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Fernanda Nayanne Barbosa e Telma Borges MÚSICA 1 : Este verbete objetiva estabelecer conexões entre Grande Sertão: veredas e as músicas “Acerto de contas”e “Notícia do Norte”,ambas compostas e gravadas pelo grupo Nhambuzim. O nome do grupo se deu em homenagem a um pássaro muito comum no sertão mineiro, o qual Guimarães Rosa menciona em Grande sertão: veredas: “Um pássaro cantou. Nhambú?” (ROSA, 2001, p. 120). Esse grupo nasceu em São Paulo em 2002 e se dedica a fazer músicas urbanas com traços regionais, preocupando-se em resguardar velhos costumes e preservar culturas populares. Da teoria para prática: semiótica, paisagem sonora e modelo circumplexo Semiótica e semiologia são termos constantemente confundidos; eram termos sinônimos, talvez daí venha a possível confusão. Porém a semiologia tinha tendência linguística e literária, enquanto a semiótica tinha tendência matemática e filosófica. Todavia, ambas tinham o mesmo objetivo e funcionalidade de cientificar os signos a partir de cada sistema de linguagem específico. Posteriormente essas ciências vieram a se modificar, se distinguir e se separar. A semiologia passou a representar somente a linguagem verbal, enquanto a semiótica passou a representar todas as formas de linguagem, incluindo fenômenos linguísticos e culturais. Tentando compreender o que é semiótica, Santaella nos propõe refletir sobre o que há de imagem na palavra e o que há de palavra na imagem, isto é, qual relação existe entre imagem e palavra, por exemplo, qual a relação entre a palavra guerra e sua representação. Pensando em Grande sertão: veredas guerra é um signo forte, que está conectado à morte. A guerra é desencadeada por causa da morte de Joca Ramiro, representando nesse contexto vingança e termina com a morte de Diadorim, representando as consequências advindas do signo guerra em sua significação mais literal: “Luta armada entre nações ou partidos; conflito.” (FERREIRA, 2001, p. 357). Ferdinand de Saussure, fundador da semiologia latina, chamou a imagem acústica e visual de significante e a imagem mental de significado. Nesses moldes, podemos refletir não apenas sobre imagem e palavra, mas também sobre significante e significado. Sobre esse assunto, Santaella conclui que palavra e imagem são “meios 1 Autoria: Fernanda Nayanne Barbosa e Alves (adaptado de monografia defendida em 2014 na Universidade Estadual de Montes Claros).

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Fernanda Nayanne Barbosa e Telma Borges

MÚSICA1: Este verbete objetiva estabelecer conexões entre Grande Sertão: veredas e

as músicas “Acerto de contas”e “Notícia do Norte”,ambas compostas e gravadas pelo

grupo Nhambuzim. O nome do grupo se deu em homenagem a um pássaro muito

comum no sertão mineiro, o qual Guimarães Rosa menciona em Grande sertão:

veredas: “Um pássaro cantou. Nhambú?” (ROSA, 2001, p. 120). Esse grupo nasceu em

São Paulo em 2002 e se dedica a fazer músicas urbanas com traços regionais,

preocupando-se em resguardar velhos costumes e preservar culturas populares.

Da teoria para prática: semiótica, paisagem sonora e modelo circumplexo

Semiótica e semiologia são termos constantemente confundidos; eram termos

sinônimos, talvez daí venha a possível confusão. Porém a semiologia tinha tendência

linguística e literária, enquanto a semiótica tinha tendência matemática e filosófica.

Todavia, ambas tinham o mesmo objetivo e funcionalidade de cientificar os signos a

partir de cada sistema de linguagem específico. Posteriormente essas ciências vieram a

se modificar, se distinguir e se separar. A semiologia passou a representar somente a

linguagem verbal, enquanto a semiótica passou a representar todas as formas de

linguagem, incluindo fenômenos linguísticos e culturais.

Tentando compreender o que é semiótica, Santaella nos propõe refletir sobre o

que há de imagem na palavra e o que há de palavra na imagem, isto é, qual relação

existe entre imagem e palavra, por exemplo, qual a relação entre a palavra guerra e sua

representação. Pensando em Grande sertão: veredas guerra é um signo forte, que está

conectado à morte. A guerra é desencadeada por causa da morte de Joca Ramiro,

representando nesse contexto vingança e termina com a morte de Diadorim,

representando as consequências advindas do signo guerra em sua significação mais

literal: “Luta armada entre nações ou partidos; conflito.” (FERREIRA, 2001, p. 357).

Ferdinand de Saussure, fundador da semiologia latina, chamou a imagem

acústica e visual de significante e a imagem mental de significado. Nesses moldes,

podemos refletir não apenas sobre imagem e palavra, mas também sobre significante e

significado. Sobre esse assunto, Santaella conclui que palavra e imagem são “meios

1 Autoria: Fernanda Nayanne Barbosa e Alves (adaptado de monografia defendida em 2014 na

Universidade Estadual de Montes Claros).

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transparentes através dos quais a realidade se apresenta à compreensão”

(SANTAELLA, 1992, p. 37).

Seguindo os parâmetros de Saussure, a relação significante/significado

determina o signo. Na obra A teoria geral dos signos: como as linguagens significam as

coisas, Santaella nos atenta para o cuidado com a simplificação do que seja signo, a fim

de não reduzir ou limitar tudo o que venha a constituir o signo, visto que tal limitação

pode vir a prejudicar seu rigor teórico. A exemplo das visões simplistas, a autora cita

Peirce, definindo signo como algo representando alguma coisa para alguém. Para que o

exemplo seja válido, há de se ressaltar que o alguém (sujeito) não precisa ser palpável,

existente ou humano. Pode-se tomar como sujeito um ser futuro, por exemplo. Outro

equívoco seria tomar a palavra coisa apenas como algo existente, afinal ela pode ser de

natureza ficcional, imaginária ou mítica. A partir de então, fica claro que se deve buscar

não apenas a definição de signo, mas a relação entre signo, objeto e interpretante

formando um processo ordenado. Nesse ponto, é válido mostrar que signo, objeto e

interpretante são de natureza sígnica sendo, portanto, três signos desempenhando papéis

diferentes em uma tríade. Aí está a relevância de se falar em relação: trata-se de três

signos e não apenas de um, como outrora pensado. A ênfase a cada correlato da tríade

determina o tipo de relação. Se enfatizado o signo, a relação é de significação ou

representação; se o objeto é enfatizado, a relação passa a ser de objetivação; e, por fim,

se o interpretante é enfatizado, temos uma relação de interpretação.

Há ainda uma outra ressalva:

(...) o signo perde o seu caráter de significante perfeito (isto é, genuíno) se a

série de interpretantes sucessivos vier a ter fim, implica o fato de que nenhum

interpretante de nenhum signo pode ser tido como absoluto ou definitivo. Faz

parte da própria forma lógica de geração do signo que ela seja a forma de um

processo ininterrupto, sem limites finitos. (SANTAELLA, 2008, p. 18).

Isso quer dizer que as interpretações atuais devem ser re-interpretadas e gerar

novas interpretações, seguindo sucessivamente nesses moldes. Se os estudos, pesquisas

e re-interpretações forem interrompidos, o signo perderá seu caráter de significante

perfeito. Santaella conclui: “Em síntese, a ação que é própria ao signo é a de crescer.”

(SANTAELLA, 2008, p. 19).

Santaella aponta vários processos interativos entre a palavra e a imagem, uma

vez que, segundo a autora, existem cinco classificações para as imagens. A primeira

seria a imagem gráfica, ligada à história da arte e exemplificada por estátuas, figuras e

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designs. A segunda seria a imagem ótica, que se relaciona à física e tem como exemplo

o espelho. A terceira classificação seria a da imagem perceptiva, que envolve os

sentidos, como ocorre com a música. A quarta seria a imagem mental, embasada na

psicologia e na epistemologia, exemplificada por memórias, sonhos e ideias. A última

classificação seria a verbal, que se aproxima da crítica literária e tem como exemplo as

metáforas e descrições, tão presentes em Grande sertão: veredas. O que diferencia os

tipos de imagem são os canais de veiculação dessas imagens. Como trabalharemos com

canais diferentes, as imagens também serão diferentes.

Semiótica origina-se do termo grego ‘semeion’, que denota signo. Hildo

Honório Couto, em Uma introdução à semiótica, descreve-a como uma “(...) ciência

geral dos signos ou, melhormente, a ciência dos sistemas de signos.” (COUTO, 1983, p.

15). Iniciemos, pois, analisando o que podemos entender por ciência. Couto aceita

ciência como correspondente ao conhecimento sistematizado. Conhecimento

sistematizado, por sua vez, seria o oposto de conhecimento intuitivo. Assim, ele

apresenta o seguinte triângulo, onde “C” representa a ciência ou conhecimento, “S” o

sujeito intérprete e “O” o objeto cognoscível ou objeto do conhecimento.

C

/ \

S--------O

Nota-se pelo esquema que o conhecimento é que conecta o sujeito ao objeto

cognoscível. Assim, temos um fato relevante para tratar a semiótica como ciência. A

reafirmação da semiótica na postura de ciência é dada pelo próprio Couto: “a semiótica

é, como uma ciência, parte da ciência em geral; por outro lado, a ciência como

linguagem, é objeto da semiótica” (COUTO, 1983, p. 18).

Desenvolvendo seu trabalho, Couto trava comparações entre Saussure e Pierce.

