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Fernanda Telha Ferreira Reyes Mate e a Justiça das Vítimas Uma perspectiva anamnética Dissertação de Mestrado Dissertação apresentada ao Programa de Pós- Graduação em Direito da PUC-Rio como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito. Orientadora: Profª. Bethânia de Albuquerque Assy Rio de Janeiro Abril de 2015.

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Fernanda Telha Ferreira

Reyes Mate e a Justiça das Vítimas

Uma perspectiva anamnética

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da PUC-Rio como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientadora: Profª. Bethânia de Albuquerque Assy

Rio de Janeiro Abril de 2015.

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Fernanda Telha Ferreira

Reyes Mate e a Justiça das Vítimas

Uma perspectiva anamnética

Dissertação de Mestrado

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito da PUC-Rio como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada:

Profª Bethânia de Albuquerque Assy Orientadora

Departamento de Direito – PUC-Rio

Profª. Carolina de Campos Melo Departamento de Direito - PUC-Rio

Prof. José Ricardo Wanderley Dornelles Departamento de Direito - PUC-Rio

Profª. Mônica Herz Vice-Decana de Pós-Graduação do Centro de

Ciências Sociais – PUC-Rio

Rio de Janeiro, 14 de abril de 2015.

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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do autor e do orientador.

Fernanda Telha Ferreira

Formada em Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestranda em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

Ficha catalográfica

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CDD: 340

Ferreira, Fernanda Telha. Reyes Mate e a Justiça das Vítimas: Uma perspectiva anamnética / Fernanda Telha Ferreira; orientador: Bethânia de Albuquerque Assy. – Rio de Janeiro: PUC-Rio, Departamento de Direito, 2015. xii.; 163 f. : 29,7 cm Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. Inclui bibliografia 1. Direito - Teses. 2. Justiça. 3. vítimas. 4. memória. 5. testemunho. I. Assy, Bethânia de Albuquerque. II. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Departamento de Direito. III. Título.

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À Valmir, Débora e Renata. O meu amor por vocês não tem fim. Não tenho

dúvidas de que a família é uma parte linda do ser humano. Vocês são a base do

que tenho me tornado.

À Lucas, que em um mundo sem heróis, tem sido o meu todos os dias.

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Agradecimentos

Sinto-me grata de alcançar o final, sabendo que não foi fácil para mim – e

eu só poderia falar desta única experiência que conheço: a minha vivência

singular e particular – e não poderia deixar de agradecer aqueles que estiveram

comigo, mesmo que essas linhas não deem conta de abraçar em palavras a todos,

como eu desejaria. Sei que vocês foram aqueles que mais torceram por mim, e

fico mais grata ainda por estar enlaçada a vocês por meio de um carinho profundo.

Ao meu esposo amável, Lucas, por estar comigo todos os dias de coração

integral. Nas dificuldades, e frente a cada “pedra no meio do caminho”.

Aos meus queridos pais, Valmir e Debora. A realização de dedicar esse

trabalho a vocês não tem preço. Amo tanto vocês que se torna difícil agradecer,

porque o seu amor sacrificial não tem contrapartida.

À minha linda irmã Renata, porque você sempre me carregou no colo,

literalmente todas as vezes que precisei. Ao meu irmão Moacir, que tem sido o

encarregado pelas comemorações que dão o tom certo da celebração regozijante

do nosso coração.

À minha nova família. Jeronimo, Zeneide, Priscila e Matheus. Vocês

sempre me deram muito amor, e eu amo muito vocês por isso. Por meio de vocês

sinto o privilégio de receber duplamente o carinho materno, paterno e fraterno.

Aos meus amigos: Patricia e Felipe, pelas longas conversas, pelo entusiasmo

sobre o futuro, e pelos cafés no fim de tarde. Patricia por ser uma amiga e

madrinha maravilhosa, por seus quitutes que adoçam nossas vidas, e Felipe por

seu jeito sempre bondoso nas conversas sobre o que desejamos ser “quando

crescermos”.

À Mariana e Maximiano (e o pequeno Miguel desde a barriga!), por

sempre estarem presentes, e por me raptarem dos momentos de extrema

preocupação, para aproveitar, de alguma forma, o fim do dia com filmes,

videogame, comida (sempre muita!) e conversa fiada.

À Luciana A., pelos incentivos, e por confiar na minha inclinação para

humanas quando eu mesma esqueço. E especialmente, por sempre me deixar saber

sobre essa confiança e me lembrar.

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Aos meus queridos irmãos da Casa Verde, pelas orações e por

compartilharem comigo a fé que move seus corações. É pelo olhar de vocês que

enxergo o mundo de um jeito mais leve.

À CAPES e PUC-Rio pelo apoio financeiro, que facilitaram a construção

dessa dissertação.

À minha orientadora Bethânia, por sempre me incentivar e por despertar

em mim o amor pela pesquisa, o encanto pela docência e a descoberta da minha

vocação.

E, por fim, “mas em primeiro lugar” agradeço a Deus porque eu não

saberia amar, sem antes conhecer o amor Dele por mim. É com um coração que

serve a Ele, que sirvo ao meu próximo, e que vislumbro ser alguém que possa

afetar a realidade do nosso tempo, ainda que em pequenas proporções, ou apenas

“contribuindo com um verso”.

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Resumo

Ferreira, Fernanda Telha. Assy, Bethânia de Albuquerque. Reyes Mate e a Justiça das Vítimas: uma perspectiva anamnética. Rio de Janeiro, 2015. 163p. Dissertação de Mestrado – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

O presente trabalho teve como foco principal a justiça de transição, no

contexto de mudanças políticas: a maneira como os países lidam com seu passado

marcado de graves violações de direitos e como os regimes políticos posteriores

lidam com as vítimas provenientes dessas injustiças (sejam regimes repressivos –

como no caso das ditaduras latino-americanas – ou, ainda, de situações pós-

conflitos). Portanto, a teoria estudada por Reyes Mate se faz importante, e pode

ser aplicada, visto que muitos países preferiram lidar com o passado de modo a

“esquecer para avançar”. Segundo Reyes Mate, a memória é a chave para

compreendermos pedaços da verdade que não constam dos registros oficiais da

História, e por isso, entende-se que esse é o primeiro passo para a realização da

justiça à vítima, uma vez que enfrentar o passado, torna evidente a permanência

de injustiças no tempo, impulsionando-nos a lidar com elas. Neste sentido, de

acordo com o referencial teórico escolhido, a proposta foi de se colocar sob a

vítima uma lente de aumento para que, partindo dela, fosse possível adquirir uma

perspectiva diferente sobre o passado. Mate, nesse sentido, aponta a importância

do testemunho da vítima como ferramenta para ativação das suas memórias.

Assim, somos transportados ao sofrimento contido dentro da injustiça pretérita,

mas ainda vigente de maneira latente na memória da vítima. Com recorte

específico sobre a ditadura militar brasileira (1964-1985), reflete-se neste trabalho

sobre a teoria elaborada por Mate, analisando a transição do regime militar para o

Estado Democrático de Direito, através da perspectiva transicional, para

pensarmos como o Brasil tem lidado com seu passado repressivo em relação às

vítimas. Com esse objetivo, foram utilizados testemunhos de nove vítimas do

regime militar, e o depoimento prestado por um dos torturadores. Debruçando-me

sobre esses relatos, foi realizada uma análise, embasada na teoria de justiça das

vítimas introduzida por Mate, pelo viés anamnético, ou seja, privilegiando o viés

da rememoração.

Palavras-chave

Direito; vítimas; justiça; testemunho; memória.

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Abstract

Ferreira, Fernanda Telha. Assy, Bethânia de Albuqurque (Advisor) Reyes Mate e a Justiça das Vítimas: uma perspectiva anamnética. Rio de Janeiro, 2015. 163p. MSc Dissertation – Departamento de Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.

This present work was mainly focused on transitional justice, in the

context of political changes: the way through which countries deal with their past,

marked by the violation of rights, and how subsequent political governments deal

with the victims originated by these injustices (whether by repressive regime – as

in the case of the Latin-American dictatorship – or, even, post-conflict situations).

Therefore, the theory studied by Reyes Mate becomes important, and can be

applied, since many countries preferred to deal with their past in a way that they

“forget to move forward”. According to Reyes Mate, memories are the key point

to understand pieces of truth that do not appear in History official records, thus it

is understood that this as the first step to render justice to the victims, once facing

the past turns evident the injustice committed along the time, propelling us to deal

with them. In this sense, according to the chosen theoretical references, the

proposal was to put the victim under a magnifying glass, and taken as a starting

point so that we acquire a different perspective about the past. Mate, in this sense,

points to the importance of the victim’s testimony as a tool to activate memories.

Thereby, we are carried to the suffering contained in the former injustice, but that

is still latent in the victim’s memory. With a specific cutout on the Brazilian

military dictatorship (1964-1985), is reflected in this work upon the theory

elaborated by Mate, analyzing the transition from the military regime to the

democratic constitutional state, through the transitional perspective, to consider

how Brazil has been dealing with its repressive past in relation to the victims.

With this aim, were used the testimony of nine victims of the military regime, and

the testimonial given by one of the torturers. Examining these reports, we

reviewed them based on the victim’s theory of justice introduced by Mate,

through the anamnesis bias, or in other words through the bias of remembrance.

Keywords

Law; victims; justice; testimony; memory.

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Sumário

Introdução 13 

1  Justiça de Transição – alocando a vítima no centro do debate 19 

1.1. Justiça de Transição – Justiça, verdade e memória 19 

1.2. Memória e Justiça – Algumas implicações na Justiça de

Transição 23 

1.3. Caminhando juntos: Paralelo entre genealogia Justiça de

Transição e a Internacionalização dos Direitos Humanos, e o

aparecimento do humanitarismo 30 

1.4. Breve genealogia da Justiça de Transição 32 

1.4.1. Pós Segunda Guerra 33 

1.4.2. Pós Guerra Fria 35 

1.4.3. Fim do século XX até os dias atuais 37 

1.4.4. Alguns processos transicionais 38 

1.5. Desdobramentos 46 

1.6. Alargamento do escopo da justiça de transição 47 

1.6.1. Internacionalização dos direitos humanos: onde estão as

vítimas? 47 

1.6.2. Humanitarismo e a preocupação com as vítimas 54 

1.7. Particularidades dos processos de Justiça de Transição: a

inaplicabilidade de uma “receita universal” 57 

1.7.1. Razões diferentes, usos de mecanismos diferentes 59 

1.8. Aspecto Crítico – Centralidade da Vítima nos mecanismos

Transicionais 62

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2  Justiça das vítimas 68 

2.1. Composição do conceito e seus elementos 68 

2.1.1. Quem é a vítima? 71 

2.1.2. Qual justiça? 76 

2.1.3. A figura do outro 78 

2.2. Justiça anamnética 84 

2.2.1. Memória 89 

2.2.2. Justiça anamnética e testemunho 104 

2.2.3. Fraturas: reconhecimento, reparação e reconciliação 108 

3  Brasil: a presentificação do ausente – testemunhos 113 

3.1. Notas ao caso brasileiro 115 

3.1.1. Esquecimento brasileiro 118 

3.2. Memórias latentes: o passado ausente no presente 122 

3.2.1. As medidas atualmente tomadas 122 

3.3. Testemunhos: justiça, verdade e memória 126 

3.3.1. Análise dos Testemunhos 133 

4 Conclusão 152 

5 Referencias Bibliográficas 158 

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Abreviaturas e siglas

AI-2 – Ato Institucional n. 2

AI-3 – Ato Institucional n. 3

AI-5 – Ato Institucional n. 5

CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico

CNV – Comissão Nacional da Verdade

Codi – Centro de Operações de Defesa Interna

DOI – Destacamento de Operações e Informações

DOPS – Departamento de Ordem Política e Social

FUNDEP – Fundação de Desenvolvimento da Pesquisa

MR-8 – Movimento Revolucionário 8 de Outubro

OAB – Ordem dos Advogados do Brasil

OBAN – Operação Bandeirantes

ONU – Organização das Nações Unidas

PUC-RJ – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

STF – Supremo Tribunal Federal

UNI – União Nacional dos Estudantes

VPR – Vanguarda Popular Revolucionária

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That you are here—that life exists and identity, That the powerful play goes on, and you may contribute a verse. Walt Whitman

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Introdução

Não há como pensar este trabalho dissociado de meus interesses pessoais, isto

é, daquilo que me move enquanto advogada e como acadêmica em tempos

insensíveis, diante da gama de injustiças existentes, especialmente frente ao

histórico de violência continuada que notadamente marca o nosso dia-a-dia.

O tema da transição brasileira de um regime militar para uma democracia

sempre me movimentou, de certa maneira. Primeiro porque cresci em uma família

de muitos militares. Depois porque cresci em uma escola militar (Colégio Militar

do Rio de Janeiro). Terceiro porque sempre vi com desconfiança, a versão sobre

história exposta nos materiais didáticos adotados pela escola – já que sou irmã de

uma historiadora desgarrada – e quando recém-chegada na faculdade me deparei

diversas vezes com ricos debates em torno do tema, que me permitiram refletir os

dois lados da moeda (ditadura militar/ revolução democrática).

Assim, se é certo que há vezes que os temas que nos escolhem, eu poderia

dizer que este me escolheu. Este tema parece ter amadurecido junto com o meu

próprio amadurecimento. Nascida em 1989, já inaugurado o processo de (re)

democratização no Brasil, cresci e me desenvolvi, enquanto nosso país também

amadurecia e se desenvolvia politicamente.

Como mestranda do programa de Direito Constitucional e Teoria do Estado na

Pontifícia Universidade Católica, tive a possibilidade de participar de uma

pesquisa auxiliar ao Grupo de Trabalho que estudava o Golpe de 1964, em apoio

aos estudos da Comissão Nacional da Verdade. Este trabalho marcou

sobremaneira minha vida acadêmica, constituindo-se como uma nova fase de

aprendizado e conhecimento.

Durante seis meses, coordenado pelo Prof. Marcelo Jasmin, tive (junto com os

outros pesquisadores que compunham nosso grupo) o privilégio de pesquisar o

acervo da Superintendência de Defesa e Promoção dos Direitos Humanos,

administrado pela Secretaria de Estado de Assistência Social e de Direitos

Humanos do Estado do Rio de Janeiro, formado por autos de 1.114 processos

administrativos, onde constavam requerimentos de reparação por parte de vítimas

de violações graves de direitos humanos, em especial, de pessoas que teriam sido

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detidas à época do regime, sob a acusação de terem se envolvido como

participantes de atividades políticas entre os dias 1º de abril de 1964 e 15 de

agosto de 1979, conforme a Lei n° 3.744, de 21 de dezembro de 2001, e o Decreto

n° 31.995, de 10 de outubro de 2002, que a regulamenta.

Compostos de declaração pessoal da vítima, ou de parente seu em caso de

falecimento da mesma, para fundamentar o requerimento de reparação (com a

apresentação de provas documentais ou testemunhais para atestar a veracidade da

declaração)1, me encontrei com diversos testemunhos e histórias, contadas pelas

próprias vítimas da ditadura militar (ou seus familiares) nos processos analisados.

Desse modo, compreendi a importância real existente dentro de um testemunho,

em um país que ainda possui organizações que sustentam a inexistência de uma

ditadura (como eu própria ouvi diversas vezes)2 . Mesmo que constituam minoria,

nos dias atuais, ainda existem, e espantam pela sua capacidade de afetarem o

presente.

Neste sentido, me debruçando sobre o estudo do período da ditadura militar, e

sua transição para a democracia, me aproximei do tema da justiça de transição,

conceito por meio do qual, pude observar que os países com histórias semelhantes

ao Brasil, ou marcados por um período de violência dramática, seguiam

politicamente tratando ou não das graves violações pretéritas vivenciadas.

Assim, sendo certo que, como no Brasil, outros regimes ditatoriais produziram

muitas vítimas (em decorrência da prática de torturas, assassinatos, demissões, ou

desaparecimentos, mortes, etc.), me interessei pela justiça de transição, por

observar que esta compreende a nível nacional e internacional, estudos com

diferentes frentes a respeito das prestações de contas destes países com seu

1 Após juntada do depoimento da vítima, e das provas, estes processos administrativos recebiam o parecer de um membro da Comissão Estadual de Reparação, e por conseguinte, a deliberação acerca da pertinência ou não da solicitação e, em caso positivo, da definição do valor pecuniário da reparação (geralmente R$20.000,00 reais).

2Como coloca Daniel Arão Reis (2014, p. 14), “O interessante é que as Forças Armadas, como se fossem “um Estado dentro do Estado”, continuaram sustentando, e sustentam até hoje, a versão divulgada pelo Projeto Orvil, o que se pode verificar em sites, colégios, escolas e centros de formação militares e em clubes que reúnem oficialidades de Exército, Marinha e Aeronáutica. Em outras palavras, para as Forças Armadas, a ditadura continua sendo apresentada – e cultivada – como uma “revolução democrática” que salvou o país do comunismo e do caos.”

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passado repressivo (no tocante às graves violações de direitos humanos), ainda

que com processos políticos e históricos diversos.

Vale dizer, que a justiça de transição estabelece uma interconexão com o

reenquadramento dos direitos humanos e, ainda, com o humanitarismo. Essa

intercessão possibilita a imbricação de vários campos distintos, entrelaçando

conceitos como o de justiça, memória, violência e política (Gómez, 2012).

Voltando às primeiras motivações, a partir dos testemunhos que li no acervo –

talvez por um olhar já influenciado pela teoria de Reyes Mate, que ao mesmo

tempo eu estudava nas aulas de Teoria da Justiça com a professora Bethânia Assy

– desenvolvi um forte interesse pela figura da vítima, e assim, fiz a escolha por

um marco teórico que desenvolve tão bem a ideia a respeito da centralidade da

vítima nos debates sobre justiça.

Compreendendo a importância da memória para as demandas sobre verdade e

justiça, Reyes Mate (debruçado à maneira de Walter Benjamim interpretar o

mundo), sempre indica que é por meio das vítimas e de sua visão sobre os

acontecimentos injustos vivenciados, que devemos pensar os passos em relação ao

enfrentamento com o passado.

Aos poucos juntando as peças, comecei a observar de que modo as vítimas

estavam situadas nas medidas tomadas pelos países que tomaram a iniciativa de

lidar com seu passado violento. Comecei a ter uma percepção mais profunda sobre

os acontecimentos: alguns países optaram por esquecer as violações imputadas

pelos regimes repressivos, significando que deixaram as vítimas à margem;

enquanto outros países iniciaram diferentes movimentos em direção ao lembrar,

em decorrência de feridas não cicatrizadas.

Por isso, neste trabalho tenciono, por meio do primeiro capítulo, mostrar,

inicialmente, o que se compreende por Justiça de Transição, realizando uma

pesquisa bibliográfica, de autores que trabalhem este assunto. Nesse caminho,

reflito a respeito de onde a vítima está localizada (dentro ou fora desses

mecanismos?) nesses processos e as razões possíveis de terem sido deixadas a

parte deles.

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Trata-se de observar de forma breve o que se compreende genealogicamente

por justiça de transição, seus elementos, e assim verificar as reflexões ensejadas

pelos resultados que se obtiveram, como maneira de abordar quais os pontos da

justiça de transição estão relacionados ao conceito de memória, visto que esta

última tem não só possibilitado o início de vários processos transicionais, como

tem reaberto uma série de outros processos transicionais outrora esquecidos. E,

portanto, aproximam-se mais da vítima.

Nesse caso, como exemplos, há os episódios de países com históricos de

transições permeadas de impossibilidades à época da mudança de regime, mas que

por meio de um grupo de inconformados (formado por familiares das vítimas ou

mesmo daqueles próprios que sobreviveram às torturas, ou de alguma outra forma,

tiveram suas vidas afetadas pela ditadura), não deixaram a incompletude da

transição ser esquecida, trazendo para o presente uma necessidade residual por

verdade e justiça.

Em síntese, para este capítulo a preocupação é construir uma armação de

pensamento, onde se permita identificar a vítima nos processos transicionais para

que se possa compreender adiante o conceito de justiça das vítimas, trabalhado

por Reyes Mate, uma vez que este autor, que pensa sobre a necessária alocação

das vítimas de violações de direitos humanos no centro das discussões sobre

justiça, trará o aporte teórico que sustenta o testemunho da vítima como forte

instrumento para compreensão das injustiças sofridas e, então, sua reparação para

reversão do injusto.

No Capítulo II, intento percorrer pelo trabalho desenvolvido por Reyes Mate,

(cujo pensamento, como já incitado, é permeado pelas formulações de Walter

Benjamin) suas reflexões a respeito do papel da vítima nos processos de

enfrentamento do passado repressivo, e sua importância para a efetividade da

justiça.

Portanto, faz-se imperativo buscar os conceitos que adentram esse modelo de

justiça, como o conceito semântico de vítima, já que nesta palavra podem ser

observados múltiplos sentidos. Ademais, buscarei discorrer sobre o conceito de

justiça apropriado à premissa central desta pesquisa, de que é necessário dar

espaço a voz da vítima, tanto pela verdade, que é possível conhecer por meio de

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sua memória – ainda que saibamos que a “memória é seletiva” (Todorov, 2000, p.

16) – mas, em especial, por perceber que a memória é o método requerido pelo

modelo de justiça que aqui se almeja trabalhar. (Mate, 2008a; 2008b).

Além disso, tenho por objetivo mostrar em que medida o testemunho se revela

em contradição com algumas práticas estudadas pela justiça de transição, como,

por exemplo, a concepção de perdão nacional, sugerido pelas anistias, que tem

fomentado um modelo artificial de justiça sob o argumento da reconciliação

nacional, e de caráter universalizante, desacreditado por Reyes Mate, que o

reformula a partir da vítima, que seria a única que poderia perdoar.

O testemunho – que leva em consideração o sofrimento individual daquele que

vivenciou a experiência injusta – colide com as anistias, visto que esta consiste em

lidar com o passado, por meio do esquecimento. Nesse sentido, observarei como

se apresenta como um mecanismo que corresponde aos objetivos presentes na

agenda da justiça transicional, qual seja o da luta por impedir que as violações se

repitam. Ou seja, nos contextos transicionais, como os testemunhos se aproximam

de uma real atitude de enfrentamento, ao invés de esquecimento?

No terceiro capítulo farei a exposição de alguns testemunhos de vítimas

atingidas por violações de direitos humanos durante o regime militar no Brasil no

período 1964-1985. Pelo fato de Reyes Mate colocar a voz da vítima como

essencial para a efetivação da justiça e conhecimento da verdade (já que por meio

de sua versão dos acontecimentos, as injustiças sofridas são denunciadas, e sua

versão dos acontecimentos confronta a violação hermenêutica vivenciada ao longo

dos anos), percebi a especial oportunidade de dar enfoque para o caso da ditadura

no Brasil.

Compreendo que esse esforço pode significar uma colaboração para o campo

de estudo da justiça de transição, ou como mais uma reflexão sobre a importância

da vítima e o seu testemunho, a partir da concepção de Justiça das vítimas de

Reyes Mate.

Vale dizer, que apesar de eu ter tido acesso a um amplo acervo, durante a

minha passagem como colaborada na pesquisa auxiliar ao Grupo de Trabalho

sobre o golpe de 1964, não utilizei os testemunhos ali prestados. Isso porque tal

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pesquisa possuía cunho confidencial, e seria utilizada pela Comissão Nacional da

Verdade (CNV), que elaboraria ao final seu relatório publicando nossos

resultados. Nesse sentido, como as investigações e estudos realizados para

Comissão Nacional da Verdade ainda encontravam-se em andamento à época da

escrita dessa dissertação, bem como o relatório final da CNV ainda não tinha sido

publicado, fui levada a recorrer a outras fontes, como testemunhos públicos

prestados pelas vítimas em sessões abertas veiculadas na internet.

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1

Justiça de Transição – alocando a vítima no centro do debate

1.1.

Justiça de Transição – Justiça, verdade e memória

Por Justiça de Transição é possível descrever, de forma ampla, e

antecipar de maneira breve que esse termo remete ao “esforço para construção da

paz sustentável após um período de conflito, violência em massa ou violação

sistemática dos direitos humanos” (ZYL, 2005, p. 32). Outra maneira de entendê-

lo é também como “um modo popular de caracterizar respostas a abusos do

passado que ocorreram no contexto de mudança política, com esforços para

disfarçar um novo regime das práticas do regime anterior” (BRONWYL

LEEBAW, 2005 apud MEZAROBBA, 2009, p. 112). Ou ainda, segundo Ruti

Teitel3,

“pode ser definida como a concepção de justiça associada com períodos de mudança política, caracterizada por respostas legais para confrontar as irregularidades cometidas pelos regimes repressivos antecessores”. (TEITEL, 2003, p. 69, tradução nossa)

Assim, adentrar o campo da Justiça de Transição significa abrir espaço à

reflexão sobre a maneira como sociedades afetadas por uma história de repressão

pretérita enfrentaram seus passados de graves violações aos direitos humanos.

Dessas sociedades, destacam-se aquelas que passaram por transições advindas de

três processos: a) de restauração democrática; b) transição marcada de um longo

período de autoritarismo; e c) transição pós-totalitarismo (TUCKER, 1999 apud

JARDIM, 2006, p. 2).

3 No original: “can be defined as the conception of justice associated with periods of political change, characerized by legal responses to confront the wrongdoings of repressive predecessor regimes”. (Teitel, 2003, p. 69)

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Marcados pela transição de regimes autoritários para democracia, sejam

elas transições que abrangem eventos situados no pós- II Guerra mundial, ou as

transições pós-coloniais enfrentadas por países africanos e asiáticos, e mais, as

transições dos regimes autoritários no Cone Sul, até ainda transições dos países

que faziam parte do antigo bloco soviético, e outros diferentes processos,

apresentaram-se como um campo fértil e cheio de peculiaridades, naquilo que diz

respeito à maneira como trataram seus passados de violência.

Concebendo que tais regimes produziram enormes violações à dignidade

humana, refletimos na esteira da Justiça de Transição como os Estados agiram

com justiça em resposta a estas violações. Questiona-se se foram tomadas

medidas que enfrentassem os crimes de violência e quais as razões que

justificariam terem sido ou não tomadas providências a respeito delas (JARDIM,

2006)4.

Importante elucidar que a Justiça de Transição, como campo teórico, com

desenvolvimento incipiente no início da década de 1990, tem sido interpelado pela

reflexão sobre os conceitos de justiça, memória, violência e política5, que fazem

parte de estudos de campos distintos, e que ultrapassam os limites dos processos

históricos da justiça de transição. As primeiras questões levantadas sobre este

tema, como será observado, compreendem a constatação da necessidade de ser

feito algo sobre as injustiças históricas deixadas pelos governos repressivos, e

depois passa a envolver-se na realidade objetiva sobre a necessidade de repará-las.

Nos quadros de mudança de regimes, os novos governantes se esbarram

com um antigo problema, que sempre constituiu as mudanças estruturais de

governos: a questão do que fazer a respeito da herança de violência deixada pelos

regimes repressivos. Como Gómez (2014) afirma, seria o antigo problema do

4 Compreendida como uma constelação de possibilidades para análises, as transições das sociedades que emergiram dessas violações, passaram a ser objeto de estudos variados, despertando uma conjuntura de interrogações que se desdobraram em correntes de reflexões a respeito de elementos como: as condições para que se ocorressem as transições políticas; as condições para que houvesse a consolidação democrática dos países com herança autoritária, etc. – respeitadas as especificidades da transição de cada país, bem como os diferentes resultados alcançados. 5 Zamora (2013, p.28) assinala que “a imbricação entre violência, direito e política é uma evidência empírica dificilmente negável”.

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“virar a página?” ou “acertar as contas?”. Essencialmente, essas perguntas se

inscrevem nos estudos da Justiça de Transição.

Em primeiro lugar, tem-se o “virar a página” associado a um modelo

moderno de esquecimento das graves violações em prol do progresso com suas

“vítimas necessárias”. Esta maneira de lidar com o passado, é constituída pelos

pactos entre os antigos governos violentos com os novos governantes. Isso porque

o primeiro estaria vinculado ao objetivo de manter a impunidade e ocultação sobre

os crimes cometidos, e os novos governantes estariam associados ao objetivo da

estabilização do novo governo, no sentido de evitar a eclosão de conflitos

advindos da abertura da “caixa de pandora” das memórias que liberaria a verdade

sobre os horrores passados e que, portanto poderia provocar reações políticas

imprevisíveis.

Por sua vez, o “acertar as contas” está envolvido com a concepção

imprescindível de memória acerca das violações produzidas pelos Estados, e,

sobretudo, com uma concepção de memória a ser usada como forma de

conhecimento sobre a verdade vinculada às vítimas que vivenciaram as

experiências das injustiças, da violência, e da negação a sua alteridade

(ZAMORA, 2013, p. 25).

Sobre esses dois tipos de iniciativas (revelados na ação de reagir à

violência do regime ou ignorá-la pelo regime sucessor), o sentimento de ser

necessário responder aos abusos e também sobre a obrigação de esquecer o

ocorrido, podem ser visualizados como algo antigo, sendo evidenciados já na

democracia clássica ateniense quando primeiro houve reação à violência

oligárquica no retorno dos democratas para Atenas – em 411 a.C (ELSTER,

2006) , o caso da punição dos Trinta Tiranos, seguida de uma anistia com a

promessa por parte dos cidadãos de esquecerem as desventuras vivenciadas, 403

a.C. (ELSTER, 2006, 2014; LORAUX, 2005 apud GÓMEZ, 2014).6

6 A referência sobre estes episódios não configuram nenhuma pretensão de fazer uma análise histórica dessas iniciativas. Esses casos encontram-se aqui citados porque os compreendi como dignos de nota, já que também foram lembrados nos trabalhos de Reyes Mate (2008, pp. 18-19), Goméz (2014, n.p.), Ruti Teitel (2000, p.58), Mezzaroba (2009, p. 113).

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Na modernidade, sua origem está relacionada à Primeira e a Segunda

Guerra Mundial, e seu desenvolvimento conecta-se aos movimentos transicionais

dos anos 80 (TEITEL, 2000). Desse modo, focada especialmente nas diversas

formas de lidar com o passado repressivo, advindo dos processos de transição

política recém-ocorridos, na década de 1980 a justiça de transição discursava

sobre dois caminhos – o da punição ou o do perdão – e estando em observação ao

longo dos anos, ensejaram a abertura de novas reflexões. Naquele tempo o

problema maior contornava a necessidade de lidar com o fato de haver um

passado ruidoso, e menos com o sofrimento vivenciado por aqueles que sofreram

as violações propriamente.

A novidade, portanto, não estaria na reflexão sobre “fazer algo ou não”,

uma vez que esta tendência se observa através da história (GOMÉZ, 2014. n.p).

Mas sim, estaria na reflexão crítica sobre a significação desta atitude, dados os

jogos de forças políticas que permitiam ou dificultariam sua efetividade.

Mais novo ainda se torna a vinculação do conceito de memória à

concepção de justiça – isto é, que justo passa a ser a lembrança das experiências

de injustiça vivenciadas pelas vítimas e, portanto, a movimentação do estado no

sentido de repará-las – e das relações firmadas entre “violência, política, memória

e justiça” (GÓMEZ, 2014), que enriquecem e ampliam o escopo da reflexão sobre

a justiça de transição.

Coloca-se criticamente em destaque a tradição do pensamento moderno,

que se orienta por uma “marcha triunfal do Progresso, da Civilização, da

Humanidade, da História Universal” (GÓMEZ, 2014, n.p.). Por esta tradição é

possível observar a invisibilidade das vítimas produzidas pelos processos –

“formação e expansão dos Estados, do capitalismo e do colonialismo europeu”–

engendrados nesta tradição, cuja ideia central é que para avançar seriam

inevitáveis algumas vítimas, um sacrifício necessário ao progresso.

Consequentemente, banhos de sangue ocasionados pelas guerras, que apesar de

trazerem alguma perplexidade, continuavam a ter justificação nos preceitos

modernos de coesão da sociedade e autoridade moral do Estado.

Apesar disso, sempre houve grupos – resistentes por assim dizer – que

não quiseram (ou puderam) esquecer-se das injustiças ocorridas, vindicando que

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algo fosse feito frente às violações ocorridas. Isso posto, aqui se identifica a

existência de um fio que conduz a relação com a memória e sua natureza

eminentemente política, pois é por meio dela que se rompe com a lógica linear de

fatos, transportando a experiência de injustiça sofrida do passado para o

contemporâneo, com o objetivo de causar transformações, de contaminar o

presente com fragmentos da verdade contidas dentro das experiências de injustas,

costumeiramente não reveladas, trazendo à lume questionamentos sobre versões

oficiais e hegemônicas, com provocações acerca de sua veracidade.

1.2.

Memória e Justiça – Algumas implicações na Justiça de Transição

No plano da reflexão filosófica a respeito do conceito de memória, é

possível observar mudanças que afetaram diretamente a noção a respeito do

conceito de justiça de transição7 (CIURLIZZA, 2009, p. 25). Percebe-se que este

conceito é pincelado por vários campos conceituais que irão constituir a justiça de

transição como um campo matizado de diversos tons.

Diante de uma realidade pós-guerra, e o choque frente às atrocidades

cometidas no extermínio genocida de Auschwitz – evidenciando o fracasso do

projeto moderno – há que se dizer das profundas influências que a reflexão sobre

este acontecimento (entre outros acontecimentos de marcante violência) causou no

discurso jurídico-político, a começar pelas próprias considerações sobre a

significação do genocídio em si.

7 Na minha percepção a compreensão sobre a Justiça de Transição que temos hoje, em 2014, tem recebido a influência do campo filosófico, que concebe a memória como um elemento metodológico de se fazer justiça às vítimas. Em breve genealogia, será visto que as preocupações da Justiça de Transição tinham a ver com justiça pelo viés punitivo, mas hoje, vemos a importância do “passado ausente”, e da centralidade da vítima nas conversas sobre Justiça Transicional, por isso essa afirmação. Sobre isso Javier Ciurlizza (2009, p. 25) afirma que “o que mudou nos últimos trinta anos foi o fato de que as transições já não se resolvem somente por meio de um pacto político entre setores específicos, mas também pela via do enfrentamento – jurídico, político, e ético – às consequências das ditaduras e dos conflitos armados. Em particular, adquirem maior relevância os direitos que as vítimas do passado autoritário têm de saber o que ocorreu e de obter reparações correspondentes (...).”

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Provoca uma perplexidade e comoção colocar-nos frente ao real

aniquilamento físico de indivíduos dado exclusivamente por seu pertencimento a

determinados grupos (como judeus, ciganos, etc). O projeto nazista que reduzia,

literalmente, estes indivíduos a objetos que poderiam “ser liquidados e feitos

desaparecer sem que o seu olhar remeta à pertença comum, cuja humanidade é à

espécie e ao imperativo moral de não indiferença que a sela” (ZAMORA, 2013, p.

22), até hoje é chocante, principalmente porque a humanidade das vítimas da

Shoah8 fora completamente ignorada. Auschwitz traduz o estado puro da violência

constituinte da barbárie. (Mate, 2008a, p. 34)

No caso judeu, Hanna Arendt nos orienta a um conjunto de indicações

sobre absurdo político construído àquele tempo, referenciando o estado apátrida

dos indivíduos desnacionalizados e indesejáveis, pelas medidas arbitrárias

tomadas pelo estado alemão, com suas posturas antissemitas. Também aponta a

condição inumana a qual o judeu foi reduzido pelo III Reich, levando a concentrá-

los em campos de extermínio, onde como pelo próprio nome sugere, eram

liquidados fisicamente do mundo – porque politicamente e existencialmente já os

haviam sido considerados “refugo da terra”9 (ARENDT, 2009, p. 300 apud

CORRÊA, 2013, p.16).

Arendt, em sua obra10, explica em minúcias a situação do apátrida, que

“sem direito de residir ou trabalhar, era obrigado a viver constantemente fora da

lei, embora por sua condição, estivesse sujeito ao encarceramento sem ter jamais

cometido um crime” (ARENDT, 2009 apud CORRÊA, 2013, p. 20). A maneira

como lidavam com estes seres humanos, tais como as minorias do pós-primeira

guerra, traziam e carregavam em si um conjunto de sentidos, pois privando esses

indivíduos de um lugar no mundo – onde pudessem existir – por meio de uma

condição de completa negação de direitos, os residentes dos campos tornaram-se

passíveis de um cruel extermínio, como se tivessem deixado de ser humanos.

8 Trata-se de termo que possui origem em um dialeto alemão falado pelos judeus ocidentais (iídiche), utilizado com a finalidade de definir o holocausto judeu.

9 Esta expressão era usada pelo jornal oficial da SS, que caracterizava os judeus desnacionalizados no III Reich (Corrêa, 2013, p. 16).

10 Na obra “As Origens do Totalitarismo”, Hanna Arendt enuncia a respeito da desnacionalização e a relação com o Estado Totalitário “medir o grau de infecção totalitária de um governo em que usa o soberano direito de desnacionalização” (Arendt, 2009 apud Corrêa, 2013, p. 20).

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Como nos aponta Corrêa, “um homem sem Estado era uma anormalidade, um

fenômeno imprevisto que não gozava de qualquer posição apropriada na estrutura

da lei em geral” (ARENDT, 2009 apud CORRÊA, 2013, p. 20).

Frente às decisões arbitrárias sobre a desnacionalização de indivíduos, e

mais radicalmente de extermínio de todo um grupo humano – respaldada na

autoridade de um Estado, que dispunha de uma matriz de aniquilamento, como

ocorreu no caso do holocausto judeu – enxerga-se uma dimensão tão impactante

de violência, que se torna retumbante o questionamento a respeito de como

enfrentar o passado marcado por violações deste porte (ZAMORA, 2013, p. 23).

Dentre tantas outras reflexões decorrentes destes eventos de barbaridade

histórica, pondera-se especialmente a respeito de como um projeto político pôde

afetar negativamente tantas pessoas. Assim, por meio das discussões filosóficas

voltadas à pensar a respeito das atrocidades vivenciadas nos campos e da

instauração da barbárie como produto do que se acreditava como “custo humano”,

justificado no rumo ao progresso civilizatório – no caso alemão, que continham

vínculos profundos enraizados ao projeto moderno da construção de estados fortes

– se encara o horror e o sofrimento produzido em Auschwitz, formulando-se

conforme Adorno, um novo imperativo categórico, que pode ser traduzido nos

esforços de não repetição da barbárie, pelo exercício de repensar a política, a

verdade e a moral (MATE, 2008b, p. 170), tendo sempre em conta a violência

que se passou.

Para tanto seria necessário lembrar sempre de como esse processo foi

falho, tendo sempre a barbárie ocorrida como uma realidade a ser encarada

frontalmente. Assim, se tradicionalmente as versões oficiais da história, contavam

com os grandes e honoráveis feitos humanos, agora, seria necessário lembrar de

uma truculência sem precedentes na modernidade, produto e evidência de um

projeto cruel. Esta forma de lidar com o passado iniciou uma série de

questionamentos sobre a própria veracidade das versões históricas consideradas

oficiais11.

11 Como afirma Gómez (2014, n.p.), sobre este período, “embora os impactos tenham atingido as artes, a história, o direito e as outras ciências sociais e humanas, a reflexão filosófica (em torno do pensamento de Rosenzweig, Benjamin, Adorno, Horkheimer, Jaspers, Levinas, Ricoeur, Derrida, entre tantos outros) desenvolverá um importante trabalho de indagação sobre a categoria da

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Antes mesmo da brutalidade vivenciada nos campos alemães, a direção

perigosa e silenciosa para onde rumava o mundo, já vinha sendo alvo de

denúncias. O conceito de História, por exemplo, calcado em filosofias de

progresso, linearidade e avanço em marcha triunfal, já era alvo de reflexões

profundas, sendo uma das considerações suscitadas a ideia de que o “progresso

inexorável da história” teria sepultado muitas vítimas pela versão reproduzida

pelos vencedores, sob o argumento de que este custo justificava-se pelo avanço

conquistado (como na concepção de Hegel, cuja reflexão direcionava-se no

sentido de que a história para avançar teria que pisotear as florezinhas na beira do

caminho). Como resultado disso, teriam sido deixadas à margem, no canto, na

periferia, as experiências de injustiças vivenciadas dos que sofreram violações, e

que tiveram sua alteridade ignorada por aqueles que acreditavam na marcha à

frente.

O que importa nesta composição – a respeito da necessária memória do

passado e por consequência a realização da justiça – é o raciocínio de que “a

recordação tem por objetivo resgatar do passado o direito à justiça” (MATE,

2011, p. 28). Ou seja, que aqueles que vivenciaram a violência pretérita, por meio

da memória da injustiça, poderão no presente ter uma relação de acertos de contas

com o passado, que teria como finalidade a cessação da injustiça continuada –

uma vez que enquanto esta não é reconhecida, continua pendente. Nas palavras de

Reyes Mate, devemos “reconhecer no passado dos vencidos a injustiça ainda

vigente, isto é, ler os projetos frustrados de que está semeada a história, não como

custo do progresso, mas como injustiças pendentes” (MATE, 2011, p. 28).

Com isso, outra concepção sobre o conceito de memória, como forma de

conhecimento e de justiça, vai sendo tecida lentamente na esfera filosófica e na

história, se entendendo e “contaminando” outras áreas do pensamento, em vista de

sua potente capacidade epistêmica. Aqui, tem-se o despontar de Walter

Benjamim, sobre o qual Mate relata que “a teoria do conhecimento de Benjamin

arranca o passado frustrado desse estupor ao descobrir vida nessas mortes”

(MATE, 2011, p. 23) – teoria essa aderida especialmente pós-II guerra, quando

memória que, longe de reduzir-se ao sentimento subjetivo e à recordação (...) revela-se como um potente princípio de conhecimento e de justiça”.

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também Benjamin fora vítima da mesma máquina de morte a respeito do qual

criticara e denunciara durante todo seu trabalho reflexivo.

