Fiama Antologia -AMAGO

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documenta poetica / 143

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Fiama, livro Amago

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d o c u m e n t a p o e t i c a / 1 4 3

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ÂMAGOantologia

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Fiama Hasse Pais Brandão

ÂMAGOantologia

A S S Í R I O & A L V I M

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Esta antologia foi organizada tendo em conta,quer a minha escolha pessoal, quer as sugestõesque pedi a alguns atentos e dedicados leitores daobra poética de Fiama Hasse Pais Brandão: CarlosMendes de Sousa, Jorge Fernandes da Silveira,Maria de Lourdes Ferraz e Rosa Maria Martelo.Tive ainda em consideração as selecções feitas, em1986 e em 1997, pela autora, para as suas «anto-logias próprias» intituladas F de Fiama.

G a s t ã o C r u z

Manteve-se a grafia polícroma (p. 10), polícromo (p. 101) e púdico (p. 146),por ter sido a utilizada pela autora e por se entender que é essa a acentuaçãotónica que se integra na prosódia dos respectivos versos.

GRAFIA 1

Água significa ave

se

a sílaba é uma pedra álgida sobre o equilíbrio dos olhos

se

as palavras são densas de sangue e despem objectos

se

o tamanho deste vento é um triângulo na água o tamanho da ave é um rio demorado

onde

as mãos derrubam arestas a palavra principia

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TEMA 4

Nenhum sinal nos calcina as órbitas Voluntários somos de frente com a imagem na grafia dos espelhos

Um teorema de pálpebras nos situaimunes à cicatriz dos limites que bebemos

Um sismo incontém nossos ombros fechados Limítrofes os nossos pés anfíbios invocam o rio

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GRAFIA 2

Está no rioo embrião da noite

O rio livrecom apenas o princípio evidentede todas as formas

A água íntima dos lábios

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BARCAS NOVAS

En Lixboa, sobre lo mar barcas novas mandei lavrar. Ai, mia senhor velida!

En Lixboa, sobre lo ler barcas novas mandei fazer. Ai, mia senhor velida!

Barcas novas mandei lavrar e no mar as mandei deitar. Ai, mia senhor velida!

Barcas novas mandei fazer e no mar as mandei meter. Ai, mia senhor velida!

Joan Zorro

Lisboa tem barcas agora lavradas de armas

Lisboa tem barcas novas agora lavradas de homens

Barcas novas levam guerra As armas não lavram terra

São de guerra as barcas novas ao mar mandadas com homens

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TEMA 6

Água polícroma inumerável corpo de ligação no centro dos subterrâneos lábios superfície de lago água interna com espessura de mar

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INÊS DE MANTO

Teceram-lhe o manto para ser de morta assim como o pranto se tece na roca

Assim como o trono e como o espaldar foi igual o modo de a chorar

Só a morte trouxe todo o veludo no corte da roupa no cinto justo

Também com o choro lhe deram um estrado um firmal de ouro o corpo exumado

O vestido dado como a choravam era de brocado não era escarlata

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Barcas novas são mandadas sobre o mar

Não lavram terra com armas os homens

Nelas mandaram meter os homens com a sua guerra

Ao mar mandaram as barcas novas lavradas de armas

Em Lisboa sobre o mar armas novas são mandadas

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O NOME LÍRICO

Esta manhãhojeé um nome

Nem mesmo amanheceunem o sola evoca

Uma palavra palavra só a ergue

Com um nomeamanhececlareia

Não do solmas de quem a nomeia

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Também de pranto a vestiram toda era como um manto mais fino que a roupa

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PEDRA EM EXPANSÃO

Diz não são os anos que passam é a pedra

Não o tempo o que por mim passa mas ela que somente acompanha

Diz não passam anos para a minha idade só uma pedra está

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TAMBÉM DA CHUVA

Também da chuva havemos de falar e onde cai diremos que uma queda diferente nos faz dizer da chuva que é uma queda muda

Calada quando só cai por nós quando cai só

Também no poema é nossa só porque cai muda como cai no solo a chuva

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O AR OS TECTOS

Aqui o inverno mata as profissões que têm acesso ao ar, a dos que andam por fora por ruas e por roupas, com as vias da respiração opressas porque estão a erguer casas de telha vã e pastoreiam só animais que restam impolutos das ribeiras cheias de temporais e frutos que nas águas tristes se despenham.

Como repetido é sempre o inverno, com a chacina de animais, com os ventos iguais que nos descoram,as cornijas nas ruas devorando os temporais e nós sem profissões libertas, também a erguer os corpos opressos pelos tectos.

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SÍTIOS DE CAMPO

A nociva doença da verdura, a cordura dos animais e todo o demais sanguíneo solo que faz um campo pobre, agora se o cobre esta neblina, redobram.

A dúvida do tempo incerto não aquieta, nem a guerra, o lenço muito molhado das mulheres

deixadas em campos rentes com o gado sem cuidado esparso em plantas secas.

A névoa: abrigo nas terras de pousio, oculta campos, cio, enquanto a guerra esvaziou, antes de secos, sítios de campo.

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NO CHÃO DOS OLHOS

O silêncio procede da terra enxuta, ei-lo a ver detida a floração no mês

e perdidas as seivas: crescendo as arestas, frestas das terras; lembrando as ocultas tempestades que molharam de ruídos os mundos calmos e profundos do chão.

Não sobe a floração nem de si mesma, ei-la invisível durar ao longo da estação e nós somente ouvimos: as quedas de bátegas contínuas no ramo estéril, no seu pássaro, depois no chão dos olhos.

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AS OBRAS NAS FORNALHAS

Há rios de abas perversas como o Tejo, de barcos com destinoposto não às brumas dos mares seculares cortados mas a outras

de rios de súplicas, de embarques nas praças públicas e acenos de aços. Nos fornos do ferro o fogo não tem a claridade dos ferreiros debruçados sobre as obras da paz.

O rio devasso inunda, trazendo águas correntes com o destino, posto em águas lodosas do Tejo, de trabalharem aços contundentes.

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O MIRADOURO

Temi o verão, o tempo. Aproximava-se.

Vi-o transparecer do que é parado,de bermas e de vistas. As pedras de Marvão estavam ligadas, no miradouro, às pedras da paisagem. Em tudo era a passagem da temperatura, o verão, que começava — eu vi — entre muralhas, as aves, as gralhas de alentejo trasmudavam-se tão quentes, como poderiam ser os fogos da vila mais vorazes? Esses fogos nas lajes, a mesma combustão das pedras, a denegrida pele dessas lareiras em redor.

O temor — era o poente — então reverberava sobre as partes do horizonte, o monte só da vila, logo a extensão das terras baixas, brenhas, os tumultos de um miradouro alto despenhado sobre sopés, profusos traços de uma estação de tempo que me deteve, tépida no miradouro, assim como temendo a posição de ver, temia a vez da solidão.

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A VOZ, CRESCENTE

Começa a alba, a luz, existe a harmonia. A memória funda a sua fábula — noites e, o seu contrário, os dias duram.

Manhãs com os seres diurnos: sombras. A noite, a véspera, os vários astros rápidos, cadentes. As qualidades certas destes lugares, efémeros, revelam-se.

Que face do objecto ou parte natural se mostra? Desde o princípio, a alba, à sua tarde, a curva constelada do céu estria-se.A voz, crescente, emerge da natureza viva.

São da memória os sons, o nascimento. A própria fala cria o objecto e separa-o do silêncio.

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e é algo que à tona de água vem verter a imagem na sua origem turva, definida.

O verde amplia o fim que é dado à vaga. A crista de linhas convertidas em figuras,em conflitos de nexo e de desenho que toda a ave traça — saída do seu tempo sobrevoa a costa, nome dito.

Assim repousa, vendo, quem nomeia essa mudança do inverno para o tempo primeiro da estação aonde o mar começa, sendo imagem.

A rocha escava, o leito espraia a areia,a flora ondula. Agora o olhar progride sobre tudo e a pua, rente ao solo, de um rochedo isola-se; que dor, a de rasgar a berma de água unida, a primavera ser o tempo, a pedra exígua no limite da água furtar na sua renda a harmonia? Quem entretece, logo, à luz? Por que soa o tempo a quem o vive tão pungente, tanto como o verde dissonante?

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PUNGENTE O VERDE

A luz ou realidade exerce o seu fascínio: cinjo-me à linha que de coisas entre coisas parte, as conduz ao ponto corrosivo da imagem. Sinto-me atenta, e vibra a minha face já defronte da foz que da água o curso, doce, salino liquefaz. Como as mistura? Quanto dura impreciso o seu contorno? Onde o corrompem limos, fios visíveis?

Entre o declínio e a mancha de água, pungente o verde tinge a curva de rocha ou ponta térrea emersa. O simples dom de ver que o olhar emite ou colhe: a parte entre uma orla e as margens recolhidas. Ténue, com a cor, é mais visível a imagem da água corrente que decide o meu olhar que vê e o mar que cede à rocha ou à imagem que o percorrem.

Cria-se o fio que junta ao que se vê, intérmino, a luz acesa em si, na superfície; as formas em que retêm as ondas vívidas a pupila que no acto excede o seu volume

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DIZER AVIS (AVE)

Seriam os nomes ver-se-iam assim árvores toda a paisagem a sua implantação: eis mais uma vez árvores (já floriram já antes emurcheceram) são chamadas: cyparissus, silvas, símbolos. Assim não permanecem, não germinam antes de palavras — sendo a abelha (o nome apis) que as fecunda: disse-se o léxico óvulo a semente a terra (a terra) os séculos as línguas mortas estas novas palavras. É neste fio que o insecto segue o seu percurso (vivo) sobre o nome apis aracne teia ou o favo a bordadura de árvores ou o núcleo (das mesmas) que formam o bosque a zona florestal as suas leis defesos. E conforme as aves voam (rémiges) dizer avis (ave).

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GERMINAÇÕES / 1.ª (AGRICULTURA)

Eu vi a agricultura: semeavam. Mulheres cavam desfazem os mesmos cômoros, abaixam-se sobre a leira, poisam a semente, caminham e cantariam alto se algum silêncio vasto se formasse ou o criassem os gestos — a semear.

As vinhas são o campo duro aonde andam. Dobram o flanco — é a poeira, são os nimbos espessos, as nebulosas.

Mulheres que habitam o tempo: jubilam com a luz de primavera ou verão (só a suavidade), dormem debaixo de águas sendo agrestes, das noites todas.

Param, com o tempo, na entrada, em casas áridas. Assim lançaram ao pó o seu grão, amam a terra, assim a morte as prende.

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(ESTE) ROSTO1

Sombra com a luz ainda nos últimos ramos do próprio desejo: a invocação de abril, o mês onde o lugar pressente ser o verão entre a proposta de flores e a face do fruto (a de um sólido). Perdida, pois, a doce luz do inverno, a necessária ao rosto (depois de longas noites entre seus dobres, neve dolorosa), a matinal. Rosto com o vidro, linhas (de veias) reflectindo o mundo (vário) (alheio). Enquanto a luz transpõe copas, os cumes, e o segundo crepúsculo (a tarde) é incessante.

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ROSAS, ROSAS E LÍRIOS

Em quantos séculos eu não vi: as rosas e outros seres (a cor sulfúrica) nem vi as naturezas mortas — se o mundo é a figura delas. Nem tinha antigamente (dia imaturo) este saber: porquanto seja enorme o mesmo mundo, espaços inúmeros, o tacto

insaciável, suguem a cada hora os lírios o seu líquido, e os animais (idênticos,

outrora) se apascentem em erva rasa (a eterna qualidade desse gado, caprino,

é a de ser parco), isso é fugaz. Percurso para o rebanho ou outra coisa: a finitude. Porém, pensar que a rosa apazigua: diria que era rosa, una, e que era a espécie.

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1 Poema sobre três versos de Carlos de Oliveira e uma frase, epistolar, de Egito Gonçalves.

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PRÓXIMO DO CAMPONÊS

Uma noite coincidindo com a metáfora, nos pirenéus, ouvimos a água oculta que na manhã seguinte como no mito não conseguimos desvendar. Eu caminhei manifestamente entre os

juncos e encontrei tão-só o curso de água lenta. O camponês que ali, matinal, apenas estava na posse dos seus gestos e me olhara, seguia-me ainda com o olhar de assombro por me ver estrangeira junto a um

dos regatos. Eu ocultava dele além do meu país alheio o mistério do bater forte de água no plenilúnio. Procurava um outro sítio além do campo, embora a junção da terra ao Cavador me desse a bastante medida desse campo. Mas o sítio era outro, noutra hora: a meio da noite, por coincidência perfeita com a tradição do indizível e do invisível nocturno, a consciência da queda sonoríssima da água movimentara-nos sonâmbulos até ao enigma. O tempo solar, ainda à imagem da tradição, conduzira-nos a outro sentimento.

Passara próximo do camponês e do seu dia e ele acompanhou a minha mitologia.

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MODO HISTÓRICO DA CIDRA

Numa lápide, afinal, num puro tampo (de mesa), um ente nasce: o fruto (diáfano); cidra, em si a sua origem; vem do tempo, celta ou da ibéria, já me transcende? Ó reino pressuposto de um vegetal; essa paragem — cidra — no percurso. Num tempo celebrado, o aniversário. É um suco mortífero, ou o de um real aberto porque o vêem muitos modos ou o dizem.

Meus anos expostos (a frutos) que formas confirmaram; ou, mais longínquo, houve o soalho; no espaço a hora ocorre. A omissão de cidra ou mármore ágrio é um dom do luto: meu exercício e o mundo. E que urna ou ornamento (essa mesa)? É um sentido vário; não que pereça, mas, quando imóvel, muda. A emoção de ser corpo (um fruto) decomposto que hoje recrio ou lego: a minha existência (entre os iberos) urge.

15 Agosto 69

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AUTOR FRAGMENTO

Da metáfora e veracidade do chão recolho a poesia toda; herberto ou autor, no túnel

do universo pensa no exemplar bilingue de celan ou na vontade de morrer sensivelmente sem a escrita, no esmalte. Este é a figura de estilística da mesa ou do ciclo, de lamentos, na corola negra. Esta é o símbolo da tempestade ou a realidade traduzida do diálogo sobre a estrela entre os tópicos. Livros lívidos! Palavra suicídio entre números dígitos de anos, autor!

Ignorando como recomeçar o uniforme, o verso e o reverso. Dedica o livro, levanta-se sobre o verídico1 e desaparece nos precipícios que são os

textos, as estrelas negras na descrição de Autor.

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HORA OBSCURA

Por muito que a minha escrita decalque as páginas de fernando pessoa eu digo numa fissura do verso uma outra coisa. Que nas comemorações da sua morte me apercebi de que ele não regressaria aonde estivera

presente: a calecute.

Aí, perante as flâmulas, afastando-se começara a escrever a mensagem com incidências subtis como a da duplicidade de pedro o regente ou a das duas batalhas. A bibliografia de um verso é-me, na vigília, essencial. O poeta não subira, pois, à coberta das naus, lera as oitavas.

Depois, na sua própria longínqua ortografia dos symbolos, inscrevera novo desígnio filosófico ou desenho. Leio-o com a avareza de quem herda os antigos e os contemporâneos. Apercebo-me de que apenas no fim do texto, no último poema, o país onde o leio tem na hora obscura o historiógrafo, cujo nome como o de um leitor antecede esta ambígua e ubíqua biografia.

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1 O chão.

