Felizmente Há Luar

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Felizmente Há Luar!, de Luís de Sttau Monteiro - acção - carácter épico da peça - “trágica apoteose” da história do movimento liberal oitocentista - distanciação histórica (técnica realista; influência de Brecht) - paralelismo passado/condições históricas dos anos 60: denúncia da violência Canções de Resistência Felizmente Há Luar! de Sttau Monteiro recria em dois actos a tentativa frustrada de revolta liberal de Outubro de 1817, reprimida pelo poder absolutista do regime de Beresford e Miguel Forjaz, com o apoio da Igreja. Ao mesmo tempo, chama a atenção para as injustiças, a repressão e as perseguições políticas no tempo de Salazar, nos anos 60 do século XX (tempo da escrita). A acção em Felizmente Há Luar! centra-se na figura do general Gomes Freire de Andrade e sua execução, mostrando, ao mesmo tempo, a resignação do povo, dominado pela miséria, pelo medo e pela ignorância. Gomes Freire “está sempre presente embora nunca apareça” (didascália inicial) e, mesmo ausente, condiciona a estrutura interna da peça e o comportamento de todas as outras personagens. O protagonista é construído através da esperança do povo, das perseguições dos governadores e da revolta Luís Infante de Lacerda Sttau Monteiro (03-04-1926, Lisboa - 23-07-1993, id.), dramaturgo e romancista, formou-se em Direito, mas optou pelo jornalismo. O tempo passado em Inglaterra, durante a juventude, possibilitou-lhe o contacto com movimentos de vanguarda da literatura anglo-saxónica e foram fundamentais na sua formação intelectual. As suas sátiras sobre a ditadura e a guerra colonial tornaram-no objecto de perseguição política e levaram-no à prisão. Felizmente Há Luar! recupera acontecimentos do início do século XIX, para servirem de denúncia da situação social e política do país dos anos 60, no século XX. O título replica a expressão do governador D. Miguel Pereira Forjaz, que, numa carta ao intendente da Polícia, justificava com “felizmente, havia luar” a morosidade das execuções. As personagens

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Felizmente Há Luar!, de Luís de Sttau Monteiro - acção- carácter épico da peça- “trágica apoteose” da história do movimento liberal oitocentista- distanciação histórica (técnica realista; influência de Brecht)- paralelismo passado/condições históricas dos anos 60: denúncia da violência

Canções de Resistência

Felizmente Há Luar! de Sttau Monteiro recria em dois actos a tentativa frustrada de revolta liberal de Outubro de 1817, reprimida pelo poder absolutista do regime de Beresford e Miguel Forjaz, com o apoio da Igreja. Ao mesmo tempo, chama a atenção para as injustiças, a repressão e as perseguições políticas no tempo de Salazar, nos anos 60 do século XX (tempo da escrita). A acção em Felizmente Há Luar! centra-se na figura do general Gomes Freire de Andrade e sua execução, mostrando, ao mesmo tempo, a resignação do povo, dominado pela miséria, pelo medo e pela ignorância. Gomes Freire “está sempre presente embora nunca apareça” (didascália inicial) e, mesmo ausente, condiciona a estrutura interna da peça e o comportamento de todas as outras personagens. O protagonista é construído através da esperança do povo, das perseguições dos governadores e da revolta impotente da sua mulher e dos seus amigos. Amado por uns, é odiado pelos que temem perder o poder. Gomes Freire é acusado de chefe da revolta, de estrangeirado e grão-mestre da Maçonaria, por ser um soldado brilhante e idolatrado pelo povo, Os governantes – Miguel Forjaz, Beresford e Principal Sousa – perseguem, prendem e mandam executar o general e os restantes conspiradores através da morte na fogueira. Para eles, aquela execução, à noite, constituía uma forma de avisar, de dissuadir outros revoltosos; para Matilde de MeIo, a mulher do general, e para mais pessoas era uma luz a seguir na luta pela liberdade. Dentro dos princípios do teatro épico, Felizmente Há Luar! é um

Luís Infante de Lacerda Sttau Monteiro (03-04-1926, Lisboa - 23-07-1993, id.), dramaturgo e romancista, formou-se em Direito, mas optou pelo jornalismo. O tempo passado em Inglaterra, durante a juventude, possibilitou-lhe o contacto com movimentos de vanguarda da literatura anglo-saxónica e foram fundamentais na sua formação intelectual. As suas sátiras sobre a ditadura e a guerra colonial tornaram-no objecto de perseguição política e levaram-no à prisão.

Felizmente Há Luar! recupera acontecimentos do início do século XIX, para servirem de denúncia da situação social e política do país dos anos 60, no século XX. O título replica a expressão do governador D. Miguel Pereira Forjaz, que, numa carta ao intendente da Polícia, justificava com “felizmente, havia luar” a morosidade das execuções.

As personagens psicologicamente densas e vivas, os comentários irónicos e mordazes, a denúncia da hipocrisia da sociedade e a defesa intransigente da justiça social são características marcantes da sua obra.

A peça em dois actos Felizmente Há Luar!, publicada em 1961 e com a qual Sttau Monteiro ganhou o Grande Prémio de Teatro da Associação Portuguesa de Escritores, foi suprimida pela censura da ditadura. Representada pela primeira vez em 1969, em Paris, só chegaria aos palcos portugueses em 1978, no Teatro Nacional, encenada pelo próprio autor.

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drama narrativo que analisa criticamente a sociedade, apresentando a realidade com o objectivo de levar o espectador a tomar uma posição. Graças ao efeito de estranheza e à distanciação histórica, retrata a trágica apoteose do movimento liberal oitocentista, em Portugal, e interpreta as condições da sociedade portuguesa do início do século XIX. Com a denúncia do ambiente político repressivo daquela época, tenta provocar a reflexão sobre a opressão e a censura que se repete no século XX.

Carácter épico da peçaFelizmente Há Luar!, de Luís de Sttau Monteiro, é um drama narrativo, de

carácter social, dentro dos princípios do teatro épico. Na linha do teatro de Bertolt Brecht1 exprime a revolta contra o poder e a convicção de que é necessário mostrar o mundo e o homem em constante devir. Defende as capacidades do ser humano que tem o direito e o dever de transformar o mundo em que vive. Por isso, oferece-nos uma análise crítica da sociedade, procurando mostrar a realidade em vez de a representar, para levar o espectador a reagir criticamente e a tomar posição.

Como drama narrativo pressupõe uma acção apresentada ao espectador e com possibilidade de ser vivida por ele, mas, sobretudo, procura a sua conivência ou participação testemunhal. O carácter narrativo é sinónimo de épico ao contar determinados acontecimentos que devem ser interpretados, reflectidos e julgados pelo espectador, enquanto elemento de uma sociedade. Ele deve, assim, analisar e julgar o homem no seu devir histórico, na sua situação social, que pode modificar-se e modificar o curso da História.

Observando Felizmente Há Luar!, verificamos que são estes os objectivos de Luís de Sttau Monteiro, que evoca situações e personagens do passado usando-as como pretexto para falar do presente. Escrita em 1961, surge como máscara para que se possa tirar exemplo num presente ditatorial. Mas mais do que fazer a ligação entre dois momentos – o início do século XIX e o século XX – a sua intemporalidade remete-nos para a luta do ser humano contra a tirania, a opressão, a traição, a injustiça e todas as formas de perseguição. Diz Luís de Sttau Monteiro, no Programa de estreia no Teatro Nacional D. Maria II (1978), “Vai haver sempre gente como a Matilde, o Gomes Freire, o Sousa Falcão e o Manuel e o avançar para o futuro vai depender, sempre, da existência de homens capazes de entender, em cada dia o dia seguinte. O presente – qualquer presente – é sempre uma batalha entre esses e aqueles que recusam o dia de amanhã – aqueles que em 1817 desempenharam os papéis de D. Miguel Pereira Forjaz e do principal Sousa, mas que dão por outros nomes em outros momentos históricos”.Observe-se, a propósito, o diálogo entre Matilde (a esposa do general Gomes Freire) e Beresford, o representante do domínio britânico:

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MatildeVenho pedir-lhe que o liberte. É-me indiferente que o faça por favor, por

demência ou por qual quer outro motivo.Às mulheres, senhor, pouco interessa a justiça das causas que levam os seus

homens a afastar--se delas. A injustiça e a tirania, só as sente quem anda na rua, que é homem ou quer ser homem.