Com o objetivo de “escovar a história a contrapelo” Benjamin já atacava

o historicismo – o modo natural como a história era compreendida “tal como os

fatos foram” (MATE, 2011, p.175) e as filosofias que sustentavam a ideia de

progresso – pois no que se refere a como os fato foram, ele sustentava que não

temos um conhecimento real, tal qual a história imbuída de ciência tem nos feito

crer, visto que tradicionalmente ela tem narrado a história dos vencedores. Seria

escovando minuciosamente a história que conheceríamos as vítimas ocultadas por

ela e que o ideal de progresso, consagrado pelas teorias modernas, revelaria uma

pilha de sofrimento, que pela interpretação do tempo linear, eram deixadas e

esquecidas no passado.

Ademais, um elemento singular introduzido por Benjamin, e que apesar

do distanciamento histórico de sua elaboração, se faz presente ainda hoje

perfeitamente atualizado – é a percepção de que não se pode entender o passado

vencedor nem o presente herdado (dos que mandam na atualidade), sem o

conhecimento do que passaram os vencidos (MATE, 2011). E mais, que, neste

sentido, a memória possui papel importantíssimo, pois é por meio dela que se

torna possível explorar o passado desconhecido, inscrito nas experiências das

vítimas.

Ainda sobre a “mudança de conteúdo da categoria filosófica da

memória” (GÓMEZ, 2014, n.p.), é importante apontar que aconteceu um

movimento que mostrou a capacidade mobilizadora que a memória possui

(embrionariamente no pós-II guerra). Vale dizer, que nas últimas décadas do

século XX – período em que o mundo passa a se reordenar pelo capitalismo

(liderado pelos Estados Unidos da América), apresentando um redesenho em uma

ordem global liberal (início da década de 1990) – se observa uma expansão do

discurso das memórias traumáticas, associadas as memórias da brutal violência de

Auschwitz (com debates e reflexões a respeito da barbárie produzida),

resignificadas por contextos referentes às práticas sociais e significados

específicos construído nos espaços nacionais.

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Este contexto relaciona-se às fases pós-ditaduras, e ainda, às “mudanças

nas estruturas de percepção” somados a uma “sensibilidade moral frente às

experiências de violência política e avanço da gravitação do internacional

(abrangendo o global, o regional, o transnacional) nos planos normativo,

institucional e político” (GÓMEZ, 2014, n.p.).

A partir destes elementos, verifica-se que a reflexão sobre a memória

afeta a maneira como os países encaram o passado de violação, abrindo

expediente à busca de justiça por meio da punição e reparação do dano, pois por

meio dela, primeiramente, funda-se o racional de que é necessário lidar com o

passado, provocando iniciativas na restauração de uma política nacional

fragilizada pelos laços de confiança entre cidadão e Estado.

Desta forma, nos países pós-ditaduras, como no caso latino-americano, as

primeiras iniciativas se relacionavam com o passado no sentido de “virar a

página”, por meio de transições acordadas, sendo que as forças políticas anteriores

à transição, com o discurso do “perdão bilateral”, atribuíam a esta medida, a

reconciliação da sociedade com o passado. Mais à frente, contudo, os problemas

não enfrentados começaram a reascender lutas, uma vez que a concepção de

reconciliação nacional, não englobava, de maneira sincera, nem a voz nem a

vontade daqueles que sofreram com as violações de direitos humanos.

Era visível a tentativa de esquecimento de tudo o que ocorreu

simbolizada pela permanência distorcida dos registros oficiais, intocavelmente

cristalizados em verdades estrategicamente construídas. Mesmo perante tantas

barbaridades cometidas e do sofrimento presente nas violações, no Brasil, por

exemplo, muitos daqueles que lutaram contra a instauração de um governo

arbitrário, permanecem sendo repetidamente considerados – oficialmente – como

desaparecidos, aqueles que foram assassinados; como subversivos, aqueles que

foram ex-presos políticos; como esquecidos aqueles que foram vítimas da

arbitrariedade Estatal.

Diante de tantas lacunas de sentido (já que este vinha sendo construído a

partir da versão dos vencedores) e insuficiências (porque a versão dos vencidos

era deixada à margem, produzindo uma ausência dentro do presente), não só no

Brasil, mas em vários outros países latino-americanos, a memória voltara a

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reclamar medidas e a continuidade dos processos transicionais, denunciando a

existência de questões abertas. Passa-se a reclamar por verdade e memória.

Por essa razão, é sabido que houve uma eclosão de teorias a respeito da

memória na virada do século XX12, que em alguma medida, atingiu os elementos

constitutivos do quadro da justiça de transição, conferindo importância à

memória. A verdade oficial a respeito das mortes e desaparecimentos, por

exemplo, não se compatibilizavam com a dor daqueles que permaneceram. Isso

pode ser evidenciado na adoção de medidas transicionais e na proteção dos

direitos humanos, que foram se orientando para a importância da vítima e seu

direito a verdade.

Por meio disso foi aberta a possibilidade para uma narrativa que levasse

em conta as experiências injustas vivenciadas, e ao mesmo tempo, se alargaram as

medidas que buscavam garantir o acesso às informações que os regimes ditatoriais

se encarregaram em esconder13.

Assim, como se uma demanda se desdobrasse em outra14, o

conhecimento de alguns dados anteriormente desconhecidos culminou na

necessidade da produção de uma versão oficial que introduzisse a vítima como um

elemento da história. Ou seja, gradualmente, torna-se possível perceber a busca

pelo seu direito à justiça, à memória e à reparação, dentro das medidas que

passarão a ser tomadas tanto nos ordenamentos domésticos, como também no

cenário internacional, como será abordada adiante.

12 Na Revista da Anistia nº2 (2009, pp. 30-109) pode ser encontrado três artigos (Memória histórica: o papel da cultura nas transições; A dor dos recomeços: luta pelo reconhecimento e pelo devir histórico no Brasil; A representificação do ausente: memória e historiografia), podem contribuir para o conhecimento deste tema.

13 Pereira (2014, p. 206) afirma neste sentido: “diante da impossibilidade de reverter o mal já feito, os entes queridos veem a verdade como única opção digna de conforto, ainda que seja a possibilidade de reaver os restos mortais e poder sepultar as vítimas com dignidade, e cultuar suas memórias [...] Se por um lado, a verdade abranda a angústia pela falta de informações; por outro lado, o conhecimento da versão verídica, muitas vezes, divergente da chamada versão oficial, atiça a sede por justiça [...]”

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30

1.3.

Caminhando juntos: Paralelo entre genealogia Justiça de Transição e a Internacionalização dos Direitos Humanos, e o aparecimento do humanitarismo

Considerando que o processo histórico que permeia a internacionalização

dos Direitos Humanos inicia-se no passo do afloramento moderno da Justiça de

Transição, tem-se que a elaboração do conceito de Justiça de Transição está

associada aos processos de adoção de mecanismos de proteção e impulso que

afirmaram os direitos humanos no cenário internacional, remontando, em especial,

o quadro histórico-político decorrente das inesperadas consequências provenientes

das duas grandes guerras.

Com relação aos direitos humanos, vale elucidar a questão que levou ao

seu fortalecimento, visto que, a partir da identificação de suas carências, se passou

a buscar corrigir as lacunas prejudiciais, identificadas no panorama do genocídio

alemão. Entende-se que esse fortalecimento se deu a partir do paradoxo advindo

da ideia lacunar dos “direitos humanos inalienáveis” – estipulados pelas

declarações liberais burguesas durante a modernidade, assentadas sob o filosofia

da moral kantiana – toma um lugar de reflexão (especialmente nas formulações de

Arendt15 e, posteriormente renovada por Agamben16), enunciando que tais direitos

tornaram-se inexequíveis quando deveriam ter socorrido a figura humana

despossuída de direitos políticos e “qualquer outra qualidade – exceto a de ser

unicamente humano” (CORRÊA, 2013, p. 23).

Durante o processo progressivo de desnacionalização de inúmeras

pessoas, iniciado no pós-primeira guerra, que se alterou, passando a tomar forma

de evidência das práticas totalitárias pelos Estados – até culminar na prática cruel

15 Como afirma Corrêa (2013, p. 21): “Hannah Arendt identifica o paradoxo já enunciado na declaração de direitos, referida a um homem abstrato, destacado de todo contexto social ou comunitário, que compunha o povo de um Estado-Nação, associando-se a proteção dos direitos humanos à soberania nacional”.

16 Como afirma Corrêa (2013, p. 21): “Agamben renova a crítica arendtiana ao identificar o que reputa ser a real função biopolítica da Declaração de Direitos de 1789: inscrever a vida nua natural na ordem jurídico- política do Estado Nação”.

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31

da descartabilidade humana, materializada pelos campos de concentração –

observa-se que tais pessoas padeciam de garantias que lhes protegessem das

arbitrariedades a que estavam vulneráveis. Nessa situação onde se reflete que os

homens teriam, pelo menos, direito à existência pelo fato de serem humanos

(como poderia - ou deveria - se depreender das declarações do homem e do

cidadão17), passou a ser questionado o teor dessas declarações, uma vez observado

que o homem a respeito do qual tal declaração se referia era um homem mesclado

à uma comunidade.

Mas e quando existem homens que não são membros de nenhum Estado-

nação? A constatação trágica foi a de que a proteção dos direitos humanos estaria

intimamente ligada à soberania nacional, de forma que a realidade é de que esses

homens sem nação estariam a esmo, pairando em uma atmosfera de direitos que

não lhes pertencia, mas de direitos que lhes ignoravam, e que por vezes

legitimavam o sofrimento e a dor que outros seres humanos lhes causavam. Nas

palavras de Corrêa (2013, p. 22) “a lei tornava-se um mecanismo de produção de

indiferença legal, incapaz de imaginá-los sequer como sujeito sem espessura”, ou

seja, sujeitos sem direitos.

Partindo da reflexão a respeito dessas lacunas, observa-se no pós-

segunda guerra, que a peça propulsora tanto do afloramento da justiça de transição

como de um novo processo de fundamentação dos direitos humanos foi a

accountability (TEITEL, 2000, p. 31), isto é, a prestação de contas introduzida no

plano internacional por meio dos julgamentos de Nuremberg e Tóquio. Esse

evento estimula o aparecimento de instrumentos de controle, monitoramento e

mecanismos de promoção e proteção dos direitos humanos.

17 Reyes Mate (2008a, p. 69, tradução nossa), afirma a esse respeito: “Na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, não fica claro se possuímos os direitos humanos por ter a condição humana ou por ter nascido há carência deles, ainda que se lhes possam reconhecer depois. (...) Não há nação sem nascimento mas o nascer num território é o que dá ao nascimento o direito aos direitos humanos. É mais importante o nascimento em um determinado território do que a condição de ser humano, por isso Arendt dizia que mais pobre do homem que vá pelo mundo sem passaporte do que sua condição humana.” No original: “En la Declaración de los Derechos del Hombre y del Ciudadano, de 1789, no queda claro si poseemos los derechos humanos por tener la condición humana o por haber nacido ahí carece de ellos, aunque se les puedan reconocer luego. (...) No hay nación sin nacimento pero el nacer en un território es lo que da al nacimento el derecho a los derechos humanos. Es más importante el nacimiento em um determinado território que la condicion de ser humano, por eso Arendt decía que pobre del hombre que vaya por el mundo sin más passaporte que su condición humana”. (Mate, 2008a, p. 69)

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32

Com tantos eventos reflexivos ocorrendo ao mesmo tempo, observa-se a

tentativa de se sobrelevar o modelo de “normas westifalianas” (CORRÊA, 2013),

que trazia o racional de os Estados-nação se absterem mutuamente de se

relacionar uns com os outros18, de forma que o tempo pós-1945, ficou marcado

por uma fase de institucionalização da comunidade internacional, inaugurando

uma nova etapa dos direitos humanos (emoldurados na Declaração Universal dos

Direitos Humanos, 1948).

Este período é de expansão da positivação internacional dos direitos

humanos, realicerçados ideologicamente (CORRÊA, 2013). Assim, temos que em

1966, são editados os Pactos de Direitos Civis e Políticos, e de Direitos

Econômicos, Sociais e Culturais. Na esteira dessa crescente, outros mecanismos

de propagação e proteção dos direitos humanos, são pensados. Por exemplo, no

Teerã, na conferência de 1968, é conquistada a indivisibilidade dos Direitos

pactuados de forma independentes em 1966, acima elucidados (CORRÊA, 2013,

p. 24). Mais adiante, este movimento toma força e robusteza, atingindo seu

apogeu com a criação do Tribunal Penal Internacional, como um mecanismo de

prestação e tomada de contas supra estatal, consolidando a internacionalização dos

direitos humanos19.

1.4.

Breve genealogia da Justiça de Transição

Levando-se em conta um maior afastamento temporal do conceito,

concebendo continuidade e descontinuidade, deslocamento, inovação e ruptura

(TEITEL, 2000), o conceito de justiça de transição, carrega importantes

18 Ver a interessante abordagem feita sobre este assunto por Renan Quinalha no capítulo “O reenquadramento da justiça em uma era pós-westfaliana” (p. 123), de seu livro “Justiça de Transição. Contornos do Conceito”.

19 Castilho, Ricardo. Direitos humanos: processo histórico – evolução no mundo, direitos

fundamentais: constitucionalismo contemporâneo/ Ricardo Castilho. – São Paulo: Saraiva, 2010.

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33

precedentes de especial importância para sua compreensão dentro do cenário

internacional onde passou a figurar.

Para Ruti Teitel (2003, passim), a quem se atribui a autoria do termo

“justiça de transição”20, tendo por marco o fim da II Guerra Mundial, é possível

identificar três fases distintas que estariam relacionados a três momentos,

respectivamente. O primeiro deles é o momento posterior a Segunda Guerra

Mundial, destacado também pelos julgamentos de Nuremberg e Tóquio, visto que,

a despeito de sua seletividade e de ser um tribunal dos “vencedores contra

vencidos”, trouxe precedentes jurídicos de enfrentamento às violações sofridas na

barbárie do holocausto. Em um segundo momento, temos as transições dos

regimes repressivos na América Latina para a democracia, bem como o declínio

soviético no fim da década de 80. E em terceiro lugar, outra fase possível de ser

identificada com respeito ao conceito da justiça de transição, seria a de uma

“normalização e globalização do paradigma de justiça de transição, que

compreenderia o final do século XX, até os nossos dias, com um consenso em

torno da necessidade de se lidar com o passado” (MACDOWELL, 2010;

JARDIM, 2006)21.

1.4.1.

Pós Segunda Guerra

Com o forte relato dos sobreviventes dos campos de concentração

alemães, ao término da Segunda Guerra mundial, tornou-se necessário definir as

bases – normativas e institucionais – da nova ordem internacional, devido as

fortes pressões em resposta à comoção causada por tais relatos. Algo tinha de ser

feito, vez que tal era o impacto das histórias que remontavam os sofrimentos

20 De acordo com Cecília Macdowell (2010, p. 4): “O termo transitional justice (justiça de transição) foi cunhado pela professora de direito Ruti Teitel em 1991, referindo‑se aos processos de transformação política e jurídica nos contextos de transições para as “novas democracias” na América Latina e na Europa do Leste. 21 Adiante farei alguns apontamentos sobre cada um desses períodos, com a descrição das características próprias para cada etapa em particular.

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vividos, tornando, assim, evidentes as fortes violações sofridas. Dentro desse

contexto, foi instalado o Tribunal Militar Internacional de Nuremberg22, que

objetivava o julgamento dos militares que fizeram parte das corporações a serviço

das potências vencidas23.

Apesar das limitações internas apresentadas por esse Tribunal, isto é, a

despeito de ter sido instalada uma “justiça dos vencedores”, não há como ignorar,

sua importante contribuição, como um evento inaugural dentro dos direitos

humanos, considerando, no âmbito de sua lógica fundamental, que estava incluído

em seu bojo o enfrentamento das violações causadas (o “fazer algo a respeito”)

em contraste com um tempo que tentava sepultar a categoria da violência, e

buscava esquecer a existência dos males causados.

Portanto, Nuremberg foi um marco para o Direito Internacional dos

direitos humanos24, com vislumbres de jurisdição com pretensão universal

(TEITEL, 2000, p. 31), contribuindo relevantemente para um desenvolvimento

transformador dos direitos humanos na realidade pós-1945, quando se estabelecia

uma nova ordem internacional.

Como dissemos, apesar de estabelecer uma “justiça dos vencedores” –

permeada de irregularidades, contradições, e particularidades – vale ainda destacar

que, pela primeira vez, militares de um Estado eram julgados por crimes contra

22 Como afirma Tatiana Sigal a respeito do assunto: “A instauração do Tribunal Militar Internacional de Nuremberg somente foi possível devido ao processo de internacionalização dos Direitos Humanos, através do qual a figura do indivíduo tornou-se um pilar essencial do Direito Internacional. Assim, em face às graves atrocidades ocorridas na Segunda Guerra Mundial, o Tribunal de Nuremberg foi instaurado para punir os criminosos de guerra nazistas, seguindo as bases de seu Estatuto.” Ver mais em “Tribunal de Nuremberg: os antecedentes e o legado” – Sigal, Tatiana, 2013.

23 “As origens da história moderna da justiça de transição podem ser encontradas na Primeira Guerra Mundial, embora ela passe a ser entendida como “extraordinária e internacional” (Teitel, 2003, p. 69) somente no pós Segunda Guerra, com a derrota da Alemanha, Itália e Japão em 1945, e a consequente instalação do tribunal de Nuremberg (ainda que não exista unanimidade em torno da pertinência de classificar o tribunal como uma forma de justiça de transição, os julgamentos por ele desenvolvidos tiveram profundo impacto na estruturação das práticas de justiça de transição que se seguiram), o desenvolvimento de programas de desnazificação, na Alemanha, e na elaboração de legislação para compensar as vítimas do nazismo, (...) Mecanismos de justiça de transição também foram adotados em países que estiveram sob a ocupação alemã durante a guerra (...) ‘Essa fase reflete o triunfo da justiça de transição dentro do esquema da legislação internacional’, avalia Teitel (...).” (Mezarobba, 2009, p. 113). 24 Como afirma Tarcísio Dal Maso Jardim, “Não podemos esquecer que os princípios de Nuremberg foram transformados em resolução pela Assembléia Geral da ONU (res. 95 – I, de 11 de dezembro de 1946)”. (Jardim, 2006, p.7)

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humanidade, e por meio de um tribunal internacional. Assim, apesar de neste

momento as vítimas não se encontrarem, propriamente dentro das demandas de

justiça, este Tribunal inaugurou um novo paradigma ao “tipificar novos delitos, a

exemplo de crimes contra a paz e crimes contra a humanidade” (ZAGO, 2013,

p.7). Em decorrência desse episódio, uma série de princípios de justiça

internacional. (GÓMEZ, 2012, p. 265) ficou registrada.

1.4.2.

Pós Guerra Fria

Cite-se também a segunda fase da justiça de transição, compreendida

pela realidade pós Guerra Fria (ano de 1989) com a decadência da potência

socialista soviética, e ao mesmo tempo marcada pelos processos de

democratização em países Latino-americanos, Africanos, e do Leste Europeu.

Nesse contexto, se observa uma noção de justiça inscrita na busca pela

reconstrução nacional com uma perspectiva localista (JARDIM, 2006, p. 5).

Adiante, serão abordados alguns casos emblemáticos, já que este período é

permeado de conflitos que constituem o alavancamento dos estudos sobre a justiça

de transição.

Considerando estes estudos foi inaugurado um horizonte crítico para

análise de tais processos de transição, especialmente no campo das ciências

políticas e no direito (QUINALHA, 2013, p. 154), com o objetivo de construir

saberes em torno das questões sobre quais os jogos de poder que se estabeleceram

na política desses países à época de seus governos repressores. Desse modo, eram

levadas em conta as condições que se apresentavam como pano de fundo para o

recuo dos autoritarismos e também das brechas favoráveis ao raiar democrático.

Destacando as violações de direitos humanos sofridas por esses países

durante governos sangrentos25, a impactante quantidade de mortos, feridos e

25 “(...) mais terríveis na organização de políticas repressivas, deixaram em seus respectivos países um legado atroz de assassinatos e massacres, desaparecimentos forçados e diversas formas de tortura (...) Não se deve excluir deste inventário de práticas abusivas, institucionalmente

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desaparecidos políticos – comuns aos regimes de caráter repressivo, e de

conhecimento geral – passa a ser incluída ao escopo crítico que então a figurava

nos estudos sobre o assunto. Assim, quando da análise desses processos, a

expressão Justiça de Transição começou a ter incipiente relevância, em alusão

emergente necessidade de justiça nos contextos de término de conflitos ou para

onde se buscava alcançar a democracia como resposta aos governos ditatoriais

sombrios.

Esta expressão se difundiu em uma série de questões, que não se

esgotaram até hoje, a respeito da maneira como as sociedades encaram tais

acontecimentos drásticos como as graves violações de direitos humanos26, e como

se constroem no presente e para o futuro – entendendo que “fazer justiça e pensar

medidas de justiça num contexto de mudanças políticas é olhar para o passado,

mas também para o futuro”, (TEITEL, 2010, p. 36).

Outra marca que pode ser elucidada sobre esse período para a justiça de

transição, é que as transições no Cone Sul refletem que estes Estados vivenciaram

suas transições políticas partindo não da concepção internacionalizada de

julgamentos, como Nuremberg e Tóquio, pois elas questionam esse modelo. Mas,

de outro modo, optam por vivenciar a experiência do acerto de contas no âmbito

doméstico, abrindo novas possibilidades à justiça de transição, até então não

avistadas nos horizontes nacionais.27

Por isso, enquanto na primeira fase a concepção de justiça centrava-se

em um aspecto retributivo, a segunda fase expandiu-se em seus propósitos, de tal

maneira que é possível observar um distanciamento maior das formas tradicionais

de prestação de contas, e ao mesmo tempo, fica marcada a proximidade de uma

desenvolvidas e amplamente impunes, o exílio forçado e a prisão arbitrária, nem mesmo a violência sexual exercida fortemente contra as mulheres”. (Reátegui, 2011, p. 37) 26 “(...) esta pergunta leva a outra que explora a questão da relação do tratamento do passado do Estado para o seu futuro. Como a compreensão social por trás de um novo regime está comprometida com o estado de direito criado?” (Teitel, 2000, p. 3, tradução nossa) No original: “(…) this question leads to other that explore the question of the relation of the treatment of the state’s past to its future. How is the social understanding behind a new regime committed to the rule of law created?” (Teitel, 2000, p. 3)

27 Na parte I (Justiça de Transição em Hispano-América), pp. 13-205, do livro “Justiça de Transição. Das anistias às comissões da verdade”, tal assunto é aprofundado.

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perspectiva de reconstrução nacional, com a adoção de um modelo restaurativo,

em substituição ao modelo anterior de retribuição.

Esse formato pátrio escolhido pelos países latino-americanos para

enfrentar as violações pretéritas, abre para justiça de transição um novo campo de

reflexão, qual seja o de perceber que nas conjunturas locais o justo passa a

depender da singularidade da experiência política transicional, país a país.

Em que se pesem os esforços de situar no tempo a justiça de transição, é

no século XX, que o conceito passa a receber reconhecimento na política

internacional (GÓMEZ, 2012, p. 262), sendo usado dentro de um contexto

reflexivo acerca das respostas políticas e jurídicas de uma sociedade fragmentada

e em transição de um cenário de guerras para paz, e/ou de regimes repressivos a

democracias liberais. Tais transições configuram o segundo precedente ao

conceito de Justiça de Transição, e carregam forte sentido didático, já que o seu

ineditismo àquela época, provocava no cenário internacional novas noções a

respeito de como poderiam ocorrer diferentes formas de “prestação de contas”28.

1.4.3.

Fim do século XX até os dias atuais

Ruti Teitel (2005) pontua que esta fase está associada aos conflitos

existentes em uma conjuntura de instabilidade política de Estados fracos, em

conflitos permanentes, ou pequenos conflitos – e que possuem como característica

principal a normalização da violência, dado seu uso permanente e contínuo

(JARDIM, 2006, p. 5; TEITEL, 2005 apud CORRÊA, 2013, p. 27).

28 A respeito do conceito de Justiça de Transição, Gómez (2014, n.p.) afirma: “aí radica a origem imediata e decisiva da noção, pois a partir dessas situações que se forjaram a ideia subliminar e o termo de “justiça de transição” ou “transicional”, inventaram-se mecanismos específicos (comissões da verdade, programas de reparação), e se multiplicaram as análises acadêmicas, sobre as condições sócio-históricas, dinâmicas políticas e consequências das medidas de justiça transicional adotadas por Estados particulares, bem como sua influência e difusão horizontal (de país a país) e vertical (de baixo para cima e de cima para baixo, em escala regional e global).”

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Em função disso, essa fase estaria associada aos conflitos

contemporâneos, e a reflexão sobre a persistência das guerras no nosso tempo,

também constituindo uma fase de normalização da Justiça de Transição. Isso

significa que, frente a um cenário fragmentado, com a persistência dos conflitos, a

justiça de transição deixa sua posição de exceção, constituindo a partir de agora a

regra (TEITEL, 2005 apud CORRÊA, 2013, p. 27). Em outras palavras, a Justiça

de Transição passa a ganhar peso e se expande pelo plano internacional,

fortalecida pelo discurso humanitário29. A respeito disso, Quinalha (2013) explica:

“a terceira e atual fase emerge no fim do séc. XX, associada à globalização e marcada por uma normalização do paradigma da justiça de transição, que deixa de ser exceção e passa a ser regra geral, amplamente adotada no plano internacional e definitivamente integrante do rol de políticas consagradas pelos organismos internacionais.” (QUINALHA, 2013, p.125)

Logo, se antes a justiça de transição se associava imediatamente com a

realidade de um contexto pós-conflito oriundo de uma reestruturação política,

agora poderia ser interpretada como um paradigma constituído de mecanismos

que revelam compromissos com o Estado de Direito.

1.4.4.

Alguns processos transicionais

A transição pode ser encarada como um fenômeno político, e apresentou

nuances diversas de um país para outro – ora pelo contexto internacional, ora

pelas particularidades do ordenamento doméstico. Contudo, uma questão comum

que se destaca desses processos de transição, foi que eles apresentaram maneiras

para enfrentar os abusos contra os direitos humanos vivenciados nos regimes

anteriores. Visto isso, serão destacados abaixo alguns exemplos relevantes deste

processo, tendo um recorte em seu contexto específicos.

No velho continente, com a transição política em meados da década de

1970, certos países da do sul Europa, “a temática e os sistemas de proteção dos

29 A respeito do direito humanitário, ele será mais bem explicado no Tópico 1.7.2, com suas ponderações necessárias.

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direitos humanos começavam a ativar-se e a ganhar maior densidade normativa,

institucional e política” (GÓMEZ, 2012, p. 267), tanto no contexto internacional,

como no contexto europeu.

A transição como ocorreu na Europa do sul, foi caracterizada pelos

governos emergentes decidirem lidar com a consequente fragmentação social

deixada pelas violações dos governos anteriores. A maneira como iriam dar este

passo, contudo, ainda era uma questão, porque ainda não havia muitas opções na

experiência internacional que pudessem servir de exemplo e como base para

serem absorvidas naquele momento. Por esse motivo, em se tratando de como

responder a essas violações e os princípios pelos quais lidar com elas, cada país

utilizou-se de uma maneira própria.

Em linhas gerais, em 1974, pode-se dizer que a Grécia buscou como

estratégia governamental um arranjo que consistia no “julgamento penal dos

responsáveis máximos, [...] com depurações institucionais” (GÓMEZ, 2012, p.

267). Por sua vez, Portugal, marcada pela revolução dos cravos, priorizou os

expurgos administrativos em massa de antigos salazaristas – os quais mesmo

tendo sido anulados, ainda representaram uma atitude de enfrentamento. Além

desses, ressalta-se a Espanha, que optou pela anistia, onde culminara em silêncio e

esquecimento acerca dos massacres e violações que caracterizaram tanto a sua

guerra civil, como o longo período da ditadura franquista.

Na Europa Central e do Leste, transições eclodiram na década de 1990,

abarcando desde saneamentos administrativos “descomunizantes”, como a

abertura de arquivos policiais em alguns países, julgamentos do alto escalão

militar, comissões enredadas por parlamentos e governos em outros países. Vale

destacar, a abertura dos arquivos da política secreta para o público, realizada por

meio da Comissão de Estudo Alemã e a Autoridade Gauck (BRITO, 2009, p. 60).

Já com respeito aos países latino-americanos30, pode-se afirmar que suas

experiências apresentam-se como especialmente decisivas tanto para definição

dos novos mecanismos e conteúdo da justiça transicional, quanto no

30 Ver os textos de Salvador Millaleo (2014, pp. 13-37), “La justicia de transición en el Cono Sur como Historia Global; Pereira (2014, pp. 205- 217), “Um Epílogo das recentes ditaduras militares sul-americanas à luz do direito internacional”.

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reconhecimento e aceitação da própria noção do termo. Essa geração de novos

mecanismos e conteúdos para o conceito de justiça de transição, aconteceu em

virtude da pluralidade de processos transicionais distintos nesse grupo de países,

permitindo assim que se expandisse o rol de possibilidades a respeito das

respostas às violências sofridas (mais opções sobre “como poderia ser feito”), já

que as experiências de outros países estavam defasadas de algumas respostas

encontradas aqui.

Com a superação gradual das ditaduras civis-militares, que usavam

sabidamente da violência como forma de estabilização política – “com objetivo

autodeclarado de promover uma ideologia securitária baseados nos valores

nacionais e na moral cristã” (QUINALHA, 2012, p. 14) – os países do cone Sul,

iniciaram seus empenhos no enfrentamento das violações sofridas.

Então, faz-se necessário abordar brevemente, algumas experiências

vivenciadas no Cone Sul, como forma de elucidar que caráter inovador possuíram

os mecanismos transicionais escolhidos, pois como foi afirmado acima, eles

trouxeram boa parte do material reflexivo dos estudos sobre justiça de transição.

Iniciando pela maneira Argentina de lidar com as violações sofridas pelo

regime repressivo anterior, foi no governo do Presidente Raúl Alfosin, em 1983,

que se conjugou pela primeira vez um processo penal e uma comissão de

verdade.31 Com objetivo de julgar os membros das juntas militares que

governaram o país e ao mesmo tempo buscar conhecer de uma maneira

aprofundada a máquina repressiva estatal, que governara de 1976 a 1982, bem

como identificar os responsáveis pelas violações cometidas e as vítimas dessas

violações, houve a condenação dos chefes militares, e ao mesmo tempo a

elaboração de um relatório por meio da Comissión Nacional sobre Desaparición

de Personas. (GÓMEZ, 2014, n.p.)

Tanto a condenação supramencionada, como o relatório geraram efeitos

que serviram de influência para inúmeros países vizinhos, visto que por meio do

relatório nomeado pela comissão de Nunca Más, foi possível chegar a um

conhecimento inédito do aparelho repressivo que governou a Argentina assolando

31 Ver mais em “Terrorismo de Estado: Impunidad y punición en Argentina” (BARBERÁ, 2014. p. 41-68).

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direitos de toda uma sociedade. Frise-se que a condenação dos militares, ensejou

forte inovação normativa e judicial, gerando novos alcances à noção do tema.

Outro caso de importante relevância na América Latina foi o processo

transicional chileno. Governado pelo presidente Patrício Alwin, o Chile optou

pela instalação da “Comissão de Verdade e Reconciliação Nacional”, sendo um

mecanismo que trazia algumas limitações – não forçava o testemunho dos

opressores e só contemplava crimes seguidos de morte.32 A despeito de seu

formato optar por não ter forçado o testemunho dos repressores, e também apesar

de suas limitações no sentido de ter seu alcance restrito aos assassinatos,

ignorando os demais crimes como escopo do mecanismo transicional, ainda

assim, os elementos apurados pela comissão, em seu intitulado “Relatório

Retting”, contribuíram para atribuir responsabilidade ao regime militar – o que

mais tarde serviria como fundamento para reparação às vítimas, e ainda para o

pedido de extradição de Pinochet, com sua prisão em Londres, em 1998, marcante

não apenas para a história chilena, mas de forte impacto reflexivo também no

âmbito internacional.

Interessante ainda destacar, a similaridade dos casos brasileiro e

uruguaio33, com relação às obstruções causadas pelos governos civis, que

sucederam os governos militares, por meio de políticas de esquecimento

introduzidas por suas leis de anistia. Essas políticas de esquecimento representam

um importante aspecto dos processos transicionais, pelas críticas importantes que

introduzem ao conceito da justiça de transição, como será visto adiante.

As limitações inseridas pelas leis de anistia, impossibilitando

mecanismos de responsabilização dos militares, ensejaram o enfretamento do

passado por meio de outros caminhos. Dado que os meios da justiça penal não se

apresentavam como mecanismo transicional aplicável ao Brasil e ao Uruguai,

tiveram que contar com a ajuda de organismos de direitos humanos. Assim, por

meio dos recorrentes movimentos de apoio aos familiares dos mortos e

32 Ver mais em “La persecución penal de los crímenes de lla dictadura militar en Chile” (BASUALTO, 2014, p. 69-100).

33 Conforme Baharona de Brito (2011, p. 65): “No Uruguai, ligações presidenciais com o Comandante em Chefe do Exército e a falta de conexão política com grupos que exigiam verdade e justiça, orientaram o presidente Sanguinetti a evitar quaisquer medidas punitivas”

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desaparecidos durante o regime anterior, em busca de informações oficiais, foi

possível avançar nessa senda, de forma que significativas mudanças puderam ser

alcançadas.

Dentre essas mudanças, houve, no Uruguai34, a instalação da Comissão

para a Paz (uma comissão de verdade oficial), e também a adoção de medidas de

reparação. Em 2011, importante iniciativa do presidente José Mujica, representa a

ampliação do escopo de medidas de transição uruguaia: o presidente passa a

autorizar o julgamento civil de alguns membros das Forças Armadas.

No Brasil, apesar do não cumprimento ao que preceituava a decisão da

Corte de San José da Costa Rica, sobre as obrigações devidas pelo Estado

brasileiro em relação ao caso Araguaia35; e ainda do julgamento pelo STF da Ação

de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 153, a respeito da Lei

6.683 de 28 de Agosto de 1979 – Lei de Anistia – em que o Supremo entendeu

pelo não cabimento do pedido de revisão (por 7 votos a 2)36; ainda assim, é

importante notar algumas medidas tomadas pelo Brasil, que devem ser

considerados no âmbito de suas práticas transicionais.

Em primeiro momento, formaram-se as iniciativas de organizações da

sociedade civil, em relação aos perseguidos políticos, mortos e desaparecidos, e

também as reparações realizadas às vítimas da ditatura militar. Porém, de maior

destaque e com um desempenho que se aguardava com grande expectativa, cite-se

a instalação da Comissão Nacional da Verdade – ainda que mais tardia que nos

34 Ver mais em “La imprescriptibilidad de las violaciones contra los derechos humanos cometidas en Uruguay”, por Simon (2014, p. 151-204).

35 Cecília Macdowell (2010, p. 9) faz uma breve descrição do caso Araguaia: “O movimento da Guerrilha do Araguaia começou a se desenvolver em 1966, numa área rural de difícil acesso, no sul do Pará. Sob a direção do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), 69 militantes de diferentes partes do Brasil integraram a guerrilha, que agregou, também, cerca de 17 camponeses da localidade. Entre abril de 1972 e janeiro de 1975, o Exército brasileiro realizou campanhas de “informação e repressão” da guerrilha, dizimando‑a no final de 1974. Estima‑se que o número de soldados que participaram das campanhas oscilou entre 3 mil e mais de 10 000 (Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, 2007: 195).” 36 De acordo com o ex-ministro do STF, Eros Grau, a lei não poderia ser revisada pelo Judiciário, mas sim pelo Legislativo conforme “mudanças do tempo e da sociedade a impuserem”. É possível conhecer mais profundamente este tema a partir da leitura do texto “Justiça de transição. Breves anotações sobre a posição do STF brasileiro acerca da Lei de Anistia”, de Costa (2014, p. 279-292).

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demais casos apresentados37 – pela lei nº 12.528 sancionada pela presidente Dilma

Rouseff, em 2011, com a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações

de direitos humanos praticadas no período fixado entre os anos de 1946 e 1988, a

fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a

reconciliação nacional38. Esta Comissão, pela lei que a institui, visa os direitos da

vítima à justiça, verdade e memória, tem atuação integrada e articulada com o

Arquivo Nacional, com a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, e ainda,

com a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça.

Vale dizer que esta Comissão, apresentou em relatório39 recentemente,

em 10 de dezembro de 2014, tendo realizado investigações por meio de pesquisas,

com evidências sobre os eventos, até então desconhecidos pela sociedade, com

objetivo de complementar o que se conhece a respeito do passado de repressão

vivenciado no Brasil. Ainda, a Comissão em alguns casos, fez ponderações com

propostas sobre o enfrentamento de algumas questões descobertas.

Por fim, pelos casos paradigmáticos da América Latina aqui citados,

vemos que o conceito sobre justiça de transição, envolve também sociedades que

possuem transições inacabadas, apesar de mostrarem-se em alguns casos,

democracias consolidadas; sabemos, ademais, de transições recém-iniciadas por

situações recentes de cessação de conflitos, e vemos, ainda, transições que se

expandem no tempo, revelando que a Justiça de Transição pode ser um campo de

continuidades-rupturas, com uma característica não linear, que convoca o tempo

passado para a compreensão do que presente, e a construção o futuro.

Além disso, nota-se que alguns países que tomaram a atitude do “virar a

página” em certo momento de sua transição, alguns anos após reuniram medidas

para responder à questões que ficaram para trás. Por várias razões distintas, que

37 Em outros países com histórico de transição, vemos que as Comissões da Verdade foram criadas oficialmente mais cedo: na Argentina é criada pelo Decreto nº187 de 1983; no Chile pelo Decreto nº355 de 1990; na África do Sul pelo Ato nº43 de 1995; e na Guatemala pelo Acordo de 1994. Vale, contudo apontar, que embora a Comissão Nacional Verdade não houvesse sido oficialmente criada, já haviam organizações da sociedade civil, preocupadas com a verdade, que se revelam por meio das Caravanas de Anistia, etc.

38 Art. 1º da Lei nº 12.528, de 18 de novembro de 2011.

39 Ver mais em: Relatório / Comissão Nacional da Verdade. – Recurso eletrônico. – Brasília: CNV, 2014.

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podem ser consideradas, como na medida em que os governos se consolidavam,

ou que tornavam-se mais fortes conseguiam romper com os laços de impunidade

decorrentes dos regimes que pactuaram as transições no período recente à

mudança de regime; ou porque algum evento novo reascendeu algum debate,

inspirando grupos a se mobilizarem no horizonte das buscas por enfrentamento

das violências passadas.

A esse respeito, Ruti Teitel (2012, p. 31) mostra que a temporalidade, no

que tange as questões transicionais, faz com que estes países retomem a busca

pela verdade “20, 30 ou 40 anos depois”, pois as instituições passam a ganhar

maturidade, tornando-se suficientemente fortes para lidar com os profundos

impactos provenientes do enfrentamento das violações do passado.40 Gómez

(2012, p. 282), a esse respeito confirma que

“pode transcorrer várias décadas sem que nada aconteça em matéria de justiça de transição, até o momento em que, sob a mudança de condições, (...), produz-se a irrupção de uma luta pela memória de injustiças passadas, capaz de desencadear decisões e dinâmicas inéditas”.

Dessa forma, da escolha de um conjunto de elementos e mecanismos,

condicionados à ação histórica, política e social do tempo em que ocorreu a

transição, temos como produto, como se pode observar, que cada país vivenciou

contextos específicos, muito diversos entre si, apresentando contingências

políticas internacionais e nacionais tão distintas, que contribuíram em demasia

para ampliação do que se tinha por compreensão a respeito da justiça de transição,

assumindo nessa esteira, variados aspectos em relação à formas e conteúdos.

Ressalte-se que tais processos de transição geraram impactos tanto dentro da

América Latina, como em escala global, visto que as inovações trazidas foram

absorvidas tanto pelo regime global como pelo regime interamericano de direitos

humanos.

Na África cabe, concisamente, observar uma peculiaridade merecedora de

pontuação. Em alguns de seus processos transicionais, é possível visualizar a

40 E ainda, Ruti Teitel (2010, p. 32) coloca que “Na maioria dos países em que a justiça transicional passa a se desenvolver ou segue se desenvolvendo mesmo após uma longa passagem de tempo, percebemos claramente que a motivação para tanto é a necessidade do Estado democrático em responder a uma demanda persistente vinda da sociedade civil organizada.”

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atuação de organizações de direitos humanos tanto nacionais como internacionais,

que desempenharam importantes papéis. Em Ruanda, por exemplo, quando

organizações internacionais de direitos humanos encabeçaram a iniciativa pela

revelação da verdade sobre as violações de direitos humanos, houve a aglutinação

de esforços internacionais para o julgamento de militares e violadores de direitos

humanos, como o Tribunal Criminal para Ruanda, criado pelo Conselho de

Segurança da ONU (JARDIM, 2006; ZYL, 2005).

Vale brevemente elucidar que houve a instalação de Comissões da

Verdade que foram instaladas na Argélia, no Marrocos e na África do Sul.

(BRITO, 2009). Estas comissões tiveram caráter completamente distinto das

comissões da verdade instaladas nos países da América Latina.

Na África do Sul41, como afirma Tarcísio Jardim (2006, p. 11), a comissão

da verdade foi instalada, visando à restauração do “equilíbrio moral no processo

de anistia” 42. No processo de anistia da África do Sul, aquele que causou

violações de direitos humanos precisam se identificar como culpados, realizando

descrição pormenorizada dos “atos pelos quais acredita que precisa de anistia”

(PINTO, 2007, p.411). Lá, a anistia concedida não foi geral e irrestrita, de forma

que para obtê-la era necessário conjugar várias condições como “o crime ser

associado a objetivos políticos; o criminoso revelar a verdade por completo; ser

membro de organizações políticas, movimentos de libertação ou membros das

forças de segurança estatais; não ter agido para obter lucro, exceto na qualidade de

informante; não ter sido o crime motivado por ódio ou maldade pessoal, etc.”

(JARDIM, 2006, p. 11).

No caso de alguns violadores, que buscaram a anistia por terem causado

infrações mais graves, estes teriam de “participar de audiências públicas, para

41 Ver Simone Martins Rodrigues Pinto (2007, pp.393-421): “Justiça Transicional na África do Sul: Restaurando o Passado, Construindo o Futuro”.