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O GNOMO

Estar aqui, onde for, a ver as folhas de palma é como figurar em naturezas mortas. Rãs, se existem, são estas. Coaxa rã, que eu nunca ouvira na margem do rio precedente. Recapitulo a minha aprendizagem dos seres supostos vivos tal como o parágrafo de um grilo, as insistências. De max reinhardt recebi, uma vez mais, a realidade; as imagens instituídas para a relação com o irreal, o das imagens que inovam. E, ainda, o terceiro termo de ambos, o fantástico, irreal histórico. É de ouro a pele húmida mítica da sapiência da fábula e da ignorância. Poderia este gnomo, na eterna mudança, depois da metamorfose, ter o dom bovino. Coaxa, para além do nome, anfíbio! Dilata a pele, passa, de ser lacustre, a habitante da erva, e deste a humano ou poeta, e deste à imagem fabulosa. Mudada, eu já vivia em sistemas de símbolos. Tinha as visões do rio, no entanto vejo-as. Agora eis o uno e o exótico, pinho e a palma. É um jardim antigo, era a vontade de imaginar, nesse século, e a colocação do vento, igualmente, para a visão mirífica.

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O TEXTO DE JOAN ZORRO

Levando ao limite, homenagem, o gesto da escrita, posso atribuir os meus textos

a joan zorro. Existimos sobre o anterior. O movimento da escrita e da leitura

exerce-se a partir da menor mutabilidade aparente da pedra e da maior mutabilidade da grafia. O progresso dos textos é epigráfico. Lápide e versão, indistintamente.

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HIPÓTESE DA MORTE DE UM IRMÃO DE ANTÓNIO FERREIRA

Desfaz-se a linha divisória entre duas tonalidadesde cinzento. Exigi diferenças minuciosas. Elogio a nebulosidadee o nácar. Não pude regressar a outros vocábulos.Diversas faixas de nuvens me fazem verificar a diversidade das minhas emoções. Aqui e além, quando a imaginação imprime ao verso uma rapidez inignorável1

está a ser percorrido o poema, dispondo-se as figuras, panorama das palavras, no campo da visão. Tão-pouco pude esquecer para sempre que o conceito de nacionalidade não é o de uma herança ou estratos do passado mas a mais original e mais inovadora obra de um indivíduo, não o histórico das sucessivas gerações, mas o puro singular campo de visão que se escreve. Tudo se vê, também quando exulto ao recuperar a visão de quem já viu para além da paisagem, a constelação animal e vegetal, a possível deambulação hermética ou cabalística, Ortiga, Malva, Arminho, Amora. Um indivíduo, entre a enumeração dos tópicos da imagética da Renascença, estabeleceu a mobilidade da sua história única.

Então pressinto como esses homens cuja existência individual reconvergia para o fundo côncavo de um rio ou de um vale poderiam ter criticado a expansão marítima como a dispersão do eu ou sua possível perda, hipótese da morte de um irmão de antónio

ferreira.

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INSCRIÇÃO

O século anterior deixara a inscrição na vereda que me antecede. A mímica e a lírica desses estranhos esboços restaurei-as. Vi os meus actos descritos, transactos, expandirem-se da pedra. Esse granito obceca. Se eu isolara assim o meu decurso entre traçado de muros e legibilidade das letras, e depois irradiei de uma experiência, oculta ou não, o texto, é duvidoso. Eu passava, mesmo que nessa vereda chova, nos intervalos dos dísticos com os nomes. Sempre senti a nostalgia de tudo o anterior, recebendo de cada século uma narrativa. Com esta chuva sazonal revivo o que me pertence; ocasional, a chuva flutua; um arco de folhagem. Resumo a fatalidade das letras, o destino dos enunciados, as variações que introduzo, tal como o sentimento de peso da chuva fria. Segundo aquelas palavras pétreas, no entanto, eu estava a jazer, aí, no chão eterno.

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1 Fernando Pessoa, A Nova Poesia Portuguesa.

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A MINHA VIDA, A MAIS HERMÉTICA

Este amor literal, o pormenor dos lábios, a aproximação da consciência é a situação mais nítida sobre a profundidade dos gritos. Sobre a colina tradicional, sendo a tradicão um único momento, estou na mesma situação de blake e na situação de mim mesma quando ouvia o infinito no grito das crianças e quando era evidente. Porém não terminava o crepúsculo, nem os

jogos se estavam a tornar obscuros, nem junto à casa aparecera a fisionomia

da imagem de mãe. Nada se opõe, tudo difere, este sistema simbólico inclui os gritos, com mais numerosas referências.

Tudo o que disse com literalidade deverá parecer, agora, o aviso de que a minha vida é a mais hermética.

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Quis reflectir sobre o passado e a visão de outros, soube que certas imagens constituíram um corpo teórico no Renascimento. Sofri por não ver a fisionomia desses mortos. Tinha o dever de observá-los. Ao louvar, sentia-me solitariamente

votada a prosseguir a específica sinuosidade dos meus símbolos. Como um paradigma entrego eu a outros a forma como passou o tempo enquanto dia se fez noite, tons de cinzento desapareciam e eu me tornava tão incorpórea para sempre. Mesmo em minha vida o meu texto se distinguia do meu corpo e era por mim legado à decifração.

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para eu sustentar o olhar nos seus círculos. Entre a noite e as imagens que me suscita esse ponto branco, o par, giram em volta frestas luminosas, para que alguém as agrupe num indício. O resto do tufo das árvores tornou-se uma imagem desapercebida porque já desde o princípio o seu movimento ofuscado contrastava com as asas negras.

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ASAS MALIGNAS

Vejo sobre a grandiosa árvore de palma a contraluz as cegonhas como aracnídeos talvez através de um véu de cassa. Esta visão isola-me do mundo e beneficamente reconduz-me depois aos significados que formam o mundo. Nunca as cegonhas me tornaram excêntrica de mais, apenas íntima a elas e estranha a outros restos de sentido.

A brisa que confunde as asas temíveis com as varas agitadas de palma, a restante brisa que sopra em outras copas, qualquer outra árvore que dobrando-se simula também um par de asas malignas, toda essa aragem dupla que redemoinha entre árvores firmes eleva as telas frágeis das asas. Que mensagem posso dar para além da aberração dos colos enlaçados como um insecto a estrebuchar num precipício real elevado? Até os fios da teia na treva mesmo que se assemelhem a folhas são cada vez mais angulosos, embutidos na noite como garras. O casal de cegonhas é um alvo demasiado fascinante

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HOMENAGEM À LITERATURA

O rectângulo da ravina está sob o teu corpo

há uma luz sem recantos, a razão duvida

de que os símbolos não sejam sempre as razões

verosímeis dos movimentos da voz, do ouvido, comovidos

pela presença da imaginação em todas as obras. Basta o vapor

que desliza sobre os bordos da ravina sem jamais enevoar

o teu corpo que tem outra espessura e o latejar solitário

do animal que não foi ainda transcrito para a gravura.

Basta a areia ocre ter sido destruída pelo ácido mate

e nada ter corroído o teu corpo que pulsa ou que adormece

para eu dizer que tudo é díspar, que aprender a transformar

as formas entre si é tornar inteligente a linguagem para a História,

e tornar histórico todo o corpo a quem a carência faz amar

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TÁBUA DAS COMPARAÇÕES

Quando o céu está vermelho comparo-o, e embora o fogo ainda esteja próximo da semiologia da fosforescência eu distancio-o com a frase divinatória: amanhã a alva há-de romper de sangue. Pela separação semântica

coloco o tom sanguíneo à distância sobre uma árvore calva. Nos seus ramos o pardal sente também a premonição da noite, consente que na elipse do horizonte a grande mancha seja comparada a um sinal ignoto que engendra os sinais.

Se tudo é cognoscível a quem está no reino do conhecimento com as beatas palavras (felizes)geradas no horizonte, a tarde esplêndida acende como uma tocha a madrugada. Este silêncio místico prepara a tábua rasa das comparações.

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ou mesmo esconder a silhueta que ao longo do monólogo

se esvai ou regressa. Perguntarei se partilha

vida das figuras ou se figura a vida

de que participo como outro espelho, imagem filosófica.

Estou a sentir que qualquer descrição acrescenta

o tempo de que disponho para viver e ao qual

a consciência me concede um prazo divino

para pensar. A litografia que na parede me é dada

pelo autor como outro ser, o meu próximo,

para que eu o possa expandir ao limite, conceito de divino.

Mas eu sei que foi o teu corpo que a transformou

em termo de comparação, porque ela em si, nos tons baços,

não estava destinada a exprimir-te. Sobretudo depois do abandono

a que vos votei pensando apenas na duração da vida,

na brevidade da imagem vil do ocaso humano,

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substâncias pobres e faustosas, a quem o delírio mostra

a forma tosca ou difícil dos objectos, que estão

sobre o teu corpo sem que cirros de nuvens o arrefeçam

porque a fatal imaginação te distingue a meus olhos

da cor térrea com que a ravina pertence ao pensamento da História.

Voltado sobre o flanco tu próprio ainda ignoras

que já houve a ameaça da queda do teu corpo

sobre ondas de rochas, pedras cáusticas, um tronco áspero oblíquo,

um corte no terreno que revela o sulco a percorrer até à cordilheira

a que eu te disse ter sido um dia espelho sombrio da tua voz.

O rectângulo da ravina que está sobre o teu corpo

tem como a vida certos dias a cor espessa cinzenta

por sinestesia, que dilui a cor da água corrente

que deveria nascer entre as fissuras. Estas avencas

hão-de desenhar nódoas nos traços distintos da tua pele

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NOVA OCIDENTAL

O acaso fez-me presenciar de novo a transição do final da tarde para uma noite. Agora, cisco negro que turva o ar representa o anoitecer tão livremente que as saliências altas disformes têm uma irisação de chumbo, e uma cova, círculo escaldante, contém o fumo que ilumina a abóbada no centro da convergência.

Embora eu já tenha sentido saudade em certos poentes hoje as fachadas largas dos prédios derrubados pela monstruosidade da noite trazem-me o silêncio, as escadarias em plena imagem debaixo dos focos do interior do cenário por onde passa uma figura perdida, entre chamas, portadora de um facho

que é uma última nuvem contorcida, como uma víbora hiante. Esta evocação da luz em forma de réptil, o escamejar da água, o assobio de um barco que se sobrepõe à massa da terra, hipótese de uma aproximação do mar ou a crença de que as figuras da mente têm no momento predestinado a sua figuração no espaço.

Descrevo este lugar como face e visão de uma cidade tornando-se cada vez mais turva depois do zénite sendo por fim a descrição de uma catástrofe. Reconheço que uma imagem serena pode ser expressão do drama como o desta praça cheia de estalidos da cremação de muitos segmentos de árvores

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já há muito associado ao do astro, tão pungente

como ele porque duvido da verdade de ambos. Somente

me faltava duvidar da presença descrita do teu corpo

com as sombras da meditação sobre a verdade.

Assim o silêncio, reposteiro da noite inédito

até à ode à noite, reafirma toda a distância entre pensar

e estar. Posso dizer que o poeta imorredouro

é o que introduz na língua a metáfora mais densa.

Olhara o rectângulo da ravina que está sobre o teu corpo

para dizer que é a metáfora que constitui a língua pátria

e que cada metáfora é na sua íntegra incompreensível,

o que a torna o fundamento de toda a diferença.

Que à medida que os anos e os vocábulos se acumulam

mais incompreensível me torno para os detentores de outras técnicas

e que só deve ler-me quem não tema reconhecer-se como leitor único.

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em plantas, das superfícies simples em mistérios submetidos à interpretação,

imagino que figurantes mutilados regressados com um archote propagam a evaporação da luz que prolonga a meditação metafórica

que possa espelhar a casa sobre si mesma somente com fendas, para aquela língua viperina ocultar a luminosidade traiçoeira, sem que a alma tenha de não ser um véu de transparências que seja

diferente consoante a teoria das convicções sobre os momentos verídicos. Cair a noite esmaga-me pela cadência com que a Natureza extermina

a minha fantasia e me substitui na sua própria criação.

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ou dessa água coagulada com os veios sanguíneos até alcançar a sugestão perfeita

que na madrugada pode recuperar um tom alheio de malva e ser novamente desejada. Percorrida pela síntese das figuras alusivas ao dia, em que o milagre transforma o pensamento até ao prazo nulo

da noite quando as significações atribuídas ao sol, à virtude, já são vãs.

Mais uma vez anoitece com um caudal de pedras como brasas. A escuridão exprime-se por imagens inversas, excesso de luz, o ambiente das figuras desde sempre associadas à vivacidade do fogo. Ou o crescimento súbito de um intervalo de vácuo entre os meus olhos

separa das sombras demoníacas a humanidade áurea, seres sem sofrimento, sem a noção de que os símbolos, mesmo visuais, ulceram como chagas, como o painel de janelas queimadas destas casas em transe para reviver. Onde tudo o que amanhece

incinerado à noite renasce. Substâncias voláteis como as cinzas, a maresia,

que uma emoção absurda mais potente do que a imaginação transforma em evaporação de fel. Bálsamo contido num círculo igual à exagerada

imagem lantejoulas rápidas criada para enredar nas línguas de fogo das estrelas a sensação mortal do sujeito que enuncia o poema. Eu própria temente das metamorfoses inevitáveis que assinalam

dias, a da continuidade do tempo em tempo puro, a dos dardos ao anoitecer

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minhaárvoreespiritual a diferença nas tuas várias ima-

gens. O teuser animado

que oscilavaaovento. Agora anteriormente nunca

todo esse tempo em que lentamen- te te formaste detriângulos

corresponde afinal à perda datua forma. Franjas lanceoladas

fímbriaspregas. Possivelmenteum dia um ano deumaesta-

ção um raio cortou a tuacoroa mui- toalta. Olha minhaprópria

vista o grande cedro queantigamente viste aqui ainda dotado

de umaexistênciasensível. Sim unouno as impressões aossen-

timentos. Formo comotu formaste umtrajo umafigura triangular

uma cadeia de sílabas emqueos significados se amontoam nes-

saszonas. Éverdade que estou impávida diante dacatástrofe

dafatalidade. Já não necessito da eloquência daNatureza.

Tão naturalmente utilizo alinguagem que tudooque deti o-

btenho linguagem já não tem ên-

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O CEDRO

Árvore tão una como um trajo. Formada de triângulos. Secaoca

agrestefulminada. Um raio decerto a atingiu umdia umaho-

ra repentina umanoite. Galhosgalhos cor de florestas queimadas. Todaacor

de um bosque incendiado num ponto só. A única vítima A

única diferença entre eucaliptospalmas acáciasciprestesvinha.

Esta síntese é natural. Copiada em pormenor da Natureza. Re-

duzida. Vês meuespírito uma miniaturaenorme diantedeti.

Repousatu árvore destruída. Esquece avida que tinhas fora da

minhaimagem. Que já estava esquecida na tuaNatureza. Folhas lan-

cetas aceradas folhaslanças fo- lhas. Esse remoinho que

a posição dasfiguras levanta na atmosfera entre osdois

ouvidos. Esta árvore que estavades- pojada como uma veste lisa

vista do ladoexterior. Não lamentes

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Page 27: Fiama Antologia -AMAGO

JUNTO DAS CORRENTES

A extensão do céu sobre este lugar. Passei nobarranco junto daazenha. Há um cão cuja corrente tine. Olho a mó grossa. O cão gemegeme. Perto daí na linhaférrea estou junto àazenha. Osmoradores saíram atalho adiante. Os moleiros queescutam ossilvos os que amarram

feixes degravetos. O cão soluça. Deixaramasfendas atulhadas de pedras. Estásó como a solidão desteverso. Louca pelo calor dobarranco quesei da teoria do verso a não ser nada? Os zimbros que são arbustosbaixos. As silvas que o cão vigia. Aminha alma que ele quer. Anda na ribeira sobrenada. Ela

presencia ideias e ideias. Loucalouca pela sede. Há salgema longe destas pa-

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fase. Éuma árvore quenão vai recuperar aminhaideia passar-

-se para dentro dosmeus sen-

tidos. Estou num elevadolimite da cultura comosetu

minhaimagem falante te tivesses formado ecultivado com as vári-

as formas. Mas seeunão souber fugir aodesespero senãosouber nãoi-

maginar aaflição avançarei mais pelopoema até obter estes sons

ligadosvários queressoam para se- rem correspondências demetáforas vazias.

