Feitico Decente - Carlos Sandroni

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Feitiço decente

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  • DADOS DE COPYRIGHT

    Sobre a obra:

    A presente obra disponibilizada pela equipe Le Livros e seus diversos parceiros, com o objetivode oferecer contedo para uso parcial em pesquisas e estudos acadmicos, bem como o simplesteste da qualidade da obra, com o fim exclusivo de compra futura.

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    Sobre ns:

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    "Quando o mundo estiver unido na busca do conhecimento, e no mais lutando por dinheiro epoder, ento nossa sociedade poder enfim evoluir a um novo nvel."

  • Carlos Sandroni

    Feitio DecenteTransformaes do samba

    no Rio de Janeiro (1917-1933)

  • SUMRIO

    Nota do autorPrefcio, por Walnice Nogueira GalvoAgradecimentosAbreviaturas empregadas

    INTRODUO

    PREMISSAS MUSICAISA sncope brasileiraO paradigma do tresilloO paradigma do Estcio

    PARTE I DO LUNDU AO SAMBA1. Doces lundus, pra nhonh sonhar...2. O maxixe e suas fontes3. Da Bahia ao Rio4. Da sala de jantar sala de visitas5. Pelo telefone

    PARTE II DE UM SAMBA AO OUTRO1. Desde quando o samba samba?2. O passarinho e a mercadoria3. De malandro a compositor4. O feitio decente5. Pelo gramofone

    CONCLUSO

    ANEXO VDEO INFELIZNotasReferncias bibliogrficas

  • NOTA DO AUTOR

    Quando da primeira edio de Feitio decente, pensou-se em incluir no livro um CD comoanexo. Isso permitiria aos leitores apreciar diretamente alguns dos repertrios musicais tratadosaqui e tambm, para os mais especializados, verificar a validade de transcries propostas eeventualmente corrigi-las. A ideia original acabou no acontecendo. De l pra c, no entanto, oInstituto Moreira Salles passou a disponibilizar em seu site a audio de parte significativa damsica popular gravada no Brasil na primeira metade do sculo XX. Assim, vim a descobrir queno banco de dados on-line do IMS estavam disponveis praticamente todas as gravaes a partirdas quais eu havia feito transcries. Graas ao apoio de Bia Paes Leme, coordenadora da reade msica do IMS, a quem agradeo, foi possvel criar um hot-site reunindo numa mesma pginaas gravaes referidas no livro. A partir desta edio, portanto, os leitores passam a contar comum importante recurso adicional para escutar os sambas gravados entre 1917 e 1933 (alm dealguns outros), nos quais se baseiam as anlises propostas. Recomendo vivamente a escuta aolongo da leitura: o assunto e as anlises ficaro mais interessantes assim.

    Embora nesses ltimos dez anos a bibliografia sobre samba e outros temas discutidos nestaobra tenha se enriquecido consideravelmente, optei por no mexer no texto original. Apenas foiacrescentado, em apndice, um artigo que publiquei na internet em 2008, tratando de polmicassobre a questo racial nos sambas de Noel Rosa, em estreita relao com temas abordados nolivro, e com seu prprio ttulo.

    Carlos Sandroni

  • PREFCIO

    Este livro, cujo ttulo homenageia Noel Rosa, obra de um autor consagrado musicologia, reado saber em que defendeu a tese de doutoramento com cuja verso modificada ora nos brinda. Etem o mrito de resgatar os estudos de samba de um patamar meramente descritivo paracomprov-los enquanto notao musical.

    Vale lembrar que o samba da primeira fase, aquele que recebeu as gravaes pioneiras,inclusive a de Pelo telefone em 1917, se distingue do samba da segunda fase, o do Estcio, doincio dos anos 30, destinado ao desfile de escola. A saga da primeira fase conta compersonagens (digamos assim) heroicas, como a fabulosa Tia Ciata, que mantinha uma roda desamba em sua casa, alm de sair no carnaval no rancho Rosa Branca e no bloco de sujos OMacaco Outro. To benquista era ela que, quando impedida de desfilar, o cortejo alterava seupercurso s para passar diante de suas janelas.

    As janelas de Tia Ciata, abrindo-se para a rua Visconde de Itana, na Cidade Nova, bairrointegrante do recorte urbano que Heitor dos Prazeres chamou de a pequena frica do Rio deJaneiro, davam para a Praa Onze, legendrio lugar de memria do carnaval carioca. Nem porter desaparecido, arrasada que foi pela abertura da Avenida Presidente Vargas nos anos 40, apraa deixa de ser at hoje cultuada pelos fiis. Frequentavam essa casa ningum menos que ogrande Pixinguinha, Donga, que se apressou a registrar como de sua autoria exclusiva um sambaque resultara de uma criao coletiva sendo publicamente contestado por Tia Ciata e outros, Sinh, Joo da Baiana e todos os sambistas de destaque das dcadas iniciais do sculo XX.

    A darmos crdito a Macunama, a casa atraiu igualmente os escritores modernistas, quetampouco desdenharam de l ir parar, entre eles o prprio Mrio de Andrade, Manuel Bandeira,Jaime Ovalle, Ascenso Ferreira, Raul Bopp e at mesmo um estrangeiro, o suo Blaise Cendrars.

    A propsito dos dois estilos, a encantadora anedota contada por Srgio Cabral, o grandeespecialista em escolas de samba, ao entabular esse debate, ilustra bem a questo. Que no fundopode ser entendida como uma alegoria do conflito de geraes, aqui respectivamente encarnadasem duas figuras simblicas, como Donga, autor registrado de Pelo telefone, portanto jvenervel poca, versus Ismael Silva, legtimo representante do samba do Estcio. Postos adialogar, Donga acusa Ismael Silva de no compor samba, mas marcha. Ao que este retruca queDonga no compe samba, mas maxixe.

    Dessas rplicas to reveladoras pode-se extrair a ilao emprica de que, se o samba do estiloantigo ou pr-30 mais danante porque adequado aos giros de um par enlaado num salo, o doestilo novo ou ps-30 mais marchado porque compatvel com a procisso linear ao longo deuma rua definida pelas paralelas das caladas.

    Embora fossem semelhantes, e tudo afinal fosse samba, as sncopas tpicas j no eramexatamente as mesmas.

    Sim, o que nossos ouvidos acusam, quando ouvimos os dois estilos. Mas como que secomprova essa diferena, ao soar dos instrumentos ou lendo uma partitura? Somadas as duraesdas notas e de seus intervalos, o que que caracteriza a ambos?

    Esta uma das questes para as quais Carlos Sandroni oferece resposta: que obedecem aparadigmas diversos.

  • O primeiro aquele que chama de paradigma do tresillo, em homenagem musicologiacubana que assim o batizou, em sua mnada de trs valores, ou trs colcheias das quais as duasprimeiras pontuadas, introduzindo a sncopa, em compasso de 2/4. Um tal paradigma preside msica popular latino-americana do sculo XIX e da virada de sculo, at o limiar dos anos 30.Incluem-se nesse arco de tempo nosso samba do perodo, em suas mais variadas formas, bemcomo o lundu, o maxixe, a habanera, e as muitas modalidades que o rtulo tango recobriu basta pensar em Ernesto Nazareth.

    O segundo, por ele mesmo batizado como paradigma do Estcio, um pouco maiscomplexo, em sua combinao de semicolcheias e colcheias, pontuadas ou no. Em todo caso,ambos os paradigmas so marcadamente contramtricos.

    A discusso com outros musiclogos, do passado e do presente, que Carlos Sandroni entabulaneste passo, vem a ser portanto das mais estimulantes.

    O contraste entre os dois paradigmas forma o arcabouo do livro, permitindo ao autordesdobrar sua erudio em matria de msica popular brasileira e latino-americana, bem comovastos conhecimentos sobre seus intrpretes instrumentais e vocais, ou ainda sobre seuspesquisadores e tericos. Tudo isso a partir de um achado fundamental, que a eleio do violocomo o medium popular por excelncia, com base no que seu ouvido de violonista lhe dizia arespeito da batida que escutava nas gravaes. A reivindicao que opera da relevncia e daprimazia da batida quanto ao que vem depois, isto , a msica propriamente dita, das maispertinentes.

    Da, at se debruar sobre uma pesquisa de flego que se desenrolou no tempo e no espao,absorvendo vrios anos e percorrendo muito cho, ao efetuar-se em mais de um continente: tal a trajetria deste livro, doravante leitura obrigatria tanto para quem se interessa pelo assuntosem maiores compromissos, quanto para os estudiosos que almejem um aprofundamento.

    Walnice Nogueira Galvo

  • AGRADECIMENTOS

    Este livro uma verso resumida e modificada da tese de doutorado que defendi em janeiro de1997 na Universidade Franois Rabelais de Tours, Frana, sob o ttulo: Transformations de lasamba Rio de Janeiro, 1917-1933. (A tese foi escrita originalmente em portugus; portanto,mesmo nos trechos que foram mantidos sem mudanas, o que o leitor tem em mos no umatraduo.)

    Muitas pessoas me ajudaram durante a realizao da pesquisa e durante toda minha estada naFrana. Devo a todos um grande obrigado. Gostaria de mencionar aqui, em particular, JairoSeveriano e Ary Vasconcelos, que no Rio de Janeiro puseram minha disposio suas preciosascolees de gravaes antigas; meus pais Laura e Ccero, que me apoiaram por todos os meiosdurante os anos fora do Brasil (alm dos outros...); minha famlia francobrasileira, Lcia eAlbert Laborde, pais adotivos, e Violeta Corra de Azevedo, av adotiva; Chiara Ruffinengo, bemmais que tradutora; Stphanie Morvant e Philipe Lesage, bem mais que revisores; o saudosoJean-Michel Vaccaro pela confiana e apoio que me deu desde minha chegada a Paris em 1991;meu orientador Jean-Michel Beaudet pelo interesse, as sugestes, as crticas... e por me iniciar naetnomusicologia; Patrick Rgnier, Dominique Drey fus, Ralph Waddey, Marco Antnio Lavigne,Guy Farelle, Joo Mximo, Jean-Pierre Estival, Ricardo Canzio, pelos livros, as fitas cassete, assugestes; e todos os violonistas cariocas que entrevistei em 1994, na pessoa de Lus OtvioBraga.

    Agradeo tambm ao CNPq, sem cujo apoio econmico eu no teria podido realizar estetrabalho.

    Entre os amigos que fiz na Frana e que me apoiaram em momentos difceis gostaria deagradecer a Teca Calazans, Yves Prreal, Brigitte Moreau, Bertrand e Nathalie Loiseau, DidierBiven, Guillermo Carbo, Elena de Renzio e Manoel Nunes.

    Agradeo tambm a Laura Sandroni pela reviso acurada a que submeteu o manuscrito datese, e a Clarinha Teixeira, amiga de longa data, pelo apoio decisivo para a insero de exemplosmusicais no texto. Para a transformao da tese em livro, foram valiosos o interesse e assugestes de Cristina Zahar, Andr Telles e Ana Paula Tavares, a quem agradeo. Finalmenteagradeo a Juliana Freire pelo paciente trabalho editorial na realizao desta segunda edio.

    Este livro dedicado a Nonai e a Elisa

  • ABREVIATURAS EMPREGADAS

    Aurlio Novo dicionrio Aurlio da lngua portuguesa

    BNRJ Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro

    DB-78rpm Discografia brasileira 78rpm

    DFB Dicionrio do folclore brasileiro

    DMB Dicionrio musical brasileiro

    EMB Enciclopdia da msica brasileira

    Ms. Manuscrito

    RBM Revista Brasileira de Msica

  • INTRODUO

    Existe um lugar-comum nas letras de samba que faz do violo o confidente do compositor. EmCordas de ao, por exemplo, o grande Cartola canta:

    S voc, violo,Compreende por quePerdi toda a alegria.

