Fern a Opes Soar Amos O Que Document a Rio

download Fern a Opes Soar Amos O Que Document a Rio

of 11

Transcript of Fern a Opes Soar Amos O Que Document a Rio

  • 8/9/2019 Fern a Opes Soar Amos O Que Document a Rio

    1/11

    O que Documentrio?

    Ferno Pessoa RamosUNICAMP

    A questo com a qual iniciamos, de

    modo um pouco provocativo, nosso ar-tigo, constitui-se da seguinte forma: existea especificidade do campo no-ficcional,seja na tradio documentria que remontaaos anos 30, seja no contato da imagemno ficcional com o cinema de vanguardaconstrutivista, seja nas inovaes formaistrazidas pelo cinema direto/verdade, seja,ainda, nas experincias de narrativa em pri-meira pessoa do final do sculo XX? Existealgo estruturalmente comum ao campo no-ficcional, abrangendo tambm o espao quehoje cobre as novas mdias e suportes digi-tais? A questo est em se podemos afirmara existncia de um campo heterogneo, tra-balhado em sua substncia imagtico-sonoracomum, dentro de um leque amplo que vaidas experincias com "web cmeras"em si-tes da Internet, passa por narrativas seriaisdo tipo "Reality TV"("No Limite", "Sur-vivors", "Big Brother"), servindo tambm

    para as diversas composies de estilo do-cumentrio mais clssico, veiculadas por tvsa cabo, alternando formas como depoimen-tos/entrevistas e voz over explicativa. Ummesmo campo que tambm teria, em suasfronteiras, propostas no estilo "docudrama",

    in Ramos, Ferno Pessoa e Catani, Afrnio(orgs.), Estudos de Cinema SOCINE 2000, Porto Ale-gre, Editora Sulina, 2001, pp. 192/207

    dramatizando/reconstituindo eventos extra-

    ordinrios (crimes, acidentes, etc) ou fatoshistricos realmente ocorrridos, no eixo deprogramas do tipo "Linha Direta"(que traz odocumentrio "The Thin Blue Line", de Er-rol Morris, como sua principal fonte inspira-dora). Ser que podemos caracterizar o do-cumentrio, dentro de uma equivalncia en-quanto gnero, a partir de outras tradiesnarrativas do cinema, como o western, o mu-sical, o filme noir? Seria o documentrioum gnero como outros, ou teria o docu-mentrio caractersticas imagticas (e sono-ras) estruturais que o singularizariam desteoutro vasto continente da representao comimagens-cmera que a fico narrativa (emseus formatos diversos de filme -longa oucurta-, mini-srie, novela)?

    Nestes ltimos anos, o campo bibliogr-fico sobre cinema no ficcional tem sidopercorrido por alguns ttulos1 , que bus-cam definir parmetros para se pensar esta

    produo. So textos que inserem-se emum recorte que chamamos de "cognitivista-

    1 - Ponech, Trevor. "What Is Non-Fiction Ci-nema?". Westview Press, 1999.

    - Plantinga, Carl. "What is a Nonfiction Film",primeiro captulo de "Rethoric and Representation inNonfiction Film", Cambridge University Press; 1997.

    - Carroll, Nol. "From Real to Reel: Entangled inNonfiction Film"in "Theorizing the Moving Image".Cambridge University Press, 1996.

  • 8/9/2019 Fern a Opes Soar Amos O Que Document a Rio

    2/11

    2 Ferno Pessoa Ramos

    analtico". ntido em sua formulaes umapostura de contra-reao. Seu objeto aideologia, ainda dominante em nossa poca,que tem um certo orgulho em mostrar fron-teiras tnues entre os campos da fico eda no-fico, embaralhando definies. Oembate, por assim dizer, que traz a marcade discusses conceituais mais amplas, en-volve distintas concepes da narrativa comimagens em movimento. Esta contraposioentre diferentes abordagens, s vezes for-

    nece a impresso de um dilogo de surdos.Ambas esto corretas dentro dos pressupo-stos nos quais definem o campo da argumen-tao, mas so pouco convicentes ao olha-rem a seara alheia, a partir do prprio en-torno conceitual.