42 Como coloca, Simone Pinto (2007, p.410): “O objetivo mais controverso do Ato de instituição da Comissão de Verdade é, sem dúvida, o de facilitar a anistia das pessoas que esclarecerem completamente os fatos relevantes relacionados aos atos associados com objetivos políticos. Mas sua ênfase é clara no reconhecimento e na verdade, mais do que na punição. É psicologicamente vital para as famílias das vítimas saberem o que ocorreu, e esse esclarecimento é também necessário para que haja reparação e compensação adequadas. Por isso, a anistia surge como instrumento de obtenção da verdade.”

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serem questionados pela Comissão e, em alguns casos, pelas vítimas e famílias

das vítimas” (SIMONE, 2007, p.411). Nesses casos, importante para o processo

está no requerente ter que reconhecer sua responsabilidade, assumindo-a, de modo

específico e personalíssimo. Vale ressaltar ainda, que para tais situações aqueles

que receberam a anistia, foram identificados, e “o nome do criminoso e as

informações sobre sua conduta eram publicadas no diário oficial da África do

Sul”, (JARDIM, 2006, p. 11) e “impedidos de ocupar posições que lhes permitam

repetir a violência”. (SIMONE, 2007, p.411)

1.5.

Desdobramentos

Tendo a percepção dos vários processos de transição ocorridos,

cresceram debates conceituais dentro dessa matéria, como aqueles que pensam a

paz e a justiça e, ainda, os debates sobre as políticas diversas a respeito da

reconciliação e perdão introduzidos pela justiça de transição, etc.

A evolução sobre tal percepção se transporta do imaginário teórico para a

realidade, de forma que experiências como as acima destacadas se apresentam

ilustrativamente, não só com seus aspectos positivos – do que deu certo – como

destaca um rol de falhas também.

Em algumas experiências no Cone Sul, por exemplo, ficaram

sobressaltados problemas relacionados à impunidade e estabilidade democrática;

nas experiências africanas foram notados problemas enfrentados em relação à

transição por conta de sociedades com estados fracos e divisas por etnias, bem

como a ausência de vontade política para o enfrentamento das violações de

direitos humanos; no leste europeu, registraram-se problemas vinculados a

violações do processo legal, bem como o uso abusivo da justiça transicional.

Entretanto, no que tange aos aspectos positivos, é importante salientar,

que do contexto da transformação política e jurídica das sociedades que passaram

por tais processos de transição, é possível observar que apresentaram, cada uma,

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vários mecanismos43 usados para tratar o legado histórico da violência dos

regimes violentos com o objetivo de atuar, cada um a seu modo, com a necessária

justiça sobre eles, de forma que esses mecanismos puderam ser incorporados a

outras experiências, trazendo cada vez mais estudos e conhecimentos agregados44.

1.6.

Alargamento do escopo da justiça de transição

1.6.1.

Internacionalização dos direitos humanos: onde estão as vítimas?

Observando os recortes da transição acima mencionados, é possível

afirmar que o campo da justiça de transição sofreu um alargamento de seu escopo,

isso porque deixou a esfera conceitual, passando gradualmente a figurar em

obrigações legais. Podemos enxergar esse ponto, no âmbito internacional do

direito, por meio do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, da Corte

Interamericana de Direitos Humanos45 e do Comitê de Direitos Humanos. Em

função disso, a justiça de transição, para alguns autores, passou a apresentar

43 “Comissões da verdade, tribunais de justiça nacionais, internacionais, ou mistos, programas administrativos de reparações a vítimas ou afetados, iniciativas oficiais de comemoração, instâncias de reconciliação nacionais ou regionais, mecanismos estatais de busca de pessoas desaparecidas: tais são algumas das manifestações concretas nas quais se articula contemporaneamente a justiça de transição. Paralelamente a elas — e amiúde implantando novas relações entre sociedade, estado nacional e comunidade internacional— desencadeou-se uma notória mobilização social associada à prática da memória, à elaboração de propostas para um adequado ressarcimento pelos danos sofridos, à reivindicação da diversidade étnica e de gênero na vivência do horror e na resistência a ele e, enfim, à recordação e à reafirmação da própria dignidade.” (Reátegui, 2011, p. 39) 44 Como afirma Barahona de Brito (2009), a literatura a respeito deste tema cresceu de tal forma que construir um ensaio bibliográfico a seu respeito que inclua todos os estudos que o englobam seria um empreendimento muito difícil.

45 De acordo com Cecília Macdowell (2010): “A principal função da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), criada em 1959, é garantir a defesa dos direitos humanos no continente americano, averiguando as alegadas violações e recomendando os mecanismos cabíveis de proteção e reparação aos Estados‑membros da Organização dos Estados Americanos (OEA).

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alguns padrões46 no tocante ao enfrentamento de violações de direitos humanos

sofridas por países em transição política (ZYL, 2005).

Na visão de Louis Bickford (apud MEZAROBA, 2012, p. 248), a Justiça

de Transição, se compreende como uma estrutura para se colocar frente-a-frente

com o passado violado, envolvendo tanto estratégias judiciais como não judiciais,

para a transformação política. Nesse sentido, o autor mostra que para elaboração

de um argumento normativo em torno da confrontação do passado, a justiça de

transição usa como principais fontes, os direitos humanos – na medida em que

dele retira estratégias que melhor se adequem aos interesses da vítima – e também

a legislação internacional de direitos humanos e a legislação humanitária.

Como foi apontado, dessas transições decorreram inúmeros estudos

sistemáticos a respeito da Justiça de Transição. A novidade do conceito suscitava,

ainda, um uso generalizado, ao mesmo tempo que a noção a seu respeito crescia e

sofisticava em razão, primeiro, de as transições ocorridas entre os anos 80 e 90

afetarem o sistema internacional e a política mundial – provocando como

consequência a emergência e o fortalecimento dos direitos humanos – segundo,

pelo fato de as experiências vivenciadas em torno do mundo, apontarem

dinâmicas distintas, apresentando interpretações também diferenciadas a respeito

dos aspectos considerados relevantes, bem como as dimensões que poderia

assumir. Essas interpretações sobre o termo variavam em razão de alguns fatores

como: “história das próprias sociedades; a natureza e alcance repressivo dos

regimes precedentes; os tipos de transição política; o grau de legitimação”

(GÓMEZ, 2012, p. 266).

Por meio do processo de internacionalização dos direitos humanos foram

afetados os cenários da prática e da doutrina da Justiça transicional. (CORRÊA,

2013). Emergiram diferentes instituições supranacionais, compreendendo, por

exemplo, os Tribunais Internacionais (entre eles as cortes internacionais de

direitos humanos), e ainda, foram concebidos mecanismos e órgãos internacionais

de controle, que possuíam alcance universal, tais como o Tribunal Penal

46 “O direito internacional (...) evoluiu com o passar dos últimos vinte aos até o ponto em que atualmente existem padrões claros relativos às obrigações dos Estados a respeito da forma de enfrentar as violações dos direitos humanos, bem como proibições como no caso das anistias gerais quando se trata de crimes internacionais.” (Zyl, 2005, p. 48)

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Internacional, e também a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CORRÊA,

2013). Observa-se que estes órgãos referentes à luta dos direitos humanos

influenciaram de maneira significativa o desenho que se tinha da Justiça de

Transição.

Nesse horizonte, reflete-se ainda sobre a vinculação dos Estados às

normas internacionais que definem proibições universais47 (ZYL, 2005). De fato,

atualmente “a comunidade internacional pode colaborar com a construção de

processos de reconciliação após eventos conflitivos como fonte potencial de

informações, experiência e educação” (BLOMMFIELD, 2005 apud CORRÊA,

2013, p. 34), e que existe “evidencia que organismos internacionais podem

intervir como aparatos auxiliares da transição em contextos pós-conflituais,

especialmente pelo uso de relatórios” (HUYSE, 2005 apud Corrêa, 2013, p. 34),

assinalando que as normas internacionais vêm paulatinamente interferindo nos

processos transicionais.

Ainda sobre a inferência da esfera internacional nos quadros da Justiça

Transicional, vale indicar que a ONU, por meio de seu secretário geral, com a

apresentação de seu relatório no ano 200048, passou a adicionar a Justiça de

Transição, dentre os assuntos centrais os quais as Nações Unidas se debruçam

anualmente.

Como caso paradigmático, cite-se que em razão do caso Velazquez-

Rodrigues contra o Estado de Honduras, ano de 1988, por exemplo, a Corte

Interamericana de Direitos Humanos (PIOVESAN, 2008; MEZAROBBA, 2012),

em sua decisão, quando observa que os Estados possuem obrigações fundamentais

em matéria de direitos humanos, inspira a justiça de transição. Dentre essas

47 A ratificação do Tribunal Penal Internacional, por mais de cem países, demonstram esta afirmação.

48 Também no Relatório S/2004/616de 2004, do Secretário Geral da ONU a justiça de transição fica compreendida, como: “(...) conjunto de processos e mecanismos associados às tentativas da sociedade em chegar a um acordo quanto ao grande legado de abusos cometidos no passado, a fim de assegurar que os responsáveis prestem contas aos seus atos, que seja feita a justiça e se conquiste a reconciliação. Tais mecanismos podem ser judiciais ou extrajudiciais, com diferentes níveis de envolvimento internacional (ou nenhum), bem como abarcar o juízo de processos individuais, reparações, busca da verdade, reforma institucional, investigação de antecedentes, a destituição de um cargo ou a combinação de todos esses procedimentos”.

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obrigações49, estaria a adoção de medidas preventivas a violações de direitos

humanos, a investigações sobre as violações ocorridas, a imposição de sanções

adequadas aos responsáveis pelas violações praticadas, e a reparação das vítimas

que sofreram com as violações.

Citando amplamente a jurisprudência produzida pela Corte

Interamericana de Direitos Humanos, Kai Ambos (2009 apud CORRÊA, 2013),

preocupa-se em por meio dela traçar um viés normativo da Justiça de Transição,

de forma que compartilha sua compreensão de que a justiça de Transição se

direciona no sentido de preocupar-se com o dever do Estado na punição das

violações de direitos humanos (inclusive no que diz respeito ao cumprimento às

normas internacionais das entidades supramencionadas). Também visa a

efetivação do direito das vítimas à verdade, à justiça e à reparação – sendo que no

coletivo frisa-se o acesso à informação, e no privado, o direito das famílias das

vítimas à compensação pelo dano provocado pela privação da presença de seu

ente querido, até mesmo devolução pelo Estado do ocultado corpo das vítimas,

removendo de suas famílias o sentimento de “não saber o paradeiro”, de “não

poder sepultá-lo (PEREIRA, Marcos, 2014, p.205) .

Nesta mesma orientação sobre a composição de que é feita a justiça de

transição, visto que se observa as diferentes maneiras como alguns estados

enfrentaram as violações de direitos humanos e, portanto, se observam vários

elementos, Paul Van Zyl (2005) se esforça em organizá-los, apontando que suas

preocupações orbitam pela busca pela verdade, pela justiça penal, por políticas de

reparação e memória e reformas institucionais, elementos incorporados ao

conceito de justiça de transição.

Ainda sobre essa questão, Juan Méndez (2007 apud MEZAROBBA,

2009, p. 116) – ex-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e

49 “Ao fundamentar a decisão, a Corte afirmou: O desaparecimento forçado de seres humanos é uma violação múltipla e contínua de muitos direitos constantes da Convenção, que os Estados-partes são obrigados a respeitar e garantir. (...) Como consequência desta obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e punir qualquer violação de direitos enunciados na Convenção e, além disso, se possível, devem buscar a restauração de direito violado, prevendo uma compensação em virtude dos danos resultantes da violação. (...) a falha de ação do aparato estatal, que está claramente provada, reflete a falha de Honduras em satisfazer as obrigações assumidas em face do art.1º (1) da Convenção, que obriga a garantir a Manfredo Velasquez o livre e pleno exercício de seus direitos humanos”. (Piovesan, 2008)

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também um importante representante do paradigma da justiça transicional –

também elenca algumas áreas de atuação para onde a Justiça de Transição deva

estar direcionada, destacando como importantes elementos desse conceito e desse

campo: a justiça (associada à responsabilização penal dos culpados); o direito à

verdade e à informação (associada à instauração de comissões da verdade); justiça

e reconciliação (por meio das quais são fortalecidas as lutas por memória

política); a reparação (associada ao pagamento de indenizações àqueles que

sofreram danos durante o regime repressivo); e o saneamento na administração

(associada a ideia de impedir que a Administração continue abrigando violadores).

Com esse propósito, o uso desses mecanismos orientou a justiça de

transição, como campo de estudo, por discussões diversas, englobando desde os

debates acerca da institucionalidade política, como um dos desafios enfrentados

por países de herança autoritária no processo de construção democrática, aos

debates referentes à provisão de medidas que fizessem justiça às vítimas desses

regimes, etc. Por essa razão, há relevância em compreender os elementos que

compõem o conceito justiça de transição, pois cada um deles desencadeia

consequências no plano político, e partindo delas é que entendemos os distintos

processos transicionais, e as razões estratégicas que justificam a preferência por

uns mecanismos, em detrimento de outros.

Ou seja, torna-se possível compreender criticamente porque alguns países

optaram pela anistia, com a elaboração de uma verdade oficial dos vencedores,

por meio do perdão artificial; e também, por consequência, a razão porque alguns

destes países passaram recorrer, posteriormente, a instauração de Comissões da

Verdade, quando o caminho da Justiça punitiva foi fechado; passamos a entender

que condições possibilitaram alguns países punirem responsáveis, porque outros

não puderam. Contudo, para isso é necessário compreender o que significam esses

elementos.

No conhecer a verdade abre-se uma significação específica. Isso porque

nas transições aqui tratadas, frequentemente, os crimes cometidos eram ocultados

– além deles, também nomes, corpos, lugares, laudos médicos, etc. – e

acompanhados de uma política de esquecimento existente, que se inscrevia dentro

de versões contadas pelos violadores. Para as vítimas, conhecer e contar a verdade

significa – entre muitos significados – uma maneira de abrir campo para

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“requalificação moral da injustiça sofrida” (ZAMORA, 2013, p.24). Significa que,

a despeito do que acreditavam ou não à época dos regimes nos quais eram

perseguidas, as vítimas tinham sua dignidade comprimida, seus direitos violados,

muitas vezes, apenas pelo fato de pensarem diferente, ou por simplesmente

resistirem ao regime imposto.

A verdade do ocorrido, para as vítimas, significa trazer a lume parte da

história daquele tempo, que ninguém mais poderia contar – a história das

violações dos seus direitos – de maneira que seja possível que novos julgamentos

morais sejam feitos ao seu respeito, visto que o estigma com que eram marcadas

no tempo dos regimes repressivos lhes caracterizavam como um elemento que

“merecia” passar por tais violações.

Assim, enquanto a história dessas violações não fica conhecida pela

sociedade, isto é, enquanto há um forte distanciamento da sociedade em relação à

violência ocorrida, há uma perpetuação da história da violência dentro do país. As

vítimas não são conhecidas como vítimas que são pelo fato de não ter havido o

reconhecimento oficial das violações. Por isso, a verdade passa a ser essencial

como um dos elementos da justiça de transição, na maior parte desses países que

passaram por transições de regimes ditatoriais para democracias, ou que

finalizaram conflitos. A verdade, nesses contextos, passa a ser significada como

um elemento de “recomposição ética” (ZAMORA, 2013) da sociedade

fragmentada.

No decorrer do reconhecimento da verdade, outro elemento necessário

que enxerga-se sendo vindicado é que seja feita justiça por meio da condenação

dos seus violadores. Ao passo que os violadores não receberam a punição por seus

atos criminosos (ao contrário, receberam vantagens indevidamente), construíram

seu presente sobre as injustiças cometidas. Estes violadores deveriam ser julgados

porque sua responsabilização, bem como a apuração dos crimes, representam

formas de assegurar a verdade dos delitos cometidos. Vê-se também como real

necessidade a preservação da verdade da vítima sobre o fato de que inúmeras

pessoas estiveram em condições degradantes de tratamento durante os regimes

repressivos e que vivenciaram dias indubitavelmente sombrios sob a tutela estatal.

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53

Com essas duas atitudes, tais sociedades poderiam “recuperar” a

confiança no Estado, rompendo os vínculos com a impunidade. Como afirma

Zamora,

“Pensar em uma recomposição ética da sociedade fragilizada pela violência, em uma convivência fundamentada na igualdade e na justiça, em uma ordem que rompa com as tramas sociais do crime etc. é impossível sem que haja o seu tratamento judicial. Sem isso tampouco é possível pensar em uma reintegração social dos violadores.” (ZAMORA, 2013, p. 24)

Considerar, contudo, a justiça apenas por uma concepção punitiva de

âmbito judicial, pode de certa forma limitar o conceito de Justiça de Transição,

pois, como será melhor explicado, em alguns ordenamentos o tratamento pode

deslocar a vítima para um segundo plano, ignorando suas necessidades enquanto

vítima, isto é, como um indivíduo que teve sua dignidade violada, e que não tem

seus sofrimentos e experiência de injustiça contemplados por esse caminho, de

apenas “prender os culpados”.

Não se quer dizer, entretanto, que a responsabilização penal não seja

importante, mesmo porque compreendo que, em grande medida, “a sede por

justiça se materializaria na punição dos culpados” (PEREIRA, 2014, p. 207), e

reflito que para muitas vítimas “o anseio pela devida responsabilização dos

algozes é ainda latente” (PEREIRA, 2014, p. 207). O que intento colocar,

contudo, é sobre a importância de pensar a justiça para além da concepção dos

procedimentos atuais, como a única possibilidade de realização da justiça.

Dessa forma, a reflexão sobre o conceito de justiça proposto é de que o

elemento justiça deve estar intimamente associado à figura da vítima – o que não

ocorre na concepção punitiva mencionada (ainda que a ela se aproveite, no caso

de haver punição) – uma vez que é ela que consolida e objetiva a experiência do

injusto. Como coloca Zamora (2012):

“(...) os instrumentos habituais de fazer justiça – estabelecer a responsabilidade individual, provar os delitos, assinalar as penas proporcionais e fazê-las cumprir e, se for o caso, compensar as vítimas – veem-se extravasados pela magnitude dos crimes ou enfrentam enormes dificuldades para resolvê-los judicialmente. Em qualquer caso os acontecimentos a que nos referimos propõem exigências

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que vão além do âmbito judicial, ainda que o pressuponham” (ZAMORA, 2012, p.97, tradução nossa) 50.

1.6.2.

Humanitarismo51 e a preocupação com as vítimas

Nas palavras de Reátegui (2011, p. 359), o direito das vítimas à verdade,

à justiça e à reparações são “de fato, um continente novo na discussão

internacional sobre transições do autoritarismo para a democracia e da violência

para a paz”. Isso revela algo novo dentro do cenário da Justiça de Transição: a

perspectiva de uma sensibilidade moral, por meio da qual se passou a alocar os

direitos da vítima em um espaço novo, um espaço de existência das vítimas, de

onde a reflexão sobre justiça assumiria a vítima como ponto de partida. Essa

maneira de atribuir a vítima um papel de importância dentro da reflexão a respeito

da violência e das violações de direitos humanos, na virada do século XX, pode

ser imputado ao humanitarismo compassivo, marcado também pela intensa

emergência da reativação da memória no cenário político.

Dadas as variadas experiências de transições ocorridas em várias partes

do mundo, definidas por suas dolorosas lembranças, houve a convergência da

necessidade de “se fazer algo sobre o que aconteceu”, com um momento de

despertamento de memórias sobre experiências de violações de direitos humanos,

ultrapassando fronteiras e se espalhando por inúmeros lugares do mundo.

50 No original: “los instrumentos habituales de hacer justicia – estabelecer la responsabilidade individual, probar los delitos, señalar las penas proporcionadas y hacerlas cumplir y, en su caso, compensar las víctimas – se ven desbordados por la magnitude de los crímenes o se enfrentan a enormes dificuldades para solventarlos judicialmente. En cualquier caso los acontecimentos a los que nos referimos plantean unas exigências que van más allá del ámbito judicial, aunque lo presupongan.” (ZAMORA, 2012, p. 97)

51 “O humanitarismo, como conjunto de premissas e postulados que asseguram certa ordem moral, faz parte da história contemporânea das ideias, porém teve um destino raro em relação à maioria dos sistemas de pensamento: foi incorporado pelo senso comum e se expressa, há décadas, de diversos modos na forma de normatividade jurídica. Trata-se, pois, de um sistema de valores que adquiriu existência institucional e que terminou por arraigar-se, também, na ordem política. Ainda que a força coativa do Estado e dos poderes existentes sempre pode se impor, a longo prazo sua legitimidade — ou seja, sua possibilidade de existir como autoridade sem que participe da intimidação permanente — está subordinada ao respeito desses valores.” (REÁTEGUI, 2011, p. 360)

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Nascido pós-horrores da segunda guerra mundial, o humanitarismo

introduziu no cenário mundial, postulados de ordem moral, tendo sido assimilado

pelo senso comum, e também aderido normatividade, estabelecendo traços de

institucionalidade que se transportaram também para seara política. Por meio dele

se estabeleceu um conjunto de valores que se expressa forma sistemática,

possuindo não apenas existência institucional, como passou a integrar a nova

ordem política.

Tal sensibilidade moral, pautada na noção de dignidade do indivíduo,

pode ser percebida na moral mundial, partindo-se dos julgamentos marcantes de

Nuremberg. Mas frise-se sempre, que as iniciativas do “fazer algo a respeito” das

violações não consiste em novidade, e sim na convergência entre a sensibilidade

situada no contexto da ordem global liberal pós guerra-fria, e a ascensão da

memória sobre as violações ocorridas, e ainda as situações de violações de direitos

humanos, em países periféricos para onde se voltava as atenções de inúmeras

organizações internacionais (GÓMEZ, 2012).

Essas organizações são reunidas pela noção comum a respeito da

necessidade de “se fazer algo a respeito”, levando-se em conta a coleção de

memórias que matizavam a violência espalhada pelo mundo inteiro, em diferentes

épocas, e contextos, impulsionaram organizações internacionais a se moverem no

sentido da ação humanitária, que culminou no que vemos hoje como justiça

internacional, com normas jurídicas, além de “atores e dispositivos e práticas

internacionais, bem como dos processos concretos que se desenvolvem no plano

nacional”. (GÓMEZ, 2012, p. 278)

É possível observar, também, que houve não apenas uma ampliação e

definição dos crimes de guerra, crimes contra a humanidade, e outros, como se

estabeleceram novos direitos das vítimas – como os direitos à verdade, à

reparação, à justiça, à memória, ao luto – que foram tão importantes dentro do

tema da Justiça de Transição.

Contudo, ainda que reconhecidamente, observemos a influência dos

ideais humanitários ligados aos movimentos relativos as memórias traumáticas,

como ideais que preencheram o pós-guerra fria de maior sensibilidade moral,

insta-se trazer o contraponto suscitado por Douzinas (2007 apud CORRÊA,

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2013), com relação às guerras estadunidenses alicerçadas nestes valores, e que

revelam uma faceta paradoxal dos direitos humanos. Este autor (2007 apud

CORRÊA, 2013, p. 27) também assevera que os direitos humanos apresentam

uma retórica, cujos elementos estariam inscritos no seio de políticas

anticomunistas, em “países de capitalismo desenvolvido”, e, portanto, como

defendem Negri e Hardt (2006 apud CORRÊA, 2013, p. 28), em uma “moralidade

que se apresenta universal” seria justificado o “direito de intervenção” solidificada

na ideia de “bellum justum”, que os Estados Unidos, obscuramente, procedem

impondo o direito de polícia – assim, justificando esta forma nefasta de distorcer a

liberdade, por meio de valores universais (CORRÊA, 2013). 52

Apesar disso, como percebe Corrêa (2013), faz-se necessário pensar que

tanto a proposta de genealogia da Justiça de Transição, ensejada por Ruti Teitel,

como as críticas atribuídas aos direitos humanos, e ao processo de sua

consolidação, elaboradas por Negri, Hartt, Douzinas e outros, produzem uma

ampliação na maneira de conhecermos e compreendermos que a

internacionalização dos direitos humanos e a configurações da Justiça de transição

são eventos com intercessões e pontos convergentes (CORRÊA, 2013, p. 28).

Faz-nos conhecer a ambiguidade de seu processo histórico, de forma a

nos tornar menos ingênuos a respeito de algumas de suas pretensões. Faz-nos

compreendê-los como processos descontínuos, fragmentados, e nos possibilita

encará-los por uma concepção menos “redentor (a) ou triunfante” (CORRÊA,

2013, p.28).

52 Como Gómez (2012, p. 262) menciona: “(...) numerosos Estados discordam e resistem a sua aplicação, e, salvo os casos de Estados periféricos fracos e sociedades atomizadas (onde, de fato, a intervenção internacional age sem maior constrangimento inicial para impor quase à risca o modelo internacionalizado), são conhecidos os problemas de efetividade, ambivalência e seletividade que afetam a internacionalização dos direitos humanos e do direito humanitário, não obstante os avanços registrados nas duas últimas décadas nos planos global e regional.”

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57

1.7.

Particularidades dos processos de Justiça de Transição: a inaplicabilidade de uma “receita universal”

Pela literatura focada no tema dos processos transicionais, como são

apresentados no âmbito da experiência internacional, percebe-se que tais

processos se direcionaram a um objetivo comum, como o alcance da paz e a

reconciliação das sociedades traumatizadas e fragmentadas por conflitos e/ou

regimes extremamente repressivos. Esta compreensão acerca da justiça de

transição no âmbito internacional teria como objetivos comuns tanto a recriação

da confiança entre as vítimas e um Estado fragmentado, quanto impedir a

repetição e reedição de violações e massacres em massa. Essa recuperação da

confiança viria por meio de um conjunto de ações indispensáveis para proteção e

promoção dos direitos humanos.

Cabe lembrar, que, na década de 1990, inicialmente essa

internacionalização da justiça de transição partia de uma concepção de justiça que

mesclava elementos transicionais distintos, de forma a atribuir a justiça de

transição um caráter padronizado normativo, que determinava mecanismos

específicos, desdobrando-se como resultado em profundas “ambivalências,

contradições e paradoxos”. (GÓMEZ, 2012, p. 283)

Ora, isso acontece, pois tendo um escopo que envolve “instituições,

práticas, políticas, normas e mecanismos que guardam uma manifesta diversidade

interna” (REÁTEGUI, 2011, p. 40), temos outra vez, nessa “multiplicidade de

formas e conteúdos” (GÓMEZ, 2012, p. 266), os objetivos comuns acima

enunciados (a restauração da confiança entre vitima e Estado, e o impedimento a

repetição da violação) não são possíveis de serem realizados por todos os países

de maneira idêntica. Em outras palavras, se tais objetivos se apresentarem na

forma de um único modelo a ser plenamente praticados por todos os países, eles

tornam-se inviáveis, devido àquela multiplicidade intrínseca das questões relativas

a cada contexto.

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A crítica a qualquer pretensão orientada nesse sentido mostrou uma

constatação importante: que não é possível elaborar uma “receita universalmente

aplicável” (REÁTEGUI, 2011, p. 40) a todos os países, tendo em vista a

particularidade de cada processo de transição. Como afirma Javier Ciurlizza

(2009, p.29) sobre a dificuldade de se falar em modelos, quando pensamos em

mecanismos transicionais:

“Os países possuem histórias e condições muito diferentes entre si, por isso não é possível falar em modelos no sentido de exemplos perfeitos que possam ser reproduzidos.” (CIURLIZZA, 2009, p.29)

No entanto, é preciso salientar que apesar disso, a justiça de transição,

oferece um arcabouço volumoso de “aprendizados, diretrizes e precauções”

(REÁTEGUI, 2011, p. 40), assentado nas diversas experiências de transição, que

representam a riqueza do tema para continuidade do seu estudo. Assim, levando-

se em conta o fato de cada país ter adotado medidas de transição que se

adequassem a sua realidade interna, elucidando o caráter não padronizado e não

engessado da justiça de transição, esta apresenta uma base comum, um

fundamento axiológico, qual seja: “um eixo de princípios e de valores, e um

conjunto de normas jurídicas básicas que definem a legitimidade das obrigações

legais mínimas que todo Estado deve assumir53”. (REÁTEGUI, 2011, p. 40)

Dessa forma, o que tem sido apresentado pela literatura tradicional sobre

o tema, é que se de um lado a justiça de transição não pode ser efetivada pelas

mesmas medidas em todos os lugares, de outro, ela pode se afirmar como uma

“unidade propósitos” que visem sua efetividade, cujas bases são “princípios

jurídicos e morais” (REÁTEGUI, 2011, p. 41).

53 Existe um fundamento axiológico, um eixo de princípios e de valores, e um conjunto de normas jurídicas básicas que definem a legitimidade das obrigações legais mínimas que todo Estado deve assumir. Esta base fundamental da justiça de transição surge, por um lado, dos desenvolvimentos jurídicos normativos em matéria de direito internacional e, por outro lado, da sistematização e integração normativa das melhores práticas desenvolvidas por diversos países para combater a impunidade e oferecer medidas de justiça às vítimas. (Reátegui, 2011, p. 40)

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59

1.7.1.

Razões diferentes, usos de mecanismos diferentes

Uma correlação de forças deve ser observada na utilização diversa dos

arranjos de mecanismos de transição pelos países que tomaram a iniciativa de

enfrentar as violações que marcaram os regimes anteriores, pois algumas razões

obstaculizaram o acesso à verdade, a concretização da justiça ou mesmo a

reabilitação social dos que sofreram com a violação dos seus direitos, o que causa

aos países processos diferentes de transição por diversos motivos – em alguns

porque o poder decorrente da transição encontrava-se fragilizado, ao ponto de não

ser possível a aplicação de uma justiça que responsabilizasse, efetivamente os

culpados; em outros porque os novos governantes tenderam a reduzir impactos,

sobre as imprevisíveis reações decorrentes de “mexerem em feridas”, optando por

a uma transição minimamente conflitiva .

O que se quer dizer é que alguns fatores – como o contexto transicional,

os legados da ditadura (nos países do Cone Sul, por exemplo), as heranças

históricas, e o contexto internacional (BRITO, 2009, p. 68) – definiram a Justiça

Transicional nos países, e que esses fatores é que conferem especificidade aos

processos de transição.

Na prática, os casos são os mais variados, sendo possível observar várias

configurações, como: países onde os violadores, para saírem do poder,

negociaram que para seguir adiante seria necessário que se “virasse a página”, ou

seja, tornando necessário o esquecimento54; ainda em outros países, a dificuldade

consistia muitas vezes na ausência de meios para julgar e atribuir penas a esses

crimes55, que se desdobravam em maneiras alternativas de lidar com essas

54 Conforme Baharona de Brito (2011, p. 64): “as transições negociadas ou “pactuadas”, ou transições “por libertação”, normalmente oferecem menor margem de ação, pelo fato das forças dos regimes autoritários ainda vigorarem, de modo que a elite democratizadora tenha de se esforçar habilmente para reverter a balança de poder em seu favor”.

55 Glenda Mezzaroba (2012, p. 250), afirma que: “o sistema judicial existente, por exemplo, costuma ser fraco, corrupto ou ineficiente; o número de criminosos a ser processado pode ultrapassar a capacidade do sistema legal e a quantidade de vítimas e sobreviventes que aguardam uma oportunidade para narrar suas histórias ou receber uma compensação financeira pode ser imensa”.

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questões; e mais, outros países tiveram dificuldade pelo fato de que, em

decorrência do constrangimento nacional que algumas revelações poderiam trazer,

a significação política de um enfretamento mais completo poderia colocar o país

em crise, sem haver mecanismos para superá-la, e, portanto, optaram pelo

caminho da cautela política.

Além desses, houve também casos de abertura política em que os novos

governos democráticos eram hegemonicamente formados por partidos compostos

de antigas forças autoritárias, contanto que “cosmeticamente renovadas” (BRITO,

2009, p. 66), ou seja, uma liderança política com composição herdada do período

ditatorial, que contribui para a ocultação dos feitos de violência do passado.

Considere-se ainda que os instrumentos por meio dos quais

habitualmente se fazia justiça, e também por meio dos quais responsabilidades

eram atribuídas, na maior parte dos casos, foram ultrapassados pela complexidade

e extensão dos crimes, e ainda pela dificuldade para solucioná-los, ficando cada

vez mais claro a dificuldade de serem resolvidos pela via judicial, apresentando-se

com exigências superavam as possibilidades de solução dentro do âmbito judicial

(ZAMORA, 2013).

Assim, torna-se possível notar, que as respostas dos Estados relativas aos

crimes violentos produzidos pelos governos repressivos, dependem de uma série

de condições, sejam militares, socioeconômicas, e de política interna (BRITO,

2009).

Desse modo, levando-se em conta essas razões estratégicas (e também os

acontecimentos, processos, situações e períodos históricos) (BRITO, 2009), as

quais os países estiveram atrelados e que explicam as transições tais como

ocorreram, é que se enxerga que apesar de a justiça punitiva ser necessária, ela se

tem inviabilizado em parte considerável dos casos pelo fato de muitos sistemas

judiciais não terem como fazer frente aos crimes em massa, tornando-se claro que

a aplicação dos mecanismos não está apenas relacionada à “disponibilidade desses

mecanismos” (ZAMORA, 2013, p. 26), mas também ao fato de estarem

vinculados a uma questão de “adequação dos meios à realidade”. (ZAMORA,

2013, p. 26)

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Ressalte-se ainda a dimensão internacional como uma razão provocativa

de diferentes resultados em matéria de justiça de transição, a qual provisionou em

alguma medida alguns processos transicionais. Como se buscou mostrar é

certamente das convergências entre as fontes dos direitos humanos e dos

componentes genealógicos e recentes do conceito de justiça transicional, e dos

movimentos de memória, que tem sido depurada a noção de justiça transicional

que temos em relação às ações que podem ser tomadas como prestação de contas.

Por isso, vale ressaltar, que o contexto internacional que margeava os

processos transicionais, de igual forma, pode ser identificado como fator de

definição sobre os mecanismos de prestação de contas, cujos países puderam

optar, em face da situação internacional que estavam imersos à época do processo

transicional. Nesse sentido, Brito (2009, p. 70), afirma que “transições ocorridas

antes da ‘revolução de direitos humanos’ no plano internacional iniciada no fim

da década de 1970, e sob as condições impostas pela Guerra Fria (...) não se

beneficiaram do discurso universalizador dos direitos humanos”.

Ao passo que com o fim da Guerra Fria e a revolução dos direitos

humanos alterando completamente o contexto internacional, as transições

ocorridas entre o final da década de 80 e fim da década de 90, receberam um

enquadramento dentro do panorama dos direitos humanos, relativos a proteção e

cuidado dessas violações sofridas, com a atuação de várias “organizações de

direitos transnacionais, tribunais estrangeiros, tribunais internacionais, e missões

da ONU” (BRITO, 2009, p. 70), que trabalhavam com esse propósito.

Assim, é possível observar que a resultante em muitos desses casos,

foram mecanismos que no limite de formas de enfrentamento em um primeiro

momento se mostraram ineficazes ou deficitárias, surgiram novas maneiras com a

função de dar complementaridade aos processos transicionais iniciados. E, por

isso, importa lembrar que “mesmo onde a questão é oficialmente tratada,

diferentes grupos sociais continuarão a retrabalhar passado, envolvendo-se numa

política mais ampla de memória muito além do período de transição do regime”

(BRITO, 2009, p. 57) – como nos casos dos países que com os obstáculos

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impostos por seu sistema punitivo, puderam por meio das comissões da verdade56,

reativar investigações e pesquisas, como forma de produzir verdade, em contextos

que o sistema jurídico coloca impedimentos, com recomendações a partir dos

relatórios que apontam culpados para futuras ações penais, e mostram a versão das

vítimas, se preocupando também em revelar o que a história dos vencedores tem

buscado esconder.

1.8.

Aspecto Crítico – Centralidade da Vítima nos mecanismos Transicionais

A formação de um tribunal internacional sugere que a busca pelo

enfrentamento de tais violações de fato se dá no contexto acima destacado, se

pensarmos em Justiça de Transição, iniciando com do Tribunal de Nuremberg,

que mesmo à sua maneira seletiva, e ainda com uma atuação da “justiça

organizada pelos vencedores e, portanto, cega diante de suas próprias

cumplicidades” (ZAMORA, 2013, p. 23), ainda assim, toma-se por evento que

inaugura uma postura frente às atrocidades, junto com os processos de

desnazificação (este também passível de inúmeras críticas), como se pode

observar no marco da internacionalização dos direitos humanos, congregado ao

marco do accountability, ou prestação de contas.

Partindo desse ponto, é que mais tarde, as comunidades fraturadas pelas

violações de direitos humanos apresentaram, em comum, a mesma pergunta à

respeito do que fazer diante da produção indiscriminada de desumanidade por

meio desses regimes repressivos, que tornaram em objetos aqueles que

discordavam de suas premissas centrais: O que fazer sobre um passado de um

56 Como afirma Carolina de Campos Mello (2012, p. 39) a respeito das Comissões da Verdade, na América Latina como forma de produzir verdade diante de um contexto de anistia: “Em recente pesquisa realizada por Kathryn Sikkink e Carriel Both Walling, verifica-se que anistias foram utilizadas em 16 dos 19 países que passaram por transições na América Latina, sendo que alguns chegaram a editar mais de uma legislação com este caráter. Arquitetadas inicialmente diante de conjunturas de impunidade, as comissões de verdade constituíram o único fórum de obtenção da verdade por parte das vítimas, familiares e a sociedade.

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regime que sem escrúpulos, sem ética, sem humanidade, torturou, matou e fez

sumir – sem vestígios – seres humanos, que por pensar, ser ou viver diferente

eram silenciosamente condenados às arbitrariedades de aparelhos estatais

estrategicamente organizados?

Observa-se, em outro momento histórico, que na maioria dos casos,

como foi mostrado acima, após a transição dos regimes repressivos para

democracias, ou da cessação de conflitos armados, houve uma busca pelo

conhecimento do passado, com a invocação de reconhecimento social das

violações sofridas pelas vítimas, ou mesmo publicação acerca das injustiças que

tais violações representavam, com diversas configurações de arranjos de

mecanismos.

Em princípio, quando se fala nesse enfrentamento das violações do

passado, em especial pela concepção tradicional nos estudos a respeito da justiça

de transição, como descrito acima, desde seu aspecto genealógico, se atribui

importância em imediato à justiça punitiva. Não que ela não tenha importância no

cenário de enfrentamento do passado, muito pelo contrário, ela confere verdade

aos crimes, e isso reforça ainda mais o caráter das violações causadas durante os

regimes, confirmando seu caráter repressivo e injusto.

Todavia o que se pode constatar é que uma justiça que tem por foco

primeiro a punição dos culpados, deixam a vítima em desfoque, relegando a

segundo plano sua experiência quando ao invés de ser considerado o testemunho

de sua experiência, como uma chave para montar o quebra-cabeças do passado, o

sistema a reduz apenas como mais um mecanismo de prova.57

Com a percepção de que lidar com as violações de direitos humanos,

trazidas por ditaduras ou mesmo por guerras civis, significa transbordar os limites

da justiça punitiva – ou seja, que não se trata apenas de responsabilizar os

culpados, mas tratar a violência em sua integralidade, violência essa que se

57 “Uma justiça focada na punição do culpado concede um valor secundário às vítimas, relegando-as a um papel de instrumento probatório, de meros testemunhos da culpabilidade do violador, mas não como testemunhas de seu próprio sofrimento, da verdadeira dimensão do crime, das exigências de reparação e da projeção de um futuro sob uma perspectiva diferente” (ZAMORA, 2013, p. 26).

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espalha no âmbito estrutural e cultural e que, portanto, é necessário pensar a

Justiça além da punição58.

Entre críticas que se estabelecem sobre a Justiça de transição59, destaca-

se àquela sobre a qual se pensa a relação de compatibilidade entre os seus

diferentes mecanismos com o alvo buscado, concluindo-se que estes não se

encaixam naqueles. Assim, sob as concepções de reconciliação nacional e perdão,

as quais a justiça de transição tem se assentado, e mesmo que seja mais

perceptível hoje um significativo aumento da preocupação com relação às vítimas,

nota-se que alguns lugares “a justiça que se pretende realizar está em última

instância, a serviço da pacificação, da reconciliação nacional, e até do perdão”

(GÓMEZ, 2012, p. 283). Isso porque mesmo que o escopo de mecanismos

transicionais comtemplem a vítima em alguma medida, o propósito em que estão

imiscuídos se ligam mais a uma ideia ficta de “superar a experiência traumática da

violência”, no âmbito nacional, do que a ideia de “vontade efetiva de justiça com

as vítimas”.

Portanto, esse seria um dos fatores que explicariam a histórica

impunidade decorrente da produção do esquecimento sobre as violações causadas,

pois por meio de discursos engendrados dessa lógica, ainda que se utilizem dos

mecanismos transicionais principais, aderindo-se a direitos das vítimas, não é

efetivamente para elas que se pensa a justiça.

58 Neste sentido, Mate (2008b, p. 43, tradução nossa) expressa: “Não se trata com isto de endurecer as políticas penitenciárias ou o código penal. Trata-se de que quem mata tome consciência da injustiça que comete e o dano que há causado à vítima, à sociedade e a si mesmo.” No original: “No se trata com esto de endurecer las políticas penitenciarias o el código penal. Se trata de que quien mata tome conciencia de la injusticia que comete y el dano que há causado a la víctima, a la sociedade y a sí mismo.” (Mate, 2008b, p. 43)

59 Entre as críticas que orbitam em torno da abordagem predominante da justiça de transição, citem-se: limitações teóricas e analíticas nas abordagens clássicas, dentre elas: O caminho que se tem traçado entre o direito e a política; e ainda o aspecto de centralismo e legalidade do Estado na pauta da justiça de transição, no âmbito internacional tratado por essa literatura (McEvoy, 2008 apud Quinalha, 2013); crítica ao fato de como a literatura tradicional a respeito do tema, apesar de estender a concepção sobre o termo transição para uma compreensão temporal muito mais abrangente e alargada, a questão da linearidade no que tange a maneira de tratar os processos de democratização encontra-se presente, isto é, ao invés de tratar esta questão mais pelas rupturas trazidas, tal literatura tem tentado abordar por continuidades históricas (MacDowell, 2010); ao caráter restaurativo, atribuído à justiça de transição pela literatura tradicional sobre o tema.

