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Stop the world I want to get out
Sammy Davies Jr
Todas as acircnsias e inquietudes do mundo natildeo se modificaratildeo
Augusto Alfred Schmidt
1 Onde eacute o fim do mundo O que eacute o fim do mundo O fim do mundo eacute de
qualquer um e eacute diferente
Yinka Shonibare Boy with a Globe 4 2011
Yinka Shonibare Girl on Globe 2012
A compreensatildeo do mundo e a compreensatildeo da Arte entretecem-se na escrita e
em imagens que se indispotildeem ou conciliam ao longo de uma vasta literatura e de uma
produccedilatildeo graacutefica e pictoacuterica relevante a que se adicionaram os registos fotograacuteficos
cinematograacuteficos e videograacuteficos Na compilaccedilatildeo de autores que aquiesceram agrave
tendecircncia ou compulsatildeo por partilhar conservar (ou apenas fruir) as suas viagens um
nuacutemero muito significativo de mulheres viajantes destaca-se A que imago do mundo se
destinavam os impulsos que efabulaccedilotildees ou confrontos com a realidade lhes dava
reacuteplica que fim lhes cabia atingir Questione-se quais mapas orientavam os itineraacuterios
quantas vezes se mostraram insuficientes ou falseando a verdade in locohellip remetendo
8
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
para viagens histoacutericas a um tempo em que os contornos dos continentes ainda
precisavam de reconfigurar a factualidade do espaccedilo e seu tempo
Quais os elementos ndash em termos cosmogoacutenicos ndash que (melhor) clamam e
correspondem agraves representaccedilotildees entranhadas que elaboramos quanto ao fim do mundo
isto de acordo com as nossas pulsotildees a sensibilidade primaacuteria os toacutepicos filosoacuteficos e
culturais que a nossa formaccedilatildeo imediatamente convoca seraacute o fogo seraacute a aacutegua seraacute a
terra seraacute o ar Bachelard serve muito justamente para o efeito assim como agraves suas
obras intrinsecamente se associaraacute Charles Mauron e as suas Imagens Obcecantes e as
derivas de Jean-Jacques Wunenburger acerca das Fontes do Imaginaacuterio e a Utopiahellip
passando obviamente por Gilbert Durand ndash Estruturas Antropoloacutegicas do Imaginaacuterio e
ainda as beliacutessimas Iconologias privilegiando Cesare Ripa ndash no relativo agrave representaccedilatildeo
destes Elementos e de todos os conceitos e ideias que estejam associadoshellip e satildeo muitos
A 15 de janeiro de 1941 Olivier Messiaen apresentou o seu Quatuor pour la Fin du
Temps na Barrack 27 Stalag VIIIA perante um puacuteblico de cerca de 400 pessoas entre
prisioneiros e guardas Estava-se em plena 2ordf Guerra Mundial e o compositor francecircs
era prisioneiro de guerra no campo alematildeo de Goumlrlitz (atualmente territoacuterio da Poloacutenia)
Os quatro muacutesicos foram Henri Akoka (clarinetista) Jean le Boulaire (violinista)
Eacutetienne Pasquier (violoncelista) e o proacuteprio Messiaen ao piano A peccedila estrutura-se em 8
partes com as designaccedilotildees francesas
I Liturgie de cristal
II Vocalise pour lAnge qui annonce la fin du Temps
III Abicircme des oiseaux
IV Intermegravede
V Louange agrave lEacuteterniteacute de Jeacutesus
VI Danse de la fureur pour les sept trompettes
VII Fouillis drsquoarcs-en-ciel pour lAnge qui annonce la fin du Temps
VIII Louange agrave lImmortaliteacute de Jeacutesus
Olivier Messiaen e o seu Quarteto para o Fim do Tempo (1940) poderia ser uma espeacutecie
de fundo existencial para afinidades eletivashellip um pouco como se fosse aquela muacutesica
das esferas que Pitagoacuteras elucidou O compositor tomou como referecircncia o Apocalipse de
Satildeo Joatildeo ndash Livro da Revelaccedilatildeo no seu Cap 101-2 e 5-7 ldquoJe vis un autre ange puissant
9
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
qui descendait du ciel enveloppeacute dune nueacutee au-dessus de sa tecircte eacutetait lrsquoarc-en-ciel et
son visage eacutetait comme le soleil et ses pieds comme des colonnes de feu (hellip) Et lange
que je voyais debout sur la mer et sur la terre leva sa main droite vers le ciel et jura par
celui qui vit aux siegravecles des siegravecles (hellip) quil ny aurait plus de tempshelliprdquo (Le Livre de la
Reacuteveacutelation sd 110) ldquoNatildeo haveria [mais] tempohelliprdquo no sentido de quem natildeo se puder
aguardar mais para quehellip ateacute quehellip O tempo estaria condicionado pelas condiccedilotildees e
circunstacircncias da histoacuteria A circunscrever a accedilatildeo e a obrigaacute-la quer em termos
individuais quer gregaacuterios
Clarice Lispector advertiu quanto agrave polissemia na sua A Descoberta do Mundo
compilaccedilatildeo das 468 croacutenicas escritas para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973
Ruben A o escritor portuguecircs que residiu e lecionou em Inglaterra expressou
em O Mundo agrave minha Procura um projeto autobiograacutefico em 3 volumes publicados numa
primeira ediccedilatildeo parceria com Antoacutenio Maria Pereira (Lisboa) em 1964 1966 e 1968
Imensidatildeo do mundo | Mundo eacute redondo ndash sagrado | Mundo eacute em linha reta ndash
humano
Claire Fontaine ndash Estrangeiros em Todo Lugar (foreigners everywhere) 2009
httpsmamorgbrexposicao31o-panorama-da-arte-brasileira
As alusotildees ao fim do mundo satildeo recorrentes na histoacuteria da Arte e da Cultura
[Europeias] Ocidentais evidenciando quanto eacute um estigma independentemente de
prevalecerem causas religiosas eou sagradas Sendo recorrentes evocam precisamente
o ciacuterculo e a esfera que contecircm o dinamismo e a quietude o comprometimento e a
isenccedilatildeo O mundo eacute uma bela metaacutefora do mito para aleacutem de o oposto ser vaacutelido Pois a
10
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
linha que fecha sem comeccedilar pode estender-se desenrolar-se e perder-se ateacute o fim A
linha reta do mundo que eacute humano e cuja topografia impede seja plano Sempre imenso
preenchido pelas incontaacuteveis evocaccedilotildees que ao longo da histoacuteria da cultura integraram a
palavra a ideia a imagem o som o cheirohellip e assim por diante de algo que se escreve m
u n d o Por esse motivo a investigaccedilatildeo para este desafio do Seminaacuterio do Fim do Mundo
num primeiro momento consistiu na recuperaccedilatildeo de leituras soltas que aludiam ao
mundo A partir destas leituras em tempo deslocado configurou-se mais nitidamente a
exigecircncia a convocatoacuteria da viagem que fosse (quase) ateacute ao fim do mundo
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 1 ndash Mundo que natildeo chega ao fim ou talvez
Joyce Kozloff ndash Targets 2000-2003 wwwjoycekozloffnet2000-2003-targets-rocking-the-cradle
Le monde nous deacuterobe agrave nous-mecircmes et la solitude nous y rend Le monde nest quune troupe de
fugitifs deux-mecircmes
Madame de Lambert
Ainda natildeo eacute o fim nem o princiacutepio do mundo calma eacute apenas um pouco tarde
Manuel Antoacutenio Pina
O mar estaacute sempre em movimento para natildeo sair do lugar Se o mar saiacutesse do lugar teriacuteamos de
mudar os mapas
Arnaldo Antunes
11
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Era a minha cidade ao norte do mapa
numa velocidade chamada
mundo sombrio (hellip)
E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol no mapa
do mundo
Herberto Helder
Teus ombros suportam o mundo
E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila
Carlos Drummond de Andrade
Chamar-te visatildeo seria
malconhecer as visotildees
de que eacute cheio o mundo
e vazio
Carlos Drummond de Andrade
Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera
Clarice Lispector
Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou
(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel
Clarice Lispector
A uacuteltima casa desta aldeia estaacute
tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo
Rainer Maria Rilke
Eu estou aqui
no mundo das palavras-objectos
que mudamente me falam
com quem mudamente falo
ao usaacute-las
mas que uso fazem elas de mim
Ana Hatherly
12
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O mundo eacute grande
incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)
Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi
agrave minha custa e agrave das coisas para
criar real o mundo e os olhos que
no mundo reconhecem o real
Jorge de Sena
Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber
a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com
faca
b) O modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que eacute que as borboletas de tarjas
vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia
num fagote tem salvaccedilatildeo
Manoel de Barros
Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o
poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e
os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a
nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem
em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo
Sophia de Mello Breyner Andresen
Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute
algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro
Pascal Quignard
2 Viagens ateacute ao fim do mundo
Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando
pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo
cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias
subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que
13
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o
final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim
Wenders (1991)
Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia
que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem
Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php
httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim
Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos
Porque sou ainda muito mau poeta
Porque o universo me ultrapassa
Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro
Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas
E tenho medo
Blaise Cendrars
Quero ver o que haacute no mundo
O que resta
O que deitaram fora
O que deixou de se apreciar
O que teve de se sacrificar
O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem
Susan Sontag
14
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o
explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar
Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital
Michel Maffesoli
La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par
des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le
genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une
singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des
reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme
reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas
Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement
dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se
fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe
Jean Starobinski
3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham
Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-
by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english
Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute
ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me
nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott
15
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao
debate que se venha a seguir
Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar
Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de
viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por
literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente
todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute
um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia
de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do
imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e
demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo
A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)
alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que
indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os
seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se
guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia
Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do
mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela
forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra
Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip
Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo
de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe
o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi
prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo
necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam
aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e
espessavam as topografias
Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours
sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa
Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du
monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute
16
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes
ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le
nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau
aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle
peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il
ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les
marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres
classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation
sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les
autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de
pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent
(Rousseau 1754 95)
Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus
que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que
lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais
Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-
Jacques Rousseau
1 Marinheiros
2 Comerciantes
3 Soldados
4 Missionaacuterios
E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que
deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas
Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash
Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse
escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo
literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que
mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma
caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja
distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se
com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo
17
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos
primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e
concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave
semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres
Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-
alten-ansichtenrom-egeriahtml
Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria
wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-
egeriahtml
Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do
tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma
classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio
cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no
prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos
anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe
quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da
viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla
die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst
einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit
es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen
muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das
suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos
As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no
contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada
18
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que
teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda
imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os
investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo
recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina
Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio
natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante
Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2
- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do
Egipto
- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra
Prometida
- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute
- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e
Calcedoacutenia
Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres
empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo
qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao
fim do mundo
Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo
experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo
trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um
recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de
embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)
As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio
suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados
apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se
ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e
fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-
lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como
19
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
para viagens histoacutericas a um tempo em que os contornos dos continentes ainda
precisavam de reconfigurar a factualidade do espaccedilo e seu tempo
Quais os elementos ndash em termos cosmogoacutenicos ndash que (melhor) clamam e
correspondem agraves representaccedilotildees entranhadas que elaboramos quanto ao fim do mundo
isto de acordo com as nossas pulsotildees a sensibilidade primaacuteria os toacutepicos filosoacuteficos e
culturais que a nossa formaccedilatildeo imediatamente convoca seraacute o fogo seraacute a aacutegua seraacute a
terra seraacute o ar Bachelard serve muito justamente para o efeito assim como agraves suas
obras intrinsecamente se associaraacute Charles Mauron e as suas Imagens Obcecantes e as
derivas de Jean-Jacques Wunenburger acerca das Fontes do Imaginaacuterio e a Utopiahellip
passando obviamente por Gilbert Durand ndash Estruturas Antropoloacutegicas do Imaginaacuterio e
ainda as beliacutessimas Iconologias privilegiando Cesare Ripa ndash no relativo agrave representaccedilatildeo
destes Elementos e de todos os conceitos e ideias que estejam associadoshellip e satildeo muitos
A 15 de janeiro de 1941 Olivier Messiaen apresentou o seu Quatuor pour la Fin du
Temps na Barrack 27 Stalag VIIIA perante um puacuteblico de cerca de 400 pessoas entre
prisioneiros e guardas Estava-se em plena 2ordf Guerra Mundial e o compositor francecircs
era prisioneiro de guerra no campo alematildeo de Goumlrlitz (atualmente territoacuterio da Poloacutenia)
Os quatro muacutesicos foram Henri Akoka (clarinetista) Jean le Boulaire (violinista)
Eacutetienne Pasquier (violoncelista) e o proacuteprio Messiaen ao piano A peccedila estrutura-se em 8
partes com as designaccedilotildees francesas
I Liturgie de cristal
II Vocalise pour lAnge qui annonce la fin du Temps
III Abicircme des oiseaux
IV Intermegravede
V Louange agrave lEacuteterniteacute de Jeacutesus
VI Danse de la fureur pour les sept trompettes
VII Fouillis drsquoarcs-en-ciel pour lAnge qui annonce la fin du Temps
VIII Louange agrave lImmortaliteacute de Jeacutesus
Olivier Messiaen e o seu Quarteto para o Fim do Tempo (1940) poderia ser uma espeacutecie
de fundo existencial para afinidades eletivashellip um pouco como se fosse aquela muacutesica
das esferas que Pitagoacuteras elucidou O compositor tomou como referecircncia o Apocalipse de
Satildeo Joatildeo ndash Livro da Revelaccedilatildeo no seu Cap 101-2 e 5-7 ldquoJe vis un autre ange puissant
9
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
qui descendait du ciel enveloppeacute dune nueacutee au-dessus de sa tecircte eacutetait lrsquoarc-en-ciel et
son visage eacutetait comme le soleil et ses pieds comme des colonnes de feu (hellip) Et lange
que je voyais debout sur la mer et sur la terre leva sa main droite vers le ciel et jura par
celui qui vit aux siegravecles des siegravecles (hellip) quil ny aurait plus de tempshelliprdquo (Le Livre de la
Reacuteveacutelation sd 110) ldquoNatildeo haveria [mais] tempohelliprdquo no sentido de quem natildeo se puder
aguardar mais para quehellip ateacute quehellip O tempo estaria condicionado pelas condiccedilotildees e
circunstacircncias da histoacuteria A circunscrever a accedilatildeo e a obrigaacute-la quer em termos
individuais quer gregaacuterios
Clarice Lispector advertiu quanto agrave polissemia na sua A Descoberta do Mundo
compilaccedilatildeo das 468 croacutenicas escritas para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973
Ruben A o escritor portuguecircs que residiu e lecionou em Inglaterra expressou
em O Mundo agrave minha Procura um projeto autobiograacutefico em 3 volumes publicados numa
primeira ediccedilatildeo parceria com Antoacutenio Maria Pereira (Lisboa) em 1964 1966 e 1968
Imensidatildeo do mundo | Mundo eacute redondo ndash sagrado | Mundo eacute em linha reta ndash
humano
Claire Fontaine ndash Estrangeiros em Todo Lugar (foreigners everywhere) 2009
httpsmamorgbrexposicao31o-panorama-da-arte-brasileira
As alusotildees ao fim do mundo satildeo recorrentes na histoacuteria da Arte e da Cultura
[Europeias] Ocidentais evidenciando quanto eacute um estigma independentemente de
prevalecerem causas religiosas eou sagradas Sendo recorrentes evocam precisamente
o ciacuterculo e a esfera que contecircm o dinamismo e a quietude o comprometimento e a
isenccedilatildeo O mundo eacute uma bela metaacutefora do mito para aleacutem de o oposto ser vaacutelido Pois a
10
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
linha que fecha sem comeccedilar pode estender-se desenrolar-se e perder-se ateacute o fim A
linha reta do mundo que eacute humano e cuja topografia impede seja plano Sempre imenso
preenchido pelas incontaacuteveis evocaccedilotildees que ao longo da histoacuteria da cultura integraram a
palavra a ideia a imagem o som o cheirohellip e assim por diante de algo que se escreve m
u n d o Por esse motivo a investigaccedilatildeo para este desafio do Seminaacuterio do Fim do Mundo
num primeiro momento consistiu na recuperaccedilatildeo de leituras soltas que aludiam ao
mundo A partir destas leituras em tempo deslocado configurou-se mais nitidamente a