    No Brasil, reina de um modo difuso, masuniforme, o discurso que reivindica a noespecificidade do campo no ficcional. Nelepodemos encontrar embutidos alguns pila-

    res do pensamento contemporneo de ori-gem ps-estruralista. A linha mais corri-queira deste raciocnio, desenvolve-se den-tro de uma postura que valoriza o desafio anormas estabelecidas. Negar o campo do-cumentrio, equivale aqui a estabeler umaruptura. O documentrio visto como umcampo tradicional, com regras a serem se-guidas. Extrapolar estas fronteiras um ates-tado de inventividade e criatividade. O logroque uma narrativa ambgua, eventualmente,pode pregar no espectador, serve como mo-delo. interessante notar como este tipode narrativa encontra-se no mago da sen-sibilidade esttica de nossa poca, provo-cando uma espcie de atrao irrefrevel so-bre o movimento de anlise. Uma narra-tiva aparentemente documentria, que ter-mina como fico, seria a prova da impos-

    sibilidade de uma distino analtica clara2.Discutir fronteiras e definies surge comoalgo ultrapassado, pois reafirma a possibi-lidade de um saber que desloca, do centroda arena, o recorte analtico que gira emtorno de variaes sobre a fragmentao sub-jetiva (seja na anlise, seja no discurso fl-mico propriamente). Uma pesquisa maisdetalhada neste setor, deve contrapor a de-finio do campo documentrio dentro dorecorte analtico-cognitivista (Carroll, Plan-

    tinga, Ponech) com a bibliografia que tra-balha a no fico dentro do horizonte ps-estrutural (Renov, Nichols, Odin).

    O ponto de vista contrrio possibili-dade de definio do campo documentrio,costuma trazer em seu mago um outro ar-gumento caro ao pensamento contempor-neo: a questo da reflexividade do discursocinematogrfico. Em geral, o discurso quetem na reflexividade seu ponto de fuga tico,

    sustentado pela negao da possibilidadede uma representao objetiva do real. En-contramos, no horizonte, novamente a preo-cupao do pensamento contemporneo emfrisar a fragmentao da subjetividade quesustenta a representao. A reflexividade, narealidade, a sada, no vetor tico, do dis-curso que gira em volta do posicionamentosubjetivo estilhaado. Podemos detalhar estaidia.

    2O Sanduche (2000) curta (14 min.) deJorge Furtado, revela bem a atrao que exerce so-

    bre a sensibilidade contempornea as narrativas emabismo, nas quais os campos ficcionais e docu-mentrio sobrepe-se sem definio clara. Tambmem debates e palestras, documentaristas contempor-neos (Furtado, Salles, Coutinho, entre outros) revelamnitidamente a valorao positiva implcita na indefi-nio de fronteiras.

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/9/2019 Fern a Opes Soar Amos O Que Document a Rio

    3/11

    O que Documentrio? 3

    Existe uma confluncia entre esta visode uma necessria opacidade no movimentoda representao e o eixo tico atravs doqual o documentrio consegue ser pensadohoje. Assumir um campo especfico ao do-cumentrio, seria assumir a possibilidade deuma representao objetiva, transparente. Oraciocnio desenvolve-se, mais ou menos, naseguinte linha:

    1. parte-se do postulado de que, para al-

    guns, o documentrio busca, ou temcomo objetivo, estabelecer uma repre-sentao do mundo;

    2. na medida em que o postulado estestabelecido ("eu posso representar omundo", diria necessariamente o do-cumentarista), a ideologia dominante,hoje, sobrepe facilmente a esta possi-bilidade o seu carter especular e falsa-mente totalizante;

    3. a isto segue-se o discurso sobre a ne-cessria fragmentao do saber e dasubjetividade que sustenta a represen-tao;

    4. e, necessariamente atrelado, surge asada tica dominante da ideologia con-tempornea: a reflexividade como po-stura correlata ao indispensvel recuodo sujeito (pois necessariamente frag-mentado, seno imediatamente ideol-gico) na articulao da representao.Poderamos dizer: o recuo reflexivo o ponto cego ideolgico da ideologiacontempornea. o ponto cego ondea ideologia da tica contempornea noconsegue ver-se enquanto tal. Em ou-tras palavras: tico mostrar o processode representao; no tico construir

    a representao para sustentar a opiniocorreta (como defendiam Grierson, ouEisenstein, em um outro parmetro).

    Podemos perceber que, neste discurso,surgem embaralhados dois campos: o da im-possibilidade de afixarmos um saber, ou umarepresentao; e a pr-concepo de que odocumentrio, necessariamente, traz a pre-suposio de uma representao totalizanteque afixe este saber. Ao apontarmos para o

    carter ideolgico (para seu carter de dis-curso, de representao) das formulaes emtorno da fragmentao do sujeito que sus-tenta a representao (geralmente acompan-hadas da tica da reflexividade), tambmafirmamos que o questionamento dominantehoje do campo documentrio, constitui-sea partir de uma viso de mundo que notraz em si, automaticamente, a universali-dade de seus pressupostos. Ou seja, existe

    uma pobreza analtica em ter-se este eixo, re-petidamente, como eixo universal para an-lise. Debita-se ao documentrio uma certainocncia epistemolgica, cometendo-se umduplo erro: 1) analisar o documentrio a par-tir de um discurso inocentemente totalizadore transparente (o que no corresponde rea-lidade, em funo da diversidade estilsticaque vimos tentando afirmar para o campo);2) e, mesmo se assim o fosse, ter um par-metro relativamente pobre para julg-lo: oparmetro que gira exclusivamente em tornoda nfase na fragmentao subjetiva comosada tica. O discurso contemporneo so-bre a sobreposio do campo ficcional e docampo documental, na realidade, responde ademandas posicionadas a partir deste "duploerrro".

