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Amêijoa apanhada no
feio é grave ameaçaà saúde públicaTodos os dias são recolhidas ilegalmente toneladas de amêijoa noestuário do Tejo. Um negócio pirata que vale milhões e para o qualalertam autarcas, autoridades e um estudo científico Pãgs. 14 a 21
Apanha Ilegalde toneladas de
no Tejoameaçasaúdepública
Centenas de pessoas retiramdiariamente do estuário do
Tejo cerca de 15 toneladas deamêijoa ilegal. Muita espalha-sepelo mercado nacional. Bivalves
que podem estar contaminadoscom toxinas e metais pesados.Um estudo científico, autarcase autoridades alertam parauma grave ameaça para a saúde
pública que o consumo desta
amêijoa pode significar. Noestuário mistura-se um mundode miséria e um negócio pirataque vale milhões de euros
LucianoAlvarez Texto
Enric Vives-Rubio Fotos
Todos os dias, quando a maré bai-xa, centenas de pessoas entram Tejoadentro entre a Trafaria e Alcochete.Munidos de sachos, ancinhos, facasde mariscar ou mesmo enxadas, fa-mílias inteiras, homens, mulheres e
crianças, andam quilómetros paraescavar o lodo. Buscam todo o gé-nero de bivalves, mas especialmenteamêijoa-japonesa. Para muitos, estaactividade ilegal é o único sustento.Mas há também um circuito orga-nizado de intermediários que com-
pram a amêijoa a estes mariscadoresa preços irrisórios para a levar para omercado espanhol, onde a procura é
grande, ou para a passar para o mer-cado nacional. Tudo de forma ilegal.
Muitos destes bivalves que che-
gam ao prato dos portugueses não
passam por qualquer análise, trata-mento ou depuração e podem estarcontaminados com toxinas e até me-tais pesados, levantando um graveproblema de saúde pública. Existem
também impactos ambientais nega-tivos, causados especialmente pelacaptura com uma técnica de arrasto:
ganchorras atreladas a barcos (apa-relhos com uma espécie de lâminas
que rasgam o fundo do rio), por mer-gulho, ou uso de berbigoeiros, umaarte que revolve o solo do Tejo deforma manual.
Desde o dia 3 deste mês que a
apanha de bivalves está proibida noestuário do Tejo "devido à presençade fitoplâncton produtor de toxinasmarinhas ou de níveis de toxinas oude contaminação microbiológica aci-
ma dos valores regulamentares", in-forma o Instituto Português do Mare da Atmosfera (IPMA).
Um estudo científico que reuniudepartamentos de investigação devárias universidades, realizado entreJaneiro e Dezembro do ano passado,revela existirem mais de 1700 maris-cadores, cerca de 1500 ilegais, queretiram do estuário a maioria dos 19
mil quilos de amêijoa-japonesa pordia (dez mil pelos aparelhos de arras-to) num negócio na sua larga parte
pirata que, em 2014, terá envolvidouma verba estimada entre os 10 e os
23 milhões de euros.Se se tiver em conta que os 182
apanhadores legais licenciados em2014 registaram em lota nesse anoum valor de cerca 1,6 toneladas pordia e as apreensões feitas pela GNRnos primeiros quatro meses desteano (58 toneladas a nível nacional),percebe-se melhor a dimensão destaactividade completamente desregu-lada.
Autarcas da região do estuárioouvidos pelo PÚBLICO falam de um"problema gravíssimo", "assusta-dor", "dramático" e com "gravesconsequências para a saúde públi-ca e ambiente". Dizem-se de "mãosatadas" por não terem poderes pa-ra a resolução do caso e já apelarama diversos ministérios, mostrandoestar "totalmente disponíveis paracolaborar". "É um problema que to-da a gente conhece, mas que poucosquerem resolver", diz Luís MiguelFranco, presidente da Câmara deAlcochete.
O PÚBLICO contactou o Ministériodo Mar para saber que medidas tinhaem curso para combater esta activi-dade ilegal. A resposta veio atravésde um comunicado. "Os diferentescontornos do problema e a nature-za inorgânica dos apanhadores, queagem a título individual, sem qual-quer estrutura ou organização deenquadramento, exigem que a res-
posta a dar ao problema seja pensadade forma integrada", lê-se no texto.O comunicado acrescenta que o IP-MA "continuará o seu programa de
acompanhamento e monitorizaçãoda qualidade das águas e as autorida-des fiscalizadoras mantêm a pressãono combate às ilegalidades", mas re-conhece que "estes dois factores não
bastam" . O ministério aponta para anecessidade de "um plano de gestãointegrado" que o Governo irá "de-senvolver com as autarquias e outros
parceiros locais para criar condições
para a regulamentação da apanha noestuário do Tejo".O impacto de um estudoO estudo, intitulado "Amêijoa-japo-nesa, uma nova realidade no rio Te-
jo, reestruturação da pesca e pres-são social versus impacto ambien-tal", juntou os investigadores João
Ramajal (do Centro em Rede de In-
vestigação em Antropologia, CRIA,da Faculdade de Ciências Sociaise Humanas da Universidade Novade Lisboa e do Centro de Ciênciasdo Mar e do Ambiente, MARÉ, daFaculdade de Ciências da Univer-sidade de Lisboa), David Piccard(também do CRIA), José Lino Costa
(MARÉ e Instituto Português do Mare da Atmosfera, IPMA), Frederico B.Carvalho (MARÉ), Miguel B. Gaspar
(IPMA e Centro de Ciências do Mar,da Universidade do Algarve) e Pau-la Chaínho (MARÉ).
