FEIRAS LIVRES E REPRODUÇÃO CAMPONESA: … · estes espaços como lócus privilegiado para a...

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1 FEIRAS LIVRES E REPRODUÇÃO CAMPONESA: INTERFACES DA RELAÇÃO CAMPO-CIDADE José Aparecido Lima Dourado Centro de Estudos de Geografia do Trabalho – CEGeT. Universidade do Estado de São Paulo-UNESP/Presidente Prudente [email protected] Resumo Pensar as feiras livres no contexto de expansão das formas de varejo (hipermercados, principalmente) e da difusão do automóvel é fundamental porque possibilita-nos compreender estes espaços como lócus privilegiado para a sociabilidade e a reprodução do campesinato na cidade. Uma fração da cidade acaba sendo transformada, mesmo que momentaneamente, numa vitrine onde são expostos os frutos do trabalho da família camponesa, de modo a revelar a existência de uma territorialidade camponesa na cidade. Nesse sentido, defendemos a ideia de que as feiras livres contribuem sobremodo para a reprodução dos saberes-fazeres da cultura camponesa, constituindo-se uma estratégia interessante em seu processo de reprodução. Palavras-chave: Feiras livres. Campesinato. Sociabilidade. Cidade. Introdução O campo e a cidade foram colocados ao longo da história como espaços antagônicos, na qual a cidade (urbe) é tida como o lócus do moderno, civilizado e o campo enquanto expressão do arcaico e tradicional. A imagem da cidade tem sido difundida como o lugar adequando para se viver, sendo atribuídas a ela características nem sempre verídicas como “qualidade de vida”, bem-estar, lazer, modernidade, entre tantas outras construções suplantadas no imaginário social por discursos bem fundamentados e a favor de um projeto de sociedade mutilante e homogeneizador. Essa posição dogmática se fez materializada nos projetos civilizatórios incumbidos de realizarem as mudanças necessárias para que o campo superasse a sua condição de atraso e assim legitimar o projeto eurocêntrico-industrial pensado a partir dos países industrializados. A Revolução Verde é um desses projetos civilizatórios e modernizadores pensados para o campo com reflexos diretos nas cidades. É nesse contexto que admitimos que a cidade e o campo não são espaços que se repelem. Na verdade, estes constituem espaços reinventados e reformulados constantemente ao longo do tempo, movimento esse revelador das contradições do movimento do capital, dos conflitos de classe e das

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FEIRAS LIVRES E REPRODUÇÃO CAMPONESA: INTERFACES DA RELAÇÃO CAMPO-CIDADE

José Aparecido Lima Dourado Centro de Estudos de Geografia do Trabalho – CEGeT.

Universidade do Estado de São Paulo-UNESP/Presidente Prudente [email protected]

Resumo Pensar as feiras livres no contexto de expansão das formas de varejo (hipermercados, principalmente) e da difusão do automóvel é fundamental porque possibilita-nos compreender estes espaços como lócus privilegiado para a sociabilidade e a reprodução do campesinato na cidade. Uma fração da cidade acaba sendo transformada, mesmo que momentaneamente, numa vitrine onde são expostos os frutos do trabalho da família camponesa, de modo a revelar a existência de uma territorialidade camponesa na cidade. Nesse sentido, defendemos a ideia de que as feiras livres contribuem sobremodo para a reprodução dos saberes-fazeres da cultura camponesa, constituindo-se uma estratégia interessante em seu processo de reprodução. Palavras-chave: Feiras livres. Campesinato. Sociabilidade. Cidade. Introdução

O campo e a cidade foram colocados ao longo da história como espaços antagônicos, na

qual a cidade (urbe) é tida como o lócus do moderno, civilizado e o campo enquanto

expressão do arcaico e tradicional. A imagem da cidade tem sido difundida como o

lugar adequando para se viver, sendo atribuídas a ela características nem sempre

verídicas como “qualidade de vida”, bem-estar, lazer, modernidade, entre tantas outras

construções suplantadas no imaginário social por discursos bem fundamentados e a

favor de um projeto de sociedade mutilante e homogeneizador. Essa posição dogmática

se fez materializada nos projetos civilizatórios incumbidos de realizarem as mudanças

necessárias para que o campo superasse a sua condição de atraso e assim legitimar o

projeto eurocêntrico-industrial pensado a partir dos países industrializados. A

Revolução Verde é um desses projetos civilizatórios e modernizadores pensados para o

campo com reflexos diretos nas cidades. É nesse contexto que admitimos que a cidade e

o campo não são espaços que se repelem. Na verdade, estes constituem espaços

reinventados e reformulados constantemente ao longo do tempo, movimento esse

revelador das contradições do movimento do capital, dos conflitos de classe e das

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resistências dos sujeitos sociais que buscam resistir, por meio de estratégicas diversas,

aos imperativos do capital em seu processo expansionista.