    Como oposio representao totali-zante e necessariamente transparente que o

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/9/2019 Fern a Opes Soar Amos O Que Document a Rio

    4/11

    4 Ferno Pessoa Ramos

    conceito de documentrio implicaria, retira-se uma evidncia, atestando a presena dadimenso discursiva. A partir desta con-statao, transfere-se para a presena da di-menso discursiva, a evidncia da dimensoficcional do documentrio. Como se espes-sura de procedimentos discursivos e ficofossem sinnimos, ou ainda, como se o nicodispositivo discursivo vlido para o docu-mentrio fosse apontar em direo s suasprprias condies de enunciao. Em de-

    senvolvimentos mais elaborados, afirmadoque todas narrativas com imagens possuemestatuto enunciativo, o que as tornaria simi-lar, sejam ou no ficcionais. A constataoda espessura da enunciao leva, neste caso, negao do documentrio como especifici-dade, pois, ao afirmar a especificidade, tera-mos que sustentar a existncia de uma re-presentao transparente. O crculo entofecha-se, o que feito s custas de um fr-

    gil raciocnio de partida.Ao localizar o documentrio no eixo deuma viso inocente da representao darealidade, carregada com o vis especular,transfere-se para fora deste campo, o uni-verso da representao, que traz em si umposicionamento moderno, contemporneo,do sujeito em interao com o mundo que lhe exterior, constituindo e dando ensejo ati-vidade de representao. Enquanto o docu-mentrio identificado com uma posio in-ocente, que traz em si a representao espe-cular do real, toda espessura da represen-tao depositada no lado da fico. Cam-pos so diludos de qualquer especificidade eo grande sol da enunciao, das estruturas delinguagem envolvidas no movimento da re-presentao, ocupa o horizonte indistinto dafico e da no fico.

    Vejamos agora de que modo se confi-gura, com relao a esta questo, o outrorecorte analtico do campo documentrio,mencionado no incio deste artigo comocognitivista-analtico. Neste horizonte defendido de modo claro a possibilidade deuma definio bem mais rgida do docu-mentrio e de suas fronteiras com a fico.Sintomtico desta posio so os artigos, jcitados em nota, que surgem, na segunda me-tade da dcada de 90, com ttulos propondo

    definies rgidas. Alguns ironicamente, ou-tros mais a srio, buscam levar a emprei-tada adiante, dedicando-se misso de de-finir um campo fechado para a narrativa no-ficcional, a partir de onde ficariam ntidos osrecortes. clara a inteno polmica destestextos, na prpria propositura de um campoespecificamente definido como no sendoficcional. Conforme j mencionamos, umadas posturas mais fortes na ideologia domi-

    nante contempornea , exatamente, a n-fase na sobreposio de fronteiras e a nfasena impossibilidade de estabelecer-se cam-pos, conceitos e categorias definidas.

    A definio de alguns lugares comuns daideologia dominante contempornea, comopertencendo a um campo comum, denomi-nado de ps-estruturalista, j , em si, mo-tivo para polmica. A abordagem do eixoanaltico-cognitivista desloca-se da preocu-pao (central para o ps-estruturalismo)com o posicionamento subjetivo, em direo uma anlise da enunciao documentriadentro de parmetros conceituais prximosda lgica formal. Nol Carrol, em "Fiction,Non Fiction, and the Film of PresumptiveAssertion: a conceptual analysis"3, dedica-se

    3 in Allen, Richard e Smith, Murray. "Film Theoryand Philosophy". Oxford University Press, 1997.

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/9/2019 Fern a Opes Soar Amos O Que Document a Rio

    5/11

    O que Documentrio? 5

    a recuperar o conceito de "verdade"na repre-sentao documentria, a partir de um tra-balho da enunciao documentria pensadaenquanto proposies lgicas. Evidente-mente, recuperar a idia de que uma re-presentao documentria possa ser "verda-deira"ou "falsa", deslocando o eixo ticocentrado na reflexividade, um desenvolvi-mento bastante polmico.

