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Tendo como base o fato de a obra Macunaí- ma, de Mário de Andrade, ser uma das maio- res representações literárias das renovações formais e temáticas do Modernismo brasilei- ro, sobretudo no que se refere ao pensamento crítico exposto no Manifesto Antropofágico de Oswald de Andrade, leia com atenção os frag- mentos extraídos da obra em questão e de- senvolva os itens que se seguem: Texto 1: Era assim. Saudaram todos os santos da pagelança, o Boto Branco que dá amores Xangô, Omulu, Iroco Ochosse, a Boiúna Mãe feroz, Obatalá que dá força pra brincar mui- to, todos esses santos e o çairê se acabou. Tia Ciata sentou na tripeça num canto e toda aquela gente suando, médicos padeiros enge- nheiros rábulas polícias criadas focas assassi- nos, Macunaíma, todos vieram botar as velas no chão rodeando a tripeça. As velas jogaram no teto a sombra da mãe-de-santo imóvel. Já quase todos tinham tirado algumas roupas e o respiro ficara chiado por causa do cheiro de mistura budum coty pitium e o suor de todos. Então veio a vez de beber. E foi lá que Macu- naíma provou pela primeira vez o cachiri te- mível cujo nome é cachaça. Provou estalando com a língua feliz e deu uma grande garga- lhada. (“Macumba” em: Andrade, M. de. Macunaíma. São Paulo: Livraria Martins, 1976) Texto 2: Estávamos ainda abatido por termos per- dido a nossa muiraquitã, em forma de sáurio, quando talvez por algum influxo metapsíqui- co, ou, qui lo sá, provocado por algum libido saudoso, como explica o sábio tudesco, doutor Sigmundo Freud (lede Fróide), se nos depa- rou em sonho um arcanjo maravilhoso. Por ele soubemos que o talismã perdido estava nas diletas mãos do doutor Venceslau Pietro Pietra, súbdito do Vice-Reinado de Peru, e de origem francamente florentina, como os Ca- valcantis de Pernambuco. E como o doutor demorasse na ilustre cidade anchietana, sem demora nos partimos para cá, em busca do velocino roubado. As nossas relações actuais com o doutor Venceslau são as mais lisonjei- ras possíveis; e sem dúvida mui para breve recebereis a grata nova de que hemos reavido o talismã: e por ela vos pediremos alvíçaras. (“Carta pras Icamiabas” em: Andrade, M. de. Macunaíma. São Paulo: Livraria Martins, 1976) 1.1 O processo antropofágico manifesta-se, no primeiro texto, tanto no plano de conteúdo como no plano de expressão. Explique como esse processo se manifesta temática e lingüis- ticamente. 1.2 Relacione os dois fragmentos tendo como fio condutor o efeito de sentido verdadeiro versus falso. Resposta 1.1 No texto 1, pode-se perceber, do ponto de vis- ta temático, a mistura de várias culturas (a indíge- na – "Boto", a africana – "Xangô" e a européia – "santos") que resultará em práticas religiosas sin- créticas, o que seria um índice do processo antro- pofágico de construção da cultura nacional. Também do ponto de vista da expressão, vemos o mesmo procedimento antropofágico ao se cons- tituir uma "geléia geral" lingüística, com a apropria- ção de termos indígenas, africanos, portugueses e outros, como "çairê", "Xangô", "budum", "coty", "pitium", etc. Curioso notar que Mário de Andrade utilizou o vocábulo "çairê" (sairé) que em si traz a idéia de uma festa religiosa de caráter sincrético. 1.2 O texto 2 parodia o discurso retórico que pre- dominava na cultura brasileira do final do sécu- lo XIX e nas primeiras décadas do século XX. Tra- ta-se, como o denominava Oswald de Andrade, da prática do beletrismo: discurso pobre ou vazio de idéias mas ornamentado por uma ilustre or- questração lingüística. Macunaíma, ao se apropriar dessa modalidade de expressão, assume uma lin- guagem que não é a sua, mas a utiliza para se colocar numa posição de superioridade. E nisso se revela a natureza desse estilo, própria das eli- tes: é, no fundo, instrumento de dominação. O Macunaíma real, em seu mundo popular e de práticas religiosas sincréticas, com sua linguagem própria, isto é, verdadeira, aparece no texto 1. Desse modo, o texto 2 revela um Macunaíma que não é , ou seja, um Macunaíma tão falso quanto a linguagem por ele utilizada. Questão 1