exigecircncia a convocatoacuteria da viagem que fosse (quase) ateacute ao fim do mundo
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 1 ndash Mundo que natildeo chega ao fim ou talvez
Joyce Kozloff ndash Targets 2000-2003 wwwjoycekozloffnet2000-2003-targets-rocking-the-cradle
Le monde nous deacuterobe agrave nous-mecircmes et la solitude nous y rend Le monde nest quune troupe de
fugitifs deux-mecircmes
Madame de Lambert
Ainda natildeo eacute o fim nem o princiacutepio do mundo calma eacute apenas um pouco tarde
Manuel Antoacutenio Pina
O mar estaacute sempre em movimento para natildeo sair do lugar Se o mar saiacutesse do lugar teriacuteamos de
mudar os mapas
Arnaldo Antunes
11
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Era a minha cidade ao norte do mapa
numa velocidade chamada
mundo sombrio (hellip)
E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol no mapa
do mundo
Herberto Helder
Teus ombros suportam o mundo
E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila
Carlos Drummond de Andrade
Chamar-te visatildeo seria
malconhecer as visotildees
de que eacute cheio o mundo
e vazio
Carlos Drummond de Andrade
Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera
Clarice Lispector
Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou
(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel
Clarice Lispector
A uacuteltima casa desta aldeia estaacute
tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo
Rainer Maria Rilke
Eu estou aqui
no mundo das palavras-objectos
que mudamente me falam
com quem mudamente falo
ao usaacute-las
mas que uso fazem elas de mim
Ana Hatherly
12
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O mundo eacute grande
incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)
Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi
agrave minha custa e agrave das coisas para
criar real o mundo e os olhos que
no mundo reconhecem o real
Jorge de Sena
Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber
a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com
faca
b) O modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que eacute que as borboletas de tarjas
vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia
num fagote tem salvaccedilatildeo
Manoel de Barros
Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o
poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e
os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a
nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem
em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo
Sophia de Mello Breyner Andresen
Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute
algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro
Pascal Quignard
2 Viagens ateacute ao fim do mundo
Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando
pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo
cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias
subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que
13
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o
final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim
Wenders (1991)
Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia
que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem
Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php
httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim
Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos
Porque sou ainda muito mau poeta
Porque o universo me ultrapassa
Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro
Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas
E tenho medo
Blaise Cendrars
Quero ver o que haacute no mundo
O que resta
O que deitaram fora
O que deixou de se apreciar
O que teve de se sacrificar
O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem
Susan Sontag
14
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o
explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar
Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital
Michel Maffesoli
La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par
des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le
genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une
singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des
reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme
reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas
Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement
dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se
fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe
Jean Starobinski
3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham
Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-
by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english
Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute
ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me
nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott
15
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao
debate que se venha a seguir
Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar
Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de
viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por
literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente
todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute
um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia
de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do
imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e
demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo
A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)
alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que
indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os
seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se
guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia
Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do
mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela
forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra
Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip
Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo
de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe
o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi
prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo
necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam
aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e
espessavam as topografias
Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours
sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa
Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du
monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute
16
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes
ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le
nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau
aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle
peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il
ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les
marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres
classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation
sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les
autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de
pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent
(Rousseau 1754 95)
Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus
que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que
lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais
Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-
Jacques Rousseau
1 Marinheiros
2 Comerciantes
3 Soldados
4 Missionaacuterios
E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que
deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas
Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash
Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse
escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo
literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que
mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma
caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja
distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se
com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo
17
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos
primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e
concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave
semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres
Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-
alten-ansichtenrom-egeriahtml
Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria
wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-
egeriahtml
Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do
tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma
classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio
cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no
prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos
anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe
quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da
viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla
die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst
einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit
es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen
muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das
suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos
As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no
contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada
18
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que
teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda
imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os
investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo
recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina
Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio
natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante
Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2
- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do
Egipto
- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra
Prometida
- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute
- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e
Calcedoacutenia
Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres
empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo
qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao
fim do mundo
Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo
experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo
trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um
recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de
embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)
As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio
suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados
apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se
ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e
fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-
lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como
19
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
qui descendait du ciel enveloppeacute dune nueacutee au-dessus de sa tecircte eacutetait lrsquoarc-en-ciel et
son visage eacutetait comme le soleil et ses pieds comme des colonnes de feu (hellip) Et lange
que je voyais debout sur la mer et sur la terre leva sa main droite vers le ciel et jura par
celui qui vit aux siegravecles des siegravecles (hellip) quil ny aurait plus de tempshelliprdquo (Le Livre de la
Reacuteveacutelation sd 110) ldquoNatildeo haveria [mais] tempohelliprdquo no sentido de quem natildeo se puder
aguardar mais para quehellip ateacute quehellip O tempo estaria condicionado pelas condiccedilotildees e
circunstacircncias da histoacuteria A circunscrever a accedilatildeo e a obrigaacute-la quer em termos
individuais quer gregaacuterios
Clarice Lispector advertiu quanto agrave polissemia na sua A Descoberta do Mundo
compilaccedilatildeo das 468 croacutenicas escritas para o Jornal do Brasil entre 1967 e 1973
Ruben A o escritor portuguecircs que residiu e lecionou em Inglaterra expressou
em O Mundo agrave minha Procura um projeto autobiograacutefico em 3 volumes publicados numa
primeira ediccedilatildeo parceria com Antoacutenio Maria Pereira (Lisboa) em 1964 1966 e 1968
Imensidatildeo do mundo | Mundo eacute redondo ndash sagrado | Mundo eacute em linha reta ndash
humano
Claire Fontaine ndash Estrangeiros em Todo Lugar (foreigners everywhere) 2009
httpsmamorgbrexposicao31o-panorama-da-arte-brasileira
As alusotildees ao fim do mundo satildeo recorrentes na histoacuteria da Arte e da Cultura
[Europeias] Ocidentais evidenciando quanto eacute um estigma independentemente de
prevalecerem causas religiosas eou sagradas Sendo recorrentes evocam precisamente
o ciacuterculo e a esfera que contecircm o dinamismo e a quietude o comprometimento e a
isenccedilatildeo O mundo eacute uma bela metaacutefora do mito para aleacutem de o oposto ser vaacutelido Pois a
10
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
linha que fecha sem comeccedilar pode estender-se desenrolar-se e perder-se ateacute o fim A
linha reta do mundo que eacute humano e cuja topografia impede seja plano Sempre imenso
preenchido pelas incontaacuteveis evocaccedilotildees que ao longo da histoacuteria da cultura integraram a
palavra a ideia a imagem o som o cheirohellip e assim por diante de algo que se escreve m
u n d o Por esse motivo a investigaccedilatildeo para este desafio do Seminaacuterio do Fim do Mundo
num primeiro momento consistiu na recuperaccedilatildeo de leituras soltas que aludiam ao
mundo A partir destas leituras em tempo deslocado configurou-se mais nitidamente a
exigecircncia a convocatoacuteria da viagem que fosse (quase) ateacute ao fim do mundo
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 1 ndash Mundo que natildeo chega ao fim ou talvez
Joyce Kozloff ndash Targets 2000-2003 wwwjoycekozloffnet2000-2003-targets-rocking-the-cradle
Le monde nous deacuterobe agrave nous-mecircmes et la solitude nous y rend Le monde nest quune troupe de
fugitifs deux-mecircmes
Madame de Lambert
Ainda natildeo eacute o fim nem o princiacutepio do mundo calma eacute apenas um pouco tarde
Manuel Antoacutenio Pina
O mar estaacute sempre em movimento para natildeo sair do lugar Se o mar saiacutesse do lugar teriacuteamos de
mudar os mapas
Arnaldo Antunes
11
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Era a minha cidade ao norte do mapa
numa velocidade chamada
mundo sombrio (hellip)
E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol no mapa
do mundo
Herberto Helder
Teus ombros suportam o mundo
E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila
Carlos Drummond de Andrade
Chamar-te visatildeo seria
malconhecer as visotildees
de que eacute cheio o mundo
e vazio
Carlos Drummond de Andrade
Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera
Clarice Lispector
Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou
(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel
Clarice Lispector
A uacuteltima casa desta aldeia estaacute
tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo
Rainer Maria Rilke
Eu estou aqui
no mundo das palavras-objectos
que mudamente me falam
com quem mudamente falo
ao usaacute-las
mas que uso fazem elas de mim
Ana Hatherly
12
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O mundo eacute grande
incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)
Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi
agrave minha custa e agrave das coisas para
criar real o mundo e os olhos que
no mundo reconhecem o real
Jorge de Sena
Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber
a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com
faca
b) O modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que eacute que as borboletas de tarjas
vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia
num fagote tem salvaccedilatildeo
Manoel de Barros
Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o
poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e
os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a
nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem
em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo
Sophia de Mello Breyner Andresen
Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute
algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro
Pascal Quignard
2 Viagens ateacute ao fim do mundo
Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando
pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo
cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias
subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que
13
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o
final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim
Wenders (1991)
Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia
que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem
Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php
httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim
Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos
Porque sou ainda muito mau poeta
Porque o universo me ultrapassa
Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro
Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas
E tenho medo
Blaise Cendrars
Quero ver o que haacute no mundo
O que resta
O que deitaram fora
O que deixou de se apreciar
O que teve de se sacrificar
O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem
Susan Sontag
14
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o
explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar
Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital
Michel Maffesoli
La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par
des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le
genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une
singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des
reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme
reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas
Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement
dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se
fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe
Jean Starobinski
3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham
Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-
by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english
Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute
ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me
nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott
15
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao
debate que se venha a seguir
Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar
Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de
viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por
literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente
todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute
um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia
de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do
imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e
demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo
A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)
alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que
indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os
seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se
guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia
Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do
mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela
forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra
Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip
Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo
de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe
o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi
prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo
necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam
aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e
espessavam as topografias
Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours
sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa
Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du
monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute
16
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes
ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le
nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau
aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle
peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il
ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les
marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres
classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation
sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les
autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de
pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent
(Rousseau 1754 95)
Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus
que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que
lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais
Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-
Jacques Rousseau
1 Marinheiros
2 Comerciantes
3 Soldados
4 Missionaacuterios
E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que
deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas
Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash
Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse
escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo
literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que
mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma
caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja
distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se
com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo
17
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos
primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e
concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave
semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres
Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-
alten-ansichtenrom-egeriahtml
Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria
wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-
egeriahtml
Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do
tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma
classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio
cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no
prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos
anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe
quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da
viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla
die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst
einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit
es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen
muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das
suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos
As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no
contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada
18
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que
teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda
imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os
investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo
recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina
Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio
natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante
Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2
- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do
Egipto
- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra
Prometida
- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute
- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e
Calcedoacutenia
Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres
empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo
qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao
fim do mundo
Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo
experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo
trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um
recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de
embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)
As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio
suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados
apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se
ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e
fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-
lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como
19
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
linha que fecha sem comeccedilar pode estender-se desenrolar-se e perder-se ateacute o fim A
linha reta do mundo que eacute humano e cuja topografia impede seja plano Sempre imenso
preenchido pelas incontaacuteveis evocaccedilotildees que ao longo da histoacuteria da cultura integraram a
palavra a ideia a imagem o som o cheirohellip e assim por diante de algo que se escreve m
u n d o Por esse motivo a investigaccedilatildeo para este desafio do Seminaacuterio do Fim do Mundo
num primeiro momento consistiu na recuperaccedilatildeo de leituras soltas que aludiam ao
mundo A partir destas leituras em tempo deslocado configurou-se mais nitidamente a
exigecircncia a convocatoacuteria da viagem que fosse (quase) ateacute ao fim do mundo
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 1 ndash Mundo que natildeo chega ao fim ou talvez
Joyce Kozloff ndash Targets 2000-2003 wwwjoycekozloffnet2000-2003-targets-rocking-the-cradle
Le monde nous deacuterobe agrave nous-mecircmes et la solitude nous y rend Le monde nest quune troupe de
fugitifs deux-mecircmes
Madame de Lambert
Ainda natildeo eacute o fim nem o princiacutepio do mundo calma eacute apenas um pouco tarde
Manuel Antoacutenio Pina
O mar estaacute sempre em movimento para natildeo sair do lugar Se o mar saiacutesse do lugar teriacuteamos de
mudar os mapas
Arnaldo Antunes
11
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Era a minha cidade ao norte do mapa
numa velocidade chamada
mundo sombrio (hellip)
E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol no mapa
do mundo
Herberto Helder
Teus ombros suportam o mundo
E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila
Carlos Drummond de Andrade
Chamar-te visatildeo seria
malconhecer as visotildees
de que eacute cheio o mundo
e vazio
Carlos Drummond de Andrade
Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera
Clarice Lispector
Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou
(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel
Clarice Lispector
A uacuteltima casa desta aldeia estaacute
tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo
Rainer Maria Rilke
Eu estou aqui
no mundo das palavras-objectos
que mudamente me falam
com quem mudamente falo
ao usaacute-las
mas que uso fazem elas de mim
Ana Hatherly
12
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O mundo eacute grande
incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)
Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi
agrave minha custa e agrave das coisas para
criar real o mundo e os olhos que
no mundo reconhecem o real
Jorge de Sena
Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber
a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com
faca
b) O modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que eacute que as borboletas de tarjas
vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia
num fagote tem salvaccedilatildeo
Manoel de Barros
Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o
poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e
os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a
nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem
em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo
Sophia de Mello Breyner Andresen
Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute
algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro
Pascal Quignard
2 Viagens ateacute ao fim do mundo
Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando
pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo
cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias
subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que
13
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o
final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim
Wenders (1991)
Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia
que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem
Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php
httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim
Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos
Porque sou ainda muito mau poeta
Porque o universo me ultrapassa
Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro
Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas
E tenho medo
Blaise Cendrars
Quero ver o que haacute no mundo
O que resta
O que deitaram fora
O que deixou de se apreciar
O que teve de se sacrificar
O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem
Susan Sontag
14
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o
explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar
Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital
Michel Maffesoli
La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par
des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le
genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une
singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des
reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme
reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas
Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement
dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se
fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe
Jean Starobinski
3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham
Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-
by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english
Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute
ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me
nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott
15
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao
debate que se venha a seguir
Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar
Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de
viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por
literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente
todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute
um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia
de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do
imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e
demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo
A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)
alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que
indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os
seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se
guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia
Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do
mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela
forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra
Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip
Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo
de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe
o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi
prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo
necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam
aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e
espessavam as topografias
Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours
sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa
Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du
monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute
16
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes
ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le
nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau
aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle
peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il
ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les
marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres
classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation
sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les
autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de
pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent
(Rousseau 1754 95)
Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus
que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que
lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais
Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-
Jacques Rousseau
1 Marinheiros
2 Comerciantes
3 Soldados
4 Missionaacuterios
E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que
deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas
Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash
Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse
escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo
literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que
mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma
caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja
distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se
com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo
17
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos
primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e
concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave
semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres
Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-
alten-ansichtenrom-egeriahtml
Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria
wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-
egeriahtml
Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do
tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma
classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio
cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no
prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos
anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe
quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da
viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla
die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst
einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit
es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen
muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das
suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos
As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no
contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada
18
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que
teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda
imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os
investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo
recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina
Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio
natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante
Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2
- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do
Egipto
- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra
Prometida
- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute
- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e
Calcedoacutenia
Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres
empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo
qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao
fim do mundo
Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo
experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo
trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um
recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de
embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)
As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio
suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados
apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se
ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e
fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-
lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como
19
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Era a minha cidade ao norte do mapa
numa velocidade chamada
mundo sombrio (hellip)
E a seiva
sombria vinha escorrendo do mapa
desse girassol no mapa
do mundo
Herberto Helder
Teus ombros suportam o mundo
E ele natildeo pesa mais que a matildeo de uma crianccedila
Carlos Drummond de Andrade
Chamar-te visatildeo seria
malconhecer as visotildees
de que eacute cheio o mundo
e vazio
Carlos Drummond de Andrade
Eacute como se o mundo estivesse agrave minha espera E eu vou ao encontro do que me espera
Clarice Lispector
Tudo no mundo comeccedilou com um sim (hellip) Natildeo sei o quecirc mas sei que o universo jamais comeccedilou
(hellip) Deus eacute o mundo A verdade eacute sempre um contacto interior e inexplicaacutevel
Clarice Lispector
A uacuteltima casa desta aldeia estaacute
tatildeo soacute como a uacuteltima casa do mundo
Rainer Maria Rilke
Eu estou aqui
no mundo das palavras-objectos
que mudamente me falam
com quem mudamente falo
ao usaacute-las
mas que uso fazem elas de mim
Ana Hatherly
12
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O mundo eacute grande
incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)
Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi
agrave minha custa e agrave das coisas para
criar real o mundo e os olhos que
no mundo reconhecem o real
Jorge de Sena
Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber
a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com
faca
b) O modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que eacute que as borboletas de tarjas
vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia
num fagote tem salvaccedilatildeo
Manoel de Barros
Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o
poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e
os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a
nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem
em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo
Sophia de Mello Breyner Andresen
Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute
algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro
Pascal Quignard
2 Viagens ateacute ao fim do mundo
Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando
pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo
cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias
subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que
13
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o
final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim
Wenders (1991)
Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia
que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem
Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php
httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim
Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos
Porque sou ainda muito mau poeta
Porque o universo me ultrapassa
Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro
Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas
E tenho medo
Blaise Cendrars
Quero ver o que haacute no mundo
O que resta
O que deitaram fora
O que deixou de se apreciar
O que teve de se sacrificar
O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem
Susan Sontag
14
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o
explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar
Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital
Michel Maffesoli
La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par
des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le
genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une
singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des
reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme
reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas
Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement
dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se
fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe
Jean Starobinski
3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham
Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-
by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english
Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute
ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me
nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott
15
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao
debate que se venha a seguir
Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar
Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de
viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por
literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente
todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute
um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia
de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do
imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e
demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo
A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)
alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que
indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os
seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se
guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia
Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do
mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela
forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra
Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip
Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo
de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe
o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi
prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo
necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam
aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e
espessavam as topografias
Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours
sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa
Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du
monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute
16
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes
ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le
nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau
aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle
peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il
ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les
marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres
classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation
sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les
autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de
pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent
(Rousseau 1754 95)
Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus
que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que
lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais
Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-
Jacques Rousseau
1 Marinheiros
2 Comerciantes
3 Soldados
4 Missionaacuterios
E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que
deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas
Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash
Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse
escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo
literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que
mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma
caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja
distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se
com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo
17
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos
primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e
concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave
semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres
Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-
alten-ansichtenrom-egeriahtml
Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria
wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-
egeriahtml
Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do
tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma
classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio
cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no
prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos
anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe
quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da
viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla
die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst
einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit
es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen
muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das
suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos
As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no
contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada
18
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que
teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda
imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os
investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo
recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina
Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio
natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante
Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2
- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do
Egipto
- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra
Prometida
- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute
- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e
Calcedoacutenia
Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres
empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo
qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao
fim do mundo
Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo
experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo
trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um
recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de
embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)
As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio
suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados
apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se
ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e
fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-
lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como
19
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O mundo eacute grande
incomensuraacutevel com a unidade parca de qualquer de noacutes (hellip)
Rasgando as fraacutegeis teias que aprendi
agrave minha custa e agrave das coisas para
criar real o mundo e os olhos que
no mundo reconhecem o real
Jorge de Sena
Para apalpar as intimidades do mundo eacute preciso saber
a) Que o esplendor da manhatilde natildeo se abre com
faca
b) O modo como as violetas preparam o dia
para morrer
c) Por que eacute que as borboletas de tarjas
vermelhas tecircm devoccedilatildeo por tuacutemulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existecircncia
num fagote tem salvaccedilatildeo
Manoel de Barros
Pois a justiccedila se confunde com aquele equiliacutebrio das coisas com aquela ordem do mundo onde o
poeta quer integrar o seu canto Confunde-se com aquele amor que segundo Dante move o sol e
os outros astros Confunde-se com a nossa confianccedila na evoluccedilatildeo do homem confunde-se com a
nossa feacute no universo Se em frente do esplendor do mundo nos alegrarmos com paixatildeo tambeacutem
em frente do sofrimento do mundo nos revoltamos com paixatildeo
Sophia de Mello Breyner Andresen
Se-ducere eacute conduzir agrave parte De um mundo para o outro Do porta-voz ao Outro O sujeito estaacute
algures o ponto incoacutegnito inacessiacutevel ao outro
Pascal Quignard
2 Viagens ateacute ao fim do mundo
Seja referecircncia de tiacutetulo de pintura composiccedilatildeo ou livro seja aprofundando
pressupostos filosoacuteficos e teoloacutegicos o fim do mundo invadiu a produccedilatildeo
cinematograacutefica desde os primoacuterdios da sua eclosatildeo No cinema as evidecircncias
subsumidas ou sublimadas do fim do mundo ainda satildeo mais convincentes ainda que
13
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o
final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim
Wenders (1991)
Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia
que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem
Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php
httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim
Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos
Porque sou ainda muito mau poeta
Porque o universo me ultrapassa
Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro
Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas
E tenho medo
Blaise Cendrars
Quero ver o que haacute no mundo
O que resta
O que deitaram fora
O que deixou de se apreciar
O que teve de se sacrificar
O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem
Susan Sontag
14
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o
explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar
Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital
Michel Maffesoli
La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par
des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le
genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une
singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des
reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme
reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas
Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement
dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se
fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe
Jean Starobinski
3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham
Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-
by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english
Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute
ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me
nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott
15
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao
debate que se venha a seguir
Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar
Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de
viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por
literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente
todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute
um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia
de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do
imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e
demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo
A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)
alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que
indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os
seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se
guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia
Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do
mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela
forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra
Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip
Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo
de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe
o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi
prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo
necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam
aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e
espessavam as topografias
Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours
sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa
Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du
monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute
16
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes
ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le
nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau
aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle
peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il
ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les
marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres
classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation
sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les
autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de
pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent
(Rousseau 1754 95)
Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus
que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que
lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais
Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-
Jacques Rousseau
1 Marinheiros
2 Comerciantes
3 Soldados
4 Missionaacuterios
E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que
deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas
Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash
Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse
escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo
literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que
mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma
caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja
distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se
com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo
17
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos
primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e
concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave
semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres
Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-
alten-ansichtenrom-egeriahtml
Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria
wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-
egeriahtml
Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do
tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma
classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio
cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no
prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos
anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe
quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da
viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla
die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst
einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit
es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen
muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das
suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos
As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no
contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada
18
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que
teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda
imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os
investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo
recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina
Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio
natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante
Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2
- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do
Egipto
- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra
Prometida
- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute
- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e
Calcedoacutenia
Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres
empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo
qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao
fim do mundo
Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo
experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo
trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um
recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de
embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)
As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio
suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados
apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se
ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e
fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-
lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como
19
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
menos ameaccediladoras pois satildeo quase sempre propostas como ficccedilotildees Quase a roccedilar o
final do seacutec XX surgia no circuito comercial do cinema Ateacute ao Fim do Mundo de Wim
Wenders (1991)
Qual a seduccedilatildeo pelodo fim do mundo Entre a voluacutepia a lucidez ou a escatologia
que lhes esteja impliacutecita o que e quem adveacutem
Lady Hester Stanhope in wwwarcadian-librarycomstudy-series-no-10php
httpswikivisuallycomwikiLady_Hester_Stanhope
EXCERTOS | ESCOLHAS PARA A VIAGEM 2 ndash Mundo de que se avista o fim
Tantas imagens-associaccedilotildees que natildeo posso revelar nos meus versos
Porque sou ainda muito mau poeta
Porque o universo me ultrapassa
Porque me esqueci de fazer um seguro contra os acidentes de caminho-de-ferro
Porque natildeo sei ir ao fundo das coisas
E tenho medo
Blaise Cendrars
Quero ver o que haacute no mundo
O que resta
O que deitaram fora
O que deixou de se apreciar
O que teve de se sacrificar
O que se pensou que pudesse interessar a algueacutem
Susan Sontag
14
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o
explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar
Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital
Michel Maffesoli
La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par
des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le
genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une
singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des
reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme
reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas
Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement
dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se
fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe
Jean Starobinski
3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham
Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-
by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english
Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute
ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me
nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott
15
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao
debate que se venha a seguir
Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar
Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de
viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por
literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente
todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute
um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia
de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do
imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e
demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo
A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)
alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que
indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os
seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se
guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia
Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do
mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela
forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra
Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip
Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo
de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe
o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi
prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo
necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam
aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e
espessavam as topografias
Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours
sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa
Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du
monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute
16
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes
ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le
nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau
aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle
peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il
ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les
marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres
classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation
sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les
autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de
pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent
(Rousseau 1754 95)
Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus
que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que
lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais
Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-
Jacques Rousseau
1 Marinheiros
2 Comerciantes
3 Soldados
4 Missionaacuterios
E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que
deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas
Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash
Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse
escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo
literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que
mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma
caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja
distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se
com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo
17
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos
primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e
concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave
semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres
Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-
alten-ansichtenrom-egeriahtml
Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria
wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-
egeriahtml
Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do
tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma
classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio
cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no
prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos
anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe
quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da
viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla
die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst
einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit
es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen
muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das
suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos
As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no
contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada
18
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que
teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda
imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os
investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo
recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina
Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio
natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante
Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2
- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do
Egipto
- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra
Prometida
- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute
- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e
Calcedoacutenia
Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres
empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo
qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao
fim do mundo
Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo
experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo
trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um
recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de
embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)
As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio
suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados
apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se
ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e
fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-
lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como
19
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
O que natildeo deixa de fazer de todo mundo o viajante sempre em busca da outra parte ou o
explorador maravilhado desses mundos antigos que conveacutem sempre e ainda uma vez inventar
Porque estar inquieto ou em desequiliacutebrio natildeo eacute afinal de contas o proacuteprio elatilde vital
Michel Maffesoli
La vue sera donc lrsquoexercice du peintre en voyage agrave moins qursquoelle ne soit dessineacutee ou peinte par
des artistes locaux pour des voyageurs deacutesireux de conserver un souvenir de leurs surprises Le
genre est donc lieacute agrave la peacutereacutegrination agrave la deacutecouverte agrave lrsquoeacutetonnement devant un caprice ou une
singulariteacute de la nature lorsque celle-ci paraicirct offrir au contemplateur une anticipation des
reacuteussites de lrsquoart Ce qui retient le regard crsquoest le pittoresque crsquoest-agrave-dire cette sorte de charme
reacutepandu sur lrsquoobjet qui demande agrave devenir peinture laquo Si le peintre voyage recommande Nicolas
Cochin il doit remarquer surtout les espegraveces drsquoarbres pittoresques que lrsquoon trouve rarement
dans son paysraquo (hellip) De toutes ces choses il faut faire des notes avec des croquis et ne jamais se
fier agrave sa meacutemoire les ideacutees srsquoeffacent bien facilement si rien ne les fixe
Jean Starobinski
3 As viagens [que natildeo chegam] ao fim do mundo ndash antes de Maria Graham
Aphra Bem Oronoko in httpstheculturetripcomeuropeunited-kingdomenglandarticlesoroonoko-
by-aphra-behn-the-first-novel-ever-written-in-english
Quantas e quais viagens seriam foram ou pretendiam ser viagens desejadas ateacute
ao fim do mundo Entre os estudos que nos uacuteltimos meses vim a desenvolver situei-me
nas viagens e nos escritos de Maria Graham Callcott
15
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao
debate que se venha a seguir
Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar
Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de
viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por
literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente
todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute
um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia
de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do
imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e
demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo
A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)
alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que
indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os
seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se
guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia
Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do
mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela
forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra
Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip
Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo
de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe
o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi
prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo
necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam
aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e
espessavam as topografias
Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours
sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa
Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du
monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute
16
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes
ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le
nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau
aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle
peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il
ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les
marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres
classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation
sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les
autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de
pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent
(Rousseau 1754 95)
Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus
que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que
lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais
Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-
Jacques Rousseau
1 Marinheiros
2 Comerciantes
3 Soldados
4 Missionaacuterios
E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que
deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas
Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash
Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse
escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo
literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que
mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma
caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja
distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se
com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo
17
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos
primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e
concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave
semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres
Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-
alten-ansichtenrom-egeriahtml
Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria
wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-
egeriahtml
Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do
tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma
classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio
cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no
prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos
anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe
quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da
viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla
die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst
einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit
es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen
muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das
suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos
As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no
contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada
18
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que
teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda
imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os
investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo
recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina
Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio
natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante
Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2
- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do
Egipto
- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra
Prometida
- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute
- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e
Calcedoacutenia
Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres
empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo
qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao
fim do mundo
Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo
experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo
trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um
recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de
embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)
As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio
suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados
apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se
ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e
fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-
lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como
19
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Mas antes vou referir apenas alguns toacutepicos que tambeacutem podem servir ao
debate que se venha a seguir
Quantos e quais conceitos ideias concomitantes assistem concorrem para pensar
Viagem ateacute ao fim do mundo desde as muacuteltiplas utopias passando pelas aceccedilotildees de
viagem intemporais mais diacutespares desde os primoacuterdios do que designamos por
literatura de viagens e suas redenccedilotildees ou indexaccedilotildees filosoacuteficas e culturais Obviamente
todos estes conceitos cavalgando agraves costas do mundo ou carregando este mundo que eacute
um globo nas omoplatas de Atlas Atenda-se agrave riqueza a quanto prolifera a iconografia
de Atlas na Histoacuteria da Arte Ocidental a quanto seduz as filosofias e esteacuteticas do
imaginaacuterio devidamente radicadas em antropologias culturais simboacutelicas iconologias e
demais exigecircncias de conhecimento e criaccedilatildeo
A ideia de mundo (intangiacutevel versus tangiacutevel) e a ideia de Atlas (globo esfera)
alastram pela criaccedilatildeo moderna e contemporacircnea sob auspiacutecios quase insuspeitos que
indiciam a necessidade a compulsatildeo mesmo para arquivar inventariar catalogar os
seus infinitos conteuacutedos ndash quer materiais quer imateriais roccedilando entre o que se
guarda agrave matildeo cheia e o que a intangibilidade permeia
Circum-navegar implica conceitos dominantes viagem peacuteriplo cartografia do
mundo saiba-se o que por este se entende ou natildeohellip Supotildee um traccedilado dominado pela
forma circular tendo a certeza de o mundo ser redondo O mundo que eacute o planeta Terra
Jean-Marc Besse em Le Goucirct du Mondehellip
Quando algueacutem empreendia viagens extensas com escopo de alcanccedilar o mundo
de seu princiacutepio ou meio ateacute ao fim acreditava na sua circularidade desconhecendo-lhe
o diacircmetrohellip O imaginaacuterio como motor conceptual na cartografia europeia (e natildeo soacute) foi
prevalecente durante seacuteculos Os mapas eram configurados por indiviacuteduos que natildeo
necessariamente empreendiam as grandes viagens antes se faziam visitar recebiam
aqueles que as haviam efetuado e a partir de seus relatos desenhavam os contornos e
espessavam as topografias
Quem viajava Atenda-se ao que reflexiona Jean-Jacques Rousseau em Discours
sur lrsquoIneacutegaliteacute (1754) atendendo ao passado histoacuterico das viagens na Europa
Depuis trois ou quatre cents ans que les habitants de lEurope inondent les autres parties du
monde et publient sans cesse de nouveaux recueils de voyages et de relations je suis persuadeacute
16
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes
ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le
nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau
aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle
peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il
ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les
marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres
classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation
sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les
autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de
pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent
(Rousseau 1754 95)
Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus
que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que
lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais
Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-
Jacques Rousseau
1 Marinheiros
2 Comerciantes
3 Soldados
4 Missionaacuterios
E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que
deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas
Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash
Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse
escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo
literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que
mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma
caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja
distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se
com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo
17
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos
primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e
concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave
semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres
Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-
alten-ansichtenrom-egeriahtml
Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria
wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-
egeriahtml
Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do
tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma
classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio
cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no
prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos
anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe
quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da
viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla
die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst
einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit
es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen
muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das
suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos
As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no
contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada
18
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que
teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda
imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os
investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo
recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina
Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio
natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante
Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2
- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do
Egipto
- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra
Prometida
- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute
- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e
Calcedoacutenia
Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres
empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo
qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao
fim do mundo
Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo
experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo
trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um
recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de
embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)
As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio
suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados
apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se
ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e
fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-
lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como
19
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
que nous ne connaissons drsquohommes que les seuls Europeacuteens encore paraicirct-il aux preacutejugeacutes
ridicules qui ne sont pas eacuteteints mecircme parmi les gens de lettres que chacun ne fait guegravere sous le
nom pompeux deacutetude de lhomme que celle des hommes de son pays Les particuliers ont beau
aller et venir il semble que la philosophie ne voyage point aussi celle de chaque people est-elle
peu propre pour un autre La cause de ceci est manifeste au moins pour les contreacutees eacuteloigneacutees il
ny a guegravere que quatre sortes dhommes qui fassent des voyages de long cours les marins les
marchands les soldats et les missionnaires Or on ne doit guegravere sattendre que les trois premiegraveres
classes fournissent de bons observateurs et quant agrave ceux de la quatriegraveme occupeacutes de la vocation
sublime qui les appelle quand ils ne seraient pas sujets agrave des preacutejugeacutes deacutetat comme tous les
autres on doit croire quils ne se livreraient pas volontiers agrave des recherches qui paraissent de
pure curiositeacute et qui les deacutetourneraient des travaux plus importants auxquels ils se destinent
(Rousseau 1754 95)
Viajar natildeo necessariamente significa conhecer os demais que natildeo os Europeus
que se voltavam sobre os seus proacuteprios desiacutegnios menosprezando ou valorizando o que
lhes era estranho ndash mesmo quando se consideravam os homens de letras os intelectuais
Haveria apenas quatro tipos de homens que faziam viagens reafirme-se seguindo Jean-
Jacques Rousseau
1 Marinheiros
2 Comerciantes
3 Soldados
4 Missionaacuterios
E o que dizer entatildeo acerca da caraterizaccedilatildeo tipoloacutegica de mulheres que
deliberavam e se lanccedilavam nessas viagens tatildeo longas e ousadas
Retrocedam-se seacuteculos invocando o Itinerarium cumprido por Egeacuteria ndash
Pellegrinaggio di Egeria in Terrasanta (seacutec V dC) cerca de 900 anos antes de que fosse
escrito Ascensatildeo ao Monte Ventoso (1336) pelo poeta italiano Petrarca1 O registo
literaacuterio de Petrarca abrange detalhes denotativos de uma acuidade contemplativa que
mereceu elaboraccedilatildeo posterior entrecortado por certos imediatismos esteacuteticos Eacute uma
caminhada esteacutetica como jaacute antes a considerei Eacute um roteiro de proximidade cuja
distacircncia se mede em horas A obra notaacutevel de Egeacuteria a sua viagemmissatildeo mede-se
com os riscos de uma duraccedilatildeo imprevisiacutevel e marcada pela ousadia e pelo risco O tempo
17
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos
primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e
concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave
semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres
Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-
alten-ansichtenrom-egeriahtml
Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria
wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-
egeriahtml
Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do
tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma
classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio
cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no
prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos
anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe
quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da
viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla
die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst
einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit
es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen
muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das
suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos
As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no
contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada
18
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que
teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda
imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os
investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo
recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina
Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio
natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante
Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2
- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do
Egipto
- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra
Prometida
- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute
- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e
Calcedoacutenia
Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres
empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo
qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao
fim do mundo
Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo
experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo
trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um
recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de
embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)
As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio
suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados
apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se
ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e
fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-
lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como
19
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
demorou-se para cumprir o itineraacuterio Trata-se de uma mulher-monja que viveu nos
primeiros tempos do Cristianismo legitimado por Roma tendo deliberado e
concretizando uma travessia ateacute aos Lugares Santos Faccedilanha empreendida agrave
semelhanccedila de outras pessoas designadamente algumas mulheres
Goethe Gruta de Egeacuteria wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-
alten-ansichtenrom-egeriahtml
Giovanni Battista Piranesi Spelonca della Ninfa Egeria
wwwgoethezeitportaldewissenprojektepoolgoethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-
egeriahtml
Egeacuteria legou a sua experiecircncia em primeira voz intermediada pela distacircncia do
tempo num periacuteodo em que preponderava a cultura latina Egeacuteria pertencia a uma
classe alta pelo que conheceria o latim A sua escrita demonstrava um estilo literaacuterio
cuidado aferido aos determinismos da eacutepoca como assinalou Bruno Fregni Bassetto no
prefaacutecio agrave versatildeo brasileira do livro (cf Egeacuteria 2017 13 havia por certo textos
anteriores ao de Egeacuteria como se pode ler no prefaacutecio citado) Seacuteculos mais tarde Goethe
quando da sua viagem a Itaacutelia escreveria perante a famosa Gruta que tomou o nome da
viajante ldquoHeut hab ich die Nymphe Egeria besucht dann die Rennbahn des Caracalla
die zerstoumlrten Grabstaumltten laumlngs der Via Appia und das Grab der Metella das einem erst
einen Begriff von solidem Mauerwerk gibt Diese Menschen arbeiteten fuumlr die Ewigkeit
es war auf alles kalkuliert nur auf den Unsinn der Verwuumlster nicht dem alles weichen
muszligterdquo (1786) A figura era de tal modo emblemaacutetica que desenhou o local numa das
suas belas criaccedilotildees visuais que acompanharam estes seus escritos
As condiccedilotildees da viagem empreendida por Egeacuteria satildeo notaacuteveis (e invulgares) no
contexto da eacutepoca Somente algueacutem procedendo natildeo apenas de uma classe abastada
18
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que
teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda
imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os
investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo
recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina
Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio
natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante
Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2
- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do
Egipto
- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra
Prometida
- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute
- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e
Calcedoacutenia
Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres
empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo
qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao
fim do mundo
Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo
experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo
trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um
recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de
embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)
As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio
suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados
apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se
ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e
fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-
lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como
19
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
mas de uma famiacutelia privilegiada teria acesso a apoios e proteccedilatildeo nos termos em que
teve Viajava acompanhada por uma escolta e teria tido mesmo direito a guarda
imperial durante alguns trajetos Por outro lado quanto agrave sua escrita em latim os
investigadores colocaram duacutevidas que tecircm vindo a ser colmatadas Numa introduccedilatildeo
recente agrave ediccedilatildeo criacutetica traduzida para portuguecircs e publicada no Brasil Maria Cristina
Martins assinala que no periacuteodo subsequente agrave legitimaccedilatildeo do Cristianismo o Impeacuterio
natildeo abdicava de que o latim fosse a liacutengua vigente e dominante
Egeacuteria teraacute realizado 4 viagens2
- Peregrinaccedilatildeo ao Monte Sinai e regresso a Jerusaleacutem pela terra de Gessen ndash teria partido do
Egipto
- Peregrinaccedilatildeo ao monte Nebo onde queria contemplar agrave semelhanccedila de Moiseacutes a Terra
Prometida
- Peregrinaccedilatildeo agrave Idumeia paiacutes de Joacute
- Peregrinaccedilatildeo agrave Mesopotacircmia e regresso a Constantinopla passando por Tarso Selecircucia e
Calcedoacutenia
Num tempo tatildeo longiacutenquo em que se pensaria improvaacutevel mulheres
empreenderem tais viagens as interrogaccedilotildees persistem que ideia tinham do mundo
