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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO MARCO DAVI DE OLIVEIRA FÉ E TRANSFORNAÇÃO SOCIAL: A INFLUÊNCIA DA RELIGIÃO NO MOVIMENTO DE MORADIA NA FAVELA DE HELIÓPOLIS 1970-1993 SÃO BERNARDO DO CAMPO 2010

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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE HUMANIDADES E DIREITO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

MARCO DAVI DE OLIVEIRA

FÉ E TRANSFORNAÇÃO SOCIAL: A INFLUÊNCIA DA

RELIGIÃO NO MOVIMENTO DE MORADIA NA FAVELA

DE HELIÓPOLIS —1970-1993

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2010

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MARCO DAVI DE OLIVEIRA

FÉ E TRANSFORMAÇÃO SOCIAL: A INFLUÊNCIA DA

RELIGIÃO NO MOVIMENTO DE MORADIA NA FAVELA

DE HELIÓPOLIS — 1970-1993

Dissertação em cumprimento às

exigências do programa de pós-

graduação em Ciências da Religião

para obtenção do grau de mestre.

Orientador: Prof. Lauri Emilio Wirth

SÃO BERNARDO DO CAMPO

2010

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A dissertação de mestrado sob o título ―Fé e Transformação social: A influência da

religião no movimento de moradia na favela de Heliópolis 1970 - 1993‖, elaborada

por Marco Davi de Oliveira foi apresentada e aprovada em 13 de setembro de 2010,

perante banca examinadora composta pelos professores Doutores Lauri Emílio Wirth

(Presidente/UMESP), Jung Mo Sung (Titular/UMESP) e José Oscar Beozzo

(Titular/ITESP).

__________________________________________

Prof. Dr. Lauri Emílio Wirth

Orientador/a e Presidente da Banca Examinadora

__________________________________________

Prof. Dr. Jung Mo Sung

Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião

Área de Concentração: Religião Sociedade e Cultura

Linha de Pesquisa: Religião e dinâmicas sócio-culturais

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Ao meu pai, Paulo Esmério de Oliveira (em memória) por

ter me ensinado o valor da oralidade ao contar suas

histórias e cantar suas cantigas.

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Agradecimentos

Agradeço primeiramente às pessoas entrevistadas. Sem essa

colaboração seria impossível a realização desta dissertação de mestrado. Devo

a elas todo o meu respeito e admiração.

Ao meu orientador Lauri Emílio Wirth pela atenção, orientações e críticas

no tempo certo e da forma adequada. Por sua amizade que o fez acreditar e

me incentivar quando eu mesmo já não acreditava na possibilidade de terminar

este trabalho. Por dizer sim quando eu dizia um não bem contundente.

Agradeço às conversas amigáveis além daquelas direcionadas à pesquisa, ao

apoio e ao profissionalismo.

A Valeria, minha esposa, pela graça comigo, paciência nos tempos mais

difíceis e apoio dado nas etapas mais críticas. A você todo o meu carinho.

Você é o prumo de minha vida.

Aos meus filhos Marco Davi Filho e Lethícia Mariáh, por serem minhas

esperanças e razões de minha existência.

À minha mãe e meus irmãos por se alegrarem por minha caminhada.

Ao pastor Jonas Neves de Souza, líder da Igreja Batista do Povo, por ter

acreditado no meu sonho.

Ao Jessé Nákel, pelo ombro amigo nos dias maus e a amizade em todo

o tempo.

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À Vilma Schatzer, pela companhia em todo o processo de integralização

em teologia e mestrado. Pela amizade e força nos momentos de desânimo.

À amiga Madalena Polzer, pela ajuda e por compartilhar da vida.

Ao amigo Gil, pela ajuda nas gravações das entrevistas.

À amiga Cláudia Sales, pela ajuda com os ajustes metodológicos.

Agradeço a oportunidade dada pelo CNPq que concedeu a bolsa de

estudos, pois, sem ela, seria impossível a realização deste trabalho.

Aos meus professores do programa de pós-graduação em Ciências da

Religião da UMESP por terem contribuído com ideias e novas perspectivas de

conhecimento. E a todos os funcionários (as) da Universidade Metodista de

São Paulo pela atenção e dedicação.

Agradeço à Banca examinadora formada pelo Dr. José Oscar Beozzo,

Dr. Jung Mo Sung e Dr. Lauri Emílio Wirth.

Sobretudo, a Deus, Senhor de toda a sabedoria.

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OLIVEIRA, Marco Davi. Fé e Transformação social: A influência da religião no

movimento de moradia na favela de Heliópolis — 1970-1993. São Bernardo do

Campo, 2010. (Mestrado em Ciências da Religião). Universidade Metodista de

São Paulo- SP

Resumo

A pesquisa se propõe a refletir sobre a influência da fé na transformação social

da favela de Heliópolis. Focada em algumas ações representativas da luta por

moradia, no período de 1970 a 1993, e na conquista de melhores condições de

vida na favela e na cidade de São Paulo, a pesquisa observa como as práticas

religiosas servem ou não de motivação para a transformação social. A

pesquisa pergunta pela influência da fé no engajamento de indivíduos

envolvidos ativamente no movimento de moradia na favela e como essa fé se

evidencia em meio à luta por melhores condições de vida.

Palavra-chave: práticas religiosas, fé, táticas, trajetórias, favela

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OLIVEIRA, Marco Davi. Faith the social transformation: The influence of religion

in the housing movement in the shanty town of Heliópolis – 1970-1993. São

Bernardo do Campo, 2010 (Mestrado em Ciências da Religião). Universidade

Metodista de São Paulo - SP

Abstract

This research aims to reflect on the influence of faith for the social

transformation in Heliopolis shanty town through religious practices. Focused on

some representative actions in the fight for housing in the 1970-1993 period and

better life conditions in the shanty town as well as in the city of São Paulo, the

research observes whether the religious practices can be considered a

motivator for the social transformation or not. The research wants to question

about the influence of faith for the engagement of the people actively involved in

the housing movement in the shanty town and how this faith is shown amidst

the fight for better life conditions.

Keywords: religious practices, faith, tactics, social trajectories, shanty

tow

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Lista de siglas

PMSP - Prefeitura Municipal de São Paulo

IAPAS- Instituto de Administração e Previdência e Assistência Social

COHAB - Companhia Metropolitana de Habitação

SAMH - Sociedade dos Amigos Moradores de Heliópolis

CM- Comissão de Moradores

INASA - Indústria Nacional de Artefatos

SENAI - Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial

SUDEPE - Superintendência do Desenvolvimento da Pesca

MDF - Movimento em Defesa dos Favelados

MUF - Movimento Unificado de Favelas

MLCC - Movimento de Luta contra a Carestia

MLC - Movimento dos Loteamentos Clandestinos

USP - Universidade de São Paulo

IEQ - Igreja do Evangelho Quadrangular

UNAS - União de Núcleos Associações e Sociedade dos Moradores de

Heliópolis e São João Clímaco

TL – Teologia da Libertação

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Lista de Mapas das Trajetórias no Espaço

Antonia Cleide Alves 58

João Mirando Neto 65

Genésia Ferreira da Silva Miranda 72

João Isaias 78

Delmiro Monteiro Farias 83

Miguel Borges Leal 91

Pr. Carlos Caetano 96

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO, 11

CAPÍTULO 1 — A HISTÓRIA VEM DE DENTRO, 22

1.1 Era uma grande necessidade, 23

1.2 Comprei um barraco sem saber que existia grilagem, 29

1.3 Ninguém ia preso. Só nós, 35

1.4 A especulação imobiliária: externa e interna, 41

CAPÍTULO 2 — MEMÓRIAS, TRAJETÓRIAS E MIGRAÇÃO, 48

2.1 Memória e favela, 49

2.2 Memória e migração, 55

2.3 Memória e trajetória, 57

CAPÍTULO 3 — O COTIDIANO DA VIDA ILUMINADA PELA FÉ, 104

3.1 O sentido dessa cruz é a fé política, 105

3.2 Até nós tinha um canto que dizia, 108

3.3 A Bíblia é a história sagrada. Nós se baseava nela, 110

3.4 E aí foi engraçado que nós dramatizamos, 114

3.5 Era esse Deus que se manifestava aqui, 116

3.6 As ambiguidades da igreja: Se chegasse a entrar numa área dela, ela mandava tirar, 121

CONSIDERAÇÕES FINAIS, 128

REFERÊNCIAS, 136

ANEXO 1 — HISTÓRIAS DE VIDA, 143

ANEXO 2 — ENTREVISTA, 334

ANEXO 3 — TERMOS DE CONSENTIMENTO LIVRE, 353

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1

Introdução

A pesquisa se propõe a refletir sobre a influência da fé na transformação

social na favela de Heliópolis. Focado em algumas ações representativas da

luta por moradia, no período de 1970 a 1993, e na conquista de melhores

condições de vida na favela1 de Heliópolis, na cidade de São Paulo, a pesquisa

observa como as práticas religiosas servem ou não de motivador para a

transformação social. Portanto, a pesquisa pergunta pela influência da fé no

engajamento de indivíduos envolvidos ativamente no movimento de moradia na

favela.

Esta pesquisa justifica-se pela influência, especialmente, da Teologia da

Libertação, nesse período tão conflitante da cidade de São Paulo, marcado

pela transição da ditadura para os governos civis, o que despertava a

esperança por tempos melhores também na população mais pobre e excluída

do país.

Portanto, a suspeita que orienta a presente investigação é a de que a fé

estava, de alguma maneira, imbricada na vida social de indivíduos que lutavam

1 De acordo com o IBGE, favela é um: ―Aglomerado subnormal é o conjunto constituído por um

mínimo de 51 domicílios, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de

propriedade alheia (pública ou particular), dispostos, em geral, de forma desordenada e densa,

e carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais". (INSTITUTO BRASILEIRO DE

GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – http://www.ibge.gov.br) visitado em 05/05/2010

Utilizo a expressão favela e não comunidade como é usada pelos moradores, porque a palavra

favela era mais usada nos períodos de 1970 a 1993. Período em que delimitamos a pesquisa.

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por moradia, naquele período. A pesquisa pretende testar tal suspeita em um

contexto específico, a favela de Heliópolis, mais precisamente, e também

pretende averiguar se essa suspeita se sustenta a partir das memórias dos

líderes do movimento de moradia, captada a partir de depoimentos de sujeitos

representativos.

Mais do que o lugar religioso institucionalizado, a pesquisa interessa-se

pela fé na vida cotidiana. Ou seja, pergunta como a história de vida dos

habitantes da favela é moldada, fundamentada ou perturbada pelo seu

imaginário de fé. A partir das observações empíricas, por intermédio da

observação participante e da leitura de referenciais teóricos em diversas áreas

do conhecimento, observa-se o quanto as práticas religiosas são elaborados e

reelaborados a partir de um lugar instituído e de como a fé ou tipos de fé são

reelaboradas e re-significadas no cotidiano dos mais pobres. A pesquisa,

portanto, interessa-se por verificar, na medida do possível, como a fé se

relaciona com processos de transformação social.

Heliópolis é uma comunidade que, durante alguns anos, foi tratada como

um dos maiores bolsões de pobreza da cidade de São Paulo. Oficialmente, a

área de Heliópolis tem a influência do poder público municipal que transferiu os

moradores de uma determinada área para morarem em alojamentos

provisórios.

Muitas das favelas existentes no Município de São Paulo tiveram início pela ação do próprio Poder Público Municipal que — visando a liberar determinadas áreas ocupadas por núcleos carentes para a construção de obras públicas, principalmente viárias — transferia os habitantes para alojamentos provisórios, geralmente localizados em áreas pertencentes ao Estado, ao Município, ou a órgãos federais. (SAMPAIO, 1991, p.29)

No caso de Heliópolis, o poder público de fato participou na construção

de parte do lugar; entretanto, a partir dessa ação, a favela foi crescendo

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mediante as ocupações posteriores após a construção do Hospital de

Heliópolis, em 1969. Esse processo vem acompanhado da ―grilagem‖ da terra

em que os grileiros mantinham seu ―poder paralelo‖ impondo medo sobre os

moradores.

A área onde se localiza Heliópolis pertencia ao IAPAS (Instituto de Administração e Previdência e Assistência Social) que construiu o hospital de Heliópolis, inaugurado em abril de 1969. Após sua inauguração, os arredores foram sendo ocupados por muitos operários que haviam trabalhado na construção do Hospital, o que caracteriza um segundo momento de ocupação da área. Concomitantemente, iniciava-se um processo de grilagem da terra nas proximidades da Estrada das Lágrimas, uma das principais via de acesso da área. (JUNIOR, 2006, p.75)

As décadas de 1970 e 1980 foram fecundas no surgimento de

movimentos populares que se organizaram ao longo do tempo. A cada dia,

várias favelas nasciam das ações desses movimentos. Também eram as

décadas do auge do êxodo rural, principalmente do nordeste para a cidade de

São Paulo.

O avanço do processo de urbanização no país, entretanto, não atingiu todas as regiões de forma homogênea, de modo que os contrates socioeconômicos prevalecentes no território nacional refletiram-se no âmbito da urbanização. Em 1960, por exemplo, quando a média nacional apontava 45% da sua população morando em áreas urbanas, somente a região Sudeste registrava uma população superior a 50%, ao passo que, no Nordeste, essa participação chegava apenas a 34%. A acentuada urbanização que se processava contribuiu para que, no ano de 1980, em todas as grandes regiões, a população residente em áreas urbanas superasse 50%. No Sudeste, entretanto, o grau de urbanização já havia atingido 80% (BÓGUS & WANDELEY, 1992, p.16)

Isto proporcionou que cerca de 90% ou mais da população residente em

Heliópolis seja de nordestinos ou de seus descendentes. A história de

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Heliópolis se confunde com a trajetória de vida dessa população carente,

principalmente, o migrante. Pois,

a história é marcada por diversas ocorrências envolvendo grileiros, invasões, mutirões, informalidade, lutas contra a polícia, mas também conquistas por instalação de infraestrutura e pela posse da terra. A comunidade, desde 1971, foi buscar alternativas e soluções por intermédio de suas ações individuais e coletivas (SANDEVILLE, 2010, p.3-4).

Essas práticas que se realizavam no cotidiano também tinham a fé do

povo como base para a plataforma da transformação social do lugar.

A favela de Heliópolis, antes considerada uma gleba única, foi

subdividida em 14 glebas que são identificadas por letras do alfabeto, indo da

letra ―A‖ até a letra ―N‖. Essa subdivisão partiu da prefeitura Municipal de São

Paulo; os moradores, entretanto, por intermédio de suas próprias táticas e

práticas reelaboraram essa subdivisão e as chamam de núcleos, subdividindo

a favela em dez núcleos espalhados pela área.

Desde a década de 1930, a cidade de São Paulo se tornou a metrópole

mais influente do país no setor industrial e econômico. Mas, na década de

1970, a cidade experimentou grande crescimento econômico atraindo

populações de vários estados do país. Nessa fase:

a urbanização da cidade de São Paulo se insere no contexto de transferência de recursos do setor agroexportador para o setor industrial, uma mudança no paradigma econômico; e a cidade recebe uma parcela desses capitais, incentivando a industrialização e tornando-se um pólo de atração para grandes contingentes populacionais. (JUNIOR, 2006, p.56)

Essa mudança paradigmática proporcionou crescimento de bolsões de

pobreza na cidade e o surgimento de favelas que eram preenchidas por

indivíduos originários das regiões rurais de todo o país. O processo de

migração, alimentado pelo poder político e econômico (BÓGUS & WANDELEY,

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1992, p.30) conduziu vários indivíduos para os cantos da cidade constituindo

uma periferia empobrecida

Surgem os movimentos em busca de moradia que têm apoio de alguns

grupos sociais, como sindicatos, igrejas, organizações comunitárias, além de

partidos políticos e agentes de diversas instituições governamentais.

A participação da igreja católica se torna emblemática, em particular, por

intermédio do movimento das pastorais urbanas, como a pastoral da favela. De

São Paulo, organizado pelo então arcebispo Dom Paulo Evaristo Arns e seus

assessores, como Dom Antonio Celso Queiroz, esse movimento social ganhou

força e se expandiu por todo o Brasil.

No primeiro capítulo, pretendemos relatar o processo de ocupação da

favela a partir das memórias dos seus atores anônimos, mostrando as

motivações que os mobilizaram nessa luta e os inúmeros obstáculos que

tiveram de enfrentar. Quais foram as necessidades reais que enfrentaram

antes de chegar à favela? O que os motivou a entrar em uma área quase erma

como a de Heliópolis? Quais as táticas do cotidiano que precisaram criar para a

manutenção dos espaços alcançados? Quais foram os maiores obstáculos que

experimentaram quando chegaram à favela de Heliópolis?

No segundo capítulo, o interesse da pesquisa se direciona para as

trajetórias de vida dos indivíduos que representam a história da favela de

Heliópolis. A fim de deixar mais clara a exposição dos diferentes itinerários

recolhidos, optou-se pela utilização de bases cartográficas. Contou-se com a

colaboração de Beatriz Melo, participante do Grupo de Estudo ―Memória e

Sociedade‖, coordenado pela Dra. Maria A. M. Silva, e mestre em Geografia

(Unesp/Presidente Prudente) para a confecção dos mapas apresentados no

texto. O objetivo dos mapas foi de ilustrar a correlação entre os itinerários

profissionais e os deslocamentos geográficos fora e dentro da cidade de São

Paulo. Para cada uma das entrevistadas um mapa da trajetória no espaço foi

construído.

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Mas não seria possível traçar essas trajetórias de vida se os indivíduos

entrevistados não se dispusessem a recordar o passado, mesmo que, para

alguns, isso fosse um tanto quanto doloroso. As histórias de vida e a história da

formação de uma favela estão enraizadas na memória que ―retrocede ao

passado até certo limite, mais ou menos longínquo conforme pertença a esse

ou aquele grupo‖ (HALBWACHS, 2006, p.133). A memória de um grupo se

torna evidente por intermédio das lembranças individuais e das transformações

do ambiente. Maurice Halbwachs (2006, p.69) diz:

cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva [...] a sucessão de lembranças, mesmo as mais pessoais, sempre se explica pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos ambientes coletivos, ou seja, em definitivo, pelas transformações desses ambientes, cada um tomado em separado e em seu conjunto.

Ao conhecer suas histórias de vida e seus relatos, esta pesquisa se

propõe a dar voz àqueles que são esquecidos da história. Também se propõe a

revelar que as práticas religiosas servem como motivação para a

transformação social e a construção de cidadania entre os mais pobres. Visa a

investigar a participação precisa dos mais fracos e dos pobres na formação da

cidade a partir de um lugar — a favela de Heliópolis.

Pretendemos identificar no terceiro capítulo que a fé é tática para a

construção de uma abrangência social, política e cultural capaz de encorajar os

pobres à ação diante dos sistemas excludentes. Ao final desta pesquisa,

teremos a compreensão de que os espaços religiosos podem se transformar

em focos de resistência e de conscientização dos pobres e dos mais fracos na

sociedade.

A pesquisa privilegia aqueles que são esquecidos na história

considerada oficial pelas instituições. Pretende, também, contribuir com os

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estudos acadêmicos pelo seu aspecto metodológico, utilizando histórias e

relatos de vida.

Por meio de visitas constantes, da observação participante e,

principalmente, da relação pesquisador/colaboradores (as), utilizou-se a

metodologia que mais se adequava à possibilidade de dar voz aos excluídos

socialmente. Para tanto, na presente pesquisa, valemo-nos da História Oral,

com uma metodologia que utiliza materiais eletrônicos de gravação,

transcrição, análise e manutenção de depoimentos ou testemunhos para dar

voz preferencialmente aos que foram ―silenciados‖ da história oficial no

processo de construção da favela de Heliópolis. Vários elementos e

procedimentos compõem esse método. Alguns dos procedimentos usados

foram: história oral de vida e relato oral de vida. Segundo Lang (1997, p. 34-35)

―história de vida é o relato de um narrador sobre sua existência através do

tempo [...], o relato oral de vida, [...] solicitado ao narrador que aborde, de modo

mais especial, determinados aspectos de sua vida‖.