Nessa ebulição de fenômenos, é importante mencionar o recente processo de

urbanização acompanhado do autoisolamento das classes médias-altas e das elites em

condomínios fechados (CORRÊA, 2011, p. 17) e da favelização das áreas periféricas

das cidades ao passo que os centros urbanos, principalmente das grandes cidades,

entram em decadência, constituindo o que Santos (2009) denominou de “espaços

opacos”. Como é possível verificar as transformações sócio-espaciais não se apresentam

estanques e deslocadas de um contexto histórico, visto que as estruturas regionais,

sejam elas agrárias ou urbanas, estão diretamente ligadas aos processos econômicos, às

políticas de governo e ao movimento de expansão do capitalismo.

Ante ao exposto defendemos a necessidade de revisitar a questão campo-cidade em

função das novas relações estabelecidas entre esses espaços a partir da segunda metade

do século XX, quando se torna notório a supremacia do meio técnico-científico-

informacional (SANTOS, 2009). É inegável que o campo e a cidade mantêm inter-

relações, aspectos que complexificam a sua análise, pois há que se pensar estes espaços

não apenas em suas contradições como também a partir de suas interações. Para Santos

(2009, p. 322) “com a modernização contemporânea, todos os lugares se mundializam.

Mas há lugares globais simples e lugares globais complexos”. Embora nas cidades

pequenas a existência de vetores dessa modernização contemporânea seja limitada, cabe

destacar que em função da territorialização do grande capital, muitas delas passam a

interagir de forma intensa com os mercados globais, tendo poucas relações com os

mercados local e regional.

Neste artigo não fazemos um estudo aprofundado sobre a questão urbana. Partimos de

um determinado fragmento do perímetro urbano - a feira livre - para demonstrar como

campo e cidade se complementam e se articulam, superando assim as dicotomias

geográficas (Geografia Urbana e Geografia Agrária). Nosso objetivo é analisar as feiras

livres das cidades pequenas no Brasil, buscando demonstrar como estes espaços são

utilizados pelos camponeses em seu processo de reprodução. No Brasil, particularmente

nas cidades pequenas, as feiras livres transcendem a simples troca de mercadorias,

constituindo-se espaços de sociabilidade propícios à reprodução camponesa, através do

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fortalecimento das práticas sócio-culturais, dos modos de vida camponês. Na busca por

uma delimitação espacial, trataremos apenas das feiras livres das pequenas cidades, por

entender que estes espaços ainda possuem funcionalidades que extrapolam a função

comercial (compra e venda de mercadorias), constituindo-se em espaços de

sociabilidade, diferentemente do que acontece nas feiras livres das cidades grandesi.

Como procedimentos metodológicos, fez-se levantamento bibliográfico, vistas às feiras

livres dos municípios de Livramento de Nossa Senhora (BA), Rio de Contas (BA), Dom

Basílio (BA), Brumado (BA), Caetité (BA), Rio do Antônio (BA), Lagoa Real (BA) e

Catalão (GO)ii, onde fizemos entrevistas com os feirantes e consumidores, com o intuito

de levantar quais os motivos que os levavam a freqüentar estes espaços.

De acordo com nossa leitura da realidade, estes espaços têm desempenhando importante

papel para o campesinato e para as populações com menor poder aquisitivo por três

motivos principais: primeiro, por constituir-se um espaço no qual o campesinato pode

comercializar os produtos do trabalho familiar na produção agrícola, na pecuária e no

artesanato, de onde obtém recursos para comprar aquilo que não produzem. Destaca-se

ainda que estes espaços assumiram nova dinâmica nos últimos anos em função da

importância e valorização da produção de alimentos mais saudáveis e livres de

agrotóxicos respeitando assim os princípios da agroecologia. A criação de muitas feiras

livres nos últimos anos é resultado das lutas travadas pelos movimentos sociais, como

uma das pautas de reivindicações em defesa da produção de alimentos pela agricultura

familiar de maneira autônoma e sem o uso de agrotóxicos. Em segundo lugar, através

das feiras livres as classes sociais economicamente menos favorecidas têm acesso a

alimentos frescos e de qualidade a preços acessíveis. Por último, cremos que as feiras