qual a sua extensatildeo metafoacuterica ou fatual que impulsos as direcionavam (quase) ateacute ao
fim do mundo
Porque viajamos Por que vamos assim pelas estradas tomados de deliacuterio vagabundo
experimentando a sensibilidade sobre as obras que natildeo buscamos apenas mas que sobretudo
trocamos por um lugar na grande confraria da cultura Uma viagem natildeo deve ser unicamente um
recreio de amantes ou um preconceito de burgueses mas deve conter uma proposta de
embaixador e um pensamento que frutifique (Bessa-Luiacutes 2009 187)
As narrativas de viagem as anotaccedilotildees que as propiciam obrigam a um exerciacutecio
suplementar quer os registos aconteccedilam no decurso dos trajetos quer sejam invocados
apoacutes um regresso ou pelo menos quando uma permanecircncia mais demorada se
ocasione Os conteuacutedos que se imagina sejam veriacutedicos transmitem toacutepicos situaccedilotildees e
fatos reais acontecidos Ao serem transcritos o exerciacutecio de rememoraccedilatildeo acrescenta-
lhes retira-lhes ou reequaciona dados e suscita outras vivecircncias De algum modo como
19
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
a maioria dos atos de escrita quando o enfoque desce sobre a experiecircncia presencial da
passagem de atravessamento de lugares culturas e pessoas amplia-se intensifica-se
mais ainda Distanciar-se-aacute tanto para quem vivenciou a viagem como obviamente para
quem dela obtenha conhecimento intermediado Os relatos tecircm um fundamento real
mas nunca podem ser anaacutelogos idecircnticos ao vivido ndash mesmo para quem foi o
protagonista-autor-direto Numa certa perspectiva os relatos baseados em
acontecimentos e situaccedilotildees vividaspresenciadas satildeo sempre algo imaginados e fictiacutecios
Por outro lado considerem-se os ldquorelatos [mesmo e grandemente] fictiacuteciosrdquo que
empolgam os leitores ao proporcionar-lhes a promessa de suas viagens imaginaacuterias
fabulosas irreais A literatura ficcionada de viagens proliferou configurando uma
tipologia de leitura dominante alimentada por inuacutemeros escritores que cativou e serviu
de referecircncia a inuacutemeras criaccedilotildees artiacutesticas em diferentes registos e dispositivos A
adesatildeo agrave literatura de viagens divide-se entre aqueles que satildeo autores e quem seja leitor
No caso penso que a ponderaccedilatildeo e ajuizamento quanto aos conteuacutedos relatados de
viagens argumentados ou refletidos por mulheres e homens possuem denominadores
comuns mas necessariamente integram elementos distintivos ou pelo menos
absorvidos de modo diferente em alguns aspetos
Nas viagens mais remotas numa Europa onde o desconhecimento persistia
(dominava) e as restriccedilotildees de geacutenero delimitavam comportamentos estanques as
mulheres ndash com iacutempeto para viagem ndash tiveram de ponderar os termos de seu
reconhecimento societaacuterio serem vistas como mulheres que eram ou disfarccediladas
parecendo homens Conhecem-se casos de mulheres europeias que viajaram assumindo
figura masculina entre as quais no seacutec XVI a espanhola Catalina de Erauso (1592 ndash c
1626) nascida no paiacutes Basco e conhecida por Monja Al Farez que em 1615 atravessou o
Oceano tendo viajado pelo Peruacute e pelo Chile Cordilheira dos Andeshellip Teve uma vida
atribulada quando Espanha era o Grande Impeacuterio do Mundo
Aphra Behn (1640-1689) (cf Todd 2000) nascida em Inglaterra inventou-se
uma famiacutelia e histoacuteria de infacircncia casou com um traficante de escravos que morreu
apenas um ano depois em 1665 Era uma espeacutecie de agente secreta tendo denunciado
no seu romance Oronoko a condiccedilatildeo dos escravos no Suriname a tirania dos europeus
sendo um testemunho em primeira voz quanto agrave situaccedilatildeo dessa coloacutenia inglesa
20
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Isabel Godin des Odonais (1727-1792) de origem peruana casou muito jovem
com Jean Godin que narraria a sua vida heroica no livro Relation du Voyage de Madame
Godin son eacutepouse em 1778 apoacutes a sua morte Em 1769 organizou uma expediccedilatildeo que
tinha como objetivo atingir o Atlacircntico descendo o rio Amazonas e seus afluentes Foi
uma cataacutestrofe e foi graccedilas agrave sua determinaccedilatildeo que conseguiu sobreviver
Jeanne Baret (1740-1807) embarcou como membro da tripulaccedilatildeo de Louis
Antoine Bouganville sendo a primeira mulher a cumprir uma viagem de circunavegaccedilatildeo
ainda que disfarccedilada de homem vestida com trajes masculinos
Hester Stanhope (1776-1839) igualmente trajada como homem chefiou uma
primeira missatildeo arqueoloacutegica na Terra Santa
Estas viajantes integram a lista de viajantes destemidas assinaladas por
Alexandra Lapierre e Christel Mouchard em Elles Ont Conquis le Monde
Maria Graham Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sir Thomas Lawrence Portrait of Maria Graham 1819
Maria Dumbas Graham Callcott (1775-1842) curiosamente natildeo eacute abordada natildeo
sendo alvo de qualquer menccedilatildeo neste livro cujo tiacutetulo lhe ldquoassentaria como uma luvardquo
Elles Ont Conquis le Monde Aliaacutes nas listas de mulheres europeias viajantes tampouco eacute
referenciada O que acalenta mais ainda o fato de ser um caso emblemaacutetico associando-
se agraves suas viagens toda uma atividade notaacutevel e proliacutefera quer como escritora quer
21
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
como ilustradora das suas inuacutemeras publicaccedilotildees mas tambeacutem como algueacutem ciente de
problemaacuteticas socioloacutegicas e antropoloacutegicas nesse mundo vivido na transiccedilatildeo entre o
seacutec XVIII e as primeiras deacutecadas do seacutec XIX
Por certo que esta artista-viajante natildeo eacute citada em Intreacutepidas Viajantes
Vitorianas3 onde se alude aos respetivos episoacutedios histoacutericos por lhes ser anterior O
que lhe confere aliaacutes um maior e precoce arrojo ousadia ou intrepidez Antecipa e
torna premonitoacuteria ndash para as geraccedilotildees que lhe sucedem ndash a policronia e polimorfia da
sua vida
Maria Graham natildeo integrou qualquer missatildeo artiacutestica como ocorrera com
artistas europeus que a precederam no Brasil assim como com outros que lhe
sucederam Todavia a atividade concretizada pela autora inglesa em muito se assemelha
agrave produccedilatildeo quer literaacuteria quer visual desses outros protagonistas que cumpriam
objetivos cientiacuteficos e culturais atraveacutes de desempenhos pessoais que os envolviam na
sociedade brasileira (portuguesa) e aproximavam das comunidades autoacutectones
Attilio Brilli em Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour
menciona a proliferaccedilatildeo de livros que pretendem fornecer orientaccedilotildees e prescrever um
receituaacuterio para quem quisesse adentrar-se ao Grand Tour ldquoNon sorprendra allora se
consideriamo quello del lettore en viaggio nel viaggio e si gli forniamo alcune utili
informazioni sul percorsordquo (1995 7)
Que tipos de viagem almejam o fim do mundo Podemos considerar as viagens
como veiacuteculos estrateacutegias meios de atingir o fim do mundo concebido pelos respetivos
viajantes ndash quer mulheres quer homens Relembrem-se duas taxionomias que
diferenciam os viajantes
Jacques Lacarriegravere distingue (1997 20ss) aqueles(as) que viajam em trecircs
categorias
- ldquovoyageansrdquo a pessoa que se desloca pelo seu trabalho mais do que por prazer
- ldquovoyageacute(e)rdquo o natildeo-aventureiro do mundo moderno
- ldquovoyageurrdquo o que ao deslocar-se vive a experiecircncia instrui-se e enriquece-se agrave imagem de
Ulisses que regressou a Iacutetaca rico de tudo aquilo que adquiriu na proposta da verdadeira viagem
Nietzsche por sua vez mais de um seacuteculo antes do francecircs em Le Voyageur et son
Ombre estabelecera 5 niacuteveis ou 5 graus para definir os viajantes
22
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- 1ordm grau ldquosont les voyageurs que lon voit ndash agrave vrai dire on les voyage et ils sont aveugles en
quelque sorterdquo
- 2ordm grau ldquoles suivants sont ceux qui regardent veacuteritablement le monderdquo
- 3ordm grau ldquoau troisiegraveme degreacute il arrive quelque chose au voyageur par suite de ses observationsrdquo
- 4ordm grau ldquoles voyageurs retiennent ce quils ont veacutecu et ils continuent agrave le porter en euxrdquo
- 5ordm grau considerado portanto o estaacutedio supremo eacute aquele atingido por alguns ldquohomens [e
mulheres acrescentaria eu] de forccedila superior que necessariamente acabam por exibir agrave luz do
dia tudo o que viram depois de terem vivido e assimilado eles revivem entatildeo as suas viagens
em obras e em accedilotildees quando regressaram a casardquo (Nietzsche 1902 146-147)
As viagens interessam aos historiadores por diferentes motivos relacionados
qualificativos e caraterizadores Sylvie Venayre em Panorama du Voyage ndash 1780-1920
(2012 15) procede agrave histoacuteria das viagens realizadas a partir do Ocidente
- Viagens de conhecimento ldquovoyage savantrdquo
- Viagens e meios de transportes
- Viagens de peregrinaccedilatildeo
- Viagens de Turismo
Edward Finden a partir de Maria Graham Watering Place Juan Fernandez Journal of a Residence in Chile
1824
Destaquem-se alguns dos aspetos numa perspetiva mais pormenorizadamente
focada que contribua para a abordagem ao caso de Maria Graham Lady Callcott
23
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- as colonizaccedilotildees iniciarem-se com o advento das viagens exploratoacuterias
- os objetivos das viagens expediccedilotildees cientiacuteficas artiacutesticas de formaccedilatildeo de fruiccedilatildeo e lazer (em
aceccedilotildees obviamente do que atualmente e ao longo do seacutec XX se estabeleceu em termos
definitoacuterios desses conceitos)
- as dificuldades dos viajantes com as liacutenguas os idiomas ndash seu desconhecimento
- primeiros ldquoGuias de Viagensrdquo antes e depois da eclosatildeo do conceito de ldquoTurismordquo ndash Le Tour du
Monde Libraire Hachette 1860
- a evoluccedilatildeo dos transportes ndash vias e tipologias
- A peacute caminhadas peregrinaccedilotildees deambulaccedilotildees ndash trajetos espontacircneos ou estabelecidos ndash
ldquoponto de fuga na paisagemrdquo
- Caminhos-de-ferro redes na Europa e para fora dela adentrando-se em outros paiacuteses por
via terrestre ndash existecircncia de Guias de Conduta para os viajantes ferroviaacuterios utopistas ndash
ligaccedilatildeo de culturas gt conciliaccedilatildeo entre Ocidente e Oriente por exemplo Saint-Simonistas
- Rodoviaacuterios os mitos utopistas da ldquoestradardquo como fuga evasatildeo ndash seguranccedila e dificuldades
nos caminhos
- MariacutetimosNavegaccedilatildeo somente a partir de 1880 se comeccedilam a empreender as ldquoviagens
transatlacircnticasrdquo para viajantes que natildeo estivessem envolvidos mais ou menos diretamente
em objetivos exigecircncias profissionais ou situacionais
Viajar ao tempo de Maria Graham Callcott implicava natildeo somente a
possibilidade de risco e do inesperado mas a consciecircncia de que fosse mesmo uma
certeza Todavia nada a impediu de empreender e concretizar todas aquelas viagens
que a indiciam como figura incontornaacutevel na cultura europeia e do Brasil no seacutec XIX
ldquoExploring is delightful to look forward to and back upon but it is not comfortable at the
time unless it be of such an easy nature as not to deserve the namerdquo (Butler 1872)
- As mulheres viajantes pertenciam maioritariamente a classes abastadas e privilegiadas senatildeo
financeiramente em termos intelectuais
- Seguindo Nicolas Bourguinat haacute que distinguir as mulheres viajantes dos paiacuteses protestantes ndash
atentas agrave intoleracircncia religiosa e excessos de devoccedilatildeo nos paiacuteses catoacutelicos por exemplo
relativamente ao que seria a acutilacircncia de olhar e ajuizamento por parte das mulheres que
procediam de paiacuteses catoacutelicos ndash Maria Graham relata muitas situaccedilotildees protagonizadas por figuras
do clero ndash retrata-os assim como descreve situaccedilotildees de culto e determinaccedilotildees normativas da
Igreja (Venayre 2012 12)
- As viagens realizadas por mulheres aconteciam por motivo de acompanharem pais famiacutelia ou
marido e podiam cumprir percentualmente os seguintes propoacutesitos
24
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
- Formaccedilatildeo
- Estudos
- Lazer
- Ambiguidade do olhar feminino evidenciada na forma de escrita ndash livros diaacuterios cadernos de
viagens ndash carregava estereoacutetipos mas ao mesmo tempo tinha clarividecircncia para denunciar as
situaccedilotildees uma noccedilatildeo de superioridade impliacutecita nas mulheres europeias por ex as inglesas
relativamente aos territoacuterios colonizados (cf Rogers 2008)
- As mulheres-autoras europeias demonstravam empatia quanto agrave condiccedilatildeo feminina das
escravas e demais situaccedilotildees vividas por mulheres autoacutectones ndash empatia pelo Outro que era
dominado subjugado
- Viagem feminina como auto- e redescoberta de si vivecircncias experiecircncias vividas durante a
proacutepria viagem a necessidade de superar os condicionalismos e as adversidades impliacutecitas gt
espeacutecie de processo de reabilitaccedilatildeo de si
- Emergecircncia identitaacuteria de um ldquoeurdquo feminino atraveacutes da escrita e da praacutetica do desenho e da
pintura
- A diferenciar no caso da escrita
- Diaacuterios
- Cartas
- Ensaios
- Anotaccedilotildees
- A diferenciar no caso das artes visuais
- o desenho de caraacutecter cientiacutefico ndash por exemplo o desenho de espeacutecies botacircnicas da flora dos
troacutepicos casos de Sybilla Meacuterien (1647-1717) ou de Marianne North (1830-1890) mas na
cronologia entre ambas o caso de Maria Graham
- o desenho ilustrativo de paisagens e situaccedilotildees vivencias na sociedade ndash predominando um gosto
pela representaccedilatildeo ldquopitorescardquo ndash denominador comum agrave evidecircncia esteacutetica iconograacutefica afeta
subjacente ao Grand Tour
- ldquoA ascensatildeo de uma escrita feminina de viagem relaciona-se com a subjetividade ocidental e
mais em particular devido agrave transiccedilatildeo do periacuteodo iluminista para o romantismo com o
nascimento do lsquoiacutentimorsquo e da exploraccedilatildeo do lsquoeursquordquo (Venayre 2012 13)
- Uma curiosidade inata e uma capacidade de atender a pormenores proacuteprios agraves mulheres que
assim detetavam aspetos por vezes ldquoinvisibilizadosrdquo associavam-se estas qualidades para
25
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
observaccedilatildeo e reconhecimento de normas costumes e padrotildees de comportamento expressos em
relatos eou narrativas especiacuteficas designadamente uma sensibilidade que se expandia no
entendimento das categorias esteacuteticas do belo do pitoresco e da ldquocor localrdquo Natildeo sem que em
alguns casos a dimensatildeo sublime seja manifesta
- Constituiccedilatildeo de uma noccedilatildeo autoral identitaacuteria concretizaccedilatildeo mediante um envolvimento
empiacuterico cruzado pelo acesso a dados de natureza cientiacutefica por procedimento autodidaacutetico e
eivado ndash talvez inicialmente ndash de um diletantismo que se converteu em alguns casos em
conhecimentos epistemoloacutegica e metodologicamente validados ndash construccedilatildeo de conhecimento
rigoroso ndash como se pode constatar nas obras de incursatildeo na histoacuteria de arte que Maria Graham
publicou depois do seu segundo casamento e aquando de novas viagens pela Europa
On nrsquoa fait qursquoaccompagner un eacutepoux on nrsquoa de toute faccedilon jamais quitteacute son foyer par lrsquoesprit
(et la lettre nrsquoest-elle pas alors la preacutevue la plus tangible que le lien nrsquoeacutetait pas rompu) Et
drsquoautre part on nrsquoavait pas lrsquointention immodeste de publier ces textes de circonstance on y
prendra drsquoailleurs pas la parole agrave titre personnel mais on y eacutevitera au contraire toute prise de
position trop trancheacutee trop individuelle ndash dans ce cas la correspondance priveacutee laisse (par
rapport au reacutecit de voyage classique) une liberteacute de ton et une marge drsquoappreacuteciation plus
facilement toleacuterables autant face agrave la censure policiegravere lagrave ougrave elle existe que face agrave celle
drsquoopinion (Bourguinat 2008 11)
Segundo Alexandra Lapierre e Christel Mouchard (2015 15) as grandes
viajantes e exploradoras teriam surgido em meados de oitocentos Antes como se
referiu tais aventuras jaacute haviam ocorrido embora em muitos casos escondendo a
condiccedilatildeo de serem mulheres Tal natildeo ocorria por certo quando viajavam
acompanhando a famiacutelia ou os maridos Embora em determinadas situaccedilotildees tivessem
tido de ocultar a sua identidade por questotildees de seguranccedila
No caso de Maria Graham as suas viagens estiveram quase sempre associadas a
figuras masculinas Primeiro o pai depois os seus dois maridos Na sua primeira viagem
agrave Iacutendia acompanhou o pai que ia assumir um novo cargo administrativo Durante essa
viagem conheceu aquele que viria a ser o seu primeiro marido Robert Graham com
quem viajaria na Europa e para a Ameacuterica do Sul Todavia por morte deste mesmo
antes de atracar a Santiago do Chile teve de regressar a Inglaterra sozinha e depois a
convite do Imperador D Pedro voltou tambeacutem sem acompanhante ao Brasil onde fora
convidada a ser preceptora da futura rainha D Maria II Aiacute permaneceu ateacute 1825 dando
continuidade agraves suas pesquisas e escritas Apoacutes uma breve estadia em Inglaterra
26
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
jornadeou de novo pela Europa e Meacutedio Oriente com o segundo marido o pintor Sir
August Callcott
Esta autora incomparaacutevel viajante na sua geraccedilatildeo teve longa permanecircncia no
Brasil Foi uma das primeiras vozes a alertar a expressar os perigos do etnocentrismo
do sociocentrismo no Brasil ldquoLes hommes sont les mecircmes partout leur opinion sur
celui qursquoils jugent se mesure presque toujours drsquoapregraves la position ougrave il se trouve
Lrsquohomme heureux a toujours raison et cela dans la vie priveacutee comme dans la vie
publique Avec plus ou moins de modifications lrsquoesprit de partialiteacute et lrsquoinjustice
dominent chez les nations et plus obstineacutement dans certaines classes de la socieacuteteacuterdquo (TAl
I 250) (cf Pereira 1990)
Eis a listagem das suas publicaccedilotildees
Obras assinadas como Maria Graham
1 Journal of a Residence in India A Constable Edimburgo 1812 Longman Edimburgo (2ordf
ed 1813) (Traduccedilatildeo francesa de A Duponchel na Nouvelle Bibliothegraveque des Voyages
Paris 1841)
2 Letters on India with etchings and a map Londres 1814
3 Memoirs of the War of the French in Spain (traduzido do francecircs por M C) John Murray
Londres 1815
4 Three Months Passed in the Mountains East of Rome During the year 1819 Longman
Londres e Constable Edimburgo 1820
5 Memoir of the Life of Nicholas Poussin Longman etc Londres e Constable Edimburgo
1820
6 Journal of a Voyage to Brazil and Residence There During Part of the Years 1821 1822
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
7 Journal of a Residence in Chili During the Year 1822 and a Voyage from Chili to Brazil in
1823 Longman etc e John Murray Londres 1824
8 Voyage of H M Blonde to the Sandwich Islands in the Years 1824-1825 under Captain the
Right Hon Lord Byron Commander 1826
9 Escorccedilo Biograacutefico de Dom Pedro I com uma Notiacutecia do Brasil e do Rio de Janeiro
(Traduccedilatildeo de Ameacuterico Jacobina Lacombe) Rio de Janeiro Anais da Biblioteca Nacional
vol LX 1940
Com o nome de Maria Callcott
1 A Short History of Spain Murray Londres 1828
27
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
2 Letter to the President and Members of the Geological Society in Answer to Certains
Observations Contained in Mr Greenoughrsquos Anniversary Address of 1834 Brettall Londres
1834
3 Description of the Chapel of the Annunziata dell Arena in Padua with Engravings from
Drawings by A W Callcott R A Brettall Londres 1835
4 Little Arthurrsquos History of England Murray4 Londres 1835
5 Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1836
6 Continuation of Essays towards the History of Painting E Moxon Londres 1838
7 The Seven Ages of Shakespeare An Essay by Lady Callcott 1840
8 The Little Brackenburners and Little Maryrsquos Four Saturdays Londres 1841
9 A Scripture Herbal Longman Londres 1842
Maria Graham Bahia Journal of a voyage to Brazil and residence there during part of the years 1821 1822
1823 (1824)
Sob desiacutegnios recorrentes o fim e o iniacutecio do mundo exercem idecircnticos fasciacutenios
Chegam a confundir-se e interrompem a diferenciaccedilatildeo loacutegica entre o que sejaeacute um [o]
iniacutecio e aquilo que sejaeacute um [o] fim O fim pode estar tatildeo proacuteximo da consciecircncia de seu
princiacutepio que o paradoxo se converte em algo justificaacutevel como se o brotar de uma
planta estivesse ndash automaticamente ndash na ordem de seu termo como se houvesse uma
fusatildeo de vida-morte como ensinou Clarice Lispector pois que interrompendo a
quietude e a condescendecircncia para se autorizar a fruir a vida em viagem intreacutepida e
convicta
Trazer o fim do mundo ateacute se aconchegar por perto nas fronteiras entre a
seduccedilatildeo e o conforto que as ideias possam proporcionar atraveacutes da escrita e do
desenho Maria Graham apropriou-se do que viu experienciou ouviu tocou lhe
28
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
sussurraram quer as paisagens estranhas quer as pessoas acalentadas por destinos
incertos
Criar um herbaacuterio uma espeacutecie de jardim onde as plantas se desenham e
descrevem eacute contrariar a morte e menosprezar a distacircncia exoacutetica onde essas
fragilidades se localizam Transporta-se o que esteja no fim do mundo ateacute noacutes
Uma vez que estivemos no Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa
natildeo deixaria escapar a oportunidade de tomar por companhia alguns excertos literaacuterios
(e natildeo somente esteacuteticos eou da filosofia ndash se eacute possiacutevel dividirmos assim tatildeo
basicamente as aacuteguashellip natildeo estagnadas mas em movimentohellip Gaston Bachelard dixithellip)
Assumir algumas afinidades eletivas perante voacutes sabendo que elas alavancam o