Primeiro ele demarca as contribuições saussureanas para a semiótica, tais como as

dicotomias: língua e fala – a língua, chamada por Saussure de langue, constitui um

sistema abstrato correspondente ao acúmulo de conhecimentos da língua absorvidos e

guardados pelo nosso cérebro. A fala, parole, corresponde à concretização,

exteriorização da língua. A língua é comunitária, mas a fala é individual; sintagma e

paradigma – são formas de associar os signos da linguagem. O paradigma corresponde a

um modelo estrutural e o sintagma corresponde à combinação de signos (HOUAISS;

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VILLAR, 2009); significante e significado – significante corresponde à imagem

acústica, ao som provocado pelo uso da palavra. Significado liga-se a imagem mental

evocada pelo ouvinte. A relação entre significante e significado, segundo Saussure,

resulta na produção do signo; diacronia e sincronia – a julgar pelos próprios radicais,

sincronia representa o que está junto, atual e diacronia representa o que está fora de

época, um recorte na linha do tempo.

Diferente de Saussure, Pierce trabalha com tricotomias e entende por signo

“algo que, sob certo aspecto ou de algum modo, representa alguma coisa para alguém.”

(COUTO, 1983, p. 29). Seria um primeiro fator (conhecimento) posto em relação a um

segundo fator (objeto) determinando um terceiro fator (sujeito).

Conforme já fora citado, pretendemos aproximar aqui música e literatura, tendo

por base a obra Grande sertão: veredas. Daí utilizarmos a semiótica como aporte

teórico a fim de, através da literatura e da música, estabelecer relações entre o texto que

serviu como ponto de partida e sua tradução para o universo musical.

Música e literatura são artes que possuem teoria, o que lhes dá caráter científico

também. Como embasamento para as análises musicais, nos utilizaremos do conceito de

“paisagem sonora”, desenvolvido por Murray Schafer e do “modelo de circumplexo”,

de Russell.

R. Murray Schafer, canadense, foi o mentor de um novo conceito musical: a

paisagem sonora. Schafer definiu música como, “sobretudo, nada mais que uma coleção

dos mais excitantes sons concebidos e produzidos pelas sucessivas operações de pessoas

que têm bons ouvidos” (SCHAFER, 1991, p. 187). Para ele, “a mais vital composição

musical de nosso tempo está sendo executada no palco do mundo”. (SCHAFER, 1991,

p. 187). Isso quer dizer que os sons que nos rodeiam são interpretados como música.

A partir do termo Landscape, que significa paisagem, Murray criou o

neologismo Soundscape (paisagem sonora). Inicialmente, os estudos de Schafer “tinham

como preocupação analisar o ambiente acústico a sua volta e realizar um mapa sonoro

das regiões estudadas (geralmente o próprio Canadá) criando um catálogo dos sons

característicos de cada região.” (TOFOLLO; OLIVEIRA; ZAMPRONHA, 2003, p. 03).

Todavia, as mudanças sonoras nas paisagens decorrentes de processos como

urbanização e industrialização atrapalharam os planos de Murray. A paisagem sonora

ficou compreendida como um conjunto de sons (ambiente acústico) que remete a uma

paisagem visual (região, cidade ou mesmo lugar específico). A paisagem sonora deve

permitir ao ouvinte reconhecer um ambiente apenas através do som.

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Usaremos também em nosso trabalho o circumplexo de Russell. Esse

circumplexo se apresenta sob a forma de um plano cartesiano contendo, naturalmente,

dois eixos: um vertical e outro horizontal. O eixo vertical nos apresenta o grau de

atividade, o que significa dizer se a música provoca maior (para cima) ou menor (para

baixo) agitação. O eixo horizontal guarda as valências positiva (para a direita) e

negativa (para a esquerda). As sensações e emoções promovidas pelas músicas são

apuradas de forma genérica, e não individualmente. No gráfico, as descrições gerais dos

sentimentos ficam sempre nas bordas, formando quase um círculo. Isso porque o centro,

encontro dos eixos, é nulo, ou seja, representa a ausência de sentimentos. Veja na figura

1 o modelo desse circumplexo:

FIG. 1: Modelo circumplexo de Russell.

FONTE: GERLING; SANTOS; DOMINICI, 2009, p. 55.

A relação entre música e literatura é mais intrínseca do que se pensa.

Trabalharemos a música sob o viés de arte complementar à literatura, pois como nos

afirma Gabriela Reinaldo, “(...) o que a palavra em seu uso ordinário não diz, a música

sugere.” (REINALDO, 2005, p. 22). Assim, notamos o caráter complementar entre tais

artes. O próprio Guimarães Rosa, em correspondência ao crítico Günter Lorenz, disse

que “a música da língua deve expressar o que a lógica da língua obriga a crer (Rosa,

apud LORENZ, 1983, p. 88)” (PESSÔA, 2008. p. 01).

Segundo Paulo Costa Lima, foi a partir da década de 1980 que surgiram as

primeiras abordagens que uniam música e literatura. Antes, só se comparava literatura à

pintura. Hoje, a literatura é um objeto de comparação para várias outras artes e mídias,

como por exemplo, teatro, cinema, propagandas e até a própria literatura. Em seus

comentários, Lima nos aponta um problema: “quando música e palavras são

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combinadas, estamos tratando da confluência de dois sistemas lingüísticos? Ou trata-se

de apenas um sistema lingüístico empurrado ao lado de outro sistema sonoro, não-

linguístico? (sic)” (Lima, 2010, p. 01). Acreditamos, apesar das particularidades de cada

sistema, que se trata de dois sistemas linguísticos, uma vez que tomamos a música como

correlata à literatura, como forma de linguagem, comunicação e, mais especificamente

neste trabalho, como forma de reprodução da linguagem literária.

Guimarães Rosa pode ser considerado um escritor compositor pelo fato de

produzir uma literatura carregada de musicalidade. Não é à toa que encontramos uma

quantidade considerável de músicas compostas a partir das suas obras. São gravados

CDs inteiros apenas com músicas baseadas na literatura rosiana, como por exemplo o

CD Rosário e o CD Imaginário Roseano,sem mencionar outras músicas que são

inspiradas na musicalidade das obras de Guimarães. “O conceito de musicalidade

incorpora as virtualidades sonoras da língua, as cantigas populares e as técnicas e

formas eruditas da música” (SIQUEIRA, 2009, p. 05) como melodia, harmonia,

cadências e ritmos.

No que diz respeito à aproximação entre música e Grande sertão: veredas,

Gabriela Reinaldo afirma que há cadência rítmica nas frases da obra e denomina essa

rítmica de “música subjacente”. Não há como determinar o ritmo que atende à produção

em questão, mas há como demonstrar a forte presença musical que caracteriza

Guimarães Rosa. Como alguns exemplos citamos a “Cantiga de Siruiz” e a cantiga de

guerra do bando “Olererê baiana”. Acrescentamos ainda que o romance se inicia

chamando atenção para os barulhos de tiros, evocando a audição. Com esses exemplos

não é difícil notar a expressiva presença musical em Grande sertão: veredas.

O próprio Guimarães Rosa afirmou a presença da musicalidade em sua obra:

“Sou precisamente um escritor que cultiva a ideia antiga, porém sempre moderna, de

que o som e o sentido de uma palavra pertencem um ao outro (Rosa, apud LORENZ,

1983, p. 88)” (PESSÔA, 2008. p. 01).

Nesta seção apresentamos as bases teóricas com as quais trabalharemos para

analisar as músicas nas próximas seções.

A notícia que veio do canto do Nhambú

Tomaremos como ponto de partida o signo guerra, já conceituado anteriormente.

É importante nos atentarmos para esse signo porque é através dele que conseguiremos

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unir Grande sertão: veredas às músicas mencionadas. Guerra será a fita que enlaça

esses dois sistemas semióticos.

Em Grande sertão: veredas,variadas guerras acontecem em vários momentos,

com finalidades distintas. Todavia, é a guerra pela vingança da morte de Joca Ramiro a

que nos interessa para este estudo. É necessário esclarecer que essa guerra é resultado

de outras guerras e, por sua complexidade, nos instiga a refletir sobre suas causas e suas

consequências.

Primeiro descreveremos a causa. Tudo começou quando Zé Bebelo que, apesar

de ser jagunço, decidiu entrar para a política e acabar com a jagunçagem. Deu-se que,

por esse motivo, o bando de Joca Ramiro enfrentou o bando dos Bebelos e capturou o

chefe, a fim de julgá-lo. Hermógenes, companheiro fiel de Joca Ramiro, pronunciou-se

a favor da pena de morte para Zé Bebelo. Contudo, após ouvir vários pronunciamentos,

Joca Ramiro sentenciou Zé Bebelo apenas ao desterro, sem carecer da pena de morte.

Hermógenes não gostou de ter sido contrariado: “Mesmo eu vi o Hermógenes: ele se

amargou, engulindo de boca fechada. – ‘Diadorim’ – eu disse – ‘esse Hermógenes está

em verde, nas portas da inveja...’” (ROSA, 2001, p. 298-297). Foi pela inveja, ciúmes e

contradição que Hermógenes veio a matarJoca Ramiro, desencadeando nova guerra por

novo motivo.

A primeira música a ser analisada (anexo A), intitulada “Notícia do Norte”,

apresenta o motivo que desencadeou a guerra principal da obra: a morte de Joca

Ramiro. A morte nos aparece, então, como causa para o aparecimento desse signo

guerra. É interessante notarmos na letra o jogo do título com a notícia tal como é

apresentada na música: notícia do Norte, notícia de morte. A troca de um único fonema

nos descreve a notícia, amplia os sentidos da letra e retém maior carga imagética.