(Pausa)(...)

BeresfordE porque pensa que devo fazer o que pede?

MatildePorque é o comandante do exército, governador do Reino e... porque sabe que

ele não cometeu qualquer crime.

BeresfordA simples existência de certos homens é já um crime.(Começam a ouvir-se sinos ao longe)

Matilde(Exaltada)Porque dizem a verdade? Porque vêem para além da cortina de hipocrisia com

que os poderosos escondem a defesa dos seus interesses?(O ruído dos sinos aumenta de intensidade.)

1 Bertolt Brecht (1898-1 956) – poeta e dramaturgo alemão, exerceu uma grande influência no teatro contemporâneo. Perseguido, criticado e discutido dentro e fora do País, pelas suas ideias marxistas, só vê o seu nome reconhecido na terra natal dois anos antes de morrer, quando seu grupo de teatro – o Berliner Ensemble – faz a sua primeira grande viagem pela Europa. A sua obra, claramente social, coloca em palco a luta dos oprimidos. Breviário do Teatro, publicado em 1949, surge como uma espécie de tratado sobre os princípios do teatro épico. Da sua obra, merecem também realce Ópera dos Três Vinténs, Mãe Coragem ou O Círculo de Giz Caucasiano.Beresford

(Sorrindo)Porque... são incómodos, minha senhora!

Matilde(Com amargura)É incómodo todo aquele que não confunde a vontade de Deus com a vontade

do rei...(Pausa)Ou que vê para além das medalhas que usais no peito...(Pausa)Ou que olha para vós de frente, e som...

Beresford(Com ironia)Ou que, devendo, por nascimento e posição, defender certos interesses,

defende outros... É ocaso do general, minha senhora.

(Ouve-se, fora do palco, o murmúrio de vozes humanas.)

Matilde

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Que vão fazer dele, Sr. Marechal?

Beresford(Abrindo os braços para exprimir a sua impossibilidade de responder à

pergunta.)Julgá-lo e... fazer justiça!

Matilde(Com desespero e como quem pensa pela primeira vez na hipótese.)Querem matá-lo! diga-me, Sr. Marechal, por amor de Deus, diga-me: querem

matá-lo?(As vozes aproximam-se do palco. Ouve-se, nitidamente, falar latim.)

BeresfordNinguém lhe pode responder a essa pergunta. São os acontecimentos que

geram os acontecimentos e...(Entra no palco um padre seguido dum sacristão tocando uma campainha e de

alguns populares. Começa a juntar-se gente à sua volta.)

Matilde(Exaltadíssima)Não o matem, Sr. Marechal! Mandem-no para a guerra, deixem-no morrer

como um homem, batendo-se com os inimigos que possa reconhecer!(…)

Neste excerto, o conflito interior de Matilde exprime-se na própria anulação das suas convicções para conseguir a libertação do marido, que é vítima da injustiça. Mas note-se, principalmente, a afirmação do general Beresford, para quem “a simples existência de certos homens é já um crime”.

O dramaturgo, através do cenário, dos gestos e das palavras, ou das informações das didascálias, procura levar o público a entender de forma clara o sentido da mensagem. Neste fragmento da obra, o sarcasmo e a ironia ou a amargura e o desespero que opõem estas duas personagens, tal como sucede com outros sentimentos e comportamentos, são elementos fundamentais para a análise da situação e para que o espectador tome posição.

Felizmente Há Luar! destaca a preocupação com o homem e o seu destino; realça a luta contra a miséria e a alienação; denuncia a ausência de moral; alerta para a necessidade de uma superação com o surgimento de uma sociedade solidária que permita a verdadeira realização do Homem.

“Trágica apoteose” da história do movimento liberal oitocentistaA nova ordem política trazida pela Revolução Francesa de 1789 e as invasões

napoleónicas abalam o Ocidente da Europa. Só a Inglaterra resiste ao imperador Napoleão Bonaparte, arrastando Portugal para uma posição de indecisão entre este aliado e a França. Por isso, em 29 de Novembro de 1807, com as tropas de Junot às portas de Lisboa, D. João VI, com a família real portuguesa e um imenso séquito de fidalgos, altos funcionários e militares, embarca apressadamente para o Brasil para evitar a capitulação. No ano seguinte, o governo, sediado no Brasil, invade a Guiana Francesa como represália, obrigando o seu governador a capitular e a retirar-se para a Europa.

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Depois da primeira invasão, a Corte pede ao governo inglês um oficial para reorganizar o exército. Surge, então, o general Beresford, que é nomeado generalíssimo do exército português, quando o País sofre a invasão das forças comandadas pelo general Soult. Deve-se também a ele o êxito contra a terceira invasão, chefiada por Massena.

Após as invasões, Beresford vê os seus poderes consolidados, mas começa a atrair inimigos que ou se vêem discriminados em cargos militares e públicos ou defendem ideias liberais. Começa então uma acção repressiva, nomeadamente contra conspiradores, agrupados em sociedades secretas. Por isso, quando em 1815, o general Gomes Freire de Andrade chega a Lisboa, o intendente da Polícia avisa Beresford da simpatia do povo e do ambiente de conspiração que se respira. Mas o generalíssimo inglês, regressado do Brasil com poderes acima da Junta de Regência, que D. João VI lhe conferira, decide descobrir os conspiradores, executando-os. É neste processo que Gomes Freire, considerado como chefe da conspiração, se vê envolvido e condenado à morte, no dia 18 de Outubro de 1817, no campo de Alqueidão, junto a S. Julião da Barra. Os outros condenados são enforcados nessa mesma manhã, no Campo de Santana, que, em sua memória, se designa por Campo dos Mártires da Pátria.

Esta acção em vez de amedrontar o povo incentivou-o, o general Gomes Freire de Andrade e os outros condenados tornam-se assim os pioneiros do movimento que em 1820 provoca a revolução liberal no Porto e o levantamento em Lisboa. O já marechal-general Beresford, que fora ao Brasil pedir mais poder a D. João VI, acaba por ser impedido de desembarcar por uma Junta Provisional (24 de Agosto de 1820).

Felizmente Há Luar!, como afirma Luciana Stegagno Picchio, ao retratar a conspiração, encabeçada pelo Gomes Freire de Andrade, que se manifestava contrária à presença inglesa e à ausência da corte no Brasil, constitui uma “trágica apoteose” da história do movimento liberal oitocentista em Portugal.

O ambiente epocal é referido claramente na peça através das palavras de Manuel, “o mais consciente dos populares”:Manuel

Vê-se a gente livre dos Franceses e zás!, cai na mão dos Ingleses!E agora? Se acabamos com os Ingleses, ficamos na mão dos reis do Rossio...Entre os três o diabo que escolha.

Numa única fala, coloca-se em destaque a situação do povo oprimido: as Invasões Francesas; a “protecção” britânica, iniciada após a retirada do rei D. João VI para o Brasil; a falta de perspectivas de futuro, clarificada logo de seguida:

E enquanto eles andam para trás e para a frente, para a esquerda e para a direita, nós não passamos do mesmo sítio!

Mas a conspiração não sufocou a história dos movimentos liberais, antes os impulsionou. Na altura da execução, as últimas palavras de Matilde, “companheira de todas as horas” do general Gomes Freire, são de coragem e de estímulo para que o povo se revolte contra a tirania dos governantes:

MatildeOlhem bem! Limpem os olhos no clarão daquela fogueira e abram as almas ao

que ela nos ensina!Até a noite foi feita para que a vísseis até ao fim...(Pausa)Felizmente – felizmente há luar!

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Como se pode observar, o general Gomes Freire e mais onze companheiros, acusados de conspirar contra Beresford e o governo vigente, tornaram-se, pela sua morte trágica, nos grandes precursores do liberalismo português. Em Felizmente Há Luar!, Luís de Sttau Monteiro socorre-se da figura do general Gomes Freire de Andrade, que está presente embora sem aparecer em cena, para debater a situação do povo que vive na miséria e dependente das classes dominantes. Recorrendo ao teatro épico, coloca em palco essas primeiras manifestações sociais e políticas que levaram à revolução liberal, para que o espectador se posicione criticamente, mas estranho à acção, como sucedia no teatro clássico preocupado em despertar os sentimentos e as emoções no público.