livres constituem espaços com grandes potencialidades para a reprodução da cultura

camponesa em tempos de ascensão dos fast food e das grandes cadeias de

supermercados, visto que, ao comercializar os produtos do trabalho familiar, os

camponeses estão difundindo os sabores, os saberes-fazeres e as tradições que

constituem as práticas socioculturais do campesinato. Isso contribui, sobremodo, para a

perpetuação da cultura popular, pois fortalece e em alguns casos resgata as raízes

históricas das comunidades camponesas locais, transformando-se em símbolos

imateriais de resistência contra os processos homogeneizantes do capital, como a

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mcdonaldização.dos padrões alimentares, ditando os novos costumes alimentares por

todas as culturas. Para Santos (2009, p 327) “

A cultura popular tem raízes na terra e que se vive, simboliza o homem e seu entorno, encarna a vontade de enfrentar o futuro sem romper com o seu lugar, e de ali obter a continuidade, através da mudança. Seu quadro e seu limite são as relações profundas que se estabelecem entre o homem e o seu meio, mas se alcance é o mundo. (SANTOS, 2009, p. 327).

Ao considerar a recriação das práticas socioculturais camponesas, não quer dizer que

adotamos uma postura “anti-modernização” do campo e consequentemente do

campesinato. Todavia, colocamo-nos contrários ao modelo de desenvolvimento

construído de forma hierarquizada e pelos atores hegemônicos, sem considerar os

saberes locais e sua relação com os saberes globais. Partimos do pressuposto de que os

projetos desenvolvimentistas assim como assim como as Políticas Públicas implantadas

pelo Estado devem considerar a cultura camponesa, de modo que os camponeses

possam ter acesso aos “produtos” da modernidade sem que isso represente a sua

descampesinização. Há que se pensar os projeto de desenvolvimento “desde abajo”,

perspectiva defendida por Porto-Gonçalves (2006), visto que os camponeses possuem

uma relação com o lugar, com o meio ambiente, valorizando as interações sociais

fundamentadas, algo similar ao que Santos (2009) intitulou de “tempos lentos”.

O que historicamente tem ocorrido é a implantação de projetos e Políticas Públicas que

desconsideram as populações locais, e aqui especificamente, os camponeses,

ocasionando a migração destes para a cidade, o que contribui para a perda de seus

referenciais culturais. Outro elemento a ser considerado é o fato de a feira livre

contribuir diretamente com o processo de (re)afirmação dos valores e cultura

camponeses, podendo-se caracterizá-la como uma vitrine, no qual se encontram

expostos os frutos do trabalho na/com a terra. Diferentemente de outras abordagens, não

reconhecemos a feira livre como um espaço marginalizado e/ou de sujeitos

marginalizados por entendermos que tal abordagem esta comprometida com a ideia de

modernidade que serve de sustentáculo para depreciar outros modos de vida que não

estejam fundamentados a partir dos costumes urbanos. Ao colocar as formas culturais

urbanas em evidência – tidas como modernas – tem-se, de forma explícita, a defesa da

racionalidade urbanística, fruto da modernidade ao passo que a vida no campo ganha

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conotação de atraso e que deve ser transformado. Contrapondo-se à ideia de modernista

que torna invisível os camponeses em função de seu modo de vida simples, Martins

(2000, p. 13) destaca que são justamente eles, “[...] os simples, que nos libertam dos

simplismos, que nos pedem a explicação científica mais consistente, a melhor e mais

profunda compreensão da totalidade concreta que reveste de sentido o visível e o

invisível”.

Há algumas questões que serão problematizadas no decorrer desse artigo e para os quais

faremos apenas alguns apontamentos como possíveis indicativos de respostas, haja vista

que tais indagações carecem de maior e mais aprofundada reflexão, além de não ser

nossa proposta esgotar a discussão sobre as feiras livres das cidades pequenas com este

trabalho. De todo modo, espera-se contribuir para a leitura espacial geográfica das feiras

livres nas cidades pequenas, compreendendo estes espaços a partir da interlocução entre

os conhecimentos da geografia urbana e da geografia agrária, de tal forma que favoreça

revisitar a questão campo-cidade.

