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Leia o texto “Janela”, de Carlos Drummond de Andrade, e verifique as manifestações da língua na construção das imagens, tendo em vista que o poema apresenta-se como uma pintura vista da janela por um sujeito lírico que, do lado de dentro, coloca-se em conflito com as ações contrastantes e harmônicas da natureza. JANELA 1. Tarde dominga tarde 2. pacificada com os atos definitivos. 3. Algumas folhas da amendoeira expiram [em degradado vermelho. 4. Outras estão apenas nascendo, 5. verde polido onde a luz estala. 6. O tronco é o mesmo 7. e todas as folhas são a mesma antiga 8. folha 9. a brotar de seu fim 10. enquanto roazmente* 11. a vida, sem contraste, me destrói. ANDRADE, Carlos Drummond. Lição de Coisas. In:_____.Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1983. p.390. *roaz: que rói, roedor, destruidor. (asterisco e verbete nossos) A.a) O caráter predominantemente descritivo do poema é bem determinado pelos verbos de ligação e intransitivos. Esses verbos contras- tam com o único transitivo direto, o qual im- põe um teor narrativo ao discurso poético. Você concorda ou não com essa afirmação? Justifique sua resposta, valendo-se das ima- gens verbais presentes no texto. (1) A.b) No primeiro verso do poema, ocorre um caso singular de concordância nominal. Como foi elaborado esse arranjo lingüístico e que efeito de sentido ele provoca? (2) Resposta A.a) Sim, existe o teor narrativo no poema, assen- tado em uma antítese entre os nove primeiros versos, que realçam o caráter descritivo, e os dois últimos, em que o eu-lírico se manifesta. Também pode-se confirmar o tom narrativo pelo título "Ja- nela" que salienta o fato de o poeta já conhecer a natureza de tanto observá-la; constatando que ela é cíclica e se renova. Por outro lado, reflete sobre si mesmo e se reconhece finito. A.b) Trata-se de um neologismo criado a partir do processo de derivação imprópria em que o subs- tantivo domingo é tomado como adjetivo, daí con- cordar com tarde . Expressa o sentido de modorra ou tédio , sensações costumeiramente associadas às tardes de domingo. Obs.: a diagramação dos verbos possibilita a lei- tura de dominga como verbo. A FGV fechou a questão como "concordância nominal". B.a) Identifique as figuras de linguagem que atuam nos versos transcritos a seguir e analise as implicações de sentido nelas existentes para a significação do poema: “Algumas folhas da amendoeira expiram em degradado vermelho. / Outras estão apenas nascendo, / verde polido onde a luz estala.” (3) B.b) A palavra “roazmente” realça a oposição entre a natureza e o humano. Descreva o pro- cedimento lingüístico que está na base da composição da palavra e como seus sentidos figurados determinam a construção dessa oposição. (4) Resposta B.a) Em “folhas de amendoeira expiram”, “estão apenas nascendo”, “degradado vermelho” e “ver- de polido” há duas figuras de linguagem: a perso- nificação e a antítese. A utilização da personificação confere um atributo essencialmente humano aos elementos da natu- reza e constata a consciência do eu-lírico que se reconhece efêmero diante do processo infinita- mente cíclico da vida, contraste marcado pela uti- lização da antítese. B.b) "roazmente": formou-se advérbio a partir do adjetivo roaz e o sufixo -mente no processo de derivação sufixal. O advérbio realça o contraste entre a natureza em seu “brotar sem fim” e a visão destruidora que o poeta tem da vida, reafirmada pleonasticamente em “roazmente a vida, sem contraste, me destrói ”. Português ETAPA Questão B Questão A

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Leia o texto “Janela”, de Carlos Drummondde Andrade, e verifique as manifestações dalíngua na construção das imagens, tendo emvista que o poema apresenta-se como umapintura vista da janela por um sujeito líricoque, do lado de dentro, coloca-se em conflitocom as ações contrastantes e harmônicas danatureza.

JANELA

1. Tarde dominga tarde2. pacificada com os atos definitivos.3. Algumas folhas da amendoeira expiram

[em degradado vermelho.4. Outras estão apenas nascendo,5. verde polido onde a luz estala.6. O tronco é o mesmo7. e todas as folhas são a mesma antiga8. folha9. a brotar de seu fim10. enquanto roazmente*11. a vida, sem contraste, me destrói.

ANDRADE, Carlos Drummond. Lição de Coisas.In:_____.Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Aguilar,

1983. p.390.