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Tendo como base o fato de a obra Macunaí-ma, de Mário de Andrade, ser uma das maio-res representações literárias das renovaçõesformais e temáticas do Modernismo brasilei-ro, sobretudo no que se refere ao pensamentocrítico exposto no Manifesto Antropofágico deOswald de Andrade, leia com atenção os frag-mentos extraídos da obra em questão e de-senvolva os itens que se seguem:

Texto 1:

Era assim. Saudaram todos os santos dapagelança, o Boto Branco que dá amoresXangô, Omulu, Iroco Ochosse, a Boiúna Mãeferoz, Obatalá que dá força pra brincar mui-to, todos esses santos e o çairê se acabou. TiaCiata sentou na tripeça num canto e todaaquela gente suando, médicos padeiros enge-nheiros rábulas polícias criadas focas assassi-nos, Macunaíma, todos vieram botar as velasno chão rodeando a tripeça. As velas jogaramno teto a sombra da mãe-de-santo imóvel. Jáquase todos tinham tirado algumas roupas eo respiro ficara chiado por causa do cheiro demistura budum coty pitium e o suor de todos.Então veio a vez de beber. E foi lá que Macu-naíma provou pela primeira vez o cachiri te-mível cujo nome é cachaça. Provou estalandocom a língua feliz e deu uma grande garga-lhada.

(“Macumba” em: Andrade, M. de. Macunaíma.São Paulo: Livraria Martins, 1976)

Texto 2:

Estávamos ainda abatido por termos per-dido a nossa muiraquitã, em forma de sáurio,quando talvez por algum influxo metapsíqui-co, ou, qui lo sá, provocado por algum libidosaudoso, como explica o sábio tudesco, doutorSigmundo Freud (lede Fróide), se nos depa-rou em sonho um arcanjo maravilhoso. Porele soubemos que o talismã perdido estavanas diletas mãos do doutor Venceslau PietroPietra, súbdito do Vice-Reinado de Peru, e deorigem francamente florentina, como os Ca-

valcantis de Pernambuco. E como o doutordemorasse na ilustre cidade anchietana, semdemora nos partimos para cá, em busca dovelocino roubado. As nossas relações actuaiscom o doutor Venceslau são as mais lisonjei-ras possíveis; e sem dúvida mui para breverecebereis a grata nova de que hemos reavidoo talismã: e por ela vos pediremos alvíçaras.

(“Carta pras Icamiabas” em: Andrade, M. de.Macunaíma. São Paulo: Livraria Martins, 1976)

1.1 O processo antropofágico manifesta-se, noprimeiro texto, tanto no plano de conteúdocomo no plano de expressão. Explique comoesse processo se manifesta temática e lingüis-ticamente.1.2 Relacione os dois fragmentos tendo comofio condutor o efeito de sentido verdadeiroversus falso.

Resposta

1.1 No texto 1, pode-se perceber, do ponto de vis-ta temático, a mistura de várias culturas (a indíge-na – "Boto", a africana – "Xangô" e a européia –"santos") que resultará em práticas religiosas sin-créticas, o que seria um índice do processo antro-pofágico de construção da cultura nacional.Também do ponto de vista da expressão, vemoso mesmo procedimento antropofágico ao se cons-tituir uma "geléia geral" lingüística, com a apropria-ção de termos indígenas, africanos, portuguesese outros, como "çairê", "Xangô", "budum", "coty","pitium", etc. Curioso notar que Mário de Andradeutilizou o vocábulo "çairê" (sairé) que em si traz aidéia de uma festa religiosa de caráter sincrético.1.2 O texto 2 parodia o discurso retórico que pre-dominava na cultura brasileira do final do sécu-lo XIX e nas primeiras décadas do século XX. Tra-ta-se, como o denominava Oswald de Andrade,da prática do beletrismo: discurso pobre ou vaziode idéias mas ornamentado por uma ilustre or-questração lingüística. Macunaíma, ao se apropriardessa modalidade de expressão, assume uma lin-guagem que não é a sua, mas a utiliza para secolocar numa posição de superioridade. E nissose revela a natureza desse estilo, própria das eli-tes: é, no fundo, instrumento de dominação.O Macunaíma real, em seu mundo popular e depráticas religiosas sincréticas, com sua linguagemprópria, isto é, verdadeira, aparece no texto 1.Desse modo, o texto 2 revela um Macunaíma quenão é, ou seja, um Macunaíma tão falso quanto alinguagem por ele utilizada.