A construção do presente artigo parte de alguns questionamentos e para os quais talvez

não tenhamos ainda uma resposta conclusiva. As feiras livres são espaços em

obsolescência? Quais os impactos para as feiras livres dos atuais e modernos

mecanismos colocados pelo capitalismo para facilitar o consumo? Quem são os

freqüentadores destes espaços? Qual a sua função no processo de reprodução

camponesa? Ao fazer estes questionamentos, buscamos colocar elementos para se

pensar o campo a partir da cidade e vice-versa, como forma de compreender as

capilaridades que perpassam tanto o mundo rural quanto as cidades no cenário

brasileiro. Ao que tudo indica, as novas dinâmicas territoriais agrícolas e urbanas têm

ocasionado transformações nas feiras livres, aspecto que merece a atenção dos

geógrafos e não-geógrafos, visto que pensar os espaços que constituem a cidade é tarefa

de diferentes áreas da Ciência. Essa particularidade, por sua vez, possibilita leituras

diversificadas e sob vieses diferentes de um mesmo espaço de acordo com as

particularidades e singularidades das feiras livres e de quem as analisam. Nesse sentido,

as feiras livres constituem o lócus privilegiado para a análise geográfica porque

proporciona a junção campo-cidade, de modo a trazer para o debate uma reflexão sobre

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a dinâmica da produção camponesa e do consumo a partir do processo de globalização

da economia.

Frações das cidades são momentaneamente apropriadas pelos camponeses e citadinos

das classes menos favorecidas, colocando em evidência as contradições da modernidade

urbana (p. 74), pois os camponeses e demais sujeitos que compõem o mosaico das

feiras livres (vendedores ambulantes de roupas, utensílios para casa, entre outros)

transformam temporariamente um espaço público em espaço de sociabilidade, de

maneira a revelar uma territorialidade reconhecidamente conflitante com o projeto

hegemônico proposto para a cidade; projeto esse caracterizado pela difusão ilimitada

das modernas formas de varejo (supermercados e hipermercados) e pela cultura do

automóvel. Percebemos que as práticas socioculturais camponesas estão presentes no

espaço das feiras livres nas pequenas cidades, revelando os “saberes e sabores

tradicionais de seu modo de vida” (DOURADO; MESQUITA, 2010).

Pequenas cidades e feiras livres: espaços em obsolescência ou espaços em

transição?

O surgimento das feiras remonta ao período da Idade Média, em função da formação de

excedentes de produção pelos camponeses. Assim, surgiu a necessidade de encontrar

um espaço onde as trocas entre os camponeses pudessem ser efetuadas, mediante a

comercialização de seus excedentes e, por outro lado, adquirir aqueles produtos que não

podiam produzir. Ainda de acordo com Souza (2004) “[...] atribui-se à Idade Média, a

oficialização das feiras, tendo em vista que na época dos faraós, quer dizer, no período

escravagista, bem como na fase do feudalismo, não existiam tão acirradamente as feiras,

por causa da produção para o auto-consumo”. Vê-se que o surgimento das feiras pode

ser considerado como algo espontâneo, todavia, no decorrer do processo histórico, estas

passaram também a representar um símbolo de luta e conquista do campesinato, e

atualmente, da introdução do debate sobre gênero no contexto da discussão sobre a

questão agrária.

As feiras livres não são espaços homogêneos. Suas atividades e funcionalidades estão

intrinsecamente relacionadas com a dinâmica regional, cujas características revelam

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elementos que permitem reconhecer os antigos e novos arranjos produtivos, visto que

estes espaços são constituídos/frequentados por sujeitos de classes sociais distintas e

com projetos de sociedade diferenciados. Tal particularidade não pode ser negligenciada

porque, de acordo com a nossa leitura da realidade, é justamente nesse cenário que as

contradições tornam-se latentes, mediante a manutenção de espaços rurais nas cidades,

com formas, conteúdos e processos diferentes do modo de vida urbano.

Sabe-se que as feiras livres não são espaços exclusivamente produzidos pelos

camponeses. Todavia, a territorialização do campesinato nesses espaços representa uma

de tantas outras estratégias utilizadas pelos camponeses para viabilizar a sua

permanência no campo. Embora a maioria das feiras livres seja realizada com pouca

intervenção dos órgãos que gerenciam a cidade, cabe ressaltar que há, entre os sujeitos

que utilizam destes espaços para comercializar seus produtos uma espécie de contrato

social, visto que embora não haja nenhum documento que determine o local onde cada

um irá montar sua barraca para exposição e comercialização dos produtos, tem-se

conhecimento de casos de camponeses que por mais de 30 anos montaram suas barracas

no mesmo local, sem que houvessem conflitos pelo uso do espaço.

