Fédon de Platão. Vida e Morte, Corpo e Alma

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Introdução: O texto a seguir pretende apresentar como Platão vincula a teoria das Ideias à hipótese da imortalidade da alma no diálogo Fédon. No percurso da referida obra, que narra o diálogo entre o personagem Sócrates e os discípulos pitagóricos Símias e Cebes, é possível destacar uma teia de argumentos e pressupostos que Platão articula e insere como voz aos seus personagens, principalmente a Sócrates, responsável por conduzir o movimento argumentativo da narrativa. Acerca desta teia de teorias, o presente trabalho se propõe a expor como cada hipótese ou teria deste conjunto sustenta uma outra nesta edificação argumentativa criada pelo escritor.

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Sobre o diálogo Fédon, de Platão e a relação entre as dicotomias de vida e morte, corpo e alma.

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Introduo:

O texto a seguir pretende apresentar como Plato vincula a teoria das Ideias hiptese da imortalidade da alma no dilogo Fdon. No percurso da referida obra, que narra o dilogo entre o personagem Scrates e os discpulos pitagricos Smias e Cebes, possvel destacar uma teia de argumentos e pressupostos que Plato articula e insere como voz aos seus personagens, principalmente a Scrates, responsvel por conduzir o movimento argumentativo da narrativa. Acerca desta teia de teorias, o presente trabalho se prope a expor como cada hiptese ou teria deste conjunto sustenta uma outra nesta edificao argumentativa criada pelo escritor. O contexto do dilogo e as relaes dicotmicas: Vida e morte, corpo e alma

O Fdon narra a visita feita a Scrates por alguns de seus discpulos, no ltimo dia de vida do filsofo, condenado morte pela sociedade ateniense. Centralizado neste fato (a morte de Scrates), o dilogo tem como tema predominante a relao entre vida e morte, e o modo como Scrates, contado pela letra de Plato, define estes estados do ser humano. Deste modo, querer expor o surgimento da teoria das Ideias no dilogo nos condiciona a antes abordar o tratamento da morte na obra. Para tanto, comeamos por descrever e comentar os fatos narrados no dilogo.

Certo da iminncia de sua morte, o Scrates descrito no Fdon aparenta tranquilidade e contentamento diante situao, o que deixa seus discpulos espantados. Como explicao, o filsofo diz que o temor pela morte no deve ser pertinente a um homem que busca o conhecimento, pois se o fim que este homem visa mesmo o conhecimento, aps a morte alcanaria ele melhores resultados. atravs desse argumento que podemos analisar a distino que Scrates estabelece entre corpo e alma. Como descreve uma antiga doutrina dos Mistrios citada por ele, o corpo um crcere para a alma, e assim, seguro de que a alma no perece com o corpo, Scrates v a morte como uma libertao. Ademais, como podemos ver no discurso do filsofo em 63c, h da parte dele mais um motivo para uma esperanosa expectativa quanto a seu destino aps a morte. Segundo a tradio citada por ele, h um destino aps a morte que muito mais compensador aos bons (como acreditava ele ser) que aos maus.

Segundo a anlise de Marcio Soares sobre a separao que a morte promove, para Scrates, h um elemento caracteristicamente humano presente somente na alma e no no corpo , e alma, portadora deste elemento, cabe a capacidade de perceber as coisas pelo raciocnio. Scrates justifica sua serenidade mostrando que, se morrer significa libertar a alma do corpo, um filsofo deve aceitar este fato sem receio algum, pois o objetivo que primou em vida, o de alcanar a sabedoria, agora poder ser realizado mais facilmente j que a alma passar a agir sem a influncia do corpo.Introduo teoria das Ideias: a necessidade de purificar o esprito

O argumento seguinte de Scrates, que trata o corpo como um obstculo para a sabedoria, j adentra aos primeiros territrios da teoria das Ideias no dilogo. Este movimento, situado por volta de (65b), atribui ao corpo a caracterstica de ludibriar a alma quando ela busca a verdade. Devido a isso, o homem que em vida se decide pela procura do conhecimento, deve evitar ao mximo o contato com o corpo e rejeitar certos prazeres que ele proporciona, ao passo que estes tm influncia sobre o processo de aprendizado do saber. A introduo teoria das Ideias no Fdon, est ento associada a esta rejeio da percepo sensvel, que no homem se forma atravs do corpo. Pois logo aps tratar o corpo como um obstculo para a sabedoria, Scrates lana o pressuposto da existncia de uma Realidade em si que no pode ser conhecida por meio dos sentidos, (o que por consequncia dedutiva nos faz pensar que no existe no mundo sensvel que percebemos), mas que existe em si mesma e somente pode ser encontrada atravs do pensamento puro. Scrates ainda atribui exemplos que fazem parte desta realidade, coisas como o Justo, o Belo e o Bem, que se podem reconhecer apenas de modo inteligvel.