“Trágica apoteose” da história do movimento liberal oitocentista, Felizmente Há Luar! interpreta as condições da sociedade portuguesa do início do século XIX e a revolta dos mais esclarecidos, muitas vezes organizados em sociedades secretas, contra o poder absolutista e tirânico dos governadores e do generalíssimo Beresford. Para que o movimento liberal se concretize dezassete anos depois, é necessária a morte de Gomes Freire de Andrade e dos seus companheiros, mas também de muitos outros portugueses que em nome dos seus ideais são sacrificados pela Pátria. Conspiradores e traidores para o poder e para as classes dominantes, que sentem os seus privilégios ameaçados, são os grandes heróis de que o povo necessita para reclamar justiça, dignidade e pão. Por isso, as suas mortes, em vez de amedrontar, tornam-se estímulo. A fogueira acesa na noite para queimar Gomes Freire de Andrade, que os governadores querem que seja dissuasora, torna-se farol ou luz para que outros lutem pela liberdade. A consequência da morte do general pode ser comparada à da crucificação de Cristo na medida em que há uma propagação da esperança. Gomes Freire, aliás, é uma figura messiânica, frequentemente relacionada com Cristo, como se observa nas palavras de Beresford, que afirma ser necessário alguém “a quem valha a pena crucificar’ ou de Matilde, que apelida o Principal Sousa de Judas, entregando-lhe a moeda.

Distanciação histórica (técnica realista - influência de Brecht)Brecht, nos seus Estudos sobre Teatro, fala do efeito de estranheza e de

distanciação que o recurso à História ou a um processo de construção de parábolas permite reflectir sobre uma realidade próxima. Brecht propõe um afastamento entre o actor e a personagem e entre o espectador e a história narrada, para que, de uma forma mais real e autêntica, possam fazer juízos de valor sobre o que está à ser representado. O actor deve, lucidamente, saber utilizar o “gesto social” examinando as contradições da personagem e as suas possíveis mudanças, que lhe permitam acentuar o desfasamento entre o seu comportamento e o que representa. Isto permite ao público espectador uma correspondente distanciação da história narrada e, consequentemente, uma possível tomada de consciência crítica, aprendendo o prazer da compreensão do real, a sua situação na sociedade e as tarefas que pode realizar para ser ele próprio.

Este efeito de estranheza e de distanciação acaba por ter um efeito de aproximação entre o actor e o espectador, na medida em que os dois se distanciam em relação à história narrada e podem, como pessoas reais, discutir o que se passa em palco. Ao contrário do teatro clássico, não há um efeito alucinatório ou hipnótico que permita tomar a representação pela própria realidade. Afirma Bertolt Brecht (in Estudos sobre Teatro):

“O espectador do teatro dramático diz: - Sim, eu já senti isso. - Eu sou assim. - O sofrimento deste homem comove-me, pois é irremediável. É uma coisa natural. - Será sempre assim. - Isto é que é arte! Tudo ali é evidente. - Choro com os que choram e rio com os que riem.

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O espectador do teatro épico diz: - Isso é que eu nunca pensaria. - Não é assim que se deve fazer. - Que coisa extraordinária, quase inacreditável. - Isto tem de acabar. - O sofrimento deste homem comove-me, porque seria remediável. - Isto é que é arte! Nada ali é evidente. - Rio de quem chora e choro com os que riem.”

O teatro épico proposto por Brecht contrapõe-se à tragédia clássica para melhor conseguir o efeito social, tal como tentara no recurso à balada em vez do canto lírico. Enquanto o teatro clássico conduz o público à ilusão e à emoção, levando-o a confundir o que é a arte com a vida real, no teatro épico a “distanciação” deve permitir o envolvimento do espectador no julgamento da sociedade. Por isso, o teatro épico implica comprometimento, crítica contra o individualismo, consciencialização perante o sofrimento dos outros e a realidade social. Deve, na sua tarefa pedagógica, instruir os espectadores na verdade e incitá-los a actuar, alertando-os para a condição humana, O espectador deve ter um olhar crítico para se aperceber melhor de todas as formas de injustiças e de opressões.

Em Felizmente Há Luar!, o tempo, o espaço e as personagens são trabalhados de modo a que a distanciação se concretize, recorrendo, muitas vezes, a um historiar dos acontecimentos representados e ao acentuar da precisão do lugar cénico. É o que se nota, por exemplo, logo no início:

Fala como um alucinado, com frequentes pautas, que dão a entender não ser esta a primeira vez que pensa no assunto.

Ao falar da cara, levanta-se, assumindo a posição de um senador romano.

Alarga os passos. Todos os seus gestos são estudados. Sente-se que passou longas horas estudando os hábitos e os maneirismos dos membros da classe a que desejaria ter pertencido. Ao falar, faz

Vicente (Calça o sapato e levanta-se.) las, ias. Ias perguntar-me se foi por dinheiro que eu me virei contra os meus... Era ou não era isso que me ias perguntar?

1.º Polícia Na verdade...

Vicente Pois respondo-te, amigo. Respondo-te de boa vontade. (Começa a passear em frente dos polícias.)

É verdade que nasci aqui e a fome desta gente é a minha fome, mas… é igualmente verdade que os odeio, que sempre que olho para eles me vejo a mim próprio: sujo, esfomeado, condenado à miséria por acidente de nascimento.

(Estaca no palco e toma uma posição de pessoa importante, de fidalgo retratado por um artista medíocre do paço.)

Que diferença há entre mim e um fidalgo qualquer? Será que tenho uma cara diferente? Será que sou mais estúpido? Mais baixo? Mais alto? Serão as minhas pernas e os meus braços diferentes das pernas e dos braços de um desses fidalgotes das touradas? Não, meus amigos. A única coisa que me distingue de um fidalgo é uma coisa que se passou há muitos anos e de que nem sequer tive a culpa: o meu nascimento.

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gestos com as mãos, gestos lentos, precisos, copiados de um fidalgo qualquer que teve ocasião de observar de perto.

De repente, olha para os polícias e compreende que está a dizer coisas que não deveria ter dito. Fecha as mãos. Domina-se. Adopta um tom de voz ironicamente piedoso.

(Pausa)

Nasci a dois passos daqui, numa trapeira em que nenhum fidalgo entraria. Quando passo lá à porta, só Deus sabe o que sinto... É por isso que odeio esta cambada a que pertenço, mas a que pertenço sem querer e com quem não tenho nada de comum! Mas vocês não podem perceber isto...

(Cai em si.)

Tenho estado a brincar, amigos. Querem saber porque vendo os meus irmãos? Pois vendo-os por amor a N. S. Jesus Cristo e a el-rei D. João VI, que há tantos anos anda pelos Brasis cuidando dos nossos interesses...

(Ri-se.)

Sublinhe-se, de forma especial, a preocupação do dramaturgo com a distanciação, quando através da didascália nos informa que “Todos os seus gestos são estudados. Sente-se que passou longas horas estudando os hábitos e os maneirismos dos membros da classe a que desejaria ter pertencido. Ao falar, faz gestos com as mãos, gestos lentos, precisos, copiados de um fidalgo qualquer que teve ocasião de observar de perto”.

Ao dramaturgo interessa-lhe que o actor se revele lúcido e, sobretudo, que o espectador se confronte e se esclareça, partindo da identificação inicial de dois tempos e dois mundos diferentes.

Paralelismo passado / condições históricas dos anos 60: denúncia da violência

Felizmente Há Luar! tem como cenário o ambiente político dos inícios do século XIX: em 1817, uma conspiração, encabeçada pelo general Gomes Freire de Andrade, que pretendia o regresso do Brasil do rei D. João VI e que se manifestava contrária à presença inglesa, foi descoberta e reprimida com muita severidade: os conspiradores, acusados de traição à pátria, foram queimados publicamente e Lisboa foi convidada a assistir...

Luís de Sttau Monteiro marca uma posição, pelo conteúdo fortemente ideológico, e denuncia a opressão vivida na época em que escreveu a obra (1961), precisamente sob a ditadura de Salazar.

O recurso à distanciação histórica e à descrição das injustiças praticadas no início do século XIX em que decorre a acção permitiu-lhe, assim, colocar também em destaque as injustiças do seu tempo e a necessidade de lutar pela liberdade.