Outra particularidade das feiras livres é que os camponeses que as freqüentam e as

utilizam como espaço para a comercialização de seus produtos nem sempre vendem

exclusivamente aquilo que produzem em sua terra. Muitos deles, além de

comercializarem os produtos do trabalho familiar acabam expandindo a variedade dos

produtos que comercializam, havendo casos em que o camponês durante a semana

trabalha na lavoura e cuida do gado e no dia de realização da feira monta uma barraca

onde vende o que produziu com o trabalho familiar e também o que foi comprado de

camponeses que não costumam usar as feiras livres para vender seus produtos.

Outra característica marcante das feiras livres é a presença da mulher, que assume papel

de destaque, participação essa indicadora de mudanças no papel da mulher na divisão do

trabalho na unidade camponesa. Trata-se de uma nova perspectiva para as mulheres que

ficavam ocupadas e submetidas aos trabalhos “menos importantes” na unidade familiar

para assumir destaque na busca pelo sustento da família camponesa. Feiras, como a

Feira Camponesa (Fotos 1 e 2), realizada no Bairro Ipanema em Catalão (GO) é um

exemplo dessa nova realidade, visto que as mulheres, sujeitos que sempre tiveram

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grande importância na produção familiar camponesa passam agora a serem

reconhecidas como fundamentais no tocante à manutenção econômica da família.

Destaca-se que essa função sempre foi monopolizada pelo homem, ficando para a

mulher o papel de cuidar da casa, dos filhos e das galinhas, de modo a explicitar a

divisão do trabalho por gênero no campesinato.

Sobre a participação feminina nas feiras livres, Guimarães e Mesquita (2009) destacam

que

No campesinato as mulheres sempre desempenharam um papel fundamental, já que são parte da mão-de-obra familiar, cuidando, primeiramente, dos filhos, e da casa, juntando-se aos demais membros para o trabalho na produção agrícola, pecuária e artesanal apoiada pelas necessidades de auto-suficiência/auto-consumo e, por outro lado, venda de seus excedentes para obter recursos necessários a compra de produtos e serviços que não produzem, isto é, relacionando-se com o espaço público. (GUIMARÃES e MESQUITA, 2009, p. 2).

Estes espaços são representados de vários modos em função das particularidades

regionais, aspecto que nos leva a pensar numa cartografia simbólica (SANTOS, 1991)

que seja capaz de “mapear” as representações e manifestações culturais que encontram-

se plasmadas, imbricadas nestes espaços, pois são resultados de construções sociais ao

Foto 1 – Feira Camponesa, bairro Ipanema, Catalão (GO). Camponesa organizando os produtos para a comercialização. WILLER, 30/11/2011

Foto – Feira Camponesa, bairro Ipanema, Catalão (GO). Presença da família camponesa durante o processo de comercialização dos produtos. WILLER, 30/11/2011

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longo dos tempos. A análise proposta neste artigo exige de nós o entrelaçamento do

“ontem” e do “amanhã” sem que haja o obscurecimento do olhar sobre o “hoje”, pois a

permanência das feiras livres em tempos de globalização, coloca a necessidade de se

fazer projeções sobre o objeto/espaço em análise para que os instrumentos analíticos

não percam de vista os conflitos ideológicos materializados em seu interior. Longe de

qualquer generalidade, as feiras livres colocam em evidência tradições e costumes afro-

descendentes, indígenas, camponesas num mesmo espaço que, embora misturados,

mantém demarcadas as suas fronteiras culturais bem definidas (Figura 1 e 2). Ao visitar

as feiras livres nas cidades pequenas no Brasil é possível fazer um “mapeamento

cultural” daqueles que utilizam estes espaços para venderem seus produtos. Essa riqueza

cultural torna as feiras livres objetos relevantes não apenas para a análise geográfica,

como também para a sociologia e para a história, já que concordamos com Boaventura

de Souza Santos (1991) quando este defende a indissociabilidade do espaço e do tempo.

Embora as cidades brasileiras venham passando por intensos processos de

reconfiguração, principalmente a partir dos anos de 1980, quando há uma intensificação

da busca pela integração do território nacional ao grande capital, as feiras livres, em

pleno século XXI, ainda constituem para muitas cidades um elemento de dinamização

dos fluxos de capitais e de pessoas. Neste limiar de século XXI, significativas alterações

foram observadas nestes espaços em função de diversos elementos, como a expansão

Figura 3 – Feira do Distrito de Maniaçú, Caetité (BA). Camponesa comercializando artigos de cerâmica feitos de forma artesanal.

Figura 3 – Feira do Distrito de Maniaçú, Caetité (BA). Artigos feitos de modo artesanal com fibras vegetais. COSTA, W. B., ag. De 2011.