A história oral de vida foi importante para avaliar as motivações que

fizeram os entrevistados (as) ir para a favela de Heliópolis e lá permanecer

mesmo diante de tantas necessidades e enfrentamentos. Por que

permaneceram buscando moradias e realizando ocupações depois de já terem

alcançado uma para sua família? Essa resposta serve para levantar questões

da razão por que não retornaram após terem conseguido situação melhor

economicamente. Contribuiu para que compreendêssemos as táticas na

criação de espaços que determinavam lugares.

Esse método também permitiu o envolvimento do pesquisador com os

entrevistados (as) ao possibilitar o relacionamento com eles nos vários espaços

em que a UNAS2 atua e também a possibilidade, após as entrevistas, de

2 UNAS – União de Núcleos Associação e Sociedades dos Moradores de Heliópolis e São João

Clímaco. Fundada em 20 de janeiro de1990. Localizada na Rua da Mina, 38, na favela de

Heliópolis. Tem como missão: promover a cidadania, a melhoria da qualidade de vida e o

desenvolvimento integral da comunidade.

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conversar fraternalmente com eles e descobrir outras situações que não

haviam sido esboçadas no período das entrevistas.

Importante notar que, em História Oral, o pesquisador se torna um ator

social importante na relação com o entrevistado que não é o objeto de estudo,

mas um colaborador da pesquisa. Portanto, ao pesquisador resta o

relacionamento ético com o entrevistado em uma perspectiva de cordialidade.

Terá ele a necessidade de, além de entrevistar, colher e transcrever os

documentos, manter uma relação tal com os entrevistados a ponto de devolver

à comunidade ou aos colaboradores o resultado da pesquisa.

Alguns autores são importantes para se entender a dinâmica dessa

metodologia na pesquisa que realizamos. Maurice HALBWACHS nos mostra

que a história sofre interferências coletivas da vida, de grupos, das lembranças

individuais. Diz que todo o depoimento de testemunhas só tem razão de ser na

coletividade, na relação com um grupo social. A memória individual é

influenciada pelo grupo, pelo coletivo, bem como o grupo é influenciado pelas

memórias individuais.

O mesmo autor reflete sobre o tempo e a memória, mostrando que a

memória coletiva não deixa o tempo ser dividido em partes, mas o utiliza com

uma mesma duração. A memória mantém o espaço que faz com que o grupo

coletivamente reflita sobre suas ações. Todas as ações do grupo têm um lugar

espacial, guardado pela memória coletiva.

Outra categoria de análise que nos reportamos na pesquisa são as

categorias de Michel de Certeau sobre tática e estratégias, lugar/espaço.

Segundo Certeau (2007, p.100), a tática

não tem por lugar senão o do outro. E, por isso, deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha; [...] é movimento ‗dentro do campo de visão do inimigo‘ [...] e no espaço por ele controlado; [...] aproveita as ‗ocasiões‘ e delas depende, sem base para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas.

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Segundo o referido autor, existem estratégias que determinam o lugar. Essas estratégias são:

O cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e de ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças; [...] toda racionalização ―estratégica‖ procura em primeiro lugar distinguir de um ―ambiente‖ um ―próprio‖, isto é, o lugar do poder e do querer próprios. (CERTEAU, 2007, p.99)

Os colaboradores foram escolhidos pela participação ativa na

construção da favela de Heliópolis, desde a antiga comissão de moradores na

década de 1970 até a formação da UNAS. Entrevistei também o bispo Antonio

Celso Queirós que colaborou muito na luta por moradia na favela. Pude

entrevistar seis pessoas que fazem parte da liderança da UNAS. Não os

escolhi por serem idosos, até porque entrevistei pessoas com menos de 60

anos, mas porque participaram da história da favela e constituem a própria

história de Heliópolis. Participaram de vários períodos da luta por moradia

nessa favela, alguns lutando desde o início na Comissão de Moradores.

Outros, em processos posteriores, lutaram para garantir a permanência dos

moradores na localidade e para reivindicar as condições básicas para viabilizar

a vida no local. Demonstram fé. Mesmo que essa fé seja na possibilidade de

alcançar êxito com a moradia. Envolveram-se com práticas religiosas na luta

por moradia, participando, de alguma maneira, na construção simbólica da

favela. Tiveram histórias de migração similares e chegaram entre o período de

1970 a 1993 na favela de Heliópolis. Poderia escolher outras pessoas;

entretanto, defini essas pessoas por ver nelas, além da disponibilidade, desejo

de expandir a história da favela de Heliópolis. Algo que chama atenção é o fato

de que todos tiveram algum tipo de formação religiosa, por intermédio de uma

linha mais progressista da igreja católica, e aqueles que não são católicos

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também foram orientados pela ala mais libertária por meio da pastoral da

favela. Devo ressaltar que o desejo dessa pesquisa não é relatar as ações da

igreja católica, mas refletir sobre a fé como influência para a transformação na

favela de Heliópolis.

Durante as entrevistas, tive um grande apoio da diretoria da UNAS.

Desde a presidente, Antônia Cleide Alves, até as pessoas da recepção ou do

cafezinho que sempre tomava por lá. Também os moradores da favela nas

proximidades da sede da UNAS sempre demonstraram total respeito e

amizade para comigo.

Percebi — nos entrevistados e no primeiro momento que os encontrava

— certa necessidade de demarcarem o espaço. Isso se dava nas formas de

me avaliarem durante os primeiros contatos. Alguns até demonstraram não ter

tempo para que eu pudesse ser atendido. É bem verdade que as atividades na

UNAS são diárias e constantes, mas notei certa demarcação de território, o que

é normal em uma favela que detém tamanha história e conhecimento.

Enfrentei dificuldades nas primeiras entrevistas porque as pessoas que

eu desejava entrevistar sempre estavam muito atarefadas. Algumas que já

haviam marcado comigo desmarcaram depois da minha chegada ao local. Com

a confiança adquirida, remarcavam. Passaram a ter interesse na conversa. Isso

aconteceu com o João Isaías que teve um problema urgente para resolver. Ou

com Antônia Cleide Alves que começou a entrevista me informando que não

teria tempo para conversar muito, pois teria uma reunião 30 minutos após a

minha chegada. Ainda bem que ele estava com vontade de falar sobre a sua

história, pois a entrevista durou precisamente 2h47min. Quase três horas de

boa conversa, cheia de esclarecimentos.

O que notei em todos foi uma vontade imensa de contar sua história de

vida por saberem que elas contribuiriam para a minha pesquisa e outras que

viriam posteriormente. Mas, nem sempre as instalações para as gravações

eram boas, pois as salas são abertas e não se tinha total privacidade o que

dificultou um pouco as gravações e as entrevistas em si.

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Foi muito importante ouvir as pessoas que são partes fundamentais da

história da favela de Heliópolis. Chamo favela por gostar da expressão e ter a

ideia que assim estou quebrando os preconceitos que são atribuídos a uma

palavra tão simpática.

Entre as entrevistas que realizei, não posso deixar de lembrar a do Dom

Antonio Celso Queirós que foi realizada fora da favela de Heliópolis. O que me

chamou a atenção foi vê-lo se agraciando com as lembranças do tempo em

que estava na arquidiocese de São Paulo como assessor de Dom Paulo

Evaristo Arns. Ao terminar a entrevista e agradecer-lhe, ele logo retrucou e

disse: “Eu que agradeço. Você me fez lembrar dos tempos mais gostosos de

minha vida‖.

Tive a colaboração do cinegrafista e fotógrafo da UNAS, Gildivan Félix

Bento, meu querido amigo Gil que, com profissionalismo, filmou em DVD todas

as entrevistas o que facilitou muito para o processo de transcrição.

Algumas dificuldades pessoais foram determinantes para que eu não

conseguisse um maior número de entrevistas. Entretanto, salvo uns dois ou

três que tiveram dificuldades de tempo ou eu mesmo não ter conseguido o

tempo necessário, os interlocutores que, na verdade, são colaboradores desta

pesquisa, serviram de bom grado para colaborar com suas histórias de

superação, vontade e determinação.

Quero esclarecer que utilizo a expressão ―ocupação‖ por entender que

faz parte da linguagem dos moradores da favela e também por remeter à

ocupação de terra pública, e não privada. O termo invasão não se encaixa nas

histórias das pessoas que recordaram suas histórias de vida e de luta.

Havia um roteiro padrão, mas serviu somente para nortear as

entrevistas. Assim que comecei a conversar com os colaboradores percebi que

a entrevista poderia ser mais livre, fazendo as perguntas de acordo com as

falas dos entrevistados. Isso facilitou a interação com as pessoas e criou mais

conexão entre pesquisador/ colaborador.

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Capítulo I

HISTÓRIA VISTA DE DENTRO

Este capítulo tem como objetivo relatar o processo da ocupação da

favela de Heliópolis, a partir das memórias dos seus atores anônimos,

mostrando as motivações que os mobilizaram nessa luta e os inúmeros

obstáculos que tiveram de enfrentar.

Ao ouvirmos os indivíduos, atores diretos na formação da favela,

reportamo-nos ao tempo em que as necessidades eram muitas para cada um,

mas isso servia de motivação para continuar a busca pelos direitos que a eles

eram negados pelo sistema político e econômico que valorizava mais os que

tinham o poder de compra e que estavam, de certa maneira, vinculados à

política e às estruturas de poder vigente.

A conquista desse espaço ocorreu sob forte violência, manipulações do

poder público, medo e necessidades diversas. A história de Heliópolis se

confunde com a história dos indivíduos que dela relembram, mas também com

os indivíduos que a fizeram e foram afetados por ela. Portanto, quando falam,

veem-se nas lembranças que se fazem hoje conteúdos das palavras. Não

falam a esmo e sem nexo, tudo que falam tem sentido no universo específico

da coletividade.

Ouvir os atores que fizeram e fazem a história da favela de Heliópolis

nos dá a compreensão de que os espaços não foram adquiridos, mas criados

pela resistência e iniciativas daqueles que experimentavam e resistiam às

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necessidades, as adaptações na cidade grande. Para tanto, houve a

necessidade de se recriar o não dito e o não feito para que novos espaços

surgissem dentro da estrutura estabelecida. Há várias formas e maneiras de

romper o lugar do outro: refazendo a história, dizendo outras palavras, vivendo

outra engrenagem e em outro ritmo, traçando novas danças com novos passos

e fazendo tocar novas músicas no cotidiano de uma coletividade. Jeito

diferente de jogar o jogo, como diz Certeau (2007 p. 79)

Mil maneiras de jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros, caracterizam a atividade, sutil, tenaz, resistente, de grupos que, por não ter (sic) um próprio, devem desembaraçar-se em uma rede de forças e de representações estabelecidas [...]; nesses estratagemas de combatentes existe uma arte de golpes, dos lances, um prazer em alterar as regras do espaço opressor.

1.1 ―ERA UMA GRANDE NECESSIDADE‖

A necessidade era o motivo principal da chegada e da permanência dos

indivíduos que começaram o movimento por moradia na favela de Heliópolis.

Muitos que vieram para a cidade de São Paulo aqui chegaram com muitas

dificuldades e encontraram na favela pessoas com as mesmas carências

sociais. Como informa Genésia Ferreira Silva Miranda, embora sua infância

tenha sido boa, a ponto de ter boas lembranças, as necessidades faziam parte

de sua vida trazendo marcas da sua infância.

A gente brincava com milho, né. Brincava com... A melancia que meu pai plantava que era a bola. Então, tudo isso fazia parte da vida da gente, né? Nessa idade ai... Pequenininho. Mas, foi um momento muito gostoso. Que eu lembro sempre foi muito bom.1

1 Entrevista com Genésia Ferreira da Silva, realizada em 02/02/2010.

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Não tinham as coisas que geralmente as crianças têm para brincar, mas

aqui mesmo notamos como essa infância foi importante para a vida que

experimentaria no futuro. A infância foi palco para a criação de novos espaços

que invadiram os espaços determinados pelas privações. Como salienta Michel

de Certeau (1990, p. 191):

A infância que determina as práticas do espaço desenvolve a seguir os seus efeitos, prolifera, inunda os espaços privados e públicos, desfaz as suas superfícies e cria na cidade planejada uma cidade ‗metafórica‘ ou um deslocamento.

Desde a infância de Genésia, pode-se perceber a utilização de táticas

re-significação das circunstâncias contrárias da vida dando a elas nova forma,

novos contornos.

[...] essas táticas desviacionistas não obedecem à lei do lugar. Não se definem por este. Sob esse ponto de vista, são tão localizáveis como as estratégias tecnocráticas (e escriturísticas) que visam a criar lugares segundo modelos abstratos. O que distingue estas daquelas são os tipos de operação nesses espaços que as estratégias são capazes de produzir, mapear e impor, ao passo que as táticas só podem utilizá-los, manipular e alterar [...]; é preciso, portanto, especificar esquemas de operações [...]; também se podem distinguir ‗maneiras de fazer‘ (CERTEAU, 1990, p. 92)

Vivenciar a privacidade com toda a família, tendo irmãos menores e

vendo a luta constante dos pais trouxe marcas profundas à vida de Genésia,

fazendo-a ter o desejo de romper, juntado todas as forças para a

sobrevivência. E isto ela aprendeu com o próprio pai, pois demonstra orgulho

em lembrar-se da postura dele diante da vida.

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Meu pai foi um lutador pela sobrevivência dos filhos e dele, né? Respeitando os limites de todo mundo, com muita humildade, meu pai foi sempre essa pessoa, ele sempre passou essa imagem pra nós. Né? De lutar, de sair de uma cidade pra outra, sabe, em busca de melhorar a qualidade de vida dos filhos, então, a gente tivemo toda essa educação, né? 2

As necessidades nas áreas de emprego e de moradia, além da migração

das pessoas de outros estados brasileiros para a cidade de São Paulo, fizeram

com que muitos nordestinos e pessoas de outros municípios do entorno da

cidade (ALESSI, 2009) viessem a se instalar na área que pertencia ao IAPAS

— Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários, após as

irresponsabilidades do poder público municipal, como informa Maria Ruth do

Amaral Sampaio:

O acompanhamento da ocupação irregular da gleba de Heliópolis desde o início da década de 1970, mostra que o grande responsável pela criação e desenvolvimento da favela Heliópolis/São João Clímaco foi o poder público, seja federal, o IAPAS que deixou sua propriedade abandonada, seja municipal, a Prefeitura Municipal de São Paulo, que lá instalou alojamentos provisórios que se tornaram permanentes. Assim, a omissão e a ação de órgãos do governo contribuíram para a criação de um dos maiores guetos de pobreza do município. (SAMPAIO, 1990, p. 4)

A participação do poder público, em vez de resolver ou amenizar as

necessidades da população que morava em favelas na cidade de São Paulo,

servia, antes, para criar mais dificuldades. Quando as pessoas já estavam

instaladas, mesmo em lugares precários, alguns eram retirados desses lugares

para a formação de outra favela com a promessa de que seria uma situação

provisória. Essa foi a situação dos moradores da favela de Vila Prudente como

afirma Antônia Cleide Alves:

2 Entrevista com Genésia Ferreira da Silva, realizada em 02/02/2010.

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E, aí, quando foi sair da Vila Prudente desse ambiente prá cá, foi um choque também muito grande, uma ruptura muito grande. Porque era tudo novo pra nós. Juntou 120 famílias. Veio bastante daquela área. Daquele setor que a gente tava. Mas, nem tanto porque tinha outras opção. Não vinha todo mundo pra cá. Podia ir pra Guaianázes, né? Mas, a maioria veio pra cá. Mas, era um outro lugar. Eu cheguei... No lugar a gente só tinha aquelas 120 famílias.3

Notam-se muitas dificuldades na vida de Antônia Cleide. Ela que nasceu

em boa situação financeira no Estado do Ceará, na cidade de Ibicuã, pois seu

pai era proprietário de um açougue. O que a própria Antônia Cleide confirma

como que se relembrando de um tempo muito diferente daqueles que passaria

tempos depois.

Na realidade a gente veio pra cá nem pela condição financeira. Lá a gente tinha uma condição melhor do que quando a gente veio prá cá. Então, lá a gente veio por conta de uma briga de família por causa de terra. Meu pai brigou com meu tio. E, aí, foi ameaçado de morte.4

Experimenta uma reviravolta em sua vida quando, por causa de brigas

familiares, tem de sair às pressas de sua cidade com toda a família e vai para o

Mato Grosso do Sul. As necessidades continuam a ponto de influenciar sua

vida anos depois quando se lembra do que vivenciou em trabalhos na

agricultura com seus irmãos e seu pai, não desejando nem pensar muito

naqueles momentos difíceis:

Ah! Acho que foi o pior lugar que me recordo. Acho que foi o pior lugar. Porque na verdade é assim... A gente foi morar...

3 Entrevista com Antônia Cleide realizada em 02/02/2010.

4 Entrevista com Antônia Cleide realizada em 02/02/2010

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Era uma fazenda... Era grande. Eu lembro que era grande. E lá trabalhava com café e algodão. Mais algodão. Colheita de algodão. E, aí, meu pai que trabalhava lá. Ele tinha que colher algodão. Aí, tinha que colher... Iá eu, meu irmão lá... Todo mundo pra colheita. Eu tinha o quê? Eu tinha essa idade... Cinco anos e meio. Outro meu irmão tinha quatro. A diferença era essa. Aí, tinha um que tinha a diferença de quatro anos... Tinha dois anos. Um ano e meio e um outro bebezinho. Era assim... E outro que era... Ficava muito doente. Eu lembro que meus irmãos vivia muito doente, muito, muito, muito doente. E tinha que ir pra poder ajudar meu pai, né? Eu e outro meu irmão. Minha mãe trabalhava na casa da fazenda. Trabalhava limpando, cozinhando. Ficava na família. Não lembro nenhuma brincadeira, pelo contrário, só trabalho. Então foi um choque muito grande, né? Eu tinha uma realidade. Uma situação. Antes era de brincadeira... Que tinha tudo. Que nas férias lembro que ia prá Fortaleza. Eu ia pra Maranguape. Ficava na casa de minhas tias. E, aí, pumba! Vou cair num lugar desse, né? Tenho as piores recordações de Mato Grosso.5

Foram essas dificuldades que fizeram com que Antônia Cleide e sua

família chegassem a São Paulo. Ao chegar, encontram mais necessidades,

pois, não tendo onde morar, a família é forçada a compartilhar a casa com

pessoas que não conhecia. Depois, passando a viver em um barraquinho na

favela da Vila Prudente, Antônia Cleide continua a sofrer as adversidades de

quem está em uma situação de precariedade social. Passa a dividir com uma

família um barraco bem pequeno. Mas foi lá que encontrou o aconchego que

existe entre os pobres. A solidariedade era a marca maior daquele lugar que,

embora fincado nas lutas por sobrevivência de cada morador, esbanjava

cuidados mútuos. É de lá que Antônia Cleide pode afirmar ter muitas boas

recordações. E se lembra de situações que criaram a relação social que havia

perdido. Pois, ali próximo ao barraco onde morava, tinha um poço e se tornava

o ponto de encontro onde as relações eram solidificadas.

Nesse lugar, não tinha água encanada na favela. Então, todo mundo vinha naquele lugar pegar água. Então, quer dizer... A

5 Entrevista com Antônia Cleide realizada em 02/02/2010

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favela inteira, a gente conhecia. E todo mundo se conhecia porque aquele era o ponto de encontro, né? 6

Essa transição, que trouxe mais uma ruptura em sua vida, demarca as

dificuldades que continuaram até chegar à favela de Heliópolis que, segundo

ela, era um mundo novo que apontava para a possibilidade de uma vida

melhor.

