FERREIRA_2005_O Analogico e o Digital

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    O Analgico e o Digital:tecnoesttica, micropoltica e fetichismo na msica eletrnica1

    Pedro Peixoto FerreiraDoutorando em Cincias Sociais UNICAMPApoio: FAPESPJunho de 2005

    VINIL x CD

    "[L]embrando a todos q: apertador de cdj temos aos montes, mas deejays temos poucos!!!" [1]

    A frase acima [1] fechou um email enviado por um DJ a uma lista de discusso naInternetdedicada ao tema da msica eletrnica2, onde era divulgada uma "'oferta' especial paraDJs" da "NICA fbrica de vinil do Brasil" (Polysom, Rio de Janeiro). Ela demonstra

    claramente a distino comum feita por diversos DJs entre aquilo que ele chamou de "apertadorde cdj"3, que existem "aos montes", e os "deejays" (DJs), que so "poucos"4. Tentaremoscompreender aqui, a partir de alguns trechos de emails enviados para esta mesma lista dediscusso, como esta distino, normalmente feita a partir de critrios tcnicos e estticos,evidencia prticas micropolticas subjacentes ao discurso dos DJs.

    A citao a seguir [2] apresenta j alguns elementos relevantes desta utilizao, por DJs,da mdia empregada em suas atividades como marcador de poder, hierarquia e legitimao.Trata-se de um depoimento de um DJ de techno acerca de sua experincia com um tocador deCDs concebido especialmente para DJs (oDenom 2000 mk2).

    "[M]e iludi com o cd player pra djs. Com o tempo isso passou, e vi q por uma questao de cultura q no

    vinil estava a alma do Dj. [...] Nao tenho raiva ou odio por quem escolhe usar cd, pois moramos em um paisde 3 mundo, onde o desemprego uma realidade, o dolar caro, e para alguem possuir equipamentos oumesmo vinil(q custa hoje aqui no Brasil + ou - 33,00 reais).O q nao acho certo alguns falarem q 'um dj temq esta a frente de nova tecnologias' e usarem isso para provar a modernidade, se fosse assim na europa e nosestado unidos todos os djs iriam usar cds, mais isso nao acontece. Quem q tocar musica eletronicaunderground, nao pode fechar os olhos, os produtores fazem suas musicas em vinil, a sua pesquisa musicaltem q ser feita no vinil.Saem tb em cds(coletanias, Albuns), mas para um dj a melhor fonte vem do vinil. [...]O q eu tiro do meus 7 anos de discotecagem q o o vinil me da mais seguraa, cd pula, trava(logico, qcuidados sao necessarios). [...] [Uma desvantagem de tocar com CD ] a frieza q passada para mim [...],outra [...] q no cd as mixagens nao tao seguras como numa mk2 techincs, talvez pelo diametro do cd ou opotenciomentro q pequeno. Sempre numa denom vc tem q ficar apertado o + ou - pra nao sair, enquantonum mk2 technics vc solta e nao mexe muito(isso vale quando vc acha o pitch certo das duas musica)" [2]

    Apesar de ter adquirido o aparelho por considerar "necessrio como Dj, poder mixar cds",o DJ acabou por se desiludir com a mdia, apontando como motivos para isto a "frieza" de seapresentar tocando CDs (argumento esttico), a "insegurana" de se mixar com tocadores de CD

    1 Uma verso anterior deste texto serviu de base minha apresentao na 24a Reunio da Associao Brasileira deAntropologia Olinda (Pernambuco, Brasil), 12 a 15 de junho de 2004.2 Mantive em sigilo os autores individuais das citaes utilizadas. Optei tambm por no alterar a grafia dascitaes, mantendo os erros de digitao e as abreviaes. Aproveito para louvar a iniciativa daqueles que mantmlistas de discusso de alto nvel sobre msica eletrnica naInternet, fonte valiosssima de informao para diversostipos de pesquisa e tambm para uma organizao rizomtica e micropoltica da prpria "cena".3 A abreviao "CDJ" se refere aos tocadores de CD concebidos especialmente para DJs, com recursos normalmente

    no encontrados em tocadores comerciais mas necessrios s suas atividade (como opitch, que altera a velocidadeda msica, e ojoggle, que permite a manipulao livre da seqncia sonora, entre outros).4 Outro DJ, por exemplo, afirma: "DJ que DJ tem que usar vinil [...], [...] tem muita gente que no passa de'tocadores de CD'".

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    (argumento tcnico) e a percepo de que a "alma do DJ" est no vinil. O uso do CD pelo DJ apresentado como uma necessidade contingente de moradores do "[terceiro] mundo", "onde odesemprego uma realidade", "o d[]lar caro" e os DJs so obrigados a se renderem a mdiasmenos dispendiosas e mais facilmente reprodutveis como o CD. A afirmao de que ele no tem"raiva ou []dio por quem escolhe usar CD" sugere j a carga emocional que freqentementeacompanha os debates em torno desta questo5, velada na sugesto de uma certa hipocrisia

    daqueles que escolhem usar CDs, supostamente "fechando os olhos" ao fato de que "osprodutores fazem suas m[]sicas em vinil" e que, portanto, "para um dj a melhor fonte vem dovinil".

    Temos j esboados, portanto, os temas centrais da problemtica aqui abordada: apolitizao da opo entre determinadas mdias por certos DJs a partir de argumentossimultaneamente tcnicos e estticos. No caso, notamos a proposio de uma hierarquizaoentre os DJs que usam vinil em suas apresentaes e aqueles que usam CDs a partir deargumentos que evocam tanto as vantagens tcnicas da mdia analgica em relao digitalquanto a superioridade esttica daquela em relao a esta. Um outro email de outro DJ de technoacrescenta mais elementos relevantes problemtica:

    "[U]ma vez fui tocar em uma cidade do interior a, cheguando l, na hora que fui tocar, vi que s tinhacd, e sem pitch ainda, da perguntei ao cara sobre as mk2, pq eu tocava com vinil, ento ele disse: 'aindaexiste djs que usam vinil?' ento eu falei: 'claro, dj profissional respeita seu publico, e toca com vinil, o cdraramente , e como um artificio. no contrato constava tudo que eu iria precisar.' da ele respondeu: 'ah, eunem li direito, assinei de uma vez pq estava ocupado com algumas coisas da festa.' [...] foda foi o dj localdiscutindo comigo sobre as 'vantagens' de usar cd, da eu rasguei o verbo, disse que o vinil prensadoespecialmente para isso, e obedece todos os requisitos para proporcionar um som de qualidade e no agrediro ouvido do publico, e blablabla. falei que o acesso ao mp3 muito fcil, mas que na maioria das vezes eleest com uma m qualidade, cheio de ruidos ocultos que no so perceptiveis ao ouvido humano, mas estoali, agredindo a todos que esto ouvindo... nossa, deu foi conversa. e para terminar, ouvi um carinha fazendoum comentario ironico com outro la: 'o dj sai l de [cidade de origem do DJ, a capital] e nem traz o que elevai usar.' tipo: o cara o maior amador... mas preferi deixar quieto, nem retruquei :D" [3]

    O caso relatado pelo DJ se inseria no contexto de uma discusso sobre a "falta derespeito" de certos organizadores de festas para com as exigncias contratuais dos DJs. Ele nosinteressa, pois o "desrespeito" se deu justamente no tocante exigncia, no atendida pelosorganizadores da festa, de um par de toca-discos (no caso, o modelo Technics SL-1200 MKII)pelo DJ. A polmica gerada pela exigncia trouxe tona diversos argumentos de DJs quebuscam se diferenciar pela defesa de especificidades do vinil, como o fato de ser "prensadoespecialmente para isso" (i.e., para ser tocado apenas por DJs, em alta potncia e em ambientescoletivos, diferentemente dos CDs que so produzidos para uso comercial e domstico),proporcionando um "som de qualidade" que no agride o "ouvido do p[]blico". Mas mais doque valorizar o vinil como instrumento de trabalho privilegiado do DJ, ele faz questo de

    desvalorizar o CD questionando a sua qualidade e afirmando a presena de supostos "rudosocultos que no so percept[]veis ao ouvido humano, mas [que] esto ali, agredindo a todos".O "desrespeito" do organizador da festa pelas exigncias do DJ se tornou, assim,

    oportunidade para que o DJ se queixasse do alegado "desrespeito" pelo pblico na forma de"agresses ao ouvido" por "rudos ocultos" presentes nos arquivos digitais (mesmo queassumidamente imperceptveis ao prprio "ouvido humano") tocados pelos DJs que usam CDs.A forma como o DJ polarizou seu discurso entre aqueles DJs cosmopolitas profissionais querespeitam seu pblico tocando com vinil e aqueles DJs interioranos que desrespeitam seu pblicotocando com CD revela que, mesmo sendo ironizado pelos DJs locais, ele ainda se colocavaacima deles em uma hierarquia tacitamente compartilhada com outros participantes da lista dediscusso. Alm disso, o forte componente emocional da questo reaparece aqui quando, diante

    5 Ela chegou mesmo a se tornar "tabu" em certos momentos na lista de discusso pesquisada, devido s constantesagresses pessoais a que normalmente d origem.

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    relaes de poder tecnoesteticamentemediadas9.

    A tabela 1 apresenta osprincipais argumentos empregados porDJs em listas de discusso e sites na

    Internet, revistas especializadas e

    entrevistas para justificar asuperioridade do disco de vinil frente aoCD como instrumento de trabalho. Deforma geral, o vinil descrito comomais "natural", "caloroso", "bonito" e"adequado" atividade do DJ poroferecer todo o espectro de freqnciasdesejado (principalmente as maisgraves), lhe permitir colocar em aotcnicas de manipulao da mdia quelhe so especficas, e possibilitar o

    desenvolvimento de "mercadosalternativos" e de uma "cenaunderground" dedicada experimentao esttica de qualidade.Por outro lado, o CD descrito comomais "artificial", "frio", "feio" e"inadequado" por no reproduzirfielmente os sons "subgraves",transformar o DJ em um "apertador debotes" e estar excessivamente ligadotanto cultura de massas e msicacomercial esteticamente pobre e debaixa qualidade quanto falta deinvestimento financeiro nos prpriosprodutores e artistas provocado pelacpia ilegal de arquivos digitais.

    Alm disso, a gradual troca dodisco de vinil pelo CD como mdiaprivilegiada da indstria cultural globalacabou contribuindo para que aquele setornasse, pela sua raridade e pela sua

    forma dispendiosa de produo emcomparao a este, um elementodiferencial que garante a distino do DJ frente a meros "tocadores de CD"10. Em outraspalavras, os altos custos envolvidos na prensagem de um disco de vinil, aliados ao fato de aindstria cultural ter deixado o formato analgico de lado, faz com que o simples fato de

    VINIL CD "legal". Nunca ser to "legal" quanto o vinil.Faz parte da "imagem" do DJ, "bonito".

    No atraente e no faz parte daimagem do DJ.

    a mdia "predileta" dos DJs. S empregado quando ascontingncias o exigem.

    Os pontos especficos da msica sofacilmente visveis.

    O som no visvel. necessrio saberexatamente os minutos e segundos dospontos, ou program-los com

    antecedncia.Materialidade imediata: o som manipulado diretamente com a mo, e visvel no momento em que estsendo tocado.

    Mediao abstrata: o som manipuladopor botes e outras interfaces indiretase no visvel.

    Efeitos que dependem da materialidadedo vinil e do mecanismo do toca-discos

    Simulao destes efeitos, quandodisponvel, no convincente.

    geralmente associado a DJs quepesquisam e investem tempo e dinheiroem uma determinadacena/gravadora/estilo (financiando"mercados alternativos") e nodesenvolvimento de tcnicas manuaisde turntablism.

    geralmente associado a DJs de trancee de dance music comercial, queapenas "baixam" arquivos mp3 pelaInternet (ao invs de pesquisar oslanamentos em vinil), nocontribuindo assim para a reproduode uma cena undergroundatravs dacompra de vinis.

    Por no ser mais produzido "em massa"

    pela indstria cultural, serve de suportepara um "mercado alternativo"(subcultural, underground,experimental).

    o formato comercialmente

    preponderante e (paradoxalmente),junto com outros formatos digitais,permite a aquisio de msicas sem odevido pagamento de direitos autorais,impedindo a criao de um "mercadoalternativo".