Em Felizmente Há Luar!, podemos, neste paralelismo entre duas épocas, observar:

Tempo da história – século XIX – 1817 Tempo da escrita – século XX – 1961• Agitação social que levou à revolta liberal de 1820 — conspirações internas; revolta contra a presença da Corte no Brasil e a influência do exército britânico;

• Agitação social dos anos 60 — conspira ções internas; principal irrupção da guerra colonial;

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• Regime absolutista e tirânico; • Regime ditatorial de Salazar;• Classes sociais fortemente hierarquizadas;• Classes dominantes com medo de perder privilégios;

• Maior desigualdade entre abastados e pobres;• Classes exploradoras, com reforço do seu poder;

• Povo oprimido e resignado;• A “miséria, o medo e a ignorância”;• Obscurantismo, mas “felizmente há luar”;

• Povo reprimido e explorado;• Miséria, medo e analfabetismo;• Obscurantismo, mas crença nas mudanças;

• Luta contra a opressão do regime absolutista;• Manuel, “o mais consciente dos populares”, denuncia a opressão e a miséria;

• Luta contra o regime totalitário e ditatorial;• Agitação social e política com militantes antifascistas a protestarem;

• Perseguições dos agentes de Beresford;• As denúncias de Vicente, Andrade Corvo e Morais Sarmento que, hipócritas e sem escrúpulos, denunciam;• Censura à imprensa;

• Perseguições da PIDE;• Denúncias dos chamados ‘bufos”, que surgem na sombra e se disfarçam, para colher informações e denunciar;• Censura;

• Severa repressão dos conspiradores;• Processos sumários e pena de morte;

• Prisão e duras medidas de repressão e de tortura;• Condenação em processos sem provas;

• Execução do general Gomes Freire, em1817.

• Posterior a Felizmente Há Luar! - Execuçãodo general Humberto Delgado, em 1965.

Em Felizmente Há Luar! percebe-se, facilmente, que a história serve de pretexto para uma reflexão sobre os anos 60, do século XX. Sttau Monteiro, também ele perseguido pela PIDE, denuncia assim a situação portuguesa, durante o regime de Salazar, interpretando as condições históricas que anos mais tarde contribuiriam para a “Revolução dos Cravos” em 25 de Abril de 1974. Tal como a agitação e conspiração de 1817, em vez de desaparecer com medo dos opressores, permitiu o triunfo do liberalismo em 1834, após uma guerra civil, também a oposição ao regime vigente nos anos 60, em vez de ceder perante a ameaça e a mordaça, resistiu e levou à implantação da democracia.

A acçãoFelizmente Há Luar!, de Sttau Monteiro, recria em dois actos a tentativa

frustrada de revolta liberal de Outubro de 1817, reprimida pelo poder absolutista do regime de Beresford e Miguel Forjaz, com o apoio da Igreja. Ao mesmo tempo, chama a atenção para as injustiças, a repressão e as perseguições políticas no tempo de Salazar, nos anos 60 do século XX (tempo da escrita).

A acção em Felizmente Há Luar! centra-se na figura do general Gomes Freire de Andrade e da sua execução: da prisão à fogueira, com descrições da perseguição dos governadores do Reino, da revolta desesperada e impotente da sua esposa e da resignação do povo que a “miséria, o medo e a ignorância” dominam. Gomes Freire de Andrade “está sempre presente embora nunca apareça” (didascália inicial) e, mesmo ausente, condiciona a estrutura interna da peça e o comportamento de todas as outras personagens.

A defesa da liberdade e da justiça, atitude de rebeldia, constitui a hybris (desafio) desta tragédia. Como consequência, a prisão dos conspiradores provocará o sofrimento (páthos) das personagens e despertará a compaixão do espectador.

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O crescendo trágico, representado pelas diversas tentativas desesperadas para obter o perdão, acabará, em clímax, com a execução pública do general Gomes Freire e dos restantes presos.

Este desfecho trágico conduz a uma reflexão purificadora (cathársis) que os opressores pretendiam dissuasora, mas que despertou os oprimidos para os valores da liberdade e da justiça.

As personalidades (a História)D. João VI, o Clemente (1767-1826) – filho de D. Maria I e de D. Pedro III, em

1785 contraiu matrimónio com D. Carlota Joaquina, que tinha apenas 10 anos. Assumiu a governação em 1792, por doença da rainha; em 1799 torna-se, de direito, regente do Reino; em 1816, ocupa o trono. Devido às Invasões Francesas, e à vista das tropas de Junot, em 1807, refugiou-se com a Corte no Brasil, que vem a ser reconhecido como Reino em 1815. Regressou a Portugal devido à revolução liberal do Porto, de 1820, assinando a Constituição em 1822. Nesse mesmo ano, em 7 de Setembro, o seu filho D. Pedro viria a proclamar a independência do Brasil, nas margens do rio Ipiranga. Por causa da sublevação denominada Vila-Francada (em 27 de Maio de 1823) e da Abrilada (em Abril de 1824), vê-se obrigado a desterrar a rainha e a exilar o filho D. Miguel.

Morre em 10 de Março de 1826, em Lisboa.

D. Carlota Joaquina – filha de Carlos IV de Espanha, nasceu em Aranjuez, em 1775, e faleceu em Queluz, em 1830. Casada com o rei de Portugal D. João VI, torna-se rainha de Portugal. Mãe do futuro rei D. Miguel, recusa-se a jurar a Constituição de 1822.

Rei D. Miguel – filho de D. João VI e irmão de D. Pedro IV. O Infante D. Miguel nasceu em Queluz a 26 de Outubro de 1802 e morreu a 14 de Novembro de 1866. Foi o trigésimo rei de Portugal, mas o seu reinado foi efémero e atribulado. D. Miguel foi cognominado o Usurpador, por ter aceite a proposta do seu irmão D. Pedro IV de governar o País de acordo com as leis liberais, mas, vendo-se em Lisboa, rapidamente esqueceu a promessa e decidiu tornar-se rei absolutista. Esta atitude veio a causar a guerra civil. Já em Abril de 1824, desencadeara uma sublevação militar que ficou conhecida por Abrilada. Visava a salvação do reino dos possíveis perigos do liberalismo e pretendia reforçar o Absolutismo. O rei D. João VI, com o apoio do corpo diplomático, desautorizou D. Miguel, retirando-lhe o cargo de comandante do exército e obrigando-o a escolher o exílio.

Gomes Freire de Andrade (1757-1817) — General português, nascido em 1757, em Viena de Áustria. Seguiu a vida militar depois de ter vindo para Portugal aos 24 anos. Combateu em Argel (1784), na Rússia (1788), na Guerra das Laranjas (1801) e na Guerra Peninsular, só deixando a carreira das armas após a derrota de Napoleão em 1814, altura em que voltou a Portugal e foi preso, acusado de ter participado na terceira invasão francesa; foi reabilitado dessa acusação, mas obrigado a residência fixa em Lisboa.

Ligado aos ideais progressistas e membro da Maçonaria (grão-mestre a partir de 1816), foi acusado de participar na conspiração de 1817, que punha em causa a ausência da corte de D. João VI no Brasil, a presença militar inglesa no país e a grave situação económica que então se vivia. A conjura foi descoberta e reprimida com muita severidade. Os conspiradores, acusados de traição à pátria, foram queimados publicamente e Lisboa foi convidada a assistir. O general Gomes Freire de Andrade, o cabecilha, foi enforcado, no forte de S. Julião da Barra, e depois queimado. Mas o fermento da revolução estava lançado e iria dar fruto no dia 24 de Agosto de 1820, com a revolução liberal.

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Conselho de Regência – Dias antes de partir para o Brasil, devido às Invasões Francesas, o príncipe regente D. João (futuro rei D. João VI) nomeara um Conselho de Regência, para governar Portugal na sua ausência. Dissolvido em Fevereiro de 1808, o Conselho de Regência foi restabelecido em Setembro. Para além do marechal Beresford (responsável pela reorganização do exército), faziam parte deste Conselho de Regência D. Miguel Pereira Forjaz (representante da nobreza) e o Principal Sousa (representante do clero).