Eu falei: ―Puxa! Era tudo o que eu queria‖. Morava num barraco, num barraco ruim. Nesse período meu pai já tinha arrumado o barraco, já tinha ficado maior. Ele já era... podia ficar em pé, né? Já tava melhor Na verdade, eu gostava daquele ambiente! Eu tinha religião, eu tinha escola, os amigo, né? Aí, a gente veio pra cá e recomeçou tudo de novo, né? 7

Entretanto, pôde perceber que tudo que sonhara, ou seja, ter uma casa

melhor, não se realizou quando foi com a família para Heliópolis, pois as

dificuldades se tornaram ainda maiores que aquelas vividas na favela da Vila

Clementino. O sentimento de ruptura e de desapego com aqueles indivíduos e

com as coisas precárias que tinha fez com que sentisse a necessidade de

reconstruir toda a vida. Essa sensação de reconstrução que experimentara

quando criança se agigantou ao ver os vínculos quebrados. Vínculos surtidos

da solidariedade. Uma solidariedade latente que amenizava suas dores e a

falta de perspectivas, transformando as singularidades pessoais em pontos

principais de convergência e de resistência. O outro não era o ―outro‖

adversário, competidor, articulador, mas o outro próximo que compartilha da

mesma situação de exclusão. Como mostram Hugo Assmann e Jung Mo Sung

(2000 p. 97). Para eles a solidariedade:

6 Entrevista com Antônia Cleide realizada em 02/02/2010

7 Entrevista com Antônia Cleide realizada em 02/02/2010

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Tem que ver com o modo de ver o mundo e a vida. Solidariedade é uma relação inter-humana fundamentada na alteridade que pressupõe o reconhecimento do/a outro/a na diferença e singularidade, atributos da alteridade. Reconhecer o outro/a na diferença pressupõe relativizar a si mesmo, nossas certezas, enfim, todas as mesmices.

Notamos então, nas histórias de Genésia e de Antônia Cleide que a

chegada à favela de Heliópolis se baseou nas necessidades de moradia que

tinham e que as motivavam a continuar na busca do sonho de ter uma casa

própria. Mas as dificuldades perduraram por alguns anos, ainda que não

tenham influenciado negativamente a vida dessas mulheres. Por que todas as

situações que vivenciaram serviram como alicerce para a luta diária e para a

construção de táticas postulando espaços nos lugares instituídos pelo poder

público, pelo sistema policial e pelos grileiros.

1.2 ―COMPREI UM BARRACO SEM SABER QUE EXISTIA GRILAGEM‖

Podemos perceber pela frase dita por Genésia que Heliópolis não tinha

muitas coisas. Havia algumas casas e muito mato em volta dessa área imensa,

mas a surpresa maior foi perceber que seu sonho de morar em uma casa sem

pagar aluguel estava ameaçado pela lógica do lugar, lógica essa criada por

grileiros que se diziam donos da área que era de cerca de 1.000.000 m².

Os grileiros, que também ocupavam as terras8, agiam em várias partes

da área. Enquanto a prefeitura na época colocou 120 a 150 famílias em

8 Nota-se que alguns ocupantes (grileiros) ocupavam algumas áreas de maior porte que

variavam de cerca de 690m² a 11.580m².

SAMPAIO, Maria Ruth Amaral. Heliópolis, O percurso de uma invasão. São Paulo. FAU/USP,

1990. Tese de livre docência. p.35

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alojamentos que seriam provisórios, como já foi informado, coloca, em 1978, 60

famílias da favela do Vergueiro que se instalaram na parte oposta às primeiras.

Segundo Genésia, imediatamente após sua chegada em Heliópolis, foi

abordada por grileiros que exigiam que ela fizesse com eles um contrato, pois,

caso contrário, sofreria as consequências. O que ela não aceitou com

facilidade, pois isso tiraria dela e de sua família a chance de ter uma casa

própria que era o seu sonho mais importante.

E no dia seguinte que vim morar eles, eles, os grileiros, pediram pra fazer algum contrato de aluguel. Aí, foi quando eu percebi, todos os moradores que tava aqui pagavam uma taxa pra eles, mensalmente. Pra morar, aí. Eu tive muita dificuldade pra reconhecer isso. Até por que o meu sonho era não pagar aluguel. Sai de um lugar que tinha até dificuldade pra se alimentar pra vim pra um lugar... Um barraco. E continuar a mesma coisa? Não. Não era isso. Na minha cabeça não era isso que eu queria. E eu questionei e eles deram prazo de 24 horas pra mim sair do barraco e ir embora.9

Essa lei da violência é lembrada por Sampaio (1991, p.4) quando

informa que ―os grileiros parcelavam a terra a seu bel prazer, abrindo ruas,

demarcando e vendendo lotes. Para aqueles que se instalavam, sem ter

passado pelo crivo dos grileiros, a solução era se curvar ao seu poder,

pagando pelo lote, ou ser expulsos sumariamente‖ (SAMPAIO, 1990, p. 35).

Essa prática criminosa — de certa maneira, mais aceita pelo poder público que

não demonstrava se preocupar — desenvolveu-se durante anos, e alguns

nomes são até hoje lembrados pelos moradores mais antigos. Como o

Geraldo, vulgo Geraldão, e o Otávio, conhecido como veterinário.

A prática ilegal era tão marcadamente e constante que os moradores,

por medo, já estavam acostumados, achando aquela situação uma norma

9 Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/10

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estabelecida, como nos diz Genésia quando foi saber com alguns moradores

se aquilo que os grileiros haviam feito era uma prática comum.

Fui conversar com alguns moradores, eles falaram que realmente era assim. ―Eles pediram, e temo que respeitar o que eles decidiram‖. Por que se eles não respeitassem eles matava... Se resistisse eles matavam, eles expulsavam.10

A certeza da impunidade facilitava as ações dos grileiros que criaram um

ambiente desfavorável para aqueles que chegavam de situações de

precariedade em busca de um lugar para a construção de seus barracos.

Usavam a ideia e a prática da violência para assustar os moradores que já

estavam em Heliópolis, tirando deles até o dinheiro para a subsistência familiar.

Como nos informa Genésia, relatando a experiência que teve ao chegar em

Heliópolis e a tentativa de conversar com os moradores:

Um dia, eu fui chegando até pra conhecer a Conceição. Aí, eu fui conversar com ela pra conhecer e tinha um grupo de homens lá na porta dela pedindo o aluguel. E ele falou: ―Ah! Hoje eu não tenho só o dinheiro da comida pra comprar arroz, feijão pros meus filhos‖. Ele falou: ―Então, tudo bem, se você não tem, nós vamos trazer a máquina e passar por cima‖. A conversa era assim. Ela correu coitada foi lá dentro. E eu observando isso, né? Pegou o dinheiro, as despesas que era pra os filhos e... Entregou. Fiquei olhando assim e falei: "Ora, mas, por que você fez isso‖?. Ela falou: ―Mas tem que pagar‖. Eu falei assim: ―Tem que pagar‖? Ela falou: ―Tem. Senão pagar eles vem e passa a máquina. Eles não respeitam ninguém‖. Eu falei: ―Nossa‖.11

Essa situação se agravava a cada dia e fazia com que as famílias que

chegavam à favela tivessem de se organizar de alguma maneira para resistir

10

Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/10

11 Entrevista com Genésia Ferreira da Silva, realizada em 02/02/2010.

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diante dessas circunstâncias que já havia passado dos limites. Os moradores

sofriam com o medo, a escassez e a falta de infraestrutura. Mesmo para

aqueles que foram levados pelo poder público, que demonstrava descaso para

com a favela que surgia, o medo e a insegurança eram constantes. Como

afirma Antônia Cleide, a visão de que não eram invasores, além de dar a eles

um sentimento de que eram donos da área, os absolvia e os protegia de ser

alvos dos grileiros. Tinham a chancela do poder público municipal.

Como a gente veio, a prefeitura é que trouxe a gente pra ficar seis meses, né? A gente se sentia dono. Então a gente... Uma coisa que prejudicou muito o pessoal de lá, né? A minha família falava assim: ―Nós não somos invasores‖. 12

Essa postura servia de tropeços e mais trabalho para aqueles que

estavam em busca do direito por moradias e que lideravam o movimento

popular. Porque, além de enfrentar o poder público, a polícia e a população ao

redor da favela que não os aceitava, a liderança da comissão de moradores

precisava convencer os moradores que os identificava como ―invasores‖. Por

isso, não participavam das reuniões que visava à conscientização quanto ao

pagamento injusto cobrado pelos grileiros e por busca de infraestrutura.

Surpresa, para os grileiros, aconteceu quando Genésia, aturdida com a

possibilidade de ver seu sonho se esvair, disse que não pagaria o aluguel

cobrado, embora não fizesse a menor ideia da profundidade da sua fala

naquele momento.

Aí, eles começaram a me perseguir. Ir atrás... ―Você vai sair quando? Nós demos um prazo. Vai sair quando? Vai passar a

12

Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/10

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máquina.‖ Aquela pressão, né? E um dia eu me zanguei e falei: ―Não vou sair e não vou pagar‖.13

Genésia não tinha certeza e, tampouco, a dimensão do que estava

fazendo naquele momento, mas a firmeza da palavra fez com que ela tivesse a

possibilidade de ver a emancipação de indivíduos que já não suportavam a

opressão produzida pelos grileiros que utilizavam de todas as pressões

possíveis para intimidar os moradores. Segundo Certeau (1995, p. 40) ―la toma

de la palabra tiene la forma de un rechazo; es una protesta. [...] Pero en

realidad, consiste en decir: ‗No soy una cosa‘. La violencia es el gesto de quien

rechaza toda identificación: ‗Existo‘14‖.

Quando Genésia ―toma a palavra‖, alcança a consciência da sua própria

força e de sua influência no lugar e rechaça toda a estratégia que tenta colocar

os moradores da favela Heliópolis no total esquecimento e sentimento de

fraqueza. Essa coragem começa a ser blindada com a aproximação de

pessoas que passam a proteger a casa e a família de Genésia que persiste na

resistência e passa a conscientizar os moradores a buscar seus direitos,

colocando em cheque as ações fraudulentas dos grileiros.

E teve um senhor, esse senhor mesmo que a gente conversava do parquinho. [...] Como ele estava lá em cima no parquinho falaram pra ele que nesta noite viam colocar fogo comigo e as crianças dentro do barraco. E ele escutou. Ele veio aqui avisar: ―Sra. sai do seu barraco vão tocar fogo e matar você e nas crianças‖. Eu falei: ―Não. Eu não vou sair. Eu não tenho pra onde ir‖. [...] ―Mas, tem certeza a Sra. não quer sair?‖. Não. Eu não quero sair. Tem que fazer alguma coisa, não sei... Sair daqui pra outro lugar não. ―O que eu posso fazer é sair e me esconder, lá trás sei lá‖. Era muito matagal, né? Aí, ele pensou... Pensou... ―Tá bom‖. [...] Aí, ele falou: ―Tá bom então eu vou vim aqui ficar no seu quintal‖. Eu acho que Deus preparava tudo. Aí, ele veio. E eu lembro que eu escutei o barulho de bastante gente dentro do mato. E ele sabia até o

13

Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/10

14 CERTEAU. Michel De. La Toma de la Palabra – Y otros escritos políticos.p. 40

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tambor de gasolina a cor que era tudo. Esse senhor. E quando foram se aproximando perto do barraco. Eu também não sabia que ele tava com uma arma. Ele começou a atirar de dentro do meu quintal. Aí, correram...Aí, correram... Depois ele veio conversar com a gente falando do risco de vida que nós estávamos correndo. Aí, ele veio se unir com a gente. Ele se uniu... 15

A aproximação da luta por moradia contra os grileiros por outros

moradores se deu, provavelmente, devido à firmeza de Genésia diante da

possibilidade de sofrer a violência e até a morte. Essa coragem causou aos

grileiros sérias dificuldades, pois jamais imaginavam ter alguém dentre os

moradores, que eram todos pobres e desprotegidos, que pudesse desobedecer

a suas ordens e, além disso, articular toda a comunidade para que não

pagasse os aluguéis cobrados por eles mesmos diante de tantas possibilidades

reais de perseguições e sofrimentos. Como coloca a Genésia com certo ar de

vitória:

E a perseguição continuava sempre em cima de mim e do João pelo crime organizado e o crime organizado não tinha nada a perder, né? Tivemos vários conflitos. Não foi só um. Mas isso a gente nunca deixou de organizar a comunidade. De falar que eles eram capazes de parar de pagar aluguel. Se a gente se unir as força. A nossa arma é a união, né? 16

Embora em Heliópolis houvesse a lei estabelecida pelos grileiros, as

práticas de Genésia eram contrárias a essas leis mesmo sem que tivesse a

compreensão inicial dos fatos. Essas inserções do ―lugar praticado‖

(CERTEAU, 1990, p. 202) trouxeram um quiproquó para os grileiros que

perderam muito do poder que tinham e que era determinado por operações

15 Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/10

16 Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/10

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escusas e violentas, articuladas com o sistema excludente e silenciador da

época da ditadura. Pode-se perceber isso no próprio relato de Genésia:

A gente tava começando a construir o barraco aqui. Derrubando a madeira pra fazer junto com esses moradores já. A gente já tava muito bem articulado, fortalecido. E como a gente começamos a quebrar o poder dos grileiros, né? E ocupando algumas ruas. Mas isso em reunião nas caladas da noite. Em vários lugares escondido deles, né? Com moradores de rua, com várias pessoas pra ocupar. Pra que a gente fortalecesse essa luta. E a gente fazia realmente essas reuniões escondido porque se a polícia soubesse ou eles, nós tava ferrados. Aí, eu comecei articulando assim digo: ―Bom, quanto mais gente pra se fortalecer e tomar essa terra deles melhor‖.17

Os grileiros talvez não pudessem imaginar que indivíduos como Genésia

surgiriam na área onde hegemonicamente determinavam a lei do lugar com

artimanhas próprias e desfazem as estratégias com operações difusas que

inverteriam a lógica estabelecida. Pois até as ruas por eles construídas, que

determinavam o caminho que os moradores deviam seguir, foram

transformadas em moradias para a população que chegava.

1.2 ―NINGUÉM IA PRESO. SÓ NÓS‖

Eram tempos de ditadura. O governo federal ainda estava nas mãos dos

militares. O AI-5 (Ato Institucional n°5) andava a passos largos. Embora já

houvesse protestos contra a ditadura, esses protestos eram silenciados com

torturas e repressão covarde. Podemos ter conhecimento por intermédio das

reportagens nos jornais e revistas da época (MOLICA, 2005, p.23-24) que

essas torturas eram feitas com todo o consenso das autoridades.

17 Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/10

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O medo instalado pela ditadura proporcionou às instâncias menores de

segurança, como as polícias militar e civil, agir como desejavam, sem levar em

conta a possibilidade de alguma represália. Afinal, naquele tempo, a ditadura

se mostrava mais forte ainda. O governo federal liderado pelo presidente-

general Emílio Garrastazu Médice sustentava euforia pelo crescimento

econômico do país, crescimento esse que favorecia a classe média do país,

mas que deixava os mais pobres distantes dos bens de consumo.18 As

repressões e a violência policial se mantinham salvaguardadas pela

impunidade e proteção aos policiais que agiam diretamente contra os mais

pobres.

Entre os mais pobres estão aqueles que saíram das cidades rurais em

busca de vida melhor na cidade. Estes buscaram lugar para morar e sobreviver

nas grandes cidades do sudeste como Rio de Janeiro e São Paulo.

A constatação de Genésia de que ninguém ia preso, só eles, deve-se às

várias ações da polícia em Heliópolis, desde o início da década de 1970. Nota-

se a união um tanto obscura dos policiais com os grileiros que diziam serem

donos das terras.

No início a ação, era coibir as ocupações da área, inviabilizando todas as

possibilidades dos moradores se organizarem. As ações dos policiais se

direcionavam especificamente contra os indivíduos que tentavam ter espaço

para se articular. Essa necessidade de se reunir foi crescendo a ponto de

construírem um local próprio, criando assim a primeira associação da favela de

Heliópolis, como nos relata João Isaías, o João Prefeito:

Houve necessidade de construir um local pra se reunir... É... Pra se reunir. Aí, nós conseguimos uma doação de madeiras e construímos na Col. Silva Castro onde hoje é a Sociedade dos Amigos de Moradores da Favela de Heliópolis. A necessidade

18

http://www.culturabrasil.org/ditadura.htm visitado em 19/05/10

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de se construir um espaço pra se reunir. Conseguimos construir, mas a polícia veio e derrubou.19

Como continua João Isaías, a tensão era tão grande que os moradores

tiveram que colocar crianças e mulheres à frente da associação construída

para que os policiais não derrubassem tudo.

A gente fazia novamente... Vinha polícia... O choque... Chegou até o momento da gente dar as mãos e colocar as mulheres e as crianças na frente pra evitar a derrubada de alguns barracos. Aí, chegou uma hora que nós enfiemos uma placa ―Aqui será construída a sede da associação de moradores‖. Aí, já começou dá outro tom. Aí, a polícia passou a respeitar mais.20

O poder era desarticulado por meio de uma resistência simples que

mostrava um poder popular existente na favela de Heliópolis. Como informa

Bandini (2009, p.17) citando Michel Foucault:

Segundo Michel Foucault (1988), "onde há poder, há resistência‖ porque ―ambos estão presentes em toda a rede de poder". Para ele, o poder não é estático e não possui uma instância absoluta; ao contrário, o poder é um conjunto de forças que circula entre os sujeitos sociais, e cada um deles exerce distintas parcelas de poder de acordo com uma determinada estrutura social.

O poder se movimenta entre os sujeitos e pode ser evidente em uma

pequena ação, se transformado, assim, em um lugar que, por um instante, foi

instituído, materializado como lugar próprio. Poder capaz de desafiar a lógica

da dominação das autoridades constituídas por meio das táticas. Essa maneira

de resistir, ―maneiras de fazer‖, fez com que os que detinham o poder instituído

e ―normatizado‖ na favela de Heliópolis viessem a respeitar o poder subjacente

entre aqueles moradores. A tática que é ―a arte do fraco‖ (CERTEAU, 1990,

19

Entrevista com João Isaías, o João Prefeito. Entrevista realizada em 29/01/10

20 Entrevista com João Isaías, o João Prefeito. Entrevista realizada em 29/01/10

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p.101) evidencia-se como último recurso diante da situação vigente. Não havia

outra maneira para os moradores que eram considerados ―baderneiros‖ e que

não aceitavam as ordens estabelecidas. Essa astúcia de pôr uma placa em um

terreno e estabelecer um lugar próprio se mostrava como a forma de

desestabilizar o poder estabelecido entrando na lógica deste poder que era

visível. Como ressalta Certeau (1990, p. 101).

O poder se acha amarrado a sua visibilidade. Ao contrário, a astúcia é possível ao fraco, e muitas vezes apenas ela, como ‗ultimo recurso‘: ―Quanto mais fracas as forças submetidas à direção estratégica, tanto mais esta estará sujeita à astúcia‖. Traduzindo: Tanto mais se torna tática.

Essa astúcia se fazia presente em todos os momentos diante da

situação que os moradores enfrentavam. Pois, quando eram presos e levados

para a delegacia para ser interrogados, sabendo que não seriam ouvidos e

seus direitos não seriam respeitados, proliferavam as táticas existentes no

cotidiano. Utilizavam-se daquilo que tinham para resistir em situações

controversas. As astúcias são os ―gestos hábeis do fraco na ordem

estabelecida pelo ‗forte‘, arte de dar golpes no campo do outro‖ (CERTEAU,

1990, p. 104) Portanto, não tendo mais o que fazer, os habitantes da favela de

Heliópolis invadem a delegacia, em uma demonstração de resistência, mesmo

sem ter consciência do alcance de seu gesto, eles estavam fazendo uso

daquilo que tinham para dispor, as artimanhas, as astúcias. Como relata

Genésia:

Aí, eu comuniquei com os moradores. Na época eu já tinha conseguido articular um trabalho, mas com muita paciência com os moradores que já existia, né? E conversei com eles o que tava acontecendo. O João tinha sido preso por isso, por isso, e tal. E um dia tava chovendo muito. Eu me senti muito fortalecida quando esses moradores vêm junto comigo e a gente ocupa a delegacia. Aí, a gente ocupamos a delegacia.