*roaz: que rói, roedor, destruidor. (asterisco e verbete nossos)

A.a) O caráter predominantemente descritivodo poema é bem determinado pelos verbos deligação e intransitivos. Esses verbos contras-tam com o único transitivo direto, o qual im-põe um teor narrativo ao discurso poético.Você concorda ou não com essa afirmação?Justifique sua resposta, valendo-se das ima-gens verbais presentes no texto. (1)A.b) No primeiro verso do poema, ocorre umcaso singular de concordância nominal. Comofoi elaborado esse arranjo lingüístico e queefeito de sentido ele provoca? (2)

Resposta

A.a) Sim, existe o teor narrativo no poema, assen-tado em uma antítese entre os nove primeirosversos, que realçam o caráter descritivo, e os doisúltimos, em que o eu-lírico se manifesta. Também

pode-se confirmar o tom narrativo pelo título "Ja-nela" que salienta o fato de o poeta já conhecer anatureza de tanto observá-la; constatando que elaé cíclica e se renova. Por outro lado, reflete sobresi mesmo e se reconhece finito.A.b) Trata-se de um neologismo criado a partir doprocesso de derivação imprópria em que o subs-tantivo domingo é tomado como adjetivo, daí con-cordar com tarde. Expressa o sentido de modorraou tédio, sensações costumeiramente associadasàs tardes de domingo.Obs.: a diagramação dos verbos possibilita a lei-tura de dominga como verbo. A FGV fechou aquestão como "concordância nominal".

B.a) Identifique as figuras de linguagemque atuam nos versos transcritos a seguire analise as implicações de sentido nelasexistentes para a significação do poema:“Algumas folhas da amendoeira expiramem degradado vermelho. / Outras estãoapenas nascendo, / verde polido onde a luzestala.” (3)B.b) A palavra “roazmente” realça a oposiçãoentre a natureza e o humano. Descreva o pro-cedimento lingüístico que está na base dacomposição da palavra e como seus sentidosfigurados determinam a construção dessaoposição. (4)

Resposta

B.a) Em “folhas de amendoeira expiram”, “estãoapenas nascendo”, “degradado vermelho” e “ver-de polido” há duas figuras de linguagem: a perso-nificação e a antítese.A utilização da personificação confere um atributoessencialmente humano aos elementos da natu-reza e constata a consciência do eu-lírico que sereconhece efêmero diante do processo infinita-mente cíclico da vida, contraste marcado pela uti-lização da antítese.B.b) "roazmente": formou-se advérbio a partir doadjetivo roaz e o sufixo -mente no processo dederivação sufixal.O advérbio realça o contraste entre a natureza emseu “brotar sem fim” e a visão destruidora que opoeta tem da vida, reafirmada pleonasticamenteem “roazmente a vida, sem contraste, me destrói”.

PortuguêsETAPA

Questão B

Questão A

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Texto base:

“Não tirei bilhete para a vida,Errei a porta do sentimento,Não houve vontade ou ocasião que eu não

[perdesse.Hoje não me resta, em vésperas de viagem,Com a mala aberta esperando a arrumação

[adiada,Sentado na cadeira em companhia com as

[camisas que não cabem,Hoje não me resta (à parte o incômodo de

[estar assim sentado)Senão saber isto:Grandes são os desertos, e tudo é deserto.Grande é a vida, e não vale a pena haver

[vida.”

PESSOA, Fernando. Poesias de Álvaro de Campos.In:_____.Obra Poética. Rio de Janeiro: Aguilar.

p. 382.

C.a) Na seqüência de orações coordenadassindéticas e assindéticas que predominam emtodo o poema, destacam-se, como exceções,duas orações adjetivas restritivas de relevân-cia semântica no contexto. Destaque as duasorações e relacione-as com a significaçãoconstruída no poema. (5)C.b) Nos últimos quatro versos, há um jogode sentidos construído entre orações substan-tivas que pode ser entendido como redução xampliação. Identifique e classifique tais ora-ções e explique os referidos sentidos que elasproduzem. (6)

Resposta

C.a) "que eu não perdesse" e "que não cabem"são adjetivas restritivas que funcionam como limi-tadoras dos termos a que se referem, respectiva-mente, "vontade ou ocasião" e "camisas".As duas orações adjetivas imprimem o sentidonegativo, pessimista, magoado e comprovada-mente de desajuste ("camisas que não cabem")do poeta, sentimentos que perpassam todo opoema.C.b) A idéia de redução é dada por duas oraçõessubordinadas substantivas reduzidas de infinitivo:“de estar assim sentado” e “Senão saber isto”;elas expressam que só resta ao eu-lírico a cons-

ciência da situação. Já a idéia de ampliação ocor-re com as orações substantivas desenvolvidas:“Grandes são desertos” e “Grande é a vida”, queestendem a idéia pessimista para a vida.