Azeitão, 1977

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Page 28: Fiama Antologia -AMAGO

COLINA

Numa parte da colina os trevos estão a abrir. Noutra parte o melro saltita. No terceiro lado hexágonos incolores que sãoinsectos confundem-me. Na última parte acolina forma um declive ou uma rampa parao lado interior. As margaridas abundante

s avolumam-se com a superfície radiosa voltada para fora. O loureiro em flor fic a por trás do seio da colina. Parecendo um crivo branco as flores estão circundadas de vermelho. É também dessa cor a dobra oculta das pétalas. Outro lado da col ina desce por trás do primeiro lado. Diriam que tem uma forma semi-esférica. Massão lados facetados. Só assim se equilib ram nos planos as várias flores. Doutromodo resvalariam da única face. É uma colina com várias partes unidas em que fal ta juntar o rectângulo dos lírios. Estão a desabrochar virados para o mananc ial do leite. Articulam os movimentos par a o interior até serem vistos subitament e. Ao lado os trevos que estão a abrir.Deslocam-se para a área onde está o melroque ali é o máximo ruído.

Lisboa, 1978

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tas do cão. Torres poronde a extraem. Houveágua clara. Corre baba dafábrica. A mosca transportaa até ao limiar das pernas. Édi- fícil passar além da ânsia de água. Mesmo para não me obcecar deversos.

Versosque de rojo seguem nascorrentes. Peloatalho ondea moleira vinda andaincólume à beira dapodridão. Vai parao fundo do caminho. Confia nessahiena que o cão me parece desesperado. Mas eusou mais exausta. Mais hiante esempre a mesma nos versos.

Torres Vedras, 1977

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Page 29: Fiama Antologia -AMAGO

teve no centro da filosofia como um vidoeiro igual ao de um ex-libris.

Debaixo destes espaços sonoros alguém é vítima. E, na comunhão que se estabele ce entre nós, alguém é igual a alguma coisa. Estamos a ser glorificados.

Um tirano canta. Tão bela a sua rude za como a libertação. E as folhas de parra esplendorosamente falsas vão lançar as suas gavinhas naturais. Ó ci garra que tão radicalmente consegues confundir-me o conhecimento e de sorbitar-me! Canta o que não cantas. E até ao fim do Verão, quando o chil rear curto que se repete no fim do

poema atrair finalmente esta hipnose, não percas a ideia nítida do que és.

Quinta das Torres, Agosto, 78

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CIGARRA

A cigarra tem a intuição de que vence os outros cantores. Aquilo que zumbe ao olhar-se é um seixo, ela é uma ár vore. Um outro som procurado em pormenor é o corpo do bugalho gretado, ela é gran diosa. Menos o seu, os sons que eu procuro, encontro-os atravessados no que posso chamar caminho. Este besouro passa subitamente, e é uma folha de vinha de acrílico. Vinha, cujo pensamen to aceita ser conduzido em arco. Coi sa cuja fidelidade artificial su planta o primeiro conceito na latada.

A cigarra martiriza-me com a sua cons ciência de ente maravilhoso. A magna nimidade do seu canto ríspido não cessa. Olho o trinado e vejo um cas tanheiro da índia lábil. A ave também cantava, apesar da grande obra da cantora que domina o real. A ave debicava as uvas comunicando fervo rosamente com o artifício. Mas eu transformei a grande árvore pela im posição do canto. Tão estridente que es

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co flutua e ao aproximar-me bois cavam caleiras nos atalhos de rocha.

As nascentes eram verdadeiramente seres novos a trinarem. Até os sons oca sionais e a tangibilidade da água não me tocam. As casas toscas são também seres mortos. Têm uma alma escura e olorosa no seu centro impenetrável.

Marco de Canaveses, 1978

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CASAS

Tudo é rarefeito nestes atalhos. Grandes penedos que a erosão entorpeceu. A sua medula em arco, a boca cavernosa. As capelas de granito escaldam entre o milho agreste que está sombrio. A cons ciência demonstra-me que sou aonde estou. A especulação que se reveste da forma de écloga é a minha lin guagem. Tudo o que chamo meu, quando a Natureza está chapea da de sol, há caminhos esguios entre as fanerogâmicas, é um verso, uma elocução ou um parágrafo. Tu, oco silêncio na parte superior dos milheirais, és o tecto. Pe quenas crostas de mica são o teu espelho, ó sol.

Entre estes milheirais que zunem, estes fetos crepitantes, tudo isto surpreendente. Estou absorta. Sinto-me tão afastada do espírito da paisagem como inerte. Alheia à magnificência da imaginação desta folhagem que fala. Longe dos cerros no horizonte onde o e

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senão a de que a morte teve noções diversas e que a noção mais cruel foi a que a assemelhou tanto à vida, que os meus contemporâneos a sentem como a ser assistida imediatamente pela sua consciência.

Para quem como eu viu o próprio corpo do poema tomar uma configuração mole, semelhante a um licor em gotículas ou à de coágulos, estando longe de mim neste caso uma associação de ideias com a morte ou a agonia, esta hora é já a imagem de púrpura de um ocaso impessoal. Olhado como uma abóbada de pele plástica estendida e repuxada pelos querubins, que não quero esquecer como anjos necessários, que os bizantinos confundiram em demasiados pormenores com aves nítidas, tantas vezes azuis enquanto o céu se dourava.

Maio 76

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ÁREA BRANCA / 1

Considero à vista o poema uma gota de lodo, pois é possível pintá-lo com o bico superior alto e o bojo rotundo cheio de esquírolas e de depósitos. Escuro e medonho foi como os renascentes me indicaram o abismo do mar. Os hipostáticos, os frenéticos românticos ao sentir brotar o terror existencial, viram que o elemento água ensopava a alma e os olhos sem diferença, e que o estrépito das situações extremas no mar traduzia o pânico de morrer.

Considero o poema o mar, com uma pasta arroxeada no lugar mais adequado à água. Também tem um fundo de desperdícios, uma dimensão espaçosa cheia de cavername solto, que me obriga a ranger como uma arte os meus ossos de poeta, sem nenhuma crença herética,

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onde concentro a minha vida. A partir de rosas começo o caminho visível pela ladeira diurna, uma pacificação do espírito bem diversa da passividade, mas igualmente dócil. Cada consciência, ao atingir uma grande fracção de factos ou, por vezes, de pontos siderais, deixa de ser súbdita do universo. É este o sinal da separação entre quem possui o domínio e aquele que é dominado pela artificialidade de produzir e que não sente a distância atroz que o separa do dia a dia, isto que eu transformo na minha consciência, com critério, em poema. Sempre que me distraio de mais das rosas através da teoria, o papel da aragem a que chamei vento é sobressaltar-me devagar, talvez sem a minha conivência. Eu vigio a minha permanência na terra, leito eficaz para cada um engrandecer diariamente. Não posso portanto permitir que alguém, de quem não considera este clarão diáfano necessário à compreensão, queira incutir no espírito humano a ideia de uma essencialidade desenraizada daquele fundo com que cada um se torna essencialmente em ocasiões únicas o ordenador de rosas registadas por sinais.

Maio 76

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ÁREA BRANCA / 9

O tema das rosas não é ainda estéril. Nem tão-pouco é necessário passar no subconsciente entre frisos, mesmo secos, de tonalidades, acompanhando-as de frases preciosas. Cada sentimento que a vida diária apreende de um modo difícil ou astucioso é eterno. Depois de muitos dias o roseiral, visto dia a dia, impõe uma imagem mais do que secundária ou marginal, que me levou a inflectir a linguagem para a rima, como involuntariamente aconteceu no verso em que rimei, porque estou a passar da primeira razão do discurso para a distracção plena. Mas com que intensidade senti essa oferta natural, que era frágil e concreta, sob a acção do vento. Vim, manhã a manhã, idealmente ou trazida pela minha presença, ver as rosas em maciços submetidos à luz forte do sol nascido daquele lado. Não procuro fugir às referências mais do que o que necessito para tornar legítimos os contornos duvidosos.

Tudo aquilo que se reveste de maior importância no pensamento desperto pode ser um étimo

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a metáfora da tecedora, até terminar e recomeçar a teia, com o ritmo passando a tempos regulares os fios obliquados pela luz. Toda a crítica tem exaltado o poema como uma produção da mecânica manual oposta à idade do amor espontâneo, os jorros do lirismo.

Eu abjuro da tecedora porque muitas vezes tem correspondido a quem lhe diz que a harpa produz estopa. Se nem um tecido é rigoroso com traços e sombreados quando muito harmoniosos, nunca simétricos, como o pode ser a soldagem dos termos lexicais ligados continuamente por espaços brancos. Como evitar que o fim da página se ligue ao cosmos materialmente e, em vez de tornar-se um tecido tranquilo, o poema se desagregue,repetindo assim o movimento de que nascera e fora contrariado pela escrita. Ao chocalhar todas as frases, os versos caem uns dentro dos outros, e o poeta vê-se perante a impotência de os refazer sílaba a sílaba. Só a tecedora tem o privilégio de romper os fios pelo fogo.

Julho 76

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ÁREA BRANCA / 10

Admiro a tecedora porque tem consentido que a assemelhem à poesia. Mesmo com os cílios a perturbar-lhe o movimento dos fios e os dedos tocados por uma estranha resignação,ela tece os caudais líquidos que escorrem na sensibilidade do poeta desde que era criança. Aqueles que não imaginaram na ceifeira de uhland o cântico mais remoto da nova ceifeira de fernando pessoa podem agora começar a imaginá-lo. Mas eu admiro sobretudo a injustiça para com a tecedora, a de atribuir aos seus dedos esfacelados a incipiência do poema. Ela soube ser responsável pela perdição ou a desaparição dos homens nas palavras,até estes voltarem a emergir dessas palavras alteradas e inalteradas.

A poesia iludira-se ao pensar que a alteração que atingira os objectos deixara ser idêntico, até nova comparação, o poeta. O próprio termo poesia pudera orientar a sua sombra no sentido de manter cintilante

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do que a minha fala ou a minha visão, únicas propensões inatas. Prefiro aprender pormenorizadamente a conservar uma impressão digital. Há um pensamento abstracto e maquinal que decora a História com inteligência mecânica, e por isso é supérfluo escrever. Só alguns raros escribas, como os desenhadores de máquinas, seriam necessários. E poderia descansar a cabeça no regaço da lama.

Ensinaria à infância a gravar no pó de talco a palma das mãos e a considerar as palavras modulações da voz pura, sem a mancha embaciada compacta que paira diante dos olhos sempre que se fala. A mancha que se desloca no raio de visão e desbota qualquer imagem como a chama de uma vela com a fuligem constante a torná-la opaca.

Setembro 76

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ÁREA BRANCA / 17

Escrevo como um animal, mas com menor perfeição alucinatória. Não sei imprimir as três linhas convergentes do pé da gaivota, nem os pomos leves da pata dos felinos. Só de uma forma rudimentar escrevo, e estou a predestinar-me ao fim. Depois de tantos séculos posso afirmar que a escrita é uma escravidão dura. Sei que é inútil e desumano mover as mãos assim. Nem estou convicta de que seja digno escrever desta maneira; é uma manufactura triste, quando as mãos podiam apenas escarvar na terra ou no corpo. Podem ficar as palavras somente na fita magnética como nas cabeças loiras. Nada na infância nos deveria obrigar a traçar as patas dos roedores repelentes que são letras. O som da boca deve escrever-se no écran, com a nova razão da nova máquina da realidade. Na areia, porém, ou no mosaico molhado terei de aperfeiçoar a minha pegada. Aproximar dela a mão até alcançar a harmonia do trilho do escaravelho. Uma fieira de montículos e ranhuras até ao infinito que para ele é o mar. Há quantos séculos os seres humanos me aprisionaram no mito da caligrafia. Como tem sido penoso esse gesto, há tanto tempo, e só eu o renego, porque sinto a opressão com que alguém o tornou mais nobre

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Entro no túnel do reconhecimento. Vejo cores e vultos que me entristecem. As molduras dos animais estão colocadas demasiado alto.São tão inacessíveis que só com amargura lhes toco. Tenho mais prazer em esperar a madrugada como um corpo inerte do que em seguir tresloucada o rasto da destruição.

Vai chegar a manhã espessa cheia de lodo leve para apagar os vestígios da posição das coisas.

Janeiro 77

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ÁREA BRANCA / 34

Roço a minha testa pela luz poente que posso sorver. Todas as metáforas de alimentos me saciam. Tudo se fundamenta na existência das coisas. Um pomo do tamanho da abóbada celeste. O tempo abstracto vai-se tomando impensável à medida que apreendo os pormenores da realidade. O pavão que é o sol no Ocaso caminha com a majestade dos sonhos. Estampa na minha cara o seu leque negro. O meu pensamento é invisível debaixo dos arcos escuros. A que passa lembra-se de mim, quando me extasiei com a Natureza enriquecida pelas interpretações estranhas. Crio este encadeamento de metáforas que se harmonizam com as minhas obsessões. Eu mesma analiso a minha biografia sincera. Admiro as horas naturais sobretudo o poente ilustrado. Com vinhetas de malvas rubras entre riscos de ouro e pinceladas. Por olhos que mastigam. Pelos dedos onde descansa a minha medula encostada. Passo a tarde com o cérebro inclinado na direcção da mão. Até que um passante desfere o golpe e corta a seda dos raios.

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ÁREA BRANCA / 37

Embrenho-me na área branca da noite. Uma arena onde os acrobatas viveriam com exuberância. O arameatravessa já as minhas órbitas. Um olhar saudoso percorre as últimasformas.

Os elementos brancos, os aromas, o vapor que oscila no fim da queda

de um fragmento. Segue-me a voz maviosa que orienta os cegos. Reparo que me torno homónima do poema. Abençoo o meu texto que não me despreza. Os versos que ainda amarfanho. A vida cruel nas áreas contaminadas pela ininteligibilidade.

Março 77

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ÁREA BRANCA / 35

Quando rebenta a flor nova no alpendre da casa, parte de mim entrega-se a essa aparição. A mesma fuga leva os insectos entre um ponto claro e outro. As janelas foram escavadas nas faces. Trepadeiras confusas parecem muros. Estas visões evitam que a casa se destrua. Sou o sujeito que imagina o pensamento dessa figura comparada a uma ruína.

A que floresce com o vulto da primavera há-de deteriorar-se na penumbra que vai ruir. Terá a vida própria de um conceito. A porta que dá para o caos. Enquanto vivo gozo a aparência de cachos de glicínias roxas enroscadas nas colunas sem matéria.

Na casa transparente a metade translúcida aumenta esse esplendor em silêncio. A que se fundamenta na existência da minha mesma parte ausente. Que é uma gruta. Em cima volteiam mariposas por dentro de um vapor. O hálito da garganta que a abertura da janela expele do interior de um halo.

Março 77

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fosse uma escada. É-o, quando as figuras austeras da Natureza perseguem os mortais. Querem confirmar a sua configuração. Querem ser reais, quando se aproximam.

Vai para diante da minha face, ao fundo. Vem dos recantos, onde já não é a silhueta volúvel enovelada pelo vento, à janela. Com lentidão arrasta a forma táctil até à passagem do poema.