    Mixagens "calorosas". Mixagens "frias".Mixagens "seguras". Mixagens "inseguras".O vinil est na "alma" do DJ. O CD apenas um "quebra-galho" e

    um modismo.Os maiores produtores e DJs do mundos tocam vinil.

    CDs geralmente so usados por DJsinexperientes e inexpressivos.

    Vinil impe respeito e diferencia (aprensagem de vinil exige uma infra-estrutura dispendiosa).

    CD aproxima o DJ de uma pessoaqualquer apertando botes (qualquerum pode "queimar" um CD).

    Atinge freqncias mais graves

    ("subgraves") do que o CD, portanto seprestando mais atividade dos DJs.

    Apesar de atingir freqncias mais

    agudas do que o vinil, no reproduzbem os "subgraves" to valorizadospelos DJs.

    O som mais "fiel" ao concebido. O som sofre distores (rudos muitasvezes reconhecidamente imperceptveismas considerados relevantes).

    mais "natural" (no apenas pelanatureza analgica do som, mastambm pelo material biodegradveldas capas e pela origem "orgnica" dovinil)

    mais "artificial" (no s pela naturezadigital do som mas tambm peloplstico utilizado tanto na embalagemquanto no prprio CD)

    O contato mecnico da agulha no vinilpermite umfeedbackgradual edesejvel do ambiente (uma certa"ambincia", um certo "calor").

    No hfeedbackdo ambiente a no serem casos extremos e indesejados (errosde leitura provocam efeitosesteticamente desvalorizados).

    Underground. Mainstream

    TABELA 1

    9 Um exemplo da difuso desta hierarquizao o verbete "DJ" do The New Grove Dictionary of Music andMusicians, que apresenta duas definies de DJ, uma mais centrada na indstria do entretenimento (que se inicia nordio dos anos 50 e termina nos VJs da MTV; Buckley 2001) e a outra mais voltada para a experimentao tcnica eesttica dos DJs de clubes (iniciando nos anos 70 e chegando exploso global da msica eletrnica nos anos 90;

    Peel 2001).10 A comoo gerada entre os DJs brasileiros pela aquisio, pelo DJ brasileiro de drum'n'bass XRS, de uma"mquina de corte de dubplates", um exemplo das dificuldades envolvidas na produo de discos de vinil (cf.Katia 2003).

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    empregar este suporte como meio de trabalho j indique algo acerca da legitimidade social doDJ. Este ponto fica bastante claro numa situao como a relatada no seguinte email:

    "Vou falar de um evento que aconteceu na [nome da festa] neste sbado.O set ela do dj [nome de DJ ingls de techno]. Um amigo meu viciado no cara havia levado uma de suas

    produes em vnl, estvamos na primeira fila, incorporados pelo som qdo ao levantar o disco do cara eu fizum sinal para ele dizendo: ' Toca este disco aqui '. [...] No q o cara me entende o sinal e fala para entregar

    o disco ?!?!?!, Cara, 20 min depois ele me bota este disco e q galera vai a loucura !! [...] Esta cena seriapossvel se ele usasse CD ?!?"

    possvel que no, pois qualquer um poderia gravar qualquer coisa em um CD, ao passoque uma msica gravada em vinil pressupe j uma seleo rigorosa. Qualquer um poderiagravar msicas de pssima qualidade em um CD e pedir para que um DJ o tocasse. No entanto,os requisitos necessrios para se prensar uma msica em vinil so tantos que o prprio formato jse torna uma boa indicao da qualidade de seu contedo. Uma msica em vinil j conta, assim,com muito mais "aliados implcitos" do que uma msica em CD, pois ela no teria tido tantoinvestimento assim se j no contasse com uma considervel rede de apoio11. Neste casoespecfico, a rede de apoio do vinil chamada de "cena underground", com seus prprios

    cdigos tecnoestticos e suas prprias relaes de poder e solidariedade frente ao mainstreamimpessoal e estritamente comercial.

    Mas por qu se preocupar tanto com a defesa de uma mdia? Por qu no deixarsimplesmente que cada DJ toque com a mdia que considerar melhor? E principalmente, por qu,alm de defender o uso do vinil, este discurso se v na aparente obrigao de deslegitimar comforte carga afetiva os DJs que utilizam CDs? Sendo a politizao tecnoesttica do discurso dosDJs um fato emprico, tentemos ento conhecer em que termos ela se d.

    POLITIZAO TECNOESTTICA

    "[A]pertador de cdj...."...que coisa!Ainda sim prefiro ser um! (hehehhe, Compact-Deejay) pago somente R$0,90 para 'prensar' minhas produesem casa mesmo![...] Mas se eu tivesse um gravador de vinil em casa... quem sabe..... hehehehhe [...] ;(" [5]

    A citao acima [5] foi uma das repostas quela provocao que abriu o item anterior [1],e serve para introduzir as complexidades da politizao tecnoesttica do discurso dos DJs.Diferentemente dos DJs que defendem ardorosamente o vinil atravs no apenas da valorizaode suas especificidades tecnoestticas mas igualmente pela desvalorizao das especificidadesdas mdias digitais, muitos DJs (talvez a maioria) nem mesmo entram na discusso. A ironia daresposta deste DJ provocao daquele outro ("hehehhe") reflete bem esta indiferena bastantepresente do outro lado da relao de poder. Trata-se, verdade, de uma indiferena parcial, vistoque se este DJ "tivesse um gravador de vinil em casa", ele provavelmente no reclamaria. No

    entanto, a afirmao de que ele "prefere" ser um "apertador de cdj" a ter que deixar de poder"prensar" suas produes "em casa" a custos irrisrios ("R$0,90") deixa claro o seu alheamentoem relao a todas as disputas provocadas pelos defensores do vinil.

    Sabendo que os DJs que usam CDs normalmente no se do ao trabalho de defender asua opo, permanecendo na maior parte das vezes indiferentes ao discurso poltico daqueles queos colocam em uma posio inferior, faz-se necessrio esclarecer o motivo pelo qual tantaenergia gasta em uma disputa em que aparentemente apenas um dos lados desejar lutar. Sobreisso, exemplar uma mensagem de um importante DJ brasileiro de house onde ele apresenta, demaneira matizada, algumas das complexidades envolvidas nesta disputa aparentementeunilateral. Neste email, aparece com toda a fora a questo financeira, j abordada acima, na

    11 Evoco aqui a idia de Bruno Latour da "cooptao de aliados" por construtores de mquinas e teorias cientficas,capaz de lev-las "em direo ao fato" no caso de uma grande rede objetiva de aliados ou "em direo fico" nocaso de vozes isoladas e subjetivas (cf.2000:75).