REDAÇÃO

Veja, leia e relacione as mensagens-estímuloapresentadas abaixo. Elas servem de suporteà proposta de Redação.

I. Imagem

KLEE, Paul. Uma folha do livro de registro dacidade (1929). Óleo, 42,5 x 31,5cm. Museu de

Arte da Basiléia.

II. Texto I:

COISAS DE CABECEIRA, RECIFE

Diversas coisas se alinham na memórianuma prateleira com o rótulo: Recife.Coisas como de cabeceira da memória,a um tempo coisas e no próprio índice;e pois que em índice: densas, recortadas,bem legíveis, em suas formas simples.

português/redação 2

Questão C

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2.Algumas delas, e fora as já contadas:o combogó, cristal do número quatro;os paralelepípedos de algumas ruas,de linhas elegantes mas grão áspero;a empena dos telhados, quinas agudascomo se também para cortar, telhados;os sobrados, paginados em romancero,várias colunas por fólio, imprensados.(Coisas de cabeceira, firmando módulos:assim, o do vulto esguio dos sobrados).

NETO, João Cabral de Melo. A Educação pela pe-dra. In:_____. Poesias Completas. Rio de Janeiro:

Sabiá, 1968. p. 10.

III. Texto II:

As cidades e a memória

Inutilmente, magnânimo Kublai, tenta-rei descrever a cidade de Zaíra dos altos bas-tiões. Poderia falar de quantos degraus sãofeitas as ruas em forma de escada, da circun-ferência dos arcos dos pórticos, de quais lâmi-nas de zinco são recobertos os tetos; mas seique seria o mesmo que não dizer nada. A ci-dade não é feita disso, mas das relações entreas medidas de seu espaço e os acontecimentosdo passado: a distância do solo até um lam-pião e os pés pendentes de um usurpador en-forcado; o fio esticado do lampião à balaustra-da em frente e os festões que empavesavam opercurso do cortejo nupcial da rainha; a altu-ra daquela balaustrada e o salto do adúlteroque foge de madrugada; a inclinação de umcanal que escoa a água das chuvas e o passomajestoso de um gato que se introduz numajanela; a linha de tiro da canhoneira que sur-ge inesperadamente atrás do cabo e a bombaque destrói o canal; os rasgos nas redes depesca e os três velhos remendando as redesque, sentados no molhe, contam pela milési-ma vez a história da canhoneira do usurpa-dor, que dizem ser o filho ilegítimo da rainha,abandonado de cueiro ali sobre o molhe.

A cidade se embebe como uma esponjadessa onda que reflui das recordações e se di-lata. Uma descrição de Zaíra como é atual-mente deveria conter todo o passado de Zaí-ra. Mas a cidade não conta o seu passado, elao contém como as linhas da mão, escrito nosângulos das ruas, nas grades das janelas, noscorrimões das escadas, nas antenas dospára-raios, nos mastros das bandeiras, cadasegmento riscado por arranhões, serradelas,entalhes, esfoladuras.CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo

Mainardi. São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.p. 15-16.

PROPOSTAEspacialização da memória, lembranças

cifradas de um lugar desaparecido, o registrodo invisível, a dilatação do espaço sensívelproduzida pela temporalização das vivências,a materialização do tempo na geometrizaçãoda cidade são alguns dos recortes possíveispara a análise e interpretação das mensa-gens-estímulo apresentadas acima.

Elabore um texto dissertativo em que ‘acidade’ e ‘a memória’ sejam os pólos pendula-res em torno dos quais alguns desses temasse articulem. Realize-o da forma mais coesa emais coerente possível, argumentando, demaneira convincente, a favor do tema que fordesenvolver. Dê um título que sintetize seutexto em seu conjunto.

Comentário

A ausência de um recorte temático abriu possibili-dades de várias interpretações da proposta dis-sertativa da FGV-Direito. A partir da leitura atentados textos recolhidos de fontes diversas (todas deteor artístico), pediu-se uma argumentação con-vincente sobre o eixo cidade–memória. Em con-traposição à concretude da cidade, existe a subje-tividade da memória e o legado humano que asurbes encerram e perpetuam. Embora complexo,o tema foi instigante.

português/redação 3