O trabalho teve como objectivo a
"caracterização da pesca de amêi-joa-japonesa e a caracterização docircuito comercial dos exemplarescapturados no estuário do Tejo,providenciando o conhecimen-to científico essencial para apoiaruma proposta de regulamentaçãode pesca sustentável às entidadespúblicas". O quadro que este estu-do traça é negro: começa logo porrevelar que, embora não exista umregulamento específico para a pescade R. philippinarum (nome científico
para amêijoa-japonesa) em Portugal,"a pesca deste bivalve no estuário do
Tejo é enquadrada através da publi-cação da Portaria 1228/2010, de 6 de
Dezembro, onde aparece elencadacom a designação genérica de Rudita-
pesspp., na lista de espécies animaismarinhas que podem ser objecto de
apanha". "Apesar deste en- ¦*
quadramento legal específico parao estuário do Tejo, todo o circuito co-
mercial, desde a apanha, depuração,até ao consumidor final tem sido alvode uma gestão deficitária, quer peladimensão da actividade, em expan-são, que envolve um número cadavez maior de pessoas, na sua maioriailegais, quer aos meios limitados dasautoridades públicas competentes na
fiscalização", acrescenta.Com base em diversas metodolo-
gias aplicadas no terreno, os investi-
gadores chegaram a uma estimativade um total de 1724 apanhadores de
amêijoa-japonesa no estuário dorio Tejo, "sendo a grande maioriaapanhadores apeados com apanhamanual, com sacho, ancinho, facade mariscar ou enxada (1111 apanha-dores) e com berbigoeiro (431)". Asartes com menor representatividade"são o mergulho em apneia e comberbigoeiro com vara, perfazendocerca de 1% da média de apanhado-res diários no estuário do rio Tejo".
Os investigadores concluem ain-da que a maioria dos apanhadores"exerce a sua actividade durantetodo o ano e em todos os tipos demaré (47%)". No entanto, uma boa
proporção efectua a apanha apenasquando a maré está baixa (42%), emparticular os apanhadores que estãomais dependentes da área disponí-vel que surge quando a maré baixa,como é o caso dos apeados e comberbigoeiro.
Relativamente ao esforço sema-nal, a maioria dos inquiridos indi-cou que "exerce esta actividade 6dias por semana (33%), havendotambém uma elevada proporçãode apanhadores que o fazem todosos dias da semana (22%) e 5 dias porsemana (21%).
Os resultados do estudo apon-tam para um esforço de pesca (idasà apanha) anual "maior para os apa-nhadores apeados (167.327 unidadesde esforço/ano)". "No entanto, o in-tervalo de rendimento (5-10 quilos/dia) desses apanhadores é inferiorao das restantes artes, pelo que as
capturas diárias são dominadas pe-los apanhadores por arrasto comganchorra, cujo rendimento diáriovaria entre os 300 e os 1200 kg."
A disparidade destes e de outros
valores apresentados no estudo fi-
cam a dever-se ao facto de os apa-nhadores retirarem quantidadesmuito variáveis de amêijoa do rio,além das variações de apanha nosdiversos meses do ano.
Os investigadores estimaram umnúmero aproximado de 35 interme-diários (centros de depuração e ex-
pedição e compradores com locaisde armazenamento) "a distribuir 5
toneladas/semana/ cada para Espa-nha, perfazendo um total estimadoem cerca de 9400 toneladas no ano
de 2014".A lei em vigor estabelece um má-
ximo de 80 quilos por dia por apa-nhador legal no estuário do Tejo.Em 2014, foram emitidas 182 licen-
ças, o que pode perfazer um total de
14,7 toneladas por dia como limitemáximo de capturas legais. Os regis-tos das descargas em lota em 2014,cedidos pela Direcção-Geral dos Re-cursos Naturais aos investigadores,apontam para um valor aproximadode 1,6 toneladas por dia. "Estes dados
agregam os registos nas capitanias de
Cascais, Lisboa e Setúbal e Sesimbra,tendo em conta que os apanhadorespodem registar as suas capturas nas
capitais imediatamente a montante e
jusante daquela onde está registada a
sua licença. Tendo em conta o inter-valo de esforço anual estimado, quevaria de 4000 a 17.000 toneladas,grande parte das capturas não são
registadas em lota e entram ilegal-mente no circuito comercial nacio-nal. Foram identificadas diferentesvias de canalização da amêijoa-japo-nesa até ao consumidor final, fora docircuito legal. Foi observada a vendadirecta efectuada por apanhadores a
mercados, restaurantes e cafés. Nãofoi possível quantificar este volumedevido ao elevado número transac-ções efectuadas a este nível", revelao estudo.
