Feliz Para Sempre?

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FELIZ PARA SEMPRE? UMA ANÁLISE DOS EFEITOS DO USO A LONGO PRAZO DE ANTIDEPRESSIVOS KWAME YONATAN POLI DOS SANTOS

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O trabalho traz a tona o debate sobre a produção de doença que envolve o uso de antidepressivos. O livro apresenta também a narrativa de cinco pessoas sobre a psicodinâmica do sofrimento do uso do referido psicofármaco por mais de três anos.

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  • FELIZ PARA SEMPRE?UMA ANLISE DOS EFEITOS DO USO A LONGO PRAZO DE ANTIDEPRESSIVOSKWAME YONATAN POLI DOS SANTOS

  • Feliz para sempre?

  • CONSELHO EDITORIAL ACADMICO

    Responsvel pela publicao desta obra

    Fernando Silva Teixeira Filho

    Jos Sterza Justo

    Silvio Yasui

    Danilo Saretta Verssimo

    Leonardo Lemos de Souza

  • KWAME YONATAN POLI DOS SANTOS

    Feliz para sempre?

    Uma anlise dos efeitos do Uso a longo prazo de

    antidepressivos

  • 2014 Editora Unesp

    Cultura Acadmica Praa da S, 108 01001-900 So Paulo SP Tel.: (0xx11) 3242-7171 Fax: (0xx11) 3242-7172 www.culturaacademica.com.br [email protected]

    CIP BRASIL. Catalogao na Fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

    S235f

    Santos, Kwame Yonatan Polidos

    Feliz para sempre? [recurso eletrnico] / Kwame Yonatan Polidos Santos. So Paulo: Cultura Acadmica, 2014.

    recurso digital

    Formato: ePDF

    Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Reader

    Modo de acesso: World Wide Web

    Inclui bibliografia

    ISBN 978-85-7983-603-9 (recurso eletrnico)

    1. Farmacologia. 2. Medicamentos. 3. Depresso. 4. Livros eletrnicos. I. Ttulo.

    14-18650 CDD: 615.1

    Este livro publicado pelo Programa de Publicaes Digitais da Pr-Reitoria de Ps-Graduao da Universidade Estadual Paulista Jlio de Mesquita Filho (Unesp)

    Editora afiliada:

  • Ao David (in memoriam) e ao Mudrik: os encantamentos da existncia.

  • AgrAdecimentos

    A melhor parte o caminhar, entre a chegada e a despedida, no qual no precisam se justificar os abraos, beijos e afetos. No qual todo acaso e sincronicidadade se produzem.

    Agradecimentos ao Gustavo Dionsio, a confiana, pelos nossos vrios bons encontros, cheios de garra, inspirao e fora para prosseguir. Com seus apontamentos precisos e elogios bem coloca-dos que me ensinaram a (re)escrever.

    Ao Silvio Yasui, o seu apoio, suas aulas e seu acolhimento que muito me ajudaram.

    Aos professores Benilton Bezerra Jr, Mary Okamoto e Charles Tesser, membros da banca de exame de qualificao e dissertao, as palavras que ressoaram e contriburam muito na confeco deste livro.

    Aos entrevistad@s, a fora, coragem, superao e potncia, cujas histrias foram os pilares que sustentaram este trabalho.

    Quero agradecer minha me pelo amor, carinho e com isso me dar uma estrutura emocional. Sempre falando da importncia do "a alm do rio Tejo", que preciso desejar e agir se quisermos movi-mentar a realidade.

  • Ao meu pai, o primeiro a plantar a semente do mestrado em mim e depois me dar elementos para faz-la florescer, ensinando--me que se nos distrairmos muito, no essencializamos as coisas.

    Ao Mudrik, o ensino do (re)nascer.As minhas irms e irmos: Mafoane, o exemplo titnico de li-

    derana emocional. Ao Husani, a educao sensvel de alegrias e dramas.

    Ao Handemba, o ensino da escrita diria na vida.A Tetembua, o pragmatismo e a no buscar o significado das

    coisas, mas a sua intensidade.Meu cunhado Marco, a lio de navegar a si.A minha v Dirce, por toda sabedoria e continuamente me ensi-

    nar a beleza da transitoriedade.Tio Carlos, todo o jazz e msica.Tio Cesar, que me trouxe para Assis pela primeira vez.Tio David (que se encantou), que me levou para ver o mar e a

    beleza do sol nascer.Tia Odila, o apoio constante e acompanhamento atento ao de-

    senvolvimento do trabalho.E outros familiares que no citei, porm se fazem igualmente

    presentes nesta pesquisa e no meu corao.Aos amigos-professores:Serginho, a construo da ponte e os atravessamentos dos

    devires-minoritrios.Fernando Teixeira, a clinic@rte, que me inspirou a buscar uma

    educao sensvel e a importncia da militncia potica.Ao Ablio Costa-Rosa, cujas aulas, escritos e conversas me in-

    fluenciaram profundamente.Ao Lu, as parcerias em viagens por todos os lados e sentidos.Aos psiclogos que me acompanharam ao longo dos anos:

    Samir, Fbio e Gregrio, (contra)transferncia.Aos meus amig@s, que sempre me ajudaram a transcender:Ao Guilherme, irmo de caminh(a)mar e pela "f cega, faca

    amolada". Ao Felipe Pissolati, o parceiro das batidas do corao. Flvia de S, o lugar no mundo de tempestades emocionais.

  • Ao Andr Yan, a alegria revigorante em vrios momentos.Ao Phablo, camaradinha de ideias fortes e sedimentrias.Ao Phillipe, a fora potica que me ajudou a acreditar nas mi-

    nhas palavras. Ao Cssio, toda poesia e devoo a ela. Cristiane Midori, o otimismo dos atravessamentos. Cristiane Otsuka, a tampa e a caneta que escreveram anos de

    histrias. Lilian Cerquetani, a sensibilidade das afetaes. A Carla, por

    (trans)ver alm e a invocao.Ao Joo, por mostrar que mesmo perdido, pode-se estar perto.Ao Loureno, que no me deixou desistir das perguntas de

    criana. Ao Matheus, que ressignificou o caminhar.Ao Diego, o ensino do trato com as palavras.Ao Toshio, cujas conversas me incentivaram a ir mais longe. Danilo W. que me ajudou a regar a semente do mestrado. Felipe e Priscila, os amigos circuladores dos afetos.Walter, a potncia e a saudade do que ainda no foi. Ao Junior a

    caminhada na contramo. Fernanda, a constante re-forma nas nascentes do devir. Natlia Risso, a intensidade do luar, do mar e estrela. Thalita, o apoio quando o mestrado era s um embrio. Luisa, parceira da potncia da alegria. Carolina B., a volta ao mundo e as voltas que ele nos d. Jssica Gottschalk, o desnorteamento de sempre estar no ca-

    minho s com a bssola desejante.Ao Andr M., o amigo profundo de presena em pequenos ges-

    tos e sentimento intensos. Thais Dainez, as conversas que me alimentaram os dias. Daiane, a fora, as provocaes intigantes e o incentivo

    potico. Gabriela R., as costuras de horizontes. Juliana Bessa, o turbilho, fissuras e potencialidade. Amanda Lvia, o navio sempre pronto a se lanar no mar. Andressa e ao Douglas, pelo canto de Ossanha.Aos quilombolas, a reexistncia.

  • Maria Clara, que me ensinou a importncia de inscrever e escrever com o corpo.

    Maria Cristina, pelas inquietaes ocenicas, as benditas flo-res e viagens dos pssaros azuis.

    Ao Danilo O., pela vibrao do violo que faz danar o esprito.Ao Waldir, pela parceria de imensas contribuies intelectuais

    a esse trabalho.E @s amig@s que no foram citados, no foi por esquecimento,

    ou menos importncia, pelo contrrio, vocs significam tanto que no consegui nem colocar em palavras.

    Ao ncleo e linha de pesquisa Medicalizao do social no con-temporneo: Daniele, Naeli, Luisa, Laura, Maria,Rucheli; as dis-cusses, conversas e bons encontros.

    Ao grupo de capoeira Angoleiros do Serto, principalmente, contramestre Alexandre Zacarias (Xando), treineis, Alex, Carla (Natureza), Mrcio(Blanka) e Oriquer, que me ensinaram a jogar na grande roda do mundo.

    Ao grupo de estgio Clinic@rte: Fernando, Aline, Ana Paula, Bruna, Bruno, Franciele, Julia, a militncia tico-esttica-poltica.

    Ao laboratrio de psicanlise e arte: Gustavo, Rafael, Carlos, Alan, Martin, Juliana Pirr, Sara e Samuel, as experimentaes estticas e recriaes do fazer artstico.

    Ao Frum de Medicalizao da Educao e da Sociedade, pelos bons encontros espinozianos, eventos nos quais aprendi no s a acolher e reconhecer a diferena, mas tambm a importncia da sua fruio.

    O ltimo agradecimento vai para as agncias de apoio financei-ro, a Capes/CNPQ, pelo primeiro ano do mestrado, e a Fapesp, pelo apoio financeiro durante segundo ano da pesquisa.

    Para finalizar, devo lembrar Oscar Niemayer, que escrevia com a arquitetura: Tem que sonhar, seno as coisas no acontecem; e foi assim que esse trabalho surgiu de um devaneio de criana, de um dia escrever livros, enlou-crescemos, e o ltimo agradecimento vai para esse sonho de menino, que o pai do homem que sou hoje.

  • A escritura no tem outro objetivo: o vento...

    (Gilles Deleuze)

  • sumrio

    Prefcio 15Apresentao 23

    1 O diagnstico de depresso 432 Os antidepressivos 773 @s entrevistad@s 97

    Consideraes finais 137Referncias 159Anexo A 171Anexo B 173

  • Prefcio Por umA fArmAcoPoticA

    No sei at que ponto este meu prefcio para Feliz para sempre?, de Kwame Yonatan Poli dos Santos, no poderia ser substitudo por uma nica imagem, sendo ela muito representativa, por assim dizer, sobre o que trata seu estudo: refiro-me a Pharmacy (1992), um dos primeiros trabalhos em que Damien Hirst empregou uma assemblage de embalagens de medicamento justapostas em estantes, visando precisamente compor a sensao de se estar em um estabe-lecimento farmacutico. A impresso de assepsia, arrisco dizer, a primeira que se impe ao espectador, mesmo ao mais avisado, ainda que essa no seja a inteno primeira do autor e quanto a isso, vale se estamos falando de Kwame ou de Hirst, por certo.1

    Na sequncia, mas somente quase vinte anos depois, o artista viria a apresentar suas Medicine Cabinets (2010), obra que se com-pe de uma linha de trabalhos no mesmssimo estilo e, portanto, complementar quela, na minha opinio , embora no consista

    1 De acordo com Arthur Danto, Hirst no procurou articular diretamente o ttulo da msica ao que desejaria expressar com as medicaes expostas. Por exemplo, No feelings no composta preponderantemente de tranquilizantes; Sinner tam-pouco est representada por embalagens de preservativos, e da por diante.

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    numa sala propriamente dita, tal como ocorrera com a instalao de Pharmacy (Hirst, 1992); neste ltimo caso, o trabalho se apresenta sob a forma de uma srie que conta com Pretty Vacant, No feelings, Sinner, Anarchy e Liar, isto , um conjunto de imagens cujos ttulos se referem individualmente canes do famigerado Nevermind the Bollocks, nico disco de estdio da icnica banda punk Sex Pis-tols (Hirst, 2012). Na ocasio, Hirst deixara evidente a inteno primrdia da exposio: inscrever sua preocupao filosfica (so palavras do artista) a respeito da vida e da morte; para tanto, precisaria propor, alta voz, uma questo sempre margeada por um ou outro artista, mas nunca enfrentada assim to diretamente: se a arte seria ou no capaz de curar.