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    forma de um "cofrinho" do DJ que fica "leve" devido sua necessidade de comprar osdispendiosos discos de vinil. Diferentemente dos DJs citados at agora, este no faz uma crticato feroz aos "apertadores de CDJ", antes subordinando toda a problemtica da tcnica quiloque ele chamou de "repertrio" (a escolha das msicas). Mas ainda assim a sobrevalorizao dovinil aparece em sua dimenso tecnoesttica atravs da referncia aos chamados "subgraves",alegadamente presentes apenas nos discos de vinil. "[N]o [] toa", afirma o DJ, "que os

    produtores de [msica eletrnica] sempre, quando podem, gravam em definitivo em vinil". Nose trata, portanto, de recriminar os DJs que tocam com CD, principalmente devido scontingncias poltico-econmicas, mas sim de sugerir que o alto preo do vinil tem umacompensao concreta na qualidade do som, percebida e valorizada apenas por alguns que,portanto, seriam presumivelmente superiores.

    A questo dos "sons inaudveis" j foi levantada em outra citao [3], e evoca umaimportante dimenso tecnoesttica da msica bastante presente nos crculos de audifilos(cf.O'Connell, 1992). Trata-se da constatao de que (1) certas pessoas alegam (e muitas vezescomprovam) ter audio superior mdia e, portanto, serem capazes de perceber sons que sonormalmente considerados inaudveis, e de que (2) certas dimenses sonoras relevantes para aexperincia musical no podem ser totalmente controladas/simuladas/avaliadas, permanecendo

    assim sempre acessveis apenas queles que de fato as percebem12. Assim, apesar de colocar o"repertrio" acima das "tcnicas" e das "mdias", o DJ citado acaba reiterando a defesa do uso dovinil contra as outras mdias.

    importante notar que, de fato, h umadiferena tcnica entre o registro analgico e odigital13. O som digital realmente difere doanalgico em um ponto fundamental: enquanto agravao analgica realizada atravs datransduo do som, a gravao digital realizadaatravs da sua codificao. A diferena no superficial e interfere infra-estruturalmente naexperincia sonora (cf.Fig.1). No caso datransduo analgica, a energia mecnica deondas de variao da presso do ar transduzidaem energia eltrica e depois novamente emenergia mecnica na gravao dos sulcos nodisco de vinil. Posteriormente, as vibraes daagulha nos sulcos (energia mecnica) podero ser transduzidas em oscilaes de voltagem(energia eltrica) e ento novamente em energia mecnica na vibrao dos alto-falantes. No casoda codificao digital, por outro lado, a energia eltrica (transduo da energia mecnica inicial) codificada em blocos de informao que no precisam guardar nenhuma analogia com o som

    original, sendo ento armazenados em qualquer suporte (inclusive discos de vinil, comoveremos) passvel de ser decodificado. A decodificao informa a produo de variao devoltagem (energia eltrica) que, por sua vez, transduzida em energia mecnica (variao dapresso do ar) pelos alto-falantes (cf.Figs.2 e 3).

    FIG.1: Fotos de ampliaes de sulcos em um disco de vinil (A) emicro-covas em um CD em menor (B) e maior (B') ampliao.

    Fontes: (A) Ord-Hume et al. (2001:27); (B) imagem coletada naInternet; (B') Miyaoka (1984:37).

    12 Testes de psicoacstica dedicados a descobrir os limites da audio humana so usados como referncia para aprojeo de tcnicas de digitalizao e compresso de udio capazes de otimizar o processo de gravao ereproduo do som atravs da eliminao de todas as suas dimenses alegadamente no-audveis. No caso dacompresso digital realizada por formatos como o mp3, estes limites psicoacsticos so levados s ltimasconseqncias, na tentativa de eliminar todas aquelas dimenses da experincia musical supostamente

    imperceptveis ao "ser humano". Ao afirmarem que so capazes de escutar sons e rudos normalmente inaudveis, osDJs (e os audifilos em geral) acabam assim advogando uma espcie de contra-tecnoesttica.13 Serviram como fontes para os aspectos tcnicos da gravao analgica e digital: Stevens e Warshofsky (1968);Lenk (1986); Parker (1988); Holland (1989); Borwick (1992); Everest (2001); Ord-Hume et al. (2001).

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    FIG.2:

    Gravao/Reproduo Analgica

    T: Transduo

    TEnergia

    MecnicaEnergiaEltricaT

    EnergiaMecnica

    A gravao digital inclui tambm transdues (na captao por microfones e na emissopor alto-falantes), mas se distingue radicalmente da gravao analgica pela etapa dacodificao. Diferentemente da transduo, que envolve a transferncia de ritmos imanentes evibraes simpticas entre diferentes meios, a codificao envolve a imposio de uma "grade"transcendente sobre estes ritmos e estas vibraes. Na transduo h sempre uma abertura para ocaos, para o imprevisto, para o indeterminado, ao passo que a codificao se define justamentepela organizao e pelo controle dos processos14. A principal conseqncia desta codificao anecessria eliminao de todas aquelas dimenses sonoras que no podem ser controladas eorganizadas, de tudo o que no cabe na "grade" da digitalizao15 (cf.Fig.4).