Sou eu que me vergo ao domínio. Que me poise a marca incandescente na testa. Tocará na meninge como num cofre. Aceito coroas para depor sobre mim. Deixo os pés do abeto empurrar com a biqueira violetas. A fragrânciadelas leva-me a imaginar poemas em branco. Depois de percorrer um longo encadeamento de sílabas sou outra. Vejo assomar a natureza nua.

Fevereiro 77

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ÁREA BRANCA / 39

Quando eu vir vaguear por dentro da casa o abeto que cresceu no bosque, hei-de ajoelhar no soalho. Todas as coisas comunicam entre si a totalidade das suas formas. A mão que vai surgir do abeto apontará

para mim.

Tenho de despir as tiras de brocado que envolvem as veias,

as cadeias de ouro dos rins. Deixar que as unhas longas da árvore passem entre mim e o imo dos quartos interiores da casa.

Se essa figura imponente, a árvore, me reconhecer, vou interromper o que escrevo, esperar ansiosa a atracção que a insónia desse vulto há-de exercer sobre mim. Rodo até à tontura da morte.

Torturo-me até à alegria. Encontro na casa o tema da despossuição e a agonia.

A pobreza antiga com que o corpo cai para uma vala. Preso apenas às pérolas que tinem nas orelhas. Dante deixou-nos resvalar, com os cânones clássicos, como se o poema

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Mudo a cena para me alegrar com a vida das curvas dos ramos entre a frieza urbana. Talvez eu verseje por esta razão. A mudança dos dados e dos factos através do quotidiano recente. Aquilo que o faz perturbar-se. A nesga da memória vital. A minha resistência

à morte do pensamento. A resistência à entrada no mundo que surgiu depois da minha nascença entre dons naturais. A primeira nascença sobre terra, areia, cinzas. Materiais fortes que duram nos leitos da Natureza. A vista do princípio do meu conhecimento

poisa sobre um amálgama verde, verde. Os nomes por que se repartiu a bela verdura. Esse léxico que possuo permanentemente para ter acesso ao fio áspero que liga pela verosimilhança casas, ruas, monumentos, barbacãs. Fio solto, do alto para a sofreguidão do fosso.

Maio 77

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ÁREA BRANCA / 55

Penso a minha vida no âmago das imagens. Nas esferas dos jacarandás que borbotam de flores e folhas. Nesse alpendre de buganvília. Crio o hábito de possuir os elementos naturais que vãocomigo para as jornadas interiores através das ruas.

Estas flores que florescem simultaneamente na primavera e se acumulam nos parques cativam-me. Somo-as a todas as outras com que sonho. As vivências que guardo ciosamente para ampliar as minhas visões. Rosinhas claras e minúsculas nas sebes.

Nas avenidas despovoadas de visões vegetais sinto-me desesperada a olhar as paredes de cimento lívido. Pracetas onde estala o granito. Prédios em que o alumínio fulge. Só no íntimo das memórias trago a consolação. Fragrâncias e adejos das pétalas com que me extasiei.

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Page 39: Fiama Antologia -AMAGO

O ANJO MARINHO

O pensamento às vezes torna-se material e tórrido. E às vezes nas imagens da ausência nada é frio. Ou outras associaçõesnascem. Estou sem Ti percorrida por esse fogo. As frases cáli- das que ainda ecoam. As faúlhas azuis e a baba do verdadeiro fogo. Expectante e em cinza. Não me reconheces já. Eu transfiro o meu poder para a cinza. É encantatória. Suave e com um cinzento de rolas. Certos dias a poeira brilha. Tu ainda podes aturdir-me. Soprar com lentidão para dentro do mar. Até que eu me deixe afastar.

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ANJO ENLOUQUECIDO PELO TEMPO

Esmaga-Te um grande círculo que eram as ruas. Vi-Te ao longe tactear e correr. Despedi-me a olhar o Teu pânico. Da varanda vi as ruas que eram sórdidas.

Naquela luz de verão Tu estavas nítido. Os despojos das flores roxas emaranhados nos Teus pés no alcatrão escuro esvoaçavam. Automóveis esbatiam-Te

a figura. Qualquer eco ao partires havia de morrer. Pedras tornavam as ruas uma paisagem onde cabeceavas. Tu partias arrastado pelo Tempo.

Assim como eu ficava a ver-Te ao longe entre as folhas. Grandes copas verdes todas de flores minúsculas escondem o resto dos Teus movimentos. Dócil ante

o destino eu imagino-Te. Tu eras frágil como as minhas sílabas vagarosas.

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ANJO DE OLHAR FIXO

Talvez o meu tempo se consuma através da alucinação. O velame afastado. O lamber da espuma. O chapinhar das raí- zes pequeníssimas que sustêm as crianças. E até o ritmo duro e inabitualmente for- te de um petroleiro que passa. Tudo isto que está fixo na paisagem.

É estranho estar a ver tudo através de uma perspectiva alheia. Ver como tu. Triân- gulos brancos. Depois proas oxidadas e es- curas e neblina rala. Recortar na totali- dade uma forma geométrica. Ver aí. Inebriar o olhar de fixidez. O que já

conheço agora tem outro ângulo de visão. O apogeu no mar. Gramíneas e estampas de miosótis. Tudo o que é branco se sintetiza. Cada vez mais o real se diversifica. Tu justificas esta cisão. O Teu nome marca a imagem. Não me vi nun- ca tão verdadeira. Através da barreira enor-

me do tojo que esconde o mar. É u- ma provação. O acesso a Ti. Esse óleo azul é pastoso. Os tentáculos das crianças

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ANJO DE PAPEL OU DE ÁGUA?

Se Tu não voltares estes poemas hão-de tor- nar-se trágicos. O texto vai revelar a cicatriz de seda e os laivos claros do meu choro. A contra-coração vou reescrevê-los. Hei-de encontrar aqui uma placa lisa para arrastar as letras até à regueira turva. A imagem da água que era a de uma simbiose entre Ti e a minha ideia de Ti vai enegrecer. A podridão há-de macerar o poema. Vou ser eu o autor a quem a agonia devora juntamente com um livro inerte. Quando Tu nãovoltares eu saberei ler como um iluminado. Os significados metafóricos levá-los-ei até à ironia. A realidade levantá-la-ei dessa valeta. Vai fascinar-me o torvelinho mor- tal em que mesmo os poemas sem dor sempre se desfazem. Quanto mais estes em que se ostenta o Amor em páginas ás- peras até eu perder a noção de estar presente.

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Page 41: Fiama Antologia -AMAGO

GOTA DE ÁGUA

A gota de água cai na corola. Essa queda também me movimenta. Assisto aum condão estranho. Ser gota e ser figura. Não ter ainda caído no caos como nos outros poemas. Ver a corola

no meio do buxo. O buxo no meio do parque. Guardo ciosamente a proporção. É o que resta da inteligência. Desfo lha-te tu flor. Ao morrer em ti nasce sob ti. Para que eu te apreenda. An

do afastada das coisas. Mas sou visí vel para elas. Aquela pálpebra vê -me. Tem os signos incrustados no arb usto e o mais simples é a brancu ra. Ainda sou arguta. Incito a escri

ta a provir das palavras. Como é pungente manter-me no ardor das figuras. Por elas renunciei à pará frase. Possa a arte gráfica ilu minar-me no sofrimento da criação.

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que sobrevivem levam-nas até ao fim. Eu estou no ponto onde escolhi ver-te. Contor- no o meu discurso subtilmente. Não quero reconhecer nada nem possuir. Entrego-me.

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AS CARTAS

Esperas os sinais da minha existência. Eu transcrevo-te mas não vivo no poema. Morro na mancha do papel. Uma carta cai no matagal como um pássaro. O não ser caçadora dá-me um sentido conciso da realidade. Nem os belíssimos perdigueiros me sentirão passar aqui. Eles

não me vêem até ao âmago. Tudo o que é exterior e visível como o corpo atrai-os. Tenho um limite onde estou e nada está. As cartas caem diante da avidez de cães. Vou existir onde jamais vivi.

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LINCE

Aprendendo a mímica do lince podes amar a morte. Uma aprendizagem exa cta. Seguir o contorno pardo, pontiagudo, das pequenas orelhas. Desenhar o sombre ado dos olhos fitos. Na morte há um perfil especial. Fulgurações que des lizam no ritmo dos passos. Um andar alongado de colina para colina. Não temas o fim como os outros seres vivos que amam a própria morte. A sua silhueta articula-se como um o bjecto artificial. Recorda os ângu los com maior espessura do que numa superfície de mármore. Mostra o acetinado do pêlo em chispas. Um espelho para reproduzir as mutações da vida. Apreender um desenho mais profundo do que o do prateado do vulto. O que nos fulmina é belo como a última queda depois de um salto livre entre as montanhas.

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Page 43: Fiama Antologia -AMAGO

fício. As vozes. Ecos de silêncios. Silêncio sem sentido. Distância sem dese jo ou repulsa. O vago. O profun do. O nunca. Resíduo do fim das paisagens. Que vão diluir-se eter namente além na literatura.

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ESTUÁRIO DE UM TEJO

Sempre que as nuvens passam passa a memória do silvo dos barcos. Também golfinhos entre nuvens e dunas de sal. Tudo o que é visto à beira do estrado onde estava inanimada a infância. Peixes de vapor e pássaros pétreos atrás de cargueiros vindos de uma baía de liliput. Às vezes chuva imóvel como um pano sem vento. Ou os poentes verde ma rinho debaixo de poentes paralelos.

O farol que se tornou apenas um vocá bulo. Já nem é uma imagem escura — o sinal das duas faces. Palavra flutuante sobre o rochedo invisível a meio do rio. A costa atlântica depois da boca e da garganta de água. O contorno mordido. Marés como um pêndulo. Aquele nevoeiro transparente que navega numa taça. O sabor suave do mar quando se torna um gás

expansivo da terra até ao zénite. Bebida acre como um filtro de circe. E na outra margem um país profano com árvores que dão pérolas e arti

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ALBUFEIRA I

Estou a passar nas escarpas. É um acto do meu delírio. In color e só. Um descante longín quo no lugar do eco. Ausên cia fiel. A pluma poética recorta um precipício. A minha imaginação não é sinistra. Ela própria está abandonada. Exponho -me. Salvo-me. As rochas rugo sas são o centro da har monia.

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GRAFICOLÍQUIDO

Tudo na minha biografia a todo o momento se repete. Hora a hora descrevo a Natu reza indómita e mortífera. A humidade que se expande. Estes pinhais de bronze na primavera na beira de água móvel.

O nada que há em tudo. Canção das ondas que não ecoa na paisagem igual. Água que é água. Os pinheiros verti cais rígidos perante o in finito. Sempre a mesma secura como a de um líquido que não está delimitado.

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ER

Por fora do coração voa a asa negra do melro. O mesmo que vive na minha vida. O que tem um assobio tranquilo e eterno. Segue-me com o seu amor ocul to. Une o olhar do solo raso ao olhar sobre a altura. Muda e depois é igual. Por vezes ve mo-nos nas brenhas junto ao mar. Noutro tempo foi numa aresta verde.

Vem da viagem de Ulisses. Um cantor. Nas figueiras de Ogygia cantando. Sobre um fio da er va. Oiço-o com a mesma penetra ção com que já foi ouvido na Natureza. Por Er. Além os pequenos pardais negam-no. Não os contemplo. Todos os anos estou atenta. Este poema afirma e recorda. Esta ave chama por mim como eu.

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PARQUE INFANTIL

As imagens dentro das imagens. O li mite no interior do pensamento. A filosofia fora dos contornos. Coisas pensáveis. Depois a água estígia para elas se afo garem na beleza.

Na mancha de erva verde navegável. Onde as crianças diminuirão. Até serem um ponto. Ouvem-se as suas palav ras convergindo para o rio das sonoridades.

As que já estiveram dispersas nos caracteres tipográficos. Fragmentadas pelo comércio dos livros. Sonhadas depois de vivas. Vistas pela visão que cria as visões.

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Page 46: Fiama Antologia -AMAGO

SÚBITA E CLARA

A lua poucas vezes tem manchado este rectângulo branco. Agora é alvinitente. Talvez sedosa se se pudesse tocar com a polpa dos dedos o alto monte.

Estremece quando as árvores a prendem. Quando se afasta do mar sereno brilha sobre as terras agitadas.

No fim do atalho ela é a ideia mais súbita e mais clara que eu concebo. Está a estender as linhas brancas do seu rasto.

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ALBUFEIRA II. SERPENTOMAQUIA

A terra acaba numa linha de argila. Os pássaros incansáveis passam sobre a seara quie ta e os sobreiros que rodam. As formigas vivem a sua existência eterna. O vento é copioso quando escorre em turbilhão pela escarpa. Praia rasa a seara em tracejado alto. Água humilde e o trigo magnífico.

Quando a víbora canta aluci nada pelo clarão. A seara estremece vista na perspectiva do mar que também oscila. No halo mais longínquo uma serpente brilha como um relâmpago. No rumor da fila de sobreiros sobre o horizonte. A leveza do mar é a de uma aura estendida sobre as coisas que vão reunir-se na existência e na inexistência.

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ARTE-VIDA

Daquelas árvores estavam a cair hoje as palavras fugazes e é assim figurado como frutos que eu acolho o passado. Não posso também mergulhar a minha deambulação de acaso no vazio das imagens! Serão as folhas ocres as bocas que falaram ainda vivas.

Ainda está vivo o minuto que impede que morra sem raízes cada minuto de hoje. Não significa agora mais o fim do inverno do que o outro verão descoberto no esquecimento. Fora de cada um de nós o oculto vivido é uma ima gem errante no nosso tempo.

Na passagem dos invernos agitados por estas cores ruivas dissemos algo. Aqui há vozesfantásticas que são de ambos. As folhas caem dupla

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VEM NOITE

Vem noite templo dos sons escondidos entre formas cada vez mais insignificantes. O som do relâmpago do insecto. Abismos verdes que se tornam negros.

Mar de outra água que ondula sem lugar. Todas as formas são asas que batem em todo o espaço. O início do silêncio do tojo.

Eco que se divide em par tículas. Caos ordenado por ouvidos que se ine briam desde o anoitecer.

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POÉTICA POSTÚLTIMA

A glicínia é amada vorazmente pela abelha. Num círculo fez-se o espaço do silêncio. No centro o castanho sedoso vo látil transmuta-se num ponto lilás na escadaria lilás. Fascina-me também a deli cada suspensão daqueles cachos. Por mim amar a glicínia com a sua amante alada é dar-me a este transe devorador mágico. Des crever a libidinosa abelha minha amante que pela glicí nia minha figura me atraiçoa.

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mente na sua queda de antes e na cascata harmónica. Estas são árvores que falam da sua memória própria.

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LEITOR, VÊS UM PEIXE?

Chegas à beira do tanque, mergulhas e sem equívoco revês o peixe que passa com a onda possível a espraiar-se. Pões o joelho gasto na deslocada pedra antiga. Diverso azul que te perturba lembrado da visão pueril! Se ajoelhas no meio da vida inteira vês sinuosamente percorrer o azul a soma das vidas onde te encerras.

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PROGRAMÁTICA

Eu saúdo a laranjeira iluminada pelo sol apenas ela. As esplendorosas laranjas mais altas voadoras assim do que as andorinhas pretas que volteiam.

O recanto apenas seu onde recebe esfericamente o sol. Os últimos voos das mensageiras antes do sonho. O fim dos raios no vérticede espelhos. Haver frutos que são reflexos. E trilos que formam musicalmente a noite.

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agora não vivo, de que se desprende a inteira alegoria da cerâmica e poesia, oficiadas a contraluz intensa outrora na minha casa viva que revivo.

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MEUS ECOS DE LUIZA N.J.