    Digo por um ou outro artista porque, para muitos profissionais ligados ao campo da sade (mental, a propsito, como se d na maioria dos casos), a resposta inequvoca: sim, a arte capaz de curar. Como se sabe, a dra. Nise da Silveira e que talvez seja a psiquiatra mais importante e mais antipsiquitrica na histria da Sade Mental brasileira , apostava muitas das suas fichas nesse saber arte-curativo, a ponto de fundar um museu2 que, sobre-vivendo ainda nos dias de hoje, dedicaria todo o seu esforo para oferecer uma possibilidade de expresso artstica aos pacientes que ela atenderia, ali mesmo no Centro Psiquitrico Pedro II, at o final de sua vida. Kwame no deixa de mencion-la, claro, pois sua pesquisa o permitiu entender em que medida o perigo da camisa de fora qumica, j por ela apontado desde a dcada de 1980, seria cada vez mais penetrante em nossa sociedade hipermoderna.

    Medicine Cabinet consiste, de maneira simples, em um conjunto homogneo de prateleiras de farmcia nas quais se dispem caixas de medicamento dos mais variados tipos a rigor, trata-se de uma arrumao de embalagens comerciais de medicao, formato sob o qual as drogas legais so vendidas em nossa sociedade. Ali e Hirst faz questo de sublinhar , no se encontram concretamente os medicamentos, mas apenas as suas embalagens, o que implica

    2 Museu de Imagens do Inconsciente.

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    pensarmos, ao fim e ao cabo, no carter ilusionista desse jogo por ele proposto. Ora, se as caixas so de fato sedutoras, e se seu colo-rido remete a uma associao quase inequvoca entre o remdio e o brinquedo, nessa perspectiva elas talvez indiquem um limite tnue, porm inegvel ou ainda indesejvel, entre a arte e o universo da... publicidade.

    De forma mais aprofundada, no entanto, haveria uma articulao menos bvia entre a medicina e a arte, a confiar neste depoimento do prprio artista: por que as pessoas acreditam to piamente na medi-cina surpreendeu-se Hirst em certo momento , mas no na arte? I cant understand why most people believe in medicine and dont believe in art, declarou aos crticos, without questioning either.3 Com efeito, por que, afinal, as pessoas no suspeitariam da eficcia da primeira tendo como base a ineficcia da segunda? Talvez porque, em parte, ao menos, o pblico de arte contempornea des-confie mais do mtier do artista, conforme sugeriu brilhantemente o msico Chico Science: Computadores fazem arte... artistas fazem dinheiro. Mas vale reforar que, em Medicine Cabinets, a imagem composta apenas com as caixas-embalagens, de tal modo que os remdios no se encontram ali, como apontei h pouco; em ou-tras palavras, pode-se dizer que tudo conflui apenas na formao de uma imagem. H uma iluso em vista, portanto, mas no uma iluso qualquer: como se estivssemos diante de um problema de representao ilustrado la Ceci nest pas une pipe, tal como nos provocara Magritte logo no incio do sculo XX. E a respeito desse trabalho de Hirst, o filsofo e crtico de arte Arthur Danto (2010) acrescentou: I suppose the Medicine Cabinet exemplify a kind of fantasy of a decriminalized drug culture, where what the French call stupefiants are displayed like cigarettes or chocolate bars, even if acquiring them requires prescriptions.4

    *

    3 Em uma traduo livre: No consigo entender porque a maioria das pessoas acredita na medicina, mas no acredita na arte, sem questionar a ambos.

    4 Em uma traduo livre: Creio que Medicine Cabinet exemplifica um tipo de fantasia de uma cultura descriminalizada das drogas, onde isso que os

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    Seguindo duas vertentes que se entrecruzam a primeira a par-tir de uma discusso sobre quais seriam as condies histricas, materiais e polticas que proporcionaram que os antidepressivos fossem to largamente receitados em nossa poca; e a segunda rela-tiva aos efeitos subjetivos da sua prescrio continuada , Kwame constri neste Feliz para sempre? uma significativa reflexo sobre a problemtica do uso de medicamentos antidepressivos em nossa vida contempornea. Vaticinada por muitos como o mal do sculo XX, a depresso continua assombrando psicologicamente grande parte da populao mundial; hoje, no entanto, e mais do que nunca, vem sendo acompanhada de um largo espectro de medicalizao, cujo sintoma social , a propsito, muito bem apontado pelo autor.

    Diante do processo de banalizao diagnstica, to evidente quanto mais iminente nas sociedades contemporneas, Kwame procurou ouvir se existiria algum sofrimento subjacente ao uso prolongado do antidepressivo, visando com isso isolar uma esp-cie de experincia subjetiva que residiria a calada, subjacente ao (ab)uso medicamentoso. Ora, seu trabalho no se resume a deixar falar apenas a latncia de uma experincia depressiva pura, por assim dizer, mas de tom-la no que ela foi ganhando em termos social e psiquicamente nefastos, condio observvel de sua ia-trogenia: quanto mais os psiquiatras a medicam o que se pode verificar com a pesquisa , mais a depresso vir a demandar uma medicao, reforando o crculo vicioso preexistente entre a base leia-se, a indstria farmacutica , e a ponta necessariamente mais frgil da corda, isto , o usurio comum. E na justa medida em que procura resgatar a potncia do desejamento como assim prefiro formaliz-la, j que se movimento em um processo do sujeito deprimido que Kwame nos lembra, por meio desta frase bastante acertada, o quanto a utilizao indevida de psicofrmacos, sob a gide da tica da tutela, produz [em termos de] marginalizao da subjetividade.

    franceses chamam de stupefiants so apresentados como cigarros ou barras de chocolate, mesmo que para adquiri-los ainda se exijam receitas.

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    A investigao no foi conduzida sob a disposio metdica de uma psicanlise, digamos neste nterim, intensa, embora nela tenha se inspirado e se advertido de maneira bastante profunda, extraindo da um nvel muito particular de escuta que ser apreendida pela via das entrevistas que o autor realizou junto sua dileta seleta de entrevistados: ao ouvi-los, o leitor perceber, conduzido pela mo do autor, o quanto esto longe de compartilhar qualquer unidade de sentido universalizante que se viesse a empregar a respeito da condio depressiva; e com isso podemos considerar, ento, que haveria um mnimo de singularizao nas situaes em que se vive a depresso, fazendo de sua situao vivida uma verdadeira expe-rincia subjetivante, ainda que em muitas ocasies ela venha a ser tamponada, sem se separar do sujeito do inconsciente, decerto, com a presena acachapante do medicamento. Por outro lado, este ca-rter singular da experincia tambm nos permitiria compreender que os impasses contemporneos que circunscrevem os processos de subjetivao so objetivamente concorrentes na construo da experincia, e isso antes mesmo do diagnstico, o que no deixa de se revelar a ns, em boa medida, como um certo alvio. H uma recorrncia curiosa, no obstante essas variaes: uma grande in-satisfao com o uso contnuo do antidepressivo foi apontada em todos os entrevistados...

    Concordo com muitos autores que sugerem estarmos vivendo uma era em que se atesta o aumento paulatino da presso acerca da performance individual; no falta essa massa crtica que pde nos apontar, a partir dessa perspectiva, que nunca teramos sido jogados em tamanha imerso na cultura do self-made man, nunca teramos sido to subjetivados americana quanto agora. Benilton Bezerra Jr., interlocutor privilegiado de Kwame neste livro, nos lembra, por exemplo, que a ideia de felicidade, at pouco tempo considerada uma aspirao social, passou a ser um dever sem esca-patria leia-se, estaramos todos diante do imperativo categrico de um supereu que obriga o sujeito a gozar, e a lngua portuguesa se revela muito adequada para lidar com a ambiguidade do problema:

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    Sim, tenho que gozar, mas agradeo por isso, muito obrigado. Restaria alguma sada?

    Bem advertido, Kwame no arrisca responder a essa pergunta, e no mesmo o caso de exigi-lo de seu trabalho; todavia preciso no confundir o que se impe, a, como o objeto de sua investiga-o, rigorosamente falando: como se poder verificar nas linhas se-guintes, seu livro no deseja erigir um libelo contra a medicao da depresso (mas sim contra a medicalizao, que bem o caso de se combater com unhas e dentes), e por essa razo escapa de uma viso maniquesta do problema que, como sabido, tenderia fatalmente a colocar os viles e os mocinhos em duelo. Em termos propriamente crticos, penso que o autor no deixa de questionar, em momento algum, a certeza delirante que com o tempo se instalara em defi-nitivo no interior do dispositivo social da medicalizao o que nos exige revisitar a obra de Damien Hirst aludida no incio deste argu-mento. A meu ver, a operao relativamente simples, no entanto um tanto complexa justamente por isso: ao sabor da ignorncia douta (eu j disse que o modo de pensar psicanaltico tranversaliza seu mtodo de cabo a rabo?), Kwame recoloca questes funda-mentais ao campo estudado: como caracterizar psicologicamente, enfim, a depresso nos dias de hoje? Como se define um diagns-tico? E que funo restaria ao sintoma esta persona non grata to obcecadamente silenciada pela psiquiatria nesse meio de campo? So indagaes que ele convida o leitor a enfrentar, respondendo-as p ante p ao longo da conversa.

    Para evitar a leitura de tipo ou... ou, Kwame apela, enfim, dialtica do phrmakon, sobretudo via Jacques Derrida, para ento concluir sua discusso de modo a justapor os dois lados da moeda, forjando-a: se por um lado a medicao antidepressiva visa ser um bom remdio, articulando-se ao bem dizer, por outro, mal utiliza-da, abusada em muitos dos casos, ela pode acabar se transformando em narctico, ou mesmo em veneno, que ainda mais recorrente. E aqui, justamente, que o psicotrpico apareceria como um tipo de impedimento fabricado em desfavor aos processos de subjetivao. Por conseguinte, se em boa parte o antidepressivo pode atuar dire-

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    tamente no sintoma, nem por isso ele (o medicamento) se implica na relao entre o sintoma e o desejo... Logo, sobra um vazio entre tudo isso e o prprio sujeito, a quem s restaria dourar a plula. Em outras palavras, o remdio assim considerado no retifica o subjeti-vo no sujeito, pois est longe de klinamen, eixo tico-paradigmtico da construo do argumento de Kwame em vista de uma tica que possa abordar a fronteira entre o remdio, a cura e a indstria. Tro-cando em midos, no haveria ainda uma clnica a ser pensada para a depresso?

    *Pois bem: se verdade que Freud teria antecipado quase tudo

    a esse respeito com seu Wo es war, soll Ich werden, nem por isso se garante que uma posio esttico-poltica possa ser mantida no terreno mdico, psicolgico ou mesmo psicanaltico. preciso muito cuidado a, adverte-nos Feliz para sempre?, pois talvez no tenhamos outra sada, ao menos eticamente falando, se no pela via de uma estilstica da existncia, dando cabo de um percurso criador que venha a se estabelecer entre o sujeito e o seu phrmakon. Que onde h isso, haja eu uma leitura que deve levar em considerao o ndice subjetivante no processamento da aparelhagem psquica, ou seja, aquele que conduz o efeito-sujeito ao ponto em que possa advir ancorado no desejo, e no dele apartado. Em Pharmacy, nesse sentido, acredito que Damien Hirst chegou a tatear essa ideia, e por mais incomodados que possamos ficar com o visual marqueteiro de muitas de suas obras posteriores, teramos de considerar algo a ser levado em melhor considerao neste momento de sua obra, uma vez que o artista acreditava que as farmcias nos provocam, de fato, um sentimento prprio de confidncia, ou seja, de parado-xal intimidade.