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das compras com cartões de crédito (dinheiro de plástico), a difusão dos hipermercados

e das “comodidades” que estes espaços oferecem, pois a entrada de grupos econômicos

maiores na cidade acaba interferindo nas lógicas de estruturação e produção dos espaços

urbanos.

Considerações Finais

Mesmo em tempos de expansão da cultura do automóvel e das formas modernas de

varejo, as feiras livres tem alcançado nos últimos anos uma nova dinâmica em função

das lutas travadas pelos movimentos sociais de luta pela terra em defesa de uma

produção de alimentos livre de agrotóxicos e da subordinação aos ditames dos grandes

conglomerados agroalimentares. As feiras livres das pequenas cidades constituem o

lócus da sociabilidade camponesa, revelando as contradições existentes no seio da

modernidade urbana, a partir do momento em que a cidade, cujo modo de vida é

colocado como horizonte para os camponeses, é contraditoriamente, utilizada pelo

campesinato em seu processo de reprodução. Verificamos que as práticas socioculturais

camponesas estão presentes no espaço da feira-livre, de modo que fossem evidenciados

como os produtos vendidos pelos camponeses trazem materializados em si os saberes e

sabores tradicionais de seu modo de vida.

Ante ao exposto defendemos a tese de que as feiras livres constituem espaços em

transição, todavia, jamais de obsolescência. Mas não nos referimos ao termo “transição”

no sentido de algo que está em vias de acabar. Aqui usamos este termo para demonstrar

que as feiras livres no Brasil não caminham para o seu fim, pois o que se verifica é uma

renovação do público que “usa” estes espaços. Por isso, acreditamos que o transitório é

muito mais no sentido de mudança para permanecer do que para acabar.

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Referências

CORRÊA, R. L. A. Entrevista ao Jornal da UFRJ, Ano VI, Nº 62, ag., set. e out. de 2011. DOURADO, J. A. L.; MESQUITA, H. A. de. O lugar dos saberes e sabores da (re)produção camponesa: um olhar sobre a feira livre de Livramento de Nossa Senhora (BA). In: Actas del XI Coloquio Internacional de Geocrítica. La planificación territorial y el urbanismo desde el diálogo y la participación. Buenos Aires, 2 - 7 de mayo de 2010. Universidad de Buenos Aires. Disponível em: http://www.filo.uba.ar/contenidos/investigacion/institutos/geo/geocritica2010/296.htm . Acesso em: 20/04/2012. GUIMARAES, R. R; MESQUITA, H. A. Feira camponesa: instrumento de luta e resistência das mulheres camponesas em Catalão (GO). In: Anais...XIX ENCONTRO NACIONAL DE GEOGRAFIA AGRÁRIA, São Paulo, 2009, pp.1-15. MASCARENHAS, G.; DOLZANI, M. C. S. Feira livre: territorialidade popular e cultura na metrópole contemporânea. In: Ateliê Geográfico, Goiânia - GO, v. 2, n. 4, ago./2000, p. 72-87. PORTO-GONÇALVES, C. W. A reinvenção dos territórios:a experiência latino-americana e caribenha. In: Los desafios de las emancipaciones em um contexto militarizado. Ceceña, Ana Esther. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina, 2006, pp. 151-197. SOUSA-SANTOS, B. de. Una cartografia simbólica das representaciones sociales: prolegómenos a una concepción posmoderna del derecho. In: Nueva Sociedad, Nº 116, noviembre-diciembre, 1991, pp. 18-38 SANTOS, M. Por uma geografia nova: da critica da geografia a uma geografia crítica. 6 ed., 1 reimpressão. São Paulo: EDUSP, 2008. ______. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: Edusp, 2009. SOUSA, L. G. Memórias da economia. Disponível em:<http://www.eumed.net/cursecon/libreria/2004/lgs-mem/32.htm> Acesso em 10/09/2008. i Embora não seja nosso propósito fazer uma discussão conceitual sobre a classificação das cidades (pequena, média e grande), destacamos os estudos de Sposito (2006, 2007) sobre cidades médias, tendo em vista que essa pesquisadora, juntamente com outros pesquisadores e instituições integram a Rede de Pesquisadores sobre Cidades Médias (ReCiMe). ii Embora Catalão (GO) seja considerada uma cidade média, percebeu-se que a organização e mobilização dos camponeses possibilitou que estes pudessem comercializar seus produtos, tendo uma boa aceitação por parte dos moradores da cidade.