    Assim, o compositor em mal de amor humaniza o instrumento, fazendo dele um ouvintecompreensivo que lhe permite expressar suas queixas.

    O violo no entanto um confidente indiscreto. Primeiro porque, claro, no guarda para sios segredos que lhe so confiados: ao contrrio, ele literalmente uma caixa de ressonncia,atravs da qual as confidncias do compositor se amplificam, se transfiguram e vo encontrareco nos lbios e coraes de milhes de ouvintes. Por outro lado, possvel que o violo seja uminstrumento ainda mais indiscreto do que deixa supor seu papel de portador de queixas amorosas: possvel que os compositores lhe confiem tambm alguns segredos de seu ofcio.

    Explico-me. No Rio de Janeiro, o mesmo samba pode ser interpretado, na poca do carnaval,por 300 ritmistas e outros tantos cantores; e em qualquer poca do ano, numa verso de cmara,por um cantor que se acompanha ao violo. Isto leva a pensar que este instrumento se reveste, nacultura em questo, de extraordinrio poder de sntese. Se tal ideia se confirma, a indiscrio doviolo coisa til ao compositor, que pode assim dar sua intimidade uma dimenso coletiva seria algo til ao musiclogo tambm, que encontraria graas a ela, em verso condensada,certas caractersticas decisivas deste fenmeno mltiplo que o samba.

    De fato, o ponto de partida do presente trabalho foi a constatao de uma diferena entreestilos violonsticos. Como tantos outros violonistas brasileiros, aprendi, na adolescncia, a tocar oque chamamos de batida de samba: um modelo rtmico de acompanhamento, suscetvel decerto grau de variao, utilizado quando a cano a ser acompanhada pertence ao gnerosamba. Ora, quando meu interesse pela msica popular me levou a escutar gravaes desamba em discos 78rpm feitas no Rio de Janeiro a partir de 1917, qual no foi minha surpresa aoconstatar que os violonistas no empregavam ali a batida to familiar a mim e a meuscontemporneos, mas outro modelo de acompanhamento. Este, segundo os critrios musicais emvigor hoje em dia no Brasil, seria considerado totalmente inadequado ao samba.

    Mas a batida no simples fundo neutro sobre o qual a cano viria passear com indiferena.Ao contrrio, a primeira nos diz muito sobre o contedo da segunda. A batida de fato, namsica popular brasileira, um dos principais elementos pelos quais os ouvintes reconhecem osgneros. Neste pas, e certamente em outros tambm, quando escutamos uma cano, amelodia, a letra ou o estilo do cantor permitem classific-la num gnero dado. Mas antes mesmoque tudo isso chegue a nossos ouvidos, tal classificao j ter sido feita graas batida que,precedendo o canto, nos fez mergulhar no sentido da cano e a ela literalmente deu o tom.

    por isso que a existncia de outra batida nos sambas mais antigos me pareceu desde o incioquesto digna de interesse: tal questo foi o n em torno do qual o trabalho se construiu. Acreditei

  • que a existncia de duas maneiras de acompanhar, designadas por minha sensibilidade deviolonista como claramente incompatveis, no podia deixar de expressar uma divergnciaprofunda sobre o significado do samba. E que essa divergncia, como espero mostrar, diziarespeito no apenas a ritmos, instrumentos e versos, mas tambm a tipos humanos, trocaseconmicas, festas, relaes entre negros e brancos, concepes sobre o que ser brasileiro.

    O objeto principal deste trabalho so as transformaes sofridas pelo samba carioca navirada dos anos 1930. Essas transformaes j foram notadas por outros estudiosos, masnenhuma anlise sistemtica delas tinha at hoje sido feita. Elas dizem respeito aos mltiplosaspectos do fenmeno social, coreogrfico, musical, poltico-cultural; na medida de minhaspossibilidades, farei referncia a todos estes aspectos. Minha anlise, entretanto, vai se articularem torno de um dos elementos da msica, as frmulas rtmicas do acompanhamento, de ondepenso ter extrado informaes novas para compreender a mudana em seu conjunto.

    O estudo comea com uma apresentao das Premissas musicais, no sentido tcnico,nas quais ele se baseia. O leitor que no conhece um pouco da chamada teoria musicalclssica provavelmente enfrentar alguma dificuldade nessa leitura. Tal leitor fica aquiformalmente autorizado a pular o trecho sem remorsos. Embora os argumentos tcnicosrepresentem uma parte significativa do que tenho a dizer, acredito que eles no soindispensveis para o aproveitamento do restante do livro. Entretanto, permito-me deixar aquiuma discreta sugesto no sentido de que mesmo o leitor completamente leigo em msica (se que isso existe) arme-se de pacincia e ouse aventurar-se entre sncopes e semicolcheias. Naredao final, meu pensamento esteve voltado para a facilitao de sua tarefaa.

    A primeira parte, Do lundu ao samba, comea pelo estudo de alguns aspectos da msica desalo do sculo XIX, diretamente associados aos incios do samba: o lundu, o maxixe e seusparentes prximos, a polca-lundu, o tango brasileiro e outros. Essa incurso ao passado ajudar acompreender um universo musical e ideolgico do qual o samba carioca em sua fase inicial eraainda tributrio.

    Da, passo s primeiras referncias ao samba, ainda no sculo XIX, e fase pioneira dacriao do gnero no Rio de Janeiro, no incio do sculo XX, com o grupo de imigrados baianoscuja representante mais ilustre foi a famosa Tia Ciata. Essa fase pioneira se consolida no ano de1917, que foi o do lanamento de Pelo telefone, considerado por todos como o marco inicial dognero. a partir de ento que a palavra samba entra no vocabulrio da msica popular.

    A segunda parte, De um samba ao outro, trata da distino pela qual o samba entre 1917 eo final dos anos 1920 foi considerado demasiado prximo do maxixe, e portanto como umfalso samba, enquanto o estilo nascido no incio dos anos 1930 foi considerado o samba cariocapor excelncia.

    Essa distino mostrada em primeiro lugar no discurso sobre o samba discurso dossambistas, dos seus bigrafos, dos jornalistas que se interessaram pelo assunto, dos musiclogos.Ela mostrada em seguida nos lugares sociais em que o samba era praticado: das casas dastias baianas aos botequins, da Cidade Nova ao Estcio; no tipo de relao econmica a que acirculao do samba dava lugar: da festa caseira gravao comercial, passando pelo roubode sambas (em que estes so vistos como objetos naturais, de domnio pblico) e pela suacompra (quando pela primeira vez intrpretes, compositores, pblico e gravadoras se pem de

  • acordo para atribuir um valor monetrio a eles); na substituio da improvisao pela segundaparte fixa, que acompanha a transformao do samba em objeto: seu registro por meiosgrficos, fonogrficos e legais; e, finalmente, no aparecimento de um personagem paradoxal, omalandro. Digo paradoxal porque ao mesmo tempo que ele , por assim dizer, a personificaodo estilo novo de samba que surgia, a vitria final deste ltimo mostrar a possibilidade dasuperao do malandro por sua transformao em compositor.

    O ltimo captulo da Parte II, Pelo gramofone, , tal qual as Premissas musicais do inciodo livro, um pouco mais exigente do ponto de vista da argumentao tcnica, e para ela tambmfica valendo a autorizao de pular e a discreta sugesto feitas anteriormente. Ali se analisa umconjunto significativo de gravaes de sambas do perodo em foco. O objetivo de tal anlise retraar, por meio delas, as transformaes sonoras atravs das quais a nova verso do gnerofoi se constituindo, e, pouco a pouco, assumindo suas feies definitivas.

    Falar de feies definitivas no implica acreditar que o samba se tenha congelado a partirde 1940. A questo que, apesar das inmeras mudanas posteriores, as caractersticasfundamentais que o definiram, pelo menos at os anos 1990, e talvez ainda definam para umaparcela significativa da populao, foram criadas em torno de 1930. Assim, uma gravao desamba carioca feita a partir dessa poca ser, mesmo na ausncia de outras informaes,reconhecida como tal por um aficcionado contemporneo do gnero, ao passo que umagravao anterior no o ser. Isto no significa negar o status de samba a Pelo telefone e aseus sucessores imediatos, como fizeram alguns pesquisadores que citarei na Parte II. No sepode esquecer que essas composies eram reconhecidas como sambas por seus autores epblico: cabe a ns antes explicar as circunstncias por obra das quais os sambas de 1917 e de1930 no se reconhecem mutuamente.b

    * * *

    Talvez o que o leitor tem em mos possa se definir como um trabalho de etnomusicologiahistrica. De fato, seu objeto a msica popular, que na diviso universitria do trabalho temsido reservada etnomusicologia. Se, entretanto, considerarmos que esta ltima se caracterizapela pesquisa de campo formalizada, numa cultura em relao qual o pesquisador se situacomo estrangeiro, este trabalho no pode ser assim classificado. O fato de ter estudadomsicas do passado e de ter dedicado, na Parte I, bastante espao anlise de peas de msicaimpressa contribuiria igualmente, segundo as etiquetas em vigor, para classific-lo antes nodomnio da musicologia.

    Mas esta discusso s interessa na medida em que contribui para atenuar a rigidez dasfronteiras metodolgicas. Acho mais importante reconhecer minha dvida para com uma boatradio dos estudos musicais brasileiros: os dois grandes iniciadores destes estudos, Mrio deAndrade e Luiz Heitor Corra de Azevedo, escreveram tanto sobre msica popular como sobremsica erudita, sobre msica do presente e sobre msica do passado. O mesmo pode ser dito dealguns de seus mais talentosos continuadores, como Mozart de Arajo, o padre Jaime Diniz,Grard Bhague ou Jos Miguel Wisnik. No Brasil, a separao entre diferentes categoriasmusicais parece ser menos marcada que em outros pases. compreensvel, e til na minhaopinio, que os estudos musicais brasileiros sigam o mesmo caminho.

  • a Os trechos mais tcnicos esto destacados no texto, facilitando o trabalho dos que preferirempul-losb O mesmo tipo de reflexo poderia ser feito em relao a transformaes mais recentes dosamba, como o pagode ou o samba-reggae. Mas isso seria assunto para outro livro...

  • PREMISSAS MUSICAIS

    A sncope brasileira

    De 28 de novembro a 2 de dezembro de 1962, reuniu-se no Rio de Janeiro o I CongressoNacional do Samba. Participaram do encontro compositores, intrpretes, sambistas, estudiosos eamigos do samba em geral.1 No encerramento dos trabalhos, estes participantes aprovaramuma Carta do samba, de cuja redao incumbiu-se o folclorista Edison Carneiro. No dizer deste,o documento representa(va) um esforo por coordenar medidas prticas ... para preservar ascaractersticas tradicionais do samba. Aps um curto prembulo, a parte substantiva da Cartacomea da seguinte maneira:

    Msica, o samba caracteriza-se pelo emprego da sncopa.Preservar as caractersticas tradicionais do samba significa, portanto, em resumo, valorizar asncopa.2

    O curioso que, como ficou dito, o congresso no era uma reunio de musiclogos ouestudiosos de msica, que quisessem caracterizar o samba de um ponto de vista tcnico. Longedisso. bem provvel que boa parte dos participantes estivesse mais prxima dos doutores desambice, referidos um tanto depreciativamente por Mrio de Andrade, os quais, neste casomisterioso de sambas e batucadas, ... acham que, por mais sabedor de trs quilteras e quintasaumentadas que eu seja, me falta principalmente aquela necessria dose, no sei se demalandragem ou de carioquice, para dar qualquer opinio.3

    Em todo caso, o fato que essa aluso sncope a nica tentativa em toda a Carta dedefinir, atravs de um termo tcnico, o que seriam as caractersticas musicais tradicionais dosamba que se queria preservar.