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65

Nessa perspectiva, Reyes Mate60, autor que trabalha especialmente a

necessária centralidade das vítimas, pensa e reafirma conceitos como o da

reconciliação e do perdão. Contudo, é partindo de uma resignificação dessas duas

concepções que Mate assume um posicionamento crítico, pois apesar de falar em

reconciliação e perdão61 – conceitos já criticados por alguns estudiosos do tema –

este autor traça diferenças essenciais, que alteram a forma de compreensão desses

termos. Para Mate, reconciliação não é a falsa reconciliação nacional; bem como o

perdão não é o falso perdão introduzido pelas leis de anistia.

Mate mostra que a reconciliação parte não do nacional, mas do social,

onde as vítimas estão imersas, e ao mesmo tempo soltas das interações,

compreendendo um processo com duração extensa, que se afasta da noção de

realização de um ato isolado (que falsamente produz a reconciliação de uma nação

para com os crimes do passado), e de importância significativa para reintegração

das vítimas. Como Mate (1999):

“o perdão é incompatível com o esquecimento. Para perdoar há que recordar, há que abrir os olhos ao passado de modo que os assassinos62 possam assumir suas culpas e as organizações sejam responsabilizadas. Só então as vítimas poderão pronunciar sua palavra de perdão – não o Estado – e suturar assim a fratura da comunidade.” (Mate, 1999, n.p., tradução nossa)

Implica, portanto, em resgatar as vítimas de onde pairam dentro da

sociedade, reconectando seus vínculos com esta. Para Mate (2001, n.p., tradução

nossa) “as vítimas não são só um problema que resolver, senão o passo obrigado

60 Como será mostrado adiante “Reyes Mate inspirado em grande parte no pensamento de Benjamin (2007), propõe uma abordagem original que, baseada na natureza política da ética compassiva e da justiça anamnética, dá centralidade à figura da vítima e torna o trabalho da memória indissociável das injustiças do passado. As contas e os direitos pendentes das vítimas de barbáries passadas põem em jogo inevitáveis compromissos políticos, éticos e epistêmicos, bem como disputas hermenêuticas e de sentido suscitadas pelos vínculos entre as injustiças do passado e as injustiças do presente, entre o passado ausente, esquecido e silenciado dos vencidos, e o passado vitorioso dos vencedores.” (Gómez, 2012, p. 284).

61 Vale mencionar que a respeito do tema “perdão e reconciliação” há também outras concepções como a de Hanna Arendt e a de Derrida. Ver OLIVEIRA, Antônio Leal de. O perdão e a reconciliação com o passado em Hannah Arendt e Jacques Derrida. Revista Anistia Política e Justiça de Transição, Brasília, n. 1, p.203-227, jan. 2009. Semestral.

62Apesar disso, Mate (1999, n.p. online) revela não ter muitas ilusões a respeito da capacidade do assassino para assumir sua culpa “queda sustitutoriamente, la condena de la justicia en juicio justo; en ese caso, la sociedad sabe, al menos, a qué atenerse. Otra cosa son las organizaciones que han legitimado el crimen. Si culpa es personal e intransferible, no ha por qué exigir las culpabilidades, pero sí responsabilidades políticas”.

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66

de qualquer solução, pois têm a chave da possível integração da parte violenta na

futura comunidade política reconciliada.”

Nesse sentido, para Mate papel fundamental tem a memória, que

contribui com esse propósito, no sentido de resgatar os acontecimentos, trazendo a

verdade inscrita dentro da experiência da vítima, que estava esquecida no tempo

para o presente, possibilitando assim, seu reconhecimento perante a sociedade

(que na maior parte desconhece sua existência), bem como “a devolução do que

lhe foi negado pelo seu ofensor – sua condição de cidadão da comunidade

política” (GÓMEZ, 2012, p. 284)63. E não apenas isso, mas de maneira diferente

também busca reintegrar o violador, atribuindo a ele alguma alteração de sentido,

Mate acredita que “recupera o perpetrador da injustiça através do reconhecimento

do dano irreversível que ele causou, de assumir a culpa e de solicitar o perdão à

vítima”. (apud GÓMEZ, 2012, p. 285).

Assim, no esforço de que a Justiça de Transição seja mais do que “uma

justiça especial, excepcional e transitória, com o objetivo de ‘reciclar’ o peso do

passado, de alcançar, pela via mais rápida e menos custosa, uma estabilidade

social e política pós-traumática” (ZAMORA, 2013, p. 27), adentra-se em outro

campo conceitual, qual seja o da justiça das vítimas, que – sob a análise das

experiências de violências passadas – passa a repensar a significação da política

do sofrimento, a relação entre a memória e a história, e ainda o lugar da vítima na

moral e na política, conferindo a ela lugar central.

Atrelado ao modo de conceber à vítima o espaço de centralidade, no

tocante a justiça, isto é, de atribuir a ela o destino para onde se encaminhe o justo

da justiça, Bartolomé Ruiz (2012), reflete inúmeros pontos que envolvem esta

concepção, partindo da análise da alteridade ferida da vítima como um elemento

fundamental do sofrimento, ou ainda, como “critério ético material da injustiça”,

onde se materializam aspectos objetivos do conceito de justiça da vítima.

Desse modo, Ruiz (2012, p. 50) traz uma crítica à justiça procedimental

como modelo de justiça aplicada, mostrando os rastros de modernidade que este

63 Os fragmentos citados neste item (1.9) do texto de Gómez estão relacionados a apresentação que este autor fez de forma breve sobre a teoria de Mate em um texto que englobava vários outros assuntos. Não se pretende insinuar, contudo, concordâncias ou discordâncias entre os autores.

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modelo carrega consigo, desde o momento em que opera por envolver os

acontecimentos de violência com um véu da ignorância – fazendo alusão às

teorias da justiça procedimental – e ainda quando se estabelece um ponto zero, de

onde se iniciem os contratos sociais, renovadamente pactuados em diversos

momentos da história, como forma de esquecer o que se deu para trás,

consequentemente, deixando no passado também os eventos de horror que se

deram na esteira do desenvolvimento e do progresso, tão intimamente ligados a

essa maneira de vislumbrar a justiça.

Não terminando aqui, Ruiz (2012, p. 51), ainda atribui à justiça

procedimental o “fato de estar coadunada a concepção de manutenção de uma

ordem”, isto é, o fato de o direito estar mais preocupada em restabelecer a ordem

jurídica violada, do que propriamente se preocupar e se ocupar do sofrimento

vivenciado pela vítima. Assim, o direito estaria muito mais para ordem, do que

para a dignidade humana violada, revelando valores sociais hegemonicamente

estabelecidos no nosso tempo: de uma preocupação social e política, menos

relacionada à alteridade ferida da vítima, e mais ajustada à restauração da ordem

jurídica que foi turbada pela violação da lei durante a realização do crime.

Por isso, enxergar a justiça partindo do olhar da vítima, traz uma

alteração epistemológica, pelo fato de conseguirmos a partir do seu sofrimento,

enxergar não apenas o horizonte da violência vivenciada, mas também o horizonte

onde as histórias dos vencedores se construíram. Faz-nos compreender, com

menos resignação, que é possível interpelar a facticidade do presente, a respeito

dos elementos ocultos que se encontram sob as ruínas do passado, situadas abaixo

do amontoado de destroços de guerras, das pilhas de cadáveres produzidos pelas

ditaduras, e das camadas de acontecimentos decorrentes do passar dos tempos,

observadas nas vidas de seus sobreviventes (ou seja, dos vencidos).

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2

Justiça das vítimas

2.1.

Composição do conceito e seus elementos

Em pensar sobre as contradições que envolvem os direitos humanos, e

considerar também a sempre urgente necessidade destes serem refletidos em suas

intenções e propósitos centrais, é que são observadas as práticas introduzidas pelo

seu discurso, no campo político.

Enxergamos que sua ambiguidade está na profunda necessidade de um

discurso que seja pensado para proteção dos direitos mais básicos do homem,

como o direito a dignidade humana, mas também do lado oposto – como muitas

vezes é realizado – observamos em que medida essa proposta tem sido efetiva,

quando sob o argumento da preservação dos direitos do homem são suprimidas

liberdades individuais, ou ainda, são alimentadas guerras64, como aquelas que

recebem ajuda humanitária. No lugar de produzir a preservação da vida,

continuam produzindo milhares de mortes humanas – isto é, estilhaçando com

guerras o argumento principal pró-vida65.

64 Como apresenta Bartolomé Ruiz (2012): o Kuait, Afeganistão, Iugoslávia são alguns exemplos de países que sofreram invasões e guerras motivadas pelo discurso dos direitos humanos.

65 Como afirma Reyes Mate, no caso particular da sociedade Vasca, marcada pelo terrorismo e com um histórico de violação dos direitos humanos (Mate, 2008a, p.71, tradução nossa): “É preciso acabar com a impostura intelectual de quem pensa que porque defende os direitos humanos está do lado bom. Numa sociedade em que há mortos por terrorismo, a única defesa da vida possível é a negação do crime, o combate do terrorismo, isto é, o combate da injustiça causada à vítima. O caminho da afirmação (referida aos direitos humanos, por exemplo) passa pela negação (o combate) da negação (das injustiças).” No original: “hay que acabar con la impostura intelectual de quien piensa que porque defende los derechos humanos está del lado bueno. En una sociedade en la que hay muertos por terrorismo, la unica defensa de la vida posible es la negación del crimen, el combate del terrorismo, es decir, el combate de la injusicia causada a la víctima. El caminho de la afirmación (referida a los derechos humanos, por ejemplo) passa por la negación (el combate) de la negación(de las injusticias).” (Mate, 2008a, p.71)

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69

Deste modo, é refletindo sobre estas contradições discursivas dos direitos

humanos, e lembrando os pontos de convergência entre estes e a justiça de

transição, materializado nos mecanismos utilizados para se fazer justiça (como

forma de enfrentar o passado de violações humanas, em países que vivenciaram

um contexto de profundas alterações políticas), tenciono apresentar um modelo de

teoria da justiça, cuja memória é a maneira pela qual se operacionaliza a justiça e

a respeito da qual a vítima é o principal destinatário do que é considerado o justo.

Sobre isso, Reyes Mate (IHU, 2009)66, autor estudado como base para

esta reflexão, aponta que o “homem pensado pelos direitos humanos tem o

inconveniente de não existir”, uma vez que para tanto se projeto um homem “com

direitos, que nasce igual, livre e com direitos inatos”. Mate (IHU, 2009) expõe

que se construímos os direitos humanos “sobre um homem que não existe,

depreciamos realmente a significação do homem concreto, que vive na

desigualdade e na escravidão”.

Assim, apesar dos direitos humanos formularem este homem como um

construto social, com o fundamento de que “é muito importante que exista esse

construto, porque obrigamos que a situação concreta dos homens avance”, Reyes

Mate (IHU, 2009) se propõe a pensar não a partir da facticidade, mas, sobretudo, a

partir dos reais elementos desiguais que permeiam a história dos vencidos,

propondo uma teoria da justiça que compreenda o sofrimento da vítima, como

parte do que deve ser tratado pela justiça.

Sobretudo, propõe um modelo de justiça em que a vítima é a peça

essencial da reflexão para quem a justiça deve ser realizada, e também cujo

testemunho pode ser considerado uma maneira de conhecer alguns fragmentos da

realidade ignorada pela facticidade decorrente da versão histórica contada pelos

vencedores. Logo, as vozes das vítimas têm importância porque ninguém poderia

contar melhor a experiência real decorrente do acontecimento objetivo de

violação, e incluída nela está a memória que nos possibilita enxergar o sofrimento

passível de reparação, para cessação de sua condição de vítima.

66 IHU. A memória como antídoto à repetição da barbárie. 2009. Disponível em: <http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2523&secao=291>. Acesso em: 20 out. 2014. – Trata-se de entrevista cedida por Reyes Mate a Revista Instituto Humanitas Unisinos, ISSN 1981-8793 (online).

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Por isso, intento trabalhar neste capítulo, à luz do trabalho de Reyes

Mate, cujo pensamento é permeado pelas formulações benjaminianas, suas

reflexões a respeito do papel da vítima nos processos de enfrentamento do

passado repressivo, e sua importância para a efetividade da justiça.

Portanto, faz-se necessário investigar os conceitos que atravessam esse

modelo de justiça, a começar pelo conceito semântico de vítima, já que nesta

palavra pode ser observada uma multiplicidade de sentidos (Mate, 2008a, p. 33).

Além disso, há que se pensar também o conceito de “justiça” apropriado à

premissa central deste trabalho (de que é necessário dar espaço a voz da vítima),

tanto porque é possível conhecer a verdade por meio da memória (Mate, 2008a, p.

36) – ainda que saibamos que a “memória é seletiva” (Todorov, 2000, p. 16) –

quanto porque a memória é o método requisitado pelo modelo de justiça que aqui

se almeja trabalhar.

E ainda, mostrar em que medida o testemunho se revela em contradição

com algumas práticas estudadas pela justiça de transição, como a acepção de

perdão nacional, sugerido pelas anistias, que tem alimentado um modelo artificial

de justiça sob o argumento da reconciliação nacional, e de caráter universalizante,

que Reyes Mate desacredita, reformulando-o a partir da vítima, que seria a única

que poderia perdoar.

O testemunho, que leva em consideração o sofrimento individual daquele

que vivenciou a experiência injusta, se contrapõe à algumas proposições mais

gerais das anistias, como forma de lidar com o passado marcado de violações.

Vemos como se apresenta, ao mesmo tempo, como um mecanismo que

corresponde aos objetivos presentes na agenda da justiça transicional, qual seja o

da luta pela “não repetição” dos eventos de barbárie, e como ele aproxima as

transições de uma real atitude de enfrentamento, ao invés de esquecimento.

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2.1.1.

Quem é a vítima?

Para Reyes Mate, construir um futuro sem entendermos o significado

político das vítimas consiste no perigo de construirmos uma sociedade em cima de

injustiças cometidas no passado. Assim, em países marcados pela violência

política, durante regimes repressivos, torna-se necessário que a nova convivência

seja construída tendo por base o aprendizado de que a violência operada no

passado produziu vítimas, e que elas não podem ser perdidas de vista (MATE,

2008a; 2008b). Em suas palavras, o autor considera que “para construir uma

sociedade em paz, não se pode perder de vista a vigência das injustiças passadas, a

atualidade do sofrimento inferido” (Mate, 2008a, p.9, tradução nossa)67.

Como foi visto até aqui, as vítimas, tradicionalmente, tem sido deixadas

de lado e à margem da história, e seu sofrimento não tem feito parte do que

conhecemos das vitórias e avanços. Aliás, Benjamin – ou “avisador del fuego”

(MATE, 2008b, p. 113), assim chamado pelo fato de, junto com alguns outros

intelectuais68 ter tido a capacidade analítica de antever o rumo catastrófico do

progresso, antes que se efetivassem os acontecimentos traumáticos que feriram o

mundo, compostos por campos de extermínio humano, e guerras – já alertava

acerca da cumplicidade entre o progresso e a barbárie, já nos apontava que a

67 No original: “para construir una sociedade em paz, no hay que perder de vista la vigencia de las injusticias passadas, la actualidade del sufrimento inferido” (Mate, 2008a, p.9).

68 Como afirma Reyes Mate (2008b, p. 113, tradução nossa): “Ante os olhos do mundo inteiro teve lugar um violento e persistente antissemitismo que deveria ter permitido prever e prevenir de alguma maneira o que aconteceu. Mas não foi assim. Ninguém pensou, ninguém viu. Nem intelectuais, nem artistas, nem igrejas...só uns poucos. Podemos chamá-los de “observadores do fogo”. Não eram visionários, nem profetas. Eram singelamente bons analistas, filósofos e escritores que souberam ler seu tempo, descobrindo, sob uma aparência de progresso ou de modernidade, tendências letais que levariam à catástrofe se não se as neutralizassem a tempo”. No original: “Ante los ojos del mundo enterro tuvo lugar um violento y persistente antissemitismo que deberia haber permitido prever y prevenir de alguna manera lo que tuvo lugar. Pero no fue así. Nadie pensó, nadie vio. Ni intelectuales, ni artistas, ni iglesias...sólo unos pocos. Los podemos llamar “avistarores del fuego”. No eran visionários, ni profetas. Eran sencillamente buenos analistas, filósofos y escritores que supieron leer su tempo, descubriendo, bajo una aparência de progreso o de modernidade, tendencias letales que llevarían a la catástrofe si no se las neutralizava a tiempo”. (Mate, 2008b, p. 113)

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História era tecida de vitórias, mas ocultava outras realidades, e que o “mal do

progresso é o esquecimento” (MATE, 2011, p. 52).

Neste progresso que possui como lógica interna uma produção natural de

vítimas, sempre soterradas pelos acontecimentos que as justificavam, a memória

poderia funcionar como a salvação do passado, ou dessas vítimas, uma vez que

“graças à nova luz podemos trazer ao presente aspectos desconhecidos do

passado” (MATE, 2011, p. 141).

A respeito da vítima é necessário tecer algumas considerações, visto que

esta palavra comumente pode assumir muitos significados69 e para este trabalho

precisamos nos ocupar com um especificamente, pois quando chamamos pela

justiça, podemos nos aproximar de um tipo de justiça inadequada, como a justiça

procedimental70, por exemplo, onde a vítima está ausente do que deve ser

considerado justo, sendo uma forma de justiça que lida com a reparação de um

mal causado, mas se preocupa muito pouco com o sofrimento vivenciado pela

vítima, e muito mais em reparar a ordem violada pela transgressão da lei.

Dessa forma, entender quem é a vítima nos faz compreender que modelo

de justiça estaria relacionado a ela, pois compreender seu significado nos impede

de incorrer nos reducionismos de uma justiça formal (RUIZ, 2012, p. 50), como

única solução possível. Por isso, partirmos de sua concepção como referencial

para reparação do mal causado.

Com essa finalidade, considera-se como vítima aquele indivíduo que

experenciou um acontecimento injusto, e a justiça que se evoca para este tipo de

acontecimento se afasta da concepção da justiça procedimental, uma vez que se vê

como de fundamental importância, – mais do que o castigo dos culpados, numa

perspectiva de ajustiçamento – a invocação de que sejam tomadas medidas que

reparem o mal causado à vítima em primeiro lugar71 (MATE, 2008a, p. 24).

69 “Observamos entre nós uma problemática flexibilidade em o uso do conceito”. (Mate, 2008a, p. 33, tradução nossa) No original: “Observamos entre nosotros uma problemática flexibilidad em el uso del concepto”. (Mate, 2008a, p. 33).

70 “A ordem (e sua restauração) é o objetivo primeiro dos princípios procedimentais da justiça formal. A vítima continua ocupando um discreto lugar de invisibilidade formal” (Ruiz, 2012, p. 50).

71 Como o diz Reyes Mate (2008a, p. 24, tradução nossa): “Na retina de qualquer espectador está a imagem de um pai, rasgado, por exemplo, pela violação de sua filha pedindo justiça. Não se está

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Mesmo que saibamos que esta medida, em relação ao dano causado, não consiga

restaurar por completo o sofrimento vivido, é pensando em primeiro lugar na

vítima que as medidas de justiça devem se efetivar.

Como afirma Reyes Mate (2008a, p. 35, tradução nossa)72 “Vítima é

quem sofre violência, causada pelo homem, sem razão alguma. Por isso é

inocente.” E mesmo assim, ainda é necessário frisar que na pluralidade de

sofrimentos existentes, o da vítima está associado ao fato de que esta pessoa foi

reduzida a nada, tendo sua alteridade completamente negada, sem razão alguma.

Não havendo injustiça, inclusive, não há que se falar em vítima, pois a injustiça é

correlata da vítima, ou seja, aquela é condição de existência desta. Como o autor

afirma: “o sofrimento das vítimas, ao ser injusto, exige que se lhes faça justiça”

(MATE, 2008a, p. 38, tradução nossa)73.

Além disso, considerando essa correlação, ressalte-se que “a condição de

vítima não tem um caráter subjetivo” (RUIZ, 2012, p. 50), uma vez que a vítima

passa a existir de um injusto causado, e este injusto decorre de um acontecimento

objetivo. Ou seja, sem o evento onde se viole o indivíduo não existe uma vítima,

de maneira que não há que se dizer que a vítima existe subjetivamente. Não se

pode negar o acontecimento se ele realmente ocorreu. Portanto, não se pode negar

a objetividade da injustiça causada nem da vítima produzida.

Por conseguinte, no me sentido de Mate, Castor Bartolomé Ruiz (2012,

p. 51) explica que “a alteridade ferida da vítima é o critério ético material da

injustiça” – de forma que as correlações existentes entre o acontecimento da

injustiça e a vítima geram uma realidade concreta permeada de nuances, uma vez

que a injustiça se apresenta em várias intensidades. Portanto, concebendo

diferentes formas na intensidade com que se fere a alteridade da vítima é possível

referindo à reparação direta do dano causado a sua filha, senão ao castigo do culpado. Pois bem, com o direito reconstrutivo o atendimento iria diretamente à vítima.” No original: “En la retina de cualquier televidente está la imagen de um padre, desgarrado, por ejemplo, por la violavión de su hija pidiendo justicia. No se está refiriendo a la reparación directa del daño causado a su hija, sino al castigo del culpable. Pues bien, con el derecho reconstructivo la atención iria diretamente a la víctima.” (Mate, 2008a, p. 24)

72 No original: “Víctima es quien sufre violência, causada por el hombre, sin razón alguna. Por eso es inocente” (Mate, 2008a, p. 35)

73 No original: “el sufrimiento de las víctimas, al ser injusto, exige que se les haga justicia” (Mate, 2008a, p. 38)

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perceber a injustiça em maior ou menor grau, de forma que fica visível seu caráter

objetivo, de maneira que “a gravidade da injustiça é proporcional à materialidade

da alteridade ferida” (RUIZ, 2012, p.51).

Em Castor Ruiz, enxerga-se que a vítima habita dentro de uma “condição

de vítima”. Em igual sentido em Mate (2006, p.19, tradução nossa)74 vê-se que “o

significativo das vítimas não são seus discursos, mas sim o fato de terem sido

reduzidas a essa condição” – assim, a condição de vítima revela que esta não se

coloca neste lugar sozinha. Pelo contrário, ela foi reduzida a essa condição,

quando sofreu a injustiça. Como explicitação desse princípio, há o relato

impactante de Primo Levi (1988, p. 33), conhecido sobrevivente de um campo de

concentração, a respeito da condição da vítima, em “Isto é um Homem?”, quando

pronuncia as seguintes palavras:

“Imagine-se, agora, um homem não apenas dos seres queridos, mas de sua casa, seus hábitos, sua roupa, tudo, enfim, rigorosamente tudo que possuía; ele será um ser vazio, reduzido a puro sofrimento e carência, esquecido de dignidade e discernimento – pois quem perde tudo, muitas vezes perde também a si mesmo; transformado em algo miserável, que facilmente se decidirá sobre sua vida e sua morte, sem qualquer sentimento de afinidade humana”. (LEVI, 1988, p. 33)

Vale dizer também, que a “condição de vítima” se traduz num aspecto

transitório, cujo propósito é sua cessação por meio da reparação da alteridade

ferida da vítima, que corresponde à reparação do dano – como o próprio Mate

(2008a, p. 40, tradução nossa) detalha, consiste em “reparação do dano pessoal na

medida do possível”, ou seja, do mal injusto a ela causado, mas também em “fazer

frente ao dano político”, no tangente ao reconhecimento social e público, de que a

vítima faz parte daquela sociedade fragmentada.

Por isso, tamanha é importância de uma justiça que tenha a vítima como

destinatária. A agressão à alteridade da vítima vem acompanhada da violência

(RUIZ, 2012, p.51) através do ato de negar o outro. Assim, se a condição de

vítima permanece, pelo fato de não haver sido cuidada por nenhuma medida de

reversão do injusto, é possível que o sofrimento causado pela violência continue

operando seus efeitos, como o ressentimento.

74 No original: “lo significativo de las víctimas no son sus discursos sino el hecho de haber sido reducidas a esa condición” (Mate, 2006 , p. 19)

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75

Contudo, deve-se alertar veementemente que há casos em que a própria

vítima procura prolongar esta sua condição para alcançar proveitos, e nesta

atitude, consiste uma estratégia política denominada vitimismo (RUIZ, 2012, p.

52). Dessa forma, a importância de ressaltar o aspecto transitório da condição da

vítima está no fato do perigo da sua utilização permanente com vias de obter

vantagens. O propósito contido na vítima é de que esta condição se encerre, por

meio da justiça, já que existe a expectativa de que a condição de alteridade negada

seja superada.

Na reflexão sobre os abusos da memória, que será apresentada mais

adiante, Todorov (2000, p. 54) coloca que alguns grupos usam de sua condição de

vítima como forma de abrir uma linha de crédito inesgotável. Neste caso, a vítima

ciente de sua posição se aproveita, reivindicando de modo contínuo compensações

e benefícios operados pelo ressentimento, ou seja, sem qualquer motivação para o

rompimento com seu vínculo com a justiça e reparação do injusto.

Não obstante, apesar desta ação desempenhada em alguns processos, vale

dizer que existe como contorná-los, uma vez que contido da objetividade do

injusto causado, e ainda pelo fato de a condição de vítima ser histórica – e não

moral – há como identificar se há vitimismo em sua intenção (RUIZ, 2012, p. 52).

A importância em detalhar estes pontos consiste em expor que a despeito

da existência do vitimismo – como prática intencionalmente ruim de uma

perspectiva moral, e desta prática colocar em cheque a consistência da justiça das

vítimas, por atribuir à essas a dúvida sobre sua condição – uma justiça das vítimas

é possível. Como afirma Mate (1997, n.p.), existe uma diferença entre o recordado

pelas vítimas e o vitimismo, que consiste no enfoque dado por um e por outro.

Assim, “há uma maneira de evocar o passado que potencializa a liberdade”

(MATE, 1997, n.p.) – esta seria a recordação realizada pelas vítimas – “e outra

que a colapsa” (MATE, 1997, n.p) – esta seria maneira de recordar característica

do vitimismo. O empenho de delimitar exaustivamente seu conceito tem objetivo

de mostrar que o acontecimento do injusto e a negação da alteridade produzem

elementos objetivos que permitem identificar a verdadeira condição de vítima.

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76

Logo, isso significa, como Reyes Mate (2008a, p. 9, tradução nossa)75

afirma, que: “a significação da vítima está no fato objetivo de sê-la – na violência

injusta que padece sendo inocente – e não na opinião política que tenha”. No

mesmo sentido, Ruiz (2012, p. 52) aponta: “não são as qualidades morais ou

intelectuais que legitimam a vítima como critério de justiça”, e sim, sua condição

histórica de ter sua alteridade ferida, de maneira que a restauração da dignidade da

vítima, operada pela justiça, pode cessar esta condição.

2.1.2.

Qual justiça?

Indispensável também abordar o fato de que havendo várias

conceituações a respeito da justiça, há uma justiça que é justa para as vítimas.

Reyes Mate (2008a, p. 38, tradução nossa)76 explora bem este ponto quando

pergunta: “Se qualificamos de injustiça a violência feita à vítima, há que lhe fazer

justiça: que significa fazer justiça às vítimas?”

Pode parecer pleonástico no referente ao seu sentido, mas quando

pensamos na justiça procedimental, por exemplo, e revemos os processos

históricos de enfrentamento dos passados violentos, percebemos que os outros

modelos de justiça deram a vítima um lugar à margem do justo; um lugar

evidentemente afastado e esquecido. Como Mate (2008b, p. 26, tradução nossa)77

ainda afirma: “os marginados da história só tinham lugar no banquete do consenso

ao preço de esquecer seus ultrajes, de disfarçar-se com o ‘véu da ignorância’”.

Por esse ângulo, enxergamos que, em certa medida, há na justiça

procedimental, uma tendência discursiva que aponta para uma justiça artificial,

75 No original: “la significación de la victima está em el hecho objetivo de serlo – em la violência injusta que padece siendo inocente – y no em la opinión política que tenga”. (Mate, 2008a, p. 9)

76 No original: “Se calificamos de injusticia la violência hecha a la victima, hay que hacerle justicia: qué significa hacer justicia a las victimas?” (Mate, 2008a, p. 38)

77 No original: “los marginados de la historia sólo tenían sítio em el festín del consenso al precio de olvidar sus ultrajes, de disfrazarse com el ‘velo de la ignorância’”. (Mate, 2008b, p. 26)

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77

que se mostra constituída de ineficácia e insuficiência em matéria de inclusão do

indivíduo que sofreu a violação naquilo que se busca reparar ou restaurar, pois a

alteridade ferida desses indivíduos permanece inalterada e inobservada. Pelo viés

desse modelo de teoria da justiça, Reyes Mate (2008b, p. 26, tradução nossa)78

enuncia: “Parece que não pode fazer sujeitos da injustiça, nem seres humanos

empobrecidos ou oprimidos, até que haja um processo judicial”, isto é, como se a

justiça não concebesse a injustiça fora dos limites de um processo.

Como é possível observar, a justiça procedimental interpreta o conteúdo

da justiça dentro da ordem legal (RUIZ, 2012, p. 53). Nesse sentido, de maneira

contraposta, a injusta se realiza pelo descumprimento das leis, isto é, pela ofensa e

violação desta ordem legal. Assim, por meio dos procedimentos, o propósito da

administração da justiça será o de se orientar na restauração da ordem que fora

quebrada (RUIZ, 2012), demonstrado que a preocupação primeira deixa de ter o

foco no indivíduo, e passa a centrar os procedimentos na reorganização de um

sistema violado, ou seja, constituindo o sistema como destinatário da atenção

sobre o que deve ser reparado. Como consequência direta, a vítima que deveria

ocupar um lugar de destaque é ignorada, quando se delimita o que é justo para

esse modelo de justiça aplicada pelos procedimentos.

Em razão disso – no falar benjaminiano, refletido nos estudos de Mate –

“para os oprimidos o estado de exceção é permanente” (MATE, 2008b, p.26,

tradução nossa), não apenas dentro dos regimes totalitários, mas também no

Estado de Direito79 (MATE, 2011, p. 17); quando as vítimas, à margem das

medidas de justiça, permanecem sob a inviabilidade da condição de sem direitos.

Ainda assim, não se quer dizer desse modo que os procedimentos não sejam

importantes ou úteis. Antes, da perspectiva das vítimas o que se deseja mostrar é

que o justo não se encontra no interior dos procedimentos.

78 No original: “Parece que no puede hacer sujetos de la injusticia, ni seres humanos empobrecidos u oprimidos, hasta que um processo judicial”. (Mate, 2008b, p. 26)

79 Como afirma Mate (2011, p.17) sobre a reflexão benjaminiana: “Esse olhar é que pode dizer que, dentro de um Estado social de Direito, os oprimidos vivem em um permanente estado de exceção ou que aquilo que para a maioria é progresso, no fundo é um progresso de ruínas e cadáveres, como diz o anjo da história da tese IX”.

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Mormente, “a justiça das vítimas e a justiça procedimental não deveriam

ser contraditórias” (RUIZ, 2012, p. 53), sendo que esses procedimentos, na

perspectiva da justiça das vítimas, assumem outro significado – eles devem

impedir a vingança. Não apenas isso, mas o procedimento é “importante como

meio adequado para administrar as decisões mais pertinentes à justiça das

vítimas” (RUIZ, 2012, p. 54), evitando imparcialidades, que também se

contrapõem a justiça que se almeja realizar com relação à restauração da

alteridade ferida.

Assim, enxergar os procedimentos por essa compreensão descortina outra

hipótese de sua utilização: a de que ele possa ser usado para a efetivação do

direito da vítima à justiça, no sentido de que “o procedimento não pode exaurir o

sentido do justo nos meios que utiliza para ministrar a justiça” (RUIZ, 2012, p.

54). Ou seja, o justo está dentro da restauração da justiça, não se fechando no

interior do procedimento.

2.1.3.

A figura do outro

Dessa forma, torna-se importe prosseguir na reflexão sobre o conteúdo da

justiça das vítimas com uma noção mais alargada, que engloba a alteridade ferida

da vítima como “referência ética para definir os princípios do que é justo” (RUIZ,

2012, p. 54), e a partir disso pensar também sobre a importância dos

procedimentos no tocante a restauração da dignidade da vítima. Como coloca

Reyes Mate, pensar nas experiências de violência vivenciada pelas vítimas nos

leva a tomar como herança seu sofrimento, a partir de “uma alteridade na que o

outro não é um estranho, mas alguém que tem a cara marcada por cicatrizes de

nossa conflitiva relação” (MATE, 2008b, p. 36, tradução nossa)80.

80 No original: “una alteridade en la que el otro no es um extrãno sino alguien que tiene la cara marcada por cicatrices de nuestra conflictiva relación”. (Mate, 2008b, p. 36)

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79

Assim, considerando que a justiça das vítimas, exige necessariamente o

olhar para o sofrimento do outro, como evidência objetiva da injustiça existente, é

possível considerar esse modelo de justiça como uma “justiça do outro”, ou “uma

justiça da alteridade humana” (RUIZ, 2012, p. 55), significando que é partindo do

considerar o outro, que é possível pensar em justiça.

Considerando Auschwitz como o lugar onde o sofrimento humano –

categoria até então ignorada – é tão visível, Reyes Mate nos mostra que, dada a

tamanha crueldade produzida nos campos, o sofrimento das vítimas passa a ser

levado em consideração. Neste sentido, como nas palavras de Mate (2008b, p.

170, tradução nossa)81 “a novidade que Auschwitz produz é a exigência de

considerar ao sofrimento como condição de toda verdade”.

Antes, a verdade se coadunava à imparcialidade e à objetividade, e pelo

fato de o sofrimento estar intrinsecamente ligado ao sujeito que sofre, bem como

às suas emoções, este era desqualificado, sendo posto à margem junto com a

vítima. Neste sentido, o autor mostra com a menção ao campo de concentração

alemão, enquanto acontecimento que trouxe um despertamento diferenciado para

o “sofrimento do outro”, que este evento – que, como vimos, causou profundo

impacto e perplexidade a respeito da barbaridade e violência em seus intentos e

como projeto criado pelo homem – trouxe à lume uma significação extremada do

sofrimento, sem precedentes. Adorno, quando fala da aparição de um novo

imperativo categórico, está nessa esteira, refletindo que “consiste em repensar a

verdade, a política e a moral tendo em conta a barbárie” (ADORNO apud MATE,

2008b, p. 170, tradução nossa)82.

Assim, quando vemos na história contemporânea casos mais recentes de

torturas (ocorridos durante os regimes ditatoriais), temos consciência sobre a

injustiça estar coadunada a experiência de sofrimento, decorrente de à vítima ter

tido negada sua alteridade, e, dessa forma, devemos refletir a partir dela as

medidas de justiça que possam restaurar sua condição de integrante da sociedade.

81 No original: “lo nuevo que produce Auschwitz es la exigência de considerar al sufrimento como condición de toda verdade”. (Mate, 2008b, p. 170)

82 No original: “consiste em repensar la verdade, la política y la moral teniendo em cuenta la barbarie”. (Adorno apud Mate, 2008b, p. 170)

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80

Diferentemente dos tipos de justiça que para serem concebidas requerem

um marco zero, isto é, o estabelecimento de um momento fictício onde os

indivíduos se encontrem em um estado de igualdade natural, a justiça pensada

para as vítimas, invoca necessariamente a realidade histórica onde estão

envolvidas, sem reduções no tempo, esquecimento ou ocultação. Isso significa que

não há espaço para que se coloque um “véu de ignorância” sobre o passado e os

fato ocorridos, ou que se ignore a condição histórica dos sujeitos, ou ainda se

passe a confiar nesse “estado de igualdade natural”, de onde os indivíduos

esqueçam como considerar o outro (e mais ainda, a necessidade de enxergá-lo).

Nesse sentido, como apresenta Reyes Mate (2008b, p. 169, tradução

nossa)83, teóricos da justiça moderna, como Rawls e Habermas, “pedem que, para

poder falar de justiça, se esqueça, que se faça abstração de nossas experiências de

injustiças”. Mate na construção do seu pensamento a respeito de uma teoria da

justiça mostra que lembrar as experiências de sofrimento das vítimas é a maneira

que podemos alcançar a justiça, visto tratar-se de acontecimentos pretéritos. A

justiça das vítimas conjura transparência sobre no passado, para resgatar no tempo

o acontecimento objetivo, em que a alteridade da vítima foi violada, e a partir do

reconhecimento deste, atuar com justiça sobre ele.

Como mostra Ruiz (2012), alguns filosóficos pensaram sobre esse

problema da negação da alteridade, e seu vínculo com a injustiça, entre eles

Aristóteles, Santo Tomás, Simone Weil, Levinas, Roberto Espósito84, que apesar

de não fazerem parte do estudo que aqui se pretende, são importantes de serem

lembrados. Estes contribuíram de maneiras distintas sobre a relação entre

alteridade e a justiça, de forma que se é possível compreendermos melhor e mais

profundamente acerca desse tema, é por meio de suas reflexões concernentes a

este vínculo, em diferentes momentos históricos, que temos maior clareza sobre a

potência existente dentro da concepção de justiça das vítimas.

83 No original: “pidan, para poder hablar de justicia, que se olvide, que se haga abstración de nuestras experiencias de injusticias”. (Mate, 2008b, p. 169)

84 Para mais detalhes sobre estes autores podem ser encontrados em Ruiz (2012).

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81

2.1.3.1.

Vítimas invisíveis

A reflexão filosófica nos leva a compreender que, pelo fato da vítima ser

colocada à margem da justiça, ela tem sido coberta de invisibilidade e que

também há um condicionamento no pensar a vítima, naturalizando-a como

produto da ordem, do desenvolvimento e do progresso, sem que esta seja

associada em nenhum momento à injustiça que lhe foi causada. Nas palavras de

Reyes Mate (2008a, p.19, tradução nossa)85 isto significa o “convencimento de

que o progresso da história implica desgraçadamente um custo humano e social”.

O ato de se voltar para vítima, como o outro que está sofrendo,

desencadeia uma cascata de efeitos que atravessam os mais diversificados

campos. Por isso, revisar o entendimento sobre justiça, conhecendo o lugar de

injustiça onde a vítima se situa, desperta alterações tanto no campo do

conhecimento, como na política, pois conceber a existência de seu sofrimento traz

a necessidade da interrupção dessa condição.

Logo, é necessário apontar que “as categorias modernas são símbolos que

escondem sob uma pele de sucesso a perversidade do sofrimento das vítimas”

(RUIZ, 2012, p. 62). Desse modo, enxergar a história do lugar onde as vítimas

estão seria conforme Benjamin, no seu comentário ao quadro de Paul Klee,

chamado Angelus Novus, observar um amontoado de ruínas produzidas pelo

progresso86.

85 No original: “convencimento de que el progresso de la historia conlleva desgraciadamente un costo humano y social”. (Mate, 2008a, p.19)

86 Walter Benjamin comenta o seguinte: “Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Ele representa um anjo que parece estar a ponto de afastar-se de algo em que está cravado o seu olhar. Seus olhos estão esbugalhados, a boca aberta, as asas estendidas. Ele tem o rosto voltado para o passado O anjo da história deve ser parecido com ele. O que representa para nós uma cadeia de acontecimentos, ele vê como uma catástrofe única que sem cessar acumula ruínas, lançando-as a seus pés. Bem que ele gostaria de deter-se, de despertar os mortos e recompor os fragmentos. Mas, vindo do paraíso, sopra um furacão que revoluteia em suas asas, tão forte que o anjo não consegue recolhê-las. O furacão o empurra irresistivelmente rumo ao futuro, ao qual dá as costas, enquanto o acúmulo de ruínas cresce até o céu. O que nós chamamos de progresso é esse furacão.” (Benjamin apud Reyes Mate, 2011, p.203.)

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82

Igualmente, a dinâmica moderna do progresso engendra uma noção de

que a vítima é parte necessária do desenvolvimento – são as florezinhas

pisoteadas pelo avanço, na análise hegeliana. Essa noção naturalizada de sacrifício

humano em prol do desenvolvimento, quando encarada a partir do sofrimento

humano, da alteridade negada se torna bárbara e atroz. Sobre esse tema, Reyes

Mate (2011, p. 211) comenta a IX tese de Benjamin, dizendo que: “esta mania de

pensar pelo grande significa trivializar o sofrimento daqueles que pagam o preço

da história”.

De fato, a justiça das vítimas atravessa tantos campos distintos, por

contemplar um lado obscuro e ignorado, trazendo à superfície o conhecimento do

“sem fundo humano” (RUIZ, 2012, p. 51), que é a dor do estar embaixo de

escombros, tanto da perspectiva da violação física, como da violação

hermenêutica presente na negação de sua condição de vítima, trazida pela

invisibilidade causada pelo esquecimento. Em consequência, a justiça das vítimas

buscar firmar esses valores e reverencia “a alteridade ferida da vítima, como

critério julgador da justiça, e impede justificar qualquer tipo de naturalização da

violência” (RUIZ, 2012, p. 63).

Além disso, a justiça norteia as relações sociais composta de jogos de

interesses, sendo dessa maneira ela mesma uma “prática dos sujeitos sobre o

modo de organizar suas relações e interesses” (RUIZ, 2012, p. 63). O que

significa que a maneira de se neutralizar a possibilidade de que seja usada como

forma de beneficiar alguns sob a opressão de outros, ou ainda, de ser usada como

instrumento de validação de práticas injustas, é que tenha na alteridade o

referencial ético, que a afaste dos interesses egoístas operados pelos indivíduos.

Portanto, pela alteridade humana, isto é, pelo que se fez em relação ao outro ou

para o outro, é que as ações deveriam ser julgadas.

Por esse viés, seria possível pensar que “não podemos deduzir a justiça

de princípios transcendentais abstratos ou de procedimentos formais universais”

(RUIZ, 2012, p. 64), uma vez que é no âmbito das nossas ações em relação ao

outro, que a justiça deve operar, e por consequência “nem podemos transferir para

racionalidade universal ou à natureza humana a nossa responsabilidade por eles”

(RUIZ, 2012, p. 64). Assim conclui-se que a justiça como prática histórica, inclui

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83

os indivíduos nas deliberações criadas historicamente, e lhes atribui a

responsabilidade por suas ações em relação ao outro.