9 mil toneladas sem controloOutra forma ilegal de comerciali-zação identificada, acrescentam os
investigadores, "foi o transporte de
amêijoa-japonesa por apanhadoresem viaturas próprias e de lotes de
amêijoa com rótulos falsos, sendodifícil obter informação junto dos in-
tervenientes, sempre reticentes emrevelar detalhes". Também a GNRjá
detectou a falsa rotulagem, tendoinstaurado dois processos-crime adois intermediários.
Os autores do estudo apuraramainda que a amêijoa-japonesa é ven-dida pelos mariscadores aos interme-diários "entre os 8 cêntimos e 4 euros
por quilo" e "chega ao consumidor a
preços que podem variar entre os 8e os 12 euros/quilo". Autarcas e mili-tares da GNR dizem que em alturasde maior procura, como no Verãoou fins-de-semana, o preço mais alto
pode chegar aos 5 euros/quilo."Verificou-se que 90% das capturas
de amêijoa-japonesa são expedidaspara Espanha, podendo representar9000 toneladas/ano, sem controlo
por parte das autoridades, estandoas mais-valias deste recurso a serdeslocalizadas para o país vizinho",salientam.
Segundo o estudo, os impactosambientais "são diferenciados en-tre as diferentes artes de apanha debivalves e devem-se maioritariamen-te ao revolvimento dos sedimentosem zonas estuarinas". A apanha re-alizada pelos apanhadores apeados"aparenta ser a menos lesiva sobreo ecossistema (...) uma vez que asua intervenção restringe-se as áre-as intertidais e o tempo de trabalhoé limitado ao período e amplitudedas marés". Continua o estudo: "A
ganchorra rebocada por embarcaçãoé mais lesiva para o ecossistema porintervencionar uma maior profundi-dade do sedimento, devido à maiordimensão dos dentes, à extensãoda área da actuação e tempo médiode operação superior desta arte no
Após apanhar a amêijoa noSamouco,a GNR regressou aLisboa para a devolver ao rio noPoço do Bispoestuário." Esta arte de apanha temainda "consequências ao nível ben-tónico [comunidade de organismosque vive no substrato de ambientes
aquáticos], seja pela alteração da sua
biologia, suspensão de nutrientes e
consequente alterações na composi-ção química e biologia na estabilida-de do sedimento".
Perigo para a saúdeEm termos de recomendações, os
investigadores dizem ser "necessá-rio um plano estratégico de apoio à
gestão da apanha desta espécie noestuário do Tejo, evitando uma po-tencial exploração excessiva e conse-
quentemente a sua exaustão, comoverificados noutros ecossistemas" e"de uma urgente regularização detoda a cadeia-de-valor, visando adap-tar o esforço de pesca ao estado de
conservação dos bancos de amêijoa-japonesa".
"O circuito comercial é deficientee ineficiente face a grande expansãodesta espécie no estuário do Tejo e
requer a colaboração e participaçãode todos os intervenientes para a re-
gulamentação desta actividade eco-nómica face a uma nova realidade",recomendam no documento que foi
entregue no final do ano passado à
Direcção-Geral de Recursos Naturais,
Segurança e serviços Marítimos tute-lada pelo Ministério do Ambiente.
Os problemas graves para a saúde
pública, abundantemente referidosno estudo, é o que mais preocupa as
diversas entidades ouvidas pelo PÚ-
BLICO. Segundo explicou Paula Cha-
ínho, bióloga do MARÉ, o estuáriodo Tejo está, em termos de salubri-dade, classificado como área de ní-vel C. Esta classificação significa quepara estes bivalves serem vendidos e
consumidos teriam de ser colocadosem depuração prolongada em meionatural, numa zona de nível A, ondeos bivalves podem ser apanhados e
consumidos. Acontece que em Por-
tugal não está definida em termos de
regulamentação nenhuma área de
transposição para essa depuraçãoprolongada, não podendo assim le-var a cabo esse processo.
A amêijoa japonesa apreendida
pela GNR é assim lançada ao estuáriodo Tejo, podendo acabar por voltaràs mãos dos apanhadores ilegais.
Paula Chaínho não tem dúvidasde "que o consumo desta amêijoa só
poderia ser feito após um processa-mento industrial", ou seja, cozida.Consumida sem tratamento, acres-
centa, "pode constituir um graveproblema para a saúde pública",podendo causar doenças como in-
toxicação diarreica.A bióloga aconselha que os portu-
gueses consumam apenas amêijoa"devidamente ensacada e rotuladacom a autorização ao consumo" e
lembra que a venda de amêijoa emtabuleiros ou outros recipientes e
sem rótulos, como acontece em mui-tos restaurantes, "é proibida".