    No meu brevssimo modo de ver, mas que j tive a oportunidade de expressar em mais de uma ocasio,5 possvel dizer que, de sua parte, Damien Hirst teria denunciado, por meio das obras ante-riormente aludidas (Pharmacy e Medicine Cabinets, como vimos),

    5 Ver: Dionsio, 2013 e Dionsio, 2014.

  • 22 KWAME YONATAN POLI DOS SANTOS

    todo um aparato da extrema oralizao que se vinha instalando, paulatina e silenciosamente, nas entranhas da vida social contem-pornea: o imperativo totalitrio de gozar a qualquer custo, agora to mais atuante se concordarmos com a tese, age principalmente naqueles que so apenas boca, isto , em quem no seno na condio da pura voracidade. A meu ver, o aguilho crtico destas obras se comunica mais ou menos diretamente com o que Kwame tambm arvorou denunciar em seu percurso, abrindo portas para refletirmos sobre essa avidez tamanha antes de sermos engolidos por ela assim como engolimos o comprimido. Enfim, tudo a que uma farmacopotica, no melhor dos casos, poderia nos encaminhar.

    Gustavo Henrique Dionsio

  • APresentAo

    No quero mais saber do lirismo que no li-bertao.

    (Manuel Bandeira Libertinagem)

    Ele desceu no ponto do nibus sorrindo e comeou a conversar, algo raro em uma metrpole. Contou sobre seu dia, perguntou informaes sobre o lugar onde tinha acabado de descer. Todo a conversa transcorria como esperado, at que, subitamente, ele in-terrompeu o dilogo, um tanto pesaroso, para se apresentar: o senhor desculpe qualquer coisa, mas eu tenho problemas- nisso ele apontou para a sua cabea e continuou eu tomo remdio psiquitricos.

    Aps o alerta incauto, ele continuou contando das suas desven-turas em razo desse diagnstico psiquitrico que pesava sobre suas relaes com a realidade. Somente prximo despedida, vim saber seu nome, Roberto.

    O encontro com o Roberto me causou um profundo incmodo, deslocou-me da minha posio enquanto suposto normal e me fez pensar sobre o que havia produzido isso: por que ele, antes mesmo de me dizer seu nome, apresentou-se como portador de uma doena

  • 24 KWAME YONATAN POLI DOS SANTOS

    mental? Em qual contexto ele me envolveu, no qual este tipo de ressalva sob o estado psicolgico de cada um necessria?

    Derrida, em Limited Inc. (1988), questiona o conceito de con-texto, ele argumenta que esse conceito nunca absolutamente de-terminado, ou que sua determinao nunca inteiramente certa ou esgotvel, isto , por mais que tentemos por meio da linguagem compartilhar um contexto, esta noo permanecer um tanto vaga.

    A conversa casual com Roberto mostrou o quanto a investiga-o de um contexto insaturvel. No entanto, nosso breve dilogo deixou-me duas fortes marcas do nosso cenrio contemporneo: a importncia do diagnstico psiquitrico e a ampla prescrio de medicamentos psicoativos.

    O modo peculiar com que o Roberto se apresentou ofereceu-me uma possibilidade de introduo ao problema, que esmiuaremos nesse livro, sobre o que produzem os antidepressivos, seguindo duas vertentes que se entrecruzam: a primeira a reflexo de quais condies (histricas, materiais, polticas etc.) propiciaram que os antidepressivos fossem largamente prescritos; a segunda relativa aos efeitos subjetivos da sua prescrio continuada.

    Por que a escolha do antidepressivo e no outro medicamento?Tal interesse pela temtica surgiu a partir de um importante

    dado da Organizao Mundial da Sade (OMS), divulgado no dia 2 de setembro de 2009, no jornal O Estado de So Paulo, que projeta-va, para 2030, o diagnstico psiquitrico de depresso como a doen-a mais comum do mundo, afetando mais pessoas do que qualquer outro problema de sade, incluindo cncer e doenas cardacas.

    Alm dos antidepressivos serem somente utilizado no trata-mento para depresso, eles influenciaram muito no modo atual como entendemos o diagnstico psiquitrico da depresso, pois [...] a psiquiatria segue as pegadas da medicina somtica. Ela tam-bm reconstitui o ser das enfermidades a partir dos efeitos estritos dos medicamentos, e torna tal reconstituio o vetor operatrio de sua construo terica (Birman, 2001, p.23).

    Nesse sentido, os avanos neuropsicofarmacolgicos exerceram certa preponderncia no modo como foi construdo o diagnstico

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    psiquitrico da depresso. Por consequncia, discutir sobre as pro-dues dos antidepressivos requer que se reflita sobre a experincia depressiva.

    A psiquiatria, desde o sculo XIX, o ramo da medicina res-ponsvel por cuidar e tratar de tudo o que chamado de doena mental e, tambm, por explicar, ditar e categorizar quais seriam essas doenas.

    O nascimento da psiquiatria foi marcado pela retirada da dita loucura do campo religioso-moral e sua entrada no campo cientfi-co-mdico. Na atualidade, a prtica de circunscrio dos sofrimen-tos psquicos, no campo da psicopatologia psiquitrica, ganhou novos contornos.

    At a inveno dos remdios alteradores do funcionamento ps-quico, isto , os psicofrmacos, a psiquiatria era olhada com certa desconfiana dentre as outras especialidades mdicas, j que no possua uma ferramenta de tratamento que legitimasse sua prtica como sendo de fato mdica (Izaguirre, 2011). Na ps-moderni-dade, deparamos-nos com o desenvolvimento biotecnolgico e a revoluo psicofarmacolgica (Rodrigues, 2003), em que houve uma radical transformao epistemolgico-paradigmtica que co-mentaremos adiante. Essa mudana, ocorrida na segunda metade do sculo XX, foi o momento em que a psiquiatria hegemnica se remedicalizou, ou seja, abandonou embasamentos tericos que no seguissem a vertente biolgica.

    O fenmeno de medicalizao refere-se mudana contempo-rnea de certo modo de entendimento e prtica em sade mental, visto que diferentes problemticas (escolar, social, cultural etc.) foram englobadas ao campo da medicina, por meio da patologiza-o. Por conta desse deslocamento paradigmtico, uma maior pres-crio de remdios psicotrpicos vem ocorrendo nos tratamentos de sofrimentos psquicos. Esse processo se refere, acima de tudo, ao ato de prescrio indevida de psicofrmacos.

    Por essa razo, a revoluo psicofarmacolgica representou uma quebra de paradigma sobre o entendimento psiquitrico do tratamento das chamadas doenas mentais, j que as queixas emo-

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    cionais passaram a serem vistas como fruto de um desbalanceamen-to neuroqumico.

    Com o advento dos psicofrmacos, o cenrio se modificou ra-dicalmente, pois os medicamentos passaram de coadjuvantes para protagonistas nos tratamentos psicolgicos, sendo vistos como os verdadeiros Emplastro Brs Cubas,1 a cura de todos os males ps-quicos. Observou-se uma rpida remisso do sofrimento psquico, que foi tomada como a cura.

    No incio do aparecimento dos psicofrmacos, eles eram recei-tados para complementar a psicoterapia. Esse cenrio se alterou paulatinamente com o avano das explicaes neuroqumicas do sofrimento psquico e o declnio de explicaes metapsicolgicas elucidaes referentes ao universo do inconsciente psicanaltico, no qual cada vez menos a questo do sujeito sobre as vias desejantes era considerada como a principal vertente do tratamento (Coser, 2003).

    Em determinado momento, os psiquiatras tiveram que escolher entre centrar seus investimentos na trilha da indstria farmacuti-ca, ou seja, tratamentos psicofarmacolgicos, ou caminhar com as terapias da fala, a psicanlise. Ocorreu que uma grande parcela da psiquiatria acabou por investir nos psicofrmacos, acreditan-do ser a melhor forma de tratamento do sofrimento psquico e, assim, as narrativas dos sujeitos foram perdendo espao na clnica psiquitrica.

    Derrida (apud Roudinesco, 2000) comenta que as psicanlises e outras psicoteraputicas tornaram-se remdios de fundo de prate-leira. Em ltimo caso, podem ser boas, mas j se inventaram trata-mentos melhores. Essa mudana epistemolgica psiquitrica teve profundas consequncias nas prticas de Sade Mental. A psican-lise que contribuiu teoricamente na construo dos dois primeiros manuais auxiliares de diagnstico, tornou-se quase incompatvel clinicamente com a psiquiatria.2

    1 Referncia obra de Machado de Assis, Memrias pstumas de Brs Cubas. 2 Mais sobre o rompimento epistemolgico e paradigmtico da psicanlise com

    a psiquiatria veremos no Captulo 1.

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    Vendeu-se a falcia de que os comprimidos, por terem resul-tados mais rpidos, seriam mais eficientes que as psicoterapias, sendo capazes de encapsular anos de tratamento psicoterpico, j que outras teraputicas demorariam anos para conseguir o efeito de remisso dos sintomas. Contudo, atualmente, perguntamos-nos se a plula atinge os mesmos resultados (Coser, 2003).

    Se os medicamentos psicoativos tinham tanta eficcia sobre a queixa/demanda inicial do sujeito, conclua-se que a natureza das enfermidades psquicas era preponderantemente orgnica. Partin-do dessa lgica, aps a dcada de 1980, os psiquiatras abandonaram as terapias da fala; bastava a construo de um diagnstico orien-tado pelo DSM3 e a receita de psicofrmaco que o dficit neuroqu-mico seria corrigido. (Izaguirre, 2011).

    O DSM um manual auxiliar de diagnstico que veio para ten-tar classificar e categorizar todas as doenas mentais existentes. Ele pretende ser universalizante, aterico e estatstico. A ausncia de uma teoria, no entanto, nem sempre foi uma prerrogativa. O DSM-I, de 1952, com 106 psicopatologias, e o DSM-II, de 1968, com 185 patologias psiquitricas, contou com intensa influncia da teoria psicanaltica como fundo terico para sua utilizao clnica. Embasamento este que no DSM-III, de 1980, com 256 categorias nosolgicas, foi completamente abolido (Coser, 2010). O rom-pimento foi, tambm, paradigmtico e epistemolgico, visto que alterou no somente as bases tericas, mas tambm as tcnicas e os procedimentos na clnica.

    A narrativa do sujeito do seu sofrimento psquico passou a ter menos importncia dentro da prtica psiquitrica. Somente pos-sua validade cientfica aquilo que continha marcadores biolgicos; para a biopsiquiatria hoje em voga, um sofrimento s sofrimen-

    3 Sigla em ingls para Manual de Diagnstico e Estatstica dos Transtornos Men-tais, elaborado pela APA (Associao Americana de Psiquiatria, sigla em ingls). um manual auxiliar de diagnstico utilizado para a classificao de distrbios mentais. A primeira verso, de 1952, j passou por diversas revi-ses. Atualmente, encontra-se na sua quinta verso, recentemente lanada em maio de 2013.