    Para a reflexo lgico-analtica, dizer queo documentrio existe e pode ser localizado,

    significa, portanto, retirar o eixo da an-lise da questo do posicionamento subjetivo,como horizonte exclusivo para se trabalhara representao. Ou melhor, significa dizerque a representao possvel, sem que anecessria modstia do sujeito que a prope,deva ser o ncleo de sua tematizao. Pornecessria modstia, entendemos o campoda reflexividade do discurso e as temati-zaes em torno da interferncia subjetiva

    na representao (e seu necessrio recuo)que ocupam o pensamento contemporneo.Deslocando-se o horizonte tico da mods-tia do sujeito face representao, abre-se ocampo para uma carga analtica sistemticamais desenvolta. Em outras palavras, pode-remos tematizar aqui o significado de umaposio analtica que no mais se centrarexclusivamente em uma posio tica, quegira em torno da constante reteno das am-bies epistemolgicas do sujeito que sus-tenta a representao.

    Na realidade, a abordagem anlitica situa-se em um outro universo ideolgico, ondea preocupao maior est localizada noestabelecimento de um mapeamento lgico-cognitivo do campo do discurso docu-mentrio. Na prpria medida em que estemapeamento creditado como possvel, im-plicando necessariamente na afirmao de

    um saber, est condenada a posio descon-fiada com as ambies subjetivas. O mape-amento lgico implica um saber, e este sa-ber ir ser novamente afirmado na definiodo campo documentrio. Definir o que do-cumentrio, na realidade, faz parte de umaestratgia provocativa, de conquistar espaomexendo os cotovelos.

    O pensamento analtico que assume a pos-sibilidade de uma definio do campo do-cumentrio, trabalha basicamente como dois

    conceitos centrais: o de "proposio asser-tiva"e o de "indexao". O primeiro designao campo documentrio como aquele ondediscurso flmico carregado de enunciadosque possuem a caracterstica de serem as-seres, ou afirmaes, sobre a realidade. Nodocumentrio realizaramos asseres sobreaspectos diversos do mundo que nos cerca.Uma assero um enunciado que trazum saber, na forma de uma afirmao, so-

    bre o universo que designa. "Cabra Mar-cado Para Morrer", por exemplo, contm as-seres, proposies na forma da afirmaes,(seja como entrevista/depoimento ou em vozover), sobre a vida de uma famlia que teveseu destino desviado pela instaurao do re-gime militar no Brasil. "Conterrneos Vel-hos de Guerra"contm asseres sobre a con-struo de Braslia e a vida dos operriosenvolvidos nesta ao. "Drifters", de JohnGrierson, caracterizaria-se por constituir-seem discurso composto por enunciados asser-tivos sobre a pesca industrial na Inglaterrados anos 30.

    O documentrio tomaria, ento, sua sin-gularidade da fico, ao possuir uma formaespecfica de representao, composta porenunciados sobre o mundo, caracterizadoscomo asseres. Estas asseres, por suavez, podem ser analisadas como propo-

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/9/2019 Fern a Opes Soar Amos O Que Document a Rio

    6/11

    6 Ferno Pessoa Ramos

    sies, a partir de procedimentos que pos-suem a estrutura da lgica formal, no ho-rizonte. O estatuto discursivo do do-cumentrio seria o mesmo, por exemplo,daquele que est contido na afirmao "oprofessor Pedro d aulas na UniversidadeEstadual de Campinas s quinta-feiras demanh". Este enunciado contm uma as-sero sobre o mundo a que pertence o pro-fessor Pedro e traz em si uma afirmao quepossui, em um grau razovel de previsibili-

    dade, uma assero que poder ser confir-mada semanalmente. No est no horizontedesta assero o logro do destinatrio. Ofato de o professor Pedro deixar de com-parecer universidade em uma determinadaquinta-feira, igualmente no a invalida. Ouseja, ao designar a realidade de que este pro-fessor comparece universidade s quintas,no est no horizonte do razovel supor queele estar l sistematicamente aos domingos.

    O discurso documentrio seria uma narra-tiva com imagens, composta por asseresque mantm uma relao, similar a esta,com a realidade que designam. E nestesentido, que deve ser analisado em sua re-lao com o real que designa. O pensamentops-estruturalista ao minar repetidamente aposio do sujeito enquanto sustentculo darepresentao tem, como defeito, para o re-corte analtico, a fatalidade de trabalhar comexcees. Evidentemente o logro poss-vel, mas concentrar-se, de modo despropor-cional, em narrativas que demonstrem a ne-cessria fragilidade da inteno do saber, le-varia a anlise a enunciados falaciosos. A as-sero documentria deve, para a abordagemanaltica, ser definida e trabalhada a partirde proposies lgicas, que fecham o campopara a definio de seu contedo de verdade.

