Festival de Inverno
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Festival de Inverno
“Para brincar somente, soi mui velho;Para não desejar, mui moço ainda.”
Goethe
inverno dominava a cidade com seus
braços frios e seus sopros gelados. As
ruas eram silenciosas como vales da
morte e nada se movia a não ser folhas secas
levadas por mãos invisíveis. Todos estavam em
suas casas, debaixo de cobertores e tomando
chocolate quente, enquanto ouviam Handel, tão
apropriado para dias frios e sem alma como este.
Entretanto na maior praça da cidade acontecia o
Festival de Inverno, um evento cultural que reunia
apresentações de vários estilos, que variavam
entre música, dança, teatro e literatura. Rodrigo
foi apreciar o espetáculo sozinho, levou um pouco
de Whisky em um recipiente adequado para
O
tomar alguns poucos goles que serviriam, além da
degustação, para esquentar-lhe o corpo naquela
noite fria.
Entrou no palco a primeira apresentação da
noite, uma banda regional que tocava músicas
horríveis. O senhor de bigode que tocava o violão
parecia arranhar o instrumento com suas unhas, o
vocalista era desafinado e tudo era ruim. Talvez
tomado por um pouco de ebriedade decorrente do
Whisky ou somente pela repugnância daquela
poluição sonora, sentiu-se profundamente
irritado. Quando sua paciência esgotava-se e ele
principiava a caminhar para ir embora, a banda
agradeceu o público e saiu do palco. Rodrigo,
irritado, resolveu esperar um pouco mais e ver se
alguma coisa fazia valer a pena aquela noite tão
horrenda.
Começou a tocar música clássica,
Tchaikovsky talvez, não conseguiu identificar ao
certo, mas era boa. Ele então aproximou-se do
palco para apreciar melhor aquela música que
parecia acalmá-lo. Fechava os olhos e sentia seus
músculos descansarem, sentia sua alma flutuar
enquanto seus ouvidos eram massageados por
aquela boa música. Poderia ouvi-la pelo resto da
noite.
Entrou então no palco um grupo de cinco
garotas que, pela aparência, deveriam ter entre
seus 17 e 18 anos. Vestidas com roupas leves e
pequenas que deixavam descobertos o abdômen,
os braços e as pernas. Elas começaram então a
dançar aquela música. Era maravilhoso, uma série
de movimentos harmônicos jogados ao ar que
pareciam completar-se, elas haviam ensaiado
bem e a dança ficou linda. Rodrigo estava
apaixonado por aquela apresentação, as garotas
eram incríveis e tudo estava muito bom. Ele
fixava os olhos com maior empenho em uma das
garotas, ela parecia ter o corpo mais vivo – e
sensual – que dançava mais suave ao som da
música. Os movimentos dela era delicados,
charmosos; ela era incrível. Em um determinado
crescendo da música, quatro das garotas
formaram um semi-círculo ajoelhadas, enquanto
uma garota dançava sozinha ao centro. Era a
garota que ele perseguia com os olhos, decerto a
que mais se destacava entre elas.
Entrou então em êxtase. Ela cortava o ar
com seus movimentos, mexia-se com uma
sutileza que encantava, caminhava com
sensualidade e um rebolado que deixaria qualquer
homem louco. Ela tomou a apresentação para si,
lançava olhares para o público cheia de sedução,
estava bem maquiada, com os olhos desenhados
de um lápis preto bem marcado. O corpo era
incrível, e dançava de uma forma impressionante.
Rodrigo apaixonou-se na hora. Ele queria ter
aquela garota em seu quarto, dançando
exclusivamente para ele.
Acompanhou o resto do espetáculo sem
perder um segundo sequer. Se pudesse teria
subido ao palco para olhar mais de perto. Ao final
da apresentação ele então dirigiu-se à escada na
qual as bailarinas desciam e seguiu aquela garota.
Ela foi para uma das barracas montadas ao fundo
da praça, comer um Yakissoba, conversava com
as amigas e oferecia para aquela noite escura um
sorriso mais belo do que o de qualquer outra
estrela. Ela era realmente linda, a imagem
daquela perfeição dançando não saia da mente de
Rodrigo.