Para Reyes Mate (2008a, p. 38), quando falamos em “fazer justiça às

vítimas”, não estamos falando de uma justiça que remeta ao tribunal

constitucional ou mesmo ao Tribunal Internacional de Haya, mas sim uma justiça

cujas vítimas são objeto da ação justa. Por esse viés, se faz necessário reparar o

dano, mesmo que este muitas vezes se mostre irreparável, pois “como se devolve

a vítima, o tempo que se viveu debaixo de ameaças de morte?”, pergunta Mate

(2008a, p. 40, tradução nossa). E ainda, já que “a justiça às vítimas não é só um

problema moral, mas também político” (2008a, p. 41, tradução nossa) torna-se

premente reparar o dano político semelhantemente.

Então, diferente da concepção de justiça que se baseia em princípios

abstratos, e que por essa razão se vincula mais à reparação da ordem, ao invés de

se vincular a ação que produziu a injustiça à vítima, é que a justiça da vítima se

preocupa com a reparação da injustiça, pois a justiça “é uma prática que se

justifica (como justa) em relação à responsabilidade (e aos efeitos) sobre o outro,

especialmente o outro que é vítima da injustiça” (RUIZ, 2012, p. 65).

Para Mate (2008a, p. 41) fazer justiça as vítimas é enfrentarmos a

violência que tem sido sistematicamente praticada. Nas palavras de Mate (2008a,

p. 41, tradução nossa)87 “a justiça às vítimas não é só algo que lhes devemos

(problema moral), mas também algo sem o qual não é possível superar a violência

na política”. Ou seja, é necessário fazer justiça à vítima tanto pelo caráter

restaurativo, mas também pelo que significa para a sociedade, como um todo.

Portanto, construir um futuro, partindo do enfrentamento do passado de violações

significa educar a sociedade para que tais violações não se repitam, através do

reconhecimento da vítima e de seu sofrimento, o que, por sua vez, possibilita que

a comunidade conheça verdades camufladas e um novo olhar sobre as narradas,

fazendo-nos conhecer em cima de que sofrimentos a história tem sido construída.

Neste caminho, como Reyes Mate (2008a, p. 43, tradução nossa)88

87 No original: “la justicia a las víctimas no es sólo algo que les debemos (problema moral), sino algo sin lo que no es posible superar la violencia en política”. (Mate, 2008a, p. 41)

88 No original: “la visibilidade de las víctimas supone para todos um salto cualitativo en la comprensión y articulación de la democracia” (Mate, 2008a, p. 43)

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84

equilibradamente pontua: “a visibilidade das vítimas supõe para todos um salto

qualitativo no entendimento e articulação da democracia.”

2.2.

Justiça anamnética

O que vimos até aqui foi a invisibilidade histórica das vítimas89 como

fruto de uma lógica que lhes ignorava por considerá-las parte normal do processo

de desenvolvimento. E mais, foi abordada também, a ligação dessa invisibilidade

com a negação da alteridade desse indivíduo sem rosto, esquecido – sem

importância – e tratorizado pelo progresso.

Nesse direcionamento, se afirmamos que a justiça das vítimas deve

recuperar no passado o acontecimento que imputou injustiça a estes indivíduos,

nada mais plausível que o questionamento sobre a maneira como chegamos ao

evento de injustiça, perdido no tempo, especialmente, nos casos das vítimas que

foram levadas pelo passar dos anos, contribuindo para seu aparecimento.

Em relação a isso, a perspectiva moderna de um tempo linear90 se

apresenta como um horizonte em que não há mais lugar para os fatos que

ocorreram, tornando o passado (assim como a vítima), uma parte natural, mas que

não possui relevância senão a de lembrar como foram vencidas as batalhas, ou em

que sentidos se deram as vitórias. Esta forma de enxergar o passado sepulta as

vítimas, pois para a história dos vitoriosos não há espaço para as experiências

negativas que estavam envolvidas no processo da vitória, visto que, como

89 Conforme Reyes Mate aborda (2008a, p. 17, tradução nossa): “Durante muitos anos as vítimas tinham que privatizar sua dor e fazer-se politicamente invisíveis: o único momento público era precisamente o dia de seu enterro”. No original: “Durante muchos años las víctimas tenían que privatizar su dolor y hacerse politicamente invisibles: el único momento publico era precisamente el día de su enterro”. (Mate, 2008a, p. 17)

90 Como afirma Castor Bartolomé Ruiz (2012, p.66): “A modernidade utilizou-se da visão linear do tempo para construir o mito do progresso inexorável da história. Este seria um principio natural da racionalidade histórica que impulsiona os acontecimentos desde um passado sempre inferior e obscuro, para um futuro sempre promissor. Nessa linearidade, o futuro é garantido pela lei do progresso histórico”.

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85

explicava Benjamin a respeito da facticidade cujo historicismo é permeado, “é

mais difícil honrar a memória dos sem-nome que a dos famosos” (BENJAMIN

apud MATE, 2011, p. 56).

Por causa desse efeito, não são levadas em consideração as múltiplas

histórias coexistentes à história selecionada na versão dos que venceram, pois o

passado significa superação, nele estão contidos apenas os aspectos positivos,

reduzindo a legitimidade dos acontecimentos, “à emotividade da mera lembrança

ou à erudição dos registros históricos” (RUIZ, 2012, p. 66). A história dos

vencedores se encarrega de tornar nulas as experiências negativas, pois para o

presente tem se focado nos acontecimentos que afirmam a história de conquistas

dos vitoriosos.

Por essa razão, o método cujo passado reclama são as memórias dessas

histórias coexistentes. O passado reclama que ainda está vivo no presente, pois

este se realiza por desdobramentos e, portanto, lança dúvidas sobre a

independência do presente, sobre os acontecimentos. Quando Benjamin faz crítica

ao historicismo, ele mostra, nas palavras de Mate (2011, p.56), que “a história não

é feita só de fatos, mas também de não-fatos”.

Ou seja, ele mostra que uma história que se pretende universal, não pode

dar de costas aos pequenos, mas deve englobar todos os fatos, e incluir o que está

ausente. Benjamin denuncia “a falsa universalidade dessa visão universal da

história” (MATE, 2011, p. 56), pois, afinal, ainda que se sepulte por meio de uma

narrativa oficial e selecionada dos fatos ocorridos, a alteridade ferida das vítimas

contém fragmentos que sobrevivem em seu olhar sobre o mundo e suas ações

(MATE, 2008b, p. 36), de modo que é impossível imputar o esquecimento e a

ignorância a seu respeito. A vítima não esquece, pois carrega em si a experiência

injusta vivenciada e, portanto, carrega consigo a realidade objetiva do

acontecimento.

Desse modo, a memória é um método que se associa à justiça, quando

pensamos na justiça das vítimas, já que ela transporta para o presente um passado

ausente e esvaziado das experiências injustas que o compõem – um passado que

existe, mas que registra apenas os acontecimentos que beneficiam os vencedores.

Assim, em relação à singularidade da memória como mecanismo de importante

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86

neste processo, conforme Reyes Mate (2008a, p. 25, tradução nossa)91, é:

“singular, porque vê vida ali onde até agora a história só via natureza morta”.

Realmente, mais uma vez à vítima se atribui centralidade, uma vez que é

partindo dela que se busca resgatar as verdades desconhecidas nos

acontecimentos, de maneira que se opere a justiça quando a injustiça é

identificada (MATE, 2008a, p. 17). A memória é o requisito para que se chegue à

justiça, e, portanto, para que possamos pensar em reparação da dignidade violada,

pois é a partir dela que tomamos conhecimento do injusto.

Por meio dela, passamos a enxergar fragmentos desconhecidos e não

contados pela história, passamos a conhecer o sofrimento da vítima, e por isso,

passamos a reconhecer seu direito à justiça, e ainda, conhecemos uma

temporalidade contida em outra temporalidade, ou seja, o tempo da vítima, que

apesar de ignorado, está contido na história dos vencedores. Como Reyes Mate

(2011) expõe, é contra o destino de uma história que acaba em ruínas, e cujo

fracasso se converte em natureza morta que a memória se rebela. Ela trata a

experiência frustrada da vítima como vida pendente, ao contrário da história que

encerra os vencidos com um ponto final.

Voltando agora a questão do tempo, por meio desse movimento

benjaminiano de transportar temporalidades, temos um rompimento com a visão

moderna de linearidade temporal, pois passamos a conceber o tempo não mais

como algo inflexível, impassível ou inexorável. Pelo contrário, identificamos que

a experiência injusta inobservada lança ao presente um caráter de

imprescritibilidade (uma vez que a “recordação pode abrir expedientes que o

direito dá por arquivado”), isto significa, que ele não está fechado em si mesmo

pela passagem do tempo, mas pode ser acessado e interpelado por meio da

memória.

A memória descortina possibilidades latentes que “podem se ativadas”,

isto é, ela pode conferir novo sentido aos acontecimentos, quando recupera de

dentro dele os acontecimentos injustos não contados ou esclarecidos. E em relação

a crimes contra dignidade da vítima, apesar de não poder dar vida àquelas que

91 No original: “singular, porque ve vida allí donde hasta ahora la historia sólo veia naturaliza muerta”. (Mate, 2008a, p.25)

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morreram, “a memória enfrenta o assassinato hermenêutico” (MATE, 2008a, p.

26, tradução nossa)92.

Com isso, podemos dizer que por meio dela é possível atribuir a

determinadas condutas, antes desconsideradas pela história, como ações injustas e,

portanto, torna-se possível identificar esta conduta inferida ao outro como injusta.

É neste sentido que Reyes Mate (2008a, p. 26, tradução nossa) sugere que

“memória e justiça sejam sinônimos”. Assim, concebendo que há vestígios de

injustiça no passado, recebemos a convocação de compreendê-lo e de conhecê-lo

melhor. As injustiças passadas recebem a possibilidade93 de serem reparadas,

enunciando que a vítima dessa injustiça é a destinatária da justiça a ser operada,

pois se reconhece que ela é a portadora dos efeitos do injusto, que é a vítima que

suporta, no tempo, o peso da violação.

A memória dessa injustiça, nos tira do lugar afastado, que nos

impossibilitava de enxergá-la no horizonte da história. E, portanto, considerando a

potência epistêmica que constitui a memória, observamos a necessidade de sua

invocação. Por isso, para impedir o esquecimento, e afastar seus efeitos

catastróficos, importa a busca pela memória das experiências injustas existentes

nos acontecimentos, e a partir de então, buscar operar com justiça. Portanto, a

memória como elemento central usado para operar a justiça em relação à

experiências injustas vivenciadas pelas vítimas, constitui o que Reyes Mate

explica como teoria anamnética da justiça.

Reyes Mate (2009) 94 realiza alguns importantes apontamentos relativos

às teorias da justiça antiga e moderna, para chegar à justiça anamnética. Em sua

92 No original: “la memoria enfrenta al asesinato hermenêutico”. (Mate, 2008a, p.26)

93 Fala-se em possibilidade, pois como o mesmo Reyes Mate (2011, p. 32) afirma ao comentar as teses de Benjamin: “A recordação permite salvar o passado ao dar sentido à injustiça passada, ainda que ninguém garanta que algum dia lhe seja feita a justiça”.

94 Os apontamentos de Reyes Mate que passo a citar sobre este tema foram retirados de uma célebre entrevista do professor à Márcia Junges, publicada na Revista do Instituto Humanitas Unisinos, que se trata de uma revista Online. A entrevista chama-se “A memória como antídoto à repetição da barbárie, nº 291, realizada em 04.05.2009”. Reyes Mate, a respeito de a Filosofia abranger uma reflexão sobre a justiça, afirma: “A filosofia reflete sobre a justiça desde sempre. Hoje, pensamos em relação a ela na história da humanidade, e anterior inclusive a preocupação pela moral. Antes que o homem se perguntasse qual é a diferença entre o bem e o mal, perguntou-se sobre a justiça. O que caracteriza o mundo animal é o domínio. Por isso, hoje se sustenta que a justiça é anterior à moral, uma vez que as perguntas pela igualdade e pelo ser humano coincidem”.

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análise, algumas questões estruturais diferenciam uma da outra, como por

exemplo, que para os antigos o justo da justiça era a “reparar o direito do outro”, e

como em São Tomás de Aquino, não importava a intenção ser boa ou má, desde

que o mal ao outro fosse reparado; enquanto para os modernos, numa perspectiva

procedimental de justiça, “somos nós que criamos os critérios de justiça”.

No entanto, um aspecto comum que existe entre tais teorias, é que

nenhuma delas tinha por consideração a importância da memória. Como vimos

anteriormente, tem sido comum para a teoria moderna da justiça, colocar o véu da

ignorância em cima das desigualdades históricas, para então iniciar as reflexões

centrais por elas propostas. Por isso, Reyes Mate (IHU, 2009, n.p.) realiza uma

crítica a essas teorias, considerando que “se não há memória da injustiça,

podemos construir uma teoria da justiça não universal”. O autor tenciona dizer

que uma justiça que se pretenda universal, deve englobar as injustiças invisíveis e

pretéritas. Deve buscar conhecê-las e apropriar-se como tema que compõe a teoria

da justiça. É necessária a memória dessas injustiças, pois “sem memória, a teoria

da justiça se declara incompetente, insolvente em muitos casos de injustiça” (IHU,

2009, n.p.).

Essa memória a que Mate (2009, IHU, n.p.) refere-se, é a memória “das

vítimas, dos mortos, do irreparável”; refere-se a memória daqueles que estão

ausentes na história que é tradicionalmente contada, mas que existem em latência.

Como deixa claro em seu texto, para Mate,

“A recordação tem por objetivo resgatar do passado o direito à justiça ou, caso se prefira, reconhecer no passado dos vencidos uma injustiça ainda vigente, isto é, ler os projetos frustrados de que está semeada a história, não como custos do progresso, mas como injustiças pendentes”. (MATE, 2011, p. 28)

Além disso, por causa da intenção de envolver essas memórias, é que a

teoria anamnética da justiça se pretende universal. Mate (2009) reflete que “falta

muito para se desenvolver de forma plena”, mas explica que o principal dela é que

ao pensar na vítima, ela reflete as “desigualdades como injustiça”, ao contrário do

que as outras teorias da justiça revelam, já que ao desconsiderarem esse ponto,

perpetuam o racional de que “as desigualdades existem como meras

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desigualdades”. Aliás, encarar as desigualdades como injustiças, nos leva

consequentemente a refletir sobre sua a “causa histórica”.

Caso contrário, quando dissociamos as desigualdades das injustiças,

impossibilitamos a reflexão sobre a responsabilidade sobre tais desigualdades, e

como Mate (2009) orienta, tal reflexão origina uma proposta distributiva de

justiça que, apesar de ter grande importância no pensamento filosófico, inviabiliza

o pensamento político partindo da justiça. Em contraste, Mate (IHU, 2009, n.p.)

revela que o inovador da justiça anamnética “é que ela considera desigualdades

como injustiças”.

2.2.1.

Memória

Quando nos voltamos para o campo da memória, cabe que ressaltar que a

anamnese e amnésia se confrontam e disputam o sentido do justo há anos. Essa

concorrência está relacionada com os distintos interesses existentes no entorno da

potência que reveste a memória, uma vez que a definição hermenêutica de uma

memória pode tanto legitimar a posição dos vencedores, como pode também

causar mobilização no sentido de fazer justiça às vítimas, ao reconhecer no

mesmo acontecimento vestígio de injustiça.

Assim que, o mesmo acontecimento, aclarado pela memória, pode trazer

impactos dos dois lados: 1) o impacto às vítimas quando usado o esquecimento

amnésico para validar a injustiça perpetrada; 2) o impacto à ordem dos

vencedores, quando o presente ausente é preenchido com reconhecimento do

direito à vítima pelas injustiças causadas.

Pelo fato de a memória ser constituída por essa “potência hermenêutica”,

importa observar que “não é toda memória que faz justiça” (RUIZ, 2012, p. 67).

Este apontamento se faz necessário para compreendermos quais os perigos

circundam as memórias, considerando que esta possui em seu interior, como

explicado acima, a capacidade de dar sentido ao que houve no passado. Em

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considerar que os discursos da memória histórica são aqueles relacionados à

história dos vencedores, isto é, aos discursos históricos hegemônicos, percebemos

que não são todas as memórias que são justas.

Assim sendo, se nota facilmente, como a memória pode ser um alvo

ambicionado para os interesses mais controvertidos, e dessa forma como carece de

cautela. Além disso, vale observar também quais memórias podem ser

relacionadas à justiça, dadas suas diferentes funções.

Conforme Paul Ricceur (2007) a função de lembrança do passado,

mneme, conforme os filósofos antigos consiste na lembrança espontânea e

involuntária, isto é, que não apela à vontade para se formar. Ela ocorre

independente da nossa vontade, acessada por meio de um cheiro, som ou imagem

(Araújo, 2011, p. 17). De sorte que a primeira função de lembrar um

acontecimento, não está atrelada a vontade do sujeito, mas se forma como

característica natural da mente humana – a lembrança não produz sentido no

acontecimento.

No entanto, existem as recordações, que ao contrário dessas primeiras,

irrompem de forma ativa no âmbito hermenêutico. Trata-se de uma memória que

busca no passado mais do que a objetividade dos fatos, se atendo de maneira

voluntária (e intencional) em buscar o sentido existente e no interior do evento

passado. Sobre essa questão, afirma Paul Ricceur (2007, p. 37), que a distinção

entre mneme e anamnesis tem por base duas características principais: “de um

lado, a simples lembrança sobrevém a maneira de uma afecção, enquanto a

recordação, consiste numa busca ativa”.

Refletir sobre essa diferença, introduz um questionamento legítimo a

respeito da memória: haveria que se falar em uma memória correta? (Araújo,

2011, p. 18). Paul Ricceur (2007) mostra que existem vários tipos de memória e

muitos estudos que denotam os aspectos mais negativos a respeito dela. No

entanto, ele trabalha com seus pontos positivos, se preocupando em mostrar os

desdobramentos benéficos oriundos dela.

A memória, como foi afirmado, possui várias funções além da lembrança

e da recordação. Há também a função de aprendizado (ARAÚJO, 2011, p. 18),

uma vez que reter as experiências passadas, possui um valor de conhecimento. E

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ainda, pode ter a função de hábito, que se deduz de uma experiência pretérita,

incorporada tão fortemente a rotina presente, que a correspondência com o que lhe

deu causa acaba perdida no tempo (RICCEUR, 2007, p.43; ARAÚJO, 2011, p.

18).

De fato, além disso, interessantes questões circundam o binômio

lembrança e recordação, quando à sua reflexão atribuímos os elementos natural e

não natural. Por exemplo, a mnemotécnica, mais associada à arte de memorização,

poderia estar associada ao abuso da memória (ARAÚJO, 2011, p.19), quando se

observa o esforço não natural para resgatar dentro do passado aquilo que se

passou, mas ainda existe sob a forma da lembrança. Ao mesmo tempo em que a

essa forma se atribui este aspecto negativo, é possível também elucidar o lado

positivo suscitado pela memorização (ARAÚJO, 2011, p.19), como por exemplo,

a possibilidade de aprendizado, de saber acumulado pela experiência, isto é a

retenção daquilo que vimos e ouvimos. Vemos, então, o aspecto ambíguo da

memória.

Mais ainda, observa-se também que na memória se ampara o

esquecimento (ARAÚJO, 2011, p. 20). Na memória que busca ativamente

recordar, podemos visualizar que este empenho está revestido dos fatos que estão

passíveis de serem esquecidos, sem essa atuação voluntária de retomar os

acontecimentos. Nas palavras de Ricceur (2007, p. 46) “o esquecimento é

designado obliquamente como aquilo contra o que é dirigido o esforço da

recordação”.

Assim, sem este esforço de recordar, os acontecimentos podem

permanecer no passado até serem esquecidos. É sobre esse aspecto que se funda a

luta recorrente entre rememorar ou esquecer, que se traduz na seguinte

formulação: empenhar-se para resgatar as memórias ou deixá-las esquecidas no

tempo? Tal questão revela algo demasiadamente importante a respeito do ato de

lembrar:

“A busca da lembrança comprova uma das finalidades principais do ato de memória, a saber, lutar contra o esquecimento, arrancar alguns fragmentos de lembrança à ‘rapacidade’ do tempo (Santo Agostinho dixit), ao sepultamento no esquecimento”. (RICCEUR, 2007, p. 48)

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Como resultado, revela-se que se trata de uma batalha que temos de

travar rotineiramente em relação ao tempo. De uma tarefa que penosamente temos

que realizar, pois esquecer é inevitável, natural, e faz parte de nossas limitações,

nos exigindo de forma constante o esforço para não esquecer:

“Não é somente o caráter penoso do esforço da memória que dá à relação sua coloração inquieta, mas o temor de ter esquecido, de esquecer de novo, de esquecer amanhã de cumprir esta ou aquela tarefa; porque amanhã será preciso não esquecer...de se lembrar” (RICCEUR, 2007, p. 48).

Em compensação, esquecer não é desimportante, como nosso julgamento

muitas vezes nos faz concluir, pois, ao mesmo tempo em que lembrar tem um

sentido positivo, como veremos adiante, há casos em que esquecer é primordial, e

por isso, concomitantemente, lembrar se reveste de um caráter negativo. Como

coloca Araújo (2011, p. 21) esquecer, em muitas ocasiões “é indispensável ao

pensar, e isso pelo simples fato de que nosso pensamento não comporta infinitos

particulares”.

A personificação da negatividade de uma lembrança excessiva pode ser

concebida na conhecida personagem criada por Borges (1998, p. 543): Irineu

Fineus, o memorioso – que se lembrava de absolutamente todos os

acontecimentos cotidianos. No dizer de seu narrador: “recordava cada folha de

cada árvore de cada monte, como também cada uma das vezes que a tinha

percebido ou imaginado” (BORGES, 1998, p. 123), ao ponto de,

angustiantemente, não conseguir esquecer nada: “Minha memória, senhor, é como

despejadouro de lixos”, dizia isto, uma vez que “duas ou três vezes havia

reconstruído um dia inteiro” (BORGES, 1998). A conclusão a respeito desta

memória excessiva é marcada na seguinte fala do narrador (BORGES, 1998, p.

545): “suspeito, entretanto, que não era muito capaz de pensar. Pensar é esquecer

diferenças, é generalizar, abstrair”.

Assim que, ao mesmo tempo em que vemos a necessidade de lembrar-

nos dos fatos, percebemos que há uma medida para também esquecermos, pois

esquecer é fundamental ao pensar, já nosso pensamento não comporta tamanhas

particularizações e singularidades, como caracterizado pela figura de Funes, o

personagem de memória incomum.

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93

É necessário generalizarmos na medida certa, para que nosso pensamento

tenha liberdade, ou estaríamos presos à singularidade de cada objeto ou situação

ao ponto de não conseguirmos o afastamento necessário para pensarmos sobre

eles. Isso ressalta outro ponto importante a respeito da memória: seu caráter

seletivo, visto que há a necessidade de serem filtrados os aspectos mais

importantes e essenciais. Assim, complexa se mostra a memória quando

observamos tais detalhes: temos o dever de lembrar, e ao mesmo tempo a

obrigação de esquecer.

Com isso, vale a pena apontar dois caminhos históricos, como explica

Araújo (2011, p.21), que ilustram essas duas tendências da memória. A primeira,

relacionada à obrigação de esquecer, se relaciona com a atitude européia, cujos

acordos pós-guerras orbitavam em ideais de esquecimento. Assim, os séculos

XVII e XVIII, foram moldados em uma lógica de “amnestie et oubli” (ARAÚJO,

2011, p. 21), carimbadas pelo dinâmica do “virar a página”.

A segunda, como coloca Araújo (2011, p.21) se associa ao dever de

lembrar95. Remete aos eventos que marcaram o século XX de sangue proveniente

das barbáries mais desumanas. Reporta-se à Auschwitz, onde se deram as práticas

inimagináveis de violência que impactaram o mundo. E, então, se relaciona com o

dever de lembrar, para que tal acontecimento não torne a se repetir.

Outro exemplo, que também se associa ao dever de lembrar, pode ser

encontrado na ação recente dos países latino-americanos que resolveram, como foi

visto por meio do capítulo anterior, enfrentar o passado de violações reabrindo

feridas antigas, que teriam sido fechadas, por meio das estratégias de

esquecimento engendradas na instauração de leis de anistia (PEREIRA, 2014, p.

206). Como mostra Pereira (2014, p. 206) “Tais feridas abertas denunciam a falta

de solução ou o desconhecimento das informações sobre o que teria realmente

ocorrido em muitas ações e muitas pessoas”. Neste sentido, apesar da tentativa de

resolver o passado, ignorando os acontecimentos injustos, estes adormecem, mas

95 Paul Ricceur (2007, p. 99) afirma o seguinte a esse respeito: “De fato não se pode ignorar as condições históricas nas quais o dever de memória é requerido, a saber, na Europa ocidental e particularmente na França, algumas décadas após os horríveis acontecimentos de meados do século XX”.

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não se curam, de forma que diferente do que o jargão popular propõe,– no caso

das injustiças – o tempo não é o melhor remédio.

Desse modo, tendo em vista a latência dos acontecimentos, que as leis de

esquecimento objetivaram invisibilizar, estas feridas não se “curaram” pelo fato

de terem recebido um tratamento inadequado – prova de que não se devem tratar

histórias de violações pretéritas com o uso do esquecimento, pois estas histórias

ausentes se enraízam no seio da sociedade. Num momento posterior, contra essas

medidas de esquecimento adotadas em primeiro por esses países (como a

Argentina, Uruguai, Chile e Brasil, por exemplo), as repostas recentes

demonstram uma busca pela memória fundada no dever de lembrar.

Retomando a distinção existente entre a lembrança e a recordação, vale

tratar dois outros aspectos, no tocante à atribuição de sentido, como o elemento

diferenciador entre uma e outra: a) a questão da memória se voltar

intencionalmente para o passado, com fins de interrogá-lo, e b) a consequente

formação de recordações advindas desses questionamentos, chamada pelos

clássicos de memória anamnética (significa, inclusive na concepção de

Aristóteles, “a potência humana capaz de dar sentido ao passado pela

rememoração do acontecido”).

De acordo com Reyes Mate (2008b, p. 119, tradução nossa)96 a memoria

usada para fazer justiça as vítimas, “não é uma atividade espontânea, nem fácil. É

necessário pensar a partir de uma estratégia anamnética”. Quando pensamos em

justiça das vítimas e invocamos a memória como sua condição de possibilidade,

ou seja, como método que a torne possível, estamos falando da potência

anamnética existente na memória, e por isso uma justiça anamnética, ou justiça

memorial. Por meio desse tipo de memória, rememoramos a injustiça contida nos

acontecimentos passados, para atuar com justiça às vítimas afetadas por eles. De

modo que, de fato importa, por meio da potência anamnética, reconstituir o

96 No original: “no es uma atividade espontânea, ni fácil. Hay que pensarla desde una estratégia anamnética”. (Mate, 2008b, p. 119)

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sentido do passado, para suas vítimas, momento no qual se enlaça uma relação

entre o dever de memória, aludido acima, a uma aspiração à justiça97.

Ao encontro e de maneira divergente, a memória anamnética colide com

o modelo de memória chamada mnemotécnica referente a uma razão positivista,

cuja memorização dos fatos não traz vestígio de intencionalidade e, que vê nisso a

objetividade. Tal colisão se dá, porque, como vimos, a memória anamnética é

própria de uma razão hermenêutica, e, por isso, concebe a objetividade da

memória partindo da interpretação dos sujeitos. Ainda que se conclua que existem

inúmeras interpretações para um mesmo acontecimento, o ponto que se quer

mostrar é que “o decisivo para memória se encontra nas possibilidades ocultas no

acontecimento”. Em suma, queremos dizer com isso que há um ganho muito

grande quando a versão das vítimas é incluída no campo interpretativo dos fatos.

A objetividade dessa memória consiste na realidade do fato vivido pela

vítima, que é o indivíduo mais próximo do acontecimento, e para quem a injustiça

produziu drásticos efeitos, tão objetivos quando o próprio acontecimento. Além

disso, vale elucidar, que se temos nos deparado constantemente com a negação de

memória da vítima, decorrente da valorização das memórias hegemônicas dos

vencedores, ficam abertas possibilidades de conhecer o aspecto de veracidade

contido em sua experiência, até então, desconhecida.

Contudo, não se ignora que esta concepção de memória, que vincula a

interpretação dos sujeitos, possa ser passível de arbitrariedades e abusos (IHU,

2009). Pelo contrário, se compreende esse ponto, reforçando-o como marca de sua

potência e relevância, especialmente ao considerarmos que a interpretação está

intrinsecamente relacionada à posição histórica dos sujeitos. Sobre isto, Reyes

Mate (IHU, 2009) afirma o seguinte, quando arguido se a memória é perigosa sob

certos aspectos:

“Com certeza, a memória é perigosa, porque ela não resolve problemas, mas sim os complica. Ela abre as feridas, por isso os políticos que sabem da significação da memória são conscientes do seu potencial crítico e são muito diligentes em desenvolver políticas de controle da memória. Não há político que

97 Paul Ricceur (2007, p 101), afirma o seguinte: É a justiça que, ao extrair das lembranças traumatizantes seu valor exemplar, transforma a memória em projeto; e é esse mesmo projeto de justiça que dá ao dever de memória a forma do futuro e do imperativo. Pode-se então sugerir que, enquanto imperativo de justiça.”

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se preze que não tenha uma política de memória. Dizia Renan que todos os povos inventam seu passado. Os nacionalismos funcionam e têm sentido de acordo com um passado absolutamente artificial. Todos os Estados inventam seu passado, como se necessitassem de grandes heróis e grandes festas com que identificassem. Esse é um claro das políticas manipuladas pela memória. A memória é perigosa porque coloca sobre a mesa um fator que é difícil de gerenciar: o reconhecimento de que nosso presente está construído sobre muitas injustiças. Isso nos molesta.” (IHU, 2009, n.p.)

Além disso, concebendo que a memória se vincula às intenções e ao

contexto histórico, verificamos mais uma vez que pode ser usada tanto para justiça

das vítimas, como para legitimação de guerras, como no caso da região dos

Balcãs, onde se deu um conflito bélico entre islâmicos e sérvios, em razão de

memórias provenientes dos conflitos ocorridos séculos antes98. (TODOROV,

2000, p. 27; RUIZ, 2012, p. 70; IHU, 2009, n.p.). A memória foi manipulada

como “direito de vingança no presente”.

Todorov (2000) em seu trabalho denominado Los abusos de la memoria,

nos traz a reflexão sobre os perigos contidos na memória. Para este autor, há dois

processos que podem desviar os benefícios que esperamos da memória, quais

sejam: a) o da sacralização; e b) o da banalização.

Sobre o primeiro deles, Todorov (2000, p. 33, tradução nossa)99 afirma

que “sacralizar a memória é outro modo de fazê-la estéril”, pois nesse processo há

uma repressão do presente. Ao invés de a memória integrar o passado e o

presente, o grupo, na atitude de cultuar a memória permanece em um estado de

obsessão em relação ao passado. Por este processo isola-se a memória, apegando-

se a detalhes minuciosos, de maneira que a memória não produz efeitos benéficos.

Por outro lado, sobre o segundo processo por meio do qual é possível

observarmos os abusos da memória, pensemos na banalização da memória, que

significa o uso descontextualizado do passado ao presente. Ou seja, sem

98 Sobre o caso sérvio, a respeito do abuso da memória, Reyes Mate (IHU, 2009) afirma: “A memória é utilizada, muitas vezes, como o combustível do ressentimento, Quantas guerras aconteceram em função de feridas históricas recuperadas pela memória. Na ex-Iugoslávia, o que aconteceu entre sérvios, herzegovinos e croatas se explica pelo poder da memória. Isso é indiscutível.”

99 No original: “sacralizar la memoria es outro modo de hacerla estéril”. (Todorov, 2000, p.33)

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considerar as particularidades dos eventos, em tempos e espaço distintos,

assimila-se de forma abusiva o presente ao passado, suprimindo a lógica

específica dos acontecimentos, como no caso dos sérvios, acima mencionado.

Pois, temos que

“Uma das grandes justificativas dos sérvios para explicar sua agressão contra os povos da ex-Iugoslávia se baseia na História: os sofrimentos que eles causaram não seriam mais do que um desquite pelo que os sérvios sofreram no passado; próximo (a Segunda Guerra Mundial), ou longínquo (as lutas contra os turcos mulçumanos)” (TODOROV, 2000, p.27, tradução nossa)100.

Assim, o que se observa é que a memória pode ser operada como

ferramenta de manipulação de ressentimentos; que seus abusos podem ser

operados por falsas relações entre o ocorrido, com o presente, desencadeando

violências bárbaras (RUIZ, 2012, p. 70). Ora, o que se deseja mostrar com esta

exposição sobre alguns dos abusos da memória, é que a despeito de a memória

apresentar tais perigos, ainda assim, sua importância e seu potencial hermenêutico

na construção da justiça das vitimas é indiscutível. Ou seja, tais perigos não

nulificam o relevante papel da memória no tocante à justiça que se deseja operar

em relação ao combate à negação da alteridade humana, nos acontecimentos

injustos do passado.

Deste modo, os perigos dos abusos da memória, dada sua potencialidade

hermenêutica, podem ser contidos, se vinculamos a memória à justiça, para

restauração da vítima. Como afirma Reyes Mate (IHU, 2009, n.p.), apesar do

caráter ambíguo da memória, e ainda que ela possa conduzir ao ressentimento,

“este não é um destino fatal”. Isto é, não quer dizer que necessariamente tais

abusos vão acontecer. Sobre essa questão, Mate (IHU, 2009, n.p.) afirma: “creio

que aquele que tenha compreendido uma única vez o que significa a injustiça feita

às vítimas deveria entender-se com todas elas.” Ele atribui à injustiça o

insuportável sofrimento da vítima, como o elemento que a preenche, sendo certo

que não havendo injustiça não há vítimas.

100 No original: “Una de las grandes justificaciones de los serbios para explicar su agresión contra los pueblos de la ex Yugoslávia se basa en la Historia: los sufrimientos que ellos han causado no serían más que um desquite por lo que los serbios han sufrido en el passado; cercano (la Segunda Guerra Mundial), o lejano (las luchas contra los turcos mulsumanes)”. (Todorov, 2000, p.27)

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Em vista disso, é possível demarcar o uso da memória, se esta estiver

imiscuída ao objetivo de restauração da vítima101, e da cessação dessa condição

por meio da justiça a ser realizada, excluindo do campo interpretativo qualquer

relação entre a memória e direito de vingança, obtenção de vantagens, e

permanência de injustiças, pois como afirma Bartolomé Ruiz (2012, p. 71), “a

vingança e o ressentimento talvez até satisfaçam subjetividades ressentidas, mas

não operam justiça”. Assim sendo, é possível limitar os riscos relacionados ao uso

da memória.

2.2.1.1.

Como pergunta Reyes Mate: “Que é então a memória?102”

É bem verdade que, para a finalidade de fazer justiça às vítimas, não é

qualquer memória que traz em si essa possibilidade (RUIZ, 2012, p.67). Por essa

razão Mate (2008b, p.167) questiona: “que é então a memória?”. Portanto, para

dar uma resposta adequada, primeiramente, faz-se necessário refletir ainda um

pouco mais a respeito do percurso da memória, para termos claro qual o tipo de

memória que colabora para a justiça.

Reyes Mate, antes de analisar a respeito do tipo de memória que faz

eficaz a justiça anamnética, se pronuncia a respeito da memória coletiva, tendo a

preocupação em explicar que a memória tem sido objeto de muitas mudanças

(MATE, 2008b, p. 155). Seu significado não foi o mesmo para os antigos, para os

medievais, modernos e pós-modernos – pelo contrário, os significados sobre os

quais se fala, têm sido afetados, pelas reflexões no campo da filosofia no tocante

às questões que envolvem a existência do indivíduo como ser e do tempo (como

101 Ruiz (2012, p.71) coloca que a Justiça Anamnética “é responsável por restaurar a alteridade ferida das vítimas.” E diz ainda, que “nem o ressentimento nem a vingança são aptos para tais objetivos”. A justiça anamnética restaura a alteridade ferida da vítima, pois ela vê no sofrimento da vítima o injusto, e atuar com justiça sobre tais acontecimentos. O ressentimento e a vingança não. Eles perpetuam no tempo a condição da vítima, mas não cuidam do injusto a ela causado.

102 Essa é uma pergunta, que Reyes Mate faz no livro “La Herencia del Olvido” quando constrói o raciocínio sobre o potencial anamnético da memória (2008b, p.167).

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em Rosenzweig e Heidegger, no século XX), e marcada pelas alterações

impactantes ocorridas no mundo no intervalo 1914-1945, como abordado no

primeiro capítulo.

Por essa perspectiva, o autor entende que a pretensão que se possui em

relação à memória, no referente aos tradicionalistas, era uma de cunho normativo

do passado, isto é, uma perspectiva de “fazer que o presente fosse reprodução do

passado, do que sempre havia sido” (MATE, 2008b, p. 155, tradução nossa)103.

Por sua vez, o moderno, se afastando dessa visão, deseja a construção de um novo

tempo, “diferente do que sempre foi” (MATE, 2008b, p. 155, tradução nossa), isto

é, o presente, e a nova maneira de pensar a memória, neste tempo, é a de que não

se pode se apegar ao passado; a ciência não pode estar atrelada a memória para

progredir no conhecimento.

Trata-se de uma racionalidade fortalecida pela redução das coisas a sua

causa, como em Descartes. Esse modelo amnésico, de acordo com Mate (2008b,

p. 156), passa a ser duramente combatido, havendo manifestações contrárias a

essa tendência, durante o século XX. Sob tais reflexões, já foi mostrado de outras

maneiras, que surge o dever de memória assinalada por inúmeras maneiras de

interpretá-la, e ainda com perguntas distintas feitas pelos historiadores, de maneira

a orientá-la por vários caminhos diferentes.

Dentre elas, entendemos que vale destacar a perspectiva da memória

coletiva. Reyes Mate, por meio de sua abordagem, mostra que falar desse assunto

pressupõe mencionar Halbwachs104, e apresenta que a ambição deste era a de

explicar em que consistiam as memórias da sociedade, e como interagiam com o

indivíduo. Desse modo, as contribuições de Halbwachs teriam sido: a mostragem

103 No original: “hacer que el presente fuera reproducción del passado, de lo que siempre había sido”. (Mate, 2008b, p. 155)

104 Márcio Seligmann-Silva (2013, p. 69), a respeito das diferenças entre Hallbwachs e Benjamin explica: “Para Halbwachs, por exemplo, a História entra em cena com o fim da tradição, no ‘momento em que se apaga ou se decompõe a memória social’. Enquanto o tempo da memória coletiva ‘é uma corrente de pensamento’, a História precisa das esquematizações didáticas, ela divide o tempo para dominá-lo e compreendê-lo. Já Benjamin refletiu tanto sobre a nossa moderna incapacidade de narrar estórias em um mundo urbano onde o perigo espreita a cada segundo como também descreveu e de certo modo incorporou no seu procedimento historiográfico, o principio proustiano da mémori involontaire, que se deixa guiar não pela continuidade do tempo abstrato vazio, mas sim pelas associações dominadas pelo acaso. Tanto para Benjamin como para Halbwachs, o preceito historicista da restituição e representação do passado deve ser posto de lado.

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100

de dois tipos de memória105 (a individual e a coletiva); e, também as classificações

das maneiras como a história e a memória se relacionavam, com duas formas

opostas entre si: uma estaria associada a um grupo social, sob o qual recaia a

lembrança de um acontecimento e, por isso, passavam a ser testemunhas do

mesmo; e a outra estaria associada ao momento de desaparecimento deste grupo,

quando passaria a dar conta dos fatos ocorridos no tempo, rompido o vínculo

geracional.

Em que pese a memória coletiva servir aos propósitos daqueles que a

utilizam como “munição ideológica para justificar interesses políticos de coletivos

atuais” (Mate, 2008b, p. 157, tradução nossa)106, o autor assinala que Halbwachs

pensava existir uma superioridade da memória coletiva sobre a memória

individual, e considera que quando Halbwachs afirmava que a “história começa

quando acaba a tradição”, este estaria caindo em uma armadilha. Segundo esta

concepção, “quando desaparecem as testemunhas, deveríamos deixar de falar em

memória” (Mate, 2008b, 160).

Portanto, Mate reflete que é difícil precisar quando se rompe o vínculo

entre o passado e o presente, de modo que sempre há marcas do passado neste

presente. Estas marcas em algum momento aparecem, de forma a refletir o

passado, como no caso de uma injustiça esquecida. Por isso é que Mate afirma

que ao passo em que tal injustiça não seja sanada, ela permanece latente, ou

melhor, “à espera de que tenha uma consciência moral sensível que a desperte”.

105Ensina Michael Polack (1989, p. 4), que em seu tempo surgiram estudos que partem de uma abordagem oposta à perspectiva de memória coletiva estudada ampla e profundamente, por Maurice Halbwachs. Polack quando explica esta nova maneira de lidar com a memória, afirma que “sob uma perspectiva construtivista, não se trata mais de lidar com os fatos sociais como coisas”, mas a partir dos atores que vivenciaram os processos, observar “por quem eles são solidificados e dotados de duração e estabilidade”. Isto é, partindo da visão do mundo daqueles que vivenciaram as experiências, interpelar a construção da memória coletiva. Refletindo sobre a reviravolta na maneira de estudar a memória, Polack (1989) aponta também, que outras abordagens “ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a historia oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas”, que acabam se opondo a memória oficial (nacional, por assim dizer) dos fatos. Por essa razão, mostra Polack (1989), como essa perspectiva destoa da de Halbwachs, uma vez que elucidam uma singularidade permeada de detalhes contida nas memórias “subterrâneas”, que a história oficial não dá conta de abranger. Para ele a memória dos grupos dominados “acentua o caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional”. 106 No original: “munición ideológica para justificar interesses políticos de colectivos actuales” (Mate, 2008b, p. 157)

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101

Dessa maneira, esta injustiça acompanharia a história, visto que “a história foi

construída sobre ela”. (Mate, 2008b, p.160, tradução nossa)107

Se podemos afirmar que, entre os desdobramentos dos estudos de

Halbwachs fica delineado um debate a respeito das diferenças entre história e

memória coletiva (como afirma Paul Ricceur (2007, p. 130), ao dizer que “esta

constitui o contraponto apropriado da história”) é em Benjamin que vemos a

memória, tomando o rumo de um “modo específico de conhecimento do passado”

(MATE, 2008b, p. 160). De acordo com Reyes Mate, a partir de Walter Benjamin,

a memória deixa a ordem do sentimento, e passa integrar a uma forma específica

de conhecimento.