Ainda na introdução da música há a representação de alguns sons que fazem

referência aos sons descritos na cena de chegada da notícia como a chuva, reproduzida

por um instrumento percussivo conhecido como Pau de Chuva, e o barulho das garças,

reproduzido por apitos “Bateu o primeiro toró de chuva.” (ROSA, 2001, p. 310); “As

garças é que praziam de gritar, o garcejo delas (...)” (ROSA, 2001. p. 310-311).

O vocábulo garcejo mostra-nos um pouco da particularidade de Guimarães Rosa

em preocupar-se com a sonoridade e significação das palavras. Como vimos

anteiormente, o romancista diz que “o som e o sentido de uma palavra pertencem um ao

outro (Rosa, apud LORENZ, 1983, p. 88)” (PESSÔA, 2008. p. 01). Exemplificamos,

assim, forte relação entre significante e significado.

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Toda a letra da música é composta de palavras fortes, tais como ódio, traição e

vingança que formam signos intensos caminhando para um sentimentalismo fúnebre,

cujo apogeu desemboca na própria notícia: o fim de Joca Ramiro.

A música em compasso binário (2/4) e ritmo de baião (figura 2), que tem o

segundo tempo com marcação forte prolongada (síncope), traduz o estilo sertanejo tão

presente na obra. O uso do triângulo, outro instrumento percussivo, reafirma essa

presença sertaneja.

FIG 2: Desenho rítmico do baião

FONTE: NOVAES, 2012.

Segundo Alex Ross, a sequência de segundas descentes desencadeia sentimentos

tristes nos ouvintes. “Notícia do Norte” possui uma sequência de acordes que formam

segundas descendentes (de dó para si e de si para lá) nos encaminhando para o pesar da

notícia. Temos então, aqui, um exemplo extraído de Gabriela Reinaldo: “(...) o que a

palavra em seu uso ordinário não diz, a música sugere.” (REINALDO, 2005, p. 22).

Isso quer dizer que a música acrescenta novas ideias à palavra. O som auxilia a

compreensão daquilo que se quer dizer. O ritmo, harmonia, cadências, escalas, tipos de

instrumentos dentre outros, ajudam a compor a ideia do texto.

A música é interpretada por três vozes que se alternam, como se não fosse

possível a um só cantar ou, no caso, a um só dar a notícia. Como se fosse necessário um

fôlego extra para se conseguir repassá-la, tal qual ocorre na narrativa: “O Gavião-Cujo

abriu os queixos, mas palavra logo não saiu, ele gaguejou ar e demorou (...)” (ROSA,

2001, p. 311).

No sexto verso – “No céu brotaram as nuvens do ódio” – a palavra ódio é

cantada pelos três intérpretes, que fazem três melodias diferentes: primeira voz, segunda

voz e terceira voz (figura 3). O fato de três vozes cantarem a palavra ódio nos faz

entender que, mesmo de maneiras diferentes, o ódio pertencia a todos, era sentido por

todos.

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FIG. 3: Desenho das três vozes em partitura.

FONTE: NOVAES, 2012.

No sétimo e oitavo versos – “Um bramava, um calava / Um outro caía” – as três

vozes se entrecruzam numa espécie de representação da letra e da própria cena. O uso

de notas longas tem como função preencher o tecido musical e, no caso, promover a

encenação dos jagunços bramando, gritando e caindo (figura 4).

FIG. 4: Vozes entrecruzadas na partitura.

FONTE: NOVAES, 2012.

É relevante notar que a palavra caía literalmente cai, uma vez que a partitura nos

mostra notas descendentes. No plano da narrativa caía também comunga desse sentido

literal, assumindo a postura de descendência, de ir para baixo. Diadorim caiu no sentido

de ser atraído pela gravidade. É possível, ainda, observar esse verbo no sentido de uma

retirada de alicerce. Diadorim caiu porque perdeu sua base, sua muleta, representada

pela figura de Joca Ramiro, seu pai. Cair passa, então, a ser equivalente à

desnorteamento, desestruturação.

Logo após o décimo verso – “Zunido de bala” –, há uma sequência de notas

(figura 5) que faz alusão à viola, instrumento de tradição sertaneja. Essa sequência se

apresenta em forma de solo, acompanhada apenas por um instrumento percussivo que

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vai perdendo sua intensidade evidenciando, assim, o som do piano que executa esse

solo. Esse tipo de desenho musical nos provoca inquietação e suspense por causa da

velocidade e repetição das notas.

FIG. 5: Sequência de notas tocadas pelo piano em alusão à viola caipira.

FONTE: NOVAES, 2012.

Essa mesma escala se repete em outras partes da música, porém em uma oitava

abaixo e acompanhada de vários outros instrumentos, inclusive instrumentos

harmônicos como o violão, o que a deixa em menor evidência.

Esse suspense e inquietação podem fazer alusão à relação de Riobaldo com o

Hermógenes, autor do crime. “Aquele Hermógenes (...) Eu criava nôjo dele, já disse ao

senhor. Aversão que revém de locas profundas.” (ROSA, 2001, p. 203). Riobaldo nunca

gostou do Hermógenes, mesmo antes de ter algum motivo para isso. No decorrer da

narração, vão sendo deixadas pistas de maus pressentimentos de Riobaldo em relação ao

Hermógenes. O solo supracitado vem sugerir esses pressentimentos.

Ao final da música, fica-se repetindo, como arranjo de fundo, a frase “sabe

sinhô”, em caráter dialógico2, como se fosse Riobaldo contando a história ao doutor do

sertão. Também são reproduzidos alguns gritos enfatizando a dor provocada pela

notícia. Seguimos observando o trecho da obra ao qual a música se refere:

O Gavião-Cujo levantou um braço, pedindo prazo. À fé, quase gritou:

– “Mataram Joca Ramiro!...”

Aí estralasse tudo – no meio ouvi um uivo doido de feras! Que no céu, só vi

tudo quieto, só um moído de nuvens. Se gritava – o araral. As vertentes

verdes do pindaibal avançassem feito gente pessoas. Titão Passos bramou as

ordens. Diadorim tinha caído quase no chão, meio amparado a tempo por

João Vaqueiro. Caiu, tão pálido como cera do reino, feito um morto estava.

Ele, todo apertado em seus couros e roupas, eu corri, para ajudar. A vez de

ser um desespero. O Paspe pegou uma cuia d’água, que com os dedos

espriçou nas faces do meu amigo. Mas eu nem pude dar auxílio: mal ia pondo

a mão para desamarrar o colete-jaleco, e Diadorim voltou a seu si, num

alerta, e me repeliu, muito feroz. Não quis apoio de ninguém, sozinho se

sentou, se levantou. Recobrou as cores, e em mais vermelho o rosto, numa

fúria, de pancada. Assaz que os belos olhos dele formavam lágrimas. Titão

2 Toma-se caráter dialógico, aqui, com o sentido de diálogo, conversa entre duas ou mais pessoas.

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Passos mandava, o Gavião-Cujo falava. Assim os companheiros num estupor.

Ao que não havia mais chão, nem razão, o mundo nas juntas se

desgovernava. (ROSA, 2001, p. 311-312).

Dividiremos, pois, a música em seis partes para a confrontarmos com a

passagem referida de Grande sertão: veredas. Antecipamos que toda a música

representa, dentro dos tipos de imagem descritos por Santaella, uma imagem perceptiva,

já que envolve os sentidos. Antes de começarmos a análise de cada parte, gostaríamos

de reiterar a musicalidade na escrita de Rosa. No trecho supracitado, temos a presença

de ecos, assonâncias (“...braço, pedindo prazo”/ “...ouvi um uivo doido...”/ “...vertentes

verdes...”) e rimas internas (“Titão Passos mandava, o Gavião-Cujo falava.”) que

imprimem ritmo e musicalidade ao romance. Na mesma medida em que temos música

na literatura, temos litaretura na música. Observamos a literariedade encontrada na letra

da música tais como o jogo das expressões Notícia do Norte e notícia de morte, bem

como a personificação de elementos naturais que engrandecem o sertão rosiano: “no céu

moídas as nuvens da dor/ no céu brotaram as nuvens do ódio”.

A primeira parte equivale aos quatro primeiro versos – “Brabo pardo chegou

banhado de lama / Gavião-cujo que veio do norte/ Trouxe agouro e notícia de morte/

Notícia do fim de Joca Ramiro” – que reproduzem a chegada da notícia e a notícia em

si. Não houve grande alteração entre os sistemas semióticos. Edson Penha se manteve

bastante fiel à obra deixando transparecer a notícia da morte de Joca Ramiro e o

portador da notícia: Gavião-Cujo. O compositor relatou ainda o lugar de onde se trazia a

notícia (Norte) e como se encontrava Gavião-Cujo (banhado de lama). O uso do verbo

“banhar” faz analogia ao motivo pelo qual Gavião-Cujo estava naquele estado: havia

tomado muitas chuvas: “Era um brabo nosso, um cafuz pardo, de sonome o Gavião-

Cujo, que de mais norte chegava. Ele tinha tomado muitas chuvas, que tudo era lamas,

dos copos do freio à boca da bota (...)” (ROSA, 2001, p. 311). Há na música uma

pequena alteração na ordem dos fatos em relação à obra. Em Grande sertão: veredas,

primeiro narra-se o nome do portador da notícia, depois de onde ele vinha e por último

como ele estava, ao passo em que na música, primeiro se relata o estado do portador da

notícia, seguido por seu nome e pelo local de onde vinha.