    O segundo conceito que mencionamoscomo fazendo parte da viso logico-analticado documentrio pode ser definido como "in-dexao". importante no confundi-lo com"indicialidade", que designa uma potencia-lidade da imagem bastante distinta. Por in-dexao, entenda-se um conceito que apontapara a dimenso pragmtica, receptiva, dodocumentrio. A idia que, ao vermos umdocumentrio, em geral temos um saber so-cial prvio, sobre se estamos expostos a uma

    narrativa documental ou ficcional. Comoespectadores, fruimos a narrativa em funodeste saber prvio. Novamento aqui, o logrodo espectador possvel, mas est longe dese constituir regra. O fato da ambigidadedo estatuto de uma narrativa cinematogrficapoder facilmente ser construda (o ltimogrande exemplo, neste campo, talvez seja "ABruxa de Blair"), no parece ser metodologi-camente significativo para esta abordagem.

    Na ampla maioria dos casos, efetivamente,sabemos o que significa uma narrativa docu-mental, que tipo de imagens contm, e rea-gimos, enquanto espectadores, a este saber.Socialmente, uma srie de procedimentosnos informam o tipo de narrativa a que esta-mos tendo acesso. Tambm aqui, razovelafirmar que o estatuto de documentrio oufico, que a narrativa adquire socialmente,em geral coincide com os objetivos dos rea-lizadores do filme. Embora exista toda umareflexo que debrua-se sobre as excees regra, nada impede que um pensamento so-bre a regra propriamente (ou seja a coinci-dncia entre a indexao, os objetivos dosrealizadores e a postura espectatorial) tam-bm seja considerada relevante. O import-ante destacar que, para alm de sua aco-plagem ao conceito de proposio assertiva(de onde podemos distinguir sua concepo

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/9/2019 Fern a Opes Soar Amos O Que Document a Rio

    7/11

    O que Documentrio? 7

    originria), a evidncia da indexao intro-duz uma dimenso propriamente pragmtica,que designa uma relao de duas vias com odestinatrio do discurso, dentro do contextosocial no qual a narrativa concretamente seinsere.

    Para tematizarmos do lado de fora as pro-postas da abordagem cognitivista-analtica,tentaremos desenvolver uma abordagem quetrabalhe com a especificidade da imagem do-cumentria, mas situando-a em um campo

    no estritamente lgico-formal. Ou seja, nosinteressa da crtica analtico-formal a abor-dagem que desloca a fragmentao subjetivado centro da anlise, mas sentimos os li-mites das discusses que reduzem o campodocumentrio a enunciados lgicos. Entreuma proposio e uma imagem vai uma di-ferena grande, mesmo se, metodologica-mente, procedimentos advindos da filosofiada linguagem possam ser teis para ampliar

    o campo temtico em torno do qual giramas anlises do documentrio. Neste sentido,sentimos dificuldades em acompanhar Car-roll4 em sua negao da singularidade epis-temolgica da imagem cmera, ou, em seustermos, da "mdia"envolvida na tomada eexibio desta imagem (o que critica como"medium-essentialism"). A imagem docu-mentria pode ser pensada a partir de estru-turas recorrentes da composio imagtica,em niveis distintos envolvendo:

    a) a produo desta imagem atravs do quechamamos "tomada", constituda a partir dapresena de um "sujeito"no mundo susten-tando a cmera (o sujeito da cmera);

    4 Particularmente em From Real to Reel:Entangled in Nonfiction Film e em Defining the Mo-ving Image in Carroll, Nol. Theorizing the Moving

    Image. Cambridge University Press, 1996.

    b) a composio desta imagem comoimagem maqunica, mediada pela mquinacmera, implicando na dimenso indicialdesta imagem a partir do trao do transcor-rer do mundo no suporte (seja este suportedigital, videogrfico ou pelcula);

    c) a dimenso pragmtica desta imagem,ao fundar a relao espectadorial, no modoque tem o espectador de poder "lanar-se"circunstncia da "tomada"fundada pelo su-jeito da cmera.

    Pensemos em um caso extremo, para mel-hor mapear a especificidade do campo daimagem documentria, conforme a enten-demos: a imagem da morte. A imagem-cmera da morte real possui uma forte in-tensidade que nos absorve por completo enos coloca em posio desconfortvel comrelao ao que est sendo exibido. Umaimagem de morte real constitui-se em umaespcie de fronteira, onde a posio espec-

    tadorial possvel. Uma fronteira tica, in-clusive, onde a fruio do horror traz emsi uma poro inevitvel de m-conscinciapelo desbalano entre a desgraa represen-tada e o prazer obtido com a representao.A este desnvel chamamos sadismo, e suafruio traz uma postura que no aceitasocialmente em nossa sociedade. Os roma-nos tiravam prazer em ver seres humanosdevorados ou mortos na arena. Na socie-dade contempornea ocidental, este prazer condenado. No entanto, ainda podemos teruma parcela deste prazer da arena com umaimagem de morte real, se tal fruio da re-presentao da morte nos atrai. Mas tambmeste posicionamento suscetvel de crtica.Uma imagem-cmera de morte real no algo para o qual olhamos de modo indife-rente.