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    to, uma doena s doena, um diagnstico s um diagnstico quando este for um biodiagnstico; tudo o mais apenas psicolgi-co ou social e, portanto, menos real (Caliman, 2012, p.113).

    Delimitaremos como perodo contemporneo do ano de 1952, tendo como marco o aparecimento do primeiro neurolptico, a cloropromazina, at 2010, com o atual processo de medicalizao do social. Trata-se, de fato, de um fenmeno recente o da reme-dicalizao, o qual vem tomando grandes propores nas ltimas dcadas.

    Ao observamos alguns dados da ONU (2008), veremos que, em oito anos (no perodo de 2000 a 2008), houve um aumento de 1.616% no consumo de metilfenidato4 (dados do IMS PMB). J a fluoxetina,5 um antidepressivo de uso corrente, vendeu, em 2007, 23,2 milhes de cpsulas e, em 2011, 34,6 milhes: um aumento de quase 50% em quatro anos (dados da consultoria farmacutica IMS Health Brasil).

    A leitura desses dados aponta para a ocorrncia de uma pro-funda alterao no modo de entendimento e tratamento do campo da sade mental no sentido dos dispositivos que esto sendo oferecidos.

    Em virtude dessas questes referentes aos tratamentos exclusi-vamente psicofarmacolgicos, este livro procura abrir um espao de dilogo para que possamos escutar os efeitos dos antidepressi-vos nos sujeitos para alm do discurso organicista e, assim, ouvir se existiria algum sofrimento subjacente ao uso prolongado de antidepressivo.

    A experincia subjetiva da depresso e os antidepressivos so as contingncias que fornecem os relevos para respondermos sobre a existncia de um sofrimento remanescente ao uso dos psicofrma-cos. Essa questo sobre a presena, ou no, de algum sofrimento,

    4 Metilfenidato (popularmente, conhecida como droga da obedincia) o remdio utilizado para o tratamento do Transtorno de Dficit de Ateno e Hiperatividade (TDAH). o princpio ativo dos psicoestimulantes Ritalina e Conserta.

    5 A fluoxetina mais conhecida o Prozac, nome comercial.

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    nos leva algumas questes eminentemente ticas acerca do uso con-tnuo de antidepressivos: quais contornos tomariam o sofrimento psquico do estado depressivo com o uso prolongado de antide-pressivos? Haveria apenas um deslocamento sintomtico, sintoma compreendido dentro da psicanlise?

    Como podemos observar a partir das problemticas levantadas, a discusso da depresso se encontra longe de estar esgotada. Ao mesmo tempo, observando por um vis epidemiolgico, observa-mos um aumento de sujeitos diagnosticados com depresso.

    Nesse sentido, utilizamos a experincia depressiva como um ndice para analisarmos a nossa sociedade contempornea. Pelo fato do diagnstico de depresso estar to banalizado, como podemos determinar o que depresso de fato e como diagnostic-la e trat--la? Ou ser que teramos que falar em depresses, isto , de um largo espectro de variaes de estados depressivos?

    O psicanalista Fdida (2009) faz o seguinte balano:

    O estado deprimido mostra, em primeiro lugar, a peculiaridade de nos ser estranhamente familiar. Certamente, podemos conceber gradaes entre as passagens depressivas, que todos conhecem em sua vida cotidiana, devido a contrariedades, decepes e lutos, at estes estados de imobilizao, de massificao, acompanhados da experincia da vida morta. A ponto de a intuio de um ani-quilamento de qualquer vida psquica vir legitimar a crena de que a depresso seria apenas uma espcie de "doena" de natureza biolgica ou neurobiolgica, a qual solicitaria apenas recurso ao medicamento antidepressivo. Certamente, a psicofarmacolo-gia da depresso desenvolveu com sucesso os tratamentos farma-coterpicos, e muitos pacientes deprimidos veem seu sofrimento diminuir graas a molculas qumicas altamente performticas. Mas a psiquiatria no poderia ignorar que o acompanhamento psicoterpico , e permanece sendo, indispensvel ao tratamento farmacoterpico. (Fdida, 2009, p.13-14)

    A familiaridade da depresso pode se relacionar a uma ferida no ser, que variaria em gradaes e gravidades diferentes em todos

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    ns, nos diferentes momentos da existncia. Por, s vezes, estar exposta tenderamos a tentar acelerar a cicatrizao, porm isso impossvel e, tambm, no se trata de intervir diretamente nesse processo.

    As diferentes proporcionalidades dessa ferida talvez, como diz o autor, significariam uma necessidade de se pluralizar a terminolo-gia para depresses, uma vez que esta experincia versaria sobre um largo espectro de estados depressivos, ao invs de haver uma unidade conceitual que daria conta desse conjunto.

    Ele, ainda, vai alm ao ressaltar que as neurocincias no podem ser as nicas a descrever e ditar como tratar. Essa vertente im-portante, porm, no deve ser preponderante em detrimento das correntes psicolgicas e psicanalticas, visto que as terapias da fala oferecem espao para que o sujeito d outros sentidos ao seu sofrimento.

    Nesse processo de medicalizao e supervalorizao da utili-zao de antidepressivos nos tratamentos em sade mental, algo importante vem se perdendo, aquilo que o psiquiatra e psicanalista Birman (2002) chama de positividade simblica do sintoma.

    importante lembrar que, at as dcadas de 1950 e 1960, a psiquiatria era eminentemente de inspirao psicanaltica. Tal era o vnculo paradigmtico e epistemolgico que o horizonte almejado por um psiquiatra, nesse perodo, era a psicanlise (Birman, 2001).

    Em primeiro lugar, a psicanlise6 no trabalha com o plano da conscincia, mas com o campo do inconsciente, o que significa que a psicanlise parte da existncia de um no saber, ou seja, um saber sobre o no sabido (saber inconsciente) que ser construdo dentro da relao transferencial7 entre analista e analisando. Portanto, o psicanalista se posiciona no lugar de no saber do inconsciente, de

    6 O nosso trabalho ser orientado pela corrente da psicanlise do campo de Freud/Lacan.

    7 Transferncia se inscreve [...] no interior de uma hermenutica que seria mediada, tanto para a fala do paciente quanto para a escuta interpretante do analista, pelas vicissitudes do inconsciente estruturado pelas leis do signifi-cante (Rozenthal, 2009, p.257). Em outros termos, um vnculo constitudo

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    semblante de verdade, o que se d de forma inversa na psiquiatria DSM8 (Costa-Rosa, 2011).

    Os psiquiatras DSM so aqueles que j partem previamente do saber dos manuais, nos quais resta pouco espao potencial de singularizao, tanto que na concluso sobre a queixa do paciente e na formao de um quadro clnico, j marcam sua posio de saber receitando psicofrmacos. Esses psiquiatras apoiam-se exclusiva-mente no DSM para a construo de um diagnstico e, previamen-te, usam (e abusam) da prescrio de psicofrmacos, s vezes sem nenhum critrio clnico.

    A psiquiatria DSM aquela que despreza tudo o que psqui-co, ou metanarrativo, e se detm apenas nos enunciados e nos sinais visveis. Alm do mais, muitos desses profissionais tm estreita ligao com laboratrios farmacuticos em suas pesquisas, tanto no patrocnio das mesmas, quanto na publicao de artigos, nos quais (in)convenientemente se ocultam os conflitos de interesse.

    Contudo, importante ressaltar um dado. Apesar de a psiquia-tria ser a especialidade da medicina mais indicada para manejar o uso de psicofrmacos, esses profissionais mdicos no so os que mais prescrevem psicofrmacos. Em primeiro lugar, figuram os clnicos gerais, seguidos das outras especialidades mdicas: gineco-logistas, geriatras, cardiologistas etc. (Pradal, 1979).

    De maneira geral, os psicofrmacos deram aporte hiptese de que os chamados distrbios mentais eram fruto de interaes neu-roqumicas. S que, conjuntamente com essa contribuio, houve uma vinculao entre a psiquiatria e a psicofarmacologia, de modo que a primeira inventava uma patologia e a outra j tinha o frmaco para o tratamento.

    na anlise, de natureza mpar, em que se coloca o analista na posio de Sujeito de Suposto Saber (conceito lacaniano), e o que faz desenrolar a anlise.

    8 Essa nova psiquiatria que merece ser nomeada psiquiatria DSM, pela ver-so da tecnocincia que lhe d suporte em termos materiais e epistemolgicos, e que s vezes se d ao luxo de se autodenominar antimanicomial [...] A revo-luo qumica permite que a psiquiatria se torne realmente social; incluindo, com a manuteno da excluso. (Costa-Rosa, 2011, p.236)

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    No obstante, temos que considerar os avanos proporcionados pelos psicofrmacos nos quadros de impasses crnicos e debilitan-tes. Eles possibilitaram que os sujeitos conseguissem dar outros encaminhamentos ao seu mal-estar. Contudo, no podemos perder de vista a questo tica: qual o tipo de sade est sendo produzida com determinadas prticas?

    No impossvel o dilogo da psicanlise com a psiquiatria. No entanto, uma premissa essencial deve ser respeitada e mantida no horizonte: o fomento a autonomia do sujeito, ou seja, em termos psicanalticos, a dimenso desejante. O psicofrmaco no pode ser manejado para neutralizar o sujeito, e sim para faz-lo se expressar; em outras palavras, o remdio deve operacionalizar o fluxo discur-sivo, no o seu tamponamento. Ora, no silenciamento do enfermo opera-se o esvaziamento de uma histria, vale dizer, a enfermidade perde sua inscrio no registro da linguagem. Com efeito, nessa verso no existe qualquer saber sobre a enfermidade forjado pelo doente (Birman, 2001, p.24).

    De acordo com a psicanlise, no se deve extirpar do discurso a sua dimenso desejante, e esse acesso ao universo de satisfaes que o sintoma permite ao sujeito. A retirada do sintoma, muitas vezes, torna o sujeito aptico, no sentido de sem pthos,9 tanto sem sinais da suposta patologia psiquitrica quanto sem paixo, sem acesso a sua via desejante. Nessa configurao de relaes, destitui--se o sujeito de todo o saber/poder sobre o mal-estar que o acomete.

    Nas ltimas dcadas, aps muita luta, o movimento pela refor-ma psiquitrica vem conseguindo o fim das internaes manico-miais, porm, parece que estamos nos deparando com uma nova modalidade de captura institucional e assujeitamento discursivo: a camisa de fora qumica (Silveira, 1981).

    9 Como diz Delouya (2010, p.16), patologia contm em sua raiz etimolgica, pthos, um feixe de significados que une, segundo os dicionrios, paixo, sofri-mento e doena. medida que as paixes representam os acordes mais altos das sries dos afetos, refletem, em sua forma aguada trazida pela rede associativa contida no grego antigo , aquilo que determina e constitui o cerne do afeto.

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    Nessa modalidade moderna de institucionalizao a cu aberto, no mais preciso, necessariamente, encerrar os chamados distr-bios mentais dentro de um manicmio, pois se a plula for mal em-pregada, ir encarcerar manifestaes essenciais da subjetividade.

    Nesse cenrio, corroboram as explicaes neuroqumicas, que afirmam que os chamados distrbios mentais so apenas resultado da desregulao dos neurotransmissores, contudo, preciso ressal-tar que isso no consenso no campo da psiquiatria.

    A medicalizao um processo que atinge no s as questes da chamada doena mental, mas, principalmente, qualquer conduta desviante da norma. Nesse movimento de normalizao existe um forte componente de homogeneizao. As drogas psicoativas ga-nham caracterstica performtica de drogas de estilo de vida, isto , os remdios passam a tratar condies que no seriam conside-radas patolgicas (um risco vida e sade), mas sim problemas que poderiam limitar/dificultar a vida das pessoas (Nucci, 2012, p.128).