A inversão na ordem desses fatos nos permite produzir sentidos variados. Essa

troca de lugar enfatiza elementos diferentes. No romance, enfatiza-se o estado físico do

Gavião-Cujo, chamando atenção para a chuva no sertão, o que é raro. Já na música, a

ênfase maior fica para o lugar de onde o Gavião-Cujo vinha. A música muda o foco

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para consolidar seu título “Notícia do Norte”. Assim, o Norte torna-se mais relevante do

que o estado físico do noticiário. Porém, ambos os sistemas semióticos nos apresentam

esses fatos gradativamente, como se fossem nos preparando para a notícia. Cada detalhe

de espaço, tempo e modo nos certificam, lentamente, de que algo importante será dito

ou será realizado. Tanto a música quanto a literatura conseguem nos tencionar para um

fato posterior a partir de descrições anteriores.

A segunda parte é composta pelos versos cinco, seis, dezenove, vinte, vinte e

um, e vinte e dois – “No céu moídas as nuvens da dor / No céu brotaram as nuvens do

ódio/ Vazio ficou o chão/ E o mundo se perdeu da razão/ Vazio ficou o chão/ E o mundo se

perdeu da razão” –e mimetiza o que a notícia provocou: dor, ódio, vazio e perda da

razão. Todos esses substantivos abstratos foram concretizados com a partida de Joca

Ramiro. Isso porque Joca Ramiro não era apenas um chefe, era um amigo, um homem

de grande caráter e de muitos conhecimentos: “Ah, Joca Ramiro para tudo tinha

resposta: Joca Ramiro era lorde, homem acreditado pelo valor.” (ROSA, 2001. p. 275).

Também foram representados na música outros elementos que nos remetem à obra

como as nuvens e o vazio do chão. Não há na música a citação de um mundo

desgovernado fazendo alusão ao papel de chefe do bando atribuído à Joca Ramiro, o

que pode vir a dificultar o entendimento do ouvinte, já que esse fato intensifica a dor da

perda. Há de se ressaltar que a variação do texto entre diferentes sistemas semióticos é

previsível, até porque os próprios sistemas são diferentes e possuem características

específicas. A música, por exemplo, não dispõe de tanta liberdade descritiva quanto a

literatura. Por isso encontramos na obra muitos elementos que não foram representados

na música.

A terceira parte aborda as formas como a notícia foi recebida. Ela é marcada

pelos versos sete, oito, dezesseis, dezessete e dezoito – “Um bramava, um calava/ Um

outro caía/ Caiu e de fúria explodiu/ Um rio de lágrimas sobre a face vermelha/ Um rio

de lágrimas”.

O sétimo e oitavo versos relatam as reações gerais dos jagunços, enquanto os

outros versos mencionados caracterizam a reação específica de Diadorim. Ele caiu e

teve seus olhos embriagados de lágrimas. A música expõe o choro de Diadorim como

em maior quantidade do que existe no romance. A obra não menciona um rio de

lágrimas, apenas diz que lágrimas se formaram nos olhos de Diadorim. É interessante

ressaltar, porém, o jogo de palavras que forma a expressão “rio de lágrimas” quando rio

deixa de ser substantivo e passa a representar um verbo flexionado em primeira pessoa

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do singular, como se fosse possível achar graça do choro de tristeza: eu rio de lágrimas.

O sentido hiperbólico dessa expressão será mais explorado à frente.

A reação extrapolada de Diadorim tinha um motivo: Joca Ramiro era seu pai.

Ele mantinha em segredo o verdadeiro motivo da sua dor. Riobaldo desconfiava: “Mas

Diadorim pensava em amor, mas Diadorim sentia ódio. Um nome rodeante: Joca

Ramiro – José Otávio Ramiro Bettancourt Marins, o Chefe, o pai dele?” (ROSA, 2001,

p. 444) “– ‘Riobaldo, escuta, pois então: Joca Ramiro era o meu pai...’” (ROSA, 2001,

p. 54) .

A paternidade de Joca Ramiro explica o desejo de vingança de Diadorim. Era

papel dos filhos vingarem a morte dos pais. “‘Filho, isso é a tua maioridade. Na velhice,

já tenho defesa, de quem me vingue...’” (ROSA, 2001, p. 126). “(...) Diadorim tanto não

vivia. Até que viesse a poder vingar o histórico de seu pai (...)” (ROSA, 2001, p. 46).

Mas a vingança já é tema da quinta parte da música.

A parte quatro, construída pelos versos nove e dez – “Traição pelas costas/

Zunido de bala” –, guarda as informações de como ocorreu a morte de Joca Ramiro. Ele

foi baleado pelas costas por um homem que pertencera ao seu bando e agora o traíra:

Hermógenes. “– ‘... Matou foi o Hermógenes...’” (ROSA, 2001, p. 312). “Aí, atiraram

em Joca Ramiro, pelas costas, carga de balas de três revólveres... Joca Ramiro morreu

sem sofrer.” (ROSA, 2001, p. 314). Mesmo sem dizer o nome do traidor, a música

esclarece dois fatos importantes da história: houve uma traição e Joca Ramiro foi morto

a tiro. Em apenas dois versos pequenos, Edson Penha foi capaz de descrever o

acontecimento sem que houvesse prejuízo de sentido ou incompreensão. Desse modo,

nota-se a música como sendo bastante pertinente à obra. Se a tradução da ideia deve

exceder a tradução do signo, então temos um excelente trabalho realizado pelo grupo

Nhambuzim, já que as principais ideias da cena selecionada de Grande sertão: veredas

estão presentes na música.

Conforme já fora dito, a quinta parte, versos onze e doze – “Trouxe raiva e

vingança de morte/ Vingança ao fim do grande Ramiro” –, tem a temática da vingança.

Chegamos a um ponto importante do nosso trabalho. A vingança é a consequência da

morte de Joca Ramiro, pois se este não tivesse sido assassinado não haveria uma nova

guerra. Mas a vingança pode ser interpretada também como a causa da guerra, pois foi

por querer vingar que uma nova guerra se iniciou. Há que se refletir, então, que a

vingança como causa é a consequência da morte de Joca Ramiro. Para vingar a morte de

Joca Ramiro, era preciso matar seu assassino, ou seja, só uma morte poderia pagar outra

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morte. Assim, mais uma vez, a música se apresenta em sintonia com a obra: “– ‘Hem,

diá! Mas quem é que está pronto em armas, para rachar Ricardão e Hermógenes, e

ajudar a gente na vingança agora, nas desafrontas? (...)’” (ROSA, 2001, p. 313). “Era a

outra guerra.” (ROSA, 2001, p. 314).

Por fim, a última parte é composta de um só verso: o verso quinze – “Amigo

olhar-de-esmeralda”. Essa expressão se comporta como uma metonímia do nome

Diadorim, pois este tinha olhos verdes, tal qual a cor da esmeralda. Também devemos

pontuar que a esmeralda é uma pedra muito valiosa. Assim, é possível depreender que

eram cheios de valores e preciosos os olhos de Diadorim. Logo, a expressão escolhida

pelo grupo musical para substituir o nome Diadorim foi de extrema pertinência e

inteligência. “Olhei: aqueles esmerados esmartes olhos, botados verdes, de folhudas

pestanas, luziam um efeito de calma, até que me repassasse.” (ROSA, 2001, p. 119-

120).

A fixação de Riobaldo pelos olhos de Diadorim é constante em toda a narrativa.

A própria citação (acima) da cena da chegada da notícia da morte de Joca Ramiro faz

referência aos olhos de Diadorim por meio do adjetivo belos: “Assaz que os belos olhos

dele formavam lágrimas.” (ROSA, 2001, p. 312). Logo no primeiro encontro entre os

personagens, Riobaldo e Diadorim, Riobaldo destaca o que lhe chamou atenção: “(...)

era um menino bonito, claro, com a testa alta e os olhos aos-grandes, verdes.” (ROSA,

2001, p. 118). Também no segundo encontro, ocorrido anos mais tarde após o primeiro,

Riobaldo novamente chama atenção para os olhos de Diadorim: “Os olhos verdes,

semelhantes grandes, o lembrável das compridas pestanas (...)” (ROSA, 2001, p. 154).

Sobre esses dois encontros, é curioso o jogo realizado por Guimarães com relação às

aparições de Diadorim: primeiro ele aparece no porto, depois aparece na porta. Tanto o

porto quanto a porta são lugares de entremeio, que dividem dois espaços distintos

sugerindo a travessia, tão marcante na obra. Também a semelhança sonora entre essas

palavras desencadeia a “música subjacente”, teorizada por Gabriela Reinaldo. Fazem

parte dessa música rosiana outras palavras e expressões presentes no relato, que contêm

sonoridades muito singulares e que, discretamente, evocam ritmo e musicalidade como

“vuvu vavava”, “ronda-roda”, “garcejo”, “dansa”, “sofrerzinho”, “cavalheiro-da-sala”,

“jagunçosisso”, “burumbum”, “desmorder os dentes”, “cabeleira sem cabeça”,

“versegurar com os olhos”, “feito coisa-feita”, entre muitas outras.