presente estudo O fato de este Seminaacuterio permanente ser ldquoDo fim do mundordquo
determinou obviamente quais os tiacutetulos e os autores escolhidos E atendendo a que se
trata da Seacuterie VI por certo recuperei as (minhas) reminiscecircncias pitagoacutericashellip
Bibliografia
Andrade Carlos Drummond de (2001) Antologia Poeacutetica Lisboa Dom Quixote
Andresen Sophia de Mello Breyner (1976) Livro Sexto Lisboa Moraes
Antunes Arnaldo (2006) Antologia Vila Nova de Famalicatildeo Quasi
Barros Manoel de (1994) O Livro das Ignoratildenccedilas Civilizaccedilatildeo Brasileira
Bessa-Luiacutes Agustina (2009) Embaixada a Caliacutegula Porto Guimaratildees Editores
29
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Bourguinat Nicolas (2008) ldquoVoyage et genre une interrogation renouveleacuteerdquo in Le
Voyage au feacuteminin ndash perspectives historiques et litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles)
Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Brilli Attilio (1995) Quando Viaggiare Era unrsquoArte Il romanzo del Grand Tour Bolonha
Il Molino
Butler Samuel (1872) Everwhon or Over the Range wwwbooksshouldbefreecom
downloadtextErewhon-by-Samuel-Butlertxt
Cendrars Blaise (2005) Poesia em Viagem Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Egeacuteria (2017) Uma Narrativa de Viagem aos Lugares Santos Uberlacircndia EDUFU-
Universidade Federal de Uberlacircndia
Goethe J W (1786) Italienische Reise wwwgoethezeitportaldewissenprojektepool
goethe-italienromrom-in-alten-ansichtenrom-egeriahtml
Hatherly Ana (2003) O Pavatildeo Negro Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Helder Herberto (2014) Poemas Completos Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Lacarriegravere Jacques (1997) ldquoVoyageurs voyageants et voyageacutesrdquo Le Monde de lrsquoEacuteducation
de la Culture et de la Formation nordm 248
Lambert Madame la Marquise de (1748) Œuvres de Madame la Marquise de Lambert
Rassembleacutees pour la premiegravere fois On y a joint diverses piegraveces qui nont point encore paru
Avec un abregeacute de sa vie Lausanne Marc-Michel Bousojet amp Compagnie
Lapierre Alexandra amp Mouchard Christel (2015) Elles Ont Conquis le Monde ndash Les
grandes aventuriegraveres 1850-1950 Paris Artaud
Le Livre de la Reacutevelation (sd) fileKA - A SITEAPOCALApoIntrohtml (consulta
em fevereiro de 2019)
Lispector Clarice (2002) A Hora da Estrela Lisboa Reloacutegio drsquoAacutegua
-- (2004) Aprendendo a Viver (Crocircnicas) Rio de Janeiro Rocco
Maffesoli Michel (2001) Sobre o Nomadismo Rio de Janeiro Record
30
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Monicat Beacuteneacutedicte (1996) Itineacuteraires de lEacutecriture au Feacuteminin voyageuses du 19e siegravecle
httpsbooksgoogleptbooksid=SvtikX04DdcCamppg=PA78amplpg=PA78ampdq=benedicte+
monicat+itinC3A9raire+de+l27ecriture+au+femininampsource=blampots=KcH2OIXIOg
ampsig=IvLE2BLgzCCM1ZvqUOgagsQr5aoamphl=pt-
PTampsa=Xampved=0ahUKEwiCuqn56pzbAhWH8RQKHaK2BJkQ6AEIQTADv=onepageampq=
benedicte20monicat20itinC3A9raire20de20lecriture20au20femininampf
=false
Murray II John ndash Archive online (1778-1843) in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-
murray-iiindexhtml
Nietzsche Friedrich (1902) Le Voyageur et son Ombre ndash Opinions et sentences mecircleacutees
(Humain trop humain 2e partie) Paris Mercure de France
Pereira Ligiagrave Fonseca (1990) ldquoItineraire drsquoune voyageuse en Europe Niacutesia Floresta
(1810-1885)rdquo Cahiers du Breacutesil Contemporain ndeg 12
Pina Manuel Antoacutenio (2012) Poesia Reunida Lisboa Assiacuterio amp Alvim
Pomeroy Jordana (2005) Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall Ashgate
Quignard Pascal (1999) Vida Secreta Lisboa Ed Notiacutecias
Rilke Rainer Maria (1983) Poemas ndash As Elegias de Duiacuteno e Sonetos a Orfeu Lisboa Oiro
do Dia
Rogers Rebecca amp Thebaud Franccediloise (2008) Voyageuses
httpsjournalsopeneditionorgclio7553
Rogers Rebecca (2008) ldquoDeacutecrypter le regard national voyageuses anglaises et
franccedilaises en Algeacuterie au XIXe siegraveclerdquo Le Voyage au Feacuteminin ndash perspectives historiques et
litteacuteraires (XVIIIe ndash XXe siegravecles) Estrasburgo Presses Universitaires de Strasbourg
Rousseau Jean-Jacques (1754) Discours sur lrsquoOrigine de lrsquoIneacutegaliteacute
httpsphilosophiecegeptrqccawp-contentdocumentsDiscours-sur-
linC3A9galitC3A9-1754pdf
Sena Jorge de (1989) Visatildeo Perpeacutetua Lisboa Ediccedilotildees 70
31
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
Starobinski Jean (1994) LrsquoInvention de la Liberteacute Paris Skira
Sontag Susan (1997) O Amante do Vulcatildeo Lisboa Quetzal
Todd Janet (2000) The Secret Life of Aphra Behn Londres Pandora
Venayre Sylvie (2012) Panorama du Voyage ndash 1780-1920 ndash Mots figures pratiques
Paris Les Belles Lettres
Maria de Faacutetima Lambert eacute Licenciada em Filosofia Mestre e Doutora em Filosofia
Moderna e Contemporacircnea ndash Esteacutetica pela Faculdade de Filosofia de Braga
Universidade Catoacutelica Portuguesa Professora Coordenadora em Esteacutetica e Educaccedilatildeo -
Escola Superior Educaccedilatildeo Politeacutecnico do Porto Professora Convidada em
Universidades do Brasil Itaacutelia e Espanha Bolseira FCT no projeto ldquoWriting and Seeingrdquo -
2000 e 2004 Diretora (2014-2016) e Membro Integrado InED (Centro de Investigaccedilatildeo e
Inovaccedilatildeo em Educaccedilatildeo ESEPPorto) onde coordena vaacuterios projetos destacando-se ldquoA
[in]visibilidade da Mulher na Histoacuteria da Arte e do Pensamentordquo ldquoEducaccedilatildeo Esteacutetica e
formaccedilatildeo do puacuteblico da Arte Contemporacircneardquo que integra programa de curadorias em
Casas-Museu em Portugal Espanha e Brasil Membro de vaacuterias Comissotildees Cientiacuteficas
Desde 1989 desenvolve atividade como Criacutetica de Arte (AICA) Programadora e
Curadora Independente de exposiccedilotildees e residecircncias artiacutesticas privilegiando o eixo
Portugal-Brasil Bailarina na Companhia da Academia de Bailado Pirmin Trecu ateacute 1989
Conferencista e autora de vaacuterios livros textos artigos e comunicaccedilotildees publicados
32
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 7-33 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a2
NOTAS
1 Na Filosofia assim como na Poesia a imagem da viagem serve propoacutesitos incontornaacuteveis estimulando a
lucidez de saberes vivenciados e refletidos sob metaacuteforas siacutembolos e alegorias subsumidas imagens
obsessivas recuperando o termo de Charles Mauron O Itineraacuterio da Mente para Deus de Satildeo Boaventura
(seacutec XIII) referencia uma ideia de jornada que se diferencia de A Subida ao Monte Ventoux de Petrarca
(1336) pequeno livro emblemaacutetico que ainda que orientado ao termo simboacutelico da ascensatildeo subsiste
atraveacutes das conivecircncias reais experimentadas pelo esforccedilo fiacutesico na caminhada
2 Cf httpssonofthefatherswordpresscom20101027peregrinatio-egeriae (consulta em maio de
2018)
3 Destaque-se o livro editado por Jordana Pomeroy Intrepid Women ndash Victorian Artists Travel Cornall
Ashgate 2005 A publicaccedilatildeo surgiu na sequecircncia da exposiccedilatildeo assim designada que se realizou no
National Museum of Women in Art de Washington em 2002 Jordana Pomerey foi responsaacutevel com
Rosalind P Gray Rosalind P Blakesley tambeacutem por An Imperial Collection Londres Merrel 2003 assim
como de Royalists to Romantics Women Artists from the Louvre Versailles and Other French National
Collections Londres Scala Arts Publishers 2012 entre outras ediccedilotildees
4 Cf Arquivo de John Murray in httpsdigitalnlsukjmawhojohn-murray-iiindexhtml
33
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3 35
Dentro da boca eacute escuro Sobre poesia e o fim do mundo
Patriacutecia Lino
UCLA (University of California Los Angeles)
Resumo A palavra poeacutetica como mateacuteria plaacutestica multidisciplinar manifestaccedilatildeo e experiecircncia potildee em
causa a estrutura normativa do cacircnone ocidental Exige aleacutem disso ao(agrave) criacutetico(a) literaacuterio que se
reeduque continuamente a partir da leitura empaacutetica do texto do Outro
Palavras-chave poesia performance oralidade cacircnone
Abstract The plasticity and multidisciplinary nature of the poetic word as manifestation and experience
challenges the normative structure of the Western canon In addition to that it demands a continuous re-
education of the literary critic through the empathetic reading of the textual Other
Keywords poetry performance orality canon
A
Todos os humanos participam de conhecer-se a si mesmos e ser saacutebios
Heraclito (B116)
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
0 Um claratildeo luminoso
A anaacutelise etimoloacutegica e histoacuterica da palavra λογος (logos) pode aclarar a
expressatildeo aparentemente paradoxal ldquoloacutegica poeacuteticardquo porque λογος significa ldquofaacutebulardquo
antes de querer dizer ldquodiscursordquo A sua dimensatildeo fantaacutestica liga-se assim a outra
palavra grega μυθος o mito ou a accedilatildeo mental que existe no silecircncio e precede o ldquofalar
naturalrdquo (um conjunto de gestos que tinham relaccedilatildeo direta com o ritmo1 e as ideias) Ou
o lugar da comunicaccedilatildeo poeacutetica ldquoe a sua tendecircncia ou sua aptidatildeo para gerar mais prazer
do que informaccedilatildeordquo (Zumthor 2007 64) que nos recorda aleacutem da indispensabilidade da
voz (que estaria na base da transmissatildeo da palavra viva) a importacircncia dos ouvidos e
dos olhos centrais para o processo de assimilaccedilatildeo do prazer e da memoacuteria que no
contexto desta situaccedilatildeo oral diria respeito agrave conservaccedilatildeo e recriaccedilatildeo do prazer
Existe assim uma diferenccedila estrutural entre o processo de transmitir a palavra
poeacutetica viva que une de modo orgacircnico ideias gesto voz olhos ouvidos emoccedilatildeo e
memoacuteria e o processo de transmissatildeo da palavra poeacutetica escrita O segundo que eacute
artificial e se afasta estruturalmente do corpo uno aproxima-se dele muito
pontualmente atraveacutes da leitura A espontaneidade do ato de ler com a voz a palavra
poeacutetica escrita corresponde ao desejo de repor a unidade perdida Ainda assim a
tentativa condenada a ser para sempre incompleta natildeo se dissocia do prazer
Antes de poder descrever o comeccedilo do mundo a poesia eacute como um claratildeo
luminoso o seu fim e ao mesmo tempo a pluralidade do(s) comeccedilo(s) que adveacutem do
fim
Consecutivamente
1 O perigo da poesia
Repuacuteblica Livro X O alvo de Platatildeo eacute mais do que a poesia como fenoacutemeno
estrutural e estruturado o resultado psicoloacutegico ou emocional da experiecircncia poeacutetica E
a questatildeo lida e interpretada de tantas formas vaacutelidas e erroacuteneas ao longo dos tempos
parece residir aqui a poesia como estrutura ou resultado natildeo ocupa um lugar inferior
ao lugar da filosofia
36
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
A poesia eacute suficientemente poderosa para que Platatildeo denuncie o seu perigo Um
veneno psiacutequico Mais questionar a validade do uso social da poesia implica para
Platatildeo questionar o ato de memorizar e dizer ou performar em puacuteblico
Mas a denuacutencia tropeccedila na contradiccedilatildeo quando ao dispensar o fazer poeacutetico
Platatildeo planeia a narraccedilatildeo social das histoacuterias recorrendo dissimuladamente ao poema
ou agraves estrateacutegias narrativas do mito Platatildeo conhece o poder da palavra metafoacuterica e
confia nela a ponto de colocar em risco por nunca esclarecer o que haacute de comum entre a
poesia e a filosofia ou a filosofia e as outras artes o seu projeto filosoacutefico
2 Poesia sf Pharmakoacutes nocivo milenar
As passagens estoacuterias ou anedotas ocidentais tambeacutem elas parte da tradiccedilatildeo
literaacuteria europeia sobre a recepccedilatildeo emocional ou pateacutetica da poesia ou sobre o poder
da palavra poeacutetica satildeo vaacuterias e tatildeo sugestivas quanto antigas
A primeira delas pode ler-se no canto VIII da Odisseia quando Ulisses chora ao
escutar as palavras de Demoacutedoco e cobre envergonhado a cabeccedila (vv 83-85) Apesar
de reconhecer o talento do aedo Ulisses repreende o perigo das palavras de Demoacutedoco
que lhe encolerizam (θυμὸν) o coraccedilatildeo (vv 178-179)
Outra delas seraacute certamente a que Suetoacutenio ou Seacutervio Honorato registaram
sobre Otaacutevia irmatilde de Augusto e o canto VI da Eneida de Virgiacutelio Contam ambos que
depois de ouvir a referecircncia ao falecido filho Marcelo Otaacutevia desmaiou ou esteve perto
de desmaiar2
O choro a experiecircncia proacutepria (ἴδιον τι πάθημα) e a comoccedilatildeo de Ulisses Augusto
ou Otaacutevia provocados pela performance da palavra poeacutetica abalam suspiro a suspiro
contra a instrumentalizaccedilatildeo da linguagem os pilares da ordem Compotildeem-se aleacutem do
mais coletivamente3 O mundo regrado acaba na respiraccedilatildeo riacutetmica da palavra poeacutetica e
recomeccedila logo depois como perda e memoacuteria
Agrave semelhanccedila das laacutegrimas o riso (e a paroacutedia a saacutetira a ironia ou a metapoesia)
aproximam-se como nos lembra Bergson da inteligecircncia pura que contraria a
mecanizaccedilatildeo da vida adormenta momentaneamente o coraccedilatildeo e regulamenta num
movimento inverso a sociedade
37
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
3 Natildeo sei se a salvaccedilatildeo existe mas existe ndash certamente ndash a tentativa de nos
salvarmos
Ao mesmo tempo a palavra poeacutetica evita como forma de honrar os heroacuteis um
fim do mundo individual Eacute aliaacutes sob esta forma (κλέος) que ela impulsiona os comeccedilos
do primeiro dos poemas ocidentais A narraccedilatildeo da Iliacuteada depende no canto I de um dos
dois destinos que Teacutetis prevecirc para Aquiles (vv 413-418) Lutar morrer em Troacuteia e ser
cantado eternamente pelos poetas
A palavra κλέος vem do verbo κλύω (escutar) e por estar relacionada com o
canto dos poetas que escutam o sopro celebrador das Musas sobre os heroacuteis significa
fama gloacuteria ou reputaccedilatildeo A fama estende-se automaticamente ao estatuto dos poetas
A memoacuteria memorizaccedilatildeo e a oralidade da palavra poeacutetica tambeacutem se opotildeem
como formas de sobrevivecircncia a um fim do mundo imposto e material Haacute com efeito
algo similar entre um dos uacuteltimos gestos de Boris Pasternak (Kayzer 2000) e a
obediecircncia cega de Ezequiel (Ez 29 ndash 32) O primeiro na histoacuteria contada por George
Steiner a Wim Kayzer4 incentiva correndo o risco de morrer uma multidatildeo de duas mil
pessoas a dizerem o soneto 30 de Shakespeare (que ele proacuteprio havia traduzido) e ao
segundo Deus ordena que coma a mensagem escrita que lhe tinha entregado antes A
comoccedilatildeo da palavra reverberada que num contexto opressor passa de Pasternak para
os(as) outros(as) escapa ao controlo do poder fortalece-se a partir da ingestatildeo literal
(como no caso de Ezequiel) ou intelectual Perpetua-se contra o risco e a dominaccedilatildeo Eacute
original plena incontrolaacutevel
B
Se vocecirc tem uma ideia incriacutevel eacute melhor fazer uma canccedilatildeo
Estaacute provado que soacute eacute possiacutevel filosofar em alematildeo
Caetano Veloso
38
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Cacircnone salvaccedilatildeo ou privileacutegio
A palavra literatura do latim littera (letra) litteratura acompanha o nascimento
da ideia das naccedilotildees e da identidade nacional Trata-se de um projeto exclusivamente
europeu A ideia em si natildeo vem designar nada novo mas inicia a niacutevel disciplinar a
necessidade correspondente literatura jaacute natildeo designaraacute mais todos os textos que
transmitem o conhecimento mas apenas uma pequena parte deles Essa pequena parte
que passaraacute dois seacuteculos depois a ser a literaacuteria nomeia certos geacuteneros literaacuterios
especiacuteficos unidos por uma ideia esteacutetica e serve ao mesmo tempo e muitas vezes os
discursos nacionais e nacionalistas da segunda metade do seacuteculo XVIII
Apesar de a dimensatildeo nacional ou identitaacuteria do termo literatura designar um
objeto que natildeo segue na maior parte do tempo um propoacutesito nacionalista ou poliacutetico o
termo aparece desde do iniacutecio ligado agrave ideia de identidade nacional As denominaccedilotildees
(ldquoliteratura portuguesardquo ldquoliteratura brasileirardquo) formam-se a partir da geografia e da
liacutengua Esta uacuteltima que pode ser partilhada em mais de dois lugares no caso particular
dos paiacuteses que colonizaram e foram colonizados eacute o instrumento de imposiccedilatildeo da
identidade de uns e com frequecircncia o instrumento de resistecircncia dos segundos
Os termos lusoacutefono hispacircnico ou anglo-saxoacutenico natildeo aclaram os conflitos dilemas
e consequecircncias poacutes-coloniais Tampouco antecipam a diversidade de posiccedilotildees ou
reaccedilotildees poliacuteticas e literaacuterias perante ou a partir de uma liacutengua imposta
A liacutengua que traz com ela um conjunto vasto e vago de expressotildees designa as
manifestaccedilotildees culturais de uma ou mais aacutereas geograacuteficas Por uma questatildeo de
organizaccedilatildeo controlo poliacutetico ou por assentar no sentimento de pertenccedila que os(as)
integrantes de uma determinada comunidade ou grupo social tecircm ao fazer parte de uma
mesma ldquocomunidade imaginaacuteriardquo5 um nuacutemero iacutenfimo destas manifestaccedilotildees culturais
transforma-se em estereoacutetipo O estereoacutetipo nacional ou nacionalista impotildee-se entre
outros fenoacutemenos sobre a proacutepria liacutengua
A literatura pode ou natildeo partir desse estereoacutetipo Se parte dele a grande
literatura faacute-lo unicamente com o propoacutesito de desconstruiacute-lo e destruiacute-lo
Se a cada cultura corresponde um conjunto de estereoacutetipos a esse mesmo
conjunto de estereoacutetipos teraacute de corresponder um conjunto de regras ou preferecircncias
Ou o fim de muitos mundos como forma de preservar um soacute
39
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
O cacircnone nacional literaacuterio ou o cacircnone ocidental satildeo construiacutedos com base entre
outros pontos nesse conjunto de regras
O cacircnone antecede como termo e coisa o termo literatura e apoia-se como o
estereoacutetipo na facilidade que haacute em categorizar e nas vantagens trazidas pela
categorizaccedilatildeo Do grego κανών (kanōn) reacutegua regra ou marco de excelecircncia o cacircnone
estabelece-se como princiacutepio normativo com os filoacutesofos alexandrinos remodela-se na
Idade Meacutedia volta a transformar-se com os renascentistas e encaixa porque exclui mais
do que inclui nos discursos nacionalistas e heroicos modernos do seacutec XIX
Como o estereoacutetipo o cacircnone hegemoacutenico e homogeacuteneo altera-se e traz com ele
esta pergunta natildeo tatildeo original mas continuamente urgente quem faz o cacircnone Ou
quem precisa dele E o cacircnone ocidental-masculino-imperialista cresce a partir deste
pressuposto narcisiacutestico entram no cacircnone aqueles aquelas e aquilo que pode ser
identificado e sobretudo compreendido por quem faz o cacircnone Equivale por outras
palavras agrave institucionalizaccedilatildeo da literatura
como instrumento pedagoacutegico de viabilizaccedilatildeo da nossa diferenccedila cultural em razatildeo de sua forccedila
simboacutelica para sustentar a coerecircncia e a unidade poliacutetica da concepccedilatildeo romacircntica da naccedilatildeo como
ldquoo todos em umrdquo (Schmidt 2000 84)
Interminaacutevel a lista assenta aleacutem disso na loacutegica colonial Aquiles ou o que
queremos de Aquiles entram no cacircnone mas Aquiles natildeo eacute europeu (Mignolo 1995)
Apesar de serem aclamados pela criacutetica literaacuteria luso-brasileira Machado de Assis entra
no cacircnone universal quando Harold Bloom o reconhece cem anos depois (Rohter 2000)
Eccedila de Queiroacutes e Fernando Pessoa idem e Clarice Lispector ganha popularidade fora do
Brasil ao receber a atenccedilatildeo do jornalismo norte-americano
A fragilidade do cacircnone literaacuterio assenta assim na natureza da sua formaccedilatildeo
tautoloacutegica e iroacutenica o cacircnone reconfigura-se a partir das suas proacuteprias limitaccedilotildees e
porque parte de princiacutepios estrategicamente poliacuteticos que satildeo tatildeo volaacuteteis quanto o
proacuteprio cacircnone existe para desdizer-se
Os pilares canoacutenicos definem um mundo muito particular e algo provinciano
com base no fim de muitos outros mundos ou galaacutexias E a pergunta impotildee-se se o
mundo acabasse hoje que narrativa do mundo realmente acabaria
40
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
2 O cacircnone acidental
A propoacutesito da literatura das minorias resultado da expansatildeo e sistematizaccedilatildeo
das lutas sociais o raciociacutenio desdobra-se e obriga-nos a retroceder ateacute agraves palavras de
Fokkema e Ibsch que em 2000 antecipavam um ajuste entre cacircnone e ldquocontracacircnonerdquo
O ajuste escreveram eles surgiria da diferenccedila oacutebvia entre o conhecimento transmitido
pelo cacircnone e o conhecimento transmitido pelas margens ou textos natildeo canonizados
Parece-me que a diferenccedila natildeo diz respeito apenas ao que eacute diferente entre um e outro
mundos mas agrave destruiccedilatildeo de um modelo aristoteacutelico e cartesiano binaacuterio ou da loacutegica
excludente metafiacutesica ocidental que natildeo representa nem procura representar a
multiplicidade das expressotildees humanas e culturais E por ser justamente parte da
superaccedilatildeo de um pensamento alternativamente exclusivo o ajuste complica-se
1 Natildeo podemos questionar a urgecircncia da luta pelos direitos das mulheres dos(as)
negros(as) gays e leacutesbicas transgeacutenero intersexuais ou da comunidade indiacutegena
2 A luta pelos direitos destas comunidades deve no contexto literaacuterio corresponder agrave
sua integraccedilatildeo autoral no cacircnone literaacuterio Quer dizer um cacircnone onde eles e elas satildeo
autores(as)
3 A integraccedilatildeo autoral destas comunidades no cacircnone literaacuterio natildeo deve contudo
basear-se unicamente no que define a comunidade ser mulher ou ser indiacutegena Pode ou