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Tarsila do Amaral, A Negra (1923), óleo sobre tela

2.1 Na questão sobre Macunaíma assinala-mos as relações entre o Manifesto Antropofá-gico de Oswald de Andrade de 1928 e a obrade Mário de Andrade. Nas artes plásticas mo-dernistas, Tarsila do Amaral antecipava,plasticamente, em 1923, o conteúdo do referi-do manifesto, numa de suas telas, “A Negra”.De que maneira podemos perceber esse con-teúdo “antropógafo” no quadro de Tarsila?Identifique, a partir da pintura anterior, quaissão os temas centrais abordados em “A Ne-gra” e justifique.2.2 “A Negra”, realizada por Tarsila, em Pa-ris, utiliza técnicas dos movimentos de van-guarda da capital francesa, como o impressio-nismo e o cubismo, que questionaram o rea-lismo até então mais usual entre a produçãoartística e propuseram uma forma mais livrede retratar o mundo. A imagem em primeiroplano em “A Negra” é bastante diferente dofundo da pintura, ou seja, da imagem em se-gundo plano. Observando a imagem, aponte ejustifique essas diferenças dos dois planos.

Resposta

2.1 O quadro "A Negra" antecipa característicasantropofágicas na pintura: poucas cores, simples,mas vibrantes e nacionais, contrastantes de modoa destacar a exuberância formal da mulher: pés emãos grandes, peito farto. A pose estática, passi-va e tranqüila, insere a negra à terra, integrando-aesteticamente aos valores e à cultura brasileira.

2.2 O primeiro plano traz a figura destacada deum fundo puramente geométrico. A negra assu-me um papel central, plástico e emocional, sendoessa a primeira vez em que o negro é retratadodeste modo numa tela nacional. As linhas hori-zontais do segundo plano vêm reforçar a passivi-dade, a tranqüilidade, enquanto as dimensões de-formadas intencionalmente aparecem como ele-mentos inerentes à terra. A linha diagonal geomé-trica reforça o olhar, a exuberância dos lábios edo peito. As técnicas "antropofágicas" de Tarsilado Amaral serão retomadas pela mesma pintoraem outras obras e por outros artistas do Moder-nismo.

Marcel Duchamp, Roda de Bicicleta (1917),ready-made

artes/literatura 2

Questão 3

Questão 2

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3.1 “Roda de Bicicleta” (1917) faz parte da sé-rie de “ready-mades” construídos por MarcelDuchamp e introduz, na história da arte,uma nova maneira de produção artística.Indique, a partir da reprodução da obra aci-ma, quais são os elementos inovadores utili-zados por Duchamp e explique por que essaobra é considerada uma obra de arte.

Andy Warhol, Marilyn Monroe Dourada (1962),serigrafia e óleo sobre tela

3.2 “Marilyn Monroe Dourada”, realizadopor Andy Warhol, em 1962, a partir de umretrato da atriz de cinema de Hollywood pu-blicado nos meios de comunicação, se apro-xima do trabalho de Duchamp. Discorra so-bre a semelhança no método de criação dosdois artistas.

Resposta

3.1 Duchamp, com seus "ready-mades", retira ob-jetos do cotidiano – roda, banqueta, vaso sanitá-rio, etc. –, procurando destituir-lhes de sua funçãoreal para metaforicamente recolocá-los em umanova dimensão, descaracterizando-os para discu-tir o "verdadeiro" valor da arte. No caso da "Rodade Bicicleta", tanto a banqueta como a roda assu-mem uma releitura. Ao buscar discutir as diferen-tes linguagens artísticas, colocando em xeque osvalores tradicionais, paradoxalmente, Duchampcria novas formas de arte.

3.2 Andy Warhol se utiliza de técnicas de monta-gem para compor "Marilyn Monroe Dourada". Apartir da colagem da foto da artista centralizadano dourado, ao mesmo tempo despersonaliza amulher para transformá-la em ícone, em mitomassificado de uma sociedade de consumo.Assim, Andy Warhol, tal como Duchamp o fizeraem "Roda de Bicicleta", também se apropria deum "ready-made" (a foto de Marilyn Monroe) des-locando-o para um contexto artístico (o quadro),dando-lhe uma nova dimensão: a de objeto dearte.

artes/literatura 3