    De fato, alguns musiclogos viram na sncope uma caracterstica definidora no apenas dosamba, mas da msica popular brasileira em geral. O mesmo Mrio de Andrade afirma que asncopa ... no primeiro tempo do dois por quatro a caracterstica mais positiva da rtmicabrasileira.4 Tambm Andrade Muricy, num artigo sobre Ernesto Nazareth, lamenta os finosartistas [que] esto com o senso rtmico viciado pelos ritmos regulares, e impossibilitados dereproduzirem com segurana e preciso um ritmo brasileiro caracterstico, o ritmo sincopado.5

    O fato de que tanto o samba quanto a msica brasileira sejam caracterizados pela presenadas sncopes no estranho a um contexto cultural em que o primeiro tomado como aexpresso mxima da segunda. Seja como for, considerar as sncopes ndice de certaespecificidade musical brasileira tornou-se um lugar-comum. Isto vale para estudiosos damsica brasileira como os dois citados, para compositores acadmicos que desejam dar saborlocal a suas obras, e ainda para praticantes e apreciadores da msica popular (como seriamprovavelmente muitos dos que se encontravam no Congresso do Samba), que, sem jamais teraberto um livro de teoria musical, usam e abusam de expresses como sambas sincopados etc.

    O recurso ideia de sncope possibilita ao mesmo tempo obter uma sano musicolgica

  • (pois trata-se, tanto quanto as trs quilteras e as quintas aumentadas, de conceito supostamenteuniversal) e um selo de autenticidade (pois ela seria tambm caracterstica particularizante). Daseu alcance na reflexo brasileira sobre msica no sculo XX. Na sncope, como se o doutomusiclogo paulista e o malandro carioca encontrassem enfim um vocabulrio comum.

    Estou longe de compartilhar dos preconceitos insinuados por Mrio de Andrade contra osdoutores em sambice; e igualmente longe de pensar que os livros ditos de teoria musical somestres mais indicados do que os praticantes populares, especialmente em assuntos comoaqueles de que nos ocuparemos aqui. Mas a palavra sncope, em msica, designa um conceitocriado pelos tericos da msica erudita ocidental, e por isso talvez no seja intil examinar comotal conceito foi formulado por estes.

    Vejamos por exemplo o que diz o verbete Sy ncope do Dictionnaire de la musique, de MarcHonneger: Efeito de ruptura que se produz no discurso musical quando a regularidade daacentuao quebrada pelo deslocamento do acento rtmico esperado (grifos meus). Estadefinio indica que a sncope seria uma ocorrncia percebida como desvio na ordem normal dodiscurso musical. Ela quebraria a regularidade e iria contra a expectativa do ouvinte; para este,uma articulao sincopada estaria fora do lugar, o que deixa implcito que o verdadeiro lugardela seria o lugar no sincopado.

    Tambm o Dizionario della musica de Alberto Basso escreve em seu verbete Sincope:Mudana da acentuao mtrica normal ... Finalmente, o Harvard Dictionary of Music deWilly Apel define:

    Sncope qualquer alterao deliberada do pulso ou mtrica normal. Nosso sistema rtmicobaseia-se no agrupamento de pulsaes iguais em grupos de 2 ou 3, com um acento regularrecorrente na primeira pulsao de cada grupo. Qualquer desvio em relao a este esquema sentida como uma perturbao ou contradio entre o pulso subjacente [normal] e o ritmoreal [anormal] [grifos meus]

    De posse destas definies, torna-se possvel entender a passagem de Andrade Muricy citadaacima, onde ritmo sincopado contraposto a ritmo regular. O musiclogo adota com rigor adefinio acadmica, que v no sincopado o irregular, a exceo regra. Mas no tira asconsequncias paradoxais que da resultam para o caso brasileiro, a saber: que precisamente oirregular seja ali o caracterstico, o mais comum, em uma palavra: a regra. Esse paradoxos pode ser desfeito se se admite que a sncope no um conceito universal da msica, mas umanoo gerada para as necessidades da prtica musical clssica ocidental, e como tal, de validaderestrita. Alis, o grande mrito da definio de Apel citada acima que ela assume abertamenteeste carter restrito: a sncope seria um fenmeno prprio de nosso sistema de ritmo musical,onde ns quer dizer a msica clssica ocidental.

    O carter culturalmente condicionado do conceito de sncope foi pela primeira vez trazido baila numa resenha publicada em 1960 pelo etnomusiclogo Mieczy slaw Kolinski, a propsito dolivro Studies in African Music, de A.M. Jones. Kolinski postula, como outros autores, a existnciade dois nveis de estruturao do ritmo musical: o da mtrica e o do ritmo propriamente dito.6 Amtrica seria a infraestrutura permanente sobre a qual a superestrutura rtmica tece suasvariaes. Assim, numa valsa, por exemplo, a mtrica seria o 3/4 que constitui o fundo constante,

  • e o ritmo, as diferentes articulaes temporais da msica real. Nas polifonias europeias do fim daIdade Mdia e incio do Renascimento, a mtrica corresponderia ao tactus, sequncia de temposneutros que possibilitam a coordenao das vozes; o ritmo, os diferentes cortes temporais de cadauma destas vozes. Nas polirritmias africanas, a mtrica seriam as pulsaes iscronas que,possibilitando a coordenao do conjunto, s vezes so manifestadas pelas palmas ou pelos passosde dana dos participantes; o ritmo, as duraes variadas que constituem cada uma das partescomplementares da realizao musical.7

    Ora, em todos estes casos o carter variado do ritmo pode confirmar ou contradizer o fundomtrico, que constante. Kolinski cunhou os termos cometricidade e contrametricidade paraexprimir estas duas possibilidades. A metricidade de um ritmo seria pois a medida em que elese aproxima ou se afasta da mtrica subjacente.

    V-se que a primeira vantagem dos termos de Kolinski seu carter neutro: nem co- nemcontrametricidade seriam a priori mais normais ou regulares que a outra. Ora, na teoria clssicaocidental palavras como sncope e contratempo expressam casos de contrametricidade, aopasso que casos opostos no deram origem a termos tcnicos comparveis. Isso demonstra maisuma vez que estes so considerados procedimento normal, que dispensa meno, enquantoaquela seria a exceo.

    Mas a questo no meramente terminolgica. As definies de sncope que citei deixamclara sua ligao com a ideia de que o ritmo musical se estrutura com base na recorrnciaperidica de acentuaes. Essa recorrncia peridica, que os autores citados chamaram tambmde normal, esperada etc., conhecida como compasso. Ora, o compasso, assim como asncope, tambm no um universal da msica. Na verdade, dentro da prpria msica ocidentalele uma inveno tardia, pois s a partir do perodo barroco que seu emprego sersistematizado na Europa.

    No por acaso que Kolinski elaborou pela primeira vez estes conceitos numa resenha de umlivro sobre a msica da frica subsaariana. A ideia de uma recorrncia peridica de temposfortes estranha a esta msica. Uma das fontes de sua inesgotvel riqueza rtmica a liberdadedas articulaes e das acentuaes, que no se submetem a esquemas gerais. Por isso, osetnomusiclogos acabaram percebendo que escrever as polirritmias africanas usando compassosera o mesmo que enquadr-las em leitos de Procusto. Pois nelas, a contrametricidade no umaexceo, mas um recurso to normal como seu oposto:

    Podemos dizer que a caracterstica dominante do ritmo (na msica centroafricana) umaforte tendncia contrametricidade, suscitando uma relao conflitual permanente entre aestrutura mtrica do perodo musical e os eventos rtmicos que se produzem ali.8

    Este carter sistemtico, regular, normal da contrametricidade na msica africana levouestudiosos como Simha Arom e Gehrard Kubik a abandonar no apenas os compassos, mastambm o prprio conceito de sncope como instrumento de anlise daquela msica.

    Os pesquisadores brasileiros que escreveram sobre a importncia da sncope tenderam aatribuir a paternidade dela aos africanos que vieram com a escravido.9 Mrio de Andrade seocupou em diversos momentos da questo, sem chegar a concluses satisfatrias. Um bom

  • resumo de suas dvidas aparece num texto inacabado publicado por Oneyda Alvarenga:

    A maioria das afirmativas feitas at agora sobre os elementos africanos da msica popularamericana ... so afirmativas peremptrias a que falta sempre a base documental. ... Pormo que me parece mais intrincado no problema a questo da sncopa. E sob este ponto devista principalmente que vale a minha acusao de leviandade. A sncopa que percorre comconstncia formidvel toda a msica americana tida em geral como provinda da frica. ... possvel e no estou aqui pra negar isso. O que reconheo que uma afirmativa dessasprecisava duma reviso com maiores bases e documentao farta. ... Diante de certascoincidncias musicais entre as msicas primitivas de portugueses, espanhis, africanos eamerndios, essas afirmativas assim como esto correndo so levianas e careciam de ter umareviso acurada ... Quem foi o influenciador? Quem o influenciado? Ou se deu apenascoincidncia de elementos brancos, negros e vermelhos que contaminaram-se, fortaleceram-se e deram origem a manifestaes novas que, por nascerem sob os auspcios da Amrica, agente pode chamar de americanas?10

    A enorme citao se justifica pela sua riqueza. Mrio, em primeiro lugar, constata o fato deque a provenincia africana da sncope um lugar-comum; em segundo lugar, constata que um lugar-comum que no se funda sobre evidncia documental slida, o que, se verdade hojeem dia, era ainda mais na poca em que escreveu.11 Finalmente, sugere que o problema dasorigens seria de soluo difcil e talvez mesmo irrelevante, tendo em vista que a fuso criada emsolo americano era algo de novo, e igualmente novas eram as condies sociais que lhe deramlugar.

    Estou de acordo com a ideia de que a novidade da msica americana irredutvel a qualquerdos elementos que a formaram; e tambm penso que a busca da origem de frmulas rtmicasparticulares, contornos meldicos ou canes particulares, se no estiver articulada compreenso das novas msicas originadas, no apresenta grande interesse. Como escreveMargareth Kartomi, usando exemplo prximo do nosso:

    Ritmos de tambores africanos podem estar na origem de muitos ritmos sincopadoscaractersticos do jazz. Mas seus significados musicais e extramusicais foram totalmentetransformados no novo contexto. Uma pesquisa sobre o jazz que se contentasse comremisses mecnicas a seus traos africanos, europeus ou outros estaria deixando de ladotodo o processo pelo qual esta msica foi criada.12

    Por outro lado, seria absurdo descartar completamente a validade de uma indagao sobre asorigens de determinados traos musicais. Pode-se considerar tal indagao pertinente desde queresponda a duas condies: primeiro, que a atribuio de origem possa ser convincentementearguida do ponto de vista histrico, filolgico, organolgico ou outro; segundo, que tal atribuionos diga alguma coisa sobre o sentido atual da msica em questo.

    No caso da nossa suposta sncope, se queremos preencher a primeira dessas condies,precisamos nos deter um pouco mais no que dizem sobre o ritmo os estudiosos da msica

  • africana.Estes estudiosos desde cedo notaram ali a forte presena de certas frases rtmicas totalmente

    inusitadas para os padres clssicos ocidentais. A caracterstica principal destas frases era amistura do que pareciam ser unidades de tipo binrio e ternrio (que em termos tcnicospoderiam ser representadas por semnimas e semnimas pontuadas).

