Fernando Pessoa e Heterónimos

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Custódia Rebocho Fernando Pessoa No dizer de Isabel Pascoal (1992), o nosso poeta ícone do Modernismo português: «Deambulando entre o Tudo e o Nada, o Ser e o Não-Ser, o Oculto e o Real, o Sonho e o Sono, a Exaltação e o Tédio, Pessoa não evolui, passeia-se por «paisagens do Ali e do Agora», e deixa-se atrair pela Máscara que lhe devora o Rosto, tornando-se, como o seu nome indica, Ninguém. É o nosso grande poeta simbolista como Eduardo Lourenço defende num dos ensaios de Fernando, Rei da Nossa Baviera. E é o nosso grande poeta da depressão, em todos os sentidos (político, social e pessoal), no dizer do mesmo ensaísta. A sua «ânsia sem princípio ou fim», o seu sentido do «enredo», o seu jogo permanente com todas as significações deixam-nos este desafio subtilmente irónico e disfarçadamente trágico, onde nos revemos como num espelho: «Alguns me saibam sentir / Mas ninguém me definir.»

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Principais características de Pessoa Ortónimo e heterónimos

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Custódia Rebocho

Fernando Pessoa

No dizer de Isabel Pascoal (1992), o nosso poeta ícone do Modernismo português:

«Deambulando entre o Tudo e o Nada, o Ser e o Não-Ser, o Oculto e o Real, o Sonho e o Sono, a Exaltação e o Tédio, Pessoa não evolui, passeia-se por «paisagens do Ali e do Agora», e deixa-se atrair pela Máscara que lhe devora o Rosto, tornando-se, como o seu nome indica, Ninguém.

É o nosso grande poeta simbolista como Eduardo Lourenço defende num dos ensaios de Fernando, Rei da Nossa Baviera. E é o nosso grande poeta da depressão, em todos os sentidos (político, social e pessoal), no dizer do mesmo ensaísta.

A sua «ânsia sem princípio ou fim», o seu sentido do «enredo», o seu jogo permanente com todas as significações deixam-nos este desafio subtilmente irónico e disfarçadamente trágico, onde nos revemos como num espelho: «Alguns me saibam sentir / Mas ninguém me definir.»

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Custódia Rebocho

Fernando Pessoa, Ortónimo

«O poeta é um fingidor»

A angústia existencial e a nostalgia são marcas de Pessoa ortónimo.A sua poesia revela a despersonalização do poeta fingidor, que fala e que se identifica com a própria criação poética.

Bastante diversificada, a sua produção, vai desde os poemas do Cancioneiro aos do Paulismo e do Interceccionismo.

No poema Impressões do Crepúsculo, o significado de paul liga-se à água estagnada, aos pântanos, onde se misturam e se confundem imensas matérias e sugestões. O Interseccionismo consiste na sobreposição de elementos como o aqui e o além, o agora e o passado, o real e o onírico.

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Fernando Pessoa, Ortónimo

«O poeta é um fingidor»

Temáticas mais frequentes:

Dor existencial – angústia Nostalgia do bem perdido, do mundo fantástico da

infância; Fragmentação do «eu»Intelectualização do sentir Obsessão da análise;Procura; Absurdo; Profunda lucidezSátira (Humor)Erotismo

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Fernando Pessoa, um caso clínico?

Considerado por alguns como um caso clínico, segue um exemplo do que Pessoa escrevia nas cartas e na prosa: "O meu caso é de natureza psíquica... Sou um histeroneurasténico com predominância do elemento na emoção e do elemento neurasténico na inteligência e na vontade... Partiu-se a corda do automóvel velho que trago na cabeça e o meu juízo, que já não existia, fez tr-r-r-r... Tenciono ir para uma casa de saúde ver se encontro ali tratamento que me permita resistir à onda negra que me está caindo sobre o espírito... A minha alma partiu-se como um vaso vazio... Sou um espelhamento de cacos. Quantos sou eu? Sabes quem sou? Eu não sei. Medo de amor. Tenho sonhado mais do que Napoleão fez." 

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Fernando Pessoa e a Heteronímia

Sobre a génese dos heterónimos refere Pessoa sempre ter tido, desde criança, a tendência para criar, à sua volta, num mundo de fantasia, figuras várias, «figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida real. (…)

Como escrevo em nome desses três?... Caeiro por pura e inesperada inspiração, sem saber ou sequer calcular que iria escrever. Ricardo Reis, depois de uma deliberação abstracta, que subitamente se concretiza numa ode. Campos, quando sinto um súbito impulso para escrever e não sei o quê.»

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O Mestre, Alberto Caeiro

«Pensar incomoda como andar à chuva»

«O que a poesia de Caeiro diz é a ficção de uma linguagem (realmente) nova, de um projecto de vida e de visão do mundo. Trata-se de um projecto de (re)encontro com as coisas naturais e de adequação à sua realidade evidente e opaca, à sua diversidade e permanente diferença. Este projecto implica dizer uma aceitação da aparência das coisas, que é também uma descoberta delas, tais como se revelam nas sensações, e na medida em que os sentidos se libertem das concepções comuns e herdadas, das palavras, das ideias, teorias, valorações e imagens feitas, que ocultam a irredutível natureza das coisas. Assim, neste projecto, diz-se uma suspeita intransigente em relação ao pensamento e à consciência, assim como em relação a toda a acção humana de intervenção no mundo.»