William Beresford (1768-1854) – General inglês, severo e disciplinador, enviado pela Grã-Bretanha para reorganizar o exército português (após a primeira invasão francesa), preparando-o para resistir às tropas napoleónicas. Fora governador e comandante-chefe, durante seis meses, na Madeira, para evitar a ocupação da ilha pelos franceses.

A 7 de Março de 1809, foi nomeado generalíssimo do exército português e foi consolidando e aumentando os seus poderes. Rejeitava as novas ideias liberais, imaginava conspirações e reprimia-as severamente; para além disso, enquanto submetia o país a uma forte organização militar, ia colocando os oficiais britânicos nos mais altos postos, preterindo os oficiais portugueses; criou, pois, muitos inimigos.

Em 1817, após rumores de uma conspiração que pretendia o regresso do rei e que se manifestava contrária à presença inglesa, mandou matar os conspiradores (entre eles o general Gomes Freire de Andrade).

Em 1820, deslocou-se, pela segunda vez, ao Brasil para pedir mais poder a D. João VI; ao regressar, como marechal-general do exército português, já a revolução liberal (24 de Agosto de 1820) estava nas ruas e foi obrigado a regressar directamente a Inglaterra.

D. Miguel Pereira Forjaz (1769-1827) – entrou para o exército em 1785. Promovido a alferes em 1787, foi sucessivamente capitão, major e capitão-general. Apoiou Beresford na reorganização do exército português, embora assumindo posições cada vez mais críticas sobre a influência do general britânico.

Com a revolução de 1820, abandonou o seu lugar na regência, mas recebeu o título de Conde da Feira.

Representante da nobreza na regência, assume o papel principal na acusação do general Gomes Freire pois receia que o prestígio, inteligência e capacidade deste lhe retirem a projecção a que está habituado e coloquem em causa o seu lugar na regência.

Principal Sousa – D. José António de Meneses e Sousa Coutinho era irmão do Ministro do Rei, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, primeiro-conde de Linhares, e do conde do Funchal, Domingos de Sousa Coutinho, embaixador em Londres, que negociou a ajuda inglesa contra os invasores franceses.

Em Felizmente Há Luar!, de Sttau Monteiro, é ao primeiro destes irmãos que se refere, quando afirma: “Agora me lembro de que há anos, em Campo d’Ourique, Gomes Freire prejudicou muito a meu irmão Rodrigo” (Acto I).

Durante a ausência do Rei D. João VI, no Brasil, fez parte da Regência do Reino até ao pronunciamento de 24 de Agosto de 1820.

Representante do clero na regência com D. Miguel Forjaz e com o general Beresford, o Principal Sousa reconhece que Portugal necessitava do regresso do rei, como o demonstra em carta de 1 de Junho de 1817, quando diz “só a Real Presença dará a felicidade a este povo e poderá regenerar esta Nação que não aspira por outra fortuna que a de ver Vossa Majestade”.

As personagens (a ficção)

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Gomes Freire – figura carismática, que preocupa os poderosos, acredita na justiça e luta pela liberdade e arrasta os pequenos. Considerado um “estrangeirado’ revela-se simpatizante das novas ideias liberais, tornando-se para os governantes um elemento subversivo e perigoso, O povo elege-o como símbolo da luta pela liberdade, o que é incómodo para os “reis do Rossio”. Daí a decisão dos governantes pelo enforcamento, seguido da queima, para servir de exemplo a todos aqueles que tentem afrontar o poder político.

D. Miguel Forjaz – primo de Gomes Freire, prepotente, assustado com transformações que não deseja, corrompido pelo poder, vingativo, frio, desumano, calculista; nas palavras de Sousa Falcão, D. Miguel “é a personificação da mediocridade consciente e rancorosa”.

Principal Sousa – fanático, corrompido pelo poder eclesiástico, odeia os Franceses porque “transformaram esta terra de gente pobre mas feliz num antro de revoltados!”; afirma, preocupado, que “Por essas aldeias fora é cada vez menor o número dos que frequentam as igrejas e cada vez maior o número dos que só pensam em aprender a ler... “.

Beresford – poderoso, mercenário, interesseiro, calculista, trocista, sarcástico; a sua opinião sobre Portugal fica claramente expressa na afirmação “Neste país de intrigas e de traições, só se entendem uns com os outros para destruir um inimigo comum e eu posso transformar-me nesse inimigo comum, se não tiver cuidado.”

Vicente – demagogo, sarcástico, falso humanitarista, movido pelo interesse da recompensa material, adulador no momento oportuno, hipócrita, despreza a sua origem e o seu passado, capaz de recorrer à traição para ser promovido socialmente...

Autocaracteriza-se quando diz:Só acredito em duas coisas: no dinheiro e na força. O general não tem uma

nem outra e (...) Os degraus da vida são logo esquecidos por quem sobe a escada... Pobre de quem lembre ao pode roso a sua origem... Do alto do poder, tudo o que ficou para trás é vago e nebuloso. (...) Nunca se fala de traição a quem sobe na vida...

Manuel – “O mais consciente dos populares”, andrajosamente vestido; assume algum protagonismo por dar início aos dois actos, com as mesmas indicações cénicas: a mesma posição em cena, como única personagem intensamente iluminada, os mesmos movimentos e a mesma frase “Que posso eu fazer? Sim, que posso eu fazer?”

Denuncia a opressão a que o povo tem estado sujeito (as Invasões Francesas; a “protecção” britânica, após a retirada do rei D. João VI para o Brasil) e a incapacidade de conseguir a libertação e de sair da miséria em que se encontra:

Vê-se a gente livre dos Franceses e zás!, cai na mão dos Ingleses!E agora? Se acabamos com os Ingleses, ficamos na mão dos reis do Rossio...Entre os três o diabo que escolha... (...)E enquanto eles andam para trás e para a frente, para a esquerda e para a

direita, nós não passa mos do mesmo sítio!

Sousa Falcão – “o inseparável amigo” sofre junto de Matilde perante a condenação do general; assume as mesmas ideias de justiça e de liberdade, mas não teve a coragem do general...

Matilde de Melo — “A companheira de todas as horas” corajosa;

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- exprime romanticamente o amor; reage violentamente perante o ódio e as injustiças; afirma o valor da sinceridade; desmascara o interesse, a hipocrisia;

Ensina-se-lhes que sejam valentes para um dia virem a ser julgados por covardes! Ensina-se-lhes que sejam justos para viverem num mundo em que reina a injustiça! Ensina-se-lhes que sejam leais, para que a lealdade, um dia, os leve à forca!;

- ora desanima, ora se enfurece, ora se revolta, mas luta sempre;

Enquanto houver vida... força... voz para gritar... Baterei a todas as portas, clamarei por toda a parte, mendigarei se for preciso, a vida daquele a quem devo a minha!

Opiniões a propósito das novas ideias liberais que começavam a ganhar força

1. Dos elementos do Conselho de RegênciaD. Miguel Pereira Forjaz, representante da nobreza na regência, afirma:

Trama-se uma conjura destinada a atacar a própria estrutura da sociedade em que vivemos. Se não tomarmos as necessárias precauções, dentro em breve teremos a desordem nas ruas e a anar quia nas almas! (..)

Não lhes nego, Excelências, que não sou um homem do meu tempo.Um mundo em que não se distinga, a olho nu, um prelado dum nobre, ou um

nobre dum popular, não é mundo em que eu deseje viver. Não concebo a vida, Excelências, desde que o taberneíro da esquina possa discutir a opinião d’el-rei, nem me seria possível viver desde que a minha opinião valesse tanto como a de um arruaceiro.

O Principal Sousa, representante do clero no Governo, admite:Senhor Governador, tenho medo. Há dois dias que quase não durmo e mesmo,

quando passo pelo sono, perseguem-me imagens terríveis: imagino-me réu perante um tribunal que me não respeita.

Dedos imundos tocam-me as vestes. Sonhei já três vezes que estava no Campo de Sant’Ana, subindo ao cadafalso, enquanto à minha volta os gritos do povo me não deixavam, sequer, ouvir a sentença...

O marechal Beresford teme essencialmente perder os privilégios de que goza e realça a gravidade do momento, impelindo os outros à acção:

O que interessa é saber qual é a melhor forma de sufocar a revolta que se prepara.