Ao contrário de fazer da memória um “suplemento da história”,

Benjamin a apresenta como um conhecimento do passado que passa a ser rival da

história, constituindo uma nova Teoria da História – trata-se aqui de um

compreender o passado por meio de sua rememoração.108 Por essa causa,

Benjamin fazia duras críticas às modalidades do que ele chamava de

historicismo109, ou nas palavras de Mate (2008b, p. 163, tradução nossa): “um

fenômeno de amplo espectro cujos contornos são difíceis de assinalar”, que eram

grosso modo, “a pretensão de um tratamento científico da história”.

Além disso, Benjamin criticava também as filosofias modernas da

história, pelo fato de elas constituírem-se em substrato às ideologias do progresso,

o qual via como o principal gerador da barbárie (por isso, “não há um documento

de cultura que não seja de barbárie”). Nas palavras de Mate (2011, p. 57), para

Benjamin “o passado não é um ponto fixo à disposição de um conhecimento

107 No original: “a la espera de que haya uma conciencia moral sensible que la despierte”; e: “la historia se há construído sobre ella”. (Mate, 2008b, p.160)

108 Reyes Mate, aponta (2011, p. 33): “A história e a memória têm como campo de estudo o passado. A interpretação que Benjamin fará desse passado o distancia das técnicas e métodos dos historiadores graças precisamente à substância conceitual que ele injeta no termo “memória”. Mas ele não parece disposto a ceder o campo à história, ocupando com seus conteúdos inovadores o rincão da memória. Disputa com os historiadores convencionais ou não, o próprio terreno da história.”

109 De acordo com Reyes Mate (2011, p.54), a primeira forma de historicismo estaria relacionada ao conhecimento do fato, a segunda no conhecimento de verdade, e a terceira modalidade estaria associada “aqueles que entendem por história a crítica da historicidade iluminista”.

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102

rigoroso e sedento de dominar toda a realidade, incluindo a que foi”. Este passado

é captado pela recordação.

Consequentemente, ao contar os fatos, com pretensão de verdade, como

pretendia a história, o historiador incorria no problema grave de contar apenas o

que era mais notável e triunfante, conformando a realidade ao plano fático,

quando os acontecimentos não se esgotavam nos fatos, pois “a história não é feita

só de fatos, mas também de não fatos” (MATE, 2011, p.56).

O que seriam estes não fatos? Em resumo, poderia dizer que foi aquilo

que “ficou pelo caminho”, ou ainda, a presença da ausência daqueles que foram

vencidos, fracassados, oprimidos, vítimas. Dessa forma, sem o olhar daqueles que

foram vencidos, e sua narrativa, não é possível conhecer bem o presente e,

portanto, isso é perpetuar uma herança de dominação, pois para Benjamin “o

dominador atual assume a herança dos dominadores do passado” (MATE, 2011,

p.57). Assim, enxergamos a função fundamental da memória dos vencidos,

produzir verdade, em outras palavras, “é mobilizar todo o conteúdo epistêmico da

recordação” (MATE, 2011, p.58).

Reyes Mate (2011, p. 57) refletindo de maneira benjaminiana, enuncia:

“esquecimento é desprezo hermenêutico dos sem nome”. Por meio desta

perspectiva, devemos encarar que a memória, como a busca hermenêutica nos

acontecimentos passados, que notadamente revela uma batalha contra o

esquecimento amnésico. Esquecimento esse a que estão submetidas pela lógica

histórica da facticidade, atribuindo validade apenas a uma parte dos eventos

passados, deixando coberto por um manto de invisibilidade as experiências dos

oprimidos.

Implacável tem sido esse processo, que exclui o sofrimento dos

acontecimentos históricos. Duros projetos políticos focaram suas transições em

dar as mãos ao esquecimento, com justificativa de perdão. E mais ainda, infeliz a

lógica, que reduz a memória à um espaço de mera lembrança; que reduz os

acontecimentos aos fatos traduzidos pelos registros históricos, e com isso reduz a

vítima à uma engrenagem necessária ao processo (no sentido do “andar para

frente”) linear do tempo.

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103

Além da crítica profunda ao historicismo, Benjamin reflete também a

respeito das teorias da história que reforçam as ideologias modernas do progresso.

Reyes Mate aponta: “essas concepções da história anunciam que todas as

injustiças, atropelos e barbaridades da história acabarão reciclando-se ou

metabolizando-se em sentido histórico” (MATE, 2008b, p. 165, tradução

nossa)110. A ideia moderna é a de que o futuro trará a devida compensação pelo

mal causado, por isso, há a permissibilidade em relação à crueldade do progresso,

o que se desdobrou em incontáveis vítimas sem nome.

Segundo Reyes Mate (2011, p. 51): “o grave dessa visão progressista da

historia não é tanto o fato de produzir vítimas, mas de justificá-las e, portanto,

tornar a produzir indefinidamente”. Essa lógica de um tempo linear, progressivo e

homogêneo, não permite que se olhe para o passado, que se façam interrupções.

Trata-se de uma cruel linear com “cada vez mais destroços”.111

Contra essa tendência de esquecimento dos sofrimentos imputados às

vítimas do progresso, da história, das barbáries, da invisibilidade, da morte física e

hermenêutica, é que se afirma a memória anamnética, com o esforço para resgatar

nos acontecimentos passados os sentidos ignorados ou mesmo, ainda, a negação

deles – pois como sabemos, “a mera invocação da memória não garante a justiça”.

É no sentido de preencher os espaços dos “aparentemente ausentes” com o

significado que lhes dá presença, existência e objetividade112, que a memória

anamnética opera. Portanto, como coloca Ruiz (2012, p. 67): “eis porque para

pensar a justiça das vítimas há de se invocar a potência anamnética da memória”.

110 No original: “esas concepciones de la historia anuncian que todas las injusticias, atropelos y barbaridades de la historia acabarán reciclandose o metabolizándose em sentido histórico”. (Mate, 2008b, p. 165)

111 Interessante um apontamento feito por Reyes Mate (2011, p. 51) no sentido de que a crítica a mentalidade progressista não assinalava que Benjamin fosse “antiquado”. Para Mate, “Benjamin é um moderno, como demonstra a saudação entusiasta que fez à chegada da técnica, mas um moderno exigente que torna suas estas palavras de Lao Tse: ’nada pode ser (...) progresso se isso não supõe um incremento de felicidade e da realização naqueles que sofreram o destino imperfeito’”.

112 Ruiz (2012, p. 69) mostra que a potência anamnética da memória reconstitui a objetividade dos fatos e reconstitui também o sentido desses fatos para aqueles que foram suas vítimas.

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104

2.2.2.

Justiça anamnética e testemunho

Como visto até aqui, a vítima carrega consigo o peso da experiência

injusta, e apenas ela conhece a dimensão do sofrimento produzido pela negação de

sua alteridade. Logo, a proposta de Reyes Mate para se poder acessar o fragmento

ignorado da realidade que a vítima transporta consigo, em uma perspectiva

anamnética de justiça, se dá por meio do testemunho. Reyes Mate (2008b, p. 119,

tradução nossa)113 afirma: “temos que construir uma teoria da verdade que gire em

torno do testemunho”.

Neste mesmo sentido, Zamora (2012, p.99), enuncia que olhar da vítima

é revestido de essencialidade no processo de conhecimento da verdade sobre os

acontecimentos, e também, provoca uma virada de significado no campo da ética

e da política. Vemos a seguinte declaração desse autor, dizendo que:

“A olhar da vítima tem uma capacidade própria de verdade, de desvelamento do existente e de penetração na lógica que o preside, de que carece a visão que comunga com o poder dos vencedores ou se deixa obscurecer por seu fulgor. Mas este olhar não só possui um valor epistemológico, também tem uma dimensão ética e política. A partir dela são postas a prova e adquirem novo significado as categorias de autonomia, liberdade, igualdade, dignidade, direitos humanos, justiça, etc. que servem de fundamento a ordem moral e política da modernidade.” (ZAMORA, 2012, p. 99, tradução nossa)114

Assim, para Mate (2008b, p. 119), a base da estratégia anamnética é a

testemunha. A vítima, nesse sentido é uma testemunha que não fala apenas por si.

Fala também por aqueles, que não podem mais falar (por não conseguirem dizer,

ou mesmo por não terem sobrevivido), mas que sofreram com os mesmos atos de

113 No original: “tenemos que construir uma teoría de la verdade que pivote sobre el testimonio”. (Mate, 2008b, p. 119)

114 No original: “La mirada de la víctima tiene una capacidade própria de verdad, de desvelamiento de lo existente y de penetración en la lógica que lo preside, de la que carece la visión que comulga com el poder de los vencedores o se deja obnubilar por su fulgor. Pero esta mirada no sólo posee um valor epistemologico, tanbién tiene uma dimensión ética y política. Desde ella son puestas a prueba y adquieren nuevo significado las categorias de autonomia, libertad, igualdad, dignidade, derechos humanos, justicia, etc. que sirven de fundamento al orden moral y político de modernidade.” (ZAMORA, 2012, p. 99)

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injustiça que violaram sua dignidade. Sua voz representa o interior do seu

sofrimento, mas também o sofrimento de outros115.

Conforme Reyes Mate (2008b, p. 119), é necessário fazer a distinção

entre dois tipos de testemunho: o imparcial, mais relacionado ao direito; e o outro

que trata do testemunho dado por quem experimentou um acontecimento no qual

a memória está associada. Essa associação existe pois, neste último caso, aquele

que passou pela experiência precisa da recordação para dar o seu testemunho –

inclusive, nas palavras de Primo Levi (1988, p. 8), após a barbárie vivenciada,

para muitos “a necessidade de contar aos outros, de tornar os outros participantes,

alcançou (...) antes e após da libertação, caráter de impulso imediato”.

Este sofrimento, que é o efeito da alteridade negada, transmuta-se em

linguagem por meio da qual nos é possível compreender o que de fato a injustiça

signifique, como afirma Castor Bartolomé Ruiz (2012, p. 72): “A testemunha

mais do que ninguém é linguagem”. Significa dizer que ao expressar o passado e

descrever o acontecimento, dá presença ao passado que estava ausente, torna-o

presente em palavras, em linguagem116.

A vítima possui uma visão diferenciada. Ela enxerga aquilo que escapa

aos demais. Nesse âmbito, emblemático é o exemplo trazido por Mate (2008a, p.

28), no filme de Claude Lanzmann, Shoah, em que um sobrevivente de um campo

de concentração passeia por um bosque verdejante e calmo, onde se ouvem canto

de pássaros. Observando aquele bosque convidativo à contemplação e

tranquilidade, onde se vê apenas serenidade, a personagem afirma “era aqui”. Ali,

onde não havia nada, teria sido o local onde se firmara a mortal câmara de gás.

A força desta cena revela a importância da vítima para o conhecimento

da verdade. Não apenas isso, ela denuncia que sem esses olhares, dos oprimidos,

115 Mate afirma o seguinte (2008b, p. 120, tradução nossa): “o silêncio do desaparecido ou assinado relativiza a palavra do sobrevivente já que este não provou o cálice do sofrimento, enquanto, por outro lado, sem a palavra da testemunha esse silêncio sepulcral seria inexpressivo”. No original: “el silencio del desaparecido o assinado relativiza la palavra del superviviente ya que éste no apuró el cáliz del sufrimiento, mientras que, por outro lado, sin la palabra del testigo esse silencio seprucral sería inexpresivo”. (Mate, 2008b, p. 120)

116 Ruiz (2012, p. 72): Nela a linguagem do acontecimento se expressa além das palavras ditas, naquilo que ainda não foi dito, no sofrimento contido e às vezes no impossível de dizer. O sofrimento da vítima é sua linguagem mais objetiva. Nele reside a materialidade da injustiça”.

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dos fracassados, das vítimas sobre os acontecimentos passados, “a captação da

realidade é insuficiente” (MATE, 2008a, p. 29, tradução nossa). A vítima enxerga

aquilo que não está posto, que não está inscrito como história.

Agora, no que concerne à injustiça, enquanto termo, ela é compreendida

como produto de uma violação realizada em relação a um inocente. Assim, a

injustiça, sendo a causa de um sofrimento, tem um impacto completamente

diferente. Por isso, torna-se tão primordial a análise do sofrimento, como um meio

de conhecimento mais profundo a respeito da injustiça vivenciada. E, partindo

dessa associação, naturalmente perguntamos, à despeito de qualquer possibilidade

de abuso da memória: quem melhor do que a vítima para mapear a injustiça, senão

ela própria que viveu os dias de indizíveis sofrimentos?

Para Reyes Mate (2003, p. 120), a vítima “não é um informador

qualificado de um fato”, como nossa tendência processualista nos faz caracterizar.

Ela, que vivenciou a realidade objetiva de ter sua dignidade violada, é uma

testemunha da verdade. Assim, sua voz tem um papel fundamental, para revelar a

verdade dos acontecimentos, ou seja, “seu testemunho é fundamental para

estabelecer a verdade dos fatos e a veracidade de uma teoria, por exemplo, da

justiça” (Mate, 2003, p. 120).

Considerando que é a partir da memória anamnética que temos acesso ao

conhecimento do acontecimento injusto (para então, atribuir justiça à vítima com

o propósito de restaurá-la) identificamos que a voz da vítima se torna

imprescindível, uma vez que “o sofrimento (enquanto interpretação dos fatos) só

pode ser pronunciado em toda sua potencialidade por aqueles que o vivenciaram”

(RUIZ, 2012, p. 71).

Por essa razão, quando pensamos na singularidade do olhar da vítima,

concluímos que apesar do juiz alcançar uma posição de imparcialidade (RUIZ,

2012, p. 73), dentro de uma relação processual, na perspectiva procedimental, isso

não o coloca em uma posição privilegiada, pois ele não está enxergando o todo

composto por aquilo que a vítima enxerga e ele não. É importante que ele seja

imparcial, como vimos, para que sejam afastados os ressentimentos e as

vinganças.

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Todavia, o que estamos afirmando é que diferente de como a justiça

formal o coloca, o juiz compreende apenas uma parte da realidade, seu lugar de

imparcialidade não o qualifica como sendo justo (RUIZ, 2012, p. 73). Esse fato

deveria ser suficiente para introduzir a vítima como elemento central da relação

procedimental. Assim, para fazer justiça à vítima, é necessária a compreensão

histórica da justiça, ou seja, é importante conhecer o início da injustiça

engendrado, no evento que deu origem ao sofrimento cuja vítima testemunhou

(RUIZ, 2012, p. 73).

Assim, usando a memória anamnética, a vítima rememora o

acontecimento, interpretando-o como indivíduo cujo sofrimento lhe atravessou

atingindo-o com injustiça. A vítima rememora os “ocos de ausências que se fazem

presentes como lacunas” (MATE, 2008a, p. 29, tradução nossa)117, de forma que

se torna possível conhecer a injustiça que lhe foi imputada, abrindo a

oportunidade de restauração de sua condição. Como Mate assinala quando reflete

acerca da teoria benjaminiana: “Justiça e memória são indissociáveis porque sem

a memória da injustiça não há justiça possível” (MATE, 2008b, p. 168, tradução

nossa)118.

Daí, a original e particular característica da justiça anamnética. Na busca

pela reparação da injustiça causada a vítima, ela busca no passado, por meio da

rememoração, a experiência vivenciada singularmente pela vítima, fazendo dela

testemunha integral (MATE, 2011, p. 18), uma vez que ela é a única relacionada

diretamente ao sofrimento consequente da injustiça experienciada.

117 No original: “huecos de ausências que se hacen presentes como vacíos”. (Mate, 2008a, p. 29)

118 No original: “Justicia y memoria son indisociables porque sin memoria de la injusticia no hay justicia possible”. (Mate, 2008b, p. 168)

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108

2.2.3.

Fraturas: reconhecimento, reparação e reconciliação

Com respeito às comunidades marcadas por um histórico de violência

pretérita contra dignidade humana, Reyes Mate (2008a, p. 40) aponta que a

consequência produzida por essas violações é a existência de uma sociedade

fraturada. Por esse motivo, como coloca Mate119:

“Se produz uma divisão no seio da sociedade entre os que comungam, aprovam, toleram ou calam ante a estratégia do causa do terrorista e os que padecem a violência dessa causa”. (MATE, 2008a, p. 40, tradução nossa)120

Essa fratura social aparece como uma evidência de que algo deve ser

realizado a respeito dessas violações. Vimos no primeiro capítulo que essa

iniciativa de tratar o passado violento tem sido o objeto da justiça de transição, e

como aponta Zamora (2012, p. 97, tradução nossa)121 “a maioria destes casos, traz

a finalização dos conflitos armados ou a transição de regimes ditatoriais para

democracias mais ou menos débeis”.

Assim, entende-se também que a permanência do histórico da violência,

em especial pelo “virar a página”, efetuado por vários países, tiveram

consequências graves, uma vez que avançavam e continuavam a construir sua

história sobre muitas injustiças, com base em uma ideia de esquecimento. Em

resumo, cada contexto e cada país possui diferentes processos transicionais, e a

escolha de cada um revela muito das estratégias e da formação política e histórica

de cada um deles. Neste sentido, em relação às injustiças denunciadas na voz das

119 Aqui, quando Reyes Mate fala sobre sociedade fraturada, ele está se referindo ao terrorismo que atingiu a Espanha, a produção de vítimas, e como enfrentar esta situação. Cito esse apontamento de Mate, pois se revela aplicável a outros países com históricos de graves violações dos direitos humanos.

120 No original: “Se produce una escisión en seno de la sociedade entre quienes comulgan, aprueban, toleran ou callan ante la estrategia del causa del terrorista y quienes padecen la violencia de esa causa”. (Mate, 2008a, p. 40)

121 No original: “en la mayoría de estos casos, tras la finalización de los conflitos armados o la transicion de regímenes dictatoriales a democracias mas o menos debiles” (ZAMORA, 2012, p. 97)

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vítimas, Mate (2005, n.p., tradução nossa) aponta, que “nada de particular, então,

que a política e a informação tratem tão delicado assunto desde seus próprios

interesses e com suas próprias lógicas”122.

Isso posto, vê-se que para Mate (2008a, p.40, tradução nossa)123 “a

sutura das fraturas é a reconciliação”, de maneira que o autor defende a necessária

recuperação da vítima e do algoz (o violador, ou verdugo), para a comunidade.

Sobre essa proposta, Mate indica que a reintegração da vítima deve ser realizada

no âmbito do reconhecimento social sobre sua condição de vítima, a reparação do

dano (para cessação da sua condição de vítima) e, sobre o fato de ela ser a

portadora de um sentido em relação aos fatos, que até então são conhecidos

apenas pela versão dos que venceram. Não obstante, Mate assegura que o

violador, tem sua reintegração social realizada no âmbito do reconhecimento da

violação causada e do dano cometido a vítima124.

Semelhantemente, Zamora (2013, p. 45), na mesma perspectiva

anamnética de justiça que segue Reyes Mate, afirma a respeito dos violadores que

a estes não devem ser apenas submetidos a ações punitivas, uma vez que isso

representaria focar as medidas de enfrentamento do passado de violência numa

concepção que secundarizaria a vítima do processo e, portanto, não promoveria

sua reabilitação social. Ao contrário, Zamora expressa que se deve incluir nas

ações tomadas em relação ao violador, o confrontamento deste com a dor e o

sofrimento produzidos na vítima, e convocá-lo ao “reconhecimento da dívida

contraída com as suas vítimas” (ZAMORA, 2013, p.45).

Assim, conforme Reyes Mate, realizar justiça às vítimas é a condição

necessária para interromper a transmissão continua da violência, dado que mais do

que um problema moral, a permanência da injustiça no seio da sociedade,

significa também um problema político. É importante que a sociedade como um

122 No original: Nada de particular entonces que la política y la información traten tan delicado asunto desde sus propios intereses y con sus propias lógicas.(Mate, 2005, n.p.online).

123 No original: “la suctura de las fracturas es la reconciliación”. (Mate, 2008a, p.40)

124 Como o diz Mate (2008a, p. 41, tradução nossa): “A reconciliação consiste na sutura dessa fratura social e o duplo reconhecimento a que nos referimos (do ser cidadão para uns e do dano causado para outros) é o passo necessário”. No original: “La reconciliación consiste en la sutura de esa fractura social y el doble reconocimiento al que nos referimos (del ser ciudadano de los unos y del daño causado por los otros) es el paso necessário” (Mate, 2008a, p. 41).

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todo tenha consciência dos crimes realizados, e, assim, impeça que uma constante

de impunidade se legitime através do esquecimento às vítimas. O sofrimento e a

injustiça causados, como observa Zamora (2012, p. 97, tradução nossa)125, fazem

necessário que “as vítimas recebam reconhecimento social e se admita

publicamente o caráter injusto da violência padecida e, em alguns casos, de que se

lhes compense materialmente por isso”.

A atitude da sociedade em se conduzir na direção da verdade das vítimas

é essencial na reabilitação da mesma, pois como ser parte da sociedade, se esta

não conhece seu verdadeiro sofrimento? Como ser parte de uma comunidade que

ignora a verdade contida nos fatos, que a olha, mas não a enxerga? Não é por

coincidência que dentro dos processos transicionais se percebam como as

principais e primeiras demandas, que se busque digam respeito a verdade dos

acontecimentos, visto que inúmeros governos pós-repressão buscaram esconder,

desqualificar ou criminalizar a memória daqueles que sofreram.

No mesmo sentido que Reyes Mate, assevera Zamora (2012, p. 98,

tradução nossa)126, que “não pode haver justiça sem o conhecimento da verdade”.

Por isso a importância da memória, que será o meio pelo qual se fará justiça,

trazendo do passado os fatos para o presente, para a vítima o sentido que engloba

sua experiência de sofrimento, e para sociedade um fragmento da realidade até

então desconhecida. Assentando no presente o passado ausente ao conferir ao

passado das vítimas a presença no tempo de agora.

Não englobar a vítima nos processos transicionais corresponde a

permanência da injustiça no seio da sociedade e, portanto, a permanência de uma

sociedade fragmentada. Deseja-se dizer que sem a realização de justiça às vítimas,

não há um posicionamento crítico em relação à violência, e essa questão é

alarmante, uma vez que torna a sociedade propícia a repetir os mesmos erros. Não

apenas isso, mas é importante também ressaltar que abre expediente ao

ressentimento causado pela invisibilidade da vítima, que além de ter tido negada

125 No original: “las víctimas reciban reconocimiento social y se admita publicamente el carácter injusto de la violencia padecida y, enalgunos casos, de que se les compense materialmente por ello”. (ZAMORA, 2012, p. 97)

126 No original: “no puede haber justicia sin conocimiento de la verdade”. (ZAMORA, 2012, p.98)

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sua dignidade no ato do evento injusto, permanece tendo sua versão e sua

condição de vítima negada, como se não bastasse a própria violência física e

psicológica sofrida durante a repressão.

A sociedade que não centraliza seu processo de transição na vítima migra

apenas a um estado de violência transmutada de regime político, pois o mal em si,

permanece latente na sua estrutura sendo passado adiante de geração a geração.

Nas palavras de Jose Zamora (2012, p. 98), ele expressa:

“Sem essa reabilitação das vítimas é impossível reconciliar às sociedades e construir esse futuro diferente que ressoa em nunca mais o repetir tantas vezes. Para construir um futuro comum é necessário afirmar a centralidade das vítimas, reconhecer a importância do que foi negado pela violência e o crime. Mas não se trata só de uma reabilitação das pessoas que sofreram o dano, ademais é necessário remover as causas estruturais e culturais da violência”. (ZAMORA, 2012, p. 98, tradução nossa)127

Por essa razão, Reyes Mate (2009) cita recorrentemente em seus

trabalhos, a frase do filósofo Jorge Santayanna, que afirma que “os povos que

esquecem sua história estão condenados a repeti-la”. Para evitar esse desastre, o

passado ausente deve ser rememorado, pela voz das vítimas, justamente para que

os fragmentos dos acontecimentos históricos possam alcançar uma integralidade.

Em suma, como destaca Reyes Mate (2009), “(...) o objetivo principal da

memória é lutar contra as injustiças às vítimas”, de modo que é tão importante que

os países de herança repressiva, como o que temos abordado, se voltem ao

passado, com o propósito de fazer justiça às vítimas produzidas por esses regimes.

Só assim se torna possível pensar na mudança de uma cultura de

violência: tornando a sociedade consciente de que determinados eventos

realmente aconteceram, a fim de que se abra a possibilidade de cada um se sentir

responsável e parte do sofrimento vivenciado pela vítima, e, desse modo, ela

possa ser reconhecida, reparada e ter a condição de vítima cessada, ao ponto de se

127 No original: “Sen esa rehabilitación de las víctimas es impossible reconciliar a las sociedades y construir ese futuro distinto que resuena em el nunca más tantas veces repetido. Para construir um futuro común es necessário afirmar la centralidade de las víctimas, reconocer la importância de lo que ha sido negado por la violencia y el crimen. Pero no se trata sólo de uma rehabilitación de las personas que han sufrido el daño, además es necesario remover las causas estructurales y culturales de la violencia”. (ZAMORA, 2012, p. 98)

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reabilitar a participar de uma comunidade que reconheça seu sofrimento. Só

assim, podemos falar em uma recomposição ética da sociedade, bem como de

uma “convivência fundada em igualdade e justiça”. (ZAMORA, 2012, p.99,

tradução nossa)128

128 No original: “convivencia fundada em igualdad y justicia” (ZAMORA, 2012, p.99)

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3

Brasil: a presentificação do ausente – testemunhos

O século XX representa um tempo muito duro para história da

humanidade. Não foi à toa que diversas nomenclaturas tenham sido a ele

atribuídas: era das catástrofes, dos extremos, do trauma (CALEGARI, 2013,

n.p.). Sob a rubrica de diferentes denominações, este tempo revela a existência de

muitas significações, dados seus eventos mais marcantes.

De fato, marcado por incessantes guerras – que mudaram no tempo suas

razões, mas não se desviaram de seu produto principal, qual seja a morte humana

– este tema tem gravitado na reflexão de diversas áreas do conhecimento. A

interpelação a respeito da violência no tocante à sua origem, razão, finalidade,

consequências, etc., tem nos apreendido pela sua tamanha complexidade. Por isso,

temos diante de nós um quadro muito rico, porém muito confuso, sobre as

diversas maneiras de evitar que os eventos bárbaros, como os que mancharam de

sangue de inocentes este século, pudessem se repetir.

Nesse panorama, tem-se constatado, como foi mencionado a fragilidade

da memória. Esquecemos muito fácil os fatos de ordem pessoal, como indivíduos,

e mais ainda como sociedade. Mas apesar dessa fragilidade a memória é

constituída de uma ampla capacidade transformativa e, ao mesmo tempo, se revela

como um perigo para àqueles que usam o poder político para seus próprios

benefícios, a despeito da potência destrutiva que suas atitudes possam causar a

uma coletividade.

Nesse sentido, observamos os pós-conflitos ensejados em tempos

distintos da história – como as grandes guerras, o nazismo, as ditaduras

socialistas, os regimes militares no Cone Sul, etc. – e no desenho das políticas

contemporâneas, vemos reveladas as diferentes formas pelas quais países

cuidaram de suas feridas, de maneira que alguns buscaram esquecer, e outros

lutaram por lembrar. Por conseguinte, a constatação possível é a de que a memória

orbita em uma constante de lutas, não apenas porque os eventos traumáticos

dividem, na ordem individual, aquele que em si mesmo vive o conflito entre

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desejar lembrar, ou tentar esquecer, mas também, de semelhante modo, no âmbito

da sociedade, se dividem os adeptos às duas concepções.

Adiante, neste capítulo, dar-se-á um enfoque especial sobre as questões

atinentes ao Brasil na ditadura vivenciada no período 1964-1985129, e sua relação

de esquecimento-memória frente às graves violações130 de direitos humanos

perpetrados pelo regime militar contra inúmeros que se opunham a repressão e

barbárie delirante.

Com base na teoria de Reyes Mate, se pretende mostrar a importância da

vítima para o processo transicional, e a necessidade de ouvir sua voz, por meio

dos testemunhos colhidos em seu meio. Além disso, nesse viés, apresentaremos

alguns fragmentos de relatos dados pelas vítimas da ditadura à Comissão Nacional

da Verdade, em 2014, fazendo uma reflexão sobre como se coadunam às

proposições de Reyes Mate, (da justiça das vítimas, sobretudo no referente à

importância que sua versão dos acontecimentos indica em relação à verdade

estabelecida pelos vencedores), e a violação hermenêutica dos fatos ignorados

pelas forças armadas.

Por essa razão, será apresentada, também, como parte das questões

colocadas por Reyes Mate, a importância tanto da vítima como do verdugo, para

conhecimento da verdade, e para o processo de “recomposição ética da sociedade

fragilizada pela violência” (ZAMORA, 2013, p. 24). Por isso, serão trabalhados

também alguns fragmentos do testemunho do ex-delegado de polícia designado ao

DOI-CODI, que integrava o sistema de informações do regime, o Sr. Laerte

Calandra, acusado de torturar ex-presos políticos, sob a alcunha de Capitão

Ubirajara, na mesma sessão de depoimentos, prestados à Comissão Nacional da

Verdade.

129 Merece destaque a questão formulada por Daniel Aarão (2014) a respeito do período final da ditadura: “há controvérsias sobre quando acabou. Em 1979, quando cessaram os Atos Institucionais? Em 1985, quando José Sarney assumiu a Presidência da República? Ou em 1988, quando foi aprovada uma nova constituição? Tais incertezas enraízam-se no fato de que a transição para a democracia foi longa e acidentada”.

130 O conceito aqui usado em relação às graves violações é o mesmo adotado pela Comissão Nacional da Verdade (CNV), baseado nos preceitos internacionais, que delimitaram que “as graves violações de direitos humanos são as cometidas por agentes do Estado, a seu serviço ou com a conivência/aquiescência estatal, contra cidadãos brasileiros ou estrangeiros”.

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3.1.

Notas ao caso brasileiro

No Brasil é interessante notar que o cenário transicional tem sido

composto e carregado de singularidades. O caso brasileiro de repressão foi

iniciado em 1964, abrindo frente a uma realidade recheada de violência e

brutalidade, advindas do governo militar, que se assentou friamente durante vinte

e um anos, completamente distante dos ideais democráticos, que visam à

liberdade, a igualdade e o respeito entre os indivíduos – ao contrário, funcionando

pelo uso da força para impor seus próprios ideais131.

Segundo este governo, o propósito do golpe era revolução, era a guarda

da democracia. Entretanto, forte contradição compreende o propósito almejado e o

resultado obtido, pois a utilização de qualquer autoritarismo, já não fugiria

completamente do escopo democrático? Quem dera fosse apenas isso. Neste caso,

quando lemos a palavra “impor”, podemos invocar seu universo significativo, que

pode também expressar as ideias “determinar, coagir, compelir, forçar,

constranger, impelir, obrigar”. Ainda que com tantas palavras, elas não dão conta

de maneira nenhuma, isoladamente, de descrever o que realmente ocorreu neste

período. Nas palavras de Florestan Fernandes apud Daniel Aarão Reis (2014, p.

72), contudo, podemos nos aproximar um pouco desta realidade, pois ao descrever

as posturas desproporcionais do regime repressivo, ele diz que era “como se

mobilizasse canhões contra passarinhos”.

Assim, com pretensões de limpeza de comunistas e trabalhistas, foi

instalado no Brasil um tempo duro de repressão, que se espalhou por vários anos,

com uma configuração caleidoscópica132 – de contornos indefinidos e com

131 Sobre estes ideais, coloca Daniel Aarão (2014, p.48): “é inegável que o golpe militar e civil foi empreendido sob bandeiras defensivas. Não para construir um novo regime. O que a maioria desejava era salvar a democracia, a família, o direito, a lei, a Constituição, enfim, os fundamentos do que se considerava uma civil ocidental e cristã. Do ponto de vista das forças armadas, tratava-se de garantir a hierarquia, a disciplina, ameaçadas pelos protestos crescentes de graduados e marinheiros.

132 Forças dispares que haviam apoiado o golpe: liberais conservadores, conservadores arcaicos, liberais-internacionalistas, corporativistas- estatais, anticomunistas radicais. A ditadura, desde o

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distintas orientações (REIS, 2014, p. 50) – já que faziam parte vários grupos

diferentes, tanto dentro da direita, que se diversificava sobre intenções e medidas

de contenção ao comunismo133; como dentro da esquerda, que se mobilizou de

diferentes maneiras contra a repressão (entre as principais categorias, citam-se os

movimentos de resistência que gravitaram entre grupos sindicais, rurais, e

estudantis, que protagonizaram a luta em anos diferentes e/ou simultaneamente).

Vale dizer que aos olhos do regime militar, a esquerda se tratava de

oposição ao governo. Assim, apesar da forte diversidade ideológica interna,

apontada claramente pela historiografia, entendemos que a repressão militar à

esquerda se deu por um mesmo tratamento unificado – os militares tendiam a sua

homogeneização.

Antes de mais nada, ressaltamos que existiu um verdadeiro aparelho

repressivo134 (REIS, 2014, p. 102), que foi montado, arquitetado e conjurado para

instituir um estado de exceção delirante – em forma de Atos Institucionais I a V

(caracterizados pelo domínio dos meios de massa pelo Estado, para o controle das

informações e da sociedade, através da censura dos pensamentos e do

cerceamento do ir e vir) – de maneira que ficou grifado na história brasileira, mais

um tempo de crueldade descomunal135.

Não bastassem os aparatos opressivos, que desde os primeiros anos da

década de 1960 se sofisticaram e multiplicaram em políticas de Estado permeadas

de violência, as “margens de liberdade e de críticas políticas foram reduzidas a

zero” (REIS, 2014, p. 102), desdobrando-se em um terrível recrudescimento do

início, e até o fim, teria que se haver com esse desafio porque, desde o início, e até o fim, ela nunca foi uma, mas vária. (Daniel Aarão, 2014, p.53)

133 Militares e civis aí se encontravam, preconizando uma repressão dura contra comunistas e trabalhistas, a quem chamavam pejorativamente de “populistas”. (Reis, 2014, p. 49).

134 “Nas pesquisas realizadas sobre os aparelhos de repressão está mais do que demonstrada a ligação direta – e a simbiose – entre os “órgãos” de informação e os ministros de Estado, em contato direto coma Presidência da República. Carecem de sentido, e de evidências, as suposições de que os aparelhos de segurança funcionassem de modo autônomo, sem controle ou respeito pela linha de comando. É nesse preciso sentido que se pode falar da tortura como “política de Estado.” (Reis, 2014, p. 102)

135 Ainda que sem entrar em detalhes, faço nota, pois há que se considerar o Brasil escravocrata; o Brasil que matou indígenas, o Brasil que matou os insurgentes mineiros, o Brasil que extinguiu Canudos; o Brasil que entregou judeus ao fascismo, entre outros brasis onde podemos observar tanta violência contra a vida humana.

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regime, notadamente, através das determinações impostas pelo AI-5. Esses

aparatos de violência opressora eram constituídos das alienadas brutalidades,

prisões arbitrárias, torturas, maus tratos, desatinadas perseguições, perda de

direitos políticos, cassações, demissões injustificadas, aposentadorias

compulsórias, expulsão de cursos universitários, desaparecimentos, e execuções.

Com isso, o período de 1969-1972, ficou marcado pelo desponte de

inúmeros grupos de resistência urbana (entre eles o MR-8, o DI-GB, ANL), e

rural (simbolizados pelo grupo que lutava na região do Araguaia) que lutavam

contra as medidas bestiais, adotadas pelo regime militar. Neste tempo, inúmeros

brasileiros sofreram prisões e torturas; tantos outros desapareceram ou foram

executados. Extenso sofrimento se imprimiu na vida dos que ficaram obrigados à

clandestinidade, como maneira de fugirem do destino terrível preparado para

aqueles que não fizessem parte do “coro dos contentes”.136 Difícil se tornou a vida

urbana, e também rural, para aqueles que desejavam um país diferente.

No que se refere ao ambiente rural, no Araguaia, em 1972, recém-

descoberto os grupos dissidentes, Daniel Aarão (2014, p. 77), chama a atenção

para uma infeliz realidade: “os militares deram cabo do grupo, torturando,

matando e degolando quase todos, além de barbarizar as populações e desaparecer

com os corpos”.

A luta desigual e desproporcional se tornou “sofisticada”. Composto de

policiais militares, do oficialato das forças armadas, das policias civis, havia uma

organização, profissionalmente preparado para efetuar a repressão de maneira

treinada. A tortura era justificada, afinal, tratava-se de expulsar da história

“aqueles maus elementos, subversivos e marginais”; aqueles que perturbavam a

ordem brasileira com reivindicações, lutas e sonhos de um país diferente;

personificava-se o desejo de lutar somado à inexperiência, contra o desejo de

imposição de ideais somados ao profissionalismo repressivo. Como coloca

Caligari (2013):

“A tortura procurava não apenas produzir no corpo da vítima uma dor que a fizesse entrar em conflito com o próprio espírito e pronunciar o discurso que, ao

136 Expressão utilizada na letra “Let’s play that”, composta por Torquato Neto, durante a ditadura militar.

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favorecer o desempenho do sistema repressivo, significasse sua sentença condenatória, ela visava imprimir às pessoas a destruição moral pela ruptura dos limites emocionais.” (CALIGARI, 2013, n.p.)

Desse modo, encaramos um período da história que traduz que muitos

brasileiros, sob a marca de marginais e subversivos – ou como é possível

compreender por uma interpretação mais descritiva: aquele que está proibido de

pensar diferente, e ao fazê-lo torna-se indesejável e passível de ter sua dignidade

violada, e sem direitos – pagaram sofrendo com violações físicas e psicológicas,

de todas as ordens. O Brasil ficou saturado de injustiças.

3.1.1.

Esquecimento brasileiro

Contudo, em razão da esquizofrenia autoritária vivenciada, no final da

década de 70 e início da década de 80 foi-se extinguindo e desgastando a ditadura

militar, atravessada de pressões e insatisfações, por ser um cenário de muitos

mortos, desaparecidos, e muitos relatos de bárbaras violências por parte dos que

sobreviviam aos porões ditatoriais. Então, o Brasil lidava com o questionamento

referente ao modelo de encerramento deste capítulo da história (como se fosse

possível encerrar). À época, clamava-se por uma alternativa que trouxesse a

possibilidade de retorno de brasileiros exilados, e para que àqueles que estavam

clandestinos, pudessem retomar suas vidas, e seus direitos.

Dessa forma, em 1979, após os atos institucionais, isto é, a partir de sua

revogação, em Agosto daquele ano houve a aprovação da lei de Anistia (Lei

6.683/1979), possibilitando o retorno dos exilados políticos ao Brasil, ainda que

mantidas muitas peças constituintes do aparelho repressivo (REIS, 2014, p. 10).

Neste tempo, o retorno do regime democrático se dava às espreitas, com inúmeras

reservas e repleta de “entulhos autoritários” (Reis, 2014, p. 151).

Ainda assim, cabe dizer que no espírito da sociedade se alojava um

sentimento novo, que despertava novas motivações, que foram se avigorando e se

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fortalecendo, ao ponto de em meados da década de 80, surgir forte comoção com

respeito às violações oriundas da repressão ditatorial ancorado no sentimento, que

nomeou o projeto encabeçado por Paulo Evaristo Arns, Henry Sobel, e Jaime

Wright, Brasil: Nunca Mais. Também, é de se ressaltar, neste sentido, que esta

iniciativa ensejou, com efeito, um tempo de guerras de memórias.

Em contrapartida das acusações realizadas em relação as arbitrariedades

estatais, as forças armadas mostram-se dispostas a deixar escrita sua própria

história, denunciando seu ânimo de deixar uma versão que buscava inscrevê-los

como heróis, e que naturalmente esquecia-se dos atos de barbaridades cometidas.

Chamava-se projeto “Ovril”, que não foi publicado até 1990 (REIS, 2014, p. 12),

por meio do qual, é conhecido o intento militar em reescrever a história, dando a

ela a brandura de um filme de aventura.

Tratava-se, na verdade, de uma extensa obra, integrada por mais de mil

páginas, que buscava fundamentar e legitimar as ações violentas tomadas pelos

militares no combate e proteção do Brasil contra a instauração de uma ditadura

socialista. Não obstante o maquiamento de memórias, outros livros, foram sendo

publicados, expressando a atuação militar, como um serviço contra a instalação do

“terrorismo”, entre outras proposições.

Por seu turno, retornando à lei de anistia, por outra perspectiva, passa-se

a enxergar este período como parte integrante do processo de transição política

brasileira (ABRÃO & TORELLY, 2012, p. 542). Como foi visto, anteriormente,

esta lei foi aprovada no contexto de revogação dos atos institucionais, durante o

governo liderado pelo general João Bapstista Figueiredo, sendo fruto dos reclames

populares, pois se tratava em certa medida, do perdão aos crimes cometidos pela

resistência, por isso uma demanda “ampla, geral e irrestrita”.

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Porém, entre muitas pressões e opiniões divididas137 à época, houve a

edição de uma lei ambivalente, que carregou como papel, tanto o livramento dos

presos que ainda se encontravam nas cadeias, e a volta dos exilados políticos,

como também a preocupação em proteger aqueles que vinham sendo denunciados

pelos que sofriam com a repressão, especialmente por cidadãos que continham

relatos de desaparecimento de um membro da família, ou mesmo daqueles que

sofreram a violência do regime e denunciavam seus algozes. Tanto a direita como

a esquerda tinham intenções e expectativas em relação a essa lei.