    Analisando por outro ngulo a questo de normalizao dos infames, ou seja, desviantes das normas sociais, pode-se afirmar que a medicalizao se inscreve no dispositivo, pois para Foucault (1996) dispositivo :

    [...] um conjunto decididamente heterogneo que engloba dis-cursos, instituies, organizaes arquitetnicas, decises regula-mentares, leis, medidas administrativas, enunciados cientficos, proposies filosficas, morais, filantrpicas. Em suma, o dito e o no dito so os elementos do dispositivo. O dispositivo a rede que se pode estabelecer entre esses elementos. (Foucault, 2006, p.244)

    Dispositivo um sistema vivo de feixes discursivos, os quais se organizam com determinados fins e produzem sujeitos, objetos, verdades. Nasce a partir de demandas sociais e no necessariamente coletivas. Assim sendo, a medicalizao se inscreve no dispositivo, visto que conjuga prticas e saberes para criar a patologia como

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    um discurso homogeneizante. No Captulo 2 comentaremos mais sobre o dispositivo de medicalizao da depresso.

    No sentido foucaultiano, Preciado (2008) d materialidade composio do dispositivo de medicalizao em interseco com o da sexualidade. A autora faz uma articulao entre o modo de pro-duo capitalista na nossa sociedade ps-moderna e o campo dos signos do tecnobiopoder, utilizando como exemplos paradigmti-cos o comprimido psicoativo e a revista Playboy.

    Ela defende que vivemos hoje em uma sociedade farmacopor-nogrfica: "frmaco" devido influncia dos processos de "gover-no biomolecular" que "pilotam nossas vidas por dentro" (Pelbart, 2007) e "pornogrfico" no sentido de "semitico-tcnico", em razo de toda uma economia de circulao de imagens e tcnicas, regimes de hipervisibilidade do biopoder que modulam nossas sensaes e capturam nossos afetos:

    [...] estas transformaes recentes apontam para a articulao de um conjunto de novos dispositivos microprotticos de controle da subjetividade com novas plataformas tcnicas biomoleculares e miditicas. A nova economia-mundo no funciona sem o des-plugue simultneo e interconectado da produo de centenas de toneladas de esteroides sintticos, sem a difuso global de imagens pornogrficas, sem a elaborao de novas variedades psicotrpi-cas sintticas legais e ilegais, [...] sem o tratamento informtico de signos e de transmisso numrica de comunicao. [...] O xito da tecnocincia contempornea transformar nossa depresso em Pro-zac, nossa masculinidade em testosterona, nossa ereo em Viagra, nossa fertilidade/esterilidade em plula, nossa Aids em coquetel. Sem que seja possvel saber quem veio antes, se a depresso ou o Prozac, se o Viagra ou a ereo, se a testosterona ou a masculini-dade, se a plula ou a maternidade, os coquetis ou a Aids. Esta pro-duo em auto feedback a prpria do poder farmacopornogrfico. (Preciado, 2008, p.32-33, grifo nosso)10

    10 Texto original em espanhol, traduo livre do autor.

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    O trecho destacado nos coloca diante de um cenrio incmodo, visto que limita o conjunto de nossa subjetividade ao movimento retroalimentar de plugue/desplugue de substncias neuroqumi-cas. Esse, talvez, seria o extremo da naturalizao da concepo neuroqumica, j que no saberamos nem discernir a gnese desse processo, isto , a depresso considerada um transtorno mental porque existem antidepressivos que constatam sua veracidade, ou ela realmente constituiria uma estrutura clnica?

    Assim, encontramos-nos em frente questo da relao da psico-farmacologia com a psiquiatria. Ao mesmo tempo em que o psicofr-maco oferece um bem-estar, uma organizao subjetiva que per-mite com que ele circule no intercmbio social, na contrapartida, existe uma tentativa de reduzir toda a complexidade dos nossos comportamentos (patolgicos ou no) a um resultado de interaes neuroqumicas.

    Conforme esse entendimento estritamente neuroqumico do aparelho psquico, seria possvel utilizar psicoestimulantes no s para os supostos transtornos mentais, mas para melhorar o desem-penho das funes cognitivas (memria, raciocnio, concentrao) em pessoas saudveis: esses so os chamados nootrpicos.

    Nootrpico a utilizao dos psicotrpicos na tentativa de apri-moramento cognitivo. Essa utilizao de drogas psicoativas por pessoas saudveis acontece com fins competitivos de aumento na produtividade da memria, raciocnio, uma espcie de doping in-telectual (Ehrenberg, 2010).

    A prescrio de substncias com esse intuito vem crescendo, conforme a reportagem da revista Valor Econmico, de maio de 2012, denuncia. Nela, pessoas relatam que fazem uso de Ritalina, entre outros psicofrmacos, antes de provas e concursos, para sa-rem na frente da concorrncia (Viana; Tavares, 2012).

    O uso de psicofrmacos com objetivo de aumentar a eficincia resultado do investimento neurocientfico da psiquiatria na psi-cofarmacologia. Um exemplo disso a entrevista, para a revista Veja, do psiquiatra da Universidade de So Paulo (USP), Valentin

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    Gentil Filho, em abril de 2007. A pesquisa do psiquiatra versava sobre os benefcios que as pessoas ditas normais poderiam ter com a utilizao de psicofrmacos, podendo ficar mais que saudveis, tornando-se os supernormais (Buchalla, 2007). Inverteu-se at o princpio mdico de doena-cura, porque nem ao menos a doena mental necessria para o uso do medicamento psicoativo.

    Ao sujeito cerebral (Ehrenberg, 2009) falta a dimenso inten-siva, pois ele teria o conjunto de suas emoes, sentimentos e pen-samentos reduzidos a operaes cerebrais. Nesse sentido, preciso repensar qual conceito de sujeito e subjetividade esto em questo nessa nova configurao epistemolgico-paradigmtica de sujeito cerebral, que atravessa os tratamentos psicofarmacolgicos, para que assim no reincidamos em antigas prticas de assujeitamento.

    A utilizao indevida de psicofrmacos, sob a gide da tica da tutela, produz a marginalizao da subjetividade. Oferece ainda a alie-nao, o apagamento, a letargia com uma mo e, com a outra, a insero na sociedade do consumo com o psicofrmaco.

    Desse modo, o sujeito tem o seu sofrimento psquico dessubje-tivado, ou seja, o seu impasse encaixado dentro de uma descrio mdica. Prescreve-se um psicofrmaco e a sua subjetividade co-locada margem do tratamento, visto que todos os desequilbrios mentais esto previamente listados no DSM. Assim, no se permite o sujeito ser o protagonista do seu tratamento. Ele se torna alienado da construo de algum sentido sobre o seu impasse.

    Antes, ainda, podemos falar da depresso como um sintoma social dominante (Melman, 1992). O sintoma social dominante (SSD) no decorre da quantidade de sujeitos com o mesmo diag-nstico, ou da sua predominncia, ou domnio no social, ou por ser afetado no social; isso tudo so interferncias do social no sintoma, relaes do social no sintoma.

    Resumidamente, o diferencial do conceito de Melman de SSD que ele busca a estrutura da prpria resposta sintomtica do sujeito na resposta sintomtica da formao social na qual ele produzido. Pensando nisso, ser que possvel destacar o sintoma do contexto

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    no qual o sujeito est inserido? E por que a depresso seria um sin-toma social?

    No Captulo 1, realizaremos a discusso da depresso como sin-toma social e o dispositivo de medicalizao da depresso. Come-aremos descrevendo o quadro depressivo de acordo com o DSM e a psiquiatria, tecendo alguns comentrios. Em seguida, faremos uma reflexo epistemolgica do diagnstico, em que, concomi-tantemente, visamos desconstruir a noo corrente de depresso, propondo outra direo para se pens-la, primeiro, como uma ex-perincia subjetiva.

    Uma ressalva essencial: Desconstruo no consiste em se mo-vimentar de um conceito para outro, mas em reverter e deslocar uma ordem conceitual assim como uma ordem no conceitual com o qual articulada.(Derrida, 1988, p.21) . Portanto, desconstruo no visa reverter as polaridades, ela visa deslocar a ordem do siste-ma vigente, isto , retirar dele a hegemonia.

    Sendo assim, preciso ter prudncia na discusso para no po-larizar binariamente a questo, como sendo contra ou a favor do uso de antidepressivos, ou do diagnstico psiquitrico. No essa minha proposta, isso seria criticar o reducionismo de uma determi-nada abordagem sendo reducionista. A discusso que faremos aqui para alm desse binarismo.

    Afinal, no de hoje que a humanidade busca remdios para atenuar, tratar e curar os mais diferentes tipos de sofrimento. Acompanhamos em nossa ps-modernidade (Bauman, 1998) uma profunda mudana no modo como se realizam os processos tera-puticos, nos quais tem se tornado habitual o uso de psicofrmacos para o tratamento de diferentes tipos de sofrimentos psquicos. A inveno de novas tecnologias de ateno sade mental nos obriga a avaliar os resultados dessa nova produo.

    Os antidepressivos propriamente ditos so o assunto do Cap-tulo 2, em que teceremos anlises sobre os seus efeitos adversos, no sentido no s restrito ao orgnico, mas aos contextos sociais e

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    subjetivos e resgataremos as mltiplas dimenses do phrmakon.11 Concluda essa parte, faremos uma reflexo tica, no sentido de qual sade est sendo produzida com a prescrio banalizada dos antidepressivos. Eles vm sendo receitados indiscriminadamente para tratar no s das queixas como descritas no DSM, como tam-bm de um grande espectro de outras questes no mdicas.

    O avano psicofarmacolgico na ps-modernidade (Bau-man, 1998) acompanhado pela necessidade de entendimento holstico das questes. Para isso, necessrio termos um olhar transdisciplinar.

    Transdisciplinaridade um termo de difcil delimitao, visto que polissmico. No a mera somatria de saberes, nem sim-plesmente o cruzamento de diferentes disciplinas, mas uma apro-ximao dos campos com o objetivo de produo de um novo saber que supere as divises rgidas dos especialismos disciplinares.

    No contexto da sade mental, o entendimento transdisciplinar essencial, uma vez que esse campo se encontra, por vezes, em in-terseco com diversas reas da sade, como psicologia, psicanlise, medicina, terapia ocupacional, fisioterapia etc. Tendo em vista que o adoecimento psquico um processo complexo, no podemos recair em uma dualidade cartesiana, mente x corpo, nem na sobre-posio de um saber em detrimento de outro, nociva ao sujeito em sofrimento.

    A querela sobre a depresso e o uso de antidepressivos no pode recair nos maniquesmo (biolgico x psquico), no relativismo (di-luio, panaceia) e nem cumulativismo (biopsicosocial-cultural, gentico). Para abordamos a questo dos efeitos dos antidepres-sivos em uma perspectiva ampla, temos que evidenciar a trama das prticas em jogo, procurando desvelar o conflito de foras em disputa.

    Afinal, estaro os remdios psicoativos se tornando a nova camisa-de-fora qumica? E por que tod@s ns no tomaramos

    11 A palavra frmaco provm etimologicamente do grego phrmakon que signi-fica tanto veneno como remdio.

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    antidepressivos, para ficarmos mais que bem, como props o psiquiatra Valentin Gentil Filho?