    Nossa teoria musical clssica prev dois tipos de compasso, os simples e os compostos.Nos compassos simples, as unidades de tempo so binrias. Por exemplo, nos compassos2/4, 3/4 e 4/4, as unidades de tempo so as semnimas, que, dividindo-se sempre pordois, sero equivalentes a duas colcheias ou quatro semicolcheias etc. (Os casos em quesemnimas so divididas de modo ternrio constituem excees regra, so chamadosde quilteras e exigem sinalizao especial.) Por outro lado, nos compassoscompostos, como o 6/8 ou o 9/8, as unidades de tempo so ternrias e sorepresentadas por semnimas pontuadas (divididas portanto em trs colcheias). Mas ofato que no h compassos que misturem de modo sistemtico agrupamentos deduas e de trs pulsaes, como semnimas e semnimas pontuadas. precisamente estamistura que vai desempenhar um papel muito importante nas msicas da fricasubsaariana.

    A.M. Jones, importante estudioso da msica africana, formulou a questo da seguintemaneira: a rtmica ocidental divisiva, pois se baseia na diviso de uma dada durao emvalores iguais. Assim, como ensinam todos os manuais de teoria musical, uma semibreve sedivide em duas mnimas, cada uma destas em duas semnimas e assim por diante. J a rtmicaafricana aditiva, pois atinge uma dada durao atravs da soma de unidades menores, que seagrupam formando novas unidades, que podem no possuir um divisor comum ( o caso de 2 e3).13

    Mais recentemente, Simha Arom retomou a questo. Ele percebeu a existncia, na msicaafricana, de um importante grupo de frmulas rtmicas em que a mistura de agrupamentosbinrios e ternrios (as nossas semnimas e semnimas pontuadas) dava sempre origem aperodos rtmicos pares: por exemplo, a srie 3+3+2 (ou seja, duas semnimas pontuadas +semnima) configura um perodo de oito unidades; a srie 3+2+3+2+2 configura um perodo de12 unidades, e assim por diante. Mas qualquer tentativa de dividir estes perodos pares em dois,respeitando sua estruturao interna, levava a duas partes necessariamente desiguais, estasmpares. Assim, neste tipo de lgica rtmica, o perodo de oito no pode ser dividido em 4+4, massomente em 3+5 (ou 3+[3+2]); o perodo de 12 no pode ser dividido na metade exata (6+6),mas apenas em quase metades (5+7, ou [3+2]+[3+2+2]). Arom chamou este fenmeno deimparidade rtmica.14

    Mas como estas frmulas rtmicas aparecem na msica africana? Como se comportamdentro dos repertrios? No poderemos aprofundar estas questes sem nos desviar demais do

  • assunto deste livro. Mas duas observaes sero teis.A primeira sobre o que Nketia chamou de time-lines. O termo pode ser traduzido por

    linhas-guia, aproximadamente no sentido de que, nos estdios de gravao, se fala de vozguia.15 Em muitos repertrios musicais da frica Negra, linhas-guias representadas porpalmas, ou por instrumentos de percusso de timbre agudo e penetrante (como idiofonesmetlicos do tipo do nosso agog), funcionam como uma espcie de metrnomo, um orientadorsonoro que possibilita a coordenao geral em meio a polirritmias de estonteante complexidade.O fato que essas linhas-guias tm especial predileo por frmulas assimtricas como asmencionadas acima, que so, ento, repetidas em ostinato estrito, do incio ao fim de certaspeas.

    A segunda observao a reter diz respeito ao fato de que em muitos casos deste tipo arepetio no estrita, mas configura o que Arom batizou de ostinato variado. Sendo assim, afrmula rtmica assimtrica ora repetida, ora variada atravs de improvisaes do msicoresponsvel pela linha-guia. Estas variaes em muitos casos obedecem ao princpio dasubdiviso, ou seja, a decomposio em valores menores, sempre a partir dos agrupamentosprincipais da frmula rtmica. Assim, por exemplo, 3+3+2 pode ser subdividido em (2+1)+(2+1)+(2) ou em (1+2)+(1+2)+(2) e assim por diante.

    Figuras rtmicas do tipo descrito acima, embora possam eventualmente ocorrer na msicaerudita ocidental em particular na chamada msica contempornea , s o fazem a ttulo deexcees e so consideradas de execuo difcil. Na msica da frica Negra, ao contrrio, elaspertencem por assim dizer ao senso comum musical, frequentando inclusive o repertrio rtmicodas crianas.

    Mas o que nos interessa mais diretamente constatar que, neste ponto, o Brasil est muitomais perto da frica do que da Europa. De fato, a msica brasileira est coalhada de casos quepodem ser descritos de maneira muito mais adequada atravs de conceitos como os expostosacima que atravs da teoria do compasso. No tambor-de-mina maranhense, no xang e nomaracatu pernambucanos, no candombl e na capoeira baianos, na macumba e nos sambascariocas, entre outros, frmulas como 3+3+2, 3+2+3+2+2 e 3+2+2+3+2+2+2 fazem parte dodia a dia dos msicos.16 Estas frmulas em muitos casos comportam-se exatamente como time-lines, aparecendo sob forma de palmas, batidas de agogs ou tamborins, em ostinati estritos ouvariados, muitas vezes coordenando polirritmias quase to complexas quanto as africanas.Parece pois legtimo supor que elas fazem parte de uma herana musical trazida do ContinenteNegro, mesmo se o contexto e o sentido de tal herana se transfiguraram enormemente.

    Note-se que no estou propondo aqui a atribuio de uma origem precisa a uma frmulartmica particular. Como escreveu Fernando Ortiz a respeito de um tema prximo do nosso (isto, o da msica afro-cubana),

    uma frmula rtmica, como uma figura geomtrica simples (um tringulo, zigue-zague,crculo, espiral etc.), pode encontrar-se ao mesmo tempo em diversas culturas, sem que aintercomunicao entre estas seja necessria nem provvel.17

    Mas o mesmo no se pode dizer de um sistema rtmico, de uma lgica distinta de organizao

  • das duraes (um caso do que John Blacking chamaria de estrutura profunda).18 Essamudana de nvel de generalidade permite a meu ver dar bases mais slidas s indagaes sobrea filiao das frmulas rtmicas brasileiras.

    Quando, no sculo XIX, compositores de formao acadmica comearam, por diferentesrazes, a tentar reproduzir em suas partituras algo da vivacidade rtmica que sentiam na msicados africanos e afro-brasileiros, o fizeram, claro, com os meios de que dispunha o sistema emque foram educados. Ora, como ficou dito acima, tal sistema no prev (entre outrascaractersticas da msica africana) a interpolao de agrupamentos binrios e ternrios. Oresultado que os ritmos deste tipo apareceram nas partituras como deslocados, anormais,irregulares (exigindo, para sua correta execuo, o recurso grfico da ligadura e o recursoanaltico da contagem) em uma palavra, como sncopes. Assim, mesmo se a noo desncope inexiste na rtmica africana, por sncopes que, no Brasil, elementos desta ltima vierama se manifestar na msica escrita; ou, se preferirmos, por sncopes que a msica escrita fezaluses ao que h de africano em nossa msica de tradio oral. nesse sentido, e s nesse, quetinham razo os que afirmavam que a origem da sncope brasileira estava na frica.

    Mas o que interessante no caso brasileiro que o sistema rtmico clssico europeu, do qualfaz parte, no pas, a msica escrita, inclusive a msica popular escrita, veio a ser questionado emseu contato com as prticas musicais afro-brasileiras. O que, no caso europeu, era permitidoapenas como desvio em relao a um norma desvio tolerado, desvio mesmo procurado comoelemento de variao, mas sempre desvio passa a ser em certa medida praticado comonorma, mesmo por msicos cuja formao acadmica se dera nos parmetros clssicos. Mas asncope reiterada e elevada a norma muda de sentido, configurando um outro sistema que no mais africano nem puramente europeu, no qual a noo acadmica de sncope perde a razo deser.

    No entanto, o emprego da palavra sncope para designar as articulaes contramtricas foi,no Brasil, to frequente que se transformou, se me perdoam a expresso, numa verdadeiracategoria nativa-importada, como o caf e a manga. Assim, hoje em dia no so apenas ostericos e os msicos de conservatrio que falam das sncopes brasileiras: a palavra entrou novocabulrio do leigo e dos msicos populares, conheam eles ou no a leitura musical.

    por este fato que, ao contrrio de Arom, Kubik e outros estudiosos da msica africana, quebaniram a palavra sncope do seu vocabulrio, vou me permitir a empreg-la s vezes comocategoria nativa, reconhecendo, com os etnomusiclogos citados, que falta nela a tendncia generalidade que deve caracterizar conceitos cientficos.

    Quanto s expresses cometricidade e contrametricidade, que adotarei aqui, penso quenecessitam de elaborao ulterior, pois Arom as emprega em sentido diferente do de Kolinski, etanto um quanto outro emprego apresentam contradies internas, que no poderei discutir aquisem distanciar-me muito dos objetivos deste livro. Usarei estas expresses num sentido limitadoque, espero, ser suficiente aqui.

    Uma articulao rtmica ser dita comtrica quando ocorrer na primeira, terceira, quintaou stima semicolcheia do 2/4; e ser dita contramtrica quando ocorrer nas posies

  • restantes, condio de no ser seguida por nova articulao na posio seguinte. Totalmente comtrico:

    Totalmente contramtrico:

    Caso ocorra articulao em posio seguinte, ainda assim uma articulao nas posiespares poder ser contramtrica, mas condio de apresentar algum tipo de marcaacentual. Totalmente comtrico:

    Totalmente contramtrico:

  • O paradigma do tresillo

    Um dos ritmos assimtricos mencionados atrs foi identificado por musiclogos cubanoscomo desempenhando papel relevante na msica de seu pas. Trata-se do que se constri sobreum ciclo de oito pulsaes, ou 3+3+2. Ele pode ser representado da seguinte maneira em notaomusical ocidental convencional:

    Como este ritmo comporta trs articulaes, os cubanos chamaram-no tresillo, termo queadotarei aqui.19 Mas o tresillo aparece na msica de muitos outros pontos das Amricas ondehouve importao de escravos, inclusive, claro, no Brasil.

    O padro rtmico 3+3+2 pode ser encontrado hoje na msica brasileira de tradio oral, porexemplo nas palmas que acompanham o samba de roda baiano, o coco nordestino e o partido-alto carioca; e tambm nos gongus dos maracatus pernambucanos, em vrios tipos de toquespara divindades afrobrasileiras e assim por diante.

    O tresillo tambm aparece na msica escrita no Brasil desde pelo menos 1856, quando figurana introduo do lundu Beijos de frade, de Henrique Alves de Mesquita.20 Depois disso,aparece como padro rtmico de acompanhamento em enorme quantidade de peas popularesimpressas, como as de Ernesto Nazareth e seus contemporneos menos conhecidos, mastambm em muitas peas de compositores eruditos das geraes ditas nacionalistas.

    Ainda no que se refere msica impressa brasileira do sculo XIX e incio do XX, o tresillopossui algumas variantes ou subdivises que ocupam lugar de destaque. Eis a mais importantedelas:

  • A presena desta figura rtmica na msica da poca em questo to marcante que levouMrio de Andrade a cunhar a expresso sncope caracterstica para referir-se a ela, termo,como vimos, discutvel, mas consagrado pelo uso, que ser adotado aqui por comodidade.