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Tudo com pé de pau. Sujou tudo a delegacia. Claro a gente morava tudo no barro, Né. 21

Essa prática de violência durante as ações dos grileiros acobertados

pelos policiais, segundo Genésia Miranda, era respondida também pelos

moradores que se protegiam mutuamente. Pois se a lei era a do mais ―forte‖, a

população, em alguns momentos, armava-se na tentativa de se guardar das

ações dos grileiros e dos seus comparsas, mas a polícia só tinha atenção para

os moradores considerados por eles baderneiros e causadores de confusão.

Eles chamava a polícia falando que a gente que tavam armado atirando nele. Na verdade não era isso. As armas tavam com eles. A polícia chegava via as armas na perua deles e não fazia nada. E tava atrás da gente, né? 22

Entretanto, toda estratégia estabelecida pelo poder era burlada pelas

fissuras abertas por intermédio das espertezas das mulheres que lideravam a

favela e orientavam com coragem o caminho que os moradores deviam seguir.

Citando Jean- Pierre Vernant, Certeau (1990, p.156) diz que isso é:

uma forma de inteligência sempre ‗mergulhada em uma prática‘ onde se combinam ‗o faro, a sagacidade, a previsão, a flexibilidade de espírito, a finta, a esperteza, a atenção vigilante, o senso de oportunidade, habilidades diversas, uma experiência longamente adquirida.

A participação feminina na favela de Heliópolis mostra afinidade com as

táticas do cotidiano, estabelecendo um diálogo de resistência com o poder e

21 Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/10

22 Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/10

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com a estratégia que eram colocadas como naturais entre os moradores e o

poder público.

Durante toda a história da favela de Heliópolis, a violência foi uma

constante na realidade dos moradores. Ora com as ações dos grileiros com a

participação dos policiais, quando aconteceram conflitos emblemáticos na

favela, ora com os chamados ―justiceiros‖ 23 que matavam e cometiam todo tipo

de absurdos a mando dos comerciantes da área. Como registra Sampaio

(1990, p.135):

Nessa ocasião ocorreram muitas mortes, a maior parte delas atribuída a ―justiceiros‖ que agiam algumas vezes à luz do dia matando jovens e adultos. As vítimas eram inicialmente ameaçadas, diretamente ou por intermédio de recados enviados por terceiros — dizia que os justiceiros agiam encapuzados, razão pela qual ninguém era capaz de dizer quem eram. Somente entre os dias 14 e 15/10/87, apareceram quatro pedidos de transferência todos resultantes de insegurança — três das famílias receberam ameaça de morte, duas das quais dirigidas a filhos menores, e uma ameaça vaga dirigida a um adulto, que ficou absolutamente apavorado, e um 4º caso, de casa sujeita a roubos.

A violência fez com que muitos moradores deixassem a favela, e,

durante anos, não se viu a ação dos policiais para coibir as ações dos

chamados justiceiros.

Não se pode falar que acontecia o mesmo durante a permanência dos

grileiros, mas o que ficou na mente de Genésia é a inoperância do poder

público municipal em relação à presença da corporação policial. Mas isso não

tirou dela o sonho de ter uma moradia digna além de servir de fortalecimento

àqueles que moravam na favela, mas que não tinham coragem de enfrentar as

23

Os justiceiros eram homens contratados por comerciantes para proteção dos seus

estabelecimentos e também para agir com violência contra aqueles que cometessem algum

crime nas favelas.

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situações de violência. Em suas lembranças há traços de medo, sobretudo, de

perseverança que a levou a alcançar o objetivo de morar em sua casa própria.

Ninguém ia preso. Só nós. [...] Conseguiram um lugar para nos levar. Por conta dessa ameaça tanto da polícia quanto do crime organizado e tudo. E eu me neguei. Falei: ―Não. Não vou... Eu não vou porque olha... Por que meu sonho foi esse. Eu tenho que lutar por ele. Que diferença faz eu tá viva e morrendo aos pouco. Eu quero morrer lutando. É o mínimo. Morro lutando. Porque, aí, eu sei que alguma coisa eu tô fazendo agora, me acovardar não vou não‖. Então, isso também eu percebi que mesmo com toda essa minha inocência, com essa ambição de querer morar, essa ambição de ter um barraquinho de madeira pra morar, tudo isso. Essa grande ambição que eu tinha... Sempre tive. Eles perceberam e isso fortaleceu eles viram mais gente se fortalecer aqui a comunidade, né? 24

1.4 A ESPECULAÇÃO IMOBILIÁRIA: EXTERNA E INTERNA

Uma das coisas que se pode observar pelos relatos dos moradores e

também pela história da cidade de São Paulo, nos anos em que as ocupações

de favelas eram as mais contundentes, é que havia muita especulação

imobiliária na área do Ipiranga, localização da favela de Heliópolis. Mas é

interessante frisar que essa especulação não era somente externa, mas era

evidente também na própria favela, mesmo que fosse, no início, apenas como

protesto. Pois, ao ouvir Genésia falando sobre o assunto, intuímos que essa

prática não era aceita pela liderança da comissão de moradores.

Eu mesmo por aqui, quando o cara tava vendendo, eu caia de pau em cima dele. Eu falava: ―Não. Você não vai vender não. Você vai dar pra ele, você vai dar, mas vender não. Eu era doidinha. Cê não comprou‖. Entendeu? Então, eu era danada. Eu ficava com raiva. ―Isso é injustiça. Explorar o outro?

24

Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/10

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Ninguém te explorou cara, como é que você vai explorar o outro. Não. Não é assim‖. Então, a gente tinha muito esses problemas, né? E a gente ia lá conversar. Conversava, convencia. ―Não você não pode fazer isso‖. A gente conseguimos.25

Mesmo os que possam ter criticado os grileiros que, por muitos anos

permaneceram em Heliópolis, tentando ainda manter as terras para si, algumas

práticas não eram diferentes após alcançarem a ―terra prometida‖. Porque, em

algumas situações, agiram da mesma forma que esses grileiros. Antônia Cleide

diz que alguns moradores, chamados por ela de oportunistas, na possibilidade

de se apropriar de toda a terra que estava vazia, apropriaram-se de vários

pedaços de terra e começaram a negociar com outros.

Vêm os oportunistas. Tem pessoas aqui que, quando chegou, isso aqui tava vazio. Vamô pensar. Então, ele pegou mais esse pedaço pra ele construiu não sei o quê. Tomou mais esse pedaço pra ele. Então a gente teve muito, na época, oportunista na nossa comunidade. Quando a gente fazia essa avaliação a gente também olhava isso. Fazia desse jeito. Então a gente acabou o tempo todo defendendo quando a ocupação é organizada. Organizada num sentido. Que tinha que fazer ruas, que tinha que ter um espaço comunitário, Entendeu? Eu entrar e ocupar só pra... aí, era invasão pra nós. Quando não tava organizada. Quando tava organizada que ela pensava ―Você tem o seu metro quadrado, eu tenho o meu, o outro tem o dele. Não. ―Eu tenho tudo isso, você tem tudo aquilo, e tudo isso‖. Então, muitas ocupação aqui dentro a gente não foi favorável.26

Uma terra passa a ser valorizada e se torna objeto de especulação

imobiliária quando nutrida de serviços e infraestrutura. Com as diversas

iniciativas, principalmente no governo Luiza Erundina, Heliópolis passa a ser

foco para muitos que desejavam adquirir lucro com a área. Tanto é que há

consenso em relação à possibilidade de os empresários desejarem construir

25

Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/10

26 Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/2010

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um Shopping Center na localidade. Isso também é defendido por João Isaías

quando diz: ―Os empresários ficavam de olho nesta área. Eles queriam

construir aqui um shopping. Um grande shopping. Desde aquela época. A

intenção deles era essa‖.27 Portanto, essa área era desejada por investidores

que viam na área grandes possibilidades de lucro financeiro. A favela está bem

localizada28 e foi adquirindo as características ainda mais cobiçadas para as

grandes corporações a considerarem como objeto e meta a ser alcançada para

os seus investimentos imobiliários. Como nos ensina Midlej (maio/2010),

reportando-se ao que faz com que uma área seja objeto de especulação:

A infraestrutura de uma região é a característica principal que a faz ser mais valorizada do que outra. A localização do bairro e o acesso que ele dá a serviços públicos e particulares, que vão desde saneamento básico a hospitais e shopping center, são os principais critérios para a supervalorização. Ou seja, a facilidade de acesso aos demais pontos da cidade, particularmente a pontos importantes como marginais e vias expressas é o que faz, em alguns casos, um bairro ser considerado nobre; e outro, periférico. É se aproveitando desses fatores que as empresas de imóveis negligentes especulam o preço da terra.

Essa especulação tem uma perspectiva interna que não podemos deixar

de apontar: durante o desenvolvimento da área, com as obras de infraestrutura

na região, os moradores da favela também se favoreciam. Segundo João

Isaías, no início da ocupação ninguém poderia ficar sem a moradia. Quando

chegava alguém sem ter onde morar, logo recebia seu pedaço de terra para

construção sem que para isso fosse cobrado. Conforme ele mesmo explica:

27

Entrevista com João Isaías realizada em 29/01/2010

28 Com boa infraestrutura a área pertencente à COHAB (Companhia Metropolitana de

Habitação) tem ótimos serviços públicos de transporte, abastecimento de água, distribuição de

energia e iluminação elétrica. A área fica perto da cidade de São Caetano e próximo do centro

da capital. Tem grande fluxo nas avenidas no entorno, como a Juntas Provisórias, Estradas

das Lágrimas, Avenida Almirante Delamare e o Córrego Independência, em São João Clímaco.

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Nós começamos a fazer o seguinte. A gente começou a lotear assim... A pessoa precisava... A gente dizia... Faz aqui. Na barra do rio todinha. ―Oi, quanto que é?‖ Eu dizia: ―Não vou cobrar nada‖. Aí, a gente ia e media... Fazia a metragem. Aí, ocupamos tudo isso aí. 29

Durante o processo de desenvolvimento da área, as especulações

começaram a aparecer, e muitos que não precisavam acabaram por invadir a

favela e vender os lotes que adquiriam, como já relatou a Antônia Cleide. Mas,

em 1986, houve uma maior explosão de invasão na área após a COHAB

anunciar à população o Projeto de Habitação especificamente na Gleba L.

Alguns moradores, inflamados pela liderança da UNAS, segundo Sampaio

(1991, p. 103), depois que a COHAB cedeu às reivindicações, começaram a

vender as casas (embriões) que não estavam com a infraestrutura adequada

segundo previa o projeto.

A COHAB acabou cedendo, e os primeiros moradores dos embriões do projeto Modela construídos pela COHAB, foram pessoas que não estavam diretamente na área do projeto, não eram cadastradas, não estavam associados à luta dessas lideranças nem tinham interesse em viver na área. Imediatamente verificou-se que um dos novos moradores apenas recebeu as chaves da casa, não pernoitando lá uma só noite, e colocando um colega apenas para guardar o imóvel. Posteriormente, verificou-se que, desses novos ocupantes, seis venderam, logo nos meses seguintes, as casas recebidas, pelas quais não pagaram nem um centavo. Mesmo essa constatação, que demonstrou que as exigências das lideranças foi descabida, não abalou a UNAS, que se considerou vitoriosa nessa escaramuça contra a COHAB. Acresce-se ao episódio o fato de que as casas estavam prontas, mas a infraestrutura (água, esgotos) ainda não estava ligada, essa mudança transtornou o cronograma de ocupação previsto. (SAMPAIO, 1991, p.104)

Segundo João Isaías essa aceleração se deu por causa das invasões

ocorridas a partir de indivíduos que não precisavam de fato e que aproveitaram

29

Entrevista com João Isaías, o João prefeito, realizada em 29/01/2010.

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a situação para ganhar dinheiro vendendo as casas ocupadas. Ele justifica as

ações mostrando que se alguém comprasse as casas invadidas, em

rompimento ao projeto da COHAB e já discutido com a liderança da favela, era

porque necessitava.

Mas, no carnaval de 1986 foi quando houve uma explosão, invasão aqui geral o qual muitas pessoas se aproveitaram desse momento. As pessoas da vizinhança, aí, pegava logo e vendia. Então, se aproveitavam disso. Então, na verdade, houve a invasão não realmente de pessoas que necessitava. Outros, invadiam e vendiam, entendeu? Mas, aquele que comprava tava na necessidade. Então, na verdade ficou o pessoal que necessitava. E outros se aproveitavam. Pegava e trocava por televisão, aparelho de som. Uma loucura.30

Outra situação que propiciou aquilo que chamo especulação imobiliária

interna foi o contexto econômico que fez com que muitos na favela alugassem

suas casas dividindo-as em vários quartos, acompanhando assim o valor do

mercado na área. Com localização favorável e fácil acesso para vários pontos

da cidade, alguns migrantes continuaram buscando Heliópolis para início de

sua vida na metrópole. De acordo com Patrícia Lemos Nogueira Cobra e

Eduardo Alberto Cusce Nobre:

Foi verificada uma grande quantidade de imóveis alugados, sendo essa a principal forma de acesso a moradias para imigrantes que chegam à cidade em busca de oportunidades de emprego. Entretanto, cabe ressaltar que a locação não é uma novidade na favela, existindo há no mínimo 10 anos. Um imóvel para aluguel pode variar, em média, de R$200,00 a R$800,00, dependendo da localização dentro da gleba, da infraestrutura disponível no terreno e das características do imóvel. As mesmas variantes interferem no preço dos imóveis

30

Entrevista com João Isaías, o João Prefeito, em 29/01/10

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comprados recentemente ou à venda, que varia de R$ 7.000,00 a R$80.000,0031.

Essa realidade, ressaltada por Cobra e Nobre, não passa despercebida

pelos moradores da favela nem pelas lideranças da UNAS por intermédio de

sua presidente, Antônia Cleide. Por ter visto isso acontecer por muitos anos,

reconhece que não tem como frear essa situação imobiliária na favela que,

mesmo informal, tem crescido a passos largos.

Só que, por outro lado, o mercado imobiliário no local... Você Imagina. Na verdade propiciou para que eu dividisse um quarto e cozinha e alugasse por 350 reais, 380 reais é isso que tá a realidade dos aluguel hoje.[...] A gente como que já esperava que fosse acontecer isso. Porque imagina, é uma questão da lei da oferta e da procura, né? Capital trabalha bem, né? Tem mais gente procurando, o preço vai lá em cima. É isso que tá acontecendo na nossa comunidade. E é isso também que tá facilitando com que as pessoas procurem morar lá fora porque o aluguel aqui compensa mais e com o aluguel aqui ainda dá pra ela pagar o aluguel lá fora. Ainda sobra. Acaba sobrando, né? E, aí, eu acho que é uma coisa essa da gente vê. Essa questão que a gente tá do lado do metrô também, essa área vai ficar valiosa. Pra entender. A Estrada das Lágrimas você vê Banco Bradesco. Falam Itaú, né? Quer dizer tudo isso daqui dez anos o que pode acontecer.32

As necessidades foram determinantes para aqueles que chegaram à

favela de Heliópolis, por elas as suas ações eram agilizadas. Mesmo com as

necessidades de moradia, saneamento básico, água e luz, eles continuaram

31

COBRA. Patrícia Lemos Nogueira Cobra e NOBRE. Eduardo Alberto Cusce:

http://www.usp.br/fau/disciplinas/tfg/tfg_online/tr/071/a061.html. Artigo: Dinâmica do Mercado

Imobiliário Informal da favela Heliópolis / São João Clímaco Estudo de caso Gleba A e B

Visitado em 22/05/10

32 Entrevista com Antônia Cleide, realizada em 02/02/10

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em busca do sonho de estabelecer novos espaços e lugares. Compreendiam

que precisavam resistir para alcançar os objetivos. E essa resistência

equivaleria a enfrentar todo o tipo de obstáculos vindos de vários lados.

Principalmente a violência, que ora vinha dos grileiros, ora dos policiais. Além

de se preocuparem diariamente com as negociações com o poder público. Mas

toda essa situação não trouxe desânimo para aqueles que viriam a construir a

história da favela de Heliópolis. Ao contrário, lutaram com todas as táticas e

astúcias possíveis, mesmo sofrendo todas as adversidades.

Interessante perceber que algumas artimanhas existentes na área,

práticas reprovadas pelos moradores, como as ações de grilagem, foram, de

alguma maneira, alimentadas por alguns deles. Havia aqueles que, usando de

práticas parecidas, alugavam aleatoriamente os barracos que construíam,

participando assim da especulação imobiliária que denominavam como coisa

ruim.

As lutas da comissão de moradores representada pelos líderes que

foram entrevistados trouxe uma memória coletiva que está presente na vida

dos moradores de Heliópolis. Uma memória social que pode ser relembrada a

partir da migração de cada um, em suas histórias individuais e em suas

trajetórias, conforme se verá no próximo capítulo.

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Capítulo II

MEMÓRIAS, TRAJETÓRIAS E MIGRAÇÃO

Algumas perguntas norteiam o objetivo principal que é reconstituir a

memória da construção da favela de Heliópolis a partir do processo das

lembranças de migração, tendo como pano de fundo as trajetórias sociais de

cada líder da UNAS entrevistado. Essas perguntas são: Quando a memória de

uma favela se torna uma memória coletiva? Como as lembranças ficam

guardadas com cada morador da favela se a própria localidade sofre tantas

mutações? A história de migração de cada pessoa pode ser importante para a

formação da cosmo visão da favela de Heliópolis?

Os interlocutores que colaboram com essa pesquisa foram escolhidos

não porque tem as idades parecidas ou porque são idosos e podem traçar

melhor os caminhos de suas lembranças. Não foram escolhidos porque são

mulheres ou homens. Não há traços físicos como critério para as escolhas dos

indivíduos por esta pesquisa que traça as trajetórias sociais através das

histórias de vida.

Entretanto, existiram alguns critérios que nortearam a escolha desses

interlocutores que são:

1. São ou foram líderes ativos da UNAS (União de Núcleos Associações e

Sociedade de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco)

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2. Participaram de vários períodos da luta por moradia na favela de

Heliópolis. Alguns, desde o início na Comissão de Moradores. Outros

em processos posteriores lutaram com a Comissão para garantir a

permanência dos moradores na localidade e para reivindicar as

condições básicas para os moradores.

3. Demonstram fé. Mesmo que essa fé seja na possibilidade de alcançar

êxito com a moradia.

4. Envolveram-se com práticas religiosas na luta por moradia participando,

de alguma maneira, na construção simbólica da favela.

5. Tiveram histórias de migração similar e chegaram entre o período de

1970 a 1993 na favela de Heliópolis.

Essas características ajudaram a criar uma rede para a elaboração do

contexto que construiu a memória da favela de Heliópolis.

2.1 MEMÓRIA E FAVELA

Recordar a construção de uma favela requer muito esforço. Ao recordar

as lutas advindas da necessidade, os líderes de uma favela se enchem de

esperança por verem no presente a conquista de um projeto que pode

continuar a ser a construção da história da favela. Por que...

a favela pode ser projeto de vida tecido em meio à insatisfação vivida como perda e a expectativa de melhoria de vida. Ela encerra modos de vida e formas culturais, construídos coletivamente. E ela pode ser a conquista, resultante de trabalho comum e de conflitos com outros agentes sociais, particularmente o Estado e o capital imobiliário (CUNHA,2007, p.5)

A memória também serve como arcabouço para expressar as várias

situações que os moradores de Heliópolis experimentaram até chegar à cidade

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de São Paulo e, ao chegarem à favela, para dar significado àquelas realidades

que estavam começando a viver. A memória é resultante das relações que

cada indivíduo possui e nutre em sua história de vida. Destarte, como diz Bosi

(2007, 54), refletindo sobre os ensinamentos de Maurice Halbwachs: ―A

memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a

classe social, com a escola, com a igreja, com a profissão; enfim, com os

grupos de convívio e os grupos de referências peculiares a esse indivíduo‖.