    Para dar conta dessas questes realizadas previamente e outras referentes aos efeitos do uso prolongado de antidepressivos, nossa anlise ter trs ferramenta conceituais-tecnolgicas principais: o campo da psicanlise de Freud/Lacan; a psiquiatria DSM (Cos-ta-Rosa, 2011); e as cinco entrevistas com pessoas que fazem uso do antidepressivo h mais de trs anos cuja anlise ser objeto de trabalho no Captulo 3.

    Ao todo foram realizadas cinco entrevistas:12 Isabela, 19 anos; Carolina, 24 anos; Geraldo, 26 anos; Francisco, 22 anos; Josefina, 49 anos. Isabela tomava antidepressivo h trs anos, Francisco h quatro anos, Carolina, Geraldo e Josefina faziam uso de antidepres-sivos h sete anos.

    Entrevistamos um grupo bem particular, visto que tod@s es-tavam ou j tinham passado por alguma psicoterapia. Foram trs mulheres e dois homens, sendo quatro heterossexuais e uma ho-mossexual13 (Carolina). Todos realizavam ou j haviam completado o ensino superior. Somente Josefina e Isabela tomavam unicamente antidepressivos, os outros trs faziam uso concomitante de outros psicofrmacos. Dois deles (Carolina e Francisco) tentaram suicdio algumas vezes e, em ambos os casos, as tentativas foram por meio da ingesto de vrios comprimidos.

    Entrevistamos os nicos cinco sujeitos que se voluntariaram, no houve seleo. No entrevistamos mais sujeitos, pois, entre a quarta entrevista e a quinta se passaram quase quatro meses, no sendo possvel esperar por mais participantes. Nosso objetivo, desde o incio da anlise, era a realizao de poucas entrevistas, para que pudssemos desenhar um mapa das concepes subjetivas de sofrimento quanto utilizao do antidepressivo.

    12 Nomes fictcios. 13 Enfatizamos o gnero e a orientao sexual, pois esses marcadores sero enfa-

    tizados na anlise das entrevistas mais adiante.

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    No Captulo 3, utilizaremos as entrevistas como objeto para uma anlise mais aprofundada. Teremos o auxlio metodolgico da psicanlise do campo de Freud/Lacan. O que pretendemos escutar em meio a esta polifonia?

    Almejamos ouvir o grito do sofrimento, ainda que silencioso. Nesse sentido, acreditamos que a psicanlise do campo de Freud/Lacan um potente instrumento de escuta, servindo como um amplificador, permitindo-nos elencar categorias, levantar questes referentes ao seu sofrimento e selecionar elementos pertinentes ao nosso estudo. Assim formularemos categorias de anlise das constantes, elementos que apaream em dois ou mais entrevistas de estudo, e das variveis, dados singulares de cada entrevistado.

    Em que medida essas entrevistas tornaram possvel fazer uma articulao entre as experincias singulares e os outros usurios de antidepressivos?

    Logicamente, cada sujeito vivencia essa experincia de modo singular, contudo, podemos conjecturar a respeito de certas conso-nncias presentes tanto nos entrevistados como na vasta literatura sobre a temtica da depresso.

    Na Concluso, realizaremos um exerccio autocrtico, refletin-do sobre os limites e limitaes da nossa anlise. E, tambm, um movimento transdisciplinar, cruzando os resultados com o olhar da psicanlise, pensando sobre a construo de outra clnica, outros desdobramentos e alternativas ao uso exclusivo de antidepressivos no tratamento do estado depressivo.

    At aqui, apresentamos uma breve trajetria para entendermos se existiria algum sofrimento subsistente ao uso de antidepressi-vos; realizamos entrevistas, revisamos a bibliografia concernente ao tema da depresso, medicalizao e psicanlise. Contudo ne-cessrio nos perguntarmos: o quanto de sofrimento aceitvel? Ou, ainda, existe alguma teraputica capaz de acabar com todo o sofrimento?

    Para comear a responder essa questo e j entrar no assunto do prximo captulo, necessrio recorrer filosofia do alemo Friedrich Nietzsche: a vida vontade de potncia (Nietzsche,

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    2001, p.161), pois preciso demarcar a diferena do sobreviven-cialismo (Pelbart, 2007) uma vida sem intensidade e existncia esgotada, em contraposio vida criativa e intensiva.

    Desse modo, o esgotado aquele que, tendo esgotado seu ob-jeto, se esgota ele mesmo, de modo que essa dissoluo do sujeito corresponda abolio do mundo (Pelbart, 2013, p.39). Logo, no a mesma coisa evitar o esgotamento, como foi definido, e ter a presena de prazer na vida, a primeira ao no resulta na segunda. No entanto, ser que, ao invs disso, estamos remediando o desprazer?

    O antidepressivo ajudou com que muitos desses sujeitos bus-cassem outros encaminhamentos ao seu sofrimento, como uma psicoterapia, possibilitando estabilidade ortopdica, uma terceira perna (Lispector, 2009). Ele parece restaurar at o ponto anterior crise, mas possui um limite de atuao, como se no agisse sobre o esgotamento da vontade de potncia.

    O remdio no parece mudar a processualidade subjetiva e nem alterar o funcionamento da lgica afetiva dos sujeitos. O que muitas vezes observamos um deslocamento ou a suspenso do sintoma da forma que ele entendido pela psicanlise.

    Portanto, a questo do sofrimento psquico parece ir muito alm da deficincia de substncias neuroqumicas, uma viso quantita-tiva e empobrecedora de sade, visto que est ausente a dimenso de qualidade de vida, a vontade de potncia. No basta dizer: os antidepressivos funcionam! A que preo funcionam? Para quem? At onde? Quais so os efeitos e desdobramentos do fim alcanado?

  • 1 o diAgnstico de dePresso

    O enquadramento algo muito estranho porque o que est fora quase mais importante do que o que est dentro. Costumamos olhar um enqua-dramento pelo que ele contm em uma foto ou em um filme. Normalmente, pensamos no que est no interior. Mas o verdadeiro ato de enquadrar con-siste em excluir algo. Acho que o enquadramento se define muito mais pelo que no se mostra do que pelo que se mostra.

    (Wim Wenders)

    O incio do primeiro captulo se desdobrar por duas vertentes que buscaremos integrar ao final: um breve comentrio da relao entre o visvel/invisvel, seguida de uma descrio da noo da experincia da depresso por meio de uma reviso literria funda-mentada na psicanlise do campo de Freud/Lacan.

    A idia central do captulo defender que o estado depressivo uma experincia afetiva, trans-individual e no apenas a expresso mecnica do desbalanceamento neuroqumico; a banalizao desse diagnstico tem ressonncias com a formao social contempornea.

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    Sendo assim, no temos a pretenso de esgotar os assuntos sus-citados. Porm, buscaremos oferecer uma contribuio a este vasto campo de pesquisa e erigir as balizas nas quais trabalharemos mais adiante. Recortaremos trechos retirados das entrevistas para dar consistncia a nossas hipteses.

    Adiante, descreveremos a depresso conforme o DSM e a psiquiatria, tecendo alguns comentrios. Queremos deixar claro que nossa inteno no refutar os diagnsticos psiquitricos, ou mesmo invalid-los, mas propor uma reflexo do momento da construo de um quadro clnico: o que h para alm dos sinais visveis?

    Quando colocamos para alm do visvel, no desconsidera-mos os fenmenos orgnicos manifestos, porm no nos deteremos neles. Intentamos ressiginificar a noo do diagnstico e, para isso necessrio v-lo como:

    [...] um instrumento utilizado para que hipteses sejam levantadas e, se preciso, derrubadas, sendo visto como fazendo parte do processo psicoterpico e estando sempre imbricado com a investigao que se faz a respeito deste ou daquele paciente. (Mioto; Sagawa, 1999, p.27)

    O diagnstico psiquitrico pode ser colocado como uma etapa do tratamento, com fins de abrir um espao potencial de singu-larizao. Por essa razo, ele s mais um passo necessrio de ser superado antes de se tornar um obstculo que impea o profis-sional da sade de enxergar para alm do enquadre psiquitrico, perdendo-se as nuances intensivas. O diagnstico no se limita a uma classificao baseada em uma listagem de sintomas, refere-se ao mbito da processualidade.

    A partir da psicanlise, sabemos que o exerccio do olhar algo que no se atm somente lgica consciente, pois a maneira como vemos os objetos j sobredeterminada pelo inconsciente. Portan-to, a construo de um diagnstico no isenta da subjetividade; essa elaborao pode tanto ser uma moldura esttica, vazia, uma

  • FELIZ PARA SEMPRE? 45

    mera descrio de comportamentos ditos patolgicos, quanto um mapa dinmico, que acompanhe os movimentos subjetivos.

    importante ressaltar que, s vezes, no existe nem a concreti-zao de um quadro clnico. Segundo a pesquisa de Ferrazza (2009), a maior parte das demandas referentes ao sofrimento psquico, as quais chegam aos servios de sade mental de determinada cidade do interior paulista, no tem sequer a formulao de um diagnsti-co. E, alm disso, a grande maioria recebe logo de entrada a pres-crio de uma quantidade enorme de medicamentos psicoativos, nunca chega a receber alta e simplesmente acaba abandonando o tratamento no servio de sade.

    A proposta aqui apresentada discutir justamente a realizao do diagnstico psiquitrico como um engessamento subjetivo, um aprisionamento em uma moldura que limita o sujeito quele(s) determinado(s) transtorno(s) mental(is), em vez de ser um recurso para a ampliao do caso. Contudo, o que observar?

    A formulao do diagnstico, antes de tudo, passa pela dimen-so da recepo do olhar. Propomos que utilizemos as classificaes psiquitricas para alm do usual da medicina, de um modo psicos-social, ou seja, uma psiquiatria menos mdica, ou uma psiquia-tria psicossocial, menos orientada pelas outras especialidades da medicina (Costa-Rosa, 2011).

    Essa psiquiatria psicossocial se posiciona eticamente em con-traposio psiquiatria-DSM, visto que a primeira se pautaria na:

    [...] tica do sujeito como protagonista da produo das respos-tas de sentido capazes de fazerem frente aos sintomas, de modo a produzirem seu reposicionamento entre sentido, e em relao aos ideais socioculturais na vertente do desejo e do carecimento. (Costa-Rosa, 2011, p.289)

    O posicionamento da tica do sujeito que adotamos se refere ao reconhecimento do sujeito como um ser desejante, com capacidade de ressignificar seu sofrimento psquico. Posio completamen-te avessa performance medicalizadora e asilar da psiquiatria-

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    -DSM, que (ab)usa previamente da prescrio de psicofrmacos, o que dificulta a implicao do sujeito na produo de sentidos para o seu sofrimento psquico. Tangenciaremos novamente esse assun-to mais para frente do texto.

    Voltando temtica da depresso, o principal problema da vulgarizao desse diagnstico o seu empobrecimento clnico. Atualmente, reduziu-se qualquer tristeza prolongada, ou mesmo as singularidades do sujeito, a um componente orgnico, um des-balanceamento neuroqumico, caracterstico do estado depressivo.

    De uma maneira geral, parece-nos que existe uma dificuldade da psiquiatria-DSM na leitura da produo subjetiva de signos de sade, eliminando-se toda afirmao da diferena, visto que estas so comumente articuladas s noes de desigualdade, dficit e desqualificao. Simplificando a problemtica, o maior desafio do momento diagnstico o de olhar a diferena, no confundir o que comum a uma maioria como sendo o certo, e o singular com deficincia.