    FIG.3:

    T: TransduoC: Codificao

    D: Decodifica o

    Gravao Digital Reproduo Digital

    EnergiaEltricaD

    InformaoDigitalC

    T EnergiaMecnica

    EnergiaEltricaT

    EnergiaMecnica

    Evidentemente, no se trata de atribuiruma vantagem tcnica aos argumentos dos

    defensores do vinil. Muito pelo contrrio, emtermos estritamente tcnicos eles raramenteacertam o alvo. O espectro de freqnciasalcanadas pelo vinil, por exemplo,diferentemente do que alegam seus defensores,no alcana freqncias mais graves do que o CD.Pelo contrrio, enquanto o vinil esbarra no limitefsico de 7Hz (e mesmo assim chegando a apenasem casos extremos), a natureza informacional doCD goza de uma maior autonomia frente slimitaes fsicas, podendo chegar a freqncias prximas de 0Hz16. Alm disso, os DJs de

    msica eletrnica (mesmo aqueles que condenam o uso de mdias digitais em apresentaes)seriam certamente os primeiros a reconhecer o papel central das tecnologias digitais na produomusical contempornea. O DJ de house citado acima, por exemplo, defende o vinil como "osuporte final encontrado pelo produtor musical para, aps o uso de vrias possibilidadesavanadas da tecnologia de ponta", dentre as quais se destacam as digitais ("sequencer digital,

    FIG.4: Diagrama demonstrando a transformao sofrida pela ondasonora com o processo de codificao/decodificao entre as duastransdues (microfone e alto-falante). Fonte: Holland (1989:11)

    14 O principal referencial terico acerca da dimenso conceitual destas questes , sem dvida, Deleuze e Guattari(1976, 1995/1996/1997). Outras referncias importantes so Simondon (1992) e Mackenzie (2001).15 A exigncia tcnica de que a taxa de amostragem da digitalizao do som seja no mnimo o dobro da freqnciasonora mxima desejada (conhecida como o "teorema de Nyquist"), por exemplo, faz com que se estipuledeliberadamente (e com argumentos cientficos) uma freqncia mxima alcanada pelas gravaes digitais

    (22,05kHz). Toda codificao sempre deixa algo de fora.16 O curioso que justamente no extremo oposto do espectro que o vinil se mostra superior ao CD, chegando a25kHz enquanto este no passa de 22,05kHz (no entanto, este limite do CD no absoluto, podendo ser ampliadocom o aumento da taxa de amostragem e o emprego de algoritmos diferentes).

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    mp3, wav, [...]sofs"), "reforar a qualidade dos novos timbres descobertos". Trata-se, como elefaz questo de apontar, de "uma questo de freqncia". No entanto, se a msica produzida pormeios digitais e apenas posteriormente registrada em uma mdia analgica, vale perguntar: comofazer aparecer ali freqncias que supostamente no seriam acessveis s mdias digitais? Trata-se, aparentemente, de um contra-senso. Mas se, como afirmou Deleuze, "[p]or trs dos contra-sensos sempre h uma poltica" (1992:35), ento qual seria ela?

    Em primeiro lugar, preciso reconhecer a legitimidade do argumento tecnoesttico.

    politizao tecnoesttica do discurso dos DJs a

    Quando um DJ nos incentiva a "ouvir a mesma msica [em CD e vinil] num bom equipamento esom bastante alto, como a gente gosta", para s depois emitir julgamentos acerca de sua"qualidade sonora/tcnica", ele est sugerindo que, para alm de qualquer contra-senso tericoou conceitual, h uma evidncia experiencial do som que comprovaria a superioridade da mdiaanalgica frente s digitais, mesmo que nela estejam registrados sons produzidos digitalmente.Com argumentos anlogos aos de tpicos audifilos, o DJ defende a existncia de qualidadessonoras que, apesar de inaudveis para a maioria das pessoas, so concretas o suficiente para

    justificar os gastos bastante elevados comuns em equipamentos de alta-fidelidade17. Assim, sepor um lado podemos certamente duvidar do "reforo" que o registro analgico poderia conferira timbres digitais (visto que as freqncias "reforadas" deveriam j necessariamente estarem

    presentes no meio digital), por outro devemos certamente confiar na experincia perceptiva doDJ. E mesmo se no quisermos nos ater a "sons inaudveis", o fato que a amplificao de umdisco de vinil, a partir de um certo ponto ("alto, como a gente gosta"), pode de fato produzir, porum efeito de retroalimentao (feedback), um reforo (normalmente indesejado e interpretadocomo rudo) das freqncias graves. Assim, a vibrao da agulha do toca-discos (energiamecnica) provocada pelos sulcos do disco passa a sofrer interferncias da vibrao de todo oambiente onde o som que ela prpria gera reverberado (energia mecnica), passando assim atransduzir freqncias que no esto tecnicamente registradas no prprio disco mas que,efetivamente, so experienciadas pelos ouvintes. Nada disso ocorre com o CD, visto que nele osom no produzido diretamente pela transduo de vibraes mas sim indiretamente peladecodificao da informao que o representa18.

    Em segundo lugar, preciso interpretar apartir do contexto mais amplo em que ele se insere, para alm das disputas internas prpria"cena". Um bom exemplo destas linhas de fuga que transpassam este campo de foras e quecontribui para a sua manuteno o caso da "Campanha Pro Vinil" contra a supertaxao dosdiscos de vinil, lanada no incio de 2003 por um grupo de pessoas envolvidas com a "cenaeletrnica" e que causou grande repercusso no meio. Esta campanha busca reduzir a taxao dogoverno sobre a importao de discos de vinil importados. O argumento utilizado o supostoequvoco de se taxar um "produto cultural" como o disco de vinil como se ele fosse um produtoindustrial qualquer. Como reforo a este argumento, figura a afirmao de que o vinil oprincipal instrumento de trabalho dos DJs, profissionais estes que contribuiriam para a cultura, o

    lazer e o turismo nacionais. Assim, a mobilizao de argumentos tecnoestticos para avalorizao de uma imagem do vinil como instrumento de trabalho privilegiado dos DJs ganha,para alm da dimenso micropoltica da "cena", dimenses macropolticas que envolvem

    17 Para uma intrigante polmica acerca das diferenas "imperceptveis mas concretas" entre um amplificador de US$6 mil e outro de US$ 700, cf. O'Connell (1992).18 Evidentemente, a maior autonomia entre meio e mensagem na gravao digital no impede a retroalimentao dasvibraes do ambiente ou mesmo de outras interferncias como fumaa, lquidos etc (ela apenas relativa, nunca

    absoluta). No entanto, justamente por esta maior autonomia, a interferncia deixa de ser gradativa (mais "calorosa","sensvel" e esteticamente valorizada) e se torna brusca (percebida como "fria", "insensvel" e esteticamentedesvalorizada). Umfeedbackexcessivo pode, no entanto, produzir "pulos" da agulha, que so ento todesvalorizados quanto os erros de leitura dos CDs.