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/9/2019 Fern a Opes Soar Amos O Que Document a Rio

    8/11

    8 Ferno Pessoa Ramos

    A posio espectadorial que acabo de de-linear acima refere-se, evidentemente, umaimagem de morte que seja indexada comono ficcional, uma imagem de morte real.Que reao provocaria no mesmo especta-dor uma imagem de morte da qual fosse in-formado tratar-se de encenao e que corre-spondesse, dentro do horizonte de indexaono qual nos locomovemos, uma imagemficcional, encenada de acordo com os pro-cedimentos corriqueiros que cercam nossa

    noo do que fico? Aparentemente nen-huma das emoes acima descritas acom-panharia a fruio de uma morte represen-tada ficcionalmente. Os filmes de ficoesto carregados de imagens de morte quenos provocam um tipo de emoo evidente-mente distinta. Morte ou beijo, morte ou de-spedida, morte ou batida de carro, a emoono espectador provocada por estes eventosparece poder ser equalizada.

    A imagem no ficcional, disposta ou noem narrativa documentria, tem como pa-radigma esta intensidade prpria imagemda morte, e nisto singulariza-se. A mesmaintensidade que apontamos atrs em umaimagem de morte real podemos localizar, emdiferente grau, nas tomadas que configura-ram, na dcada passada, momentos paradig-mticos da histria do sculo: o espanca-mento de Rodley King pela polcia de LosAngeles, o massacre dos sem-terra no Par, oassassinato cometido pela polcia paulista naFavela Naval. Outras imagens paradigmti-cas podem ser citadas nesta mesma linha,buscando exponenciar a questo da intensi-dade da imagem-cmera: o estudante chinsdesafiando uma coluna de tanques na Praada Paz Celestial; a exploso da nave Disco-very; a morte de Airton Senna; o assassinatode John Kennedy; os astronautas americanos

    dando os primeiros passos na Lua. Exemp-los podem ser multiplicados ao infinito. Estetipo de imagem possui um estatuto particu-lar em nossa sociedade. As comoes so-ciais que sua exibio provoca, so prova daintensidade exponencial que estas imagenspossuem. Imagens pictrias ou descriesorais/escritas de testemunhas oculares, a par-tir dos mesmos fatos, obtm reaes qua-litativamente diversas. Em nosso ponto devista, este tipo de intensidade deve colocar-

    se no cerne de qualquer trabalho analticomais amplo que debruce-se sobre as imagensno ficcionais.

    De onde advm a surpreendente intensi-dade que a imagem no ficcional pode ad-quirir e como podemos defin-la de modomais preciso? Devemos, para tal, atentarem direo s particularidades de sua confor-mao, principalmente atravs de suas carac-tersticas como imagem e som: maqunicos e

    necessariamente advindos da mediao pelacmera. De modo mais preciso, podemosdestacar uma etapa central na constituiodesta imagem, mediada pela cmera, que a tomada propriamente. A circunstnciada tomada, para sermos mais especficos, algo que conforma a imagem-cmera de ummodo singular no universo das imagens. Porcircunstncia da tomada entendemos o con-junto de aes ou situaes que cercam e doforma ao momento que a cmera capta o quelhe exterior, ou, em outras palavras, que omundo deixa sua marca, seu ndice, no su-porte da cmera ajustado para tal.

    Podemos pensar em um"estar"fenomenolgico do sujeito quesustenta a cmera, como sendo marcadopela dimenso da presena que traz em sieste "estar", prprio do ser humano. Dize-mos "estar fenomenolgico do sujeito"pois

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/9/2019 Fern a Opes Soar Amos O Que Document a Rio

    9/11

    O que Documentrio? 9

    a cmera possui esta pontencialidade, acimade todas as outras, de significar uma pre-sena em ausncia. De significar uma formade presena na circunstncia da tomada. para esta dimenso da presena, singular imagem-cmera, e que no encontramos emum desenho, por exemplo, que volta-se, demodo dominante, a fruio espectadorial daimagem no-ficcional. esta presena dacmera e do sujeito na tomada, que permitea composio da intensidade das imagens,

    acima citadas. Digo intensidade, pois adimenso da presena surge reduplicada,lanada, do momento da constituio daimagem para o momento da fruio destamesma imagem. Boa parte do pensamentocontemporneo desenvolve-se de modo arealar as estruturas de enunciao queenvolvem o intervalo entre a tomada e afruio do espectador. Nestas abordagens,a dimenso enunciativa acaba por adquirir

    uma espessura que aproxima, de modoexcessivo, a imagem que tem a mediaomaqunica da cmera, do conjunto dasoutras imagens pictricas.