Tragam-nos a proclamação.., obtenham-na seja como for...Não percam tempo, Senhores. O momento é grave e a causa é justa. Vão.Os chefes?! Quem são os chefes?;Já que temos ocasião de crucificar alguém, que escolhamos a quem valha a

pena crucificar...

2. Do PovoA classe explorada depositava nos movimentos liberais a grande esperança de

alteração da situação em que se encontrava:- Manuel, a propósito do general Gomes Freire, formula um desejo: “Se ele

quisesse...”;

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- Manuel ao “deixar cair os braços num gesto de desânimo’ após a prisão do general, afirma:

E ficamos pior do que estávamos... Se tínhamos fome e esperança, ficamos só com fome... Se, durante uns tempos, acreditámos em nós próprios, voltamos a não acreditar em nada...

Na altura da execução, as últimas palavras de Matilde, “companheira de todas as horas” do general Gomes Freire, são de coragem e de estímulo para que o povo se revolte contra a tirania dos governantes:

Olhem bem! Limpem os olhos no clarão daquela fogueira e abram as almas ao que ela nos ensina! Até a noite foi feita para que a vísseis até ao fim...

(Pausa)Felizmente — felizmente há luar!

Os símbolos

1. A saia verde- A felicidade – a prenda comprada em Paris (terra da liberdade), no Inverno,

com o dinheiro da venda de duas medalhas;- Ao escolher aquela saia para esperar o companheiro após a morte, destaca a

“alegria” do reencontro (“agora que se acabaram as batalhas, vem apertar-me contra o peito”).

Convém recordar, a propósito, que a saia é uma peça eminentemente feminina e que o verde está habitualmente conotado com tranquilidade e esperança, traduzindo uma sensação repousante, envolvente e refrescante. O Dicionário de Símbolos1 diz-nos que:

Entre o azul e o amarelo, o verde resulta das suas interferências cromáticas. Mas entra com o vermelho no jogo simbólico de alternâncias. A rosa floresce entre folhas verdes. Equidistante do azul-celeste e do vermelho infernal, ambos absolutos e inacessíveis, o verde, valor médio, mediador entre o quente e o frio, o alto e o baixo, é uma cor tranquilizadora, refrescante, humana.

2. O título / a luz / a noite / o luarO título surge por duas vezes ao longo da peça, inserido nas falas das

personagens:

1. D. Miguel salienta o efeito dissuasor que aquelas execuções poderão exercer sobre todos os que discutem as ordens dos governadores:

Lisboa há-de cheirar toda a noite a carne assada, Excelência, e o cheiro há-de-lhes ficar na memória durante muitos anos... Sempre que pensarem em discutir as nossas ordens, lembrar- se-ão do cheiro...

1“ Chevalier e Gheerbrant, Dictionnaire des Symboles, Robert Laffont / Jupiter, Paris, 1982.Logo de seguida, afirma:

É verdade que a execução se prolongará pela noite, mas felizmente há luar...

Esta primeira referência ao título da peça, colocada na fala do Governador, está relacionada com o desejo expresso de garantir a eficácia desta execução pública: a noite é mais assustadora, as chamas seriam visíveis de vários pontos da cidade e o luar atrairia as pessoas à rua para assistirem ao castigo, que se pretendia exemplar. Historicamente, esta frase foi mesmo proferida por D. Miguel Forjaz, mas numa carta ao intendente da Polícia.

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2. Na altura da execução, as últimas palavras de Matilde, “companheira de todas as horas” do general Gomes Freire, são de coragem e de estímulo para que o povo se revolte contra a tirania dos governantes:

Olhem bem! Limpem os olhos no clarão daquela fogueira e abram as almas ao que ela nos ensina!

Até a noite foi feita para que a vísseis até ao fim...(Pausa)Felizmente — felizmente há luar!

A luz, simbolicamente, está associada à vida, à saúde, à felicidade, enquanto a noite e as trevas se associam ao mal, à infelicidade, ao castigo, à perdição e à morte. Na linguagem e nos ritos maçónicos, após ter participado de olhos vendados em alguns rituais, após prestar juramento, o neófito poderia “receber a luz” o que significava ser admitido...

A Lua, simbolicamente, por estar privada de luz própria, na dependência do Sol, e por atravessar fases, mudando de forma, representa a dependência, a periodicidade e a renovação. A Lua é, pois, símbolo de transformação e de crescimento.

A Lua é ainda considerada como “o primeiro morto” (Chevalier e Gheerbrant,

Dictionnaire des Symboles, Robert Laffont / Jupiter, Paris, 1982.) dado que durante três noites em cada ciclo lunar ela está desaparecida, como morta; depois reaparece e vai crescendo em tamanho e em luz... Ao acreditar na vida para além da morte, o homem vê na Lua o símbolo desta passagem da vida para a morte e da morte para a vida...

Por isso, na peça, nestes dois momentos em que se faz referência directa ao título, a expressão “felizmente há luar” pode indiciar duas perspectivas de análise e de posicionamento das personagens:

1. As forças das trevas, do obscurantismo, do anti-humanismo utilizam, paradoxalmente, o lume (fonte de luz e de calor) para “purificar a sociedade” (a Inquisição considerava a fogueira como fonte e forma de purificação);

2. Se a luz é redentora, o luar poderá simbolizar a caminhada da sociedade em direcção à redenção, em busca da luz e da liberdade...

Assim, dado que o luar permite que as pessoas possam sair de suas casas (ajudando a vencer o medo e a insegurança na noite da cidade), quanto maior for a assistência, isso significará:

- para uns, que mais pessoas ficarão “avisadas” e o efeito dissuasor será maior...

- para outros, que mais pessoas poderão um dia seguir essa luz e lutar pela liberdade...

3. A fogueira / o lumeApós a prisão do general, num diálogo de “tom profético” e com a “voz triste”

(segundo a didascália), o Antigo Soldado, acabrunhado, afirma:

Prenderam o general... Para nós, a noite ainda ficou mais escura...

A resposta ambígua do 1.º Popular pode assumir também um carácter de profecia e de esperança:

É por pouco tempo, amigo. Espera pelo clarão das fogueiras...

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Matilde, ao afirmar que aquela fogueira de S. Julião da Barra ainda havia de “incendiar esta terra!” mostra que a chama se mantém viva e que a liberdade há-de chegar...

4. A moeda de cinco réisSímbolo do desrespeito (dos mais poderosos em relação aos mais

desfavorecidos) apresenta-se como represália, quase vingança, quando Manuel manda Rita dar a moeda a Matilde.

5. Os tamboresSímbolo da repressão, provocam o medo e prenunciam a ambiência trágica da

acção.

Linguagem• natural, viva e maleável, utilizada como marca caracterizadora e

individualizadora de algumas das personagens;• uso de frases em latim, com conotação irónica, por aparecerem aquando da

condenação e da execução;• frases incompletas por hesitação ou interrupção;• marcas características do discurso oral;• recurso frequente à ironia e ao sarcasmo.

A didascáliaAs didascálias, ou indicações cénicas, constituem, no seu conjunto, um texto

secundário que serve de suporte do texto dramático. Elas servem não apenas para definir a posição, movimentação ou gestos das personagens em cena, mas também para explicitar os sentimentos, as emoções ou as atitudes que devem transparecer no seu comportamento e para marcar uma alteração no tom de voz da personagem.

A peça é rica de marcações com referências concretas (sarcasmo, ironia, escárnio, indiferença, galhofa, adulação, desprezo, irritação — normalmente relacionadas com os opressores; tristeza, esperança, medo, desânimo — relacionadas com as personagens oprimidas).

As marcações são abundantes: tons de voz, movimentos, posições, cenários, gestos, vestuário, sons (o som dos tambores, o silêncio a voz que fala antes de entrar no palco, um sino que toca a rebate, o murmúrio de vozes, o toque de uma campainha, o murmúrio da multidão) e efeitos de luz (o contraste entre escuridão e luz; os dois actos terminam em sombra, de acordo, aliás, com o desenlace trágico).

De realçar que a peça termina ao som de fanfarra (Ouve-se ao longe uma fanfarronada que vai num crescendo de intensidade até cair o pano.) em oposição à luz (Desaparece o clarão da fogueira.); no entanto, a escuridão não é total, porque “felizmente há luar”.