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    projetos de reforma legislativa, pesquisas de opinio, coleta de assinaturas em todo o pas,consultoria jurdica e a busca de apoio entre instncias polticas como o Ministrio da Cultura19.

    O fato de no haver uma contra-defesa significativa dos meios digitais contra osanalgicos no tira, portanto, o sentido da disputa promovida pelos defensores do vinil. Adeslegitimao do uso de mdias digitais por este discurso no teria como alvo ltimo os prpriosDJs que tocam com CDs (apesar de serem eles os alvos explcitos) mas sim toda uma lgica

    mercadolgica annima e generalizada identificada por rtulos fluidos como o "mainstream", a"indstria", e outras entidades totalizantes e repressoras das virtualidades libertadoras erevolucionrias vinculadas msica eletrnica experimental e underground. O aparente contra-senso entre as tecnoestticas analgica e digital se resolve assim na forma de uma polticaundergroundque reivindica valores como a solidariedade (contra o individualismo), o respeito diferena (contra a massificao) e a experimentao esttica (contra a reiterao de valoresreacionrios)20. O discurso deslegitimador dos DJs que tocam com CDs indica, assim, umacrtica menos s contingncias que obrigam at mesmo os defensores do vinil a fazerem uso demdias digitais e mais contra a reproduo irrefletida e inconsciente de valores consideradosrefratrios a este esprito contestatrio e revolucionrio da msica eletrnica. A organizaodeste discurso em um movimento nacional de interveno poltica direta seria, assim, apenas a

    manifestao molar de uma politizao essencialmente molecular (uma micropoltica), que se dao nvel das relaes, dos afetos e das sensibilidades. Politizar tecnoesteticamente o discurso poisse trata de tentar provocar, nos "tocadores de CD", a conscientizao para dimensespropriamente microfsicas do poder que se escondem desde os "subgraves" at os "rudosinaudveis".

    Mas se os contra-sensos do discurso dos DJs acabaram revelando uma micropoltica,ento como avaliar sua eficcia? Seria a defesa do vinil contra o CD realmente a melhor maneirade combater os valores rejeitados por esta nova sensibilidade tecnoesttica? No haveriammaneiras mais eficazes (e menos sectrias) de operacionalizar esta politizao? Vejamos agora, apartir de alguns exemplos de discursos menos rigidamente centrados nas propriedades intrnsecasa determinadas mdias e tecnologias e mais voltados para as suas margens de indeterminao epara as virtualidades a que do origem em determinados agenciamentos coletivos, algunsexemplos destas outras possibilidades de politizao tecnoesttica.

    FETICHES ANALGICOS E FUTUROS DIGITAIS21

    "Tocar vinil faz parte da cultura do DJ, mas isso no significa que esse fundamento no possa serquestionado" [6]

    Vimos que a politizao do discurso dos DJs se d sobre um aparente contra-senso, que a defesa tanto do potencial libertador das tecnologias digitais quanto da superioridadetecnoesttica de uma mdia analgica especfica sobre as mdias digitais disponveis. Tudo se

    passa como se os meios digitais devessem ser usados pelos DJs apenas nos "bastidores", noprocesso de produo musical, e o disco de vinil fosse o nico meio legtimo para se apresentarno "palco" propriamente dito. Um DJ tocando com CDs no aparentaria ser mais do que "umapessoa qualquer" tocando CDs, ao passo que um DJ tocando com discos de vinil aparentariapossuir habilidades especficas e conhecimentos privilegiados. E esta aparncia reforada pelamobilizao de toda uma tecnoesttica que apela para diferenas substantivas na reproduo decertas freqncias, no controle manipulativo direto da mdia e no financiamento de um "mercadoalternativo underground"que seriam intrnsecas s prprias mdias (o CD no oferecendo taisfreqncias, nem a segurana de tal controle, tampouco o devido retorno financeiro aos artistas).

    19 Nas palavras do DJ: "houve um contato com hermano vianna, representando o ministro gilberto gil, q ficousensibilizado, mas so sei isso." Sobre a "Campanha Pro Vinil", cf. Semola (2003).20 A sigla P.L.U.R. (Peace, Love, Unity, Respect), evocada freqentemente pelos agentes, sintetiza esta atitude.21 Subttulo eloqente do timo texto de Mike Berk (2000).

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    Assim, o contra-senso deste discurso acaba involuntariamente dividindo sua prtica entre umaespcie de "superestrutura analgica" do DJ (sua imagem idealizada) e uma "infra-estrutura"digital (suas relaes concretas de produo).

    Mas se a politizao do discurso dos DJs se d sobre um contra-senso, talvezaprofundando-nos nele pudssemos descobrir suas dimenses propriamente micropolticas(ainda no organizadas em um discurso), suas dimenses propriamente produtivas. A pesquisa

    da lista de discusso aqui empregada revela que os ataques dos "defensores do vinil" vm,geralmente, em "ondas". Geralmente deflagrados por desenvolvimentos de mdias digitaisconsiderados "ameaadores" para o disco de vinil, estes ataques normalmente se iniciam demaneira bastante violenta e passional, demonstrando uma necessidade profunda de, como bemexpressou um DJ, "defender um territrio arduamente conquistado", e posteriormente seabrandam e se matizam pela fala de DJs que subordinam as mdias a traos considerados maisrelevantes da atividade dos DJs, como a relao com o pblico, a capacidade de produzirexperincias estticas e existenciais e, enfim, "o 'poder' do DJ de fazer uma pista ferver". Umbom exemplo deste processo foi a primeira apario, na lista de discusso pesquisada, decomentrios sobre um equipamento concebido especialmente para DJs chamado Final Scratch.