    Nesse sentido, a psicanlise contribuir teoricamente com outra viso de construo diagnstica. Na psicanlise, o diagnstico no algo universalizante, pelo contrrio, exclusivo daquela relao estabelecida entre analista e o analisando, pois, necessariamente, implica o psicanalista nesse olhar. O analista sabe que o diagnstico s existe dentro da relao transferencial, impossvel de ser genera-lizada para outros casos.

    Conforme j havamos dito, o processo diagnstico envolve o analista, estabelecendo a trajetria da cura, enquanto a assertivi-dade desse diagnstico s ser realizada ao longo do tratamento. Neste oximoro consiste a especificidade da prtica psicanaltica de diagnosticar (Dor, 1991).

    Aps essas consideraes, podemos tomar o diagnstico de ma-neira diferente, como uma inveno, uma produo transitria, no como verdade absoluta. Algo circunscrito quela relao e no inscrito previamente no sujeito padecente, isto , aspecto particular daquele contexto, naquele modo de existir em interao com o lao social.

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    importante fazer essas consideraes, visto que apesar de @s entrevistad@s1 terem o diagnstico de depresso, eles esto longe de compartilhar uma unidade subjetiva em relao a esse diagnsti-co. Pelo contrrio, percebemos que, ora o diagnstico de depresso foi usado para determinada lista de sintoma, ora uma srie de sin-tomas so adotados para a mesma categoria, ou seja, no existe um consenso entre os psiquiatras, uma objetividade na construo do quadro clnico da depresso, como almeja o DSM-IV.

    Ento, o que os une na mesma categoria? O que ressoa em todos eles? Antes, a respeito d@s entrevistad@s, talvez fosse mais exato falarmos em subjetividades acometidas por uma gama de sensa-es distintas que foram alinhados aleatoriamente na categoria depressiva.

    Tomando a questo por outro ngulo, o psicanalista Daniel De-louya traz a problemtica de se inscrever o estado depressivo no campo psicopatolgico. No seu livro sobre o assunto, ele nem uti-liza o termo depresso, preferindo empregar a ideia de estado depressivo. Diz ele:

    A depresso, assim como a dor e a angstia, denota um estado afe-tivo, porm privado ou que, talvez, prive o sujeito das qualidades e figuras singulares que animam e dotam o afeto de sua especifici-dade. Trata-se, ento, de uma patologia. Sim, se entendermos essa palavra no como termo mdico, mas como atributo da impossi-bilidade, por mais passageira que seja, de exercer ou possuir algo que fundamental para o viver humano. [...] O afeto oriundo do ambiente humano de origem, e sempre dirigido a um outro, ou gerado em relao a ele, abriga em seu bojo uma peculiar disposi-

    1 O uso do smbolo arroba (@) durante toda a execuo deste trabalho segue uma perspectiva de escrita feminista, conforme proposto no trabalho da Profa. Dra. Miriam Pillar Grossi (UFSC). Tal perspectiva visa buscar, tambm na escrita, a igualdade entre os gneros, de modo que, quando nos referirmos a pessoas tanto do sexo feminino quanto do masculino, estaria a contemplado tanto um quanto o outro, em oposio linguagem padro na qual o masculino serve para englobar homens e mulheres (Lacombe apud Teixeira-Filho, 2013, p.13).

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    o para o ser semelhante uma forma emptica de aproxim-lo que tem no sofrimento um pressuposto e ingrediente fundamen-tal. Portanto, enquanto sofrimentos da alma, a depresso, a dor e angstia talvez sejam, por essa razo, no somente o cessar ou a privao dos afetos, mas seus prottipos de origens, ou seja, suas formas de base. (Delouya, 2010, p.15-16)

    Nesse excerto podemos extrair algumas particularidades do estado afetivo da depresso, sendo esta uma experincia de sentido que estreita o campo de experimentaes, restringindo o universo de satisfaes e, logo, de vivncias do sujeito. Por conseguinte, talvez a depresso, a dor e a angstia sejam manifestaes do es-gotamento (Pelbart, 2013), como substratos comuns no cerne dos impasses psquicos.

    Neste sentido, o esgotamento no o cansao, a no ser pela fadiga de si mesmo que comentaremos adiante; seria o esvazia-mento da dimenso criativa, o empobrecimento da capacidade de inventar novas virtualidades, o enfraquecimento produtivo dos fluxos desejantes.

    Independente de a depresso constituir outra categoria psico-patolgica, inegvel que, subjacente a esse impasse, exista um sofrimento intenso. O que nos resta saber quais so as dimenses desse impasse na vida dos sujeitos.

    No campo psicanaltico de Freud/Lacan, a depresso nunca figurou como uma categoria diagnstica:

    A depresso no uma estrutura clnica. Os psicanalistas, diferena da tendncia atual a usar o diagnstico de depresso como rtulo de um nmero cada vez maior e indeterminado de situaes psquicas, sabem que em cada sujeito a depresso tem diferentes significaes. (Jimenez, 1997, p.199)

    A noo de psicopatologia na psicanlise estrutural. Por conta da indeterminao e da inexistncia de um consenso do que consti-tuiria a experincia subjetiva da depresso, os psicanalistas costu-

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    mam fazer aluses melancolia e, partindo dela, explicar a depres-so. No adotaremos tal estratgia por completo. Antes, iremos correlacionar os trs (luto, melancolia e depresso) com o objetivo de esclarecer o que seria a depresso transestruturalmente (Jime-nez, 1997).

    O luto, como Freud (1992a) pontuou, uma reao diante da perda de uma pessoa amada, de um ideal, de uma ptria etc. Por-tanto, sendo algo comum existncia, no deve nunca ser conside-rado patolgico, nem muito menos ser medicalizado, isto , tratado como um problema de ordem mdica. Pelo contrrio, qualquer interveno nesse processo, seja para aceler-lo, apag-lo, ou at cur-lo, poder ter efeito iatrognico, ou seja, acarretar mais prejuzos ou mesmo criar um sofrimento, visto que o luto um processo vital para o restabelecimento e reorganizao do sujeito diante de sua ferida narcsica denunciada e (re)evidenciada por uma eventual situao de perda (Tavares, 2009, p.63).

    O luto um processo doloroso de desligamento afetivo do ob-jeto amado, um processo subjetivo gradual e no existe uma pre-viso de durao normal para a sua superao. Ento, podemos pensar a depresso como um luto prolongado? Porque, no estado depressivo, o sujeito sente como se tivesse perdido algo, entretanto no sabe o que e nem o que mais foi perdido conjuntamente.

    Freud usa a palavra depresso para falar de um luto patolgico (Freud, 1992b, p.242). De uma certa maneira, a depresso o con-trrio de um luto, pois o luto um trabalho espontneo do simb-lico. Na depresso, trata-se de um luto congelado, eternizado, pela falta de trabalho de elaborao. O sujeito no quer se referenciar na perda no quer se reconhecer como sujeito faltoso , o que o remeteria castrao. [...] O Bem Dizer como lei tica do trabalho analtico pode ajudar a transformar a depresso em luto. (Jimenez, 1997, p.201)

    A dimenso da castrao na psicanlise se refere ao reconheci-mento da falta no Outro e as produes subjetivas a partir dessa

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    condio existencial. No trecho acima, podemos evidenciar uma possvel sada para a depresso no posicionamento do analista na tica do bem-dizer o desejo, ao invs de benz-lo, que ser mais bem esmiuado mais adiante.

    Assim, quando a falta de luto o no querer se referenciar na perda o que produz a depresso (Jimenez, 1997, p.201), se no hou-ver reconhecimento do sujeito que aquele objeto perdido no existe mais na realidade, a tristeza se eterniza e se torna depresso (Jime-nez, 1997, p.201).

    Se tomarmos como paralelo a melancolia:

    [...] o deprimido tambm dirige frequentemente a si prprio recri-minaes que melhor se aplicariam pessoa a quem o sujeito ama, amou ou devia amar. A diferena seria que na melancolia essa pes-soa teria funcionado como suplncia, como bengala imaginria, e na depresso como depositrio do Ideal do Eu. Na depresso e na melancolia, o suicdio possvel. (Jimenez, 1997, p.201)

    No discutiremos sobre qual estrutura clnica psicanaltica (neurose, psicose, perverso) a depresso pertence, por mais que essa problemtica atravesse esse campo. Entretanto, possivelmen-te, o discurso dos depressivos encontre mais ressonncia no inter-cmbio social por conta da nossa formao social contempornea, o qual ser mais bem esmiuado adiante.

    O que produz o diagnstico psiquitrico da depresso?

    Desfazer o normal, h de ser uma norma.

    (Manoel de Barros)

    No ano de 2012, a OMS divulgou outro levantamento digno de nota: o diagnstico de depresso figura como uma das princi-pais causas de afastamento do trabalho dentre todas as patologias listadas no planeta. Segundo a estimativa da agncia, a depresso

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    afetaria 350 milhes de pessoas, de todas as idades, no mundo todo (OMS, 2012).

    Em trs anos, o clculo quase triplicou, pois se atentarmos que, em 2009, a OMS avaliava que seriam 120 milhes depressivos. Por-tanto, ao invs de pensarmos sobre esse avano das depresses, imprescindvel demarcar a qual tipo de depresso a OMS est se referindo.

    Neste subitem, tomaremos a questo do ttulo por duas verten-tes: primeiro, descreveremos a depresso a partir da psiquiatria, em seguida, comentaremos quais so as implicaes dessa produo.

    A OMS compreende a depresso da maneira como descri-ta pelo Cdigo Internacional de Doenas (CID-10), o qual recebe muita influncia do DSM, manual auxiliar de diagnstico.

    Conforme a ltima reviso da quarta edio, o DSMIV TR, os transtornos depressivos fazem parte da seo de transtornos de humor, que so: Transtorno Depressivo Maior, Transtorno Dis-tmico e Transtorno Depressivo Sem Outra Especificao. A De-presso Maior caracterizada como uma sndrome que envolve inmeros aspectos clnicos, etiopatognicos e de tratamento. Seus sintomas, de acordo com o DSM-IV-TR so:

    1) humor deprimido na maior parte do dia, quase todos os dias, indicado por relato subjetivo (p.ex., sente-se triste ou vazio) ou observao feita por terceiros (p.ex., chora muito). Em crianas e adolescente pode ser humor irritvel; 2) acentuada diminuio do interesse ou prazer em todas ou quase todas as atividades na maior parte de ou quase todos os dias (indicado por relato subjetivo ou observao feita por terceiros); 3) perda ou ganho significativo de peso sem estar em dieta (p.ex., mais de 5% do peso corporal em 1 ms), ou diminuio ou aumento do apetite quase todos os dias. Em crianas, considerar incapacidade de apresentar os ganhos de peso esperados; 4) insnia ou hipersonia quase todos os dias; 5) agitao ou retardo psicomotor quase todos os dias (observveis por outros, no meramente sensaes subjetivas de inquietao ou de estar mais lento); 6) fadiga ou perda de energia quase todos os dias. (APA, 2002, p.354)

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    Como podemos observar o DSMIV TR faz descries categ-ricas baseadas em queixas, as quais so entendidas como sintomas que remetem a uma das categorias de depresses citadas acima. Como sabemos os critrios para diagnosticar um episdio depres-sivo maior, tal como foi definido pelo DSM-IV, exigem a presen-a de cinco (ou mais) dos nove sintomas j conhecidos (Caponi, 2010, p.2).