No lambril branco da janela bate a cortina franzida presa, tecido leve que soerguido revela os quintais sem arte, as serras longínquas não verídicas esbatidas no vento de sempre. Cena também sempiterna, que uma vez se vive outra se revive.

Aí, na aura da janela vívida, deixou delineada a ceramista a sua falsa e verdadeira imagem. Pelos dedos feitas linhas e sílabas são dela o retrato fiel e eterno. Do barro frio, do odor das formas e da substância e ideia do que moldava, a ceramista pôde verter o barro em verbo.

É o que vejo e penso nesta casa mortuária que se abre branqueada para o pátio, onde a luz se coa e ecoa e uma branca poalha espessa trazida por ventos fortes nos isola, encerra e de esplendor cerca da ceramista e poeta o rosto,

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O SÍTIO

O relógio polícromo coroado pela estatueta de um trovador exangue. O recanto e a aresta bafejados pela poeira. A miragem do raio de luz hexa- gonal. Lugar no tempo.

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O PODADOR

Devagar a tesoura poda o arbusto tornando-o de realidade em desejo da forma. O que me atrai, a flor, a folha de fuligem, os troncos curvos para os pardais escuros e ocultos.

Devagar os ramos caem e os que o podador despreza vão entrar na gé- nese da nova terra. É inevitável que tudo isto me crie nostalgia. Não há um estalido simples, corte só,

nem morte só, a morte daqueles ramos estendidos pelo gradeamento a viver naturalmente entretanto. O podador escolhe assim a aparên- cia da obra que devagar executa,

na ordem e no capricho da folhagem para sempre jovem e ágil.

Carcavelos, 1985

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QUOD NIHIL SCITUR

Água significa ave isto é a forma de exprimir a parte míni- ma das essências. Diminuir a área da imagem. Mas profusa. Separandonomes. Dividir o abstracto em fotões. Nomear, para viver parcimoniosamente na lite- ratura. Paradoxo causado pela Ode. Pela Presença.

Frase, fruto do texto passageiro. Olhar para as palavras. Ver o vazio a pre- encher-se linearmente. Erro ino- cente. Um equívoco pictográfico.

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UM RAIO DE SOL ESTÁ A CAIR NA ABSIDE DA SÉ DE LISBOA

Como a trombeta que na Sé tocava Bruckner este raio de sol metaforicamente é um arauto. Tem a linha própria oblíqua do brilho metálico. Torna-se absurdo nesse halo o sentimento que mais inominadamente me acompanha. Talvez o terror perante as mutações da Matéria. Isto é, o ouro. Luz que tem a forma de tubos de órgão. O claro-escuro que se divide em espaldares. Onde se encostam as sombras que são distintas da Sombra. Pelos seus ouvidos atentos aos sopros. A luz terrível e eufórica da Queda.

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IMAGEM MINHA

Ficas a ler comprazida diante das rosas silhueta que vislumbrei, compus e reanimei. Tinhas o perfil marcado cruamente pela luz, as mãos claras no colo, os cabelos despojados do brilho das cabeleiras soltas, mas juvenis e sacudidos no início da tarde com alegria. As páginas balouçavam do mesmo modo que as rosas porque ao começar a tarde nos dias de Verão brisas e vapores estendem-se desde o mar até às margens floridas. No teu banco adornado por festões de rosas trepadeiras afastas os olhos do livro não absorta mas para sempre atraída por inúmeras imagens.

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A CASA

Sempre se conheceu o vento de Junho, nessa orla, que regougava nas esquinas da casa à noite e nas manhãs ansiosas em que voltava a aragem matinal deixava irremediavelmente os frutos a juncar a terra e os atalhos.

E sempre se lamentaram as velhas pancadas do vento, no seu ritmo marítimo, a exaltação a que nos levava, permanentes povoadores da costa. E para lamentar dizíamos as palavras usuais e alguns suspiros próprios da insónia de ouvir o vento.

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NATUREZA MORTA COM LOUVADEUS

Foi o último hóspede a sentar-se no topo da mesa, já depois do martírio. As asas magníficas haviam-lhe sido quebradas por algum vento. Perdera o rumo sobre a película cintilante de água no riacho parado. Tal como poisou junto de nós, com o belo corpo magro arquejante, lembrava, ainda segundo o seu nome, um santo mártir. Enquanto meditávamos, a morte sobreveio, e a pequena criatura, que viera partilhar a nossa mesa, depois de ter sido banida das águas foi banida da terra. Alguém pegou no volúvel alado corpo morto abandonado sem nexo na brancura da toalha — que maculava — e o atirou para qualquer arbusto raro que o poeta ainda pôde fotografar.

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AUTO-RETRATO QUANDO BANHISTA

As emoções antigas facilmente se transferem de um objecto para outro objecto como se o próprio sujeito mudasse de passado e de futuro. Ela quando ainda personificava a infância ao entrar no mar outrora gritava alto. Não por outro sentimento senão o louvor da harmonia vasta.

Mais tarde pensou que o grito profundo era o de alguém que se debruçava num terraço quando habitualmente anoitecia. Viu o perfil contemplativo, o contorno dos varões negros forjados, nuvens terrestres, e nada nunca lhe sugeriu a praia. Mas ainda pensa: porque não confundir para sempre os objectos próximos nesta emoção simples e igual?

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MOINHO-MAR

Quando as pás do moinho de vento paravam na penumbra ouvia-se melhor o mar. Nas outras horas o mar era visível.

Víamo-lo volátil sobre as árvores embora o soubéssemos um ser rasteiro e térreo. No verão, no crepúsculo vermelho, mais o víamos consubstanciado.

Mas vinha o som quando se ia o vento, depois de vaguear em volta do moinho.

E na penumbra e no tempo das marés de outono, ouvia-se um seu rumor, depois de ter girado até à imobilidade o rodízio das pás.

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ANALOGIA SILENCIOSA

Emocionava-me a analogia silenciosa do tumulto do comboio e do cortejo das nuvens. Via-os e ouvia-os segundo o princípio de identidade entre a natureza superior e inferior. Imagino a passagem monocórdica e invisível dos ventos que desfazem, uivam e arrastam. Os sons nocturnos e diurnos fundem-se. Assim como os volumes e os sulcos no céu eram perfeitas formas celestes que obsessivamente me lembravam os caminhos ao rés da terra.

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MEIO-DIA

É hoje mais fácil distinguir o interior e o exterior da casa do que quando a única onda de luz liquefeita preenchia os espaços e os pormenores comuns no sítio onde vivíamos imersos numa só qualidade da matéria viva.

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AS GALINHAS

Em versos obscurecidos pelo desejo de mudar memórias e factos lembrei o canto dos pássaros, quando ainda o tempo se identificava com lugares e idade.

Agora que não há mais aproximação nem distância, os alegres cacarejos ao meio- -dia outrora, antes do primeiro verso, voltam no fim do ciclo para o regresso de mim mesma.

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OS COENTROS

Tempos depois os hibiscos vieram decalcar a silhueta sobre velhas alfombras.

Quando decaía o sol da tarde, os arbustos meãos multicolores deixavam alongar-se esguias as copas jazentes, tão verde-cinza e tenras como esses coentros que na sombra rescendem.

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A ROLA

O cheiro acre da penugem nova da jovem rola fiel, solitária, dos próximos pinheiros exilada, entontecia os seres que a rodeavam para escutar a paz do seu arrulho — os seres tão diversos de três reinos, o gato negro, a pedra e eu no mundo.

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MNEMÓNICA

Na hora do zénite do sol passava também a carroça do vendedor de petróleo, na estrada, e agora na fieira das memórias trazidas até hoje para a purificação. Enrubesce, ramo de rosas miúdas escarlates que tomba sobre o arco do portão. Floresce e seca, numa só minha pulsação!

Sê breve, eterna matéria, neste poema. Ao ressoar o zunido das rodas da carroça. Só as escarlates rosas que viam o portão entreabrir-se acompanhem a evocação.

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QUARTO INTERIOR

Na cómoda algumas gavetas com os caprichosos guinchos da madeira não só entoavam sons como aspergiam o ar de antiquíssima alfazema. Moviam-se devagar para o regaço, aceitavam escassamente a luz, gemiam até estacarem abertas e exalarem por fim a plena onda de aroma.

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BEIRA DA ESTRADA

Os que tocam adufe na beira da estrada não reconhecem que a estrada o adufe e o seu tocar estão em alguma parte da minha vida.

Nem os que comigo bailam, para si próprios são os que no baile real no povoado me imprimiram memórias.

O galaico falar que ciciam está neste cômputo final irreconhecível porque é um poema feito de versos na minha língua.

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VERSO VÃO

Onda de sol, verso de ouro, perífrase vã. Extasiar-me, antes, por esta fusão, mistura de brilhos. Ou, ainda mais íntima, a consciência extensa como o céu, o corpo de tudo, semelhança absoluta. Respirar na quebra da onda. Na água, uma braçada lenta até ao limite de mim.

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PÃO

A branca flor do pão lêvedo todas as manhãs se abria sobre a mesa. Era a razão do meu viver nesse tempo na pátria galega, que me dava assim a sua essência. Porque a harmonia do largo mar calmo contra a costa alcantilada ou a rasa ria híbrida e o terreno interior dos verdes brumosos — que de o serem são puros brancos — é a mesma suave união de duas faces da escura côdea e do miolo alvo.

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POESIA NÍTIDA

A atenção dói quando os objectos embora inteiros se dividem ou parcialmente emergem de dentro da sua própria imagem.

Um estranho dirá que esfumados estão nas diferentes qualidades do ser, actuais e vivos. Um próximo parente viu que nas marcas do tempo se confundiram os diversos sinais do mesmo tempo.

Só em mim a atenção é um modo de doer, e o que hoje dói flui como um bálsamo.

As copadas árvores estavam quietas, nas frias repetidas matinas — e agora nelas percebe-se a nitidez que forma os espectros.

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O SOPRO

Os meus poemas reunidos no seu todo são o meu som. O meu sopro está neles, não está a boca que os soou. Fazer os poemas, através da vida, é pegar em meus gritos emudecidos para que fiquem, melódicos, em papéis.

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TÂMARA

Pura circunstância trazerem-me num cesto levíssimo as tâmaras. Com a boca peso três sílabas. Com os olhos sou ávida. Com as mãos repouso e saboreio os frutos translúcidos.

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e cada imagem cria o seu espírito, e cada cópia fotográfica muda na liminarmente máxima diferença. Ao crítico e amante da Pintura as dúbias imagens decerto deram a cada rosto um só outro rosto, a cada paisagem uma só tela. Já os vidros, a água, a prata traziam a incerteza aos traços, como se os olhos que nos deu a Natureza nos fossem infiéis. E o poeta pôde resistir a esta perda das formas consagradas e consubstanciais das coisas que ainda ecoam a Criação como o eco cósmico.

30/10/93

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CANTO DAS IMAGENS

Ao princípio era só uma em cada olhar após a grande divisão das águas e mesmo, segundo disse Baudelaire, a imagem até ao seu século do real múltiplo era una, única e própria. Dementes chamou este cantor aos fotogramas que roubavam à alma a unicidade e deram aos olhos frívolos as figuras plurais, idênticas, dispersivas. Era somente uma a imagem mística, dos entes naturais aos transcendentes. Só uma esta vermelha afelandra embora as suas irmãs se lhe assemelhem e desassemelhem, cada uma, sempre. O concreto pulsava neste ritmo das coisas parcas, poucas, singulares. E de repente, nos olhos do poeta cada coisa reproduziu a imagem inumeradamente, e a ideia decaíra no banal prolixo. Antes, podia hesitar-se entre o modelo e as sombras de Platão, agora as flores malignas podem reproduzir-se no mundo nítidas, iguais, supérfluas. Eu ainda vejo o olhar antigo de Baudelaire e cada coisa vibra no seu mito,

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tenho como interlocutor o tempo. Mas são de mais pródigas as palavras, de mais se derrama sobre mim a Música e de mais por mim o Verbo se fez carne. O início da voz ou o do livro foi o princípio que gerou a Terra, entoando um canto de epifania. Depois de a Voz ter o dom da cosmogénese todos os cantos puderam ser cantados, desde o bíblico ao franciscano canto e aos poemas a esmo dos poetas.

30/11/93

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CANTO DO CANTO

É fácil receber o primeiro verso como uma nascente aberta pelos sons que instilam a emoção nos vocábulos e passam na língua e unhas como sopros. Escritas, as palavras são palpáveis, longe dos objectos mas dizendo deles o afecto que cada um nos lega e que é igual à dádiva dos sons. A melodia por vezes concita as lágrimas secas do prazer subtil, como no exacto agora os Musicais Momentos schubertianos de novo me arrebatam. As notas do piano cantam o Som contam o ritmo que reparte o Tempo e o número ama para sempre o Ritmo. Ó bendita abóbada, concha acústica que te apercebes da ténue melodia que retoma a curva da sua frase, agora e aqui no presente sem fim da minha orelha frangente como folha. De todos estes cantos o início me procurou, como o instrumento musical, soando, é ouvido. Possuída do som renovo os versos que outrora escrevi por amor às coisas, retorno ao meu monólogo em que apenas

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Tamarindos encheram o meu caminho tão cedo junto ao mar em confusão, vejo as bagas rolarem na ressaca e as pegadas perderem-se no encalço.

Sou a que sente a paisagem como uma casa duradoura e frágile nela envolvo os ombros até a névoa chegar e me deixar ao abandono.

Cumpro por meus pés infirmes a peregrinação que me foi mandada por ter perdido a Terra e sentir saudade até ao grande encontro das estrelas negras.

3/11/93

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CANTO DOS MEUS PÉS

Todos os meus poemas foram escritos deambulando no horto em que nasci e depois pela virtude agrícola medram na memória instante a instante.

Esse adubar do instante vivo em pequenos vislumbres de memórias, as siglas pessoais da arte,mnemónicas para reconhecer-me.

Também os sentimentos são percursos que me arrastam entre a alegria e a dor e, do canto ao silêncio, os meus passos levaram-me ao escutar das outras vozes.

Do amor por que os astros giram aceito o testemunho em Dante e do amor de corpo e alma patentes amei algum leitor mas tarda o uno.

O meu lar funda-se na ideia do Paraíso perdido tão literária onde se chega nesta vida infinda indo pelo atalho a par e passo.

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Hoje a bica refresca a água do tanque, os melros descem da latada para o chão, e as vidraças devagar escurecem. As palavras movem-se e repõem no seu imóvel eixo de rotação o espaço onde esta mesa de verga gira nas grandes nebulosas.

15/11/93

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CANTO DA CHÁVENA DE CHÁ

Poisamos as mãos junto da chávena sem saber que a porcelana e o osso são formas próximas da mesma substância. A minha mão e a chávena nacarada — se eu temperar o lirismo com a ironia — são, ainda, familiares dos pterossáurios. A tranquila tarde enche as vidraças. A água escorre da bica com ruído, os melros espiam-me na latada seca. É assim que muitas vezes o chá evoca: a minha mão de pedra, tarde serena, olhar dos melros, som leve da bica. A Natureza copia esta pintura do fim de tarde que para mim pintei, retribui-me os poemas que eu lhe fiz de novo dando-me os meus versos ao vivo. Como se eu merecesse esta paisagem a Natureza dá-me o que lhe dei. No entanto algures, num poema, ouvi rodarem as roldanas do cenário, em que as palavras representavam a cena da pintura da paisagem num telão constantemente vário. Só o chá me traz a minha tarde, com a chávena e a minha mão que são o mesmo pedaço de calcário.

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a Arte que quisesse neles contentar-se. Ó morte, se a vida é longa e breve soma-lhe ainda a mudez e a cegueira e dá tu aos versos a medida inteira.