    Afirmei que a sncope caracterstica podia ser considerada uma variante do tresillo. Ora, oagrupamento de valores rtmicos proposto na verso com que costuma ser apresentada na escritamusical no faz dela uma subdiviso do tresillo, mas do compasso 2/4 ocidental, com sua simetriacaracterstica:

    Mas a verdade que possvel ler o mesmo ritmo numa grade assimtrica:

    Assim, o que era para Mrio de Andrade uma sncope (ainda que caracterstica), podeser visto como um tresillo cujos grupos ternrios so subdivididos em 1+2.

    Se fizermos a experincia oposta, ou seja, se subdividirmos os mesmos grupos ternrios em2+1, o resultado uma figura rtmica que tambm aparece muito na msica popular brasileira(por exemplo, em padres de acompanhamento de cavaquinho em choros do incio do sculoXX) e que por ser constituda de cinco articulaes recebeu de musiclogos cubanos (poistambm frequente por l) o nome de cinquillo:21

  • Se, finalmente, subdividirmos o segundo grupo ternrio, mas no o primeiro, o resultado outra figura rtmica de larga difuso na msica brasileira da segunda metade do sculo XIX eincio do XX:

    Trata-se da frmula conhecida internacionalmente como ritmo de habanera. O nome enganoso por dar a entender que foi a habanera que introduziu este ritmo na msica brasileira(alis, de modo geral na latino-americana). Na verdade, como veremos, a habanera apenasuma das manifestaes daquele nas msicas em questo. Em particular, esta frmula deacompanhamento era associada ao tango at o incio do sculo XX, e conhecida tambm comoritmo de tango. Mas, ainda uma vez por comodidade, a expresso ritmo de habanera queser utilizada neste livro.

    A este conjunto de variantes proponho pois chamar de paradigma do tresillo. Suacaracterstica fundamental a marca contramtrica recorrente na quarta pulsao (ou, emnotao convencional, na quarta semicolcheia) de um grupo de oito, que assim fica dividido emduas quase metades desiguais (3+5). esta marca que o distingue dos padres rtmicos queobedecem teoria clssica ocidental, para a qual a marca equivalente estaria no na quarta, masna quinta pulsao (ou seja, no incio do segundo tempo de um 2/4 convencional e simtrico).

    O que se faz aqui, portanto, aplicar a lgica da imparidade rtmica a figuras rtmicas quehabitualmente so encaradas pela lgica binria do compasso. Acompanhamos assim asintuies dos raros musiclogos que procuraram desfazer-se dos preconceitos do compasso aoestudar a msica latinoamericana. Argeliers Len, por exemplo, diz do tresillo que asacentuaes no foram deslocadas; o que aconteceu foi que a msica se libertou de acentuaesregulares e constantes, e no lugar delas se instalou um novo sentido rtmico ... No umdeslocamento, mas uma nova articulao rtmica.22 E Eurico Nogueira Frana: Na msica

  • afro-brasileira, a polirritmia deriva de unidades mtricas menores que as utilizadas na mtricaeuropeia. Nossa frmula tpica: semicolcheia, colcheia, semicolcheia, no tem nada a ver, claro, com a unidade constituda pelas semnimas.23

    Mas preciso deixar claro que no me baseio apenas em critrios formais para considerar asncope caracterstica como uma variante do tresillo. A questo, como diz muito bem ArgeliersLen, sobretudo de sentido rtmico. Do ponto de vista puramente formal se que istoexiste , no h nenhuma razo para considerar que a sequncia 12122 deva ser seccionadacomo 12/12/2 em vez de 121/22: ambas as leituras so possveis. Na realidade, o que cabe aopesquisador da msica no escolher uma ou outra, mas antes descobrir qual a leitura feitapela cultura que est sendo examinada, quais so os sentidos atravs dos quais ela organiza amatria rtmica, e sem os quais, pensando bem, esta ltima permanece informe. S entoestaremos (para retomar os termos chomsky anos empregados por John Blacking no clssico daetnomusicologia How Musical is Man?) aptos a passar da estrutura superficial estruturaprofunda da msica.

    De fato e falando num nvel de generalidade bastante alto penso que parte significativada cultura musical brasileira l a sncope caracterstica, assim como o ritmo de habanera,como variantes do tresillo, e que minha contribuio aqui consiste apenas em dar a essa leiturauma formulao explcita. Pelo menos no que se refere msica impressa carioca da segundametade do sculo XIX e primeiras dcadas do XX, as trs frmulas rtmicas em questoparecem responder a certo critrio cultural de equivalncia. Elas so aceitas comointercambiveis por compositores, editores e pblico. Sua reversibilidade se demonstra dediversas maneiras: elas aparecem, ora uma ora outra, como base do acompanhamento dediferentes peas do mesmo gnero, em diferentes partes da mesma pea, e at mesmo emdiferentes trechos da mesma parte da mesma pea (oua-se, como exemplo e como apoteosedeste procedimento, o Batuque para piano de Ernesto Nazareth). O que possibilita essa relativaindiferena de uso do ponto de vista do contedo musical , como vimos, a marca sinttica naquarta semicolcheia do ciclo de oito. Mas, do ponto de vista do contedo verbal que associados frmulas em questo, tal possibilidade dada pela vinculao que, como mostra o mesmoexemplo do Batuque, feita entre elas e certas imagens do afro-brasileiro (percebido, claro,pelo ngulo da parcela da sociedade que participava do comrcio de partituras musicais).

    Essas imagens tambm se expressam nos nomes de certos gneros de msica, que eram tointercambiveis quanto as frmulas de acompanhamento. Assim, veremos que lundu, polca-lundu, cateret, fado, chula, tango, habanera, maxixe e todas as combinaes destes nomes,embora em outros contextos possam ter determinaes prprias, quando estampados nas capasdas partituras brasileiras do sculo XIX, nos informavam basicamente que se tratava de msicasincopada, tipicamente brasileira e propcia aos requebrados mestios.

    O argumento principal deste livro que existe uma ligao entre o tipo de contrametricidade(ou concepo do que seja msica sincopada) configurada pelo paradigma do tresillo e certaconcepo do afro-brasileiro e do tipicamente brasileiro. E que estas concepes musicais eno musicais associadas cedero lugar, por volta de 1930, a um novo paradigma rtmico e anovas ideias sobre o que ser brasileiro, ao mesmo tempo que os velhos gneros confundidoscedero lugar ao samba como msica popular por excelncia.

  • O paradigma do Estcio

    O novo paradigma a que acabo de me referir inclui frmulas rtmicas que passaram at hojepraticamente despercebidas na literatura musicolgica brasileira, em contraste com aquelas deque nos ocupamos na seo anterior. Quem primeiro chamou minha ateno para elas foi omsico e pesquisador Carlos Didier. Em 1984 ele publicou uma pequena nota no jornal OCatacumba, ento editado pela RioArte, fundao ligada prefeitura do Rio de Janeiro, onde sepodia ler:

    Os sambas de Ismael Silva, Bide e Nilton Bastos, entre outros, diferenciaram-se daquelesconsagrados por Sinh, pelo menos por sua pulsao rtmica mais complexa. Enquanto estesguardavam vestgios de antigos maxixes, aqueles sambas que vinham do Estcio[caracterizavam-se] pela agregao de mais uma clula rtmica marcao. Seno,ouamos:

    Bata no tampo da mesa, na garrafa, ou no violo a diviso descrita abaixo.Enquanto isso, assobie a introduo do samba Jura, composio de Sinh:

    Agora, faa a experincia com a diviso que se segue, e mude o repertrio.Cantarole desta vez o samba Se voc jurar, de Ismael Silva e Nilton Bastos:

    outra coisa, no ? E olhe que foi apenas uma das malandragens daqueles bambas quecirculavam ali pelo Estcio!24

    Os compositores e sambas citados por Didier nos ocuparo longamente na Parte II. Por ora, oque gostaria de reter da citao precedente o segundo exemplo musical, que nos traz umafrmula rtmica de tipo totalmente diferente das que vinham sendo examinadas at aqui.

    No que se refere a trabalhos acadmicos, s encontrei aluses a frmulas deste tipo nos deKazadi-wa Mukuna, Samuel Arajo e Gehrard Kubik.25 Estas aluses, porm, ao contrrio dafeita por Didier, no se referem especificamente ao perodo no qual se concentra este livro, masantes ao samba em sua verso contempornea.

    Mukuna menciona, em sua obra sobre elementos bantu na msica popular brasileira, certociclo rtmico (a que no d nome particular) que estaria presente no samba e que no tem sido

  • discutido pelos estudiosos.26 Este ciclo rtmico por ele contraposto sncope caracterstica,que tambm estaria presente no samba, mas como uma herana do lundu.27 Ei-lo:28

    Mukuna d uma variao deste ritmo, mostrada abaixo:

    Diga-se de passagem que tanto a sncope caracterstica quanto o ciclo que acabamos decitar e sua variante so, de acordo com Mukuna, encontrados na msica de algumas regies doZaire.

    O ciclo rtmico em questo subdividido pelo autor em 16 colcheias, segmentadas em doisgrupos de 7 e 9. No entanto, indo mais longe, possvel conceb-lo tambm num segundonvel de segmentao como sendo composto de (2+2+3)+(2+2+2+3) colcheias, o que, comovimos, configura um caso de imparidade rtmica.

    Ora, Mukuna afirma: Destes dois ritmos de samba, isto , o herdado do lundu e o [novo]ciclo, este ltimo pode ser considerado como o ritmo de samba mais representativo,especialmente em sua forma popular.29 E mais adiante fala do Rio de Janeiro, onde a divisode tempo de 16 pulsaes [isto , a figura rtmica em questo] seria introduzida no samba,caracterizando assim o chamado samba carioca.30

    Vemos assim uma srie de variveis associar-se s duas figuras rtmicas contrapostas porMukuna: o novo ciclo associado forma popular do samba (oposta implicitamente suaforma folclrica) e forma carioca (oposta implicitamente baiana). Do outro lado, asncope caracterstica associada ao lundu. Isto deixa entrever que o novo ciclo, justamentepor ser novo (pelo menos no contexto do samba), seria mais representativo, isto , capaz derepresentar o samba no que ele tem de original e independente de outros gneros brasileiros.

    Finalmente, Mukuna afirma que o novo ciclo frequentemente dado pelo tamborim naorquestrao de percusso ....31 A associao ao tamborim reforada por Samuel Arajo,que d um exemplo semelhante ao de Mukuna e chama-o de ciclo do tamborim ou padro do

  • tamborim (escrevendo-o, porm, tomando a semicolcheia e no a colcheia como unidademnima):32

    Noto desde logo que, nas minhas prprias transcries dessa figura rtmica e suas variaes,usarei a conveno grfica consagrada pelo uso nas partituras de samba desde Pelo telefone,que a usada por Carlos Didier e Samuel Arajo (e no a usada por Mukuna): a semicolcheiacomo unidade mnima. Mais ainda, tambm de acordo com o uso consagrado na msica popularbrasileira, escrevo esses ritmos usando compassos de 2/4, o que far com que o ciclo completo(16 semicolcheias) se faa em dois compassos.