Segundo a autora, Halbwachs mostra que, na maior parte das vezes, relembrar

não é um ato isolado e intuitivo, mas, sim, um trabalho que não se faz sozinho,

pois depende do outro que viveu o mesmo contexto social porque ―a maior

parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com

imagens e ideias de hoje, as experiências do passado‖ (BOSI, 2007, p.55)

Essa força que se faz para que a memória se desenvolva não é uma atividade

individual, mas coletiva. Evocar a memória não se faz por desejo unilateral,

mas, sim, em decorrência do grupo no qual se está inserido ou do qual já se

fez parte. Para Halbwachs (2006, p.41)

Talvez seja possível admitir que um número enorme de lembranças reapareça porque os outros nos fazem recordá-las; também se há de convir que, mesmo não estando esses outros materialmente presentes, pode-se falar de memória coletiva quando evocamos um fato que tivesse um lugar na vida de nosso grupo e que víamos, que vemos ainda agora no momento em que o recordamos, do ponto de vista desse grupo.

Portanto, não podemos fugir dessa prerrogativa. Ao lembramos,

fazemos isso em decorrência das relações que temos agora e que tivemos no

passado com os outros. Portanto, nas relações dos moradores da favela de

Heliópolis, muitas lembranças que foram recordadas são resultado da vida

coletiva que, desde o início, marcou as lutas pela moradia na favela.

Não obstante, a memória pode negar as coisas mais importantes e pode

fazer que as recordações angustiosas venham a suplantar os acontecimentos

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que os indivíduos preferem por à luz em suas próprias histórias. Ao ―ativar‖ a

memória fomentando as lembranças de quem viveu e vive na favela, de quem

suportou todas as dinâmicas de ocupações na tentativa de suprir as suas

necessidades mais prementes, o indivíduo se aproxima da possibilidade de

trazer sobre si transtornos marcantes por causa de alguns momentos de dor e

tristeza que muitos possam ter passado. Como se percebe na experiência de

João Isaías que perdeu o seu filho e, naquele instante que fala, ao se ouvir,

demonstra toda a emoção por algo tão vívido em sua mente.

Namorei uma menina. Casei. Daí constitui família. Sete filhos. Inclusive perdi um filho pro tráfico. Foi assassinado com 16 anos. Ia fazer 16 anos. Trabalhava e estudava. Durante uns seis meses ele conseguiu se destruir. Isso foi em 99. Faz uns oito ou dez anos. 1999. Dez anos. [...] Naquele momento (filho nas drogas) senti assim... Como eu diria? É você nem ter palavras como falar... Se sente traído. Naquele momento ali... Por ter a comunidade... Por ter... (silêncio. Momento de emoção, olhos lagrimejantes).1

Recordar é construir a história revivendo o passado que se faz presente.

A memória talvez seja presença da ausência quando está solidificada pelo que

o outro diz. E, na favela, o outro sempre diz algo. Lembra pelo outro; e outro,

por ele. Em uma realidade de sofrimento, lutas, medos, conflitos e dinâmicas

de poder que se instituem, no desenrolar das necessidades, as lembranças

parecem ser a forma dos moradores estruturarem os vínculos em todas as

esferas sociais. Cada um se apoia na memória do outro para dar sustentação à

luta e aos objetivos existentes. Como ensina Halbwachs (HALBWACHS, 2006,

p. 69) ―Se a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base

um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto

integrantes do grupo‖. Para Halbwachs, a sucessão de lembranças que temos

sempre está relacionada com o ambiente onde estamos e o lugar que

ocupamos. Os indivíduos, que viveram a história na coletividade, estão

1 Entrevista com João Isaías, o João prefeito realizada em 29/01/2010.

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conectados pela lembrança que é resultado da vivência de todo o grupo, pelo

menos, enquanto mantiverem algum vínculo com o mesmo.

Nas favelas, os indivíduos são marcados pelo espaço e causam

transformações no espaço que ocupam. Quando um grupo ocupa um espaço

e, a partir dele, constrói uma lógica própria, quando elabora valores próprios,

esse grupo se torna referência na memória coletiva dos moradores. Esse

espaço social e relacional ocupado torna-se o eixo da memória coletiva.

Nenhum indivíduo ao lembrar ou re-memorar o faz sem que sua consciência

seja afetada pela história do lugar, pela memória do outro que também está ali

e foi protagonista das mesmas experiências. A lembrança é ―infectada‖ pela

memória de todos que convivem no lugar. Segundo Halbwachs (2006, p. 170)

Não há memória coletiva que não aconteça em um contexto espacial. Ora, o espaço é uma realidade que dura: nossas impressões se sucedem umas às outras, nada permanece em nosso espírito e não compreenderíamos que seja possível retomar o passado se ele não estivesse conservado no ambiente material que nos circunda. É ao espaço, ao nosso espaço – o espaço que ocupamos, por onde passamos muitas vezes, a que sempre temos acesso e que, de qualquer maneira, nossa imaginação ou nosso pensamento a cada instante é capaz de reconstruir – que devemos voltar nossa atenção, é nele que nosso pensamento tem de se fixar para que essa ou aquela categoria de lembranças reapareça.

Essa relação com o lugar na memória coletiva não está, segundo o

autor, focada somente nas questões físicas, mas há uma relação maior com o

espaço adquirido ou ocupado. No caso de Heliópolis, essa relação se constitui

em uma forma da memória coletiva que passa a ser a maior aliada quando da

possibilidade de se adquirir a propriedade do solo ou da terra. Como afirma

Halbwachs (2006, p.172), o direito à propriedade da terra se dá quando a

memória coletiva confirma a relação dos indivíduos com o lugar:

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Qualquer princípio que invoquemos para fundamentar o direito de propriedade não adquire nenhum valor se a memória coletiva não intervier para garantir sua aplicação. [...] A memória que garante a permanência dessa situação se baseia na permanência do espaço ou, pelo menos, na permanência da atitude adotada pelo grupo diante dessa porção do espaço.

Pode-se ver na história da favela de Heliópolis uma estreita relação dos

moradores com o solo. Hoje, essa relação já não ocorre por necessidade, mas

devido à própria história que está na memória do grupo. Parece que a

constante luta dos líderes na favela é não deixar que a memória seja esquecida

e, consequentemente, deixe de exercer a força de motivação naqueles que

ainda vivem na favela. Portanto, replicam as suas histórias como se estivessem

desejando reverberar por toda a localidade o passado no presente. Como diz

Certeau (1995, p. 176)

La repetición del relato, la reiteración atenta del comentario, actualizada cada vez con referencia al presente y corregida por las voces del coro familiar, todo eso sirve para producir en conjunto la leyenda familiar, a reinscribir el pasado en el presente.

Isso pode ser notado quando Antônia Cleide reclama os nomes dados

pelos moradores para as ruas da favela que a PMSP (Prefeitura Municipal de

São Paulo) tem trocado sem deixar um rastro da história.

Porque as ruas tinham história. Quando falava Rua da mina. Porque era mina aqui, né? É porque tinha uma história. Quando falava assim: ―A Rua social‖. Porque tem uma história a rua social, né? E se não podia ser Rua social. Qual outro nome podia ser? Um que tem a ver com o histórico. Hoje é Ingá, Angá. Quer dizer tem até uns nomes legais. ―Lutadores de Heliópolis‖. Mas, não tem nada. [...] Até hoje eu dou o meu nome o nome da minha rua. Não tenho maior problema. Porque ela mudou o nome dela. Mudou o nome da minha rua. Nome na minha rua, e eu não fui consultada. Esses afronto que as pessoas fazem com os outros, né? Isso também desconstrói a identidade. Nesse período tem dez anos pra cá que a prefeitura vem construindo uma campanha pra perca de

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identidade desse movimento. [...] É melhor você ter uma comunidade que não tem identidade, que não tenha uma história de luta, que comece uma história a partir deles. Então todo o momento a prefeitura quer que a história comece a partir do dia que eles tão aqui. E não é verdade isso. A história não começou a partir disso.2

Os nomes das ruas revigoram a memória dos moradores da favela. É a

partir desses nomes que os moradores reconhecem as lutas que enfrentaram e

o êxito alcançado durante os vários enfrentamentos que tiveram. Ora com a

polícia, ora com os grileiros, ora com o poder público. Como mostra Genésia ao

se lembrar do mesmo assunto:

A Rua União, aqui o nome dela é Rua União porque teve esse trabalho. Ficamos três meses trabalhando os moradores... Esse moradores de rua, moradores de cortiço, moradores de quando dava enchente esse rio do Menino que se chama. A casa dele enchia de água, que morava nos cortiço, né? Então, era com essas pessoas que eu me reunia, e a gente fazia reunião. [...] Por isso que a Rua União tem o nome Rua União. A prefeitura vem e troca o nome. Sem consultar ninguém. Colocaram outro nome, mas é por conta. É a primeira rua que nós ocupamo. Tem uma história. E não é respeitada. Eles não respeitam. Mas nós respeitamos. Eu não consigo chamar de outro nome. A Rua da Mina pra mim é Rua da Mina. Rua União. Rua União. A rua que eu conheço tem história. Tem uma rua que tem o nome Rua do Sossego. Quando eu sentei com os moradores na época passada que era uma tranquilidade aquela rua que colocaram o nome Rua do Sossego foi eles que colocaram meu Deus! Tem que ser respeitado, né? Tem a Rua União, Rua do Povo, a Rua Paraíba que grande parte daqueles moradores que veio são paraibanos. Então eles decidiram colocar Rua da Paraíba. Então todas as ruas têm a sua história, né? E a prefeitura vem hoje e destrói tudo isso e vem coloca uma plaquinha lá sem consultar ninguém. É um grande problema.3

2 Entrevista com Antônia Cleide Alves, realizada em 02/02/2010.

3 Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/2010.

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2.2 MEMÓRIA E MIGRAÇÃO

A migração de indivíduos de outros estados, principalmente do nordeste,

para as grandes cidades brasileiras como São Paulo, iniciou-se na década de

19304 e intensificou-se na década de 1970, possibilitando muitas vivências que

marcaram a vida dos moradores da favela de Heliópolis. Portanto, chegavam

aqui cheios de marcas que os faziam lutar mais ainda pelos sonhos que

nutriam. Sonhos simples, ou seja, verem se cumprir a constituição do país que

diz: ―São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a

moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e

à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição‖. 5

O sonho de ter uma moradia digna tinha como motivação a vontade de

se ter o solo, a propriedade. Esta era uma realidade vivenciada possivelmente

por muitos nas suas terras de origem onde a terra era muito valorizada. Muitos

chegaram aqui com muitas necessidades, por isso fixaram na terra, na

moradia, as suas maiores esperanças, não se abatendo com as carências que

sentiam, pois tinham objetivos comuns.

4 FERRARI. Monia de Melo. A migração nordestina para São Paulo no segundo governo

Vargas (1951 – 1954) – Seca e desigualdades regionais. P. 160,

www.ufscar.br/~ppgcso/resumos%20disserta/monia%20ferrari.doc visitado em 29/05/2010

―A migração nordestina para o Estado de São Paulo, em especial para a capital, foi um

fenômeno social bastante expressivo ao longo do século XX, especificamente a partir da

década de 1930, quando o número de imigrantes estrangeiros vindos para São Paulo foi

superado pelo número de migrantes nacionais (dos quais a maioria era de nordestinos); e

especialmente na primeira metade da década de 1950 – que compreende o período do

segundo governo Vargas, quando essa migração se tornou muito intensa, superando todos os

números do êxodo nordestino registrados até o momento. É importante ressaltar que no

período em questão, o local de destino dos migrantes, ou seja, São Paulo, passava por um

grande processo de desenvolvimento econômico-industrial, pois, além de outros fatores,

contava com um acúmulo de capital do setor cafeeiro desde o século XIX e com uma política

protecionista e de substituição de importações do governo federal que, de certa forma,

favoreceu a região‖.

5 Constituição da República Federativa do Brasil. II Artigo 6º

http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm visitado em

25/06/2010

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Ao invés de carência, o trabalho, a conquista. Ambos movidos pela necessidade. Uma necessidade experimentada enquanto condição de vida e dinamizada por agentes sociais que agem, referenciados em certas determinações sim, mas também atravessados por expectativas e projetos, e que encontram coletivamente caminhos para concretizá-los (CUNHA, 2007, p.5)

A migração que tomou conta de todo o país trouxe sentimentos diversos

como veremos, pois para muitos se fez com traumas, enquanto para outros se

deu de maneira mais calma e objetiva. Embora os indivíduos que representam

a luta no início da favela de Heliópolis possam contar suas histórias e relembrar

dando sentido ao que falam, recordam também as diversas vezes que

experimentaram adversidades na vida até chegar à favela de Heliópolis.

Mesmo já sabendo que as favelas já fazem parte da cidade, ainda

sentem as indiferenças sociais como mostra João Miranda, quando deixa

evidenciar um desejo que vai além de si mesmo ao dizer: ―Eu quero que

Heliópolis faça parte da cidade de São Paulo‖. 6 Não querem ser esquecidos

aqueles que vivem na localidade e que constroem a história viva da favela no

cotidiano e que ainda tentam fazer com que suas histórias de migração até a

cidade de São Paulo tenham sentido. Por isso muitos não desejam retornar,

mas querem continuar o processo de construção do espaço, buscando

ascensão social equivalente à migração e às dificuldades enfrentadas por

causa dela.

Porque como reitera Bandini (2009, p.60) ―a migração não pode ser

compreendida somente como um deslocamento geográfico, pois, também,

representa uma movimentação dos itinerários de cada membro dentro da

esfera social mais ampla‖. Logo, lembrar o processo de migração talvez seja

ainda romper com a ordem instituída. Dizer-se forte para criar maneiras de

fazer. Buscar formas de realizar transformações nos espaços que ainda não

6 Entrevista com João Miranda realizada em 02/02/2010

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foram alcançados. Como diz Certeau (CERTEAU, 1990, 161) ―a memória

mediática as transformações espaciais. Segundo o modo do momento

oportuno‘ (kairós), ela produz uma ruptura instauradora. Sua estranheza torna

possível uma transgressão da lei do lugar‖.

É lembrando o momento que migraram para cidades diferentes até

chegarem à cidade de São Paulo que os moradores de Heliópolis, no caso os

líderes da favela que são vistos e respeitados no espaço com legitimidade

adquirida, decorrente da luta diária por moradia, podem olhar para trás com

orgulho sabendo que ainda há muito que fazer, mas que a luta foi importante

para que eles mesmos pudessem crescer como gente e reconhecer que a vida

no cotidiano estabelece uma via de mão dupla, em que tanto os indivíduos que

se doam ganham — como disse João Miranda, ―por isso eu digo que Heliópolis

me deu vida‖ 7 — quanto também se doando contribuem para a construção do

lugar.

2.3 MEMÓRIA E TRAJETÓRIAS

As trajetórias de migração são relembradas e se pode identificar a

junção, a argamassa, que une os indivíduos que trazem, em suas histórias

pessoais, materiais que fazem com que seja uma só memória. O grupo faz a

história na lembrança de cada um. Não é só uma memória individual, mas

coletiva. As trajetórias, as histórias de vida podem ser o alicerce para talhar

uma só história. A história da favela de Heliópolis. Com os mapas de trajetória

social podemos analisar os deslocamentos e a caminhada social de cada

entrevistado.

7 Entrevista com João Miranda realizada em 02/02/2010

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Antônia Cleide Alves

Antônia Cleide nasceu na cidade de Ibicuã, no Ceará. Lá ficou até os

seus cinco anos. Tem boas lembranças de sua infância embora seja bem nova.

Essas lembranças, ela guarda como o tempo da melhor situação de sua vida.

Um tempo que a infância era aproveitada, pois a relação da criança Antônia

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Cleide com a família era muito próxima. Ela podia passar as férias na cidade de

Maranguape, onde vivia sua avó. Lá ela tinha escola e podia estudar, recorda

ela. Como aponta Halbwachs (2006, p. 93) ―as lembranças da infância só são

conservadas pela memória coletiva porque no espírito da criança estavam

presentes a família e a escola‖. Seu pai tinha um açougue, e isso dava a

Antônia Cleide a possibilidade de ter uma vida melhor que aquela que

enfrentaria quando saísse do Ceará.

Uma das lembranças mais marcantes para a Antônia Cleide é a de um

trem que havia na cidade. Esse mesmo trem foi o que a levou para um tempo

muito ruim que faz com que ela não tenha desejo de lembrar a ponto de dizer

―Ah! Acho que foi o pior lugar que me recordo. Acho que foi o pior lugar‖.8 Esse

lugar, relembrado com certa dor por Antônia Cleide, é o Mato Grosso.

Precisamente na cidade de Cuiabá. Foi pra lá por causa de uma desavença

entre seu pai e um tio por causa de disputa de terras.

Seu pai foi influenciado por uma tia que dizia ter muitas possibilidades

de riquezas no Mato Grosso. Era o tempo do ouro no Mato Grosso, e muitas

pessoas haviam se deslocado para lá em busca da possibilidade de mudança

de vida. Segundo Antônia Cleide, seu pai acreditou em uma loucura que sua tia

dizia. ―Ela falava que, lá em Mato Grosso, o pessoal naquele período

conseguia encontrar muita botija de ouro‖.9 E daí partiram para Cuiabá, no

Mato Grosso. Ela lembra que foram de trem, aquele mesmo trem que

atravessava a cidade onde morava. “A gente sai de lá no trem. É por isso que

isso ficou marcado pra mim. A gente sai de trem de lá e vai embora pra Mato

Grosso‖ (Informação verbal). 10De Mato Grosso, Antônia Cleide não tem muito

que lembrar, pelo menos em relação a viver a sua infância. Pois, como ela diz,

o sofrimento começou a fazer parte de sua vida.

8 Entrevista com Antônia Cleide Alves realizada em 02/02/2010

9 Entrevista com Antônia Cleide Alves realizada em 02/02/2010

10 Entrevista com Antônia Cleide Alves realizada em 02/02/2010

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Foi um período que a gente sofreu muito lá, né? Porque, aí, a gente foi trabalhar na fazenda. E trabalhar em fazenda era o seguinte: Você comprava, já comprava da própria fazenda. Você nunca tinha dinheiro pra nada. Daí só trabalho. A gente foi morar numa fazenda lá bem no finalzinho de Mato Grosso.11

Chegando lá, encontra uma realidade com a qual não estava

acostumada. As pessoas estavam desmatando o Mato Grosso, o que ela em

sua meninice achava a melhor coisa, comentário que faz com certa ironia.

Como sua tia era muito pobre, Antônia Cleide e sua família foram morar

naquela fazenda que tinha mais trabalho que brincadeira. E lá trabalhava na

colheita do algodão, junto com seu pai e seus irmãos.

Nessa situação, Antônia Cleide ficou com sua família em Mato Grosso,

durante dois anos. Mas tinha o sonho de morar na cidade de São Paulo, sonho

esse acalentado por muitos migrantes no Brasil. Com uma família que

conheceram em Mato Grosso, vieram para São Paulo. Essa família de amigos

teve a função de apresentar a cidade de São Paulo para a família de Antônia

Cleide.

Ao chegar, aos sete anos de idade, à cidade de São Paulo, lembra que

logo começou a estudar. Parece que essa questão da educação é emblemática

para a vida e para as lembranças de Antônia Cleide.

Em São Paulo, a vida também não foi fácil. Não conheciam ninguém a

não ser aquela família que ―apresentaria‖ a cidade para eles. Imediatamente,

Antônia Cleide foi para a favela de Vila Zelina, junto com a família dos amigos

―apresentadores‖ da cidade. Lá foram para a casa de parentes da família

desses amigos, onde ficaram por quase um ano. Ao saírem de lá, foram para

outra favela. Era a Vila Prudente. Enfrentando uma situação precária, morando

em um barraco bem pequeno que não conseguia abrigar adequadamente a

família e cujas acomodações minúsculas dificultavam a locomoção de seu pai.

―Meu pai tem 1,70 m de altura. Meu pai não conseguia ficar em pé no

11

Entrevista com Antônia Cleide Alves realizada em 02/02/2010.

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barraquinho pequenininho. A gente ficou morando nesse barraquinho lá”.12

Apesar de toda a dificuldade e sem quaisquer outras possibilidades, ficaram

por lá.

A Vila Prudente, para Antônia Cleide, foi o lugar especial de boas

recordações. Mesmo enfrentando dificuldades e privações ela se lembra desse

lugar com saudosismo e até emoção.