deve portanto basear-se nas mesmas exigecircncias e juiacutezos de valor com que encaramos o
trabalho de um autor europeu branco
4 Por outro lado a compensaccedilatildeo erroacutenea dos direitos das minorias natildeo deveria
conduzir agrave destruiccedilatildeo de conceitos como a influecircncia ou a imitaccedilatildeo que foram e satildeo
centrais para entender por exemplo a literatura dos paiacuteses colonizados Isto eacute a
interpretaccedilatildeo extrema ou extremista de teoacutericos como Homi Bhabha natildeo deveria
desembocar na anulaccedilatildeo dos modelos do tempo (natildeo haacute antes nem depois) e da
qualidade (natildeo haacute melhor nem pior)
A questatildeo eacute no entanto bastante mais complicada
41
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Primeiro paradoxo
A literatura parece ter entatildeo de politizar-se
Ao mesmo tempo a literatura natildeo tem que sobretudo porque os atos de criar e
pensar satildeo irreversivelmente duas formas de resistecircncia Por extensatildeo a criacutetica literaacuteria
parece ter de politizar toda a literatura sem lecirc-la ou entendecirc-la6 quando o seu propoacutesito
deveria ser modestamente oferecer sugestotildees de leitura inclusivas e menos
modestamente modelar o cacircnone (de modo rigoroso e inclusivo)
Segundo paradoxo
Claro estaacute que os conceitos que usamos (ldquogrande literaturardquo ldquotempordquo ou
ldquoqualidaderdquo) bem como os instrumentos de que nos servimos para ler qualquer texto
literaacuterio satildeo resultado do cacircnone criacutetico e da bibliografia ocidentais Por isso mais do
que incluir e analisar as minorias por elas serem minorias temos em matildeos o dever de
questionar e reconfigurar os conceitos e instrumentos referidos a partir da leitura e
anaacutelise de todos e todas
Terceiro paradoxo
O cacircnone ocidental eacute exclusivamente logocecircntrico e muitas das expressotildees
literaacuterias ignoradas pelo cacircnone satildeo averbais
Quarto paradoxo
Os uacuteltimos trecircs paradoxos assentam na ideia de que as minorias querem fazer
parte do cacircnone ocidental Talvez natildeo queiram
C
Esqueccedila a caneta escreva de laacutepis
Quando a mareacute mudar vocecirc passa a borracha
Porque a vida do povo eacute assim
agraves vezes taacute tranquila e agraves vezes lsquotaacute ruim
Cidinho e Doca
42
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
1 Outro claratildeo luminoso
A tradiccedilatildeo interdisciplinar da poesia brasileira tem mais de um seacuteculo e estaacute
intimamente ligada ao domiacutenio puacuteblico Satildeo de facto vaacuterios(as) os(as) poetas
brasileiros(as) que nos lembram conscientemente ou natildeo da acepccedilatildeo original do termo
publicar que antes de fazer referecircncia ao registo escrito diz respeito agrave exposiccedilatildeo puacuteblica
das ideias e do corpo e do corpo iacutentimo (publicare estaacute na raiz da palavra portuguesa
puacutebico)
A expressatildeo poeacutetica interdisciplinar parece manifestar-se em duas frentes Por
um lado os movimentos poeacuteticos brasileiros que exploraram a relaccedilatildeo da poesia com as
outras artes desde da primeira fase do modernismo ateacute agraves geraccedilotildees da Poesia Concreta
Neoconcretismo e Poemaprocesso abriram inquestionavelmente as portas para que
dos anos 70 ateacute aos dias de hoje o(a) poeta se reinvente a partir da mateacuteria Entre os(as)
autores(as) mais recentes destaco os trabalhos multidisciplinares de Arnaldo Antunes
Andreacute Vallias Ricardo Aleixo Miroacute da Muribeca Guilherme Gontijo Flores Ricardo
Domeneck Dimitri BR Angeacutelica Freitas Reuben Heyk Pimenta Luca Argel ou Juacutelia de
Carvalho Hansen que colaborou em Janeiro de 2020 com a banda E A Terra Nunca me
Pareceu Tatildeo Distante (TTNG)
A exposiccedilatildeo puacuteblica das ideias e do corpo traz aleacutem disso a possibilidade de
estudar e recriar infinitamente a mateacuteria do poema e repensar o corpo como um
aparelho tecnoloacutegico Haacute nela a necessidade de caminhar para traacutes no sentido da perda
da primeira das vozes do mais antigo dos sons
Por outro lado e sem aparente ligaccedilatildeo com os fenoacutemenos poeacuteticos
interdisciplinares acima mencionados a poesia das favelas que acontece sobretudo no
Rio de Janeiro destaca-se por ser exclusivamente oral e performaacutetica Mais a palavra da
poesia das favelas natildeo se edita7 Existe dentro da performance e materializa-se no
viacutedeo8 Potildee tambeacutem em causa os instrumentos convencionais da criacutetica a anaacutelise tal
como a conhecemos o ensaio tal como o pensamos a aula de poesia tal como a
imaginamos ou a antologia que perdeu num oceano agitado de publicaccedilotildees e
novidades a sua funccedilatildeo modeladora e organizadora9 Recupera aleacutem disso pela
capacidade que o som tem em infiltrar-se e viajar a sua funccedilatildeo original
43
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
desestabilizadora e eacute em si uma experiecircncia proacutepria que apela diretamente agrave
experiecircncia proacutepria do Outro
A dinacircmica da poesia das favelas tem de resto algo de tatildeo de antigo como
moderno porque adapta logicamente a estrutura da slam poetry do rap e do funk10 a
partir da desconstruccedilatildeo das normas linguiacutesticas do portuguecircs A palavra falada que
estremece num vibrato ininterrupto atraveacutes dos movimentos do corpo anuncia o fim do
mundo do cacircnone ocidental porque para o(a) poeta da favela que natildeo pocircde ir agrave escola o
cacircnone ocidental natildeo existe e se existe natildeo o(a) inclui
O que fazer criticamente perante o fim do nosso mundo do corpo desajustado
que diz e dos movimentos de um corpo desajustado que aos olhos do Estado natildeo existe
Qual eacute exatamente a diferenccedila entre este corpo e a multidatildeo que recita Shakespeare
Qual eacute o lugar deste corpo vivo mas inexistente que faz tremer o cacircnone a naccedilatildeo a
poliacutecia o arquivo o documento a antologia a liccedilatildeo de meacutetrica Deus a ciecircncia e o(a)
poeta natildeo-favelado(a) que escreveu sobre as favelas E a mim que tento entendecirc-lo
2 O que haacute depois do fim do mundo
Natildeo haacute meacuterito algum no esforccedilo que faccedilo para entendecirc-lo De facto a educaccedilatildeo
do(a) criacutetico(a) que trabalha diariamente com a palavra deveria ser aleacutem de
multidisciplinar empaacutetica e humilde Deveria tambeacutem renovar-se permanentemente
entender que como a poesia acompanha o mundo a criacutetica deveria acompanhar o
movimento tecnoloacutegico da poesia
Aleacutem disso o poder e a ancestralidade do grito riacutetmico das favelas ou do(a) poeta
que se reinventa a partir da palavra poeacutetica viva natildeo anulam a validade dos Idiacutelios de
Teoacutecrito Shakespeare ou Camotildees Complementam-nos e complementam-se Dizem-nos
muito aliaacutes sobre o poder plaacutestico da palavra que se rebela e reaparece continuamente
sob variadiacutessimas formas Ela existe em si e para si independentemente de qualquer
estrutura normativa como um espaccedilo de potecircncia
44
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Bibliovideografia
Badhe Yaamir (2020) ldquoClassics Faculty proposes removal of Homer and Virgil from
mods syllabusrdquo The Oxford Student 17 de Fevereiro
Diplo (2008) Favela on Blast disponiacutevel em httpsbitly2Td3MJj
Fokkema Douwe Wessel amp Ibsch Elrud (2000) Knowledge and Commitment A problem-
oriented approach to literary studies John Benjamin Publishing Company
Kayzer Wim (2000) Of Beauty and Consolation disponiacutevel em httpsbitly383nqM7
Manguel Alberto (2014) A History of Reading Nova Iorque Penguin Books [1996]
Mignolo Walter (1995) The Darker Side of the Renaissance University of Michigan
Paz Octavio (1972) Signos em Rotaccedilatildeo trad Sebastiatildeo Uchoa Leite Satildeo Paulo
Perspectiva
Perloff Marjorie (1996) ldquoWhose new American poetry Anthologizing in the ninetiesrdquo
Diacritics Johns Hopkins University Press vol 26 nordm 3 4 Fall-Winter 104-123
Rohter Larry (2008) ldquoAfter a century a literary reputation finally bloomsrdquo The New
York Times 12 de Setembro
Schmidt Rita (2000) ldquoMulheres reescrevendo a naccedilatildeordquo Revista de Estudos Feministas
Universidade Federal de Santa Catarina vol 8 nordm 1
Servius (1471) In tria Virgilii Opera Expositio
Waldman Katy (2018) ldquoReading Ovid in the age of Metoordquo The New Yorker 12 de
Fevereiro
Zumthor Paul (2014) Performance Recepccedilatildeo Leitura trad Jerusa Pires Ferreira e Suely
Fenerich Cosac Naify
45
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Patriacutecia Lino (Portugal 1990) eacute professora universitaacuteria e poeta Ensina literaturas e
cinema luso-brasileiros na UCLA (University of California Los Angeles) Eacute a autora de
Antiloacutegica (2018) e Manoel de Barros e A Poesia Ciacutenica (2019) Dirigiu Vibrant Hands
(EUA 2019) e Anticorpo Uma Paroacutedia do Impeacuterio Risiacutevel (EUA 2019) Publicou
apresentou e expocircs ensaios poemas e ilustraccedilotildees em mais de seis paiacuteses A sua
investigaccedilatildeo centra-se neste momento na poesia contemporacircnea culturas visual e
audiovisual paroacutedia e anticolonialismo intermedialidade e cinema luso-brasileiro Eacute
editora da revista de poesia e criacutetica Virada httppatricialinocom
NOTAS
1 ldquoEm certo sentido pode-se dizer que a linguagem nasce do ritmo ou pelo menos que todo ritmo implica
ou prefigura uma linguagem Assim todas as expressotildees verbais satildeo ritmo sem exclusatildeo das formas mais
abstratas ou didaacuteticas da prosa [] O ritmo eacute condiccedilatildeo do poema enquanto eacute inessencial para a prosardquo (Paz
1972 11-12)
2 ldquoet constat hunc librum tanta pronuntiatione Augusto et Octaviae esse recitatum ut fletu nimio
imperarent silentium nisi Vergilius finem esse dixissetrdquo (Servius 1471 861 ldquoE consta que esse livro [canto
VI da Eneida] tenha sido recitado a Augusto e Otaacutevia tatildeo expressivamente que ao choro copioso eles
imporiam o silecircncio natildeo fosse Virgiacutelio ter dito que era o fimrdquo)
3 Ao contraacuterio do que diz Alberto Manguel sobre a leitura em voz alta a forccedila e graccedila destas passagens
reside no facto de o conteuacutedo do que se lecirc natildeo ser de todo previsiacutevel para quem escuta ldquoReading out loud is
not a private act the choice of reading material must be socially acceptable to both the reader and the
audiencerdquo (Manguel 2014 122)
4 Transcrevo as palavras de George Steiner ldquoOn the third day his friends said rsquolook they are going to arrest
you anyway maybe you should say something for the rest of us to carry with usrsquo He was well over six feet
incredibly beautiful and when Pasternak got up everyone knew You could hear the silence across Russia
And he gives a number It was the number of a certain Shakespeare sonnet mdash of which Pasternak had done
a translation which the Russians say with Pushkin is one of their greatest texts Sonnet 30 They say the
46
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 35-47 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a3
Russian translation is as beautiful rsquoWhen to the sweet session of silent thought I summon up
remembrance of things pastrsquo And the two thousand people stood up and they recited it by heart mdash the
Pasternak translation It said everything It said you canrsquot touch us You canrsquot destroy Shakespeare You
canrsquot destroy the Russian language You canrsquot destroy the fact that we know by heart what Pasternak has
given us And they didnrsquot arrest him Well even if the sons of bitches do arrest you mdash itrsquos too late The
people already have your treasure with themrdquo (Kayzer 2000)
5 Expressatildeo de Bennedict Anderson Imagined Communities 1983
6 Por um lado haacute com efeito leituras ou interpretaccedilotildees desajustadas (como as haacute de resto a niacutevel teoacuterico
ou filosoacutefico) que tendem a reduzir o valor literaacuterio da obra ao seu projeto poliacutetico ou social mdash dizer o que
o(a) autor(a) efetivamente natildeo disse Por outro lado existem modelos interpretativos especialmente no
que diz respeito aos claacutessicos ou textos canoacutenicos que insistem em ignorar a abordagem de temas como a
violecircncia de geacutenero Exemplo o debate sobre a abordagem convencional ou honesta (uma e outra natildeo
parecem coincidir) de certas passagens das Metamorfoses de Oviacutedio eacute recente Reconhecer que tais
passagens satildeo na verdade a descriccedilatildeo da violaccedilatildeo sistemaacutetica do corpo da mulher anula a importacircncia da
obra (Waldman 2018) De um modo ou de outro parece-me que a dificuldade do debate passa por
encontrar um ponto intermeacutedio entre qualidade valor histoacuterico eou literaacuterio e direitos humanos
Remover por exemplo Homero e Virgiacutelio dos curricula eacute tatildeo traacutegico quanto ineficiente A remoccedilatildeo de
ambos natildeo acabaraacute com a desigualdade de geacutenero (Badhe 2020)
7 Natildeo ignoro claro estaacute a importacircncia das instituiccedilotildees e dos festivais que se formaram a partir da difusatildeo da
poesia feita nas favelas como a FLUP ou o Slam Brasil Interessa-me poreacutem a palavra que vibra intocada e
resistente ainda longe do olhar editorial
8 Aconselho a este propoacutesito dois canais Youtube MargiNow e Grito Filmes
9 Questatildeo de resto introduzida e discutida por Marjorie Perloff (1996)
10 O samba parece natildeo fazer parte da lista Cf Favela On Blast documentaacuterio gravado na Rocinha em 2008
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4 49
Saldo e ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Pedro Eiras
Universidade do Porto - ILC
Resumo Breve texto de laquosaldoraquo e laquoocultaccedilatildeoraquo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo apresentado na sua
uacuteltima sessatildeo (seacuterie VI seminaacuterio nordm 4 a 13 de Dezembro de 2018) Panoracircmica dos trabalhos realizados
e das principais linhas de pesquisa desenvolvidas
Palavras-chave Seminaacuterios do Fim do Mundo saldo ocultaccedilatildeo
Abstract Brief laquobalanceraquo and laquooccultationraquo of the End of the World Seminars presented at its last session
(series VI seminar 4 on the 13th december 2018) Overview of the work carried out and of the main lines
of research developed
Keywords End of the World Seminars balance occultation
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Porto 13 de Dezembro de 2018
Natildeo o mundo natildeo acabou no dia 21 de Dezembro de 2012 suposto fim
anunciado por duas estelas maias e por todo o planeta temido e festejado ndash pretexto
para jantares bebidas viagens packs turiacutesticos programas especiais em hoteacuteis Nem no
dia 22 de Fevereiro de 2014 data do Ragnaroumlk ou crepuacutesculo dos deuses para os
antigos viquingues Nem sequer nos dias 22 a 28 de Setembro de 2015 em que a Terra
deveria ter sido atingida segundo alguns visionaacuterios por uma imenso cometa Nem no
dia 23 de Setembro de 2017 quando teriacuteamos colidido com o muito ceacutelebre Nibiru ou
Planeta X frequentemente anunciado e outras tantas vezes adiado para nova
oportunidade Nem no dia 19 de Novembro do mesmo ano segundo novos caacutelculos e
obscuras decifraccedilotildees de alguns versiacuteculos biacuteblicos com destaque para excertos do
Apocalipse De facto o mundo ainda natildeo acabou mas o fim pode estar proacuteximo ndash em
2036 o asteroacuteide Apophis talvez colida com a Terra e o Livro de Daniel anuncia o fim do
planeta para 2060 Isaac Newton dixit
Seja como for enquanto as vaacuterias profecias foram falhando e outras novas as iam
substituindo tivemos oportunidade de estudar a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim
nos Seminaacuterios do Fim do Mundo Entre 2013 e 2018 o Instituto de Literatura
Comparada Margarida Losa organizou 24 seminaacuterios sempre seguidos de debates
Entretanto foram tambeacutem publicados 11 libretos on-line Materiais para o Fim do Mundo
nos 1 a 11 recolhendo as comunicaccedilotildees dos seminaacuterios e textos afins foi publicado ainda
um libreto extra-seacuterie com o argumento do documentaacuterio Dia 32 de Andreacute Valentim
Almeida em parte inspirado pelos proacuteprios seminaacuterios Em 2015 a revista eLyra
dedicou tambeacutem um nuacutemero ao tema Poesia e Fim do Mundo que co-organizei com
Paulo de Medeiros
No fim destes seis anos de debate ndash com temor e humor pacircnico e esperanccedila ndash
quero agradecer aos muitos ensaiacutestas que aceitaram o repto dialogando nos Seminaacuterios
participando nos debates publicando os seus textos nos libretos ou na revista e ainda a
todos os pesquisadores colegas alunos amigos que entraram neste diaacutelogo enviando-
me sugestotildees de livros e filmes intuiccedilotildees comentaacuterios Trabalhaacutemos todos muitiacutessimo
50
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
mesmo se ficaacutemos com a consciecircncia de que a representaccedilatildeo e o imaginaacuterio do fim eacute um
tema realmente inesgotaacutevel e exige que continuemos a interrogaacute-lo ateacute ao fim dos
temposhellip
Terminados seis anos de estudo justifica-se um ano sabaacutetico para deixar
repousar as inquietaccedilotildees levantadas Mas se o tema eacute inesgotaacutevel custa pensar um fim
dos Seminaacuterios do Fim do Mundo como se a inquiriccedilatildeo pudesse ter atingido algum telos ndash
ou Juiacutezo Final Double bind eacute preciso parar eacute impossiacutevel parar Por isso em vez de
continuar ou encerrar estes Seminaacuterios prefiro pensar um estranho tertium Em 1975 o
Collegravege de lsquoPataphysique que explora e glosa a obra de Alfred Jarry decidiu entrar em
laquoocultaccedilatildeoraquo deixou de se manifestar publicamente sem contudo deixar de existir
Agrada-me sobremaneira esse registo ambiacuteguo que finta ao mesmo tempo a ideia de
laquocontinuidaderaquo e a ideia de laquofimraquo levando o Collegravege a uma (in)existecircncia virtual isto eacute
simultaneamente existindo e natildeo existindo Neste mesmo sentido declararei dentro em
pouco natildeo o fim nem a continuidade mas a Ocultaccedilatildeo dos Seminaacuterios do Fim do Mundo
Dito isto que laquosaldoraquo destes trabalhos resta fazer De forma terrivelmente
econoacutemica enfatizo pelo menos a pluralidade de linguagens interrogadas e de
linguagens interrogantes nestes seis anos de trabalho encontraacutemos o fim do mundo na
literatura e no cinema na banda desenhada e na muacutesica na pintura e nos videojogos
convocaacutemos ferramentas dos estudos literaacuterios da antropologia da teologia dos
estudos fiacutelmicos descrevemos o fim do mundo como terror resoluccedilatildeo da Histoacuteria
piada pesadelo desejo secreto E talvez possa sistematizar estas descriccedilotildees do fim em
duas grandes linhas o imaginaacuterio e a representaccedilatildeo do fim
Ou seja por um lado o fim imaginaacuterio ndash que se antevecirc se profetiza se espera ou
receia Do big crunch agrave colisatildeo da Terra com um planeta como o popular Planeta X ou a
Melancholia de Lars von Trier das cataacutestrofes descritas no Apocalipse agraves distopias de
PD James Margaret Atwood ou Cormac McCarthy dos sonhos individuais incluindo o
trabalho da antevisatildeo da morte proacutepria ao imaginaacuterio de revoluccedilotildees poliacuteticas
transformaccedilotildees radicais do mundo laquotal como o conhecemosraquo dos muitos cenaacuterios de
cataacutestrofe ecoloacutegica agrave perspectiva de uma migraccedilatildeo para novos planetas ndash em suma natildeo
nos cansamos de alucinar fins possiacuteveis com gozo e terror
51
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Por outro lado natildeo o imaginaacuterio mas a representaccedilatildeo do fim Porque existem
fins reais em acontecimentos como o 11 de Setembro de 2001 os conflitos militares no
Meacutedio Oriente a morte de tantos migrantes africanos no Mediterracircneo a ascensatildeo de
movimentos de extrema direita a escalada de formas de racismo e de homofobia as
poliacuteticas anti-emigraccedilatildeo de Donald Trump a destruiccedilatildeo do habitat de povos indiacutegenas
da Amazoacutenia no governo de Jair Bolsonaro a instalaccedilatildeo do Antropoceno E eacute por esses
fins serem tatildeo reais ndash que importa muitiacutessimo falar sobre eles resistir
Pessoalmente estes seminaacuterios permitiram-me coligir materiais intuiccedilotildees pistas
de trabalho ndash que gostaria de transformar num longo longuiacutessimo ensaio Dada a
complexidade do tema deveria ser um ensaio de umas 10000 paacuteginashellip E eacute certo que jaacute
escrevi e publiquei alguns artigos sobre o fim do mundo em autores como Fernando
Pessoa Herberto Helder ou Gonccedilalo M Tavares mas confesso tambeacutem que do grande
ensaio a escrever ainda natildeo tenho uma uacutenica linha mesmo ao fim destes seis anos Bem
sei agraves vezes que os livros se fazem rogados e raramente adianta pressionaacute-los outras
vezes quase se escrevem a si proacuteprios que nem ditados Veremos
Resta dizer que uma instituiccedilatildeo ocultada pode sempre ressurgir mesmo o
Collegravege de lsquoPataphysique assumiu a sua laquodesocultaccedilatildeoraquo no ano 2000 voltando a
apresentar-se publicamente Tambeacutem os Seminaacuterios podem voltar a qualquer momento
sob a mesma forma ou um pouco metamorfoseados ndash talvez como novos Seminaacuterios da
Origem do Mundo ou quem sabe Seminaacuterios da Salvaccedilatildeo do Mundo
Mas tudo isso claro se o mundo natildeo acabar primeiro
52
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53
052020 49-53 - ISBN 978-989-54784-0-8 | 10217479789895478408fdm12a4
Pedro Eiras eacute Professor de Literatura Portuguesa na Universidade do Porto
Investigador do Instituto de Literatura Comparada Margarida Losa Membro da Rede
Internacional de Pesquisa LyraCompoetics Desde 2005 publicou diversos livros de
ensaios sobre literatura portuguesa dos seacuteculos XX e XXI estudos interartiacutesticos
questotildees de eacutetica Entre os mais recentes O Riso de Momo ndash Ensaio sobre Pedro Proenccedila
(2018) [] ndash Ensaio sobre os mestres (2017) Constelaccedilotildees 2 ndash Estudos Comparatistas
(2016) Platatildeo no Rolls-Royce ndash Ensaio sobre literatura e teacutecnica (2015) Entre 2013 e
2018 organizou os Seminaacuterios do Fim do Mundo e editou on line os libretos Materiais
para o Fim do Mundo
53