Manuel Gusmão in A Poesia de Alberto Caeiro

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O Mestre, Alberto Caeiro

«Pensar incomoda como andar à chuva»

Recusa do vício de pensar, da reflexão sobre o enigma da existência, daí a espontaneidade e a coincidência do ser e do estar, com o predomínio das sensações sobre tudo o resto:

«[…] Para mim pensar nisso é fechar os olhos / E não pensar»; «Procuro encostar as palavras à ideia»; «Sou o Argonauta das sensações verdadeiras»

Panteísmo sensualista que permite uma vida sem dor, sem a angústia do envelhecimento e da morte; recusa da metafísica e, consequentemente, a criação de uma filosofia de vida:

«Mas a minha tristeza é sossego / Porque é natural e justa»; «Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos:- As coisas não têm significação: têm existência. / As coisas são o único sentido oculto das coisas»; «Há metafísica bastante em não pensar em nada»

Ser uno, feliz, em comunhão com a Natureza

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Álvaro de Campos, poeta futurista – 1ª fase

«A paixão do fracasso»

Esta primeira fase, a decadentista, revela-se a expressão do tédio e da abulia, de que a experiência do ópio é um falso lenitivo.

«É antes do ópio que a minh’alma é doente.

Sentir a vida convalesce e estiola

E eu vou buscar ao ópio que consola

Um Oriente ao oriente do Oriente.»

Este é o Campos antes de ter conhecido Alberto Caeiro e de ter «caído sob a sua influência» como referiu o próprio Pessoa.

Nota: O «Opiário» surgiu como necessidade de completar o número de páginas da primeira edição da revista Orpheu.

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Álvaro de Campos, poeta futurista – 2ª fase

«Sentir tudo de todas as maneiras»

O engenheiro naval, poeta futurista, sensacionista e, por vezes, escandaloso – segundo Fernando Pessoa – apresenta algumas características como:Predomínio da emoção espontânea e torrencial;Elogio da civilização industrial, moderna, da velocidade e das máquinas, da energia e da força, do progresso - Virado para o exterior, tenta banir o vício de pensar e acolhe todas as sensações: «Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos, / [...] E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso / De expressão de todas as minhas sensações»

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Álvaro de Campos, poeta futurista – 3ª fase

«A minha alma partiu-se como um vaso vazio»

Ansiedade e confusão emocional – Angústiaexistencial «Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?»Tédio, náusea, desencontro com os outros «[...] invoco / A mim mesmo e não encontro nada» Presença terrível e labiríntica do «Eu» de que o poeta se tenta libertar - fragmentação do «Eu» - perda de identidadeSentido do absurdo – Excitação da procura, da busca incessante «Nada me prende a nada / [...]Anseio com uma angústia de fome de carne / O que Não sei o que seja - / Definidamente pelo indefinido... / E durmo irrequieto, e vivo num sonhar irrequieto / De quem dorme irrequieto, metade a sonhar»

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Custódia Rebocho

Álvaro de Campos, poeta futurista – 3ª fase

«A minha alma partiu-se como um vaso vazio»

É o heterónimo que mais se aproxima do Ortónimo, principalmente na fase abúlica. São comuns a ambos temáticas em que se encontram: reminiscências do mundo fantástico da infância, solidão interior, angústia existencial, cepticismo, tédio e náusea.«Temos todos duas vidas: / A verdadeira que é a que sonhamos na infância» - Álvaro de Campos«E toda aquela infância / Que não tive me vem / Numa onda de alegria» - Pessoa Ortónimo«Que náusea de vida! / Que abjecção esta regularidade» - Álvaro de Campos«Não sei o que faça / [...] E o tédio é imenso.» - Pessoa Ortónimo

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Custódia Rebocho

Ricardo Reis, o classicista

«Inglória é a vida, e inglório o conhecê-la»

Toma dos gregos o epicurismo, carpe diem, (gozar do momento presente pela harmonização de todas as faculdades, através da disciplina) e o estoicismo (subordinação das qualidades inferiores do espírito às superiores, através da disciplina) numa tentativa de atenuar a angústia do envelhecimento e da morte:

«Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos, / Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias, / Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro / Ouvindo correr o rio e vendo-o.»

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Custódia Rebocho

Ricardo Reis, o classicista

«Inglória é a vida, e inglório o conhecê-la»

Assim, gozar a vida torna-se um exercício da razão; discípulo do Mestre Caeiro aconselha a aceitação calma da ordem das coisas, indiferente ao social. Todavia, contrariamente ao Mestre, o seu gozo pela vida pauta-se pela contenção, pelo distanciamento dos acontecimentos para evitar o sofrimento:

«Meus irmãos em amarmos Epicuro

E o entendermos mais de acordo com nós-próprios que com ele,

Aprendamos na história dos calmos jogadores de xadrez

Como passar a vida.»

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Custódia Rebocho

Fernando Pessoa

«Não sei quem sou, que alma tenho»

A originalidade e a inovação no processo de criação literário são, talvez, as características mais marcantes da poética pessoana.

Na verdade, Fernando Pessoa, como poeta modernista que é, rompe com a tradição lírica que defendia que o sujeito poético devia extravasar as suas emoções e os seus sentimentos através da escrita. Para Pessoa, a produção poética, o poema, é sempre uma construção de linguagem, tanto mais que surge como resultado de uma activideade mental e não emocional.

Todavia, Pessoa não exclui o sentimento da criação poética, simplesmente intelectualiza-o, tornando-o em algo abstracto. E só depois desta transformação – do emotivo em racional e/ou vice-versa – ganha substância a palavra poética. Como o próprio afirma: «Pouco importa o que sintamos, o que exprimimos; basta que, tendo-o pensado, saibamos fingir bem tê-lo sentido.»