    Composto basicamente por um software que deve ser instalado em um computador, um

    hardware que faz a interface entre este computador e os toca-discos e dois discos de vinilgravados com informaes digitais, o equipamento gerou, inicialmente, crticas extremamenteferozes (na maior parte das vezes equivocadas) sua suposta desqualificao da tecnoestticaque fundamenta a politizao do discurso dos defensores do vinil22. Num segundo momento,aps manifestaes menos radicais de DJs que demonstram ter mais conhecimento doequipamento, o discurso se tornou mais matizado, incorporando possveis benefcios desta novatecnologia e corrigindo mal-entendidos do primeiro momento23. A percepo de que o novoequipamento seria menos um concorrente ao disco de vinil, menos um ataque digital s mdiasanalgicas, e mais uma "confuso" entre o digital e o analgico, um grau de interpenetraoindito entre eles, possibilitou o surgimento, neste segundo momento, de opinies muito menossectrias e voltadas para a "preservao" de uma determinada mdia e muito mais atentas saberturas que ele produz s virtualidades da tecnoesttica. Por exemplo:

    "Vamos por partes:1. Por qu o vinil fascina tanto? Ora, foi o primeiro a existir. H toda uma mstica em torno dele; o

    prazer de fazer uma bolacha girar nas mesmas bpms da outra uma coisa sensacional...

    22 Um bom exemplo deste primeiro momento a seguinte fala de um DJ de drum'n'bass: "final scratchs uma va.vscratchz l no raio que o parta. [...] Alguem me responde onde fica o DJ e o vinil nesta historia? conto de fadas,Final Scratchs coisa pra dj burro dormir e ficar aperatando boto e d infarto ficar parado, coisinha tipo do mundoque d lucro fcil. mais uma ferramenta contra o verdadeiro dj da cena. me desculpe mas fico indignado contra os

    que querem lucro certo e mixagem fcil, e contra o nossso saudoso e rei da cena o VINIL, ou eles querem que o djseja mais um Z ninquem,man,scratch,final........"23 Seguem alguns exemplos de depoimentos de diferentes DJs: "Bom, eu tive o prazer de experimentar o FinalScratch, o equipamento muito bom, voc seleciona no viny especial o pedal da msica como se estivesseselecionando em um cdj, bem preciso, porm no se compara com um viny, digo na minha opinio que acomparao pode chegar a 80%. Fizemos um teste colocando um dj de performance daqui [...] Com a suaperformance, precisa e rpida percebemos um buffer de memria na transmio do lap para o processador de sinal[...], ou seja, por mais que a mquina seje boa [...], essa tecnologia poem em risco a utilizao do cd e no a dovinil."; "Vamos lembrar um coisa o final scratch ainda usa o vinil, mesmo que seja especial ele ainda esta lah, [...].Ou seja, juntaram o analogico e o digital."; "Final Scratch torna possvel a manipulao fsica de arquivos em MP3ele possibilita ao DJ manipular arquivos de udio estocados no PC atravs de uma interface fsica [...]. Na verdade,ele apenas torna possvel a interao entre arquivos binrios e as pick-ups. Pode ser uma boa para um DJ de poucosrecursos, pois tocar msicas prprias ou baixadas da internet bem mais barato do que comprar vinil importado ou

    prensar um dubplate. No entanto, a habilidade em mixar e tocar os discos continua sendo o principal requisito, sejacom vinil, CD, MP3 ou com o Final Scratch. Como diz o manual do equipamento: "talento no includo"; "na minhaviso no tira a criatividade do DJ, at pelo contrrio, como lhe facilita a vida, lhe permite ir mais longe nas suasmixagens."

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    2. O cd veio pra ficar. No d pra fujir dele. prtico, leve, cabe em qualquer bag e os aparelhosfacilitam a tcnica de mixagem...

    3. E o final scratch? Ainda no tive a oportunidade de ver um, mas tecnologia, e quer queiramos ouno, est a. Se eu tiver a oportunidade de usar um algum dia... porque no?

    [...] [C]onvenhamos que o que est em jogo aqui o trabalho do dj, certo? O que importa na minhaopinio a maneira como o cara 'levanta' uma pista, pode ser com vinil, cd, final scratch, mp3, at com k7(ainda existe? hehe). [...] Nas minhas mixagens uso vinil e tambm uso o cd (e no tenho vergonha de us-lo

    no) e usaria qualquer outro meio pra tocar numa festa, como j disse o que importa se vc est fazendo beme com amor ao que se faz. [...] Muitos dizem "Save the vinyl" , concordo. Mas porqu no dizer tambm"save The cd", "save the laptop" e o que mais importante: [...] SAVE THE DJ!!!!!!!!!!!!!!!!!!" [7]

    O que vemos nesta citao [7], assim como naquela que abre esta seo [6], no mais adefesa ardorosa de uma mdia associada deslegitimao igualmente ardorosa de outra, mas simuma defesa, sempre ardorosa ("!!!!!!!!!!!!!!!!!!"), maneira como um tcnico-artista especfico(o DJ) emprega diferentes mdias em sua relao com seu pblico. E o efeito desta transfernciada nfase do objeto (a mdia em si) para a relao que ele media (a capacidade do DJ de gerar o"acontecimento") acaba sendo a revelao da existncia de um certo fetichismo "limitador" pelodisco de vinil. O DJ supracitado [7] no precisa deslegitimar nenhuma mdia (pelo contrrio, osdois primeiros itens de seu email demonstram qualidades tanto dos discos de vinil quanto dosCDs), tampouco temer a nova tecnologia que se apresenta ("porque no?"), pois demonstra plenaconscincia de que "o que importa [...] a maneira como o cara 'levanta' uma pista". Se, comoafirma outro DJ, "90% do pblico no est nem a pro tipo de parafernlia que o DJ t usando",estando preocupado apenas em "danar e curtir o set"24, ento subitamente todas asespecificidades da mdia analgica mobilizadas pelo discurso defensor do "DJ tocador de discosde vinil" passam para o segundo plano, atrs de novas possibilidades nunca antes vistas e agoraconcebveis de interao entre o DJ e o seu pblico.