A condio que impe alma uma necessidade de emparelhar-se a tal realidade que existe em si mesma (o que representaria o pensamento puro), para que assim alcance a sabedoria, d ao argumento de Scrates a impresso de que a morte, vista como o momento em que a alma se liberta do corpo, um processo obrigatrio para que possamos adquirir o conhecimento. Contudo, esta interpretao pode ser evitada se destinarmos a luz de nossa anlise a um ponto seguinte do texto, onde novamente apoiado sobre a antiga tradio, Scrates fala sobre a purificao do esprito , exerccio contnuo que treina afastar a alma do corpo e aprender a concentr-la em si mesma. Seria esta purificao do esprito, o exerccio do filsofo. Em suma, aquele que visa alcanar a sabedoria, mesmo que preso ao corpo deve se esforar por uma investigao racional que rejeite as influncias sensveis. A Teoria dos contrrios e a gerao recproca

Aps ter dividido a alma do corpo, e ter postulado que a sabedoria habita a uma realidade que no se pode alcanar atravs das relaes sensveis, o argumento socrtico parece encaminhar-se necessariamente para um determinado limite: Se a sabedoria pode ser alcanada somente pelo esprito puro, e o estgio mais avanado dessa pureza encontra-se aps a morte, quando a alma liberta-se do corpo, seria necessrio provar ento que a alma no perece junto ao corpo aps o fim da vida. O primeiro a solicitar uma prova para a teoria da imortalidade da alma Cebes em (70a-b) quando pede que Scrates seja persuasivo e lhe prove que a alma existe para alm da morte e mantm, de alguma forma, o uso das suas faculdades e entendimento.

O primeiro argumento de Scrates em busca da prova da imortalidade da alma a teoria dos contrrios (70c-72e), pressuposto que a princpio se apia tambm na antiga doutrina a que Scrates se refere, e traz tona da tradio o mito que conta sobre as almas dos mortos. Do modo como Scrates conta o mito, as almas que partem deste mundo continuam a existir no Hades, e quando regressam, originam novas vidas, o que caracteriza que os vivos nascem dos mortos. E como reforo exposio mtica, Scrates introduz o pensamento de Herclito sua teoria (a noo heraclitiana assenta o mundo na relao entre opostos), e a partir dela descreve a existncia de uma gerao recproca entre os opostos. Trata-se, afinal, de um princpio que mostra como um oposto surge do outro e, em exemplos, relaciona o forte e o fraco, o veloz e o lento, ou no caso proposto, o estar vivo e o estar morto. A gerao recproca trata-se, como diz Bento Silva Santos em seu estudo sobre a imortalidade da alma em Plato, de um duplo processo que, se do estar vivo se caminha ao estar morto, no sentido oposto deve partir do estar morto e assim reviver, ou renascer.

A Teoria da Reminiscncia

No Fdon, a teoria da Reminiscncia, est postada sobre o alicerce de outras duas teorias: a das Ideias e a da Imortalidade da alma. Logo no primeiro trecho onde Plato insere o tema da reminiscncia no dilogo, dito atravs de Cebes, est presente o vnculo entre as teorias. Aps asseverar a teoria dos contrrios, e a sobrevivncia das almas dos que morreram (como conta o mito), Cebes diz:

O que alis, Scrates [Cebes se refere s teorias sobre a imortalidade da alma], no vem seno reforar essa conhecida teoria que trazes constantemente baila, ou seja, que o aprender no seno um recordar; segundo ela, indispensvel que tenhamos adquirido, em tempo anterior ao nosso nascimento, os conhecimentos que atualmente recordamos. Ora, tal no seria possvel se a nossa alma no existisse j algures, antes de encarnar nesta forma humana. De modo que, at sob este prisma, d idia que a alma algo de imortal.

O excerto acima mostra o vnculo direto entre a Reminiscncia e a imortalidade da alma, e ainda alm, nos permite interpretar que, se neste tempo anterior ao nosso nascimento fomos capazes de adquirir os conhecimentos que a Reminiscncia nos faz recordar, e se estes conhecimentos no se devem apreenso sensvel, h de se concluir que neste estado pr-nascimento conhecemos a realidade em si das coisas. E isso atravs de um aprendizado imediato absorvido por nossa alma, quando livre do convvio com o corpo.