Apesar disso, a lei de anistia foi implementada a partir do raciocínio

trazido pela direita, referente à fundamentação das ações repressivas, de que

diante de um contexto de uma guerra revolucionária, existiriam dois lados e que

por consequência esses dois lados participantes da “guerra”138, deveriam ser

anistiados. (REIS, 2014; ABRÃO, 2014). Vale ressaltar, que naquele momento de

reflexão, e diante das circunstâncias e temporalidade, (que nos esforçamos para

compreender após passados tantos anos) tanto a direita como a esquerda

revolucionária acreditavam na ideia da existência desses dois lados.

Ocorre, contudo, agora tendo a distância histórica necessária, foi possível

observar, que a tese dos “dois demônios”, isto é, das duas faces sujas constitutivas

de um tempo de guerra, não se aplica ao ocorrido durante a ditadura, uma vez que,

como afirma Daniel Aarão Reis (2014, p. 135):

“Não houvera guerra alguma, e sim um enfrentamento extremamente desigual entre um poderoso Estado e suas Forças Armadas contra alguns milhares de revolucionários e seus simpatizantes”.

137“Alguns setores, mais radicais, acrescentavam, no embalo, que seria necessário desmantelar os órgãos repressivos e proceder ao julgamento dos torturadores. Outros, moderados, ligados ao MDB e ao PCB, concordavam com a exclusão dos chamados “crimes de sangue”, uma reinvindicação das forças mais conservadoras que seria “realista” aceitar. Tratava-se de concordar com o possível, numa primeira etapa. Mais tarde, se veria o caso dos acusados de ‘crimes de sangue’. As direitas também se dividiam, desde os que não queriam falar do assunto aos que o admitiam, contanto que a anistia fosse parcial, deixando os “terroristas”, acusados de mortes matadas ou do que chamavam “sequestros”. (Reis, 2014, p.133).

138 Como nos mostra Paulo Abrão (2014, p. 393): “será graças à adesão social a esse discurso, típico do ambivalente da guerra fria, fundado no medo do caos e na necessidade de progresso econômico, que se desenvolverá o argumento dos opositores como inimigos e, posteriormente, da anistia bilateral como necessário pacto político de reconciliação recíproca, sob a cultura do medo ou ameaça de uma nova instabilidade institucional ou retorno autoritário ao se cogitar insucesso desse pacto”.

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121

Assim, introduzida a lei de Anistia, sob o fundamento da reciprocidade

do perdão (ABRÃO, 2014, p. 394), é possível observar desenhado um dos grandes

obstáculos à responsabilização daqueles causadores da violação dos direitos de

tantos cidadãos brasileiros. Em consequência, como afirma Paulo Abrão (2014),

ainda que algumas famílias de desaparecidos e perseguidos tenham protagonizado

iniciativas, por meio do acionamento da justiça, em um conjunto amplo de ex-

perseguidos do regime, muitos acabaram ao longo do tempo deixando de buscar

no Judiciário, um lugar onde fosse possível a realização da justiça sobre os crimes

que sofreram no passado, por causa desta tese de anistia para os dois lados.

Logo, é possível afirmar que a lei de anistia simboliza uma lei que visou

“virar a página” da história de violência, sob a lógica do “seguir em frente”,

cristalizando a impunidade, e mantendo as vítimas da ditadura em um quadro

permanente de injustiça.

Dessa maneira, este evento afetou consideravelmente os anos pós-

democratização, como coloca Paulo Abrão (2014). Os movimentos sociais,

reflexos da atuação da sociedade civil como forças essenciais para oposição e

transformação do status quo, sem a mesma expressividade do passado, deixaram

de incluir em sua pauta reivindicatória o tema da impunidade em relação aos

crimes cometidos durante a ditadura.

Desse modo, “a luta por justiça de transição no Brasil não constou da

pauta desses novos movimentos sociais”139, mantendo-se limitada aos

movimentos liderados pelas famílias dos mortos e desaparecidos do regime e os

grupos Tortura Nunca Mais (em especial em Rio de Janeiro e São Paulo)140, que

inconformados continuavam atuando na luta contra o esquecimento deste capítulo

importante da história política do Brasil. Como consequência da luta é importante

139 Outras demandas passariam a constituiriam a pauta dos novos movimentos sociais, como: “reforma agrária, os direitos de gênero, o direito a não direito a não discriminação em função da etnia, os direitos das crianças e dos adolescentes, o movimento ambiental, os direitos dos aposentados e idosos, portadores de necessidades especiais, e assim por diante. Dessa feita, a pauta da sociedade civil fragmentou-se amplamente, considerando tanto o “atraso reivindicatório” produzido pelos anos de repressão, quanto por um realinhamento desses movimentos com os atores internacionais em suas temáticas.” (Abrão, 2014, p. 397).

140 Paulo Abrão (2014, p.400) cita também a importante atuação do movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do Sul, com especial enfoque nas perseguições no Cone Sul e operação Condor.

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122

destacar o surgimento da Lei 9.140, de 1995, cujo objeto consistia no

reconhecimento das mortes e desaparecimentos de opositores políticos da

ditadura, possibilitando reparação às vítimas (ABRÃO, 2014, p. 397).

Vale dizer, que outros grupos permaneceram lutando também, e por

emblemático, ressalto o grupo daqueles que haviam sido demitidos ou impedidos

de trabalhar, durante o regime, em razão de perseguição política. Estes

movimentos passaram a demandar reparação política (ABRÃO, 2014, p. 397), e

sua luta abriu expediente a criação da Lei 10.559, de 2002, cujo foco central foi a

instauração de medidas de reparação para as violações advindas de outros atos de

exceção.

3.2.

Memórias latentes: o passado ausente no presente

3.2.1.

As medidas atualmente tomadas

Sobre o panorama atual, é importante apresentar a configuração do

cenário no que se refere à mobilização social e sua reaproximação das demandas

decorrentes do regime militar. Porque, realmente, a despeito das mobilizações

acima destacadas, o Brasil permanece apresentando várias questões em aberto, e

não enfrentadas sobre este período. Portanto, ainda que se possa enxergar a

existência da atuação de alguns grupos (como os acima mencionados), e que estas

ações culminaram em conquistas como a criação das leis supracitadas, vale

verificar em que direção que este tema tem rumado, especialmente após a

promulgação destes instrumentos legais.

No Brasil, a luta para que medidas sejam realizadas em relação às

consequências da ditadura, tem sido impulsionada diversas vezes por

organizações da sociedade civil. Elas têm se constituído como atores

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123

fundamentais para expansão das reivindicações. Assim, constata-se que apesar

de se ter passado certo tempo, e de ainda estarmos distantes de uma atuação

expressiva, as conquistas legais alcançadas em relação às demandas de justiça de

transição, tem posto de volta à pauta de reclames brasileiros, a preocupação com o

processo transicional, essencial à consolidação e efetividade da democracia

brasileira. Tanto que se tornaram presentes as reivindicações que é possível

observar que “emergem novas frentes de mobilização segundo pautas amplas de

justiça de transição” (ABRÃO, 2014, p. 400).

Aliás, despontaram-se dezenas de entidades pelo Brasil inteiro, que

incluíram em suas demandas, o tema do enfrentamento do passado ditatorial,

como por exemplo, “a defesa do direito de responsabilização dos agentes

torturadores, a defesa da instituição de uma comissão da Verdade, a defesa da

preservação do direito à memória e do direito a reparação integral” (ABRÃO &

TORELLY, 2012, p. 567), e outros.

Sob esse reaquecimento das reflexões sobre o passado repressivo

brasileiro, gradativamente este tema tem deixado de ser um assunto privado,

daqueles que vivenciaram diretamente a violência e de seus herdeiros, ou de

pertencimento à família dos mortos e desaparecidos políticos, passando a tornar-se

objeto de interesse coletivo da democracia. Em vista da criação de novas

articulações concentradas neste tema, foi formulada pelo Conselho Federal da

Ordem de Advogados dos Brasil, uma arguição de descumprimento de preceito

fundamental, que culminara no julgamento da ADPF 153141, pelo Supremo

Tribunal Federal - STF.

Neste julgamento, o STF reconheceu a legitimidade da interpretação

dada à lei, sob a tese vencedora de que esta se deu de um pacto bilateral à época, e

que tal pacto integraria “um dos pilares da democratização e do Estado de

Direito”. Dessa forma, alguns ministros acolheram a tese de “pacificação nacional

por meio do esquecimento”, desconsiderando a desproporcionalidade entre as

partes pactuantes.

141 Para mais informações a respeito deste tema, indica-se a leitura da obra “Justiça de Transição – das Anistias às Comissões da Verdade/ Organizadores: Ana Lucia Sabadell, Jan-Michael Simon, Dimitri Dimoulis.- São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. (ver Sabadell et. al. 2014)

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124

Por outro lado, os ministros Carlos Ayres Brito e Ricardo Lewandowski,

julgaram pela procedência da ação ajuizada pela OAB, considerando que a anistia

dos crimes de tortura e lesa-humanidade, deveria ser considerada inconstitucional,

em alinhamento ao entendimento fixado pelo direito internacional sobre a matéria.

Além disso, ao refletirem sobre a tese da anistia recíproca, compreenderam que,

na verdade, o “estado estaria anistiando a si próprio” 142.

Antes do ajuizamento da ADPF 153 tínhamos uma questão em aberto a

respeito dos obstáculos advindos da lei de anistia, no sentido de ser possível

atribuir responsabilidade àqueles que violaram os direitos de inúmeros cidadãos,

durante o regime. Contudo, agora temos a legitimação desta lei, dentro do nosso

regime democrático – isto é, se antes os efeitos negativos da lei de anistia

significavam um “entulho autoritário ilegítimo”, agora ela possui legitimidade no

ordenamento jurídico nacional (apesar de chocar-se com o direito internacional),

tornando-se extremamente restrita a possibilidade de responsabilização daqueles

que violaram os direitos humanos.

Diante disso, observamos que as maiores atuações em relação ao

enfrentamento das violações aos direitos, durante a ditadura militar no Brasil, em

princípio tem sido realizadas no campo das reparações, que se mostraram como

estratégia central para se avançar neste tema. Além disso, partindo dos processos

de reparação das vítimas era possível, e ainda é, “conhecer a verdade histórica, ter

acesso a documentos, o registro dos testemunhos dos perseguidos políticos e a

realização dos debates públicos” (ABRÃO, 2014, p. 403).

A partir de 16 de maio de 2012, importante também mencionar, que

houve a instauração da Comissão Nacional da Verdade143, criada pela Lei

142“Inobstante, o fato é que a decisão do STF torna a lei de 1979 formalmente válida no ordenamento democrático brasileiro, estabelecendo uma continuidade direta e objetiva entre o sistema jurídico da ditadura, estabelecendo uma continuidade direta e objetiva entre o sistema jurídico da ditadura e o da democracia, vedando de forma peremptória a investigação de ilícitos penais que tenham ocorrido e se esgotado entre 1961 e 1979.”

143 “A CNV adotou preceitos internacionais e delimitou que as graves violações de direitos humanos são as cometidas por agentes do Estado, a seu serviço ou com a conivência/aquiescência estatal, contra cidadãos brasileiros ou estrangeiros. (...) Ao longo de sua existência, os membros da CNV colheram 1121 depoimentos, 132 deles de agentes públicos, realizou 80 audiências e sessões públicas pelo país, percorrendo o Brasil de norte a sul, visitando 20 unidades da federação (somadas audiências, diligências e depoimentos). (...) Para tornar mais acurados os relatos de graves violações de direitos humanos, a CNV percorreu, entre novembro de 2013 e outubro de 2014, acompanhada de peritos e vítimas da repressão, sete unidades militares e locais utilizados

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12528/11 – um avanço no sentido da busca pela verdade – que trouxe como

objetivos centrais, o exame e o esclarecimento das graves violações de direitos

humanos, praticadas no período compreendido entre 1946 e 1988 (compreendido

entre as duas últimas constituições democráticas brasileiras), “a fim de efetivar o

direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”.

Sobre as comissões da verdade, de modo geral, vale destacar que

representam inciativas do Estado que buscam conhecer as ações praticadas por

regimes passados, que violaram os direitos humanos de forma sistemática. É

importante notar que estas comissões não possuem viés punitivo em relação aos

violadores.

No entanto, conforme Marcelo D. Torelly (2014, p. 409) “não

necessariamente significa que as informações por elas produzidas não possam ser

posteriormente apresentadas ante ao judiciário”, uma vez que apresentam tanto os

acontecimentos de violação de direitos, como identifica e divulga os que

cometeram estes crimes.

Com isso, esse tipo de comissão compreende-se como uma alternativa

aos países onde o Judiciário se mostra como um obstáculo, ao enfrentamento do

passado repressivo; assim como esclarece Torelly (2014), que apesar da verdade

produzida por meio de seus trabalhos não se tratar de uma “verdade judicial”, ela

não deixa de ser uma “verdade ajuizável”.

Como característica principal, verifica-se como extremamente importante

na perspectiva deste trabalho, que as comissões da verdade, conforme os descrito

por Priscilla Hayner apud Torelly, atribuem à vítima da violação um papel que o

processo judicial não dá. Assim, a coleta dos testemunhos das vítimas torna-se de

pelas Forças Armadas no passado para a prática de torturas e outras graves violações de direitos humanos. (...) Os relatórios e estas diligências, além de servirem como prestação de contas do trabalho da CNV em diversos temas, ajudaram, e muito, a divulgar o papel da comissão para toda a sociedade. (...) A CNV dedica um capítulo exclusivamente sobre a autoria das graves violações de direitos humanos, indicando nomes de mais de 300 agentes públicos e pessoas a serviço do Estado envolvidas em graves violações de direitos humanos. Neste capítulo também é analisado o papel do poder judiciário na ditadura. (...) Apresenta conclusões dos seis membros da CNV sobre o que foi apurado e as recomendações do colegiado para que não se repitam as graves violações de direitos humanos em nosso país.”, retirado do site da Comissão Nacional da Verdade, pela referência eletrônica : http://www.cnv.gov.br/index.php/outros-destaques/574-conheca-e-acesse-o-relatorio-final-da-cnv. Vale dizer, que o trabalho efetuado por esta comissão materializado no relatório apresentado, também pode ser encontrado neste sítio eletrônico.

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real importância para a verdade buscada pelas comissões da verdade: uma verdade

que inclua também a versão dos vencidos e oprimidos. Conforme Hayner apud

Torelly (2014, p. 412):

“Somente se solicita o testemunho das vítimas se este é necessário para respaldar uma determinada linha de ação do processo (...) não se chama mais que um muito pequeno número de vítimas e é possível que seus testemunhos sejam diretamente questionados pelos advogados de defesa”... Enquanto as comissões da verdade “ainda que possam investigar a participação nos abusos de determinados perpetradores individuais e receber dados-chave procedentes dos acusados e de outros integrantes do sistema repressivo, centram grande parte de seu tempo e atenção nas vítimas. Normalmente, recolhem depoimentos de uma ampla gama de testemunhas, vítimas e sobreviventes, e consideram todos esses relatos ao analisar e descrever a pauta geral de acontecimentos. Ao escutar a história das vítimas, quiçá em sessões públicas, as comissões dão voz a essas vítimas e fazem com que o conjunto da população de torne consciente de seu calvário.” (HAYNER apud TORELLY, 2014, p. 412, tradução nossa, grifo nosso)

3.3.

Testemunhos: justiça, verdade e memória

Reyes Mate, conduzido pela perspectiva de Walter Benjamin, tem

mostrado a importância da vítima para o processo político, defendendo sempre a

visão diferenciada que ela possui em relação aos acontecimentos, como

imprescindível a realização da justiça, ou melhor, da cessação das injustiças

presentes nas sociedades com histórico de violações dos direitos do homem.

Nesse sentido Mate (2005, n.p,) aposta que a versão das vítimas sobre o

passado “pode revolucionar o significado da vida pública” e que, portanto é

importante “saber como veem as coisas cotidianas, como valoram as prioridades

dos demais, o que é importante e o é secundário, o que esperam de nós, ou em

termos mais sonoros, como se situam frente a lógica da história.” 144(2005, n.p,

tradução nossa). Isso porque, é certo que a maneira como elas veem as coisas no

144 No original: “Conocemos el alcance de la mirada del político y del periodista con sus luces y sus sombras. Lo que puede revolucionar el significado de la vida pública es saber cómo ven las cosas cotidianas los ojos de las víctimas, cómo valoran las prioridades de los demás, qué es lo importante y secundario, qué esperan de nosotros o, dicho en términos más sonoros, cómo se sitúan frente a la lógica de la historia.” (MATE, 2005, n.p. online).

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presente, possui elementos de sua experiência, que só temos acesso por meio de

sua voz, e tais elementos revelam algo realmente importante sobre o presente que

vivemos. A recordação dolorosa de seu sofrimento vivenciado, “transmite o

núcleo da experiência interna do trauma” (ZAMORA, 2013, p.35), e por isso,

torna possível conhecer o interior da injustiça ocorrida.

Além disso, Mate afirma ainda que a vítima conhece melhor do que

qualquer pessoa o sentido do seu sofrimento, e possui um presente carregado de

ausências e invisibilidade, já que o seu passado, segue ignorado pelo

esquecimento da violação dos seus direitos. Enquanto sua condição não cessa,

significa que a injusta permanece. Se a injustiça permanece, e esta continua

invisível, consequências políticas variadas podem ocorrer, entre o ressentimento e

a repetição dos atos de violência não enfrentados e não lembrados.

Neste sentido, interessante apontamento faz Daniel Aarão Reis (2014, p.

171) na conclusão de seu livro Ditadura e Democracia no Brasil, quando afirma

que “é impossível pensar a história deste país, sem refletir sobre a ditadura,

porque são elos de uma mesma corrente”; e mais, que não adianta avançarmos

quebrando o espelho retrovisor e olhar inocente e candidamente para o futuro

(REIS, 2014, p. 171), pois temos uma história cuja ditadura faz parte, e que ela

não está lá no passado apenas, mas segue condicionando o presente por seus

efeitos.

Assim, é notável que os países que mantiveram a lógica do

esquecimento, semearam memórias latentes. No Brasil vemos isso, por exemplo,

nas demandas espalhadas pelo tempo desde a ditadura, que sempre reabrem as

feridas, sinalizando que o problema ainda está vivo. Isso ocorre porque ainda que

as instituições busquem avançar em direção do esquecimento – tendência que

pode ser observada no julgamento da ADPF 153, pelo Supremo Tribunal Federal

em 2010 – as vítimas lembram, denunciando na sua condição, a permanência da

injustiça.

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Sua memória traz o passado para o presente, transformando o ausente em

linguagem e conhecimento145 (SELIGMAN-SILVA, 2003, p. 48), pois a sua

experiência descortina a face suja da verdade, colocando a sociedade de frente

com um quadro de horror real. Onde se enxergava apenas em parte, passamos a

enxergar inteiro, pois a vítima complementa a história com sua vivência da

injustiça, trazendo o conhecer de um fragmento abandonado pelos vencedores.

Apesar do testemunho da vítima dar-nos a conhecer uma versão íntima,

ela que longe está de pertencer somente aquele indivíduo. Como mostra Reyes

Mate (2008b, p. 161), a memória da injustiça da vitima é pública. Não se encerra

no privado de sua vida, pois a permanência da injustiça, constante na violência

realizada pelo esquecimento hermenêutico de sua experiência, significa que ela

não fez parte da história, e essa exclusão de uma parte da sociedade, produz sua

fragmentação.

Sua versão é essencial tanto para que a verdade seja conhecida pela

sociedade, quanto para reparação do dano causado ao indivíduo que testemunha

(ainda que em alguns casos, seja apenas simbólica) e, tão especial quanto, também

para sua reintegração à sociedade de onde estava afastada e à margem; ou seja,

para que deixe a invisibilidade, figurando como real participante da narrativa

sobre o passado.

De acordo com as considerações de Dori Laub (1992), em seu livro

Bearing Witness, or the Vicissitudes of Listening, notamos que a vítima para

contar sua versão precisa de quem a ouça. Como coloca Calegari (2013), “não

basta que a vítima apenas narre sua experiência”. O falar da vítima possui um

propósito, como também o depreendemos de Primo Levi (1998), que é

simplesmente o sentido de fazer com que os outros conheçam o que aconteceu de

verdade. Como Paul Ricceur (2007, p.175), afirma: “há testemunhas que jamais

encontraram a audiência capaz de escutá-las e entendê-las”. Trazer o pesado

passado ausente para o presente é um esforço que só tem sentido se houver um

ouvinte.

145 “A linguagem/escrita nasce de um vazio – a cultura, do sufocamento da natureza e o simbólico, de uma reescritura dolorosa do “real” (que é vivido como um trauma) [...] A linguagem é antes de mais nada, o traço – substituto e nunca perfeito e satisfatório – de uma falta, de uma ausência.”

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Por essa razão, as Comissões da Verdade desempenham um importante

papel quando disponibilizam à vítima um local, onde possam lembrar e contar sua

versão, fazendo conhecidos seus sofrimentos não contados pela história. No

Brasil, mesmo com os mecanismos de obstrução do conhecimento do passado,

(como a lei de anistia e a barreira legal de acesso aos arquivos oficiais), não

faltaram indignados com a atitude do “virar a página”. De maneira que temos

riqueza de relatos daqueles que, conscientes da importante versão que trazem

consigo, não deixaram de falar, bem como daqueles que nunca se conformaram

com o desaparecimento de seus entes queridos, e sempre buscaram a verdade por

trás da facticidade (MATE, 2008b, 170) presente nos frios registros documentais.

Por essa razão, compreendi como importante ao trabalho, trazer alguns

recortes de relatos – contados em primeira pessoa por algumas vítimas da ditadura

que sobreviveram às barbaras torturas dentro de repartições militares, na década

de 1970 – nas sessões públicas organizadas pela Comissão da Verdade do Rio de

Janeiro, em 2013 e pela Comissão Nacional da Verdade em 2014146, como forma

de observar de que maneira a teoria da justiça das vítimas de Mate, pode ser

aplicada ao contexto brasileiro de violações pretéritas, realizadas sistematicamente

contra os opositores do regime ditatorial. Dessa forma, passo e maneira breve a

apresentar os casos que serão analisados no próximo item (3.3.1).

Dulce Pandolfi e Lucia Murat apresentaram em uma mesma sessão os

seus depoimentos às comissões nacional e estadual da verdade, no Rio de Janeiro,

em 28 de maio de 2013.

Nessa sessão de depoimentos prestados à comissão da verdade, Pandolfi

denuncia diversos episódios de abuso dos direitos humanos que foram cometidos

contra ela e outros detentos. Dentre elas, destaca-se aqui a acusação aos militares

que utilizaram métodos de tortura tanto para interrogatórios quanto para

146 Para a sessão organizada pela Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, 28.05.2013, temos os testemunhos de Dulce Pandolfi, e Lucia Murat. Para a audiência para ouvir os testemunhos das vítimas do DOI-Codi, na apuração do delegado Aparecido Laertes Calandra, o capitão Ubirajara, acusado de torturas e outras violações de Direitos Humanos no Doi-Codi nos anos 70, temos os testemunhos de Maria Amélia de Almeida Teles; Gilberto Natalini; Artur Scavone; Nilmário Miranda; Darci Miyaki; Adriano Diogo; Sérgio Gomes; e Calandra, o capitão Ubirajara. Todos estes testemunhos foram transcritos de gravações em vídeos das audiências, disponibilizados pela Comissão da Verdade do Rio de Janeiro e Comissão Nacional da Verdade.

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imposição de terror aos presos, ou que fizeram torturas para demonstração a

soldados recém ingressos aprenderem a executá-la. Dulce Pandolfi acusa também

diversos médicos que utilizaram as práticas da medicina para prolongar as torturas

por mais tempo ou para manter os detentos em recuperação, somente para, após o

tratamento médico, serem torturados novamente. Por fim, o fato mais grave é o de

que, em meio a essa violência, diversos assassinatos foram perpetrados pelos

torturadores, segundo denuncia Pandolfi.

Em seguida, foi apresentado na sessão mencionada o depoimento de Lucia

Murat, que em 1968, ano de sua primeira prisão, era vice-presidente do diretório

estudantil da faculdade de economia da qual participava. Nessa ocasião ficou

presa por uma semana, não tem sido torturada. No entanto, após dois anos e meio

vivendo em clandestinamente e em fuga, é presa novamente, em 31 de março de

1971, e durante essa detenção ela sofreu torturas.

Quando de sua segunda prisão, Lucia Murat conta em seu testemunho que

esteve presa primeiramente no Doi-Codi, no quartel localizado na Rua Barão de

Mesquita, na Tijuca, Rio de Janeiro. Já enfrentando tortura no Rio, mas por ter

tido contato com militantes baianos, Murat foi levada para Bahia, onde esteve

detida no quartel Barbalho, em Salvador. Dali foi transferida, a seguir, para a Base

Aérea Militar de Salvador, da qual novamente voltou ao Rio de Janeiro, para o

Doi-Codi. Então, três meses depois, foi reconhecidamente presa, passando a ser

legal e oficialmente uma detida do exército, o que a permitiu receber visitas

familiares e do seu advogado. Contudo, isso durou somente dois meses, ao fim

dos quais novamente foi levada ao Doi-Codi, sendo igualmente torturada. Ao

todo, suas prisões duraram 3 anos e meio.

Assim como Pandolfi, Lucia Murat também denuncia diversos casos de

abuso dos direitos humanos cometidos contra ela e contra outros presos com os

quais ela esteve em contato. Em seu depoimento, destacam-se as denúncias de

assassinatos cometidos pelos militares, que eram disfarçados de acidentes. Além

disso, Murat também relata torturas para interrogatório e torturas “científicas”,

como as denomina. Especialmente, relata o auxílio regular de médicos em

experimentos de tortura que se prolongavam por horas, para testar supostos

métodos “científicos”, fossem torturas sexuais, por temperatura, privação de sono,

determinados sons, etc.

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131

A partir de outra sessão de depoimentos à Comissão Nacional da Verdade,

no dia 12 de dezembro de 2013, acessei os testemunhos de outras sete vítimas da

repressão militar, e ainda, o depoimento do acusado de figurar como torturador no

Doi-Codi, o delegado Aparecido Laertes Calandra, que seria então conhecido pelo

codinome de capitão Ubirajara. Nesse grupo de relatos, além de outras

informações, os depoentes foram especificamente questionados sobre suas torturas

e sobre o seu reconhecimento de que o delegado Calandra seria o mesmo capitão

Ubirajara, que os torturara na ocasião de suas prisões.

O testemunho da vítima, Maria Amélia de Almeida Teles , presa politica,

sequestrada em 28 de dezembro de 1972, tendo estado no Doi-Codi, observa-se a

acusação de Calandra e outros de executarem torturas contra ela, e de exibirem

notícias falsas publicadas em jornais, em que assassinatos eram disfarçados em

acidentes, quando os detentos, conhecidos seus, haviam sido mortos naquele

mesmo quartel. Quando questionada, ela afirma positivamente tê-lo conhecido,

reconhecendo seu codinome: “capitão Ubirajara, como era conhecido lá o doutor

Aparecido Laertes Calandra”.

Há também o testemunho de Gilberto Natalini, atualmente médico

formado e vereador da cidade de São Paulo. Este senhor conta que foi preso em

1972, quando ainda era estudante de medicina, tendo sido levado ao Doi-Codi,

com passagens também pelo DOPS, no período de três meses em que esteve

detido. De maneira semelhante às outras vítimas, Natalini também relembra as

torturas sofridas durante seu interrogatório, e denuncia as graves violências

imputadas contra os presos no local. Da mesma maneira, também reconhece o

torturador: “O Calandra ele, chamado capitão Ubirajara, eu o conheci lá, eu me

lembro dele porque ele circulava nas salas de tortura, participava das sessões de

tortura”.

Outro ex-preso que testemunhou à CNV, Artur Machado Scavone, contou

que era estudante e participante da ALN à época de sua prisão. Relata que levou

cinco tiros em uma emboscada armada pelos militares para capturá-lo em 1972, e

após sua recuperação de saúde, ainda foi torturado no Doi-Codi, local onde

permaneceu preso. Scavone também denunciou notícias forjadas para acobertar

assassinatos como se fossem acidentes em tiroteios. Sobre suas torturas, ele

afirma: “eu fui de fato interrogado, torturado, e uma das equipes que me torturou

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foi aquela da qual o Ubirajara, que depois eu soube o nome que era o Calandra,

participava”

Nilmário Miranda, mais uma testemunha e vítima de tortura, relatou sua

primeira prisão em 1968, que durou 32 dias, estando detido no DOPS de Belo

Horizonte, da qual foi solto por habeas corpus. Vivendo, então, clandestinamente,

foi preso novamente no Rio de Janeiro, em 1972, tendo sido levado ao Doi-Codi,

e também ao DOPS em certos momentos, onde em ambos os locais sofreu graves

violências e torturas por parte dos militares, durante seu interrogatório. Do mesmo

modo que as outras testemunhas, Miranda também reconheceu o delegado

Calandra como sendo o torturador Ubirajara, e sobre o seu papel no Doi-Codi

afirmou que: “a tortura foi com o capitão Ubirajara, ele comandava”.

Darci Miyaki também testemunhou que foi presa no dia 25 de janeiro de

1972, no Rio de Janeiro, sendo conduzida ao Doi-Codi de São Paulo. Durante o

período em que esteve presa foi torturada e violentada gravemente, segundo seu

relato. Miyaki também testemunha da falsidade de notícias em jornais que

narravam mortes acidentais de certas pessoas que ainda estavam vivas e sendo

torturadas, antes de serem assassinadas. Sobre o delegado Calandra, então capitão

Ubirajara, ela também afirma: “Eu já tinha sido torturada por ele, pela equipe

dele, pessoalmente por ele”.

Adriano Diogo, atualmente deputado estadual, pelo Partido dos

Trabalhadores, testemunhou que à época em que foi preso era estudante de

geologia da USP, tendo sido sequestrado em sua casa e detido no Doi-Codi.

Tendo sido vítima de tortura, ele reconheceu seu contato com o delegado

Calandra, identificado como o mesmo torturador capitão Ubirajara relatado pelas

testemunhas supracitadas. Ele relatou que as mulheres eram prediletas por

Ubirajara nos momentos de tortura, e que “deixa-las nuas e humilhá-las e tortura-

las, era sua especialidade, a desmoralização”.

Sérgio Gomes, a última vítima cujo testemunho transcrevi, atualmente é

jornalista, sendo que na época de sua prisão participava como repórter estudantil

na organização de uma revista que servia para organizar a comunicação dos

trabalhadores e dos movimentos de resistência à ditadura. Este senhor descreveu

como foi perseguido até o momento de sua prisão e como foi levado ao Doi-Codi,

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onde sofreu tortura e presenciou diversos abusos pelos militares. Assim como os

outros, também reconheceu o delegado Calandra como sendo o então capitão

Ubirajara, e sobre ele diz o seguinte: “ele era uma pessoa que se colocava acima,

vinha exatamente conversar, fazia o trabalho de morde-sopra”.

3.3.1.

Análise dos Testemunhos

Ao contrário da reconciliação pactuada e da medida de transicional de

um perdão artificial com objetivo de pacificação social (decorrente da fragilidade

das democracias, pós-ditadura), a comissão da verdade é estabelecida como uma

maneira de atender novas demandas abertas, em especial aquela por verdade, já

que a Anistia, além de obstaculizar a justiça (pelo sentido da punição), provocou

efeitos em cascata, como o distanciamento histórico dos eventos injustos,

propiciando, naturalmente um desbotamento do tema nas pautas pós-

redemocratização.

Os testemunhos, que se alojam no interior das comissões, despertam-nos

para precariedade do sentido da anistia, pois se esta se orienta na ideia de perdão e

reconciliação nacional, quando ouvimos a vítima, tais premissas são dissolvidas.

As vítimas denunciam que a injustiça permanece, e que permaneceram ignoradas.

Sua narrativa, claramente, alude que precisam assumir o espaço dos sentidos

vazios, constitutivos das versões dos vencedores. O testemunho se contrapõe a

pretensões universalizantes de justiça, visto que tais pretensões continuariam

deixando a vítima à margem. O testemunho significa compreender os

acontecimentos pela versão daquele que o presenciou, conhecendo sua face mais

dura, e por isso, necessariamente invoca a sua importância para o conhecimento

da verdade.

É por isso que afirma Reyes Mate (2003, p. 167), que “contra o

esquecimento se ergue a voz da testemunha”, porque em países que sofreram com

a tendência do esquecer ou do “virar a página para avançar”, como o Brasil em

alguma medida, temos na voz daqueles que sofreram a violência, um potencial

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conhecimento da verdade, uma nova perspectiva de justiça. As vítimas, com sua

versão própria e singular, incluem os fatos inapreciados pela história, pelo direito,

pela filosofia, e possibilitam a sociedade de modo geral, a conhecer a realidade de

um passado injusto, de um país construído sobre o infortúnio de inúmeros

desconhecidos. Para Mate (2003, tradução nossa)147: “A testemunha é uma voz em

primeira pessoa que nos fala em nome da terceira pessoa.”

Assim, iniciando a série de testemunhos, há, em primeiro lugar, o

depoimento de Dulce Pandolfi, que como mencionado, sofreu torturas em 1970,

durante prisão nas dependências do DOI-CODI no Rio de Janeiro. Segue um

trecho de seu testemunho para Comissão da Verdade do RJ, em 28 de maio de

2013:

“Por acreditar que no Brasil de hoje a busca pelo ‘direito à verdade e à memória’ é condição essencial para nos libertarmos de um passado que não podemos esquecer, aceitei o convite da Comissão da Verdade do Rio de Janeiro para fazer hoje, aqui, esse depoimento. Mesmo sem nenhum mandato, quero falar em nome dos presos, torturados, assassinados e desaparecidos pela ditadura militar que vigorou no nosso país entre 1964 e 1985”.

Temos na visão da testemunha o que “o olho humano do cidadão

contemporâneo não suspeita” (MATE, 2003, tradução nossa). Quer dizer, o

testemunho daquele que viveu a violência compreende um lugar epistemológico

realmente importante, especialmente na reflexão sobre a justiça e sobre a história,

a despeito da relutância e estranhamento moderno com respeito ao papel da

testemunha, pois enxerga o testemunho como matéria próxima ao sentimento e à

subjetividade, descartando e ignorando a importância destes para o conhecimento

da verdade.

Reyes Mate (2011, p. 170, tradução nossa)148 aborda essa questão

dizendo que: “A figura da testemunha se converte assim em a porta giratória de

todo o olhar presente para o passado e de toda vigência do passado para o

presente”. Nesse sentido, percebe-se uma mudança lenta e é possível ver que aos

147 No original: “El testigo es uma voz en primera persona que nos habla en nombre de la terceira persona”. (Mate, 2003)

148 No original: “La figura del testigo se convierte así em la puerta giratória de toda mirada presente hacia el passado y de toda vigencia del passado em el presente”. (Mate, 2011, p. 170)

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testemunhos orais das vítimas da ditatura brasileira ocorrida entre 1964-1985, tem

sido atribuída, gradativamente, uma “importância política e ética” (CALEGARI,

2013), como forma de conhecer e enfrentar o passado repressivo, e especialmente

dar passos em relação ao conhecimento da verdade e a preservação da memória,

uma vez que ainda existem muitas questões abertas e obscuras, em relação ao

regime ditatorial, no Brasil, que merecem atenção e esclarecimentos.

Como segundo depoimento, escolhi o trecho retirado do testemunho de

Sérgio Gomes – jornalista e vítima da ditadura militar, ele foi torturado no DOI-

CODI de São Paulo, e em testemunho para Comissão Nacional da Verdade, narra:

“(...) nós estamos falando de uma inércia, de um sistema que engendra a policia contra a sociedade, isso é um absurdo para os policiais. É preciso que haja a necessidade de recuperação da democracia inteira.”

Assim, vemos aqui a reclamação da falta de consciência geral da

sociedade brasileira sobre a necessidade de reintegração, tanto de vítimas como de

perpetradores da ditadura. Como coloca Reyes Mate (2011, p. 18), sem o

testemunho “não se teria notícia do que foi perdido”, de modo que é de grande

necessidade atribuir um lugar onde a vítima possa falar.

Em seguida, temos mais dois trechos de depoimentos, por parte de

Adriano Diogo, vítima do DOI-Codi, em São Paulo, em audiência à CNV, e de

Lúcia Murat, também vítima de tortura no DOI-CODI, pronunciaram as seguintes

afirmações: 1) Adriano Diogo, em 08 de Janeiro de 2014 – “Então, é muito difícil

esse momento pra qualquer um de nós, viemos aqui pra contar a história do Brasil,

mas viemos falar dos fatos”. 2) Lucia Murat, em 28 de Maio de 2013 – “A única

maneira de combater aqueles que ainda torturam por esse país afora, é mostrar que

esse é – e sempre foi – um crime de lesa-humanidade”.

Mate (2003, p. 170) aponta que a testemunha sente-se impelida a falar a

ponto de que para algumas, esta se tornou a razão para viver. Neste sentido é que

o esquecimento torna-se tão grave e mostra-se como uma constante, quando se

olha do ponto de vista da vítima, pois esquecer, não obstante a violação física

sofrida imputa a ela a morte dos acontecimentos tão presentes, ainda, em sua vida,

apesar de ausentes da história.

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No Brasil, os militares tentavam evitar, por meio de ameaças aos presos,

que estes fizessem conhecidas as violações que sofriam e que passavam de modo

sistemático dentro das repartições militares. Sobre esse fator, é interessante notar

esse quinto trecho de depoimento, retirado do relato de Gilberto Natalini, vítima

de tortura no DOI-CODI, quando conta sobre o conselho dado por um dos

violadores, a época de sua soltura – segundo o relato, o conselho do torturador foi

o seguinte:

“Olha, você é estudante, tem um futuro brilhante pela frente como médico... sai fora disso, sai fora disso, porque se você continuar nisso nós vamos acabar com você. Você não vai continuar sua vida, porque nós vamos, nós temos meios de acabar com a sua vida, acabar com você. Então cala a sua boca, não fala mais nada, não conta o que você viu aqui, não conta pra ninguém o que você viu aqui.”

Nesse contexto, entendemos o valor embutido nessa real necessidade de

contar, que constitui a vítima, e da necessidade de ser ouvido, o que consiste em

uma das razões da valorização da narração de sua experiência, como elemento de

conhecimento da verdade. Felizmente, é possível observar, como Gilberto

Natalini, ainda que ameaçado pelo seu algoz, respondeu a esta violação

hermenêutica de seu sofrimento. Desafiando o silêncio, ele contou como agiu:

“Eu me lembro muito bem, fato inusitado, eu sai dali com esse conselho do doutor Calandra, né, do capitão Ubirajara, desci, abri o portão, eu sai na Tomaz de Carvalhal, andei até a Rua Pitoia, até tonto e tal, tomei um taxi e perguntei pro motorista do taxi: “O senhor sabe o que que é isso aqui?” Ele falou: “Não é uma delegacia?” Eu falei: “Não, isso aqui é o inferno brasileiro”. Comecei a contar pro motorista do taxi, nunca mais parei de contar o que eu vi ali, o que eu vivi ali. Porque eu não aceitei o conselho do capitão Ubirajara de calar a minha boca. Então, ele era um torturador, participou das torturas, me torturou e no final me deu esse conselho que eu não cumpri, graças a Deus. (Grifo nosso)

Mate (2011, p. 185) enuncia que a testemunha pede por meio de seu

testemunho que seja realizada justiça. Isso porque quando a vítima revela seu

sofrimento, como parte da realidade presente no acontecimento, ela denuncia que

há uma injustiça presente. É nesse sentido que compreendemos a formulação de

Adorno (apud ZAMORA, 2013, p.35) de que “o sofrimento dos outros se

converte, assim, no critério derradeiro da verdade, da justiça, do gozo não

disciplinado, do bem”.

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Quando a vítima, por meio do testemunho, expõe o sofrimento contido na

experiência vivenciada, produzido pelo processo de desumanização com que os

regimes costumavam atuar, há que se ver o traço de objetividade da injustiça: ela

produziu dores reais, que não podem ser ignoradas pela sociedade, ou conduzidas

à mera lembrança dos fatos como sentimentos149. Assim, Zamora (2013, p. 29)

que concorda com Mate em muitos aspectos, refletindo sobre a perspectiva

adorniana a respeito do sofrimento, diz que este:

“Concede ao sujeito que sofre uma relevância objetiva, na medida em que sua experiência de sofrimento individual é ao mesmo tempo uma alavanca com a qual se abre uma brecha na totalidade social coativa, desmascarando a violência social em seu coativo e destrutor, nomeando-a como violência injusta” (ZAMORA, 2013, p. 29).

Por sua vez, isso afasta a tentativa de redução do testemunho a mera

lembrança e subjetividade, pois vemos em que medida o sofrimento da vítima é

preenchido de objetividade. Pela compreensão de “tornar eloquente o sofrimento”

(ADORNO apud ZAMORA, 2013, p.37), como condição da verdade, é que

trabalhamos os próximos fragmentos dos testemunhos.

Ao contarem alguns dos sofrimentos relativos à tortura, que revelam as

injustiças vivenciadas, a testemunha nos aproxima do absurdo vivido, mesmo que

ao procurar as palavras com dificuldade, ou que se torne difícil de elaborar o

indizível, a vítima “sabe que nunca poderá dar-se a entender verdadeiramente, que

nunca poderão os demais saber o que ali ocorreu, porque essa experiência é

incomunicável” (Mate, 2003, tradução nossa)150. Neste mesmo sentido, Zamora

(2013, p.35) afirma: “Trata-se de uma dificuldade que os testemunhos revelam

àquele que esteja disposto a escutar”.

Vemos mais algumas pequenas reflexões das vítimas durante o

testemunho, na audiência organizada pela Comissão Nacional da Verdade. Em um

sexto trecho retirado, retiramos do depoimento de Nilmário Miranda, uma

tentativa de organizar os fatos, para torná-los compreensíveis para si e para o seu

149 Adorno apud Zamora (2013, p. 29): “o sofrimento é objetividade que pesa sobre o sujeito; o que experimenta como o que é mais subjetivo dele, sua expressão , está mediado objetivamente”

150 No original: “sabe que nunca podrá darse a entenderse verdadeiramente, que nunca podrán los demás saber lo que allí ocurrió, porque esa experiência es incomunicable”. (Mate, 2003)

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ouvinte, ainda que de difícil elaboração. Contudo, vítima de tortura sob esse

regime militar, ele faz este esforço de apreender o que se passou, dizendo que:

“Procurar lógica na tortura é difícil, mas o que me chamou atenção foi isso, não tinha mais aquela urgência de interrogar pra tentar pegar outras pessoas. Era mesmo pra torturar, pra desestabilizar, pra mostrar que faz o que quiser, que tem o poder sobre seu corpo, sobre sua vida, pra demonstrar isso, pra tentar te intimidar, pra te provocar o medo.”