Me recordo de lá. Lá, na verdade, tinha duas pessoas que cuidavam muito da gente. Porque tinha que sair pra trabalhar, meu pai e minha mãe. Nós éramos em quatro. E ficava sozinha lá, né? E era um quintal lá. [...] Tinha uma pessoa que era uma prostituta. Tinha uma outra que bebia. E tinha uma outra que era uma deficiente. Nesse local.13

Interessante que as lembranças de Antônia Cleide desse lugar estão

mais relacionadas às pessoas com quem ela se relacionou. A lembrança

individual de Antônia Cleide só existe por causa da relação social com os

outros. Portanto, ela não se lembra sozinha, mas sempre em companhia de

com quem viveu em seu grupo. A imagem que tem nas lembranças são

imagens dos outros, e não somente suas. Como diz Halbwachs (2006, p.76)

É mais comum considerarmos a memória uma faculdade propriamente individual – ou seja, que aparece em uma consciência reduzida a seus únicos recursos, isolada dos outros, e capaz de evocar, por vontade ou por acaso, os estados pelos quais passou antes. [...] frequentemente reintegramos nossas lembranças em um espaço e em um tempo sobre cujas divisões nos entendemos com os outros, de que nos situamos também entre datas que não têm sentido senão em relação aos grupos de que fazíamos parte.

Quando Antônia Cleide se lembra da favela de Vila Prudente, com seus

contornos e peculiaridades, o faz trazendo à mente os rostos, as imagens, os

12

Entrevista com Antônia Cleide Alves realizada em 02/02/2010

13 Entrevista com Antônia Cleide Alves realizada em 02/02/2010.

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lugares onde as pessoas se relacionavam com o lugar, onde todos pegavam

água que era o ponto de encontro, segundo ela recorda:

Quando nós morava era o único lugar que tinha água. Era um poço. Lá na Vila Prudente. Em 70, isso já foi 70, 71. Quando nós chegamos lá... Aqui em SP. Nesse lugar não tinha água encanada na favela. Então, todo mundo vinha naquele lugar pegar água. Então, quer dizer... A favela inteira a gente conhecia. E todo mundo se conhecia porque aquele era o ponto de encontro, né? 14

Era lá, na Vila Prudente, que ela tinha as relações que havia perdido

quando morava em Mato Grosso. A favela de Vila Prudente foi a reconstrução

da vida antiga quando saiu do Ceará, junto com os pais e com os irmãos, para

um lugar distante e diferente, em uma situação contraditória. Mesmo que na

favela não pudesse se aproximar do que vivia em sua terra natal, ao menos

tinha o que lhe era mais precioso: a solidariedade de gente que ela jamais

imaginava conhecer. Até que essa vida mais tranquila de relações próximas foi

rompida pela ação do poder público municipal.

Em 1972, ela sofre mais uma ruptura e vem para Heliópolis, que antes

era uma devastação total. Perde então aquela atmosfera de solidariedade

existente na favela de Vila Prudente. A ação do governo municipal separou

pessoas que se articulavam mutuamente visando a sobrevivência. De acordo

com Alessi (2009, p.18).

a ocupação iniciou em 1971 com a instalação de alojamentos provisórios para atingir 150 famílias removidas da favela Vila Prudente por necessidade de obras públicas. Em 1978 foi implantado novo alojamento para 60 famílias removidas da favela do Vergueiro

14

Entrevista com Antônia Cleide Alves realizada em 02/02/2010.

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Ao chegar a Heliópolis, reconhece que não foi bom vir, porque, ao

chegar aqui, nada encontrava. Enquanto na Vila Prudente, mesmo que

precária, tinha uma estrutura que a consolava.

Então assim... Eu lembro que não foi bom vim pra cá. Não era bom... Era perigoso. Era tudo mato. Era tudo longe. Tudo diferente da Vila Prudente. Lá era tudo perto. Lá eu tinha religião. Local pra ir de domingo. Tinha escola. Já tinha montado lá. Tinha bombeiro. Porque tinha lá um bombeiro lá perto. No dia das crianças a gente ia lá ganhar brinquedo. Eu tinha a vizinha tal que eu ficava lá com a filha dela que ela me dava presente. Eu já tinha uma estrutura. Eu tinha uma estrutura assim mínima. Que a gente... Se precisava sentir essa solidariedade, esse conforto. Acho que era isso que, na verdade, tinha. Quando vem pra cá, tenho que reconstruir tudo isso de novo.15

Mas teve de cuidar dos seus irmãos mais novos, estudar e ainda ir à

feira pegar alimentos para a família na companhia de amigas e da irmã.

Começa a trabalhar bem cedo e continua a lutar para estudar mesmo contra a

vontade de sua mãe.

Chegou a se aproximar da igreja católica e de um centro espírita. E até

passou algumas vezes pela igreja batista. Mas foi na igreja católica que se

identificou com a possibilidade de se envolver na vida social do lugar. Entrou

para a associação de moradores do bairro de Heliópolis, a Sociedade dos

Amigos Moradores de Heliópolis (SAMH) e logo se destacou, tornando-se a

secretária. Após conhecer os líderes da Comissão de Moradores (CM),

percebeu que era muito diferente a proposta; pois, enquanto a associação era

mais ligada ao governo, a CM era mais aguerrida nas reais necessidades de

15

Entrevista com Antônia Cleide Alves realizada em 02/02/2010.

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moradia dos indivíduos. Portanto, passou para a CM quando derrotou o

presidente João Isaías, o João Prefeito, nas votações.

Esse envolvimento começou aos 17 anos de idade e até hoje Antônia

Cleide continua envolvida completamente com a favela de Heliópolis sendo

presidente da UNAS.

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João Miranda Neto

João Miranda nasceu na cidade de Pau D'alho. Uma cidade bem

pequena no interior de Pernambuco. Na Zona da Mata. João viveu nessa

cidade que era mais conhecida por conta de São Severino do Ramo. Muitas

pessoas até hoje vão pra lá, onde há uma capelinha pequena, mas muito

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bonita. Mas Pau D'alho tem esse nome porque, segundo a lenda, um pé de

alho caiu e fez um grande estrondo.

Nessa cidade, João Miranda estudou até a 3ª série. Com a morte do pai,

foi para Recife. Nessa época, ele tinha nove anos e trabalhava ajudando o pai

na feira. O pai vendia materiais para animais de carga. Especificamente para

cavalos e burros. Às vezes, aqui construía alguns materiais e os vendia na

feira. Lá ele pôde ver o seu pai trabalhando e dando valor ao que fazia. Mas,

bebia muito e isso não o ajudou a aprender muito com o pai que logo faleceu.

Entretanto, João pode dizer; ―Não posso me queixar muito da minha infância,

não‖.16 Mesmo que tenha sido curta e marcada por trabalho e pouca

escolaridade.

Em Recife, já começou a trabalhar com 12 para 13 anos. Trabalhou de

garçom em uma churrascaria em um posto de estrada e logo aprendeu o ofício.

Depois foi trabalhar na Universidade de Pernambuco, no bairro Três Irmãos.

Percebendo que alguns alunos tinham mais dificuldades, usava a situação da

qual desfrutava para ajudá-los. Sempre fazia a mais os alimentos ou bebidas

para poder alimentar os alunos necessitados da universidade.

Teve cinco irmãos do casamento de sua mãe com seu pai legítimo. Dois

deles faleceram. Sua mãe se casou novamente, e ele foi morar com a avó.

Depois, voltou a morar com a mãe, mantendo uma grande amizade com o seu

padrasto, como conta:

Mas depois que a gente começou a se chegar, eu considerava ele como um pai meu. Sabe? Nunca vi uma amizade com um padrasto como eu tive com o meu padrasto, assim, no sentido de respeito, sabe? Nunca falava de bater em mim, sabe? Dava conselho. Então, uma pessoa muito legal. A gente se deu bem.17

16

Entrevista com João Miranda realizada em 02/02/2010

17 Entrevista com João Miranda realizada em 04/02/2010

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Desse relacionamento, João Miranda teve mais três irmãos. Trabalhou

na universidade até os 16 anos, o que considera algo muito importante para

sua vida. Mas, com 17 anos já estava no Exército. E conheceu a sua esposa

ali, casando-se aos 19 anos.

A motivação para vir para São Paulo era o trabalho. Após servir o

Exército, veio para São Paulo sozinho, na tentativa de arrumar o emprego e

buscar a esposa que já estava grávida do primeiro filho. Sua ideia era de

retornar ao nordeste. Era início de 1976.

Chegando a São Paulo, foi direto para a casa de uma cunhada, no bairro

Parque São Lucas. Começou a trabalhar em São Caetano, na empresa INASA.

Sua função inicial foi de ajudante geral. A profissão de garçom não lhe dava

muitas possibilidades na grande cidade, mesmo que tenha vindo com boas

referências. Durante seis meses, ficou sem a presença da esposa e do filho

que logo vieram e se instalaram no mesmo local. Como o local era pequeno

para duas famílias, João Miranda e a sua esposa alugaram um quarto, ainda

no Parque São Lucas, e começaram a vida em família. As necessidades eram

grandes, mas a vontade de se instalar na metrópole superava todas as

dificuldades.

Aí, alugamos um quartinho lá, arrumamos um fogão velho lá. Compramos. Aí, a gente começou comprar as panela pra fazer comida. E o colchão, cara, de dia a gente colocava o colchão em pé e, à noite, ele ficava no chão porque não tinha passagem. Aí, começamos assim com filho e tudo. Muito pequeno o quartinho.18

Depois, João e sua família foram morar na Ponte Preta, no bairro São

João Clímaco. Fala isso com certo orgulho, por saber que o presidente Lula

também morou por lá.

18

Entrevista com João Miranda realizada em 04/02/2010

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Para João Miranda, o trabalho é o ponto de segurança que fez com que

ele continuasse a vida na cidade de São Paulo. Percebe-se que sua memória é

bem seletiva nas questões de trabalho. Ao sair da INASA, foi para Eveready,

uma fábrica de pilhas. Lá começaram as lutas por direitos dos trabalhadores.

Mas também foi na fábrica Eveready que João teve os primeiros contatos com

os movimentos sindicais e com a pastoral que desenvolvia a conscientização

de operários na cidade.19

Depois de morar na Ponte Preta, compra um barraquinho em Heliópolis,

em 1979, por 120 cruzeiros. Não tendo dinheiro, relembra a ajuda recebida de

toda a família para a compra do barraco. Mas o que chama a sua atenção e o

faz lembrar com mais exatidão desse fato foi que o seu sogro juntou todo o

dinheiro que ele e sua esposa mandavam e devolveu para que eles pudessem

comprar a casa própria.

Aí, faltava 30. Faltavam 30, e esses 30 meu sogro mandou lá do norte. Trinta cruzeiros pra comprar o barraco. Trinta cruzeiros. Aí, eu paguei pra ele. Ele veio aqui depois e viu o barraquinho da gente, ele falou: ―olha, esse dinheiro que tava guardado foi minha filha mais você que me mandava todo mês e eu fui guardando, eu não precisava gastar. Fui guardando esse dinheiro, olha como serviu pra vocês. De hoje em diante o dinheiro que você pagava aluguel, abri uma poupancinha.20

19

―A retomada do movimento sindical combativo ocorreu, a rigor, antes de 1976, já em 1974, a

região do ABC renovava seus quadros incluindo personagens que entrariam para a história do

país, não só naquele período, mas nas décadas seguintes, como o caso de Luís Inácio Lula da

Silva. As análises sobre o papel dos novos movimentos sindicais da década de 1970 destacam

que, além da retomada do sindicalismo crítico, não pelego, o grande elemento transformador

foi a forma como o movimento se reestruturou.

GOHN. Maria da Glória. História dos Movimentos e Lutas Sociais – A construção da Cidadania

dos Brasileiros. Edições Loyola. 2001, p.116

20 Entrevista com João Miranda realizada em 04/02/2010

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João Miranda relembra a história da sua chegada em Heliópolis e

reconhece o quanto a favela proporcionou a ele coisas boas. É a partir desse

lugar que a sua memória se conecta com a memória de toda a favela porque,

segundo Halbwachs (2006, p.134) ―a população pobre também não se deixa

deslocar sem resistências, sem ressentimentos e, mesmo quando cede, sem

deixar atrás muitas partes de si mesma‖. O lugar, a favela que já é reconhecida

na cidade de São Paulo, passa a existir, não só porque tem o espaço, mas

também porque os indivíduos se identificam com esse espaço. A memória

surge quando aguçada pelo contexto que se evidencia ao indivíduo e ao grupo.

Como diziam Nascimento e Melenandro (2005, p.5-19) ―lembrar implica

partilhar lembranças‖. Seus sentidos são instrumentos importantes para

relembrar as situações vividas. João Miranda pôde rever em suas lembranças

as lutas com grileiros, com a prefeitura, policiais e sempre recorda que só pôde

resistir a tudo com a ajuda da igreja católica, por meio de padres, freis, freiras,

bispos que realizavam as pastorais da favela, da moradia, bem como alguns

protestantes, como pastores que cediam suas igrejas para as reuniões.

Toda a lembrança de João Miranda está embasada nas ações de outras

pessoas que dividiam as mesmas ansiedades. Mas, sobretudo, não deixa de

manifestar a sua fé naquele que ele chama de ―Deus vivo‖. Para ele a igreja

que estava na luta por moradia digna para os mais pobres estava a serviço do

Deus vivo. E aquelas que não estavam voltadas para essa realidade serviam

ao que ele chama de ―deus morto‖.

Tanto as questões religiosas quanto as de trabalho norteiam as

memórias de João Miranda. Parecem ser assuntos de maior grandeza para ele.

Durante sua vida, o trabalho foi o ponto de convergência até para o

envolvimento com as questões de moradia. Em sua memória, estão vivas as

instâncias do trabalho e da necessidade de moradia para todos. Enfatiza que a

igreja e um pouco o exemplo de sua mãe foram preponderantes para o seu

engajamento social.

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Em Heliópolis, começa a Comissão de Moradores que serve de

resistência para aqueles que desejavam tirar os direitos dos indivíduos como

ele de viver em condições adequadas. Chega junto com várias pessoas à

construção da UNAS e pode ver o desenvolvimento da favela de Heliópolis, na

cidade de São Paulo. Embora afirme que nunca pensou em construir uma

favela, mas, sim, que desejava morar, sair do aluguel, alcançar seu sonho e

mostrar à sociedade que a relação dos moradores com a favela e com o solo

faz parte da história da cidade de São Paulo. Essa relação coletiva está

preservada na memória de cada morador da favela. Isso coaduna com o que

disse mais uma vez Halbwachs (2006, p.173)

A sociedade não estabelece uma relação entre a imagem de um lugar e sua descrição por escrito. Ela só vê o lugar a partir do momento em que ele já estiver ligado a uma pessoa, seja porque esta o circundou de limites e fechaduras, seja porque normalmente ali reside, o explora ou o faça explorar por sua conta.

Para Halbwachs, a memória, quando percebe o espaço e dele se

apropria, entra na esfera do direito àquele espaço. As lembranças passam a

penetrar na memória dos indivíduos como propriedades de direito de quem se

lembra.

Embora possamos notar a singularidade dos períodos como se fossem

sucessão cronológica a memória em João Miranda se mostra como se fosse

um só período sem compartimentos. Pode-se dizer também que essa memória

coletiva, relativa a vários acontecimentos, traz para João uma compreensão de

pertencimento ao lugar de onde se lembra de tantas coisas que se cristalizam

na forma de imagens quando lembradas por ele e pelo grupo. Mas essas

lembranças existem por causa das referências e do pertencimento que ainda

tem na favela de Heliópolis.

A memória, essa operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, integra-

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se, como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações etc. A referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade, mas também as oposições irredutíveis (POLLAK, 1989, p.7)

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Genésia Ferreira da Silva Miranda

Genésia nasceu no dia 24 de novembro de 1957, na cidade de

Itabaiana, no Estado da Paraíba. Lá teve uma infância muito criativa, apesar da

pobreza. Viviam da agricultura. Ela lembra que sua infância foi muito boa,

principalmente porque, naquela época, não tinha maldade, e a vida era mais

natural.

Essa naturalidade já fazia com que a Genésia utilizasse de táticas para

dar às coisas novos usos, fazendo da melancia e da espiga de milho formas de

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brinquedo para burlar as necessidades que, desde cedo, estavam presentes,

criando novos espaços com aquilo que o lugar próprio determinava a esses

elementos mostrando que, nesse lugar próprio, há movimentos constantes que

produzem novas leituras das coisas. Como ressalta Josgrilberg (2005, p.74-

75), refletindo sobre os textos de Certeau:

Em constante tensão com o lugar próprio, o espaço é marcado por ‗cruzamentos de movimentos‘, é o ‗efeito produzido por uma série de operações‘, uma ‗unidade de proximidades contratuais‘. [...] Esse não lugar força o movimento. O modo intelectual das táticas não é discurso (um texto), mas um ato.

Após esse momento, Genésia muda com sua família para a cidade de

São Lourenço. Essa cidade era bem diferente. Tinha muito mato, e eles

cresceram junto com a cidade. Mas, para Genésia, essa saída de Itabaiana

para São Lourenço não foi muito tranquila, pois começou a sentir os percalços

da migração.

Porque você muda de uma cidade. Pra adaptar mesmo, minha família, minha mãe. Há muito sofrimento, né? Pra família toda. Mas era uma grande necessidade do meu pai e da minha mãe de ir pra o Pernambuco. Por que os meninos mais velhos estavam crescendo e não queriam trabalhar na roça e precisava trabalhar em outro emprego, então, meu pai, realmente, saiu pra vim pra Pernambuco. 21

A necessidade era imensa e seu pai precisava trabalhar ainda na

Paraíba. Genésia lembra, como se estivesse olhando o horizonte ao longe, às

vezes que seu pai chegava em casa. Ele trazia alimento para família. Até os 14

anos, ela viveu essa experiência de ver seu pai chegando, junto com seus nove

irmãos, no final da semana com os alimentos. Essa cena em sua memória está

enquadrada como se fosse um filme com início e fim.

Com 14 anos, Genésia começou a trabalhar na fábrica de fósforo FIAT

LUX, em São Luiz da Mata. Trabalhou lá até os 18 anos. Ano em que se casou

21 Entrevista com Genésia Ferreira da Silva Miranda realizada em 02/02/2010

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e teve seu primeiro filho. Foi despedida da empresa e atribui isso a ter ficado

grávida, como costumava acontecer naquela época. As mulheres eram

despedidas quando ficavam grávidas. Segundo ela, não havia direito algum.

Pela necessidade, veio para São Paulo com o esposo João Miranda e o

filho único que, naquela época, estava com seis meses de idade. Ao chegar em

São Paulo, foi morar com uma irmã no Parque São Lucas. Alugou um cômodo

com seu marido, mesmo sem condições para pagar o aluguel. Com o trabalho

do marido na INASA, ficou mais fácil para pagar as contas. Após morar no

Parque São Lucas, Genésia mudou com a família para a Ponte Preta, no São

João Clímaco. Mas acalentava o sonho de morar em uma casa própria, mesmo

que fosse de madeira.

Ah... Era sempre um grande sonho que eu tinha era vim morar em algum lugar que não pagasse aluguel. A dificuldade era muito grande. A gente tinha dificuldade até para se alimentar. Porque se pagava imposto, água, luz, aluguel. Não sobrava nada, então... Tinha dificuldade de alimentar o filho. Então, era o maior sonho era morar num lugar que não pagasse aluguel.22

Tinha 25 anos, quando chegou em Heliópolis. Nessa época, seu marido

já tinha se transferido para outra empresa, no bairro do Arapuá, na cidade de

São Paulo. Lá trabalhou em uma fábrica de pilhas chamada Eveready. Na

Eveready, seu marido conheceu o Sebastião, um rapaz que tinha um barraco

em Heliópolis. Já estavam acontecendo as ocupações na área. Isso foi em

1979. Embora ela tivesse com os filhos pequenos, e seu marido trabalhasse à

noite, Genésia não perdeu a vontade de morar em Heliópolis e ter seu sonho

realizado. Convenceu seu marido que não queria comprar por não sentir

segurança alguma no lugar. Era cheio de mato e muito isolado, além da

dificuldade que teriam para pagar o barraco, pois não tinham o dinheiro. Foi aí

que receberam ajuda de toda a família e conseguiram comprar o barraco. Ela

lembra com certo humor que ―na época era 120... Cruzeiro? Não. Qual a

moeda antes? Até esqueci. [momento em que ela ri da situação] Faz tantos

22 Entrevista com Genésia Ferreira da Silva Miranda realizada em 02/02/2010

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anos. E a gente tinha maior dificuldade desse dinheiro. Imagina! Nossa! Daí

eles mandaram o dinheiro, e nós compramos”. 23

A luta por melhores condições de vida não amedrontava Genésia que

passou a morar em um lugar cheio de adversidade. Mas isso não a assustava

porque já havia aprendido com os seus pais a lutar para obter melhor qualidade

de vida. Seu pai trabalhou a vida inteira na roça, e sua mãe era costureira. Mas

lutaram muito para manter os filhos. E passaram para estes que a união da

família era o mais importante. Isto ela e seus irmãos aprenderam e cultivam até

os dias de hoje.