    Por sua vez, Kubik escreve:

    Qualquer pessoa que esteja familiarizada com o samba de rua brasileiro, como pode ser vistono Rio de Janeiro pela poca do Carnaval ... deve conhecer a caracterstica clula percussivaque atravessa esta msica como um de seus traos mais persistentes. Esta clula pode sertocada em vrios instrumentos, por exemplo em um tambor agudo ... ou at num violo.Trata-se de um elemento focal, no qual os outros instrumentistas, cantores e danarinosencontram um piv de orientao.33

    Kubik faz coro com Mukuna na valorizao da figura rtmica para a qual quer chamar aateno: trata-se, afirma, de um ponto focal, um piv em torno do qual os outros elementosgiram. O etnomusiclogo austraco transcreve em seguida, segundo mtodo por ele criado, duasverses dessa figura rtmica (que afirma, alis, ser caracterstica tambm de certas regies deAngola e do Zaire). Estas so bastante semelhantes s anotadas por Mukuna e Arajo, com umas diferena: invertem as posies do 7 e do 9 com relao ao incio enquanto Kubikescreve (2+2+2+3)+(2+2+3), aqueles escrevem (2+2+3)+(2+2+2+3).

    Figuras como as que foram anotadas pelos autores citados so verdadeiras figuras fceisnas gravaes de samba carioca a partir do final dos anos 1930. Darei apenas alguns exemplospara ilustrar esta afirmao. Dada a importncia atribuda pelos autores citados ao tamborim naapresentao delas, comeo por este instrumento.

    A seguinte frmula rtmica pode ser observada, tocada por um tamborim, na gravaoSobrado dourado (tradicional, LP Rosa de Ouro, 1965) e na de Leva, meu samba por seuautor Ataulfo Alves (1941), entre outras:a

  • Mas no s no tamborim que frmulas assim aparecem. Elas podem ser encontradastambm em intervenes da cuca, que veremos compor com o surdo e com o prprio tamborimo trio de instrumentos emblemtico do novo estilo de samba surgido nos anos 1930. Os padresseguintes foram encontrados, tocados por cucas, nas gravaes de O bem e o mal (NelsonCavaquinho-Guilherme de Brito, 1971) e Sei l, Mangueira (Paulinho da ViolaHermnio Bellode Carvalho, 1969), entre muitas outras: 34

    Curiosamente, a nica variao mencionada por Mukuna no trecho citado no incio destaparte no foi encontrada nas gravaes que consultei, nem no tamborim, nem na cuca. Porm,foi encontrada batida numa garrafa na gravao de Duas horas da manh (NelsonCavaquinho-Ari Monteiro, 1961) por Paulinho da Viola:

  • Qualquer habitante do Rio de Janeiro que tenha certo contato com rodas de samba no terdificuldade em reconhecer auditivamente estas figuras, ou mesmo em batuc-las na mesa. Masno sabemos ainda quais so as propriedades formais delas, pelas quais tal reconhecimento setorna possvel. Em outras palavras: no sabemos o que h de comum entre todas estas variantescitadas por Didier, Mukuna, Arajo, Kubik, ouvidas nos discos de Paulinho da Viola, NelsonCavaquinho e tantos outros, tocadas em tamborins, cucas, garrafas sem falar de outrosinstrumentos dos quais no dei exemplos , que nos faz em todos os casos situar sem sombra dedvida o ritmo em questo como pertencendo ao samba carioca posterior a 1930.

    Ora, o leitor j ter notado que a definio deste ponto comum torna-se mais fcil serecorrermos ao que aprendemos anteriormente sobre a rtmica africana. Pois as frmulasrtmicas que estamos discutindo aqui, bem como aquelas do paradigma do tresillo, correspondem definio dos ritmos aditivos de Jones, das time-lines de Nketia e sobretudo da imparidadertmica de Arom. Assim, o paradigma do tresillo corresponde imparidade rtmica num ciclode 8 pulsaes (3+3+2 e suas variantes); e o novo paradigma que vimos predominar no sambacarioca mais recente, mesma num ciclo de 16 pulsaes (2+2+3+2+2+2+3 e suas variantes).

    Seria possvel ir mais longe na descrio desses dois paradigmas, mas para os propsitos destelivro creio que o que ficou dito suficiente.35 Gostaria apenas de acrescentar que, no caso doparadigma do Estcio, a existncia de um nmero maior de agrupamentos binrios (cinco)possibilita a existncia de duas verses bsicas: a primeira, exposta acima, predomina como vistono samba mais recente (at por volta de 1990 pelo menos). Ela corresponde imparidadertmica na verso estrita de Arom, na qual os valores podem ser agrupados em 7+9 ou 9+7; oscinco agrupamentos binrios ficam dois de um lado, trs do outro.

    Mas vamos encontrar na Parte II uma outra verso, predominante no perodo 1928-33, que o do nascimento e consolidao do estilo. Essa verso no foi descrita por Arom e consiste emtrocar de lado um dos agrupamentos binrios, ficando apenas um de um lado e quatro do outro:(2+3)+(2+2+2+2+3), ou 5+11. Ela compartilha com a anterior a assimetria e a interpolao devalores ternrios entre os binrios, que o que distingue ambas dos compassos ocidentais. Masessa outra verso possibilita a realizao de variantes mais comtricas do que a primeira. Isto mefaz pensar que ela pode ser encarada como verso de transio, mais facilmente assimilvelpor intrpretes e pblico no perodo de instalao do novo estilo de samba.

    a O leitor notar que este exemplo musical corresponde exatamente ao exemplo anterior,extrado da tese de Samuel Arajo, mas com a ordem invertida: o primeiro compasso de l osegundo de c e vice-versa. O problema que se trata de uma frmula rtmica repetitiva,circular (como tantas outras encontradas nas msica africanas e afro-brasileiras), caso em quedificilmente se pode distinguir o fim do comeo. No caso do samba carioca, no entanto, essafrmula rtmica coexiste com outros parmetros musicais, estes lineares, com princpio-meio-e-fim, como as letras e os encadeamentos harmnicos. A comparao entre esses parmetros me

  • levou a concluir que o ponto de entrada da frmula em questo corresponde ao compasso que seinicia de maneira contramtrica, e no ao que se inicia de maneira comtrica. Esta a razopela qual, nas minhas prprias transcries do paradigma do Estcio, comeo sempre por umasemicolcheia antecipada em relao barra de compasso. Para maiores detalhes, remeto oleitor a meu artigo La samba Rio de Janeiro e le paradigme de lEstcio

  • PARTE I DO LUNDU AO SAMBA

    1. Doces lundus, pra nhonh sonhar...a

    A palavra lundu (grafada s vezes tambm londu, lundum etc.) designa na msicabrasileira coisas diferentes, que so em geral consideradas como interligadas. Ela foi primeiro onome de uma dana popular, depois o de um gnero de cano de salo e, finalmente, o de umtipo de cano folclrica. Tratarei aqui sobretudo do lundu de salo, tal como nos foi transmitidopelas partituras que dele se publicaram em grande quantidade desde a dcada de 1830; os outrosaspectos do lundu sero no entanto abordados no decorrer da exposio.

    O DFB atribui origem remota dana do lundu, afirmando que ela j era tradicional emPortugal no sculo XVI.1 Mozart de Arajo mostrou que se trata de um engano, cuja origem a afirmao do folclorista portugus Tefilo Braga, segundo a qual a legislao de Dom Manuel,que reinou de 1495 a 1521, era severssima contra os bailes ou danas dos pretos como osbatuques, charambas, lundus.2 Se Braga estivesse certo, os primeiros registros do lundu estariamantecipados em mais de 200 anos; tal no o caso, porm. A pesquisa de Arajo mostrou que aprimeira proibio aos bailes dos negros ocorreu de fato em 1559, sob o reinado de DomSebastio, e que nela no havia nenhuma meno a lundus (nem a batuques ou charambas,alis).

    a partir de 1780 que de fato aluses dana do lundu comeam a aparecer com frequncianos documentos histricos. A mais antiga referncia encontrada, segundo Oneyda Alvarenga, uma carta datada de 10.6.1780, do conde de Pavolide, que havia sido governador dePernambuco, onde defendia certos bailes dos escravos de acusaes feitas ao Tribunal daInquisio.3 L-se nesta carta: Os pretos ... danam e fazem voltas como arlequins, e outrosdanam com diversos movimentos do corpo, que ainda que no sejam os mais inocentes socomo os fandangos de Castela, e fofas de Portugal, e os lundus de brancos e pardos daquelepas.4 O lundu tambm mencionado por volta de 1780, em versos do poeta portugus NicolauTolentino;5 e em dois entremeses populares portugueses de 1784 e 1787, que incluampersonagens negros, h menes ao baile do lundu.6 No Brasil, tambm em fins do sculoXVIII, o poeta Toms Antnio Gonzaga menciona a dana nas suas Cartas chilenas.7

    A origem africana do lundu-dana ponto pacfico para os pesquisadores brasileiros: assim,reza o DMB, trata-se de uma dana de origem afronegra, trazida pelos escravos bantos daregio de Angola e do Congo.8 Mrio de Andrade fala do lundu como uma formacaracterstica do folclore negro, porventura a mais caracterstica ento [isto , em fins do sculoXVIII], e certamente a mais generalizada.9 E Arajo escreve que o lundu ..., descendentedireto do batuque africano, foi a vlvula de equilbrio emocional de que se utilizaram os escravospara amenizar as agruras do exlio e os sofrimentos da escravido.10

  • No entanto, as nicas fontes documentais citadas pelos mesmos pesquisadores onde, de fato, olundu aparece como inequivocamente africano, so as portuguesas. No que tange ao Brasil, osautores que examinei foram incapazes de fornecer um s documento em que o nome lunduseja usado para se referir a uma atividade exclusiva dos negros. O mesmo no se d quanto palavra calundus, que referida neste sentido j no sculo XVII;11 mas a relao etimolgicaentre os dois termos negada por Arajo.12

    Mais ainda, j a primeira referncia feita ao lundu, citada acima, falava de uma dana debrancos e pardos. Tambm nas mencionadas Cartas chilenas, quem dana o lundu umamulata. E nos versos de Tolentino, quem vai tocar por pontos o doce lundum chorado nadamenos que um loiro peralta adamado (embora, como o autor chama seus poemas de stiras,possamos pensar que se trata de uma ironia). Tampouco as descries clssicas da coreografiado lundu nos autorizam a atribu-la exclusivamente aos negros, pois nela forte a influncia dofandango ibrico, como notou Tinhoro.13

    Esses dados indicam que, embora no se possa descartar a possibilidade de uma origemafricana, o lundu foi no Brasil de fato uma dana crioula. O prprio Tinhoro (que a inclui emuma parte intitulada Msicas, danas e cantos de negros de um livro que se intitula Os sons dosnegros no Brasil) admite que a dana do lundu ser mais cultivada por brancos e mestios quepor negros.14 Tal constatao, no entanto, no muda o fato de que o sentido atribudo desde finsdo sculo XVIII ao lundu-dana e transmitido no sculo XIX ao lundu-cano, chegando at sdefinies dos pesquisadores modernos, o de uma representao direta ou velada do universoafro-brasileiro.

    A partir da dcada de 1830, portanto, quando tem incio a impresso musical no Brasil, apalavra passa a servir tambm para designar um gnero de msica totalmente independente dequalquer coreografia: gnero de cano de salo (mas que podia apresentar-se, raramente, sobforma de pea instrumental, como mostram o Grande lundu para piano-forte includo nasModinhas imperiais compiladas por Mrio de Andrade, e o Lundu con variaciones para violo,apresentado, segundo Vega, em Buenos Aires em 1835). 15 A passagem do lundu-dana aolundu-cano merece pois uma discusso mais detida.