20/2/94

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CANTO DA ARTE BREVE

Horácio enganou-se ao contar os longos anos da vida breve vivida. O periquito que ganhou a plumagem há uma semana, e morre mal concebe as cores no seu corpo, é apenas breve. O meu relógio de caixa alta, Cronos, que como um animal ferino me segue, é também um ser de pulso escasso e fugaz. No sexto dia pára, e espera que eu de novo lhe ofereça o seu bafo. Só os meus imensos dias jamais cabem nos versos escritos ou ditos, quotidianos, e se somarmos as horas dos sentidos é curta a memória e alonga-se o desejo.

Os afectos, os silêncios, os sinais são a diversa linguagem dos meus dias e o corpo soma a sua soma em vida.Nunca a Arte mais se demorou do que estas mãos que são frugais: o pouco pão e a água abundam nos muitos anos longos de penúria. E é tão vária e imprecisa a vida que não pode ficar toda contida em palavras que apenas a resumem. Os bens que entesourei excedem

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CANTO DE ORFEU

Pendurou no salgueiro a cítara, caminhou diante dos seus passos, sendo depois punido pelos Anjos. Caminhou sempre para o futuro mesmo olhando para trás na memória e por esse futuro foi punido pois levaria consigo a imagem viva. Não era Eurídice aquela que o seguia mas a sua face figurada pelos olhos de Orfeu ainda capazes de criar o modelo e a imagem.Depois da morte ela ainda vivia pronta para o prender em espelhos dúplices e ele que amava nela o corpo, a alma, o suor, o aroma, a linha dos dedos, levou-a, para sempre ascendida ao Tempo do Espaço depois do futuro. Foi punido por Anjos ciosos da sua ciência da Origem, enquanto outros Anjos doces coroavam aquele Filho que também levara na memória dos olhos a figura da Mãe, que todos os filhos levam em si. Um terrível canto de lamento humano depois soou: «Che faró senza Euridice?»,

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EU CANTO A CHUVA, A TERRA, O VERME

Toda a chuva a cair me torna grata por ela e pela que tem caído sobre mim nos anos sem tacto, sem vista, sem olfacto.Aqui, bebo-a misturada com os resíduos que o vento traz do fundo do pomar, gravetos, folhas e as flores perdidas. O cheiro da flor de laranja perfumou esta água, para a ablução dos pés de um poeta que antes fora nómada. Depois, porque não hei-de vestir-me com a túnica da chuva, que me envolva como árvores ou um corpo humano vivo e natural? Dormir, onde esta lama doce e insonora calidamente me vista e me sepulte?Verme, que constróis o altar da chuva com os teus pequenos montículos e covas e sob o córtex da nogueira velha escondeste a tua vida, como oferenda que vai ser recolhida pelas mãos de uma criança que ame os dons naturais; verme, que sabes que eu outrora já fui muda, não-gerada e ausente, mostra-me o que mais sabes da chuva, como és sinuoso nela, vivente, e eu que devo fazer na pura terra contigo, lado a lado, ó laborioso?

25/5/94

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Page 68: Fiama Antologia -AMAGO

EPÍSTOLA PARA OS MEUS MEDOS

Sois: os sons roucos, a espera vã, uma perdida imagem. O coração suspende o seu hálito e os lábios tremem, sinto-vos, vindes ao rés da terra, como ventos baixos, poisais no peitoril. Sois muito antigos e jovens, da infância em que por vós chorava encostada a um rosto. Que saudade eu tenho, ó escuridão no poço, ó rastejar de víboras nos caniços, ó vespa que, como eu, degustaste o figo úbere. Depois, medo maior foi a presença e a ausência, a alegria e as dores de outros que não eu. E um dia, no alto da catedral de Gaudí, chorei de horror da Queda, como os caídos anjos.

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com o som das vogais mais dolorosas. Mas o sábio Orfeu deixou a lira somente ser tocada pelo vento quando o canto perseguia a imagem.

11/11/93

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MEMORANDO, ESTANDO NO DELTA DO DANÚBIO

Descemos o Danúbio num velho barco a motor ruidoso, que espantava as aves silvestres das margens. Fechei os olhos, com o frio da primavera dácia, e ao abri-los um imenso voo planava sobre o barco, depois voltou a terra. O desterrado Ovídio mandara-me aquela ave para me lembrar Alcíone por amor transformada. Vi-o, perto, no exílio, a olhar com amor o mar, e vi-me a mim, de bruços na amurada, fitar a água; depois, mais duas aves cruzaram o horizonte.

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EPÍSTOLA PARA UM CARAMANCHÃOCOBERTO POR MADRESSILVA

Nesse caramanchão que a madressilva cobriu sempre estavam mais sombras do que corpos ou coisas. A sombra de alguém que se sentasse junto aos vasos estendia a mão nítida para uma flor de sombra. Dançasse uma criança em volta do pequeno lago no centro, e havia uma espiral de sombras claras. Solitário, na própria sombra, o gato era um corpo penando a dualidade de ser e de não ser. Até a pá do jardineiro, linha de sombra oblíqua, por ser de sombra se quebrava em ângulo. Não porque todos não estivéssemos em vida ali mas porque a madressilva, só ela, se embebia de luz.

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Page 70: Fiama Antologia -AMAGO

para mim vieram dentro da minha imagem, subiram os degraus da sombra fresca, na entrada da casa, e me pediram

— enfim falaram, ou os ouvi falar tão só pedindo água para a sua sede. Água lhes trouxe apenas, da Sombra

ou sombras guardadas no interior da casa, e os meus olhos de novo a luz abriram da porta imaginada e verdadeira.

E, como imagem vem atrás de imagem, à tarde, ao apagar do Sol ouvi calar por fim o som de enxadas e dos passos.

E só os meus olhos recolheram a oferta deixada no sol-posto, a medrar, na soleira, frutos da estação, em demasia, uvas e figos

com que os dois camponeses efémeros me pagaram a pouca água real que quebrara o enigma das imagens.

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Ao raiar do Sol, ainda dormia, ouvi bater de leve, de fora da janela, no chão de tojo e fetos, a enxada.

Abri os olhos e vi riscos de luz cruzarem as paredes, como sempre na casa de Verão, depois vi sombras

passarem entre as fendas da madeira que iluminavam as manhãs tão cedo. E os ruídos mortos pelo gume da luz.

Quando, enfim, levantada, abri a porta diante do Sol universal límpido, duas figuras curvas, a contraluz,

compunham uma imagem silenciosa de roçadores que mondavam cerce, sem som, o restolho entre as árvores.

Tão quente, tão clara era para o olhar a luz, que os camponeses, cansados de serem vultos a labutar sob o Sol,

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Page 71: Fiama Antologia -AMAGO

Fui criança, indo por um carreiro, a caminho do mar, mão na outra mão, entre árvores, pedras, insectos e aves. Toda a Natureza me coube nas pupilas, mestra de sentimentos, e eu discípula. E, se fechava os olhos, ela punia-me com o silêncio cruel das ondas, a mudez imerecida dos insectos, e a distância das aves, que doía. Se os abria, tudo me rodeava, apaziguado e meu, mas a mão que me trazia a mão puxava-me para a luz de cada dia.

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Amor é o olhar total, que nunca podeser cantado nos poemas ou na música, porque é tão-só próprio e bastante,em si mesmo absoluto táctil, que me cega, como a chuva cai na minha cara, de faces nuas, oferecidas sempre apenas à água.

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Page 72: Fiama Antologia -AMAGO

Nada tão silencioso como o tempo no interior do corpo. Porque ele passa com um rumor nas pedras que nos cobrem, e pelo sonoro desalinho de algumas árvores que são os nossos cabelos imaginários. Até nas íris dos olhos o tempo faz estalar faíscas de luz breve.

Só no interior sem nome do nosso corpo ou esfera húmida de algum astroignoto, numa órbita apartada, o tempo caladamente persegue o sangue que se esvai sem som. Entre o princípio e o fim vem corroer as vísceras, que ocultamos como a Terra.

Trilam os lábios nossos, à semelhança das musicais manhãs dos pássaros. Mesmo os ouvidos cantam até à noite ouvindo o amor de cada dia. A pele escorre pelo corpo, com o seu correr de água, e as lágrimas da angústia são estridentes quando buscam o eco.

Mas não sentimos dentro do coração que somos filhos dilectos do tempo e que, se hoje amamos,

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Na casa antiga, cada um de nós levava consigo um candeeiro, com que arrastava o seu duplo de penumbra e de sombra. A chama do petróleo ardia junto à boca, podíamos devorar a própria luz. Chamas nos queimavam as entranhas e em archotes vivos nos tornaram, vagueando por corredores e por escadas atrás do Outro, que nada nos dizia.

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Page 73: Fiama Antologia -AMAGO

«Como se explica, Hípias, que os antigos sábios todos se tenham afastado dos negócios públicos?»1

perguntei, porque também eu calei a minha voz pública de outrora. Cidade, perdoa-me a ausência e o rancor, perdoa que a minha voz agora não nomeie os teus cais de embarque, a dor, miséria e cúpida opressão. Ainda amo, neste exílio de paz, a mesma Paz.

Sábia, não sou. Calei-me porque as memórias minhas e a voz sozinha também pertencem ao Todo, em harmonia. Ainda amo a pátria, feita de lugares, parentes, dos próximos, e do vento, meu semelhante.

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foi depois de termos amado ontem. O tempo é silencioso e enigmático imerso no denso calor do ventre. Guardado no silêncio mais espesso, o tempo faz e desfaz a vida.

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1 Platão, Hípias Maior.

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A alegria das coisas não é a posse mas a semelhança delas com os nossos dedos. Nem as coisas têm forma própria mas a que lhes dá a mão, usando-as.

A tristeza das coisas é tanto maior quanto mais subtil for a sua imagem no olhar. Nem o arqueólogo ama em absoluto a matéria. O galeão levantado do lodo ou do olvido é um objecto sem presença, ou sem destino, por vezes capaz de trazer-nos as lágrimas.

Mas não usámos nós as coisas até ao excesso, ou a nossa alegria fez-se do proveito parco, do mínimo?

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O anjo de Luini é terrestre, introspectivo, púdico. Sorri, quando procura a escala musical na flauta e espera que os meus ouvidos o descubram, depois de tantos séculos em silêncio. Por trás da alta fronte e no suave semicerrado olhar, guarda para nós vida e esperança, vida nossa que mereceremos.

O anjo de Lotto, também terrestre, é mordaz, lúgubre. Nu, mostra o corpo de terra, o sexo, o rosto e os olhos. Tem um esgar sombrio, de crueldade ou troça. Das mãos impuras cai-lhe, de repente, um crânio, enorme, desdentado, sem queixo, sobre a insólita almofada de cetim. E vai agora coroá-lo absurdamente com uma coroa de ramo de oliveira. É o anjo da nossa perdição, poder e glória.

Porém, amemo-los aos dois anjos. O primeiro sarar-nos-á a alma do abandono, o segundo adorna-nos os ossos.

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Como a história geológica da Terra, a história dos pássaros no meu jardim é a dos lugares que se uniam ao Tempo. Primeiro, na manhã translúcida, nos fundos dos canteiros, na erva, sob as copas, cantavam os melros o hino de finos assobios e de soluços. Depois, no torpor da luz plena, os pardais, de haste em haste, redobravam em coro um canto grave. Os periquitos, pelo descer da tarde, rejubilavam, num trilo entrecortado por gemidos. No crepúsculo, enfim, as andorinhas, negras, doridas, gritavam o desespero de cada dia.

Tudo era assim, quando vivi.

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Uma vez mais as andorinhas voltam ao poema. Nunca como hoje, este ano, haviam assim voltejadosobre o círculo do tanque. Voltam, deste modo, ao verso que as vê.

Equivocadas, antes, bebiam em Maio a água negra de um largo fosso infernal. Na verdade, num turvo Maio da alma, na água quieta.

Nesta estrofe, aqui, as andorinhas são riso, em círculos concêntricos, que faz vibrar a água, com o voar dos vultos, escolhem, agora, o tanque mais translúcido, a hera mais ágil e as rosinhas trepadoras que tentam apanhá-las. Na hora do pôr do sol, surgem e levam-me até ao seu poema.

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NO LARANJAL

O caseiro tem um lugar cativo no laranjal, que não é o da memória, mas o da suspeita, tal como os lugares dos vivos. Por exemplo, se tu estás, vejo-te porque suspeito de que a tua presença veio. Suspeito de mim porque te reconheci. E tão grande alegria dão os vivos quanta os mortos, quando, como o caseiro, pegam na enxada ou na navalha, aparam um pequeno ramo, para a enxertia. Tu, meu amante morto, vieste também, porque há tanto tempo suspeito de que a tua presença, agora insubstancial, não caberia nunca na memória. Fosses tu um homem dos ofícios rurais, e ainda habitarias os campos, não, nunca, na memória, mas aqui. Ou tal como os outros mortos cuidadosos, em corpo visto, na luz reconhecida, nesta suspeita que recebo do real, como se eu tentasse entender uma pintura eterna.

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Para N. G., R. B., L. N. J., C. de O., L. M. N. e os outros que já viveram

Tantos poetas morreram, em minha vida, antes de mim, não só no sangue ou só na carne, mas na portuguesa língua. Deles fica a obra que fizeram. Todavia vocábulos, para sempre insonoros, ou no futuro incriados, demonstram que os poetas todos morrem sempre mais na língua.

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A VOZ DA RÃ

Com o meu corpo de rã entoei a literatura, o real e o divino, louvando a auréola de gotas que acorrentou meus pulsos. Amando as palavras ecoadas pela contracção da pele, pelo amor, que da fauce me saiu nos versos, como se de papel toda a água. Como rã, vivi só, e em segredo louvei cada vez mais alto o Verbo que me deixa ser, para não ser.

*

Se perante o sujeito zoomórfico dos poemas, alguns leitores, entre eles exegetas, não me consentem alguma vez ser poeta, terei de reconhecer que é a hora de ser, soluçando, rouca, solitária habitante do paul, rã cantante, poeta inútil.

*

Aquele que vê e descreve visões e alucinações

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SED IN ARCADIA

Houve um tempo em que o tempo passava passo a passo, tal como saía da boca lento o bafo contra a vidraça, tal como um dedo escrevia nessa bruma devagar o nome das vagarosas sílabas mais longas do que o horizonte por detrás das janelas. Tão plano, tão vasto, o espaço ia, devagar, também, até ao mar. E o mar vinha comigo até ao lago dos juncos e dos peixes, que nadavam entre as minhas mãos tão demoradas. Onde estive, quando esperava o antigo carro do leite, como se ele viesse do passado? e depois o de outros ofícios vagos que eu conhecia? Como vivi, ao chegar até mim o carro do petróleo, ou o passo do carteiro junto ao portão de ferro, de abrir tão atrasado, que a suave mão do carteiro vinda da feliz Arcádia, que eu já amava, tocava tantas vezes o sino quantas as pancadas do velho metrónomo da minha vida?

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Se o sujeito é fitomórfico, nos poemas, sou cúmplice da minha mutação, melhor dito, sou de caduca folha em consciência. E nem assim, com tão longa paixão na Natureza, nenhum leitor, o único, o amado, me trouxe o louro e a coroa.

*

Tanto com a língua e os olhos delapidei o real — incluindo os livros onde está descrito e dito vezes várias — que um dia tive de juntar os restos e ligar com linhas as sílabas que, aliás, no real, como as coisas, estão ligadas. Por vezes, ao olhar o real, uma sílaba quebra-se e cai no fundo oco.

Os críticos, porém, raça de leitores, o Verbo os bendiga, sem olharem em si a razão intimíssima, viram as minhas sílabas mutiladas como a miséria do amor de quem vãmente ama.