Canções de resistência

Desde sempre, o Homem recorreu à arte como arma de comunicação e, por vezes, de intervenção e defesa. Mas, enquanto uns a consideravam uma necessidade de expressão e realização ou de tomada de consciência, outros censuravam-na ou receavam-na, precisamente por isso. As canções de resistência ou canções de protesto, consideradas

Durante a ditadura do Estado Novo, ao longo do século XX até ao 25 de Abril de 1974:

• a informação e as formas de expressão cultural eram controladas; • existia a censura prévia à imprensa, ao cinema, às artes plásticas e ao teatro, à música e à escrita; • a actividade política estava

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após a revolução de Abril de 1974 como canções de intervenção, são aquelas que, ao longo dos tempos, permitem a denúncia dos regimes opressores e da falta de liberdade ou a reclamação contra práticas de violência. São constituídas por poemas e músicas de denúncia de um presente de repressão e surgem como luta por um mundo melhor. Sem finalidade comercial, recorrendo, com frequência, à balada e com acompanhamento à viola ou à guitarra, possuem uma mensagem universalista, livre de qualquer constrangimento social. Na base das canções de resistência, estiveram, muitas vezes, poemas que exprimiam o sentimento de um povo oprimido, com a esperança da liberdade. Em alguns países, constituem, sobretudo, canção de protesto de movimentos pacifistas e antibelicistas. Em Portugal, as canções de resistência assumem uma função social e política desde o princípio dos anos 60, nomeadamente com a eclosão da guerra colonial em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Muitos foram os poetas que encontraram a palavra exacta para esse momento. Mesmo aqueles que, aparentemente, não entraram na denúncia do regime fizeram músicas onde a revolta se sente presente. Pela consciência social que a arte podia formar, muitos destes poetas, compositores e intérpretes viram os seus discos censurados pelo Estado Novo.

condicionada e as actividades associativas e sindicais eram quase nulas e controladas pela polícia política (PIDE/DGS); • as manifestações eram proibidas; • os opositores ao regime eram perseguidos e presos, acusados de pensarem e agirem contra a ideologia e práticas do Estado, ou fugiam para o exílio; • Portugal mantinha uma guerra colonial e encontrava-se praticamente isolado da comunidade internacional. O espectro da guerra pairava sobre todos os rapazes de 18 anos, o que gerou protestos de milhares de jovens, nomeadamente dos estudantes universitários, transformando-se num dos temas dominantes da oposição ao regime; • a pobreza e a falta de liberdade contribuíram para que um enorme surto de emigração acontecesse; • a Constituição não garantia o direito à educação, à saúde, ao trabalho e à habitação. Nas escolas havia salas e recreios separados para rapazes e raparigas; muitos livros e músicas eram proibidos.

No contexto sociopolítico em que Sttau Monteiro escreve Felizmente Há Luar!, percebe-se, facilmente, a evocação da ditadura do Estado Novo, de Salazar, com as perseguições a todos os que revelem competência, inteligência e qualidades morais. Se esta peça serve de pretexto para uma reflexão sobre os anos 60, do século XX, também a música e a poesia de intervenção permitiram traduzir o sentimento de um povo oprimido.

Não há machado que corte a raiz ao pensamento(não há morte para o vento não há morte)

Se ao morrer o coração

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morresse a luz que lhe é querida sem razão seria a vidasem razão

Nada apaga a luz que vivenum amor num pensamento porque é livre como o vento porque é livre

Carlos de Oliveira (música e intérprete: Manuel Freire)

Apesar de as ditaduras procurarem censurar ou banir os artistas, a arte sobrevive sempre, forjando, na frase de James Joyce, a consciência da raça. Como diz Malraux, no prefácio de Le Temps du Mépris, a arte é a tentativa “de dar aos homens consciência da grandeza que ignoram em si mesmos’

Em Portugal, a música e a literatura foram artes interventoras e de protesto. Mesmo aqueles que, aparentemente, não entraram na denúncia do regime, fizeram músicas onde a revolta se sente presente. O guitarrista Carlos Paredes, por exemplo, que considerava a música, antes de tudo, como um acto de amor, toca, frequentemente, no meio dos amigos, com cantores como Adriano Correia de Oliveira (“Que Nunca Mais” com textos de Manuel da Fonseca e arranjos de Fausto) e Carlos do Carmo (“Um Homem no País” com letras de José Carlos Ary dos Santos), ao lado de poetas como Manuel Alegre (“É Preciso Um País”) ou incentivando e procurando entender as experiências sonoras de músicos mais jovens.

Adriano Correia de Oliveira, José Afonso, Luís Cília, Manuel Freire, José Mário Branco, José Barata Moura e muitos outros viram os seus discos censurados. Por exemplo, Vampiros, de José Afonso, tornou-se numa balada emblemática da resistência.

VampirosNo céu cinzentoSob o astro mudoBatendo as asasPela noite caladaVêm em bandosCom pés de veludoChupar o sangueFresco da manada

Se alguém se enganaCom seu ar sisudoE lhes franqueiaAs portas à chegadaEles comem tudoEles comem tudoEles comem tudoE não deixam nada

A toda a parteChegam os vampirosPoisam nos prédiosPoisam nas calçadasTrazem no ventreDespojos antigos

Eles comem tudoEles comem tudoEles comem tudoE não deixam nada

No chão do medoTombam os vencidosOuvem-se os gritosNa noite abafadaJazem nos fossosVítimas dum credoE não se esgotaO sangue da manada

Se alguém se enganaCom seu ar sisudoE lhes franqueiaAs portas à chegadaEles comem tudoEles comem tudoEles comem tudoE não deixam nada

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Mas nada os prendeÀs vidas acabadas

São os mordomosDo universo todoSenhores à forçaMandadores sem leiEnchem as tulhasBebem vinho novoDançam a rondaNo pinhal do rei

Eles comem tudoEles comem tudoEles comem tudoE não deixam nada

José Afonso (letra e música)

Síntese

Felizmente Há Luar!

• Felizmente Há Luar! é um drama narrativo, de carácter social, dentro dos princípios do teatro épico; na linha de Brecht, analisa criticamente a sociedade, mostrando a realidade com o objectivo de levar o espectador a tomar uma posição.

• Exprime a revolta contra o poder despótico e mostra o direito e o dever da mulher e do homem de transformarem a sociedade.

• A obra Felizmente Há Luar! é entendida como uma alegoria política. Sttau Monteiro remete o leitor/espectador para os problemas sociais e políticos de Portugal não apenas do início do século XIX e durante o regime ditatorial do século XX, mas para todos os regimes despóticos e situações repressivas.

• Existe um paralelismo entre a acção presente na peça (a trágica apoteose do movimento liberal oitocentista) e os contextos ideológico e sociológico do país (durante a repressão salazarista).

• Há um mergulhar no passado onde se revisitam os acontecimentos históricos para levar o leitor/espectador a interpretar o presente e a reflectir sobre a necessidade de lutar contra qualquer opressão.

• Graças à distanciação histórica, denuncia um ambiente político repressivo dos inícios do século XIX, para provocar a reflexão sobre um tempo de opressão e de censura que se repete no século XX.

• A figura central é o general Gomes Freire de Andrade, que, mesmo ausente, condiciona a estrutura interna da peça e o comportamento de todas as outras personagens.

• O monólogo inicial de Manuel, “o mais consciente dos populares”, coloca-nos no contexto histórico da obra: invasões napoleónicas e protecção de Inglaterra; situação de repressão do povo pelos “senhores do Rossio”.

• Felizmente Há Luar! é uma obra intemporal que nos remete para a luta do ser humano contra a tirania, a injustiça e todas as formas de perseguição.

• Matilde de Meio, “a companheira de todas as horas”, possuidora de uma densidade psicológica notável, aparece na obra não apenas como sonhadora, que sabe amar de verdade, mas é a personagem que, corajosamente, desmascara a

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hipocrisia e reage contra o ódio e as injustiças. Ela acredita na transformação da situação de opressão em que o povo vive.

• Felizmente Há Luar! significa: para os opressores (nas palavras de O. Miguel), o efeito dissuasor das execuções; para os oprimidos (na fala de Matilde), a coragem e o estímulo para a revolta popular contra a tirania.

• Diversos símbolos favorecem a compreensão da situação vivida e da esperança de alcançar a liberdade: a saia verde, a luz, a noite, a lua, a fogueira, o lume, a moeda de cinco réis, os tambores...