Voltando ao relato de Lucia Murat, esta captura de modo semelhante do

espírito da tortura, contando publicamente, em detalhes de foro íntimo, as torturas

que sofreu, para delas tentar depreender o sentido que lhe falta para tamanha

barbárie. Ela nos diz:

“A brutalidade do que se passa a partir daí confunde um pouco a minha memória. Lembro como se fossem flashs, sem continuidade. De um momento para outro, estava nua apanhando no chão. Logo em seguida me levantaram no pau de arara e começaram com os choques. Amarraram a ponta de um dos fios no dedo do meu pé enquanto a outra ficava passeando. Nos seios, na vagina, na boca”.

Ainda sobre a brutalidade do tratamento, recortamos em outro trecho do

mesmo depoimento de Dulce Pandolfi, a seguinte descrição:

“Meu corpo parecia um hematoma só. Por conta, sobretudo, da grande quantidade de choque elétrico, fiquei com o corpo parcialmente paralisado. Achava que tinha ficado paralítica. Aos poucos fui melhorando. Fiquei um bom tempo sem descer para a sala roxa. Mas, ouvir gritos dos outros companheiros presos e ficar na expectativa de voltar, a qualquer momento para a sala roxa, era enlouquecedor”.

Por meio dos testemunhos das vítimas, séries de formulações são

possíveis de serem desfeitas, como por exemplo, a versão a respeito das mortes

veiculadas pela mídia aliada do sistema de repressão da época, a reconstituição de

acontecimentos maquiados pelo sistema, como forma de abuso da memória, e

manutenção da impunidade.

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Sobre este aspecto, Mate (2011, p. 218, tradução nossa)151 nos indica que

“a memória ou a visão dos vencidos é o único olhar capaz de descobrir além da

aparência de naturalidade, a história real e, por tanto, a responsabilidade

histórica”. Isso nos permite conhecer, a realidade de inúmeros acontecimentos,

que foram massificados de forma mentirosa pela mídia da época, e que entraram

para história por meio da versão dos vencedores.

Neste sentido, vale elucidar na coletânea de depoimentos pesquisados

para este trabalho, uma prática recorrente no DOI-CODI, à década de 1970, em

que constam relatos de que a versão a respeito da morte de algumas vítimas eram

anunciadas na mídia, ocultando completamente o que realmente ocorrera, por

meio de distorções. Abaixo, veremos como contam as vítimas que vivenciaram,

de forma semelhante entre si, a indignação de perceber a falsificação dos fatos em

relação a morte de seus companheiros.

Neste trecho do sétimo depoimento que analisamos, Maria Amélia de

Almeida Teles, vítima de tortura no DOI-CODI, em 1972, percebemos um

aspecto recorrente nos relatos de diversas vítimas – a publicação falsa de mortes

de presos assassinados em tortura, ou mesmo ainda vivos e prestes a serem

executados. Amélia relata o seguinte acontecido, ao ser abordada por um

torturador que lhe mostrava o jornal:

“E no jornal estava escrito assim: ‘Terrorista morto em tiroteio’. O terrorista morto em tiroteio tinha uma foto do lado, que eu não conseguia nem ler as letrinhas, eu só via as letras garrafais: ‘Terrorista morto em tiroteio’, e tinha a foto do Danielli. E eu falei com ele: ‘Mas isso é uma mentira que vocês estão fazendo, porque o Danielli foi morto aqui nessa sala’ (...) Esse jornal trazia uma versão mentirosa e eu falei isso com ele. E ele falou assim: ‘Estou falando com você friamente, aqui as mortes de vocês nós damos a versão que nós queremos. E você, se não colaborar, você também pode ter uma manchete como esta, ou amanhã ou depois, nós não temos pressa, mas você fique sabendo disso’”.

Em mais estre trecho, do oitavo depoimento analisado, Darci Miyaki,

presa e vítima de tortura no DOI-CODI, em 1972, vemos novamente o uso do

mesmo artifício de falsidade e de inspiração de terror aos presos, com tal certeza

151 No original: “la memoria o visión de los vencidos es lá única mirada capaz de descobrir tras la apariencia de naturaliza, la historia real y, por tanto, la responsabilidade histórica”. (Mate, 2011, p. 218)

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de impunidade que chegaram a anunciar falsas mortes de presos ainda vivos. Ela

relata o seguinte:

“(...) No dia 28 de janeiro já era anunciada a morte em tiroteio do companheiro Hélcio Pereira Fortes. Não é verdade, ele estava comigo, na mesma viatura, sendo trazidos do Rio de Janeiro para São Paulo, então eu quero registrar esse fato. Essa noticia foi divulgada tanto pela mídia falada quanto televisiva. (...) Eu gostaria que retificasse a data do assassinato dele, ele não morreu no dia 28 de janeiro. Provavelmente, ele morreu entre dia 30-31 de janeiro.”

Não obstante estes tipos de práticas, que traduzem a procedência abusiva,

ilegal, e arbitrária durante o governo militar, seus métodos não paravam nestas

condutas. Enxerga-se como a significação atribuída à vítima, além da dor

produzida pela tortura, permaneceu inquietando-as, durante o tempo.

Característica comum aos governos repressivos era o de inverter os papéis,

negando a vítima sua condição de vítima, mas ao contrário, reputando a ela culpa,

sob o rótulo de “terrorista”, ou “subversiva”.

Essa inversão fica clara em outro trecho da mesma fala de Darci Miyaki,

em audiência a comissão da verdade, ela diz:

“Eu gostaria de esclarecer que embora na ditadura nos chamassem de terroristas, não éramos terroristas. Nós éramos jovens idealistas com o dever de lutar contra uma ditadura, nós tínhamos esse direito e o dever principalmente. Por quê? Antes do golpe militar, tínhamos uma constituição, tínhamos um presidente eleito. O maleficio causado pela ditadura militar não foi somente em relação a nós militantes, mas também ao povo”.

A versão das vítimas tem impacto, e abre a reflexão de que onde vemos

uma repartição normal nos dias de hoje, elas enxergam o horror vivenciado no

passado. Com assombro passamos a conhecer o interior dos acontecimentos, de

forma que eles passam a nos atravessar, e ganham nova significação, abrindo o

passado à novos questionamentos. Dessa forma, compreendemos que o dever de

lembrar, significa a consciência da barbaridade produzida e que não estamos

conformados com a injustiça dela provenientes. Como afirma Mate (2005, n.p.

tradução nossa), “ao expor publicamente sua dor, obrigam à política a definir-se

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como duelo. As vítimas fazem público seu duelo ao dizer-nos que os danos que

causa o terror são injustos”152.

A importância da memória da vítima, nesse processo, é condutora na

reflexão sobre a brutal realidade do regime e, portanto, aquela que pode trazer a

perspectiva do Nunca Mais. No contexto brasileiro, Daniel Arão Reis (2014,

p.171), nos diz sobre as ditaduras repressivas que “por incrível que pareça, elas

não foram construídas por extraterrestres nem por ‘monstros’, e sim por seres

humanos, aliás, eram brasileiros natos”.

Como Reyes Mate (2008b, p. 169) indica que o imperativo categórico

adorniano formulado pós-Auschiwitz, a respeito da não repetição da barbárie,

trouxe algo inédito, que não foi a barbárie em si. O mundo sempre fora um lugar

inseguro de violência. A novidade, contudo, seria que o “sofrimento do outro”,

produto desta brutalidade, não conseguiu se invisibilizar, como normalmente teria

feito.

Assim, se antes o sofrimento era considerado algo insignificante, esse

evento trágico da história do mundo, passa a introduzir a ideia de que o sofrimento

do outro deveria ser a condição de toda verdade (MATE, 2008b, p.170). Portanto,

a memória do que ocorreu, bem como a memória da experiência de negação da

figura do outro, deveria ser lembrada, para não ser repetida, e para que a figura do

outro, pudesse ser o lugar da construção do respeito. Neste sentido, começando,

primeiro pela preocupação de ouvir a versão daqueles que sofreram, Annette

Wieviorka (apud SELIGMANN, 2003, p.80), fala de uma “era do testemunho”,

mostrando que “ o testemunho é o vetor dessa nova disciplina” e que “nele, de um

modo característico para a nossa pós-modernidade, o universal reside no mais

fragmentário”, no relato e na narrativa de cada vítima.

Como Mate (2008b, p.170) explica o imperativo de Adorno não falava

diretamente sobre o dever da memória. O novo imperativo categórico estava

direcionado a um novo exercício, de “repensar a verdade, a política e a moral,

tendo sempre em conta a barbárie” (ADORNO apud MATE, 2008b, p. 170,

152 Do original: Al exponer públicamente su dolor, obligan a la política a definirse como duelo. Las víctimas hacen público su duelo al decirnos que los daños que causa el terror son injustos. (Mate, 2005, n.p., online).

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tradução nossa). Isso se torna um aprendizado para os tempos futuros, marcados

com outras guerras, com novos conflitos, onde se enquadram as ditaduras latino-

americanas, cujo Brasil está inserido. Isto é, as novas histórias de violações de

direitos humanos, que viriam a marcar o mundo.

Assim, Reys Mate parafraseando Jorge de Santayanna, afirma que se é

certo que “os povos que esquecem sua história estão condenados a repeti-la”

(IHU, 2009, n.p.), então é necessário compreender, encarar e lembrar que a

história da ditadura brasileira fez muitas vítimas, através do uso da violência pelo

Estado, causando rupturas e provando injustiças, que devem ser suturadas e

reparadas.

Se hoje para nós parece muito absurdo que dentro do Brasil a negação do

outro, causando a ele sofrimentos sem dimensão, e se mostre algo muito afastado,

é nos aproximando da memória daqueles que vivenciaram tais acontecimentos e,

portanto, nunca irão se esquecer, é que podemos nos manter lúcidos sobre a

realidade do passado, através de sua presentificação.

Com base nisso, destacamos abaixo alguns fragmentos da narrativa de

vítimas para a Comissão Nacional da Verdade e do Rio de Janeiro, que fazem um

paralelo entre si, e atestam a negação da alteridade por parte do regime militar

brasileiro, e o processo de desumanização em que consistira a tortura fazem parte

desse dramático período histórico brasileiro. Seguem os trechos:

Lucia Murat – “(...) a tortura era progressiva, feita de idas e vindas, de

ameaças e da nossa certeza, permanentemente alimentada por eles, que tudo

poderia recomeçar a qualquer momento. O objetivo era, pouco a pouco, nos

anular, como pessoas e como militantes”.

Dulce Pandolfi – “O professor, diante dos seus alunos, fazia demonstrações

com o meu corpo. Era uma espécie de aula prática, com algumas dicas

teóricas. Enquanto eu levava choques elétricos, pendurada no tal do pau de

arara, ouvi o professor dizer: ‘essa é a técnica mais eficaz’”.

Gilberto Natalini – “Eu fui submetido a choque elétrico, a espancamento, e

uma série de outras coisas que eu nem gostaria muito de detalhar. (...) eles se

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revezavam na maquininha de choque, eles se revezavam (...) depois que

batiam bastante, judiavam bastante, eu, por exemplo, tive meus dois ouvidos

muito machucados por choque elétrico, sangrei por vários dias dos ouvidos, e

perdi a audição esquerda, do ouvido esquerdo e do ouvido direito, eu tenho

uma audição bem reduzida por conta das sequelas que ficaram daquele

episódio”.

Nilmário Miranda – “Preso e junto com outros companheiros da minha

organização. Torturas, muita tortura, e num certo momento eu fui levado ao

DOI-CODI (...). E no DOPS inclusive as torturas são pesadíssimas e super

rápidas pra ver se te quebram logo pra te forçar a denunciar companheiros”.

Darci Miyaki – “Choques elétricos no ouvido, nos dedos dos pés, das mãos,

muito choque na vagina, muito. Então, para nós mulheres, eu acho que pros

companheiros também, é alguma coisa muito violenta, e eu já relatei esse fato,

é algo... não é nem nojento, eu não sei descrever o que significa para uma

mulher um torturador introduzir o dedo com fio elétrico na sua parte mais

intima. Sabe? Isso me marcou muito, me marcou tanto (...) quando eu tomava,

me davam café da manhã, eu sabia que aquela manhã eu não seria torturada;

quando não me davam almoço, eu sabia que eu ia ser torturada”.

Sérgio Gomes – “Acho que as pessoas hoje tem grande dificuldade de

perceber que aquilo era uma coisa natural, os gritos ali do DOI-CODI eram

ouvidos pela vizinhança, o mercado imobiliário ali perto era mais barato por

causa da ... todo mundo sabia (...) No meu caso, eu fiquei vários dias sem

beber e sem comer, e com sal na boca, minha língua inchava, e com essa coisa

dos choques batia e foi cortado de um lado e do outro, fiquei com uma

inflamação gengival muito grande”.

Diante dos testemunhos das vítimas – que, como vimos na perspectiva

trazida por Mate é imprescindível ao conhecimento da verdade – abre-se uma

demanda de justiça a ser realizada. Mate (2008b, p. 168) afirma, que “justiça e

memória são indissociáveis, uma vez que sem a memória da injustiça não há

justiça possível”. Mas explica, contudo, que na justiça da vítima não esgotam

todas as possibilidades “deste continente chamado justiça, pois supõe um enfoque

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singular que deveria afetar ao rumo de todo o continente” (MATE, 2003, p. 259,

tradução nossa)153.

Quando pensamos em justiça das vítimas, estamos falando de uma que

pode ser vista de duas formas, uma que consiste em reconhecer que a visão

singular da vítima sobre a realidade, e assim tomar por necessário, que esta visão

seja incluída na versão tradicional dos fatos, que em geral, não apresentam a

mesma realidade apresentada pela vítima, uma vez que os novos elementos da

realidade revelados têm a ver com a experiência injusta vivenciada. A versão dos

vencedores, por regra, ocultam tais versões, e a visão da vítima seria, portanto,

“algo que escapa ao verdugo ou ao espectador, ou seja, o significado do

sofrimento declarado insignificante pela cultura dominante”. (MATE, 2003, p.

258, tradução nossa)154

Dessa forma, o reconhecimento sobre o qual se fala é aquele que confere

a visão da vítima um elemento diferente, mas profundamente relevante para o

conhecimento da verdade, e identificação da injustiça. Sua versão dos eventos

transporta a injustiça do passado para o presente, e diferente da perspectiva de

uma razão moderna, limitada a considerar o real, como aquilo que teve força

suficiente, na memória coletiva, para tornar-se realidade, há por meio da versão

dos vencidos, uma dimensão mais alargada do que tem sido declarado como

realidade (MATE, 2003).

A mentalidade moderna propõe que “os caídos no caminho são

declarados irreais porque não fazem parte da realidade e do sofrimento,

insignificante, pois a história se mede pela força de seu conatus e não pelo preço

que há de pagar.” (MATE, 2003, p. 258, tradução nossa)155

A visão da vítima reclama contra a injustiça presente nesta dinâmica,

isto é, de ter sua experiência marginalizada e ignorada, pelo fato de a maneira

153 No original: “de este continente llamado justicia, pero sí supone um enfoque singular que debería afectar al rumbo de todo el continente”. (Mate, 2003, p. 259)

154 No original: “algo que escapa al verdugo o al espectador, a saber, el significado del sufrimiento declarado insignificante por lá cultura dominante”. (Mate, 2003, p. 258)

155 No original: “los caídos em el caminho son declarados irreales porque no forman parte de lá realidade y el sufrimiento, insignificante, pues la historia se mide por lá fuerza de su conatus y no por el precio que hay que pagar”. (Mate, 2003, p. 258)

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como se é depurada a realidade, levar em consideração aquilo que se afirma pela

força. Entre os testemunhos apresentados acima, por exemplo, vimos a tendência

a distorções do regime militar, direcionando uma versão sobre as mortes que eles

mesmos causaram; atribuindo às vítimas definição não de pessoa injustiçada, as

merecedora da violação sofrida.

Por isso, justiça da vítima, no genitivo ablativo, significa também

consciência da responsabilidade sobre o presente estar assentado sobre muitas

injustiças, com a compreensão de que o tempo transcorrido, não foi suficiente

para abater a injustiça realizada, pois esta permanece no passado ausente. No caso

dos mortos, sugere Mate que “ainda que o assassino não possa devolver a vida à

vítima, a injustiça segue vigente”. (MATE, 2003, p. 258, tradução nossa)156

Por esta razão a justiça da vítima, exige a memória, uma vez que é por

meio dela que se “atualiza a injustiça passada, salda a dívida, só a faz presente, e

tem como consequência interpretar a política como duelo”. (MATE, 2003, p. 258,

tradução nossa)157 A memória da vítima reabre feridas e coloca diante da

sociedade a responsabilidade da geração presente lidar com o passado,

enfrentando-o, para que esta condição de injustiça seja superada e cesse.

Por isso, Mate (MATE, 2003, p. 259) reflete que parece que todos estes

contextos de violência contra o homem parecem ter nos conduzido e imunizado

contra a compaixão, contra a memória ou contra a justiça, por isso, a visão das

vítimas se apresenta como um alarme: “o olhar das vítimas é como o último cabo

em que pode agarrar-se o homem que não renunciou ao projeto de humanizar a

vida do homem no mundo.” (MATE, 2003, p. 259, tradução nossa)158.

Na perspectiva da justiça memorial, defendida por Mate, a reconciliação

é a maneira de se suturar as fragmentações causadas pelas injustiças advindas da

violência. Assim, para recomposição ética da sociedade fragmentada pela

156 No original: “aunque el asesino no pueda devolver lá vida a lá víctima lá injusticia sigue vigente”. (Mate, 2003, p. 258)

157 No original: “actualiza la injusticia passada salda la deuda, sólo la hace presente, y tiene como consequência interpretar la politica como duelo”. (Mate, 2003, p. 258)

158 No original: “la mirada de las victimas es como el ultimo cabo al que puede agarrarse el hombre que no há renunciado al proyecto de humanizar la vida del hombre en el mundo”. (Mate, 2003, p. 259)

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violência, além do olhar da vítima sobre os acontecimentos passados, presente no

seu testemunho, como maneira de se tornarem conhecidas as injustiças presentes

nos acontecimentos, importante se faz também que o violador seja confrontado

com o sofrimento que causou a vítima, como explicado no capítulo anterior.

No Brasil, vista a maneira como foi realizada a transição entre regimes, e

dados os obstáculos impostos pela Lei de Anistia, e sua legitimação na ordem

democrática, com o julgamento da ADPF 153 pelo STF (ainda que contrária ao

direito internacional), vemos a iniciativa da Comissão Nacional da Verdade, no

cumprimento de seus trabalhos de promover esta sutura à fragmentação social,

ocasionada pela violência. Aqui exploramos uma dessas iniciativas, por meio de

audiência organizada pela CNV, quando convocara o sr. Aparecido Laerte

Calandra, ex-agente, que servira no Doi-Codi (Destacamento de Operações de

Informações do Centro de Operações de Defesa Interna), do II Exército, em São

Paulo, denunciado como torturador nos relatos de muitas vítimas.

Após o testemunho dos sete ex-presos políticos (Maria Amélia Almeida

Teles, Gilberto Natalini, Darci Miyaki, Sérgio Gomes, Adriano Diogo, Nilmário

Miranda, e Artur Scavone) sobre as torturas sofridas e relatos categóricos a

respeito do contato que tiveram com o torturador nas dependências do DOI-

CODI, o Sr. Aparecido Laerte Calandra – atualmente, delegado aposentado da

Polícia Civil – cumprindo a convocação realizada pela Comissão Nacional da

Verdade, prestou seu depoimento, negando ter praticado atos de tortura, de

conhecer as vítimas e de fazer parte da linha de comando da repressão, com a

alegação de realizar apenas trabalhos burocráticos durante os oito anos de serviços

realizados.

O Sr. Calandra primeiramente negou, quando questionado se teria

exercido suas atividades no Doi-Codi, afirmando que sua função estava

relacionada apenas a de assessor jurídico do 2º Exército. Contudo, foi confrontado

pelos membros da CNV (Pedro Dallari e José Carlos Dias), que apresentaram

vários documentos onde continham sua assinatura à época de seu serviço nas

dependências do Doi-Codi, que à época funcionava como Centro de tortura.

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Apesar disso, o Sr. Calandra afirmara nunca ter tomado conhecimento das

atividades realizadas, exceto as burocráticas, de sua competência159.

Após, o Sr. Calandra fora interpelado também a respeito da natureza de

suas funções, isto é, em que suas tarefas de assessoria consistiam, ao que que ele

respondeu que correspondiam a confecção de autos de apreensão, e outras

requisições. Contudo, novamente fora confrontado pela CNV que apresentou uma

ficha funcional da Polícia, data de 14 de abril de 1977, onde registrara-se um

elogio em ofício pelo 2º Exército a "eficiência e dedicação, na execução das mais

diversas atividades, durante o ano de 1976, visando à consecução dos objetivos

propostos no combate à subversão e ao terrorismo, como integrante do Sistema de

Informações do 2º Exército". A esta alegação o Sr. Calandra afirmara, que tratava-

se de elogio a função burocrática desempenhada, a despeito de constarem no

documento as palavras “ combate à subversão e ao terrorismo” – atividade que o

mencionara nunca ter tomado conhecimento.

O sr. Calandra alegou também nunca ter ouvido ou visto nenhum vestígio

de tortura, nas dependências do Doi-Codi (“Nunca ouvi e nunca vi nada que

indicasse isso”) e que não acredita que ela tenha existido tortura até hoje, quando

questionado (“Não acredito, porque eu não vi, eu não posso falar uma coisa que

eu não vi”), sob argumento de que não tinha acesso ao interior das dependências,

além do local onde desempenhara suas tarefas. Alegara conhecer apenas seu

escrivão, e um restrito número de pessoas que atuavam no Doi-Codi (“Não, ali

não tinha contato com ninguém. Só cumpria o que me mandavam”); que nunca

recebera nenhuma informação sobre o que ocorria, rotineiramente, dentro do Doi-

Codi (“Eu nunca ouvi referência nenhuma a isso, porque o assunto não chegou

para mim.”); e que nunca fora conhecido como capitão Ubirajara, atribuindo

159 Esta reiterada argumentação proposta por Calandra sobre suas funções burocráticas, aduz ao julgamento de Adolf Eichmann (ver mais em ASSY, B. A., “Eichmann, Banalidade do Mal e Pensamento em Hannah Arendt”. In: Eduardo Jardim de Moraes; Newton Bignotto. (Org.). Hannah Arendt - Diálogos, Reflexões, Memórias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2001, v.p. 136-165., e ainda, “Da Banalidade do Mal - Hannah Arendt e o julgamento de Eichmann em Jerusálem – Carvalho, 2012) a respeito do qual Hannah Arendt dedicou-se a refletir, à época. Semelhantemente, Eichmann – “um dos arquitectos da Solução Final, do desenho dos campos de concentração nazi para eliminação dos cidadãos indesejáveis, responsável pela identificação, deportação e extermínio de milhões de judeus para os campos de concentração nazis” (Carvalho, 2012, p.1) – alegara inocência contra as acusações de que era alvo, dizendo que somente cumprira ordens, enquanto funcionário do Estado Alemão, durante o nazismo.

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engano de pessoas (“Esses testemunhos eu não sei, a pessoa fala o que acha que

deve falar né?”) , em relação às reiteradas acusações realizadas contra ele.

Publicado o relatório da Comissão Nacional da Verdade160, em 10 de

dezembro de 2014, o Sr. Aparecido Laerte Calandra, aparece sob o número 159,

entre aqueles que participaram de torturas e execuções contra ex-presos no Doi-

Codi São Paulo.

A crítica despertada por meio da justiça anamnética em relação à justiça

de transição, tradicionalmente estudada, é de que esta possui carências no sentido

de favorecer uma perspectiva restaurativa e reparativa de justiça, que preocupa-se,

como sugere Zamora (2013, p. 44), com a vítima mais como um “problema a ser

resolvido, para fins do restabelecimento de paz ou da reconciliação”, do que a

vítima como o centro de onde se deveria pensar a justiça.

Por meio da atuação da Comissão Nacional da Verdade, em dar voz às

vítimas, ouvindo seu testemunho, como uma tentativa de “escovar a história a

contrapelo”, observamos um espaço de centralidade para a vítima, que passou a

ocupar um espaço que não existia, com esta expressividade. Vemos a iniciativa de

confrontar a verdade firmada pelos vencedores e sua resistência, que é percebida

por meio do enorme muro do silêncio estabelecido pelos militares, que tem

negado, distorcido e mentido sobre as práticas comprovadamente realizadas por

eles.

Vale dizer, que pela perspectiva de Mate, tais iniciativas são essenciais

para que vítima possa recuperar sua dignidade violada – e no Brasil, podemos

dizer sobre aqueles que conseguiram, por meio da memória, ao menos iniciar o

160 RELATÓRIO FINAL DA CNV, VOLUME 1, Parte IV, Capítulo 16, p. 880. 159) Aparecido Laertes Calandra (1940-) Delegado de polícia. Serviu no Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS/SP) e atuou no Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) do II Exército, em São Paulo, usando o codinome “doutor Ubirajara”. Sua ficha funcional na Polícia Civil de São Paulo registra ofício do II Exército, datado de 14 de abril de 1977, com elogio por “eficiência e dedicação, na execução das mais diversas atividades, durante o ano de 1976, visando à consecução dos objetivos propostos no combate à subversão e ao terrorismo, como integrante do Sistema de Informações do II Exército”. A partir de 1983, quando o delegado Romeu Tuma assumiu a função de superintendente da Polícia Federal, transferiu-se para esse órgão. Teve participação em casos de tortura e execução. Convocado pela CNV em novembro de 2013, prestou depoimento em que sustentou que cumpria funções burocráticas no DOI-CODI de São Paulo. Recebeu a Medalha do Pacificador em 1974. Vítimas relacionadas: Luiz Eduardo da Rocha Merlino (1971), Eleonora Menicucci de Oliveira, Flora Strozenberg, Darci Toshiko Miyaki e Hélcio Pereira Fortes (1972).

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processo de “lançar fora” o estigma a si atribuído, estabelecendo uma nova

significação (desta vez com sua versão dos fatos, como componente da verdade)

sobre os acontecimentos vivenciados durante a ditadura.

É prematuro tentar formular respostas sobre o momento brasileiro, de

recente publicação do relatório. Uma medida como esta, como observado, se

estende em muitas direções, valendo um estudo aprofundado a seu respeito. No

entanto, é válido ressaltar um ponto significativo em relação à teoria trabalhada

por Mate, levando em consideração o contexto atual da transição no Brasil. À

respeito de uma justiça memorial, isto é, uma justiça que pensa a vítima como

central para realização de medidas de enfrentamento com o passado, isto é, em dar

espaço e lugar a sua voz, ao mesmo tempo, confrontando os violadores (ainda que

silenciosos): temos avançado.

A publicação do Relatório da Comissão Nacional da Verdade, com a

divulgação das pesquisas, estudos e recomendações realizadas foi uma conquista.

Ter uma iniciativa de inclusão da história dos vencidos, a divulgação das

experiências injustas que compõem o quadro brasileiro, e a amplitude das

informações que, hoje, temos a respeito desta fase obscura, é de grande

importância. Este relatório, certamente abrirá novas demandas que integrarão o

complexo quadro sobre a transição brasileira.

Como mostra Mate (2001, n.p., tradução nossa) “as vítimas tem voz

própria, e não devemos permitir que nada a substitua nem, por suposto, a

esqueça”. Assim, considerando seu papel fundamental, para o conhecimento da

memória, importantes tem sido as oportunidades, em âmbito nacional, de

conhecer seus relatos. Como é sabido as medidas históricas de esquecimento tem

atentado contra vítima, justamente no sentido de calar sua versão. Sufocá-la de tal

maneira, que não seja possível ouvi-la.

A visão das vítimas constitui uma potência de transformação social, ética

e política tão forte, que “há quem tenha se encarregado de falar por elas” (Mate,

2005, n.p., tradução), sabemos. Por isso, constata-se a importância de espaços

onde elas possam falar por si mesmas, como foi observado nos breves trechos

apresentados de seus relatos. Trata-se de uma versão incômoda, pelo fato de

denunciar as injustiças ainda vigentes, reabrindo expedientes que os projetos de

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esquecimento poderiam dar como encerrados. Nesse sentido, ver as acusações

peremptórias das vítimas, e o confronto com versão contraditória de seu torturador

sr. Calandra, provoca grande impacto na história do processo transicional

brasileiro. Vale dizer, que marca também, diante do algoz, um momento que a

vítima deixa de ser invisível.

Ademais, conforme observado, conhecer o passado e as injustiças contidas

nos eventos “esquecidos”, que por oficial não incluíam a versão das vítimas,

proporciona uma ruptura no caminho da violência continuada. Torna possível

compreender que parte da violência presente, embora sob nova forma e

interpretada por novos atores, tem raízes profundas em um passado violento e não

enfrentado, ou ignorado.

Darci Mivaki , uma das ex-presas políticas, vítima de tortura no DOI-Codi

de São Paulo, afirma neste sentido: “ Esses fatos são fatos educadores, que vão

formar as novas gerações. Caso não façamos isso, os “Amarildos”161 continuarão,

porque tudo continua igual. As delegacias torturam, matam, sequestram, e

desaparecem com os corpos”

Essa fala é especialmente emblemática para o que temos afirmado sobre a

concepção benjaminiana trabalhada por Reyes Mate a respeito da violência

herdada. Quando a sr. Mivaki, denuncia a truculência da polícia militar nas

delegacias do presente, ela revela que nossa realidade mantém um vínculo com

nosso passado, e que este presente foi construído sobre um histórico de

brutalidade, e entrelaçado a violência histórica (e não resolvida), repleta de

arbitrariedades e abusos.

Nesse sentido, conhecer o passado e o sofrimento daqueles que

sobreviveram à clara violência do Estado pode inaugurar uma reflexão social a

respeito de novos rumos a serem estabelecidos; rumos onde a violência tenda a ser

considerada pelo significado destrutivo que possui; onde possa haver uma

consciência ampliada a respeito da responsabilidade existente em relação a morte

161 Darci Mivaki faz referência ao caso do desaparecimento de Amarildo Dias de Souza, notoriamente conhecido, atual símbolo de casos de abuso de autoridade e violência policial. O desaparecimento do Sr. Amarildo teve início em dia 14 de julho de 2013, quando desapareceu depois de detido por policiais militares, na entrada de sua residência, na Rocinha, foi levado à sede da Unidade de Polícia Pacificadora da localidade (Moura, 2013).

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de tantos inocentes; em que se amplie o conhecimento do sofrimento advindo da

injustiça, e por isso, a construção de um horizonte, que assuma as vítimas

deixadas pelo caminho, e cuide de atuar com justiça sobre as violações a elas

atribuídas.

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4

Conclusão

No ano de 2014, quando iniciei a escrita deste trabalho, completavam-se os

50 anos da data que foi iniciado o período do regime militar no Brasil (1964 –

1985). Por isso, o último ano representou um momento de intensa produção

acadêmica sobre este tema em diversas áreas do conhecimento, dando ensejo a

inúmeras pesquisas, congressos e eventos direcionados à sua reflexão.

Dessa forma, ainda que pela perspectiva anamnética de justiça, ensejada por

Mate, se tenha falado intensamente sobre o passado em que ocorreram as

violações, e que muito se discorra sobre memórias do período ditatorial, foi com a

preocupação sobre o presente, e com objetivo de contribuir com o futuro, que este

trabalho foi estruturado. Em especial, pela consciência de que nosso passado tem

sido construído em cima de muitas injustiças, e sobre a premente necessidade de

fazer conhecida a versão contida no relato daqueles que sofreram com o regime

militar.

Em pensar nas vítimas, pergunta-se: quais as medidas foram tomadas no

Brasil em relação às graves violações a elas causadas? Esta pergunta, de certo

modo, constitui um dos fios condutores das medidas de prestação de contas dos

países com passado repressivo, e causadores de violações aos direitos humanos.

Assim, por meio do estudo sobre os quadros da Justiça de Transição, foi

possível observar na breve genealogia realizada, que durante a passagem do

regime militar para a reabertura democrática, houve no Brasil uma transição

pactuada (comum às ditaduras latino-americanas), em forma de lei de anistia (Lei

de Anistia de 1979), que se revelou à frente como um obstáculo à efetiva justiça

das vítimas. Isso porque a lei de anistia, com seu consequente efeito de

esquecimento, introduziu uma gama de limitações aos direitos das vítimas por

justiça, por verdade e por memória.

A lógica do “virar a página” (e consecutivamente o seu esquecimento) que

envolvia esta medida de anistia, como fundamento de reconciliação nacional,

deixou ignorados os graves abusos cometidos pelo regime militar, e também suas

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consequências. Dessa forma, permaneceram abertas muitas questões, como os

casos de desaparecimentos durante o regime, o paradeiro dos corpos de vários ex-

presos políticos que sucumbiram aos procedimentos de tortura, etc. Não apenas

isso, os próprios sobreviventes permaneceram sendo, ainda, socialmente

considerados em alguns lugares, como terroristas e/ou subversivos, sem ter sido

registrada, de forma oficial, sua versão sobre os acontecimentos violentos; e

ainda, quantos brasileiros tiveram suas vidas totalmente afetadas pelas sequelas

físicas e/ou psicológicas, que marcaram para sempre suas histórias?

Ao observar essas questões, por meio do estudo de Reyes Mate compreendi

que sem a versão das vítimas sobre este momento da história não há justiça

possível, uma vez que elas possuem um olhar diferenciado em comparação a

qualquer indivíduo que não tenha passado pelas mesmas experiências injustas

vivenciadas por ela. Por isso, a versão das vítimas sobre o passado é tão singular.

A vítima é a única que conhece o sofrimento contido na violação e sua visão

alcança muito mais detalhes no presente, do que aquilo que, normalmente

conseguimos enxergar. Ela traz para o presente um passado ausente, isto quer

dizer, que ela possui a capacidade de trazer para próximo de nós, um passado –

que por ter existido longe da mídia ou da versão oficialmente construída, não tem

feito parte da narrativa histórica, mas existe no interior de sua experiência. Assim

sendo, se desejamos construir uma narrativa sobre o passado, sem os elementos

trazidos pela vítima, tal narrativa se apresenta incompleta.

Além disso, se os aspectos trazidos pela vítima são ignorados, não há como

reconhecer a injustiça ocorrida e, portanto, não há como realizar a reparação do

injusto causado. Mate mostra que esta forma de lidar com o passado, não dá a

significar que, então, se encerra a responsabilidade em relação às violações

imputadas. Muito pelo contrário, se a injustiça não é solucionada, então ela

permanece operando seus efeitos. A injustiça não é saldada com o tempo. A

alteridade ferida da vítima não sofre prescrição. Sua permanência gera um vínculo

com as injustiças presentes, e abre espaço para que os mesmos eventos se repitam,

pois ao invés de sempre lembrá-la como algo indesejável, a tendência é a de

esquecermos suas características e, portanto, sua repetição se torna possível. Ou

seja, ela continua existindo e operando seus efeitos de maneira permanente.

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154

Desse modo, ao reconhecer na vítima um papel de protagonismo no que se

refere à atenção da justiça, à luz de Mate, busquei delinear que elementos

caracterizam a vítima162, visto que quando falamos em memória e de vítimas, há

um caminho fértil para concepções como a do vitimismo e para os abusos da

memória. Assim, de maneira criteriosa busquei destacar, quem seria a vítima, para

então, avançar no estudo a respeito da justiça das vítimas.

Nesse sentido, munida da compreensão de como o Brasil tem lidado com o

passado, suas razões estratégicas, e a influência dos direitos humanos, tanto em

âmbito nacional como internacional, por meio do estudo da Justiça de Transição,

foi possível enxergar o quadro transicional brasileiro em relação ao enfrentamento

das violações passadas.

Dessa forma, em considerar que este tema está intimamente relacionado

com os movimentos sobre verdade, memória, e justiça, demandas provenientes

das lacunas deixadas pelo comportamento inerte das autoridades brasileiras (mais

recentemente comprovada na confirmação da legitimidade da lei de anistia pelo

Supremo Tribunal Federal, quando houve o julgamento da ADPF 153), pude

observar o importante papel da atuação das organizações da sociedade civil na

luta por essas demandas, somada aos esforços das organizações de direitos

humanos nacionais e internacionais.

Assim, buscando compreender onde as vítimas se encaixavam no processo

transicional brasileiro, pude enxergar que estas organizações estavam mais

sinceramente próximas de seus interesses, uma vez que nelas tem se aglutinado

familiares de mortos e desaparecidos dos regimes, anistiados políticos, e várias

outros grupos, fundamentais para a composição do cenário transicional que

possuímos atualmente, ou seja, um cenário que compreende a Lei de Mortos e

Desaparecidos, em 1995; (ampliada em 2002 e 2004); a criação em 2003, da

Comissão de Anistia, na esfera do Ministério da Justiça, e ainda, a criação, 2012,

da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, e a criação de uma Comissão

Nacional da Verdade.

162 Como base para tratar o conceito de vítima, foi utilizada uma divisão adaptada da estruturação

do conceito proposta por RUIZ, C.M.M.B. 2012.

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155

Nesse sentido, busquei, finalmente, atestar de forma prática a concepção de

Reyes Mate sobre a necessária centralidade da vítima para a teoria da justiça. A

partir dos testemunhos (em vídeo) disponibilizados na internet das sessões

públicas organizadas pela Comissão da Verdade do Rio de Janeiro, em 2013 e

pela Comissão Nacional da Verdade em 2014, realizei a transcrição do

pronunciamento de algumas vítimas que sofreram tortura no DOI-CODI, na

década de 1970. Apresentei, ainda, a versão exposta pelo Sr. Aparecido Laerte

Calandra, acusado por diversas vítimas (entre elas, as vítimas as quais selecionei

os depoimentos, com exceção de Lucia Murat e Dulce Pandolfi que

testemunharam em outra ocasião e não tiveram conexão com ele) de ter praticado

torturas.

Com base nos impactantes testemunhos (dos quais destaquei apenas alguns

trechos para a finalidade deste trabalho) e conectando-os sempre que possível à

teoria de Reyes Mate foi possível perceber como importa a criação de medidas por

parte do governo que atendam às vítimas, que as valorizem do plano de vista ético

e político, que reparem a injustiça a elas imputada, e que encontrem maneiras de

responsabilização sobre as graves violações a elas causadas.

Ao mesmo tempo, pude observar a importância das Comissões, uma vez que

nessas ocasiões foram abertas oportunidades de as vítimas contarem seus

testemunhos, não apenas pelo fato do conteúdo de seu testemunho ter um

poderoso potencial hermenêutico, mas especialmente, por permitir a vítima

acrescentar a sua versão à narrativa sobre a ditadura (a partir de onde ela pode sair

de seu estado de invisibilidade).

Dessa forma, ainda que seja longínquo, do meu ponto de vista, visualizar a

maneira como o Estado poderia lidar com as violações de uma perspectiva da

responsabilização dos culpados – primeiro, porque ainda possuímos os entraves

da lei de anistia; depois porque não consigo imaginar nosso sistema penal

preparado para lidar com esse tipo de violação; e ainda pela distância temporal do

crime praticado (não pela prescrição, pois como foi destacado, tais injustiças não

prescrevem, mas porque muitos torturadores já se encontram em idade muito

avançada, por exemplo) – não sou tão pessimista sobre a maneira como estamos

caminhando, e considero que o fato de haver um espaço para as vítimas contarem

sua versão, denunciarem as injustiças sofridas, receberem reparação, e passarem a

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fazer parte da narrativa histórica, um passo expressivo em direção a justiça das

vítimas (como Mate também considera).

Fato importante, que marca a atualidade e renovação deste assunto, tem

relação com a recente publicação do relatório final da Comissão Nacional da

Verdade, logo no fim de 2014 (em 10 de dezembro), que ao cumprir seus

propósitos centrais, estabelecidos no texto da Lei 12.528 de 2011, reabriu

múltiplas questões provenientes das apurações realizadas a respeito das graves

violações de Direitos Humanos ocorridas durante a ditadura militar. Esse relatório

da CNV, certamente, reuniu uma série de novas questões que poderão ser

trabalhadas por novos pesquisadores. Ou seja, ainda há muito que estudar e

refletir sobre o tema da ditadura militar brasileira.

Dessa forma, compreendo que o trabalho que realizei ao longo desta

dissertação, dado o processo que o Brasil ainda está atravessando, traz questões

que poderão ser complementadas com futuros estudos sobre este novo marco, cujo

relatório da CNV constitui, tanto para o estudo referente à justiça das vítimas

como para a justiça de transição, já que ainda não sabemos que medidas serão

tomadas pelas autoridades governamentais em relação aos pontos suscitados pela

CNV.

Assim, considerando o processo transicional que o Brasil ainda está

passando, necessário reafirmar a importância das vítimas para as análises das

ações a serem tomadas em relação às graves violações praticadas, tendo sempre

como primordial, o negativo efeito social produzido pelo esquecimento.

Como afirma Selligman (2000, p. 9), “não contar perpetua a tirania do que

se passou”, e com isso, vale dizer que a preocupação demonstrada neste trabalho

não está voltada apenas para o retorno da barbárie, mas sim para a sua

continuidade.

Dessa forma, não podemos nos ater apenas aos eventos injustos do passado,

visto que na atualidade – de certa forma, pela consequência das feridas não

cuidadas – temos um sistema violento, que produz vítimas todos os dias, que

precisam contar sua versão, dado que são as únicas que conhecem o interior da

realidade da violação sofrida. Portanto, a lógica benjaminiana presente na teoria

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da justiça das vítimas exposta por Mate poderia ser aplicada a outros casos de

violência e opressão os quais devemos estar atentos.

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