*

Toda a literatura está não lida. Toda a literatura foi traída. E, além de sua natureza sempre nula, no futuro mais será perdida.

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de rãs, insectos, cães, hipócrita leitor de si, seu semelhante, é o escrevente ínfimo. Conforte-o a Natureza-mãe, se os seus exegetas ao menos lho consentem.

*

Versos, muitos, para finitamente alcançar conhecer as coisas próprias. Sendo como aquela rã poética que invejou o touro e de finitude estoirou.

*

Os largos anos em que sorvi lodo para dessedentar poemas são desamados. Deves punir-me, tu, leitor, pois os mais subtis e estultos animais foram, na fábula, as rãs, e os poetas que de seu dolo fazem os poemas.

*

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NA MINHA QUINTA / À ROMÃZEIRAQUE ESTÁ A SECAR

Todos os diálogos acabam no silêncio, mesmo o murmúrio entre dedos e folhas, quando o avesso da mão roça a grande Natureza manifesta na árvore.

Era uma romãzeira em flor e fruto, segura do seu reverdecer, loquaz. Aos periquitos, na larga capoeira defronte, respondia com o júbilo da mudez.

Mas ante mim, que a cantava e canto, ela deixa-se estar como está um surdo junto de um cego trovador lírico, até que ambas aceitemos o fim.

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Também o papel, que hoje em belíssimas folhas se folheia, entre os dedos humanos, será roído um dia.

Outra matéria nova e, por momentos, não vã há-de captar as vozes dos poetas bardos, de ouvidos mais atentos aos sons sonoros.

Assim os meus versos são o meu póna poeira dos livros já delidos.

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nas montras eram também sinais da imaginação. E a linha nas mãos da costureira assim imaginada era.

*

Tão devagar cosia pelo traço do giz a máquina que os pés moveram balançando quanto os meus olhos devagar seguiram o traçado dos pontos e o meu espanto de ver a ordem surgir dos riscos soltos.

O rosto atento caía sobre o pano que pouco a pouco me tomava a forma do meu corpo tocado pela luxúria de tão belos cetins, veludos inverosímeis e, como tudo o que a memória gera, fontes de dores.

*

O tépido calor cobre-me por fora de tules em flor. As folhas do loureiro ridentes assemelham-se ao meu vestido de verde cassa. Agradeço, pois, às bocas de parentes os nomes ditos.

*

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A ROUPA

Aquela saia roda como o topo do moinho de pás, o que em mim confirma agora que o vento me reveste.

*

Quando depois do nascimento me vestiram, a roupa então em mim resplandeceu. Mas estava nua, sem cambraia ou a memória simples dela nos sentidos. Nua e solene, com a roupa alheia em torno do meu corpo. E ignorava valor, matéria e as pompas que entregam roupas e versos ao comércio. Acreditava só que o gesto amado de me cobrirem de panos ao nascer seria a minha glória.

*

O pequeno velo de roupa é o da imaginação. Vestiram-me para me velar, como janelas afloram nas casas ou como a palha envolve medas. As escassas vestes

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CATÁLOGO BOTÂNICO DA PRIMAVERA

Principia a estação, com o seu ruído feito de sons de pássaros, que eu decifro. Mais difícil sinal são as cores várias, que despontam cada dia e eu vejo, ano após ano, iguais e singulares. Primeiro, um pouco além, o lírio roxo, que me traz consigo a criança viva que o colheu e, tal como a um barco, o fez singrar, só, roxo, macerado, na água que descia por um rego. Um lírio com a mão que o cortara já decepada e presa ao passado, sem o seu corpo. Vejo as três pétalas assim a confundir-se com os três dedos, como se as nossas mãos por vezes vivessem mais do que os passados corpos. Depois, foi esta a manhã das camélias brancas, cravadas com dureza em rostos, que, ainda de olhos fechados, tocam as corolas em busca do seu cheiro. São camélias mortais, e ainda atraem a face dos mortos, que algum dia as bafejaram com o seu hálito próximo. Manchas brancas de círculos informes, cada círculo contendo outro círculo.

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Todas as roupas usadas próprias do Verão são aquele vestido único, porque me haviam dito que ao entrar pelos olhos ele me cobria de fulgor.

*

Com a saia de tobralco leve passei entre as nossas hortas, águas do poço, coisas da quinta tão diversas todas. E amei cada um dos vários nomes, e também as palavras especiosas que na retrosaria designam o belo fio e aquelas que me mostravam os tecidos em sequências de alucinações novas.

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dando-me inteira à nova Primavera. Recebo-a, olho-a como um visitante, aliás porque, na sua latada, ela está perto do meu sólio. Rosa de repente vista, primeira rosa na natural frescura. E, também, o vento lhe tocou, e já a abrem aquelas mãos que haviam sabido lançar barcos de pétalas aqui. Junto da rosa só cabe esta boca, pronta a beijar com amor as suas línguas ou a beber a linfa que é da abelha. Havia uma boca assim, sem a face, a respirar ao ritmo dessa rosa, que hoje nasceu fadada para ser a sempre minha, única, igual. A cor da rosa mostra-me o lugar daquela boca, e eu quero sentir-me aqui e ali. Pois vejo-te, rosa, e vejo a outra, a que foi beijada. Assim, não posso mais do que olhar. Rosas terás em redor, solitária.

— Eis os melros, rasteiros, que insistem em tornar-se evidentes, saltitando sobre cômoros de terra. Mas hoje perante o mistério das flores súbitas, são como eu, embora não como eu, com a negra plumagem que os cobre. Sobre a laje do poço correm dois,

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E, no centro de cada rosto, apenas, em cada Primavera, duram os olhos.

Já caem as glicínias, de alto, sobre o esplendor do crânio ou do cabelo. São cachos também roxos, em manhãs de assombro, por cada dia mais trazer um diverso cacho pendente. Misturam-se com a cabeleira antiga estes cachos de glicínias de hoje. Mas são absolutos, novos, singulares, os momentos com a sua luz e cor, os seus insectos e as suas sombras. Alguém que os colhera os fez pender entre cabelos fecundos, de orelhas, adornos para os filhos da Terra. Estão, depois dos lírios e das camélias, para salvar, em cada dia novo, o viço dos cabelos, mais eternos do que a já sepultada carne. Carne de alguém que tinha um nome seu e que se oferecia, com deleite, ao Tempo. Só pode ter sido a de parentes, dúbios coabitantes do ser que relata esta actual Primavera, com saudade. A Primavera, que me surpreende somente por estar a ser olhada.

Se aquela rosa rubra, na manhã em que surgiu, logo fosse ignorada, eu não estaria aqui neste papel,

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Abrem-se na aurora, comovidas pela unção da luz, porque se chamam páscoas. E são amadas, benditas. Anunciam a passagem eterna da luz sagrada entre noite e aurora. A aragem devagar as sacode, finas folhas e hastes a dançar, em pleno dia de êxtase, no sono das corolas exaustas pela noite.

Noutra manhã, eu vejo, deslumbrada, a poalha da brancura florida que envolve os troncos velhos da ameixoeira, flores que o ar conhece e o vento leva, há muito, para lugares e tempos. Poalha em que não estão vultos humanos. Apenas um nó de sombra, atrás de cada flor, mostra a imagem de antes ou a espessura de um fruto futuro. São as flores do jardim que guardam o enigma, pois cada espécie vista tem em si um sinal visível de outra estação. Flores solitárias que, uma a uma, vêm ligar-se a fragmentos de vida antiga.

— Repetem-se os melros plo empedrado, a debicar sempre nas pedras húmidas, sob o fascínio do cálido dia. Tão nítidos, tão certos, a presença deles não cabe ao lado de uma flora rara, a desta Primavera em narração.

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negros contendores no mesmo sprint, músicos de assobio que eu bem entendo.

E, próximos da rosa, mas alheios, estão a nascer os narcisos, de amarelas frisadas campânulas e de sépalas perto do solo, que se elevam na luz de cor. Também uma figura de mulher genuflectida as colhia, e uma criança, oscilando no riso, quer ter para si uma flor solar. Junto aos eternos matizes das pedras, a cor dos narcisos, nítida, clara, evoca esses desejos saciados em tempo ido: o da mulher, prendendo-os no seu seio, e os da criança, seguindo o movimento que pertence ao tempo. Hoje, como hei-de separar os corpos da haste e da corola dos narcisos, pois a mancha amarela tem a forma humana contida em si, curva, erecta. Salva-me o vermelho vivo da rosa, que atrai a cor intensa dos narcisos para contraste, outra tensão, que eu revivo, amando o beijo da rosa e a prece ao sol destes narcisos. Mas outra prece, hesitante, desponta ao raso dos terrenos, dispersa, ágil. Flores que vibram esguias e tácteis, de um vermelho ardente, submissas como pálpebras, ao cair da noite.

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escondido no seu florir imenso. São árvores solitárias, constantes na pura relação com a luz solar. E, talvez por fim, neste infinito, uma inflorescência de gladíolo rosada, erecta, se tenha aberto. Vem de um único bolbo, soterrado, está só, entre a verdura vária. Junto de si viveram outras hastes também de gladíolos, há muito tempo. Braços levaram-nas juntas, consigo, em braçadas de amor e de alegrias. Os braços são as linhas de matizes, unidas em redor da cor suavíssima das flores de hoje, a florir aqui. Cada manhã me põe diante dos olhos nova forma de cor e luz e, às vezes, figuras esbatidas de outra estaçãoigual, porém perdida já, inane. — Melro audaz, que te aproximas mais de mim, ou do que eu fui e agora sou, não vejas que eu represento o Tempo. A tua colheita de grãos e de larvas seja o teu mais subtil pensamento!

E, afinal, entraste no meu espaço, num intervalo entre o concreto e o abstracto.

Carcavelos, Março, 1997

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Também os loureiros em flor, visíveis ao longe como nuvens, são visões completas, com a floração e as folhas na mesma cor de sempre, indecifrável. Alguém pega no ramo do loureiro, num verso clássico, e o dá a toda a humanidade, pois a memória da poesia passa de poeta a poeta, para o mundo. Se o meu relato é vivo é porque olho c’os outros a Primavera, e nesta Primavera eu vi melhor, presa do assombro do que é novo e antigo. Os meus olhos, o espírito e as mãos pegam em cada imagem de uma flor, em cada dia de visão e ganho. Mas a perda, enfim, virá somar tudo igual a si mesmo, uno, passado. E, de repente, uma flor de palavras muito branca chega até mim, e é esta estação, nesse florir de goivos. Uma carta traz-me inscrita as palavras de Eugénio, goivos, e o seu eflúvio. Esta transcreve-a ele de Pessanha, diante de tão nítidos canteiros. Grata, prendo-me a esses elos vivos da corrente de vozes, que se oferecem aos ouvintes, depois de recolherem o real, o findo, o que foi amado.

Aqui, depois do loureiro, floriu a acácia, também sem qualquer vulto

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encastoada na substância do mar, agora que puseram o mar todo a teus pés, e ao dizer-te a palavra, alguém a poisou e ao mardebaixo dos meus passos. Alguém é outra voz, além das vozesocultas, maternais, de outrora. Alguém não é um eco, é a terceira fala, mensageiro sem início, apenas boca presente, junta, que veio nascer contigo. Nunca teu gémeo, ou duplo, apenas de um lugar, ali, alguém no espaço, contigo, a ouvir.

Flosa, o teu canto é confuso como o de minha mãe. E já uma vez, num verso, eu te pus a cantares-te a ti mesma, mas agora é a mim que me falo. Este é o mar, a fala de quem chamar, a meu lado, o mar. Terceiro nome que tem a força para separar, de um lugar de mães, o espaço lateral de outro, de outrem, o tacto do mar, trocado pela tua mão que tacteia. Cantas, ouvido das palavras, tacto, flosa, pássaro cantante, depois de teres sido o primeiro pássaro. E tu, terceira fala, também estranha, equívoca, quando tornas

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TEORIA DA REALIDADE, TRATANDO-A POR TU

Ouves cantar a flosa, e erras, não é ela, era o mar antes criado, era a galáxia, o teu cérebro, aquela que já ouviste ao aprenderes a fala. Esta ao menos tiveste de a ouvir, a do primeiro nome, no regaço da tua mãe equívoca, mulher e voz, mulher e luz, seio, rumor, adejo. Se ouviste cantar a flosa contra o fundo murmúrio do mar, foi porque também depois o bebeste na matriz da carne ou na dos astros — a tua mãe de berço, a Natureza — no seio falador, no mamilo astral, das palavras mar, murmúrio.Tão roucas como a palavra flosa, as do primeiro dia da tua fala, dia a dia, quando antes vagias tal como as tuas mães, no berço, antes do seio, antes do grande Cosmos.

Ainda estás muda, mas ouves cantar um nome, ouviste já dois nomes, tu queres dizê-los, tacteias, sugas, redizes. A primeira palavra já a dizes,

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E o inteiro ouvido engendrou a máxima palavra Portugal, tu, realidade, meu poeta. Meu poeta, quem? Aquele que fala com as assonâncias, analogias, o uníssono e o tacto, os nomes naturais matrizes guardadas por sua mãe. O eu mais rápido, criança que saiu do próprio berço e se torna, ela mesmo, elemento, pela fala, ao ouvir palavras, das três palavras minhas. Tão de repente, realidade, tu poisaste o teu pé nas pegadas do mar, disseste águas, exorbitaste dos olhos, e repetiste: lágrimas. Chamaste a coroa das palavras, o nome de todas as palavras, neste lugar: a língua, no tempo de Portugal.

Tu, realidade, és nome de ti e do que os poetas fundam, depois de terem a fala perfeita. Tens na inspiração do ar o a total que une em si a boca dos poetas tal como, em mim, o Camões ao de Estugarda. Este fundou a fala já falada, o canto refeito, que é legado. Aquele leu o já lido, dobrou o antigo canto clássico. Mas,

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a tua fala um som. Perto do mar a tua boca toca-lhe e toca-me.

Três são as palavras comigo — a flosa, o mar, e tu. Estou ou sou debaixo do fascínio deste tríplice tudo. (Agora tenho em mim o tempo instilado pela fala mútua e pelo ouvido.) E com as três palavras posso ouvir essa poderosa voz, que era, além, um poeta, depois de, como eu, ter bebido o leite da palavra. Foi o mar.

Foi o mar, ó mar salgado, e quantas das águas serão as lágrimas de Portugal. Agora tens de saber o que podemos ser: águas, lágrimas, o Portugal. Tens de tactear os meus olhos com o toque do mar. Era criança, e de súbito o mar foi o sinal da palavra nova, o ser da água ou das águas, similares no a vivo, a mais audível nascente do alfabeto, o eco.

E os meus olhos mostraram também ao mar as lágrimas com o a de sal.

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Inspiras, expiras. Os versos só são o que os poetas fundam. Flosa, mãe, mar, em que versos somente sois as palavras minhas? Tu deste-me as palavras novas da tua fala escassa, calada pelo escorrer do leite. Depois, a língua mudou-te as dimensões, e cada verso é uma linha tua, em que eu te fundo. O que sou, ao chegar a um limite da fala, a um verso, que os poetas fundam? Mas deixo o abstracto, a galáxia, o cérebro e até um verso. Estou no simples lugar do mar, velha água, muralha a bordejar-te.

Pelo plano do mar correm crianças, como eu, na sua fala, e os barcos estão a ser chamados por um nome. Toda a longa costa continua Portugal, em lágrimas de sal. Vai alto o sol, renova-se o real pelos meus olhos, fitos na Graça do mar, que é derramada sobre esta língua e os versos. Balbuciando, assim os poetas nascem das mulheres-braços, que os lançam no concreto, no lúdico mar.