    Essa discusso no pode ser feita sem considerar a entrada em cena entre as menes dana do lundu na virada dos sculos XVIII e XIX e o aparecimento dos lundus-canoimpressos por volta de 1830 do primeiro personagem histrico da msica popular brasileira: opadre mulato Domingos Caldas Barbosa (1738-1800), natural do Rio de Janeiro, que foi paraLisboa em 1770 e l viveu pelo resto dos seus dias. Caldas Barbosa tido pelos estudiosos como ointrodutor em Portugal no s do lundu, como tambm de um gnero de cano a eleestreitamente ligado, a modinha, de que falaremos em seguida: No bojo de sua viola o nossoCaldas levou para a metrpole portuguesa a primeira manifestao da sensibilidade e dosentimento musical do povo brasileiro o lundu e a modinha, escreve Arajo.16 E Tinhoro:Modinha e lundu eram criaes populares da gente branca e mestia dos principais centrosurbanos do Brasil ... divulgadas em Portugal por Domingos Caldas Barbosa.17

    O lundu e a modinha tm estado indissoluvelmente associados na historiografia da msica

  • brasileira. O livro mais importante escrito sobre o assunto, o de Arajo, chama-se justamente Amodinha e o lundu no sculo XVIII, e o musiclogo Bruno Kiefer tambm escreveu um pequenolivro chamado A modinha e o lundu. Esse tratamento conjunto que os gneros receberam porparte dos estudiosos reflete o que Arajo chama de suas conexes histricas.18 Andradeescreve em seu clssico estudo sobre a primeira: O fato que modinha e lundum andarammuitssimo baralhados.19 E Kiefer: No sculo passado no era rara a confuso entre modinhae lundu.20 Para discutir o lundu ser pois necessrio abordar tambm a modinha.

    preciso ter em conta, em primeiro lugar, que moda, at o sculo XVIII, tanto emPortugal como no Brasil, era uma maneira geral de designar as canes populares. por isso quese pode ler numa narrao de viagem, publicada no incio do sculo XVIII, aluso existncia,na Bahia, de um famoso msico e tocador destas modas profanas, sem que se pretenda que jexistisse numa data to recuada o que se entende hoje por modinha.21 Alm disso, como notaLuiz Heitor Corra de Azevedo no verbete que escreveu sobre o assunto para o DFB, est nandole da lngua e na tradio dos compositores este uso do diminutivo; o mesmo ocorre comfado e fadinho, polca e polquinha, tango e tanguinho, choro e chorinho etc.22

    na mesma poca em que aparecem as primeiras menes dana do lundu, isto , o inciodos anos 1780, que tambm aparece em Lisboa a palavra modinha para designar um tipo decano em especial. Este tipo se apresenta em duas variedades: as modinhas portuguesas e asbrasileiras. Estas ltimas, se no foram introduzidas por Barbosa como parece provvel e comogeralmente se supe, tiveram nele com certeza seu mais clebre representante.

    Por outro lado, a existncia dessa diferena cujo contedo ser discutido adiante no nada surpreendente se pensarmos que Caldas Barbosa, ao desembarcar em Lisboa, tinha 32 anosde idade e como principal formao musical a frequentao das canes populares brasileiras(das quais parece legtimo supor que, aps trs sculos de colonizao, j tivessem adquiridocerta personalidade prpria). Estava longe de ser o que se costuma chamar um msico erudito:no frequentara escolas de msica. Seu instrumento era, segundo Arajo (que no d a fonte dainformao), a viola-de-arame, tipo de guitarra popular, e mesmo vulgar, segundo oDicionrio musical de Rafael Coelho Machado.23 Parece lgico supor que o repertrio deBarbosa inclusse algumas das modas profanas mencionadas acima, e tambm que as da suaprpria lavra fossem moldadas no mesmo estilo geral. Alis, vem em apoio a isto o fato de que,ainda em 1883, textos atribudos a Caldas Barbosa apareciam nas colheitas folclricas de SlvioRomero.24

    Podemos pois supor, com Tinhoro,25 Arajo, Vasconcelos e outros, que Caldas Barbosalevou para Portugal as primeiras manifestaes da sensibilidade e do sentimento musical dopovo brasileiro de que se guarda registro importante. Coisa muito diferente, no entanto, pensarque essas manifestaes j fossem chamadas desde o sculo XVIII no Brasil de modinha elundu, como tambm afirmam os autores mencionados. No h, pelo que sei, um sdocumento que ateste a existncia destes nomes, no sentido de gneros de cano, no Brasil antesdo sculo XIX. O livro de Arajo, bem como o de Mrio de Andrade, mostra farta que, cadavez que se atribuiu o nome de modinha a canes brasileiras anteriores ao sucesso de Caldas

  • Barbosa em Lisboa, foi ao arrepio da base documental.26 O prprio Caldas Barbosa, no primeirovolume da sua coletnea de poemas Viola de Lereno , chama suas composies de Cantigas,apenas uma vez de modinhas e nunca de lundus (nome que s aparece no segundo volume,publicado 26 anos depois de sua morte).

    Tambm Jos Ramos Tinhoro, tomando como fonte o romance As mulheres de mantilha, deJoaquim Manuel de Macedo, tece numerosas consideraes em torno da suposta popularidade damodinha e do lundu no Rio de Janeiro, entre 1760 e 1770.27 Acontece que esse romance de1870, e se prope reconstituir fatos histricos ocorridos 100 anos antes. Tinhoro sabe disso, masacha que pode se fiar na exatido do autor sem que um nico documento da poca venha em seuapoio. O romance antes um testemunho muito rico da viso que da modinha e do lundu se tinhana poca em que foi escrito.

    Quanto ao lundu-cano, mesmo em Portugal as referncias que remontam ao sculo XVIIIso indecisas. Nos textos de Caldas Barbosa, assim como nos entremeses lisboetas citados porTinhoro, fala-se sempre do lundu-dana; nos de Tolentino, tambm no se fala da cano, masda msica, a qual, pelo contexto, servia para acompanhar a dana.28 O Jornal de Modinhas,editado em Lisboa a partir de 1792 pelos franceses Milcent e Marchal, publica uma Moda dolondu e um Dueto novo por modo de londu, mas no se pode dizer que a palavra londufigure a como indicao de gnero.29 Mais importante, nestas duas peas no h quase nada quemostre as caractersticas que viriam a definir o lundu-cano no sculo seguinte; e a nica peapublicada por Milcent e Marchal que apresenta tais caractersticas no chamada ali de lundu,mas de Xula carioca.

    De fato, s durante o sculo XIX que modinha e lundu passam a receber definiesinequvocas da parte de seus autores, editores e consumidores, e a ser como tais reconhecveispor ns graas a determinado conjunto de caractersticas. Mas os pesquisadores modernostenderam a aplicar retrospectivamente tais definies. Caso extremo desse anacronismo o errode Tefilo Braga mencionado no incio da presente seo, bem como outro, similar, tambmdenunciado por Arajo em seu excelente livro, que consistiu em chamar o poeta Gregrio deMatos (1623-1696) de o Homero do lundu, quando no se encontra qualquer meno ao termoem sua obra nem na de seus contemporneos.30 Uma verso moderada do mesmo erro acometida pelo citado romance As mulheres de mantilha, em que inadvertidamente se baseouTinhoro, fazendo remontar o lundu ao terceiro quartel do sculo XVIII.b

    A existncia de modinha e lundu como gnero de cano no Brasil do sculo XVIII no est,pois, documentada. Por outro lado, est fartamente documentada a existncia da modinha emLisboa no final do sculo XVIII. Mais que isso, temos testemunhos da existncia de dois tipos demodinhas: as portuguesas e as brasileiras. A questo da diferena musical entre os dois tipos foide difcil soluo, at a publicao, em 1968, de um estudo de Grard Bhague sobre doismanuscritos at ento desconhecidos, os Mss.1595 e 1596 da Biblioteca da Ajuda em Lisboa, quedatam do fim do sculo XVIII.31 O interessante nesses manuscritos que eles mostram, nadiferena entre modinhas portuguesas e brasileiras, certos traos que sero encontrados no sculoseguinte na diferena entre modinha e lundu; como se esta ltima j estivesse, ali, comeando

  • a se delinear.Esses manuscritos representam, ao lado da Viola de Lereno, j citada coletnea de poemas de

    Caldas Barbosa, desprovidos da parte musical, as duas fontes principais sobre o assunto que noschegaram do sculo XVIII.

    O primeiro volume da Viola de Lereno saiu em vida do autor, pois data de 1798. Mas osegundo saiu somente em 1826, muito tempo depois de sua morte. Ora, para o problema que nosocupa as definies de modinha e lundu no se pode considerar os dois volumes como umaunidade, que eles no so. No primeiro volume, que o nico por cuja organizao o autor podeser totalmente responsabilizado, a palavra lundu no aparece, e a palavra modinha s apareceuma vez. Ali Caldas Barbosa chama suas composies de cantigas. s no segundo volumeque seis poemas so chamados de lundus.

    O que distingue estes ltimos do restante dos poemas sobretudo a posio discursivaassumida pelo poeta. Aqui preciso esclarecer que Caldas Barbosa possua uma personaliterria, como era comum entre os chamados poetas rcades.32 O prprio ttulo de seu livro fazaluso a ela, pois trata-se do pastor Lereno Selinuntino, cujas musas eram as tambm pastorasque atendiam pelos nomes latinos de Nerina, Mrcia, Llia e Ulina.

    Pois bem, nos seis lundus do segundo volume, e s l, Lereno desaparece sem deixar vestgiose em seu lugar surge outro personagem, que se designa a si mesmo como o teu moleque(palavra que o DFB define como negrinho, o preto rapaz);33 cujas musas so iai enhanhazinha (definido pelo mesmo dicionrio como tratamento de senhora ... dado pelosescravos s meninas da casa-grande);34 e que usa em seu vocabulrio termos comoxarapim, arenga, moenga, angu e quingomb, no que Mrio de Andrade chamou deverdadeiro compndio de brasileirismos vocabulares.35 Mais ainda, em alguns casos a relaoentre o sujeito lrico e sua musa assume a feio do que Tinhoro chamou de posiopsicolgica do moleque apaixonado [pela sua sinh branca].36 Assim, encontramos mesmoaluses ao castigo fsico, que pe em cena mais diretamente a escravido e d tom masoquista situao amorosa:

    Chegar aos ps de iaiOuvir chamar preguiosoLevar um bofetozinho bem bom, bem gostoso.37

    O nico poema, entre os seis em questo, que no apresenta tais caractersticas o Gentesde bem pegou nele.38 Por outro lado, no volume h apenas um poema que no dito lundu e asapresenta, o Doura de amor.c Assim, v-se que quem organizou o segundo volume da Violade Lereno: 1) decidiu incluir nele um tipo de cantigas que o prprio Caldas Barbosa no inclurana edio sob sua responsabilidade, cantigas em que o poeta se identifica no como o PastorLereno mas como um afro-brasileiro; 2) adotou com rigor quase absoluto o critrio de chamaressas cantigas de lundus, critrio que, como veremos, corresponde ao dos editores brasileiros delundus de 1830 em diante, mas que no pode sem anacronismo ser atribudo ao prprio Caldas

  • Barbosa. Passemos agora aos manuscritos da Biblioteca da Ajuda, comeando pelo que nos tocamais de perto, o Ms.1596, Modinhas do Brazil. Este documento annimo do final do sculo XVIII,cuja autoria atribuda a Caldas Barbosa por Bhague, apresenta, sob a designao demodinhas, vrias peas com caractersticas que sero mais tarde imputadas aos lundus. apresena dessas caractersticas que explica que Tinhoro no hesite em chamar aquelas peas delundus, mesmo com esse nome ausente do manuscrito original.39 O organizador da edio dosegundo volume da Viola de Lereno procede da mesma maneira, ao publicar sob a designao delundu a pea n06 do Ms.1596 (trata-se da nica correspondncia entre as duas fontes).