O canto para o “Acerto de contas”

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Hermógenes matou Joca Ramiro por motivo de inveja e raiva da contradição à

sua opinião no julgamento de Zé Bebelo. É bom esclarecer que Hermógenes, ainda na

época em que pertencia ao bando de Joca Ramiro, era visto por Riobaldo como um

homem muito ruim, que tinha pacto com o Diabo:

Se assina o pacto. Se assina com sangue de pessoa. O pagar é a alma. Muito

mais depois. O senhor vê, superstição parva? Estornadas! “... OHermógenes

tem pautas...” Provei. Introduzi. Com ele ninguém podia? O Hermógenes –

demônio. Sim só isto. Era ele mesmo. (ROSA, 2001, p. 64).

“(...) o Hermógenes era pactário!” (ROSA, 2001. p. 66). Riobaldo se assustava

com essa ideia. Acreditava nos boatos e fofocas por antipatizar-se com o Hermógenes.

“Só o Hermógenes, arrenegado, senhoraço, destemido. Rúim, mas inteirado, legítimo,

para toda certeza, a maldade pura. Ele, de tudo tinha sido capaz, até de acabar com Joca

Ramiro, em tantas alturas.” (ROSA, 2001, p. 425)

Terminado o julgamento, os jagunços tomaram rumos diferentes. Zé Bebelo foi

com seus homens sobreviventes para Goiás; João Gonhá foi para a Bahia; Antenor e

alguns hermógenes seguiram rumo à beira do Ramalhada; Alaripe, Titão Passos,

Riobaldo e Diadorim foram seguindo o São Francisco até depois do Jequitaí; e Joca

Ramiro voltou para São João do Paraíso com Ricarddão e Sô Candelário. Diadorim,

que tanto confiava no Hermógenes e brigava com Riobaldo por modo de defendê-lo,

sentiu-se, pela primeira vez, amedrontado com o comportamento de Hermógenes: “... A

ser que você viu o Hermógenes e o Ricardão, gente estarrecida de iras frias... Agora,

esses me dão receio, meu medo... Deus não queira...” (ROSA, 2001, p. 300).

Pensando no título da música, notamos um caráter de vingança. Acerto de contas

é uma expressão utilizada para representar outra expressão: “você me paga!”. Diadorim

queria cobrar a morte do seu pai, por isso tinha contas para acertar com Hermógenes,

que agora estava em saldo devedor. Assim, podemos notar que a música terá sua base

na passagem da guerra entre bebelos e hermógenes. A música divide-se em introdução,

três estrofes e refrão.

A introdução é composta por uma célula em ostinato (que se repete), que sugere

tensão de acordo com o circumplexo de Russell, isso por apresentar maior atividade e

maior negatividade devido às escolhas de ritmo, sequência de notas e intervalos

incomuns como, por exemplo, a quarta aumentada, isto é, um intervalo de três tons

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(trítono). Esse tipo de intervalo nos provoca inquietação, tanto que na Idade Média ele

era evitado e levava o nome de diablos que, como o próprio nome sugere, representava

algo negativo. O arranjo da música também acaba por contribuir para esse sentimento

através de, por exemplo, andamento e uso de notas em estacato, que é o corte rápido do

som produzido. Todos estes fatores nos encaminham para o setor da negatividade do

circumplexo e, no caso, nos remetem à situação da guerra. A introdução é executada por

um piano juntamente com um contrabaixo, instrumento de timbre grave, fazendo alusão

ao modo rude e grosseiro da vida dos jagunços. Logo após a célula em ostinato, o tecido

musical é preenchido com outros instrumentos. Um dos instrumentos harmônicos

acompanhante é a viola caipira. A viola é um instrumento da família das cordas muito

próximo ao violão. Ela possui um timbre mais agudo e é considerada um dos símbolos

da cultura sertaneja, nos encaminhando, assim, mais uma vez, ao sertão rosiano. Outro

instrumento que colabora com a harmonia é o piano.

É pertinente pensarmos no piano como um instrumento, historicamente,

pertencente à classe burguesa, que remonta a postura urbana em contraposição à viola,

que remonta a postura rural. Podemos refletir por esse viés o encontro entre Riobaldo

(representado pela viola) e o doutor do sertão (representado pelo piano). O jogo entre

dois instrumentos, um considerado clássico3 e outro popular, trazem à música um tom

ousado e interessante. O piano, ainda hoje, é considerado em um instrumento mais

erudito, pelo fato de não atingir massas como outros instrumentos mais práticos e

portáteis, como a viola caipira e o violão. Também, as principais composições para

piano enquadram-se no estilo erudito, ao passo que a viola e o violão já dispõem de um

acervo imensurável de composições populares.

Assim como a música “Notícia do Norte”, “Acerto de Contas” também é em

ritmo de baião, atentando para a tradição sertaneja. Lembramos aqui do conceito de

paisagem sonora explorado por Murray Schaffer. Segundo ele, paisagem sonora seriam

todos os sons que nos remetem a uma paisagem específica. No caso da música em

questão, os compositores tiveram o cuidado de escolher elementos (arranjos,

instrumentos, tipo de interpretação) que pudessem projetar nos ouvintes a paisagem

sonora do sertão. Por isso explicamos a presença de instrumentos percussivos, viola

caipira, dentre outros. Esses elementos buscam compor tal paisagem através dos sons.

Lembramos, ainda, do piano que, opondo-se a esses elementos, completa o jogo dual

3 Estamos entendendo por clássica ou erudita músicas mais complexas, com formas mais distantes da

população, músicas mais raras e que não atingem às massas, o oposto das formas populares.

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presente na música, reiterando a oposição entre o Dr. do sertão e o jagunço, ainda que

letrado, Riobaldo.

As duas primeiras estrofes apresentam a mesma linha melódica, ou seja, são

cantadas da mesma forma, mudando apenas a letra. Inclusive, dentro das próprias

estrofes, a melodia se repete.

O refrão segue com a ideia de coletividade, uma vez que é interpretado por três

vozes simultâneas cantando a mesma melodia em sinal de reforço à afirmação que está

sendo dita. Podemos pensar em discurso coletivo, como se houvesse uma opinião

unânime acerca do que estava acontecendo (a terra em transe, o guerrear). Também o

uso de notas longas pode nos servir de analogia à ideia de amplidão da cena da guerra,

nos fazendo perceber que esta estava espalhada por toda parte, até perder de vista.

Ainda no refrão, torna-se mais perceptível o estilo de cantar dos vocalistas

semelhante ao aboio. O aboio é um tipo de canto dos vaqueiros para tocar a boiada,

muito comum no nordeste e interior mineiro. O aboio quase não usa palavras e procura

seguir o ritmo dos passos dos bois. Assim, notamos que as músicas traduzem não

apenas as histórias do romance, mas também contemplam a tradução das culturas

mimetizadas na obra.

A segunda parte não apresenta novidade. Já a terceira, reflete a mágoa e a

solidão através de acordes dissonantes (com intervalos exóticos, incomuns). Nessa parte

as três vozes seguem com a interpretação e a viola fica em maior evidência. Um arranjo

deve ser observado: um instrumento percussivo (espécie de chocalho) produz um som

semelhante ao sibilamento da cascavel no fundo da melodia. A cascavel é um animal

muito comum no sertão, assim como o aboio, já mencionado. Podemos, então, concluir

que esse dois elementos também ajudam a compor a paisagem sonora. O som da

cascavel ganha novo sentido quando associado a um ser traiçoeiro. Esse sentido parte da

Bíblia, quando uma cobra induziu Eva a comer do fruto proibido no livro de Gênesis.

Trazendo a cobra como sinônimo de traição para Grande sertão: veredas, associamos

esse som à figura de Hermógenes, que traiu Joca Ramiro e todo o bando.

Há nessa terceira parte uma quebra do ritmo dançante, apontando para uma

atmosfera amórfica. A repetição dessa parte é executada por um só homem nos

sugerindo, talvez, a voz de Riobaldo em um momento introspectivo. Trata-se, aqui, de

um discurso individual e interiorano. É importante notarmos o tom interrogativo na

repetição da terceira estrofe da música, implicando dúvida ao fato de a paixão ter se

mantido resguardada. Há nesse tom uma insinuação de que a paixão fora de alguma

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forma exteriorizada. Riobaldo não conseguia conter seu desejo, por mais que o

escondesse. Esse sentimento resistente estava sempre guardado em seu coração.

Também Riobaldo sempre estava junto de Diadorim, se preocupando com ele e sentindo

o que ele sentia, deixando transparecer, ainda que de forma discreta, seu amor, isto é,

não o mantendo tão resguardado. Quando Diadorim passa a ser comparado com a

figura do diabo, a demonstração desse amor fica muito evidenciada em toda a obra.

Trata-se de um jogo que Guimarães faz. Ele esconde o amor de Riobaldo e Diadorim,

deixando-o mais visível do que se imagina. Trataremos disso mais adiante. Por fim, a

entonação interrogativa nos leva a refletir: será que essa paixão realmente se manteve

resguardada?

Percebemos aqui nova diferença entre os sistemas semióticos. A literatura deixa

espaço para a interpretação do receptor, pois as palavras não alcançam as situações e os

sentimentos. É papel do leitor escolher sua própria interpretação diante de um leque de

possibilidades. Não podemos, por exemplo, grafar a ironia. Cabe ao leitor entender o

texto como irônico ou não. Já a música vem com a interpretação direcionada, guiada

pela entonação, diminuindo significativamente esse leque.