Ao chegar a Heliópolis, não tinha o conhecimento das dificuldades que

enfrentaria. A área estava sendo palco de disputas de terras e violências. Ela

conta que nada sabia da força dos grileiros na área.

Quando eu cheguei aqui... Era muito matagal. Mais ou menos 60 barracos, tinha aqui. Eu vim um dia... Mudei um dia à noite... No dia seguinte, eu não sabia... Comprei um barraco sem saber que na área existia grilagem, né? Nós não tinha noção disso. Aliás, os moradores que morava aqui também não tinham noção disso. Que existia grilagem.24

Genésia, ao entrar na área, sem saber, segundo ela, começa a penetrar

nessa estratégia. Interessante é que ela faz a sua mudança à noite. Essa

situação pode revelar certo silêncio quanto à situação real da área em relação

aos grileiros. Ao chegar, logo é surpreendida com a lei do lugar de que deveria

assinar um contrato de aluguel, feito pelos grileiros para todos os moradores de

Heliópolis. O que ela não aceitou, por ter dentro de si o sonho de morar em

uma casa onde ela não precisasse pagar aluguel. Ela queria ter um espaço que

fosse seu e de sua família. Pagar aluguel estava fora de qualquer cogitação.

23

Entrevista com Genésia Ferreira da Silva Miranda realizada em 02/02/2010

24 Entrevista com Genésia Ferreira da Silva Miranda realizada em 02/02/2010

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Ao observar a opressão dos grileiros e a pobreza e miséria dos

moradores, Genésia prefere a resistência, apesar dos sofrimentos constantes

tanto para si mesma como para a sua família. Começa a articular os moradores

indo de barraco em barraco conversar com as famílias. Questionava porque

deviam pagar se todos haviam comprado os barracos. Isso fazia escondido do

marido que só foi saber depois, quando teve de enfrentar diretamente os

grileiros e os policiais que pareciam fazer parte do mesmo grupo.

Sempre quando ele [o marido] tava dormindo, eu ia conversar com a população, com o povo. Sempre num barraquinho, no outro. E eles foram observando que eu tava conversando com o povo. Aí, eles começaram a me perseguir. Ir atrás de mim. Perguntavam pra mim: ―Você vai sair quando? Nós demos um prazo. Vai sair quando? Vai passar a máquina.‖ Aquela pressão, né? E um dia eu me zanguei e falei: ‗Não vou sair e não vou pagar‘.25

Essa recusa da Genésia em pagar o aluguel e sair da área trouxe alguns

dissabores para ela e os seus a ponto de ela, seu marido e seu cunhado serem

agredidos por grileiros que dominavam a área. Mas isso não a intimidou, e os

moradores começaram a participar, mesmo que escondidos, das reuniões que

Genésia já estava realizando. Alguns até começaram a proteger a ela e sua

família das maldades dos grileiros.

Algo importante para Genésia foi a participação de padres, assistentes

sociais, freis e freiras no processo de enfrentamento das leis estabelecidas

pelos grileiros na área. Lembra-se da articulação da igreja católica por

intermédio da pastoral da favela na formação política daqueles que já estavam

envolvidos. Na década de 1970, muitos movimentos sociais surgiram no Brasil.

A igreja católica e representantes de igrejas protestantes motivam as classes

mais pobres a buscar seus direitos sociais, principalmente o da moradia. Desde

as ações propriamente ditas, bem como a construção de documentos

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balizando essas ações da igreja como um todo. Como podemos ver, na

segunda parte do documento elaborado na 20ª Assembleia Geral dos Bispos,

em 1982, e citado por Wanderley (1992, p.154), que diz: ―Concluímos que o

direito de moradia tem primazia sobre a lei positiva que preside à apropriação

do solo. Apenas um título jurídico sobre uma propriedade não pode ser um

valor absoluto, acima das necessidades humanas das pessoas que não têm

onde instalar seu lar‖. Essa compreensão teológico-social que tomava conta de

muitas igrejas cristãs, cunhada pela Teologia da Libertação, deu-se por

intermédio das comunidades eclesiais de base, da mobilização popular, das

reivindicações por mais clareza nos projetos de habitação nas grandes

cidades, do incentivo à organização de associações nas favelas, das ações das

pastorais da favela e da moradia.

Tudo isso influenciou muito a vida de Genésia que continuou a lutar na

favela de Heliópolis. Pois foi na favela que ela alcançou o sonho de morar e de

ter uma moradia. Interessante notar como a compreensão de cidadania se

apodera de Genésia podendo dizer que tinha alcançado seu sonho obtendo a

casa própria. Como afirma Ribeiro (2006, p. 26)

Em última instância, a casa própria confere ao trabalhador sua condição de cidadão, um paradoxo que o Brasil, assim como outros países da América Latina, onde a cidadania que deveria construir, por princípio, no espaço público, identifica-se a partir do privado, na afirmação da propriedade privada.

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João Isaías (o João Prefeito)

Na verdade seu nome é João Isaías, mas a favela de Heliópolis o

conhece como João Prefeito. Desde cedo, mostrou-se um líder nato. Nasceu

na cidade de Souza, na Paraíba, mas, logo aos seis anos, migrou para Feira de

Santana, na Bahia, e lá ficou até os 16 anos. Além de estudar, vendia laranja

para ganhar uns trocados. Filho de pedreiro com uma doméstica, João sempre

teve bom exemplo de luta. Mas, aos 16 anos, em busca de uma vida

independente, foi para a cidade de São Paulo e, logo, teve de enfrentar as

privações que não o fizeram desistir, pois evidenciava uma postura de

negociador que o levaria a ter caminhos abertos no futuro de muito trabalho.

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Cheguei aqui em São Paulo, sem dinheiro. Só tinha um relógio. Consegui numa pensão e empenhei esse relógio por 15 dias, né? Mas, logo arrumei trabalho numa metalúrgica como faxineiro. Aí, eu fazia a faxina, e o patrão me dava oportunidade nas máquinas. Aí comecei a aprender alguma coisa. E fui estudar. Estudei no SENAI de São Caetano. Fiz o SENAI, fiz o estágio. Trabalhei 15 anos na metalurgia. Meu último serviço foi numa empresa na Mooca. Maquinas Últimas. Na qual eu tive que sair devido os trabalhos na comunidade.26

Tendo 12 irmãos, quando João Isaías recebeu a notícia do falecimento

do seu pai, passou a se responsabilizar pelos seus irmãos e por sua mãe que

ainda estavam na Bahia. Ele, nessa época, por intermédio do trabalho em São

Paulo, começou a sustentar a família na Bahia, mas, devido à morte de seu

pai, sentiu a necessidade de trazê-los para São Paulo. Para tanto, precisou

comprar um barraco na favela do Livieiro, porque as pessoas não o deixavam

alugar nenhuma casa por causa de sua pouca idade. Como líder que já era,

começa a desenvolver atividades na favela, buscando melhores condições

para os moradores, mesmo que fosse um trabalho ainda incipiente e sem saber

nada sobre movimentos populares nem o movimento da moradia. Em suas

palavras, recordações com alegria:

Aí, comecei a desenvolver meu trabalho lá na favela do Livieiro. Eu fazia nos corredores, nas vielas. Procurava o pessoal e fazia mutirão. Cimentava as vielas. Canalizava, comprava e dividia. Isso sem nenhuma intenção de movimento popular. Não conhecia nada disso.27

Após seu casamento, em São Paulo, foi morar na favela de Heliópolis,

em 1977. Lembra-se que a favela tinha muito mato e vários campos de futebol.

26 Entrevista com João Isaías realizada em 29/01/2010

27 Entrevista com João Isaías realizada em 29/01/2010

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Em sua conta eram 1828 campos. E as pessoas, desenfreadamente, ocuparam

os espaços vazios. Portanto, sente a necessidade de ter uma organização para

que as ocupações fossem acompanhadas pelos moradores que lá já estavam.

Percebia também que a área, que já tinha sido ocupada pela Prefeitura

Municipal de São Paulo, era cobiçada por empresários que desejavam

construir um shopping center no local. Logo, a organização popular era

extremamente urgente e necessária.

Depois de muitas lutas, porque os policiais não as coibiam, conseguiu,

juntos com outros moradores, construir a primeira associação de moradores da

favela Heliópolis com o nome Associação dos Amigos dos Moradores de

Heliópolis. João Isaías tornou-se o primeiro presidente da associação

legalizada na favela de Heliópolis. Por isso se diferenciava, era considerado

dentro da lei.

João Isaías enfrentou, como os outros líderes, toda a perseguição dos

policiais e do poder público, apesar de ser acusado de apoiar os governos

municipais. Tinha uma boa relação com a favela, ajudava distribuindo cestas

básicas e tentando suprir as necessidades mais urgentes dos moradores.

Recorda que a luta com os grileiros foi um movimento determinante para a

continuidade das ocupações.

A vida pessoal de João Isaías é notadamente bem intensa. Pai de sete

filhos, fala deles com certa mistura de tristeza e alegria, pois ele perdeu um dos

filhos para o tráfico, o que ainda faz sentir-se traído por causa da atividade e o

respeito que havia adquirido na favela. Registra-se isto nas palavras do próprio

João Isaías quando, cheio de dor, diz: ―Naquele momento senti assim... Como

eu diria? É você nem ter palavras como falar... Se sente traído. Naquele

momento ali... Por ter a comunidade... Por ter... 29 [silêncio. Momento de

28

Essa informação é controversa. Há falas que dão conta de 23 campos, 16 e até 54. A

Superintendência de Habitação Popular nos informou que, na realidade, eram dez campos de

futebol.

29 Entrevista com João Isaías realizada em 29/01/2010

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emoção, olhos lagrimejantes]. Entretanto, é compensada pela vitória de ver

seus outros filhos criados e formados. ―Tenho mais seis filhos. Tenho um

formado em teologia. E agora tá fazendo engenharia de produção. Tem um

formado em administração. Tem uma menina fazendo pedagogia. Tem um

fazendo direito. Então, estão todos encaminhados, né?‖30

A memória pode aflorar muitas dores individuais, mas as circunstâncias

atuais podem servir como uma espécie de consolo que retire os medos da

lembrança. Relembrar é uma atividade laboriosa por se mostrar também

angustiante, mas essa memória, quando se projeta na esfera social,torna-se

coletiva e esvazia a força da dor individual. Conforme reflete Thompson (1988

p. 208):

Para a maioria das pessoas, o sofrimento do passado é muito mais suportável, por encontrar-se ao lado de boas lembranças de alegria, afeto e realização, e a lembrança destas e daquelas pode ser uma coisa positiva. Recordar a própria vida é fundamental para nosso sentimento de identidade; continuar lidando com essa lembrança pode fortalecer, ou recapitular, a autoconfiança.

Não deixa de reconhecer a sua fé em Deus, mas faz certa separação

entre a questão religiosa e o movimento de moradia por perceber a

necessidade falando mais alto que tudo. Entretanto, reconhece as atividades

da igreja católica junto ao movimento como tempo importante para o

desenvolvimento da luta.

Por ter apoiado alguns projetos do governo municipal, principalmente do

período do prefeito Maluf, foi por muito tempo caracterizado por aqueles que

ele chama de ―movimentos clandestinos‖ de estar sendo manipulado pelos

governos e fazendo o jogo deles. Mas, logo se une à UNAS e começa a fazer

um só coro com a Comissão de Moradores, grupo designado como baderneiro.

30

Entrevista com João Isaías realizada em 29/01/2010

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Essa união serviu para destruir as várias divergências, principalmente as

políticas, que existiam entre os líderes que começaram a resistência por

moradia na favela.

Além dos filhos que João Isaías menciona com orgulho. Outra alegria

que ele demonstra é falar dos irmãos que ele trouxe, um a um, e que estão

todos com famílias constituídas. Mas toda essa atividade individual não se

distanciou da vida social e da busca pelos direitos. A vida familiar estava ligada

de forma intrínseca à vida da favela. Parece que João não conseguiu e não

quis separar sua vida social da familiar e individual. Nas suas lembranças, a

favela de Heliópolis é o ponto de partida da memória. Segundo POLLAK (1989,

p. 12) ―mesmo na esfera individual, o trabalho da memória é indissociável da

organização social da vida‖.

João Isaías teve de parar de trabalhar como metalúrgico por que se

envolveu demais com a favela, mas continuou sua luta individual até se firmar e

poder se valorizar como alguém que lutou e cuidou de toda a família, além de

também cuidar de si mesmo se formando e continuado a trabalhar pelos

moradores da favela.

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Delmiro Monteiro Farias

Delmiro nasceu em Olho D‘água, uma vila no Estado do Maranhão.

Segundo ele, uma bonita praia de banho. Essa praia é bem pequena, perto de

Turú. Naquela época, havia uma grande quantidade de terrenos e tudo era

mato. A estrada era de terra vermelha, chamada de piçá.

Delmiro viveu a sua infância, muito sofrida, nessa vila. Lá trabalhava

com seu pai na roça que servia para subsistência da família. Nessa roça,

plantavam feijão, milho, arroz, melancia, além da mandioca com que produziam

farinha. Como os pais eram bem pobres, a família recebia o Abono Familiar

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que era dado pelo governo de Getúlio Vargas. Eram 15 irmãos, e a situação

era apertada. Desses irmãos, somente oito recebiam o Abono Familiar, o que

ajudava no sustento da família.

Uma das lembranças mais marcantes de Delmiro diz respeito à época

em que seu pai se dirigia à prefeitura para receber o Abono Familiar. Era uma

festa. Seu pai sempre perguntava à mulher o que devia levar para ele e seus

irmãos. A mãe de Delmiro era costureira, por isso citava as peças de tecidos

que seu pai devia comprar para que ela pudesse fazer as roupas para toda a

família. Delmiro cita com certa alegria os tecidos que sabe de cor. Era o

cretone, o riscado, a mescla, o caqui, a chita e o algodão. Segundo ele, com a

chita e o cretone, ela fazia roupas para suas irmãs. Com o cretone, fazia

roupas específicas para elas trabalharem. Porque elas já raspavam mandioca,

cortavam arroz, colhiam feijão. Já para os meninos, usava o caqui, a mescla, o

riscado. Com a mescla e o caqui, dava para fazer as calças. Com o riscado, a

mãe de Delmiro fazia camisas. Segundo Delmiro, as peças de tecidos eram

levadas a sua casa no cambito, em cima de um jumento. O cambito era de

madeira e parecido com um estilingue onde se prendia os sacos de tecidos.

Quando seu pai chegava, sempre era recebido com muita festa e alegria.

Então meu pai trazia nos animais, trazia no jumento. Os pedaços de tecido. Ah! Era uma festa. Meu pai que trazia, e minha mãe costurava, né? Com aquela maquininha de mão. Naquela época, ela costurava naquela maquininha. Minha mãe fazia até paletó. Ela era boa costureira, boa costureira.31

Delmiro se lembra de ter começado a trabalhar na roça com o seu pai

aos cinco anos. Lá ele capinava, pegava melancia. Era barrigudo. Brinca com a

situação, dizendo que carregava a melancia na barriga. Antes de receber o

Abono Familiar, a situação era muito ruim, pois andava com as costas

31 Entrevista com Delmiro Monteiro Farias, realizada em 06/02/2010

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descobertas e sofria com a quantidade de sol que pegava. Com o Abono

Familiar, as coisas começaram a mudar um pouco.

Delmiro teve muitas dificuldades para estudar. Não havia escolas onde

moravam. Somente na capital havia escolas, sendo raros os professores que

chegavam naquela vila, a 16 quilômetros da capital. Delmiro teve de burlar seu

próprio pai que não concordava que ele e seus irmãos estudassem, pois

achava que eles deviam trabalhar.

E eu estudava, e meu pai, pra isso, ele era ingrato, ele preferia que a gente trabalhasse e não fosse pra escola. Então, eu fugia, minha mãe queria que nós estudássemos, e eu fugia do serviço, pulava a cerca do quintal, com a cartilha, a carta de ABC, no tempo era carta de ABC, né? A gente colocava aquilo dentro de uma sacolinha. Sacolinha mesmo, aquela de palha. E pulava o quintal, pulava e ia pra escola do mestre. E lá que eu aprendi alguma coisinha, né? Então eu saí de lá da escola. Meu estudo foi pouco tempo. Eu estudei três meses mais ou menos. Escola paga, porque também não tinha poder aquisitivo de pagar. Tinha que pagar os mestres.32

Delmiro se lembra como os mestres tratavam os alunos naquela época.

A palmatória era usada para reprimir qualquer ato considerado fora do previsto.

Até não saber soletrar corretamente ou rir de situações engraçadas. Delmiro se

orgulha de como estudou três meses e conseguiu avançar nas matérias que

eram oferecidas. Mas foi a vida quem realmente ensinou a Delmiro.

Os pais de Delmiro voltaram com seus irmãos para o Ceará. Ma ele foi

trabalhar como pescador. Logo se casou, na igreja, com 20 anos. Isso

aconteceu em Olho D‘água. Depois foi para Olho de Porco. Mas logo foi pra a

cidade de Raposa onde montou uma empresa de pesca.

32 Entrevista com Delmiro Monteiro Farias, realizada em 06/02/2010

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A sua família era muito religiosa. Mas seu pai não gostava de quem

falasse muito da Bíblia. Havia conflito entre as religiões, e muitos estavam se

tornando protestantes e seguiam a reforma de Lutero. Embora Delmiro faça um

pouco de confusão, percebe- se, em sua fala, que ele já leu a Bíblia e que a

tem em sua casa.

A vontade de estudar, em Delmiro, sempre esteve bem presente,

fazendo com que ele se esforçasse para saber coisas diferentes como palavras

novas – ao ler o dicionário diariamente.

Eu sempre fui curioso, pra procurar saber o que é. O cara diz assim: ―O que é vulnerável?‖ A pessoa fica perdida sem saber. Muita gente até me critica. Quando eu trabalho, às vezes, na [...], às vezes em um setor vulnerável que existe, é muito vulnerável, a vulnerabilidade é grande, ali o que é vulnerabilidade? Vocês sabem, né? Aí, eu falo o que é, né? E a pessoa, às vezes, fica assim e diz: ―Pô, o cara quer saber demais?‖ Não é. É porque eu tenho o dicionário na minha mão e, quando eu ouço essa palavra, eu vou no dicionário procurar saber o que é. Tá entendendo? 33

Delmiro casou-se com uma mulher que já tinha dois filhos. Com ela teve

mais três. Mas seu casamento não deu certo. Essa experiência triste, ele

passou na cidade de Raposa. Em Raposa, já estava com mais estabilidade.

Tinha os materiais de pesca, tinha casa. Estava matriculado na colônia de

pescadores. Toda sua vida estava organizada até acontecer tudo com o seu

casamento. Experimentou a traição que o deixou muito revoltado. Após essa

experiência, Delmiro foi para Santa Catarina, depois para Santos.

Em Santa Catarina, na cidade de Itajaí, Delmiro trabalhou na SUDEP,

uma companhia de pesca. Lá, ele trabalhava com lagosta, sardinha, etc.