• Diferentes elementos cénicos contribuem para o aumento da tensão dramática: - a iluminação (o jogo de luzes) - evidencia personagens, situações, reacções... - os sons de tambores - prenunciam o ambiente de tragédia; - os gestos e movimentações - sublinham emoções, atitudes...

• Felizmente Há Luar! narra a luta pela liberdade no início do século XIX e serve de pretexto para uma reflexão sobre a ditadura em Portugal no século XX. Todos os regimes opressivos, e concretamente o regime salazarista entre o início dos anos trinta e 1974, foram denunciados e contestados pelos artistas. A literatura, a música e outras artes foram o “veículo de protesto” contra a censura, contra a miséria, contra “uma realidade iníqua que urgia denunciar e resgatar”, como dizia Fernando Namora, em Sentados na Relva.

• As canções de resistência surgem, em geral, na vanguarda dos movimentos de contestação e exprimem o sentimento de um povo que busca a liberdade. A música e a literatura, em Portugal e no mundo, são, com frequência, artes interventoras e de protesto, que provocam a consciência para aceitar a mudança.

Glossário

Censura – instrumento usado por regimes totalitários para impedir que a imprensa e outros meios de difusão de mensagens, incluindo as criativas, como as da arte (pintura, escultura, música, teatro, cinema...), possam pôr em causa a ideologia vigente e fomentar a consciencialização para qualquer revolta contra o regime.A censura fez parte integrante da nossa História, imperou em muitos períodos, constituiu uma arma de defesa da Igreja e do Estado.A luta contra a censura foi feita através da Imprensa escrita, em suplementos literários ou juvenis, nas tertúlias, na imprensa clandestina.., mas só a revolução de Abril de 1974 pôs fim à censura em Portugal.

Conselho de Regência – a nova ordem política trazida pela Revolução Francesa de 1789 e as invasões napoleónicas abalam o Ocidente da Europa. Só a Inglaterra resiste ao imperador Napoleão Bonaparte, arrastando Portugal para uma posição de indecisão entre este aliado e a França.Por isso, em 29 de Novembro de 1807, com as tropas de Junot às portas de Lisboa, D. João VI, com a família real portuguesa e um imenso séquito de fidalgos, altos funcionários e militares, embarca apressadamente para o Brasil para evitar a capitulação.Dias antes de partir para o Brasil, o Príncipe Regente D. João nomeara um Conselho de Regência, para governar Portugal na sua ausência.

Didascália – (do grego didaskália = instrução, ensinamento) as didascálias eram, na Antiga Grécia, as instruções que os poetas dramáticos davam aos actores para a

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representação cónica; por vezes, designavam as próprias representações teatrais ou festivais trágicos. Actualmente, por extensão, incluem diversas informações: a listagem inicial de personagens; a indicação do nome da personagem antes de cada fala; anotações sobre a estrutura externa da obra; referências aos adereços que com põem o espaço cónico; informações sobre tom de voz, gestos, atitudes; o momento da entrada em cena e o percurso a realizar; indicações sobre o guarda-roupa; (...).

Hybris – termo grego que significa o desafio, o crime do excesso e do ultraje. Traduz-se num comportamento de provocação aos deuses e à ordem estabelecida.A hybris revela um sentimento de arrogância, de soberba e de orgulho, que leva os heróis da tragédia à insubmissão e à violação das leis dos deuses, da pólis (cidade), da família ou da natureza.O conflito que nasce da hybris desenvolve-se através da peripécia (súbita alteração dos acontecimentos que modifica a acção e conduz ao desfecho), do reconhecimento (agnórise) imprevisto que provoca a catástrofe. O desencadear da acção dá-nos conta do sofrimento (páthos) que se intensifica (clímax) e conduz ao desenlace. O sofrimento age sobre os espectadores, através dos sentimentos de terror e de piedade, para purificar as paixões (catarse).Na obra Felizmente Há Luar!, de Sttau Monteiro, a defesa da liberdade e da justiça, atitude de rebeldia, constitui a hybris (desafio) desta tragédia. Como consequência, a prisão dos conspiradores provocará o sofrimento (páthos) das personagens e despertará a compaixão do espectador.O crescendo trágico, representado pelas diversas tentativas desesperadas para obter o perdão, acabará, em clímax, com a execução pública do general Gomes Freire e dos restantes presos. Este desfecho trágico conduz a uma reflexão purificadora (cathársis) que os opressores pretendiam dissuasora, mas que despertou os oprimidos para os valores da liberdade e da justiça.

Inquisição – também conhecida por Tribunal do Santo Ofício, foi criada pelo Papa Gregório IX, no século XIII, para combater as heresias religiosas que apareciam pela Europa. Foi confiada aos jesuítas e aos dominicanos, mas na dependência da Santa Sé. Este tribunal instalou-se, no século XIII, em Espanha, na Alemanha, em França e, no século XVI, no reinado de D. João III, em Portugal.Com frequência, serviu o poder instituído, embora a sua acção fosse orientada para o combate às várias heresias e desvios religiosos, incluindo a censura aos livros, às práticas de adivinhação e feitiçaria, à bigamia. Com o decorrer do tempo passou a ter influência em todos os sectores da vida social, política e cultural, e desde que houvesse uma denúncia o acusado estava sujeito a toda a sorte de torturas físicas e mentais, incluindo a perda de bens e a morte. Os judeus e os mouros foram o principal alvo dos inquisidores, mas outras pessoas sofreram igualmente a perseguição.A força do Tribunal do Santo Ofício era enorme, mas acabou por criar conflitos entre os reis e os jesuítas, até que em 1821 foi extinto.

Jacobinismo – diz respeito às doutrinas e ideias dos jacobinos (do francês jacobin) da Revolução Francesa e dos democratas radicais, simpatizantes dos seus princípios.Os termos jacobino e jacobinismo adquirem, entre tanto, uma carga pejorativa quando surgem na acepção de republicanismo revolucionário levado ao extremo. Foi isso que sucedeu com a política de terror, cujas principais figuras foram Robespierre, Geor ges Danton, Saint-Just e Georges Couthon.

Jacobino – termo que surge durante a Revolução Francesa atribuído aos membros de um grupo político republicano com sede no antigo convento de jacobinos (nome dado a religiosos dominicanos de um convento da Rue de Saint-Jacques, em Paris, que em latim se diz Sanctus Jacobus). Mais tarde, e por extensão, passa a significar membro de um partido dito democrático, frequentemente inimigo da religião. Os jacobinos

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politicamente representavam os sans-culottes (os pobres, assim chamados por não usarem, como os nobres, os calções curtos com meias), e pequena burguesia. Depois de aceitarem a monarquia constitucional e após a fuga do rei, tornaram-se ardorosos defensores de uma república revolucionária.

Obscurantismo – significa estado de quem se encontra na escuridão, de quem vive na ignorância. É, a nível social, político e cultural, o sistema que nega a instrução e o conhecimento às pessoas com a consequente ausência de progresso intelectual ou material.Os estados totalitários e as grandes religiões na luta pelo poder recorreram, muitas vezes, a práticas obscurantistas, sacrificando os povos e o progresso civilizacional. São muitos os exemplos que a História nos oferece e que levaram a perseguições e outros crimes para preservar o estado de ignorância e facilitar o poder das instituições. O fanatismo religioso ao longo dos tempos, a Inquisição, as guerras étnicas, diversas ditaduras e muitas outras práticas totalitárias são exemplo do obscurantismo.

Real (moeda) e réis (moeda) – (no plural réis ou reais) é uma antiga moeda nominal ou de conta que foi unidade do sistema monetário em Portugal desde o início da segunda Dinastia até à implantação da República (em 1910), sendo então substituído pelo escudo e este, a partir do ano 2002, pelo euro (= 200,482 escudos). E o termo réis continuou a ser utilizado quando se designava, por exemplo, “dois contos de réis” em vez de dois mil escudos (2000$00), cerca de 10 euros (10€).O real, desde a colonização, passou, também, a ser moeda do Brasil, embora tenha alternado com cruzeiros e cruzados.Era a seguinte a leitura do real: $001 - um real; $500 - quinhentos réis; 2$000 - dois mil réis; 20$000 - vinte mil réis; 2000$000 - dois contos de réis.