    importante notar que grande parte da aceitao (ou pelo menos a trgua nos ataques)que o Final Scratch obteve aps o impacto inicial se deveu justamente ao fato de que ele poderiaser visto como uma "vitria" do disco de vinil sobre o CD. Com efeito, muitos louvaram a

    possibilidade de finalmente poderem tocar seus arquivos digitais baratos e prticos "como se"fossem msicas gravadas em discos de vinil e reproduzindo para o pblico a imagem tradicionale socialmente legitimada do vinil como instrumento de trabalho do DJ. Teramos, assim, umanova verso do fetichismo pela mdia analgica, s que agora sem a legitimidade tecnoestticado discurso original visto que, no Final Scratch, ainda estamos no mbito da digitalizao(cf.Fig.3) pois os sulcos do disco de vinil lembrariam muito mais os cdigos impressos nos CDsdo que as ondas gravadas nos discos de vinil convencionais (cf.Fig.1)25 e tambm sem grandeparte de sua fora poltica, pois continua no havendo o incentivo ao financiamento de artistas demsica eletrnica underground. Muitos encaram, assim, o Final Scratch como um substituto doCD que ainda reproduz a maior parte de seus defeitos, no apenas pela percepo de que ele nosubstitui as particularidades tecnoestticas do som analgico mas tambm porque ele deve

    necessariamente ser tambm empregado como um "quebra-galho" e nunca como um substitutodo produto legtimo (que o disco de vinil, adquirido com o pagamento do artista).Evidentemente, no podemos fazer aqui mais do que constatar os limiares e tenses que

    configuram este campo de foras e sugerir possveis virtualidades e devires imanentes ao prpriocampo. A mobilizao de especificidades tanto das mdias analgicas quanto das digitais naconstruo de "mquinas de guerra" capazes de legitimar a experimentao e os valores

    24 " Os 10% restantes", continua o DJ, "so, geralmente, DJs habilidosos no em agulhar, mas em alfinetar o colega,independentemente do talento que o cara tenha."25 O som produzido pela transduo da energia mecnica da vibrao da agulha nos sulcos dos discos especiais doFinal Scratch no guarda nenhuma analogia com o som produzido pela decodificao da informao ali gravada

    pelo resto do equipamento. A interface do Final Scratch pode at permitir ao DJ manter a sua "imagem" e conseguirum controle mais fino do som (no mais mediado por botes), mas o som produzido continua sendo digital e,portanto, sujeito a diversas crticas dos defensores do vinil (no h, por exemplo, o j referidofeedbackdoambiente).

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    advogados pelos DJs de msica eletrnica underground, para alm dos seus contra-sensosfragilizadores, demonstra a gradual construo de uma sensibilidade musical contemporneapoliticamente engajada26. No entanto, justamente por ser esta uma micropoltica tecnoesttica,ela dificilmente capaz de se fazer valer ao nvel das instncias macropolticas oficiais semrecorrer a fetichismos e evidentes contra-sensos. Cabe aos cientistas sociais debruados sobreesta questo no tanto "dar voz" aos DJs, como se eles no soubessem falar por si mesmos, mas

    sim explicitar os obstculos infra-estruturais que enfraquecem este discurso, colocando-o diantede suas prprias contradies para que ele delas possa se alimentar. Partimos do princpio de queo grupo social pesquisado sabe se expressar perfeitamente, sendo o papel do pesquisador no ode falar "por" ele (o que seria j "uma forma de represso"; cf.Ferguson, 1990:5) e sim contribuirpara a desconstruo do "sistema de poder que barra, probe, invalida esse discurso e esse saber"(Foucault e Deleuze, 1992:71).

    No devemos duvidar da existncia de uma diferena de natureza entre as mdias digitaise as analgicas. Vimos como toda digitalizao envolve a eliminao de certas dimenses daexperincia musical consideradas "imperceptveis" (cf.Fig.4). Tampouco devemos fechar osolhos para as relaes de poder envolvidas nas axiomatizaes tecnocientficas que impesensibilidades massificadoras sobre as singularidades caosmticas27 da percepo musical. Os

    alegados "limites" psicoacsticos do "ouvido humano", objetificados nas tecnologias dedigitalizao do som, so sempre imposies de certas sensibilidades sobre outras possveis. Masa disputa entre o analgico e o digital poderia no se limitar s mdias, aos objetos, como sefossem "conquistas" a serem preservadas contra ameaas.

    Se pudermos definir o fetichismo como uma "relao social entre os prprios homens quepara eles aqui assume a forma fantasmagrica de uma relao entre coisas" (Marx, 1985:71),ento veremos que o problema dos defensores do vinil parece ser a atribuio a objetos tcnicosanalgicos de uma relao que na verdade se d entre eles e o pblico. Vimos que vozes menossectrias so capazes de transferir a oposio entre o analgico e o digital, das mdias e objetostcnicos, para a prpria relao entre o DJ e seu pblico, opondo no o disco de vinil ao CD massim o DJ "elitizado" que se acha mais "profissional" e " verdadeiro" do que os outros pela mdiaque utiliza ao DJ que coloca a experincia musical compartilhada acima de qualquer escolhainstrumental. Como vimos, mdias digitais podem efetivamente contribuir para uma aproximaoentre o DJ e seu pblico atravs da abertura a virtualidades tecnoestticas antes desconhecidas28.Cabe aos DJs que se deixam afetar por estas virtualidades a desfetichizao de suas prpriasrelaes sociais e a descoberta dos devires prprios de nossa sociedade contempornea.

    26 Estudos de destaque sobre a msica eletrnica feita por DJs, independentemente de suas orientaes tericas,sempre dedicam algum espao ao tema das implicaes polticas, tcnicas e estticas das mdias analgicas edigitais (e.g.Thornton, 1996:63-6; Poschardt, 1998:230-2; Reynolds, 1999:40-55; Brewster e Broughton, 2000:404-6; Berk, 2000).27 Uso aqui o conceito guattariano (Guattari, 1992) para me referir abertura criativa da transduo analgica aodesconhecido/indeterminado.28 Um caso exemplar desta "des-digitalizao" da relao entre o DJ e seu pblico atravs de um uso "analgico" denovas tecnologias digitais o seguinte "pensamento fantasioso" de um DJ: "[I]magine um computador mini-itxporttil, pra se levar pra qualquer lugar. De anormal nele, s aquela placa de som Turtle Beach Santa Cruz com 32canais separados no hardware. [...] Rodando nessa mquina, o Linux 2.6, talvez no DeMuDi. [...] Agora imagine que

    esse computador tem conectividade infravermelha (no to difcil nem caro de conseguir) ou bluetooth, se quiseresbanjar um pouco mais. [...] Para completar tudo, imagine um DJ com um palmtop com um programa cliente(talvez um VNC) -- voil! Largue o computador sem monitor ligado nas caixas de som e controle o som deDENTRO da pista. [...] Caxas de retorno? Pra que isso?"

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