    As caractersticas encontradas nos lundus do segundo volume da Viola de Lereno so poisantecipadas por vrias peas do Ms.1596, mas sob o nome de modinhas do Brasil. Aparecema mais uma vez o tratamento de iai, nhanhazinha, o masculino nhonh, e tambmsinh, que no apenas uma maneira carinhosa de dirigir-se s moas, como escreveuBhague no artigo citado, mas tambm o tratamento dado pelos escravos sua senhora.40 Otermo moleque no aparece, mas em uma das modinhas o autor se designa sem rodeios comonigrinho; e outros brasileirismos aparecem mugangueirinha, fadar etc.

    Por outro lado, no Ms.1596 em nenhum momento o poeta se apresenta como Lereno, e onico nome de sabor arcdico a Nerina da Modinha 14. Assim, o contraste entre as duaspersonae literrias que se verifica na Viola de Lereno atenuado nas Modinhas do Brazil. Talcontraste, no entanto, reaparece com toda intensidade quando se comparam estas ltimas com ooutro manuscrito da Biblioteca da Ajuda trazido ateno por Bhague no mesmo artigo: oMs.1595, intitulado simplesmente Modinhas. O texto desta outra coleo, como afirma Bhague,corresponde exatamente ao tipo idlico da poesia popular portuguesa do sculo XVIII, dominadopelos assuntos do amor e sofrimentos dele resultantes.41 Ela emprega referncias arcdicas(Pastor, Anardas, Mrcias etc.) em oito de suas 11 peas em portugus. E sua boa cepa europeia reafirmada (como se ainda fosse necessrio) pela interpolao de uma pea em italiano, a riaNel cor pi non mi sento, da pera L Amor contrastato , de Paisiello. No mundo do Ms.1595,porm, s h pastores, no h escravos nem iais: nenhum dos brasileirismos mencionadosacima tem lugar ali.

    Note-se que existe um depoimento segundo o qual as aluses arcdicas seriam mais tpicasdas modinhas portuguesas que das brasileiras: Link, que esteve em Portugal em 1797-99, nosconta ao descrever um sarau: A conversa logo se tornou geral e terminou em cantigas dassenhoras. Cantaram principalmente essas rias portuguesas lnguidas e queixosas que s contammales de amor e repetidamente se dirigem linda pastora. Os ... cantos brasileiros nosencantaram pela variedade maior etc.42

    assim que as coisas aparecem nos depoimentos do final do sculo XVIII: faz-se a diferenaentre modinhas portuguesas e brasileiras, seja para preferir estas ltimas porque mais variadas,joviais, sensuais etc. (como Lord Beckford), seja para preteri-las porque grosseiras, vulgares etc.(como Antonio Ribeiro dos Santos).43 Mas nunca se menciona uma diferena entre modinha elundu, diferena qual, no entanto, se poder assimilar a primeira. A ltima porm s seestabelece realmente no decorrer do sculo XIX, no mais como diferena entre Brasil ePortugal, mas como separao interna msica brasileira.

  • Se para uma caracterizao mais completa da Viola de Lereno nos falta a escrituracontempornea da msica que lhe correspondia, no caso do manuscrito Modinhas do Brazil alacuna outra: temos acesso msica, mas no a comentrios diretos dos contemporneos sobreela. Para caracteriz-la, pois, passarei diretamente ao comentrio musicolgico produzido j nosculo XX. Eis o que diz Bhague: O que h de especial nesta coleo [por oposio aoMs.1595, de modinhas portuguesas] ... vem, de fato, da sistematizao das sncopes.44 Essainsistncia das sncopes no uma caracterstica puramente formal, mas carregadasemanticamente: ela associada com Brasil, com negro e com popular, trs coisas queparecem por sua vez estar associadas entre si: Melodias cantadas com sncopes sistemticas ...podem ser associadas com o estilo vulgar da modinha brasileira; a figura sincopada(semicolcheia-colcheia-semicolcheia) de fato identificada com as tradies dos negros noNovo Mundo; as sncopes seriam traos rtmicos caractersticos da msica popular e folclricabrasileira. Bhague fala tambm das qualidades nacionais das modinhas da coleo daBiblioteca da Ajuda, que apresentariam um carter genuinamente brasileiro, no texto e namsica.45

    Bhague refere-se expressamente s frmulas de acompanhamento utilizadas ao longodas Modinhas nos8, 17, 18:

    E na Modinha no16, compasso 41:

  • Bhague faz uma distino entre as sncopes encontradas nos acompanhamentos ecertas caractersticas das sncopes meldica:

    A melodia da Modinha no5 sistematiza, de maneira tpica, um processo rtmicomuito mais prximo dos hbitos musicais populares brasileiros do que as sncopesmencionadas acima. Trata-se de uma simples suspenso ( usando ligaduras entrecompassos) empregada nas cadncias, criando frases com terminaes femininas.46

    O mesmo tipo de sncope seria valorizado por Andrade em sua anlise do lundu L noLargo da S, que data de 1834:

    ... [algo] que s os compositores nacionais vivos, interessados no trabalho da matriamusical brasileira, haviam de especificar: a antecipao sincopada, passando dumcompasso para outro, em movimentos cadenciais ... Caso rarssimo de que s conheo[outro exemplo] na segunda metade do sculo ... Cndido Incio da Silva jsistematiza firmemente a sncopa de colcheia no primeiro tempo do dois-por-quatro, como [os compositores de lundus da segunda metade do sculo XIX], e, maisque estes, com ouvido fino, as antecipaes rtmicas do nosso canto popular; extraordinrio.47

    Tanto Bhague quanto Andrade estabelecem implicitamente uma hierarquia entre doistipos de sncope: a sncope dentro do compasso e mesmo dentro de um s tempo ea que passa de um compasso para o outro. A segunda considerada mais prxima daprtica musical popular no Brasil. Eis os exemplos musicais correspondentes:

  • Nos prximos pargrafos, tentarei estabelecer uma tipologia da contrametricidade doMs.1596, com o intuito de ir mais longe na qualificao que vimos Bhague e Andradecomearem a fazer das sncopes que encontraram.48 Com efeito, este ltimo fala, comovimos, da sncope caracterstica, enquanto o primeiro afirma que certas sncopes estomais prximas dos hbitos musicais populares.49 Estas afirmaes criam umadiferenciao entre tipos de sncopes que contraria a vagueza com que muitas vezes sefala das sncopes afro-americanas. Mas para mostrar, como pretendo, a existncia de umamudana de paradigma rtmico na msica brasileira, conveniente ir um pouco maislonge nesta diferenciao e definir as caractersticas da contrametricidade meldica quecorrespondem s frmulas de acompanhamento do primeiro paradigma. O primeiro tipo de contrametricidade que encontramos em abundncia no Ms.1596 oque chamaremos com Andrade de sncope caracterstica. Ela encontrada porexemplo na Modinha no1, compasso 2 entre vrios outros:

    Uma das variaes possveis da sncope caracterstica consiste em omitir sua primeirasemicolcheia, como se faz muitas vezes na Modinha no17. Outra variao consiste emsubstituir as duas colcheias do segundo tempo por uma nova sncope igual primeira,como nas Modinhas nos4, 6, 16 e 17. Em alguns casos, estas duas sncopes iguais sounidas por uma ligadura, gerando um primeiro caso de sncope entre tempos, e nomais no interior de um s tempo.

  • Outro caso o das frases anacrsticas comeando por sncopes de colcheia, como naModinha no6, compasso 5 (e de resto em todo o estribilho desta Modinha):

    Um terceiro tipo de contrametricidade aparece, ao contrrio do precedente, no final eno no incio das frases musicais. Trata-se do j mencionado, que se verifica emterminaes femininas, e que foi considerado por Bhague mais prximo dos hbitospopulares. Para concluir esta sumria apresentao dos diferentes tipos de contrametricidade queentram em jogo no Ms.1596, darei dois exemplos bem menos frequentes, verdade em que os tipos examinados se somam, dando origem a frases fortementecontramtricas. Trata-se da Modinha no6, compassos 3 a 5, e da Modinha no17,compassos 18 e 19:

    O exame da msica contida no Ms.1596 permitiu estabelecer a ocorrncia de trs tiposde figuras rtmicas contramtricas: frases baseadas na sncope caracterstica e suas

  • variaes; anacruses contramtricas; e terminaes femininas contramtricas. Comotrao geral, constata-se uma preferncia pelas sncopes internas aos tempos, e sobretudoao primeiro tempo do 2/4. A sncope entre tempos e entre compassos tambm aparece,mas em proporo menor. Estas caractersticas sero frente comparadas com as dostipos de contrametricidade que encontraremos em outros contextos.

    A associao do Ms.1596 com o universo afro-brasileiro consideravelmente reforadapelas indicaes verbais que precedem duas das partituras: Este acompanhamento deve-setocar pela Bahia, l-se na de nmero 8, e

    Rasgado, na de nmero 17 (tambm se referindo ao acompanhamento).Bhague interpreta a primeira frase como uma atribuio de origem (pela Bahia = na

    Bahia), enquanto Tinhoro a interpreta como uma indicao estilstica (pela Bahia = maneirabaiana).50 Qualquer das duas interpretaes associaria este acompanhamento aos negrosbrasileiros, pois, segundo Bhague, as tradies negras do Novo Mundo so melhorrepresentadas no Brasil pelo estado da Bahia.51

    Quanto ao rasgado, Bhague o v como um coloquialismo muito especfico, uma griasignificando com entusiasmo ou impetuosidade.52 Ou seja, como uma indicao de carterexpressivo. Como tal, a palavra aparece tambm em fontes do sculo passado, como a comdiaO juiz de paz na roa, de Martins Pena.53 O interessante nessa palavra, no entanto, que ela originalmente indicao, no de expresso, mas de tcnica instrumental empregada pela modireita ao tocar a viola: rasgado como a forma portuguesa do espanhol rasgueado, quando amo direita toca todas as cordas ao mesmo tempo com todos os dedos, e no uma com cadadedo como no punteado (em portugus, ponteado).54 Ainda mais: o Dicionrio de msica deBorba e Graa55 associa a tcnica do rasgado precisamente viola-de-arame, dizendo queeste instrumento atribudo como vimos por Arajo a Caldas Barbosa seria especialmenteadequado quela tcnica.

    A transio entre o sentido tcnico e o expressivo da palavra rasgado pode ser notada numartigo publicado por volta de 1880, onde se descreve uma apresentao de um tocador de viola,em que este, depois de demonstrar as possibilidades do instrumento na msica de concerto (emque se toca ponteado), passa ao repertrio popular (o articulista menciona o fado, o cateret e osamba): e espalmando a mo direita sobre o bojo do instrumento, enquanto que a esquerdapercorria-lhe as cordas, arrebatou todos os circunstantes com um desses rasgados que tm sido aperdio de muita gente sria.56 A descrio do rasgado do ponto de vista tcnico perfeita.Ao mesmo tempo, o que a perdio de muita gente sria no a tcnica em si, mas aexpresso afetiva que dela se desprende. A origem dessa expresso afetiva a carga semnticaconferida ao rasgado pelo repertrio que (no Brasil) lhe peculiar. A palavra rasgado noartigo citado designa ambas as coisas, e talvez acontea o mesmo no Ms.1596.d por causadessa associao com um repertrio j ele mesmo associado aos negros (fado, cateret e

  • samba) que a presena da palavra no incio da Modinha n 17 pode ser significativa.57Podemos pois concluir a caracterizao geral do contraste entre os dois manuscritos por um

    pequeno quadro, que nos leva da oposio entre modinhas portuguesas e brasileiras queser discutida com mais vagar adiante, entre modi