    Com uma ressalva, o DSM no deve ser popularizado como um catlogo de transtornos mentais, ele um manual para profissionais da sade mental. O DSM foi criado pela APA para fins estatsticos. Como j foi dito, passou por diversas reformulaes, porm o que nos causa alarme : por quais circunstncias, a cada novo DSM, aumentou-se consideravelmente a constelao dos transtornos mentais (Angell, 2011).

    Tomando o DSMIII (1980) como um divisor de guas, ve-remos que ele afastou completamente as referncias tericas da fenomenologia e da psicanlise das suas categorias. Dessa forma, pretendia-se organizar um guia aterico, o que no ocorreu, visto que o DSM acabou tornando-se impregnado de empirismo e com-portamentalismo nas suas descries (Fendrik, 2011).

    Obsevando a histria da psiquiatria, a partir dos seus paradig-mas, Guillermo Izaguirre (2011) diferencia trs momentos, colo-cando a revoluo psicofarmacolgica como a imerso da crise do terceiro paradigma da psiquiatria:

    Na psiquiatria, cada paradigma estabeleceu suas prprias clas-sificaes. Ao se tratar da idia de doena nica [primeiro para-digma], um sistema classificatrio no possui demasiado sentido apesar de existirem alguns esboos quando se incluem diversas formas de monomanias. No domnio do segundo paradigma que determinou a entrada de pleno direito da psiquiatria na medicina, desenvolveram-se muitas classificaes, sendo as mais importantes as diversas edies da classificao de Kraepelin [...]. Como se tra-tava de doenas, podiam basear-se na etiologia, no desvio da norma fisiolgica ou cultural ou na apresentao de sintomas. No caso do

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    terceiro paradigma, o fundamental foi considerar a psicopatologia estrutural que permitiu estabelecer os trs grandes grupos: neuro-ses, perverses e psicoses. (Izaguirre, 2011, p.17)

    Nesse sentido, esse terceiro paradigma estaria em crise, pois se abandonariam explicaes estruturais e etiolgicas dos supostos transtornos mentais. As categorizaes psicopatolgicas dos pri-meiros manuais, DSM-I e DSM-II, eram consideradas imprecisas e pouco cientficas e objetivas, pois o manual devia se ater aos com-portamentos observveis (Fendrik, 2011).

    Assim, investiu-se em uma clnica baseada em comportamen-tos, com uma caracterizao descritiva e, supostamente, aterica do corpo. Contudo, o DSM-IV, como j foi dito, est implicitamente baseado em uma teoria, a corrente filosfica do empirismo. A pr-pria pretenso de construo de um manual diagnstico pressupe um embasamento terico (Izaguirre, 2011).

    Se por um lado existe a tentativa de apagar as influncias tericas, por outro ngulo, observamos o avano da influncia da indstria farmacutica na construo do DSM. Reportagem do jornal Folha de So Paulo, de maro de 2012, aponta para o aumento da influ-ncia da indstria farmacutica no DSMV, lanado no primeiro semestre de 2013. Sendo que, dentro da fora-tarefa responsvel pela quinta edio do livro, o nmero de pesquisadores que decla-raram ter conflito de interesses subiu de 57% para 69%, em relao quarta edio (Garcia, 2012).

    Logo, podemos observar que:

    [...] primeiro, o processo de contnua expanso dos diagnsticos, que vem trazendo para o campo da psicopatologia traos, emo-es e estados subjetivos anteriormente experimentados e tratados como inerentes existncia comum. O segundo o progressivo rebaixamento do limiar de diferenciao entre a normalidade e a patologia, fazendo com um nmero cada vez maior de indivduos se torne elegvel para o diagnstico de algum transtorno conhecido.

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    O terceiro, e talvez mais importante, o borramento paulatino da fronteira entre tratamento e aperfeioamento, que vem consolidando a ideia de uma psiquiatria voltada no apenas para o tratamento de transtornos, mas tambm para o alvio do sofrimento inerente vida cotidiana e aos limites naturais da vida, mas tambm para a produo, por meio da regulao biotecnolgica, de estados de bem-estar e felicidade. (Bezerra Jr., 2010, p.5)

    As referidas mudanas apontam para um determinado modo de entendimento do conceito de sade como a completa ausncia de conflitos, no a capacidade de vivenci-los e super-los. Essas transformaes no campo da sade mental so, em parte, efeitos da influncia da atuao psiquitrica no cuidado mdico e na so-ciedade, as quais podem ser resumidas em trs caractersticas pro-fundamente imbricadas: primeiro, uma patologizao do social; segundo, o rasuramento da linha entre normal/patolgico; terceiro, a medicalizao da existncia com objetivo de aprimoramento da performance individual.

    Parece que, mais uma vez, a arte coincide com a vida, j que este fenmeno contemporneo da expanso dos diagnsticos muito verossmil com o enredo do livro O alienista, de Machado de Assis. Na obra, do fim do sculo XIX, o alienista (psiquiatra), Dr. Simo Bacamarte, paulatinamente interna a todos os moradores da cidade de Itagua na Casa de Orates,2 por conta das mais diferentes idiossincrasias. Em determinado ponto a maior parte da cidade est encarcerada.

    Diante de todas essas transformaes, essencial resgatar a pro-duo de sentido do sujeito sobre seu sofrimento, no s no que poderia encaix-lo no DSM. A psiquiatria DSM (Costa-Rosa, 2011) tem feito a aposta de que ser possvel um dia, assim como nas outras especialidades da medicina, realizar diagnsticos toman-do parmetros estritamente objetivos.

    2 Casa de Orates: manicmio, sanatrio etc.

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    Dentro do campo da psiquiatria, h muitas divergncias refe-rentes s interpretaes das tomografias, ressonncias magnticas etc. que supostamente comprovariam a existncia dos transtornos mentais. Ainda, devemos indagar: qual a ordem pressuposta em relao qual o transtorno mental representaria uma ruptura?

    Se por um lado o investimento na objetividade visa a conceder psiquiatria um lugar de maior legitimidade cientfica perante outras reas mdicas, por outro, essa aplicao tem custado caro aos pacientes psiquitricos. Estes, longe de serem desprovidos de uma subjetividade, esto sendo sistematicamente assujeitados por meio da prescrio apriorstica de antidepressivos, j que cada vez menos aquilo que esses sujeitos tm a dizer sobre o seu sofrimento psqui-co, assim como o seu protagonismo tem sido levado em conta.

    Em contrapartida, como se posicionam os farmacodependentes que demandam um diagnstico, um medicamento psicoativo para no sentir tristeza, nem dor, nem medo e, consequentemente, no sentir mais nada? Esperam pacientemente (ou passivamente) uma repentina e milagrosa cura pela plula, sem precisar modificar sua identidade? Ser que desse modo algum dia sero agentes, apro-priando-se do seu tratamento?

    A psicanalista Rolnik (1995) apresenta-nos o seguinte quadro:

    O viciado em identidade tem horror ao turbilho das linhas de tempo em sua pele. A vertigem dos efeitos do fora o ameaam a tal ponto que para sobreviver a seu medo ele tenta anestesiar-se: deixa vibrar em sua pele, de todas as intensidades do fora, apenas aquelas que no ponham em risco sua suposta identidade. (Rolnik, 1995, p.308)

    isso que muitas bioidentidades tm buscado: uma vida sem turbulncias, sem crises. Entretanto, crise, etimologicamente, tem a mesma raiz de crescimento. Sendo assim, os biodiagnsticos (Ca-liman, 2012) visam paralisar os fluxos que reclamam por mudanas na estilstica da existncia (Birman, 1996). Buscando restaurar o seu modo de vida anterior e frear o turbilho das linhas de tempo,

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    supondo que isso possvel. No entanto, ignoram que a forma de vida anterior ao rompimento da crise foi o que levou o sujeito a chegar a esse impasse.

    Para encerrarmos o assunto referente aos diagnsticos, impor-tante resgatar que o diagnstico deveria funcionar como moldura de uma pintura, algo que pode ser provisrio, que deve ressaltar a obra de arte e no apag-la. Neste sentido, o enquadre um recorte que ressalta diversos signos, que no possuem um sentido nico, como uma obra de arte que pode receber diversas interpretaes. Logo, o diagnstico deve ser parte de uma estratgia de interven-o. Assim, como utilizar dessa estratgia?

    Diagnosticar reconstruir uma forma de vida, definida pelo modo como esta lida com a perda da experincia e com a expe-rincia da perda. Diagnosticar dizer como uma forma de vida se mostra mais determinada ou mais indeterminada, como cria sua singularidade entre falta e excesso e como se relaciona com outras formas de vida por meio da troca e da produo. Linguagem, desejo e trabalho so formas de relao, da que nosso conceito seja adequado no para um relativismo, mas para um relacionalismo. (Dunker, 2011, p.124)

    Neste sentido, o diagnstico deve atentar tanto para o sofri-mento quanto para os signos saudveis de funcionamento daquele modo de existncia. um instrumento de ressignificao, de como determinada forma de vida se compe e decompe no intercm-bio social.

    O melhor diagnstico so os sonhos, pois so um material sin-gularizado e temporrio de nossa enunciao subjetiva (Herrmann, 1991). O sonho um campo de mltiplas interpretaes possveis, cujo sentido pode ser construdo na relao transferencial entre o analisando e o analista. O que diferente da atribuio de um bio-diagnstico (Caliman, 2012), que nunca mais revisado.

    No foi por acaso que Freud escreveu inicialmente sobre os so-nhos nas obras basilares da psicanlise. Os sonhos so uma impor-

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    tante porta de entrada para o entendimento do campo psicanaltico. O sonho uma criao subjetiva com cunho esttico, uma leitura do sujeito sobre o seu prprio desejo; uma tentativa de realizao do desejo inconsciente e, principalmente, o mesmo processo que o sujeito produz sentidos para sua realidade o de enunciao do sonho.

    O que realmente nos interessa na vida onrica o protagonismo do sujeito na sua produo e isso que est sendo descartado nos tratamentos psiquitricos, com a receita de psicotrpicos a priori: a subjetividade. Nisso reside o cerne do problema, tratar aquilo que mltiplo e singular tentando encaix-lo (ou seria encaixot-lo) em categorias universalizantes.

    O que aparenta ser meramente uma questo tcnica de como nomear caractersticas e como armazenar detalhes, na verdade, trata-se do resultado de mltiplas interaes e da naturalizao de muitos discursos. Defendemos que uma pista para a produo de diagnsticos a de que os sujeitos saibam das suas dimenses his-tricas e organizacionais e tambm explicitamente retenham traos da sua construo. A nica classificao boa a classificao viva (Bowker; Star, 1999).

    O dispositivo de medicalizao da depresso

    Estou sentindo uma clareza to grande que me anula como pessoa atual e comum: uma lucidez vazia, como explicar?

    (Clarice Lispector Lucidez Perigosa)

    O conceito do dispositivo foucaltiano uma trama que engen-dra uma rede de discursos, articulando elementos dspares para uma determinada finalidade. Neste sentido, defendemos que a medicalizao da depresso se inscreve em dispositivo, acabando por se constituir a nica possibilidade de tratamento da experincia depressiva; visto que a prtica medicalizante conjuga uma teia de dis-cursos das neurocincias, da medicina psiquitrica, da neuropsicolo-

  • 58 KWAME YONATAN POLI DOS SANTOS

    gia, da gentica, da biologia, da farmacologia, da mdia etc. para justificar o uso de antidepressivos como o melhor tratamento para a depresso, a despeito de outros atravessamentos que compe o campo.

    No