    Narrativas imagticas voltadas para explo-rar a intensidade da presena na circunstn-cia da tomada, no so exclusivas do cinemano-ficcional. Grandes cineastas da narra-tiva cinematogrfica, percebem as ponten-cialidades da tenso do presente que trans-corre como presena na tomada, e articu-lam sua estilstica para exponenciar esta in-tensidade de modo potico. Diretores comoRoberto Rossellini ou Jean Renoir, so ar-tistas que tm na intensidade da presenana tomada, um ncleo articulador na con-struo de seu estilo. Mas evidentementena tradio do cinema no ficcional que a di-menso da presena na tomada adquire umcampo aberto para abrir suas asas sobre o

    espectador. O cinema no ficcional voltadopara o instante da tomada, para o transcorrerda durao na tomada e para maneira prpriaque este transcorrer tem de se constituir empresente, que se sucede na forma do acon-tecer. Podemos pensar no contra-argumentode que existem cineastas, dentro da tradiono-ficcional, que trabalham com estilos nosquais esta presena no surge na linha defrente. Novamente insistimos sobre o fatode que a constatao de que possvel ex-

    trapolar definies e embaralhar fronteiras,no deve impedir uma reflexo mais acuradasobre as caractersticas sistmicas do con- junto das narrativas que denominamos do-cumentrias, ou, de modo mais amplo, no-ficcionais.

    Este dobrar-se da narrativa no-ficcionalsobre a tomada da imagem, no deve levar-nos a negar a dimenso enunciativa, de dis-curso propriamente, desta narrativa. Particu-

    larmente, o trabalho que chamamos "monta-gem", e que realizado a partir de imagensoriginalmente constitudas na situao de to-mada, deve ser destacado. Um diretor comoFrederick Wiseman, costuma filmar 30 ho-ras, ou mais, para montar 3. Suas prpriasdeclaraes, inclusive, do amplo destaquepara o trabalho de seleo e montagem quedesenvolve com as imagens que coleta. In-fluenciados pelo discurso dominante hojecom relao ao tipo de trabalho que va-lorizado, a maior parte dos cineastas co-loca nfase na articulao enunciativa dasimagens. A preocupao, um pouco ob-sessiva, de nossa poca com esta dimenso,pode fazer com que o que salta aos olhos naobra de Wiseman no seja visto. E o quesalta aos olhos sua capacidade de apreen-der a vida, o mundo, em seu transcorrer, nopingar de seu presente, conforme surge para

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/9/2019 Fern a Opes Soar Amos O Que Document a Rio

    10/11

    10 Ferno Pessoa Ramos

    o sujeito que sustenta a cmera. Este omago de seu estilo, e a que est a ma-gia de sua imagem. Do mesmo modo, afora estilstica de Flaherty, est na intensi-dade das tomadas, nas quais vemos Nanoukpuxar com dificuldade um leo marinho comseu arpo, ou o pescador de Aran tropeandoaflito nas pedras, fugindo de ondas maioresque parecem lhe ameaar. Reduzir a obrade Flaherty s manipulaes envolvidas pornecessidades de encenao etnolgicas, en-

    fatizando o trabalho oculto da mediao dis-cursiva, , no meu ponto de vista, situar-seem um ponto lateral para abordar o todo. Amagia de Flaherty est em saber transfigu-rar a presena em imagem. Flaherty estaval, Flaherty morou onde a circunstncia datomada transcorre. Flaherty tambm sabiafilmar, sabia esperar o momento de transferirpara tela a intensidade da presena, obtidaatravs de longas estadias no local. Flaherty

    engravida-se longamente de presena, paradepois condens-la em imagem e articul-laem narrativa, de modo que a intensidade ori-ginal seja preservada.

    Mesmo na recuperao de um diretorcomo Vertov, podemos sentir esta preocu-pao excessiva com a dimenso enuncia-tiva, orientando a viso contempornea do-minante de seu legado. Esta recuperaoencaminha-se por inteiro para realar osaspectos construtivistas de seu estilo, prin-cipalmente a partir do que o prprio Ver-tov chama de "metodologia do cine-olho".As propostas contidas no cine-olho verto-viano esto por inteiro voltadas para o ex-plorar dos efeitos da montagem cinemato-grfica, como forma de construo. Mas houtro conceito esquecido, presente nos escri-tos do diretor. Trata-se do que Vertov chamade "a vida de improviso", termo que traz

    uma interessante anlise da tomada propria-mente, voltada para o acaso e para a inde-terminao. esta viso do documentriocomo narrativa capaz de captar "a vida deimproviso", que ir levar o crtico francsGeorge Sadoul a proclamar, no incio dosanos 60, Vertov como pai do Cinema Ver-dade. O prprio Sadoul, em seguida, fa-ria sua autocrtica em relao a aspectos im-precisos da proximidade que havia levantadoentre o "kino-pravda"de Vertov e o Cinema