Trabalharemos a letra da música em comparação à obra da mesma forma que

fizemos anteriormente, isto é, dividindo-a. Serão, ao todo, quatorze partes. A primeira

parte é formada pelos dois primeiros versos – “O dia: era de acerto/ A data: da

conclusão” –e resume o motivo da guerra que era acertar as contas, vingar a morte de

Joca Ramiro. O termo “data da conclusão” vem antecipar que a guerra será finalizada

ali, naquele momento, uma vez que concluir engloba em seus sentidos os verbos

terminar e finalizar: “A modo que o resumo da minha vida, em desde menino, era para

dar cabo definitivo do Hermógenes – naquele dia, naquele lugar.” (ROSA, 2001, p.

590). Temos aqui a resposta antecipada de um questionamento que será discutido na

parte oito: Riobaldo sabia qual era o seu destino? A última citação vem nos mostrar que

ele não sabia, mas que ele reconheceu o seu destino depois de cumpri-lo.

A segunda parte, versos três, quatro, cinco e seis – “De botar bala no peito/ Não

medir quem é direito/ Nem lembrar quem tem defeito/ Só vazar o coração” –, sintetiza tudo o

que aconteceria naquela guerra. No momento da guerra, os valores e posturas não

importam. Os tiros correm por todos os lados e em todas as direções. Assim, muitos

inocentes e pessoas de boa índole acabam morrendo injustamente, apenas pelo motivo

de estarem no lugar da guerra. Vazar o coração era o comando dos jagunços. Matar

acima da razão e do bom senso. A finalidade de ali estarem era o guerrear.

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Do sétimo ao décimo segundo versos – “Os canos matraqueavam/ De zunir em

queimação/ Tinha bala com endereço/ Outras sem qualquer pretexto/ Se tornavam

adereços/ Em toda povoação” –, temos a terceira parte onde consta a maneira como a

guerra estava acontecendo. As armas zuniam queimando as pessoas com pólvora. Os

verbos matraquear e zunir podem ser considerados onomatopéias que auxiliam a

compreensão do texto e a visualização sonora da cena. Alguns tiros eram trocados por

motivos pessoais e específicos, como, por exemplo, a morte de Joca Ramiro, mas outros

aconteciam sem motivo algum ou pela simples ação de guerrear. As balas atingiam

pessoas ativas na guerra, mas também pessoas que nada tinham a ver com o

acontecimento.

O décimo terceiro verso – “Arrê, terra em transe! Arrê, é o guerrear!” – compõe

a quarta parte. Ela é especial porque, apesar de ter somente um verso, carrega a questão

do guerrear, muito presente e dotada de significações em toda a obra: “- ‘Tempo de

guerrear!’ – eu disse (...)” (ROSA, 2001, p. 482). É válido notar que esse verbo deriva

do substantivo guerra, que já fora trabalhado anteriormente e sobre o qual

desembocamos a tarefa de ligar as músicas à obra. Esse verso nos apresenta, também,

um processo transmidiático, do cinema para a música, já que Terra em transe é o nome

de um filme dirigido por Glauber Rocha, que dialoga, entre outras obras, com Grande

sertão: veredas. Desse modo, temos nesse verso não apenas dois, mas três sistemas

semióticos. O termo transe significa perigo, momento crítico. Notamos, pois, que “terra

em transe” refere-se ao momento pelo qual passava o sertão mineiro, na luta entre

bebelos e hermógenes. Podemos ainda, tomar a expressão transe no sentido de trânsito,

travessia e ampliar as suas significações para Grande sertão: veredas. Outro ponto a ser

demarcado é o uso da expressão “Arrê”, que pode denotar agonia ou apreensão e é

muito utilizada no sertão para tocar boi, retomando a questão do aboio. Essa expressão

também aparece na obra, porém grafada de forma mais semelhante à oralidade: “–

‘Ar’uê, então?!’” (ROSA, 2001, p. 311).

O décimo quarto e décimo quinto versos – “No chão o sangue coalha/ Medo e

ódio se espalham” – retomam a terceira parte com outros acontecimentos da guerra:

sangue coalhando no chão, medo e ódio invadindo a todos. O ódio provinha do desejo

de vingança e o sangue era a consequência da realização desse desejo. Ódio somado à

vingança resulta em guerra. Se a primeira música abordava o motivo da guerra, e essa

segunda música aborda suas consequências, temos, então, a prova de que a guerra é o

nosso signo-chave. “Dali, o Hermógenes não saía com vida, maneira nenhuma,

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testamental. Tive ódio dele? Muitos ódios. Só não sabia por quê. Acho que tirava um

ódio por causa de outro, cosidamente, assim seguido de diante para trás o revento todo.”

(ROSA, 2001, p. 589-590). “Gemidos de todo ódio.” (ROSA, 2001, p. 611).O sangue

coalhado remete à cena em que a mulher do Hermógenes limpa o rosto de Diadorim, já

morto: “(...) limpou as faces de Diadorim, casca de tão grosso sangue, repisado.”

(ROSA, 2001, p. 614).

A quinta parte é formada pelos versos dezesseis e dezenove – “Foi a última

batalha do sertão sem dimensão/ É o mundo dos avessos”. A utilização do adjetivo

última para designar batalha, não só retoma a parte um, que menciona a conclusão da

guerra, como antecipa um acontecimento: a aposentadoria de Riobaldo da jagunçagem.

Ou seja, a última batalha representa tanto a batalha final quanto a derradeira

participação bélica de Riobaldo. Após essa batalha, Riobaldo deixa a vida de jagunço

para viver em tranquilidade: “Resoluto saí de lá, em galope, doidável. Mas, antes,

reparti o dinheiro, que tinha, retirei o cinturão-cartucheiras – aí ultimei o jagunço

Riobaldo! Disse adeus para todos, sempremente.” (ROSA, 2001, p. 616). As palavras

ultimei, adeus e sempremente deixam clara a retirada de Riobaldo do bando. Riobaldo

viveu o resto de seus dias como homem simples e humilde, mesmo tendo herdado duas

fazendas do seu padrinho Selorico Mendes: “(...) eu já estava retirado para ser criador, e

lavrador de algodão e cana.” (ROSA, 2001, p. 183).

A quinta parte nos revela ainda um pouco sobre outro signo muito constante na

obra: o sertão. Não podemos deixar de falar sobre o amor de Guimarães Rosa pelo

sertão de Minas Gerais. Ele não fala do sertão apenas como um conjunto de elementos

naturais, mas também como expressão de valores, culturas e modo de viver. Ao longo

da narrativa, muitos conceitos de sertão são abordados; na música “Acerto de Contas”,

dois desses conceitos são retratados: o sertão mundo dos avessos, e o sertão sem

dimensão. “O sertão está em toda a parte.” (ROSA, 2001, p. 24). Notamos, pois, o

caráter comum, ao romance e a música, do sertão como lugar imenso. Essa imensidão

não advém apenas do tamanho, mas também da quantidade de símbolos, simbologias,

crenças e costumes que habitam esse lugar, tornando-o cada vez maior.

Os versos dezessete e dezoito – “Se pensar, perde a coragem/ Se rezar perde

atenção” –, sexta parte, tratam dos cuidados necessários na guerra: o que não deveria ser

feito a fim aumentar as chances de sobrevivência. Não se deveria pensar, para manter a

coragem, e não se deveria rezar, para manter a concentração: “-‘Carece de ter coragem.

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Carece de ter muita coragem... ’” (ROSA, 2001, p. 124-125). “Sofri rezar, e não podia,

num cambaleio.” (ROSA, 2001, p. 611).

A sétima parte, versos vinte, vinte e um e vinte e dois – “A vingança não tem

preço/ Nem requer lembrar de apreço/ No tecer da situação” – representa os sentimentos

provocados pela vingança, como, por exemplo, a insanidade. No momento de vingar o

vingador se esquece do mundo, dos valores, dos direitos, da razão. Se a vingança

provém do ódio e estimula a perda da razão, temos aqui uma intertextualidade entre as

próprias músicas: “E o mundo se perdeu da razão” (PENHA, 2008). Para se vingar do

Hermógenes, Diadorim não se importou com os riscos que seus companheiros iriam

correr, não se atentou para os cuidados com Riobaldo, já que por este guardava enorme

estima, e não se preocupou com o preço da sua vingança: a própria vida.

A oitava parte dialoga com a primeira. Os versos vinte e três e vinte e quatro –

“O destino estava feito/ A vingança um conceito” – retornam à reflexão sobre o destino

de Riobaldo. Conforme já fora antecipado na discussão da primeira parte da música, o

destino de Riobaldo era vingar a morte de Joca Ramiro, mas foi somente após a guerra

que Riobaldo soube do seu destino:

– “Você sabe do seu destino, Riobaldo?” – ele reperguntou. Aí estava

ajoelhado na beira de mim.

– “Se nanja, sei não. O demônio sabe...” – eu respondi – “Pergunta...”

Me diga o senhor: por que, naquela extrema hora, eu não disse o nome de

Deus? (ROSA, 2001, p. 212).

Na citação acima temos elementos ligados à oitava parte, seguidos por

elementos ligados à nona parte, o que nos faz entender que o compositor transferiu para

a letra da música a cena supracitada.