Ele então sentou bem perto, esperou que as
amigas se calassem por um instante e começou
uma conversa amistosa. Era tímido e não muito
habilidoso com esse tipo de conversa. As amigas
percebendo o envolvimento da garota, afastaram-
se e deixaram-na à sós com o rapaz que não
conheciam. Depois de uns 20 minutos de
conversa ela se levanta e saí desconfiada. Ele não
haveria de conseguir nada naquela noite.
Resolveu então que, se por bem não havia
conseguido, faria por mal. O que ele não poderia
suportar seria ficar sem aquela garota.
Passou o resto do evento seguindo-a ao
longe. Ele simplesmente não conseguia tirá-la da
mente. Aqueles movimentos, aquele olhar, aquele
corpo... Era como um sonho do qual ele não
queria acordar. Já passava da meia noite, as
apresentações estavam acabando e as pessoa
minguavam na praça, ela estava saindo. Quando
encontrava-se em um canto mais vazio da praça,
Rodrigo teve um ímpeto de loucura, não esperou
que ela saísse, agarrou-a de súbito, tampando a
boca para que não gritasse e carregou-a para seu
carro. Lá chegando disse para ela: “Por favor, não
se assuste. Eu sou a paixão e quero esquentar-lhe
nessa noite fria. Eu assisti sua apresentação e
devo dizer-lhe que fiquei encantado. Você é uma
dançarina incrível e sua dança enfeitiçou-me de
uma forma que eu não pude resistir. Não quero te
fazer mal algum, eu juro, quero dar-te os mais
belos sonhos de amor, tratar-lhe como uma
princesa e oferecer toda minha verdade. Não sei o
que deu em mim para sequestrar-lhe dessa forma
mas, por favor, não se assuste, por favor! Eu só
te trouxe para cá porque eu não saberia mais o
que fazer sem você”.
A garota, claro, continuou tentando gritar e
se soltar. Rodrigo então, desesperado, tampou-lhe
a boca e amarrou-a; ele tremia de medo. Também
não estava acostumado àquilo, dirigiu nervoso
pedindo para que ela não chorasse e clamando
para que ela não tivesse medo. Não adiantava.
Chegando então em casa, carregou-a para dentro
e tentou colocar uma música para acalmá-la,
desamarrou-a e ela tentou na mesmo hora bater
nele, chutando e dando murros onde conseguia.
Acertou então onde não deveria, Rodrigo curvou-
se, sua vista escureceu-se e ele dormiu
profundamente embalado pela canção da dor.
No outro dia quando acordou tudo parecia
um sonho, havia a mesma música pela qual ele
havia perdido o juízo, a casa estava toda
decorada com um pano branco celestial e tudo
bem arrumado e organizado. Ele estava em seu
quarto, no macio da sua cama. Empurrou o
aconchegante cobertor com os pés e viu a garota
aparecer para ele na porta do seu quarto, vestida
com um tipo de lingerie rosa-bebê. Ela sorria para
ele. Rodrigo não acreditou! Aquela garota que
havia roubado seu coração na noite anterior, na
sua casa, na porta do seu quarto, de lingerie,
sorrindo para ele! Ela começou a dançar para ele,
os movimentos harmônicos, sensuais, lentos e
dignos de sonhos. Ela dançava andando
devagarinho para trás, chamando ele com os
dedos e sorrindo para ele. Ah! Obrigado papai do
céu, pensava ele. Que bom que ela entendeu que
os meus sentimentos são puros e que fui vítima
da poesia que ela mesma plantou com aquela
dança. Ele levantou-se, calçou sua pantufa e foi
atrás dela, quase flutuando. Seu corpo todo
estremecia. Foi andando rumo à sala, onde havia
caído na noite anterior e ela tão gentilmente havia
levado-o para o seu quarto e decorado a casa de
forma tão amável! Ele iria fazê-la a mulher mais
feliz do mundo!
Quando chegou então à porta da sala,
olhando para aquela perfeição dançando à sua
frente, chorando de felicidade, quando então seu
mundo caiu. Olhou para o centro da sala e, entre
aquela decoração branca e toda aquele sonho,
estava o seu corpo no chão, rodeado por uma
poça de sangue imensa todo esfaqueado. A
música então parou, a musa sumiu e Rodrigo
nunca mais pode ver dança alguma em sua vida.