    Verdade. O pensamento contemporneo, noentanto, ao enfatizar a concepo enuncia-tiva contida no mtodo do cine-olho, deixaem completo esquecimento a parte do pen-samento vertoviano que valoriza tomadas en-volvendo a "vida de improviso". Este lado indissocivel, como a outra face da moeda,da concepo de montagem presente meto-dologia do cine-olho vertoviano. "Vida deimproviso" a marca das imagens de Ver-

    tov, no que estas imagens esto voltadas paraa intensidade da tomada. O "cine-olho"nolida com qualquer imagem, ele deve mani-pular, montar, somente imagens da vida, davida em seu acontecer imprevisto, no ence-nado, indeterminado e ambgo. A noode imprevisibilidade, prpria circunstnciaaberta da tomada, ir fornecer o diferencialestilstico ao trabalho de montagem, propo-sto pelo mtodo do cine-olho.

    Se as narrativas voltadas para exponenciara circunstncia da tomada aparecem comocentrais em trabalhos prximos da estilsticado Cinema Verdade/Direto, h, na histriado cinema documentrio como um todo,uma espcie de fora centrpeta que atrai aimagem e o espectador para a presena dosujeito que sustenta a cmera na tomada.O pensamento dominante que questiona etematiza o posicionamento subjetivo, tem

    www.bocc.ubi.pt

  • 8/9/2019 Fern a Opes Soar Amos O Que Document a Rio

    11/11

    O que Documentrio? 11

    certa dificuldade em lidar com esta evidn-cia. A densidade da mediao discursivaque acompanha o estilhaamento da centra-lidade da posio subjetiva no pensamentocontemporneo, impede uma anlise que te-matize a presena do sujeito na tomada e odebruar-se, do espectador, sobre esta pre-sena. A reflexo marcada pela abordagemlgico-analtica dos enunciados da narrativano-ficcional, tambm sente dificuldade emtematizar isto que seria a singularidade radi-

    cal da imagem-cmera e sua narrativa, comrelao a outras estruturas enunciativas. Omolde lgico-analtico necessita de univer-salidade, para que sua aplicabilidade sejacoerente, independentemente do veculo queserve como mdia.

    Dentro de um trabalho que tem o questio-namento subjetivo ps-estruturalista no hori-zonte, Vivian Sobchack realiza em seu livro"The Adress of the Eye"5, uma espcie de

    fenomenologia da presena do sujeito da c-mera na tomada, trazendo para o centro datematizao, a figura do espectador. Trata-se de um pensamento marcado pela fenome-nologia de Merleau Ponty que ir trabalharo ato de ser atravs dos olhos de outrem,como caracterstica da cmera. No mago daanlise, esto as delicadas mediaes esta-belecidas pela autora para pensar a presenado sujeito na tomada e o modo pelo qualesta presena se "enderea"ao espectador,em uma via de duas mos. Ao comentaruma imagem paradigmtica da fora destapresena, o crtico francs Andr Bazin di-zia, sobre a intensidade de uma imagemborrada e completamente fora de foco, to-

    5 Sobchack, Vivian. The Adress of the Eye. A Phe-nomenology of Film Experience. Princeton UniversityPress, 1992.

    mada em uma jangada em alto mar, queesta representava no a imagem de um tu-baro (que precariamente distinguia-se natela) mas a imagem do perigo. Figurade linguagem que aponta para uma relaoespectadorial no com a imagem propria-mente, enquanto representao, mas com a"tomada"em estado puro (por assim dizer) eo trao bruto da circunstncia de sua com-posio. Como se fosse possvel, atravs daimagem-cmera, atingirmos diretamente a

    circunstncia do mundo, extraordinria e in-tensa, que conformou a imagem. A imagemcomo marca da presena do sujeito que sus-tenta a cmera, pode ser to intensa que a di-menso propriamente figurativa se esvaece.A intensidade da imagem borrada e fora defoco, que mal podemos distinguir, perman-ece como paradigma da potencialidade sin-gular da imagem-cmera na articulao dafruio espectadorial, lanando-se para a to-

    mada. E esta potencialidade singular quepode nos situar em uma perspectiva insti-gante para pensarmos a tradio da narrativadocumentria em particular, e as imagensno-ficcionais de um modo geral.

    www.bocc.ubi.pt