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ó minha palavra muda, pensada, detém-te. Já falas nos poetas, porém, em ti, só tens o ar, além das tuas três palavras. Depois da voz cansada, inspira o mar, repara nas marcas da água. Narravas.

Quando tu me tocaste, no mar, assinalavas as tuas marcas, as palavras: águas, ó águas! Depois das três palavras, deixaste--me falar comigo, e eu, cansada, palavra após palavra, ouvi um poeta, mais dado à realidade, a ti, ó realidade! Este era, em si, sem nunca saber do de Estugarda. E dele, por ele, refundei a língua em que Portugal me falava: mãe tão longe já da minha fala, mãe mutilada, porque a fala-língua já não é clara, e aquelas palavras, as três de toda a realidade, agora são as estrofes dos meus versos. Minha realidade, tu não sabes como o Camões, nos seus dez cantos,te deixou presa entre dois tempos.

Ouviste a flosa ser cantada, a cantar-se. Agora estás rodeada desta língua que nasceu do a.

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Realidade, tu tens o teu princípio, estendes-te, avolumas, estás, mas não recuas, nem que os poetas te chamem à sua língua antiga.

Sim, os clássicos chamaram-te, e eu li que antes da voz dos clássicos, a Via Láctea, ninho de galáxias, o Cosmos, o Caos, estiveram mudos. Falaram-te os poetas gregos, poetas lidos. Ler faz embater a fala nas palavras que são ouvidas no ouvido. Ouves palavras-eco que vêm para mim de novo, se essas crianças repetirem crianças. Elas levam o balde cheio de água para encher a maré, levantam a barbacã de areia, seguindo o plano dado pela voz de alguém do meu início ou de um livro de páginas abertas rente ao mar. Por vezes, tu, realidade, és um livro, aberto numa página com o mar. E a pura mãe folheia-te?

Falemos mais dos gregos, que amaram o mar com a boca do canto dos aedos e da escrita, e com os barcos, que apontavam pelas linhas dos códices, na singradura.

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Que, em jogos, seguem as pegadas de outros, que as seguem de outros, já tu sabes. É a terceira voz, que te revelo agora ser a voz de poetas, seguida marca a marca. Juncaste a praia do a das palavras portuguesas, tu que conheces já o primeiro som da vida.

O sol brilha, nos telhados do mar,ó meu coveiro, e uma criança, na cova que cavou, vazou o mar. Não eu, mas outra criança-mundo a começar. Os baldes da infância, as bolas, os arcos, são jogos de palavras. Mas aqui, no chão da praia, se eu disser a minha língua solitária, crianças abandonam o seu riso, crianças duvidam do jogar. Calo-me, e toda a praia está entre tempo e lugar, solar, vital, grega, pujante. Vem, e os banhos teus, realidade! Também aqui estarás, se eu me calar, a ver mãos moldarem o mar, ou se algum poeta loquaz se calou desde a idade clássica. Mas tu erras, temente não queres sair jamais fora da minha boca, e se aceitas a dos clássicos, apagas-lhes as marcas.

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Dela recebe a fala com a voz, as palavras, altas, irreais. Mas não me oiças negar-te, realidade do mar, palavra minha. Criança, a tua mão de areia construiu a praia. Os teus dedos sonoros chamam-me agora. Chamei-te, outrora, eu, no transe do som a pousar no meu mar. Aceita a água que vem para os teus pés, recebe a luz, colhe as pequenas algas. São-te dadas pelo passado tempo, aindarecordado, em ti, por mim, realidade.

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Ó realidade homérica, tu és pelos tempos traída, pelas línguas, e eu, que medeei da fala para a leitura, eu leio as epopeias para ti. Se foste tu, digo-te, a primeira após a fala, e a palavra de poeta seguida pelos poetas, seguidora de todos, quero louvar-te a ti. Sabes o que é canto, tu? A medida contada? A harmonia flui do meu ouvido, o falado pela ordem das sílabas, as pausas, vogais entoadas. Som, palavra dada, do abstracto ao tacto do meu ouvido. Manhã, infância em que a mãe de luz embala as palavras no canto. Afinal, mãe tripla, a do leite, a da fala, a do número. Eu, depois desses poetas, sei, tu não, que recupero a perda da nascente da tua água, a mina da voz, soterrada. Calada mãe, geraste tudo o que é ambíguo. Este falar, ouvir, ler, cantar, tu não no-los deste, sou eu o artífice deste mar espraiado, da praia que contorna Portugal. Canto o coral do a, o som ritual.

O mar global é como o ar, dá-se a ver na amplidão.

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do farol extinto, em outras vidas que antes narravam que eu era já nascida, quando vos vi, farol, e vos guardei, imagens.

A cor de prata dos vultos é hoje negra, manchas com a noite embebida, tantas vezes co-substancial. É assim que a vidraça anoitece diante dos olhos, diariamente somando anos, minutos indivisos. Mas, cisco no vidro, pela lei da perspectiva, ponto.

Avança pelo estuário, golfinho entre golfinhos, um, o que passou pelo interior de meu corpo, menos vasto do que o mar, menos amplo do que o teu, ó marca preta em vidro tão fosco de impreciso, fosco de haver nevoeiro e esquecimento e fumos.

Recordo-me, reúno vogais, consoantes, de com a testa estar na vidraça a murmurá-las, tão similares em eco, a última, na eufonia de fumos e de bruma. Último golfinho, afinal, diminuto ou imenso que lacerou com o triângulo da cauda as brumas.

Estou no estuário, com rio e mar, onde nós antes estávamos, balbuciantes, entre falar e ver. Depois, um poema houve das doces salinas águas. Mas o farol assente no rochedo, torreões, muralhas, sóis, tudo é o cisco de agora para a unha num vidro.

E não avanço enquanto estiver presa à grua hodierna que arranca as palavras do seu molde de coisas,

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SUMÁRIO LÍRICO

Nesta janela de ver passar os barcos em vidraças, começo devagar a reescrever o mundo quedo que é o único que conheço e vivo, sei e de cor vejo. Ninguém me deu outras formas que não minhas mas deram-me todos juntos o cerne das palavras.

Reescrevo-me a mim própria sem outra alternativa. E recordo-me dos outros de fora da vidraça, mudos mas autores cada um do seu frasear, generosos quando me reconheciam em muitos anos de vida. Devedora sou, mesmo dos idos, de exangues vozes

caladas para sempre nos livros em que as lera. Em tantas vidraças que espelharam caras, olhos de cada olhar de imagens próprias de cada um. Estava no longínquo fundo o mar redito, o sol, os barcos na Barra, que também em vidros estavam.

Passa tu, golfinho, piloto cego, depois cadáver, que talvez me conduzisse entre os barcos da Barra, quando o dorso de prata e o gume passavam nas horas visuais das manhãs de Junho e Julho minhas, de par em par o olhar aberto ao ar do sol do sal.

Imagens que sempre ficais nestas vidraças, emprestai vosso vidro e revérbero à luz

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meu pensamento só, jorrava já em versos meus concitados por esta janela velha, onde somente posso retroceder, página a página, ao longo do meu tempo.

E o tempo não existe quando tudo se reúne. Mas as frases de todos estão no lugar, meus poetas, sendo o olhar sempre o puro tacto, quando o som sai desta boca, sopro, e toca em sons e seres. A faixa solar vermelha é um profundo fundo, só sonoro

e tangível na boca. E morrerei sem lançar um som vivo para África, neste sumário lírico, redito. Satisfaz-me o meu sol vermelho em mês de pouco ver,pois passavam golfinhos antes de ter havido sol assim, e mudamente vistos: imagem tão íntegra lírica

que vai descer à boca em última palavra minha.

Maio de 1998

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quando com os filhos ou amei ou vi a construção civil, numa praceta inócua para a minha vida lírica. Pois nada equivale ao vidro da vidraça do mundo.

Tenho cada vez mais modos de dizer das fileiras de golfinhos ou o primeiro assombro. E entretanto por detrás da vidraça passam na janela, onde o ouvido houve no canto a sua homófona, ouve a melancolia dos silvos de eu chorar os barcos dos pilotos,

únicos que navegaram no sal deste choro antes. Qualquer vidro ressuma por dentro o seu frio exterior. Barcos para África, entre torre e farol, levarem vi vil guerra, armas de dor, morte poeirenta. Mas hoje é a doença a singrar nessa rota pobre

que na vidraça perpassa, como golfinhos mortos que voltassem, em cortejo, a serem vistos perdidos sob ti, Cassiopeia, que ainda estás aqui no vão da noite. Estás a ter sido, a perdê-lo, a recuperá-lo, tu, o eco do mar, quando te vi estar. Constelação

que no quadrante do céu, como em ardósia coloca a sua letra, desde que soletrei no vidro o mar. Tergiverso do campo para a cidade. Meu sonho apenas poema, como todos fatal porque me destina. Tenho de compilar cidade, guindastes, pomba, olhos

desses filhos discípulos do meu olhar. Imóveis ficámos todavia noutro poema. Mas o anterior a filhos,

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DAS LÁGRIMAS

A pequeníssima aranha assusta a criança que eu estava a olhar, e chora. «Meu duplo filho, não temas a intensa labuta da caçadora de insectos. Ela estende uma rede, tão frágil que a podes romper com o menor dedo. A menos que, antes do gesto, encontres a beleza do tecido luminoso, quando a aranha ofende o Sol roubando-lhe alguns raios, ou a beleza da água que ela retém, como diamantes sem preço, rosácea de lágrimas.»

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DOS NOMES

Nomeamos os nomes e nunca as criaturas ou as coisas. Essas recebem apenas o eco. Todavia tornam-se únicas e são vistas no seu próprio tempo.

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MADRESSILVAS E TÍLIAS

A uma janela assoma a clara madressilva; a outra, as leves, verdes folhas da tília.

Disputam o meu olhar. Numa hora lutam com varas de penumbra. Noutra, ferem-se em tudo o que cintila. E no fulgor nocturno entram nos quartos, vencendo a negra luz que avança para os meus olhos.

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MEIO-DIA / MEU DIA

Na pele sinto o percurso das ondas,mais amplo e tenso do que o périplo do sol.E, no entanto, este vai-se gerando a si mesmo,a cada momento, até à placidezdo meio-dia. São feitos de horas, contínuas, eternas,aqui, na ria, os dias. Hoje,meu dia, o coração e o dia rejubilam.

Agosto de 2000

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ÍNDICE

MORFISMOS (1961)Grafia 1. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7Grafia 2. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 8Tema 4 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 9Tema 6 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10

BARCAS NOVAS (1967)Barcas Novas

Barcas novas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11Inês de manto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13

Nome LíricoO nome lírico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 15Também da chuva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16Pedra em expansão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 17

(ESTE) ROSTO (1970)O Ar dos Tectos

Sítios de campo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 18O ar os tectos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 19As obras nas fornalhas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 20No chão dos olhos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21A voz, crescente . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

A Vez das VilasO miradouro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Pungente o VerdePungente o verde . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 24

Germinações1.ª (Agricultura) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 26

Dizer Avis (Ave)Dizer avis (ave) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27Rosas, rosas e lírios . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28(Este) rosto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

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35 [Quando rebenta a flor nova no] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7037 [Embrenho-me na área branca da noite] . . . . . . . . . . . . . . . 7139 [Quando eu vir vaguear por dentro da casa] . . . . . . . . . . . 7255 [Penso a minha vida]. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 74

14 POLISSÍLABOS SOBRE ANJOS (1978-1980)Anjo enlouquecido pelo tempo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 76O anjo marinho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77Anjo de papel ou de água? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 78Anjo de olhar fixo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 79

ÂMAGO I (NOVA ARTE) (1982)Gota de água . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 81Lince. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82As cartas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 83Estuário de um Tejo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84Graficolíquido . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 86Albufeira I. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87Parque infantil. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88Er . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 89Albufeira II. Serpentomaquia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90Súbita e clara . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91Vem noite . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 92Arte-vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 93Poética postúltima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95Programática . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 96

ENTRE OS ÂMAGOS (1983-1987)Leitor, vês um peixe? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 97Meus ecos de Luiza N.J. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 98

TRÊS ROSTOS (1989)Âmago II (Nova Natureza)

O podador . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 100O sítio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 101Um raio de sol está a cair na abside da Sé de Lisboa . . . . . . . 102Quod nihil scitur . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 103

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ERA (1974)A Era

Modo histórico da cidra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30Índice

Próximo do camponês . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31Hora Obscura . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32Autor fragmento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33O texto de Joan Zorro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34

NOVAS VISÕES DO PASSADO (1975)O gnomo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35Inscrição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36Hipótese da morte de um irmão de António Ferreira . . . . . . . 37A minha vida, a mais hermética . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

HOMENAGEMÀLITERATURA (1976)Asas malignas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40Tábua das comparações . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 42Homenagem à literatura. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43Nova ocidental . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 47

MELÓMANA (1978)O cedro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50Junto das correntes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

NATUREZA PARALELA (1978)Colina. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55Cigarra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56Casas. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58

ÁREA BRANCA (1978)Rosas

1 [Considero à vista o poema] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 609 [O tema das rosas não é ainda estéril] . . . . . . . . . . . . . . . . 6210 [Admiro a tecedora porque tem consentido]. . . . . . . . . . . 6417 [Escrevo como um animal, mas com menor] . . . . . . . . . . 66

Sinais de Vida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34 [Roço a minha testa pela luz poente] . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68

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EPÍSTOLAS E MEMORANDOS (1996)Epístola para os meus medos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 135Epístola para um caramanchão coberto por madressilva . . . . 136Memorando, estando no delta do Danúbio . . . . . . . . . . . . . . 137

CENAS VIVAS (2000)Elegíacos

[Ao raiar do sol, ainda dormia,] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138[Amor é o olhar total, que nunca pode] . . . . . . . . . . . . . . . . 140[Fui criança, indo por um carreiro,] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 141[Na casa antiga, cada um de nós levava] . . . . . . . . . . . . . . . . 142[Nada tão silencioso como o tempo] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143[Como se explica, Hípias, que os antigos sábios] . . . . . . . . . . 145[O anjo de Luini é terrestre,] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 146[A alegria das coisas não é a posse] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147[Uma vez mais as andorinhas] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148[Como a história geológica da Terra,] . . . . . . . . . . . . . . . . . 149[Tantos poetas morreram, em minha vida,] . . . . . . . . . . . . . . 150No laranjal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151Sed in Arcadia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 152

Os LouvoresA voz da rã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153Na minha quinta / À romãzeira que está a secar . . . . . . . . . . 157A roupa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 158

As PoéticasCatálogo botânico da primavera . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161Teoria da realidade, tratando-a por tu . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168Sumário lírico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 178

AS FÁBULAS (2002)Dos nomes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 182Das lágrimas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 183Madressilvas e tílias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 184

A MATÉRIA SIMPLESMeio-dia / meu dia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185

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Poemas RevistosA casa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 104Imagem minha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 105Auto-retrato quando banhista. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106Natureza morta com louvadeus . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 107Analogia silenciosa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 108Moinho-mar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109As galinhas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110Meio-dia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111

Arómatas & EcosArómatas

A rola. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 112Os coentros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 113Quarto interior. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114

EcosMnemónica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115Verso vão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 116

TRÊS LIVROSPoemas Galaicos (Galiza 50)

Beira da estrada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 117Poesia nítida . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 118Pão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 119

EremitérioTâmara . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120

SetembrosO sopro. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121

CANTOS DO CANTO (1995)Canto das imagens. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 122Canto do canto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124Canto dos meus pés . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 126Canto da chávena de chá . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128Canto da arte breve . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 130Eu canto a chuva, a terra, o verme . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 132Canto de Orfeu . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 133

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E HERDEIROS DE FIAMA HASSE PAIS BRANDÃO (2010)

EDIÇÃO 1443, OUTUBRO 2010

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