A nona parte corresponde ao verso vinte e cinco – “O demônio e o redemunho”

– e diz respeito a uma dúvida que percorre toda a obra: Riobaldo fez um pacto com o

diabo? Retomaremos, pois, a discussão iniciada no momento em que tratávamos do tom

interrogativo na repetição da terceira parte da música. No decorrer da narrativa de

Grande Sertão: Veredas, aparecem, em vários momentos, reflexões sobre a existência

do demônio e indagações sobre um possível pacto entre Riobaldo e o diabo:

Então, não sei se vendi? Digo ao senhor: meu medo é esse. Todos não

vendem? Digo ao senhor: o diabo não existe, não há, e a ele eu vendi a

alma... Meu medo é este. A quem vendi? Medo meu é este, meu senhor:

então, a alma, a gente vende, só, é sem nenhum comprador... (ROSA, 2001,

p. 501).

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Como uma das reflexões sobre o diabo, não podemos deixar de citar a

semelhança, já explorada por muitos autores, entre os nomes Diadorim e Diabo. Na obra

mesmo, encontramos indícios que sugerem essa relação. Observemos com cuidado as

citações que seguem: “O que vendo, vi Diadorim – movimentos dele. (...) E tinha o

inferno daquela rua, para encurralar comprido...” (ROSA, 2001, p. 610). O substantivo

rua é acompanhado pelo adjetivo inferno, posto que inferno é a casa do Diabo. Também

o verbo vendo tanto pode ser uma flexão do verbo ver quanto uma flexão do verbo

vender, nos encaminhando outra vez à dúvida: Riobaldo vendera sua alma ao diabo?

“Diadorim a vir – do topo da rua (...)” (ROSA, 2001, p. 610). Se a rua é o inferno, quem

vem do seu topo é o demônio. Essas frases estão situadas, sequencialmente, na mesma

página da obra, bem perto uma da outra, o que sugere ainda mais a proximidade entre

Diadorim e o diabo. O indício maior encontra-se também na mesma página: “... o Diabo

na rua, no meio do redemunho... O senhor soubesse... Diadorim (...)” (ROSA, 2001. p.

610). Aqui podemos concluir que Diadorim pode vir a ser o próprio diabo. O pacto de

Riobaldo era com Diadorim. Riobaldo vendera sua alma, na verdade, ao amor de sua

vida, sendo que vender toma a posição de se entregar.

A frase “O diabo na rua no meio do redemoinho...” aparece já na folha de rosto

do livro, como uma espécie de subtítulo. Daí notarmos a importância destinada a essa

questão. Outro importante fator é que essa frase aparece repetidas vezes com pequenas

alterações, formando nova música subjacente e corroborando para a forte relação

existente entre Música e Grande sertão: veredas:

“O diabo na rua, no meio do redemoinho...” (ROSA, 2001, folha de rosto).

“O diabo na rua, no meio do redemunho...” (ROSA, 2001, p. 611).

“O demônio na rua, no meio do redemunho...” (ROSA, 2001, p. 174).

Notamos, pois, a alternância entre os substantivos diabo e demônio, bem como

redemunho e redemoinho. A alternância entre essas palavras pode simbolizar um efeito

de oralidade que busca aproximar a obra da realidade a qual ela pertence; pode ainda

expressar a instabilidade dos objetos que representam. O diabo é inconstante no

romance, ora aparecendo como real, ora como superstição; ora como o selvagem

comprador de almas, ora como o protetor dos pecadores. O redemoinho surge do nada,

às vezes em dia que nem tem vento; aparece em momentos sombrios levando Riobaldo

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a refletir sobre seu suposto pacto com o diabo. Da mesma forma, assume esse

comportamento incerto, de oscilação.

Chega um momento da obra em que Riobaldo se cansa dessa discussão: “Não

sou do Demo e não sou de Deus!” (ROSA, 2001, p. 510). Nesse ponto cabe fazer uma

ressalva para a fixação de Riobaldo com o lugar de meio. O personagem é dotado de

questionamentos e acaba por sempre se manter na dúvida, entre uma questão e outra

sem se definir. Como exemplos citamos o fato de ele gostar e não gostar de seu

padrinho Selorico, sentir e não sentir saudades da fazenda São Gregório onde crescera,

pensar que fez e que não fez o pacto com o diabo. “A gente não sabe, a gente sabe.”

(ROSA, 2001, p. 150). “Eu devia? Não devia?” (ROSA, 2001, p. 167). “É, e não é. O

senhor ache e não ache. Tudo é e não é...” (ROSA, 2001, p. 27). É como se ele estivesse

em constante travessia, e no fim da obra ele revela: “O diabo não há! É o que eu digo, se

for... Existe é homem humano. Travessia.” (ROSA, 2001, p. 624).

A décima parte é formada pelos versos vinte e seis e vinte e sete – “Na rua facas

em punho/ Quem quis ser, foi testemunho”. Esta parte mimetiza a cena da luta de

Diadorim com Hermógenes:

Ao ferreio, as facas, vermelhas, no embrulhável. A faca a faca, eles se

cortaram até os suspensórios. ... O diabo na rua, no meio do redemunho...

Assim, ah – mirei e vi – o claro claramente: ai Diadorim cravar e sangrar o

Hermógenes... Ah, cravou – no vão – e ressurtiu o alto esguicho de sangue:

porfiou para bem matar! (ROSA, 2001, p. 611).

Facas em punho refere-se ao acerto de contas entre Diadorim e Hermógenes,

enquanto o testemunho fica por conta de Riobaldo, que viu toda a cena, e dos demais

que presenciaram o momento em meio a guerra. Hermógenes foi morto à faca não por

acaso, mas por tradição. No sertão, no tempo da jagunçagem, de acordo com a obra, o

homem que traía tinha de ser morto à faca: “O Judas algum? – na faca! Tinha de ser

nosso costume.” (ROSA, 2001, p. 53). Assim, percebemos que Hermógenes não poderia

morrer de outra forma, pois era um traidor e a tradição deveria ser seguida.

A décima primeira parte, vigésimo oitavo verso – “O fim foi desolação” –,

antecipa a consequência, também interpretada como fim, da guerra: desolação.

Desolação provocada pelas perdas, apesar da vitória na guerra, afinal haviam atingido o

objetivo de acabar com Hermógenes. Desolação de Riobaldo pela morte de Diadorim;

desolação de todos os jagunços por outras perdas: “Diadorim tinha morrido – mil-vezes-

mente – para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejaram.”

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(ROSA, 2001, p. 612). “ – ‘Mortos, muitos?’ – ‘Demais...’” (ROSA, 2001, p. 613).

Percebemos, pois, que, se Diadorim outrora derramara, segundo a música “Notícia do

Norte”, um rio de lágrimas pela morte de Joca Ramiro, os olhos de Riobaldo merajaram,

ou seja, derramaram um mar, pela morte de Diadorim segundo a obra. Nota-se, então, o

caráter hiperbólico presente tanto na música quanto na literatura. Esse exagero produz

um efeito que enfatiza a dor provocada pelas perdas de Joca Ramiro e de Diadorim.

A décima segunda parte completa a décima primeira com outras consequências

da guerra: mágoa e solidão, presentes nos versos vinte e nove e trinta – “E a tarde trouxe

mágoa/ E a noite solidão”. Esta última consequência liga-se à relação de

companheirismo e parceria que existia entre Riobaldo e Diadorim, agora separados para

sempre: “Sufoquei, numa estrangulação de dó.” (ROSA, 2001, p. 614). A passagem

reafirma a dor de Riobaldo pela morte de Diadorim: “(...) assim tristonhamente, a gente

vencia.” (ROSA, 2001, p. 612). Fica claro que a vitória não compensava as perdas.

A penúltima parte, versos trinta e um e trinta e dois – “O estranho se fez claro/

Na nudez revelação” – faz alusão ao romance proibido de Riobaldo e Diadorim. No

primeiro verso encontramos um paradoxo na medida em que o estranho encontra-se

obscuro, sob neblina. Como seria, então, possível o estranho se fazer claro? O estranho

refere-se ao sentimento que Riobaldo destinava ao seu grande amigo. Era um

sentimento acima das suas forças, mas proibido e sufocado, pois Riobaldo pensava que

Diadorim era um homem e, por isso, se negava a acreditar que o amava. O que tornava

esse fato ainda mais estranho era a virilidade de Riobaldo descrita na obra, sempre se

aproximando das mulheres, namorando-as sem tendências homossexuais. Esse amor

carrega uma série de questões sociais rotuladas de problemas como preconceito, homo

afetividade, medo, introspecção. Há que se ressaltar que o fato de Riobaldo ser um

jagunço dificultou ainda mais a materialização desse amor, pois a cultura que o rodeava

na história era dotada de machismo. Dentro das cinco classificações para as imagens

propostas por Santaella, temos através desse amor um exemplo de imagem mental, já

que ele tem base psicológica e fica no plano das ideias: “(...) eu, às loucas, gostasse de

Diadorim, e também, recesso dum modo, a raiva incerta, por ponto de não ser possível

dele gostar como queria, no honrado e no final.” (ROSA, 2001, p. 55). Riobaldo

considerava uma loucura gostar de Diadorim e tinha raiva por não conseguir acabar com

seu sentimento, bem como por não ter a liberdade de vivê-lo. A dúvida e a luta contra

esse amor persistem por toda a obra: “Diadorim, eu gostava dele? Tem muitas épocas de

amor.” (ROSA, 2001, p. 482).

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A revelação só acontece ao fim da narrativa. Depois de ser morto na guerra,

Diadorim foi recolhido a uma sala onde limpariam o seu corpo e lhe vestiriam roupas

limpas para ser enterrado. Foi no momento em que a viúva do Hermógenes despiu

Diadorim que a revelação aconteceu: “(...) tanto segredo, sabendo somente no átimo em

que eu também só soube... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita...

Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa.” (ROSA, 2001, p. 615). Essa

passagem nos revela dois pontos: a verdadeira identidade de Diadorim e o motivo do

amor de Riobaldo. A surpresa dessa revelação causou enorme impacto em Riobaldo,

levando-o à depressão por um período de tempo: “O que eu pensei, o pobre de mim. (...)

me vinha um assombramento de espírito (...)” (ROSA, 2001, p. 617). “Como é que

sabia destornar contra minha tristeza?” (ROSA, 2001, p. 617). A verdadeira identidade

de Diadorim fora revelada. Diadorim, na verdade se chamava Deodorina, que tem o

radical latino da palavra Deus (Deo). Diadorim e o diabo. Deodorina e Deus. A real

dúvida de Riobaldo era se fizera o pacto com o Diadorim que ele conhecia ou com o

Diadorim que realmente existia (Deodorina). Ele se entregara ao Diadorim Diabo ou à

Deodorina Deusa?

Os três últimos versos – “A paixão tão rechaçada/ Se manteve resguardada / No

final da contação” – formam a última parte da música, que completa a décima terceira

parte, e dá continuidade à exploração do romance entre Riobaldo e Diadorim. Podemos

notar também a ideia de contação no sentido de infinidade, de narrativa sem fim, tal

como demarca o próprio Rosa.

Primeiro esses versos falam da proibição desse amor metaforizado pelo adjetivo

rechaçada. Esse amor proibido pode ser encontrado na seguinte passagem:

Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um

feitiço? Isso. Feito coisa feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava.

Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar

por longe, e eu só nele pensava. E eu mesmo não entendia então o que aquilo

era? Sei que sim. Mas não. E eu mesmo entender não queria. Acho que.

Aquela meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de sempre. E em

mim a vontade de chegar todo próximo, quase uma ânsia de sentir o cheiro

do corpo dele, dos braços, que às vezes adivinhei insensatamente – tentação

dessa eu espairecia, aí rijo comigo renegava. Muitos momentos. Conforme,

por exemplo, quando eu me lembrava daquelas mãos, do jeito como se

encostavam em meu rosto, quando ele cortou meu cabelo. Sempre. (ROSA,

2001, p. 162-163).

Riobaldo envergonhava-se dos seus sentimentos e tentava lutar contra eles, mas

em seu íntimo os guardava com prazer. Ilustra-se uma luta constante entre razão e

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emoção. O sentimento permanecera às escuras, interiorizado, escondido ao máximo. O

amor fora rechaçado devido a uma questão cultural da qual Riobaldo estava

embriagado.

Depois esses versos culminam com o fim destinado ao amor dos personagens: a

não realização. Com a descoberta e explicação para todo o seu tormento, Riobaldo não

consegue se conter: “Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. (...) E eu não sabia

por que nome chamar; eu exclamei me doendo: ‘Meu amor!...’” (ROSA, 2001, p. 615).

Temos com essa passagem a prova de que o amor não se mantivera plenamente

resguardado, mas também não se concretizara.

Retomando a primeira seção, percebemos que a relação entre signo, objeto e

interpretante proposta por Santaella é variável quando um dos três elementos é mudado.

Para o intérprete Diadorim, o signo guerra liga-se ao objeto vingança (causa), mas para

Riobaldo o mesmo signo liga-se ao objeto revelação (consequência). Na linguagem de

Saussure teríamos um mesmo significante com dois significados distintos. Na

linguagem de Hildo Honório Couto, teríamos:

C (guerra – causa) C (guerra – consequência)

/ \ / \

S--------O S-------O

Diadorim vingança Riobaldo revelação

A transposição da obra para a música é realizada de maneira cuidadosa, uma vez

que poucos versos conseguem traduzir variadas cenas e passagens da obra como a

dúvida de Riobaldo com relação ao pacto com o diabo, o amor proibido por Diadorim, o

sertão e algumas tradições. A composição “Acerto de Contas”aborda, de certa maneira,

um resumo de toda a obra Grande sertão: veredas.

A reinterpretação de vários dos signos presentes em Grande sertão: veredas,

dentre os quais o signo guerra, através das músicas, demandam para esses signos o

caráter de significante perfeito, afinal, são novos signos formulados a partir de antigos

conceitos.

De acordo com Rosa, “a música da língua deve expressar o que a lógica da

língua obriga a crer (ROSA, apud Lorenz, 1983, p. 88). Ou seja, a língua dispõe de

uma musicalidade que deve ser observada e valorizada. A música, por sua vez,

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representa a sonoridade da palavra, que deve nos remeter ao seu significado. Por

exemplo, o uso da sibilante “s” para a palavra serpente é de extrema pertinência,

uma vez que nos remete ao som produzido pelo próprio animal. É sobre essa

relação de som e significado que Rosa vem refletir.

Gabriela Reinaldo argumenta que “(...) o que a palavra em seu uso ordinário

não diz, a música sugere.” (REINALDO, 2005. p. 22). Assim vem estreitar as

convergências entre esses sistemas colocando-os como independentes e

complementares, o que quer dizer que eles não sobrevivem por si só, mas juntos

ou contrapostos ganham novas dimensões.

Portanto, não há como não mudar o texto quando mudamos o meio de

veiculação. Todavia, essa mudança é necessária para que não haja grandes discrepâncias

entre as ideias do texto que serviu de base e do texto que foi baseado nele. No caso do

Nahmbuzim, as ideias se mantiveram quase que imutáveis.

Algumas das diferenças entre os sistemas semióticos, aqui apontadas, foram:

alteração na ordem de alguns acontecimentos, sintetização do texto original, uso de

recursos (instrumentos, ritmos, melodia) para traduzir algumas ideias, encenação por

meio de elementos musicais (escalas, notas longas, entonação) e interpretação prévia

proporcionada pelos vocalistas. Apesar de todas essas diferenças, os textos são

semelhantes e, na tradução para a música, o texto original não perdeu sua essência.

Entendendo por texto original aquele que veio primeiro, que serviu de base para uma

tradução. Não podemos deixar de mencionar a presença do signo guerra em ambos os

sistemas semióticos. O romance se inicia com barulhos de tiro. Foi a guerra o principal

fator que nos permitiu analisar as músicas em relação à obra. A guerra como causa

originou a música “Notícia do Norte” e como consequência originou a música “Acerto

de contas”. Se uma música expressa a causa e a outra consequência, notamos a forte

ligação entre elas. Temos, então, uma espécie de narrativa musical, fragmentada em

diferentes canções, mas que dá conta da estrutura segmental da linguagem do texto

literário.

O grupo Nhambuzim teve os devidos cuidados ao realizar essa tradução, a

começar pela escolha do sistema semiótico (música), que é muito pertinente às obras de

Guimarães Rosa, já que estão repletas de musicalidade.

As músicas trabalhadas integram ou mesmo facilitam a compreensão da obra,

reforçando ideias, apresentando novas, ou talvez propondo um novo olhar para um

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trecho, passagem ou cena específica. Nesse ponto, notamos a relevância de casar música

e literatura, concluindo que esses sistemas são, além de pertinentes um ao outro,

complementares.

Referências

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Anexo A – Notícia do Norte

Música: Joel Teixeira

Letra: Edson Penha

insp. emGrande Sertão: Veredas

1 Brabo pardo chegou banhado de lama

2 Gavião-cujo que veio do norte

3 Trouxe agouro e notícia de morte

4 Notícia do fim de Joca Ramiro

5 No céu moídas as nuvens da dor

6 No céu brotaram as nuvens do ódio

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7 Um bramava, um calava

8 Um outro caía

9 Traição pelas costas

10 Zunido de bala

11 Trouxe raiva e vingança de morte

12 Vingança ao fim do grande Ramiro

13 No céu moídas as nuvens da dor

14 No céu brotaram as nuvens do ódio

15 Amigo olhar-de-esmeralda

16 Caiu e de fúria explodiu

17 Um rio de lágrimas sobre a face vermelha

18 Um rio de lágrimas

19 Vazio ficou o chão

20 E o mundo se perdeu da razão

21 Vazio ficou o chão

22 E o mundo se perdeu da razão

Anexo B – Acerto de Contas

Música: Joel Teixeira e Edson Penha

Letra: Edson Penha

insp. emGrande Sertão: Veredas

1 O dia: era de acerto

2 A data: da conclusão

3 De botar bala no peito

4 Não medir quem é direito

5 Nem lembrar quem tem defeito

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6 Só vazar o coração

7 Os canos matraqueavam

8 De zunir em queimação

9 Tinha bala com endereço

10 Outras sem qualquer pretexto

11 Se tornavam adereços

12 Em toda povoação

Refrão

13 Arrê, terra em transe! Arrê, é o guerrear!

14 No chão o sangue coalha

15 Medo e ódio se espalham

16 Foi a última batalha do sertão sem dimensão

17 Se pensar, perde a coragem

18 Se rezar perde atenção

19 É o mundo dos avessos

20 A vingança não tem preço

21 Nem requer lembrar de apreço

22 No tecer da situação

23 O destino estava feito

24 A vingança um conceito

25 O demônio e o redemunho

26 Na rua facas em punho

27 Quem quis ser, foi testemunho

28 O fim foi desolação

Refrão

29 E a tarde trouxe mágoa

30 E a noite solidão

31 O estranho se fez claro

32 Na nudez revelação

33 A paixão tão rechaçada

34 Se manteve resguardada

35 No final da contação