Recordar por semelhana ou por dessemelhanaA teoria da reminiscncia, como aparece no Fdon, consiste em mostrar que o processo de aprendizado do homem no mais que recordar. Recordar aquilo que, como exposto anteriormente neste trabalho, foi conhecido em um estado pura da alma, prvio ao nascimento do corpo. Porm, entre os objetos conhecidos e recordados h uma distino, que exposta a partir de (73d) pelo argumento de Scrates; o exemplo da imagem semelhante ao modelo oposta outra, dessemelhante a seu referente, o que leva David Ross dizer em sua anlise que a associao entre a imagem sensvel e o modelo inteligvel pode se dar por similaridade ou contiguidade. Quanto ao primeiro termo, refere-se a uma cpia que por sua semelhana com o modelo no permite record-lo. o caso do exemplo dito por Scrates, que compara uma pintura de Smias ao prprio Smias. (73e). Por outro lado, a contiguidade, como diz Ross, nos transporta tambm de uma cpia ao seu modelo de referncia, mas neste caso, no h a semelhana fsica entre os objetos, mas sim, a semelhana inteligvel. Este o caso do exemplo da lira e seu dono (73d-e). Como diz Scrates, um amante pode reconhecer no objeto de seu amado a imagem do prprio ser humano mesmo que, obviamente, um ser humano em nada se assemelhe a uma lira.Quando Scrates diz que a reminiscncia nos permite recordar, atravs de um objeto sensvel, outro objeto que semelhante ao primeiro, no quer dizer que o objeto recordado seja tambm algo que se percebe pelos sentidos. Como diz seu exemplo em (74a): A reminiscncia no significa que ao vermos uma pedra nos recordaremos de outra pedra. O que na verdade seu discurso prope que a reminiscncia nos faz recordar um objeto pertencente a uma realidade que distinta e est alm das realidades sensveis; ela nos faz recordar aquilo que Igual em si mesmo, ou que faz parte da Realidade em Si.A Realidade em si sustenta o argumento de que h um modelo para os objetos que contemplamos na realidade sensorial. Traado este quadro, a teoria da reminiscncia vem dizer que, para uma coisa servir de modelo para outra, a primeira j deve ser conhecida e, se aceitarmos que recebemos os sentidos quando nasce o nosso corpo, ou com outras palavras, que eles surgem quando encarnamos, podemos concluir que o conhecimento da Realidade em si provm de um momento anterior a este nascimento.Concluso

Se explorarmos ainda mais essa teia de pressupostos e argumentos do dilogo platnico, chegaremos ao seguinte ponto: Se a realidade em si sustenta a teoria de um conhecimento anterior ao nascimento do corpo, sustenta tambm a imortalidade da alma, pois ao interpretarmos o que diz Cebes em 73a, poderamos concluir que: no seria possvel adquirirmos o conhecimento dos modelos de referncia para os objetos sensveis, se nossas almas no existissem anteriormente, em algum lugar fora do corpo. Desta forma, a imortalidade da alma garante que a alma exista sem estar presa ao corpo, e por sua vez, sem precisar que o corpo esteja vivo. REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS: PLATO: Fdon. Traduo de Maria Teresa Schiappa de Azevedo. Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 2000.ROSS, David: A teoria das Ideias de Plato. Traduo organizada por Marcus Reis. Rio de Janeiro, UFRJ, 2008.SOARES, Marcio: Construo e crtica da Teoria das Idias a filosofia de Plato: dos dilogos intermedirios primeira parte do Parmnides. Porto Alegre, PUCRS, 2010, 259 p. Tese (doutorado) Programa de Ps-Graduao em Filosofia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, PUCRS, Porto Alegre, 2010. Disponvel em: Acesso em: 08 dez. 2010SANTOS, BENTO SILVA: A imortalidade da alma no Fdon de Plato: Coerncia e legitimidade do argumento final (102a-107b). Porto Alegre, EDIPUCRS, 1999, 121 p.; (Coleo Filosofia; n.89). Disponvel em: Acesso em 08 dez. 2010Acordou com a imagem do sonho que acabara de ter. Sentia-se leve e transtornado. estranho e pouco explicvel a sensao de um sonho to bonito. Daqueles em que, quando acordamos, preferamos ter continuado a dormir. A realidade, ou isso a que se atribui esse nome, no tem a mesma emoo. - Eu no sei porque voc me deixou. Mas eu no te deixei, voc no se lembra? A deciso foi sua. E agora? Fica aqui. Por que acordou? Eu fico! Estou aqui. Est vendo? Talvez se eu fechar os olhos bem rpido... tarde demais. Em um instante desmorona um sonho. Em um minuto seu dia j parecia morto.

Durante todo o dia sentiu o prazer estranho Como objeto de estudo para essa anlise utilizou-se o dilogo Fdon presente na edio traduzida por Maria Teresa Schiappa de Azevedo, publicada pela editora da Universidade de Braslia no ano de 2000.

Fdon, Plato, (62b). Neste momento se estabelece no texto a primeira articulao que desenvolve a dicotomia entre corpo e alma, tema que ser recorrente no dilogo.

(SOARES, 2010, p. 21)

Cf. Fdon, Plato, (65c)

Fdon, Plato, (65d-e)

Idem, (67c-d)

Cf. nota 28 de Maria Teresa Schiappa de Azevedo na edio utilizada do Fdon, (p. 125).

(SANTOS, 1999, p.58)

Fdon, Plato, (72e-73a)

(ROSS, David, 2008, p. 25)