33 Entrevista com Delmiro Monteiro Farias, realizada em 06/02/2010

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Gostou da cidade e ficou uma temporada. Ao sair de Itajaí foi para Porto

Alegre, no Rio Grande do Sul.

Após sair do Sul do país foi para São Paulo, em 1969. Ao chegar,

desembarcou na estação da Luz. Delmiro lembra-se que antes a estação se

chamava Julio Prestes. Antes de chegar, organizou a vida indo na companhia

de pesca e dando baixa na carteira. Mas por causa da bebida, perdeu os

documentos, o que dificultou um pouco para ter uma aposentadoria melhor.

Com a carteira profissional, que não perdeu, conseguiu trabalhar como

ajudante de pedreiro na cidade de São Paulo. Passou a morar na própria firma,

no bairro do Sacomã. Lá trabalhou por três meses. Pode se lembrar e recordar

vendo as árvores que ele plantou naquela época. A lembrança de plantar

árvores parece dar a Delmiro a sensação de ter contribuído para a cidade.

Depois foi transferido para o bairro do Morumbi onde também pôde morar na

empresa. Nessa empresa, trabalhou de ajudante de pedreiro, mas teve um

conflito muito forte porque um encarregado o ofendeu se dirigindo a sua mãe

de maneira grosseira. O que ele não podia admitir, pois valorizava a família.

Esse conflito revelou, na época, um Delmiro violento, pois agrediu o

encarregado da obra e nunca mais voltou no local. Isso se repetiria em outros

momentos de sua vida. Embora o próprio Delmiro não ache que era violento. O

problema era ofender a imagem de sua mãe querida.

O cara xingou minha mãe, aí eu saí fora, né? E eu era caboclo novo ainda, num pensava muito na vida. E ainda hoje mesmo as pessoas são mais violentas, até que eu não era violento, né? Eu levava mais no banho-maria as coisas, né? Mas, mexeu com a minha mãe, né? Que nunca saiu do meu coração. Ela morreu. Deus que tenha lá, mas é minha mãe, né? Era minha mãe.34

34 Entrevista com Delmiro Monteiro Farias realizada em 06/02/2010

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Em São Caetano do Sul, na Grande São Paulo, Delmiro trabalhou na

empresa Constran. Durante três anos, trabalhou, mas não teve os direitos

salvaguardados. Mexia com asfalto e fazia todo tipo de serviço como

pavimentar as ruas, construir prédios, galerias, rede de esgoto, etc. Teve a

oportunidade de ser motorista do caminhão contratado pela empresa, mas, só

que por causa dos problemas de relacionamento, logo precisou deixar o

trabalho.

Depois, foi trabalhar com metalurgia, como soldador, e foi registrado.

Trabalhou na empresa Corrente, de São Caetano. Delmiro se lembra que era

muito querido na empresa e era chamado pelos donos de Maranhão. Após

trabalhar nessa empresa, transferiu-se para a Ford. Entrou na Ford em

dezembro de 1973. Era soldador e ponteador. Mas, por causa de uma doença,

precisou sair e se aposentar.

Lembra-se que, ao chegar à favela de Heliópolis, estava comemorando

o seu aniversário, no dia 19 de dezembro de 1982. Já tinha se casado

novamente, e sua nova mulher tinha dois filhos. Ele considera os enteados

como seus próprios filhos. Quando morava na Ponte Preta, no São João

Clímaco, sofria muito com as enchentes que destruíam o local. Essa

preocupação o fez mudar para a favela de Heliópolis. Na época, comprou um

barraco de um grileiro. Embora não tivesse a vontade de morar em uma favela,

pois o conceito de uma favela e de quem nela morava não era o melhor. E

demonstrou isso ao contar como conheceu pela primeira vez o conceito e o

lugar chamado favela, por intermédio de um amigo de trabalho.

Aí, ele bateu no meu ombro assim: ―Ô Maranhão, vão fazer uma favela aqui‖. Aí, eu disse: ―Que é isso? Que é favela?‖ Aí, ele disse: ―Favela é, eu vô te mostrar uma ali na Vila Prudente, favela é um amontoado de barraco, só mora gente ruim‖. Eu

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digo: ―Ó rapaz, tá doido, tu vai me levar pra um lugar desse?‖. Aí, ele: ―Deus me livre‖. 35

Esse conceito de favela e também da visão que a sociedade tinha sobre

os indivíduos que nelas moravam perdurou por muitos anos. Porque,

ideologicamente,

os aparelhos de Estado e a sociedade lidaram com a favela sempre considerando-a como um ‗problema‘, definindo assim sua condição de ilegal e/ou irregular. Intrinsecamente, seus moradores são considerados marginais por ocuparem a cidade desse modo ilegal (além de toda uma gama de preconceitos quanto à origem rural e/ou étnica destes e, consequentemente, suas qualidades morais (BRUM, 2007, p.2).

Delmiro se lembra que não tinha muitas coisas na favela de Heliópolis.

Acusa a Prefeitura Municipal de São Paulo de ser a principal responsável pela

existência da favela, além de lembrar-se das ações dos grileiros nas áreas de

construção do hospital e das atrocidades que eram feitas nos arredores.

Hospital de Heliópolis, tinha uns quatro guardas ali. E os guardas começaram a vender o terreno. Os próprios guardas do hospital, porque eles ficavam ali pra não deixar entrar descarga. Porque toda a descarga vinha pra ali, de hospital. Ali onde é a pracinha. Nossa! Ali eu vi muita coisa, tinha um barranco, ali onde tem um hospital Pan, ali tinha um barranco, ali jogava até víscera de pessoas que tiravam, de cachorro, que eu num sei da onde vinha. Vinha carro de noite e jogava ali aqueles vidros de soro, aquele negóção de soro, jogaram de caminhão e acho que era vencido, né? Jogava de sangue, trompa de mulher, descarregava tudo ali. Tinha um barranco assim e ali onde é o Pan ali hoje. É um AMA, né? Desmancharam e fizeram um AMA. Ali tinha um barrancão assim, nossa! Ali era um terreno baldio, mas não tinha como entrar ali pela Rua Almirante, então eles vinham por lá e davam um trocado pros seguranças, pros guardas do hospital e fora de hora eles jogava de tudo quanto era qualidade ali. Quando amanhecia o dia era uma carniça, dava até urubu ali, era um

35

Entrevista com Delmiro Monteiro Farias realizada em 06/02/2010

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barranco enorme. Aí, depois foram vendendo, vendendo, vendendo.36

Quando Delmiro chegou à favela de Heliópolis ela já estava formada,

mas foi ali que ele começou a se inteirar do movimento por moradia e começou

assim a participar ativamente. Mas, ao comprar o terreno, pôde dividi-lo com os

seus familiares que vivem na favela até hoje.

36

Entrevista com Delmiro Monteiro Farias realizada em 06/02/2010

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Miguel Borges Leal

Miguel nasceu no Estado do Piauí, na cidade de Oeiras. Ele relata que,

segundo sua mãe, nasceu no dia oito de maio de 1943, às oito da manhã.

Morou com sua avó e seu avô e, lá, ficou durante sete anos até que sua avó

faleceu, e ele teve de retornar para casa de seus pais e enfrentar a vida da

roça. Ele se lembra de ser muito mimado por causa da criação que teve com os

avós. E ir para roça foi uma grande mudança para sua vida, pois não tinha

moleza nenhuma.

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Uma das coisas que o encantava, quando morava com os avós, era a

Folia de Reis. E isso acabou para ele quando teve de morar com os pais e

trabalhar na roça até os 18 anos. Nessa idade, foi para o Piauí. E, lá, passou

por Teresina e Floriano que é perto do Maranhão. Nessa época, tinha entre 23

e 25 anos.

Em 1970, chegou a São Paulo e se envolveu com a igreja católica. Mas

sempre foi religioso porque sempre aprendeu com toda a família sobre a

religião católica, pois fazia as novenas e tudo o mais. Mas a religião, segundo

Miguel, era um tanto abstrata, sem ação contundente.

Em São Paulo, morou primeiramente no bairro da Cachoeirinha, por dois

meses. Depois, mudou-se para a Casa Verde. De 1970 a 1972, ficou nesse

bairro e, depois, mudou para a Ponte Preta, em São João Clímaco.

Eram tempos de ditadura, e as igrejas ficavam acanhadas diante das

situações conflitantes. Mas Miguel se aproximou das pastorais sociais

fundadas por Dom Paulo Evaristo Arns. Na pastoral da favela, que se

transformou na pastoral da moradia, Miguel começou suas ações no

movimento de moradia que abrangia vários lugares de São Paulo e do Brasil,

conhecendo pessoas que seriam de suma importância para a sua militância

social e política.

Foi quando eu conheci a Erundina. Em 78, o prefeito era o Setúbal, e, lá, o Setúbal proibiu, só podia sair, não podia entrar ninguém nas favelas. E, aí, a Erundina já era danada como ela sempre foi, ela era assistente social, mas era estabilizada e, aí, Dom Celso , chamou os padres, o Padre [...], às vezes até o seminarista João Judas. Isso já foi em fevereiro de 78. E, aí, ele fundou, pediu pra fundar a pastoral da favela. Aí, nós viremos o bicho mesmo, nós corremos por esse país inteiro, Recife, Rio de Janeiro, Fortaleza, Maranhão, Salvador, só aqui em São Paulo, nós fizemos várias parte de São Paulo e, pra nós, chegar ao que chegamos hoje, nós fizemos no Ipiranga e no Heliópolis.37

37

Entrevista com Miguel Borges Leal, realizada em 06/02/2010

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Mas Miguel, antes desse envolvimento com igreja e suas pastorais,

trabalhou como metalúrgico. Trabalhou na Casa Verde mesmo. Mas teve um

acidente de trabalho. Vindo para o bairro do Ipiranga, começou a trabalhar na

Metalac e lá ficou por dez anos. Deixando o trabalho, envolveu-se totalmente

com as questões de moradia nos cortiços e nas favelas com a coordenação do

Dom Paulo Evaristo e seus assessores, como Dom Celso Queirós.

Miguel se lembra que o início do movimento de moradia se deu por

causa de outro movimento na esfera nacional, o movimento ecumênico contra

a carestia, postulado e liderado pela igreja católica. Foi esse movimento que

desencadeou muitos outros movimentos populares, em São Paulo e em todo o

Brasil.38

os primeiros passos que nos demos dentro do movimento metalúrgico, em 76, foi num movimento quanto à carestia, um movimento forte que teve aqui em SP da igreja católica, ela que era ecumênica porque tinha bispos de outras igrejas, pastor, era um movimento. Porque era um rompimento, foi o primeiro movimento que estourou pra romper com a ditadura, e o segundo foi o Lula que quebrou o silêncio com a greve.39

Desse movimento, surgiram as comissões de moradores nas favelas

como lembra Miguel. A primeira,foi no bairro do Grajaú, e, depois, essa

38

―O Movimento do Custo de Vida foi um dos principais movimentos populares da década de

1970, e não seria exagero elegê-lo como o principal. Isto se deve à importância que teve em

todo território nacional como organizador de vários movimentos sociais que lhe seguiram, e

como reordenador da participação popular na vida associativa pública, desmantelada pelo

regime militar com o AI-5 e com a política de repressão e violência contra qualquer tipo de ação

coletiva com objetivos políticos. O Movimento do Custo de Vida surgiu ligado às ações da

igreja católica, em sua ala da Teologia da Libertação [...]; em 1979, o Movimento do Custo de

Vida mudou de nome, passou a ser Movimento de Luta Contra a Carestia‖.

GOHN. Maria da Glória. História dos movimentos e lutas sociais: a construção de cidadania

dos brasileiros. 5ª edição- Edições Loyola- São Paulo – 2001.

39 Entrevista com Miguel Borges Leal, realizada em 06/02/2010

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organização foi crescendo por todos os cantos da cidade, além das comissões

regionais e nacional. Portanto, a partir da década de 1970, foi criado o

Movimento em Defesa dos Favelados – MDF, dando origem, segundo Miguel,

ao Movimento Unificado das Favelas – MUF. Esses movimentos se dividiram e

se enfraqueceram um pouco. Miguel ainda se lembra que do Movimento de

Luta contra a Carestia, o MLCC, surgiu o Movimento dos Loteamentos

Clandestinos, o MLC, que ajudava as pessoas que não tinham seus

loteamentos legalizados, embora esse movimento tenha inviabilizado outras

possibilidades dos mais pobres adquirirem suas casas. Como informa Gohn

(2001, p. 112, 113)

Dentre as principais conquistas do MLC, destacam-se a

promulgação de uma série de legislações coibindo o

lançamento de loteamentos irregulares, assim como a

regulamentação de posturas e códigos para a criação de um

loteamento. Os loteamentos clandestinos então existentes

foram se regularizando ao longo do tempo, por meio de

anistias, concessões e lutas com os empreendedores faltosos.

Como consequência negativa do movimento, teve-se o quase

total desaparecimento da modalidade ‗loteamento popular‘,

pois as novas regras disciplinadoras do uso do solo

inviabilizaram os grandes lucros que os empresários tinham

anteriormente, fazendo com que esse tipo de mercado

cessasse quase por completo e, com ele, a autoconstrução da

casa própria.

Foi após um enfrentamento no chamado morro da USP que Miguel

entrou na favela de Heliópolis em 1979. Miguel dá algumas informações

interessantes sobre o chamado morro da USP. A área que pertencia à USP

estava sendo cuidada por um homem que fora colocado lá para tomar conta.

Alguns moradores queriam ocupar o local e o fizeram. O conflito foi grande e

necessitou de negociação entre advogados com a participação dos padres. Já

era a ação da pastoral da favela articulando a permanência dos indivíduos nas

favelas e nos espaços públicos inutilizados. Segundo Miguel,

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o morro da USP era uma área da USP, e ela botou um cara pra cuidar da área, daquela chácara, isso nos anos 60 e, aí, botou o cara pra criar galinha, pato, mandioca, [...] Aí, daí, entrou com retenção de posse em 80 e foi um Deus nos acuda, foi meu primeiro enfrentamento, Vixe Maria! 40

O problema só foi resolvido quando representantes da USP cederam e

negociaram a saída do Sebastião, o homem que estava no local tomando conta

da área, e as famílias que haviam ocupado. Mas, de acordo com Miguel, as

famílias permaneceram no local. A partir daí, começou a se envolver com as

questões de moradia e pôde entrar na favela de Heliópolis.

Quando chegou à favela de Heliópolis, encontrou as famílias que vieram

da Vila Prudente. Depois de morar com a sua irmã, foi para Arapuá, no interior

de São Paulo, ficando por lá um ano. Mas, em 1983, entrou definitivamente na

favela de Heliópolis e morou com algumas pessoas que lideravam o movimento

de moradia na favela. Logo, entrou na luta que já estava acostumado a pelejar.

Era a luta por moradia e por melhores condições de vida para o povo.

Miguel se envolveu com a questão de moradia, mas jamais se distanciou

de sua fé e de sua religiosidade. Utilizava de sua experiência de fé para lutar

contra os grileiros e a favor dos moradores da favela.

40

Entrevista com Miguel Borges Leal, realizada em 06/02/2010

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Pastor Carlos Caetano

O pastor Carlos Caetano nasceu na cidade de Sertanópolis, no Paraná,

em dois de fevereiro de 1942. Proveniente de uma família de oito irmãos,

Carlos é o mais velho. Sertanópolis era uma cidade pequena, comandada por

padres e freiras. Carlos Caetano teve uma infância dura de muito trabalho. Mas

conseguiu estudar mesmo que, para isso, tivesse de caminhar cinco

quilômetros para ir à escola e outros cinco para retornar para casa. Sempre, ao

chegar da escola, tinha de se envolver com as atividades do trabalho de cortar

cana, encher o carrinho de mandioca e levar para casa.

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O dia que mais o fazia se comportar como criança era o domingo. Após

ir à missa, rotina sagrada para a família, brincava com os bezerros. Pulava em

cima deles e se divertia. Ou jogava bola de capotão em um campinho que

existia naquele lugar.

Caetano se lembra quando chegou à adolescência. As festinhas das

paróquias eram bem concorridas. Nas regiões próximas, havia muitas

capelinhas, e as festas aconteciam uma após a outra, e a diversão era

garantida.

Nós tinha ali na água da boca, água morena, tinha água do [...] cada um tinha uma igreja e cada um tinha sua festa, então era festa o ano inteiro. Cê saía de uma e ia pra outra, cê ia lá pela sete, oito horas, ficava até dez horas, todo mundo vinha embora e no outro dia tava na roça de novo.41

Em Sertanópolis, o pastor Carlos ficou até 1965, quando, aos 26 anos,

foi para Londrina. Antes dessa partida, lembra-se do período em que teve um

envolvimento com a igreja católica. A população gostava de tudo o que ele

fazia e, mesmo solteiro, pôde participar da congregação como líder. Como a

região era bastante populosa na época, Carlos Caetano cuidava das pessoas

idosas, rezava terço, tirava prenda das festas. Por isso, era muito querido em

todas as capelinhas ao redor de Sertanópolis e era também muito conhecido

pelos padres e freiras.

Ao perder tudo por causa de uma geada no lugarejo onde morava, teve

de ir mais para o centro de Sertanópolis. Mas, como não tinha trabalho,

retornou e começou a trabalhar em uma fazenda. Logo teve de sair com a

família e ir para Londrina sem ter lugar para morar e sem perspectivas. Algo

que o marca até hoje quando passa por aquela cidade.

41

Entrevista com o Pastor Carlos Caetano realizada em 25/03/2010

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Fiquei um dia debaixo de uma árvore, da casa que eu fiquei, foi embaixo de uma árvore, em Londrina. Hoje, aonde é a rodoviária, a rodoviária de Londrina, toda vez que eu passo lá tem uma história que eu lembro.42

Mas, sem ter muitas coisas, recebeu a solidariedade de uma mulher que

liderava um centro espírita na cidade. Ao receber ajuda dessa mulher e do

delegado da cidade, ficou morando em um quarto cedido por ela, sem pagar

aluguel, o que fez com que logo pudesse comprar um terreno e construir uma

casinha simples para morar com a família. Com pouco dinheiro, logo teve de

vender os crucifixos e as imagens que recebeu de presente enquanto fazia o

trabalho na região de Sertanópolis, com as congregações católicas. Pois lá era

um trabalho sacerdotal intenso. Ele aplicava injeções, rezava terço, cantava,

realizava cerimônias fúnebres. Por tudo isso, ganhava muitos presentes e pode

vendê-los quando precisou para sustentar a família e organizar a sua

documentação.

Eu não tinha outro recurso então comecei a vender os santos, o cenário que eu tinha, comecei vender. E naquela época, abaixo da rodoviária, era uma zona de prostituição muito grande, e eu peguei aquele monte de santo e saí vendendo. Num dia só, eu vendi 12 pra aquelas mulheres. Vendi 12, vortei com um pacote de dinheiro assim.43

Carlos Caetano começou a frequentar a tenda da igreja do Evangelho

Quadrangular, chegando lá foi recebido com muita simpatia pelo pastor e sua

esposa. O que fez com que ele tivesse um lugar de apoio na cidade.

Algo que ficou gravado na memória de Carlos Caetano foi o que

aconteceu na cidade de Sertanópolis onde fora um evangelista carismático que

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Entrevista com o Pastor Carlos Caetano realizada em 25/03/2010

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revolucionou a cidade com a sua voz forte a ponto de o padre mandar retirá-lo

da cidade. Isso foi feito com muita violência e intolerância.

Aí, este evangelista chegou na cidade no dia de Finados e foi fazer um culto no cemitério, como ele falava muito alto, ele tinha uma voz muito bonita, a voz dele era linda, era uma voz de um pastor meu, pastor Roberto, era uma voz linda, a voz dele chamava atenção. E como a cidade não tinha costume, nunca viu aquilo, então a procissão de quatro mil pessoas, era muita gente, ia chegando no cemitério e ia entrando e ele ia pegando o canto do cemitério e o [...] que o povo ia, ia ficando embaixo. E naquele canto pregando, o povo começou só a olhar, ouvindo ele pregar e olhando, né? Todo mundo assustado. O padre Domingos, era um alemão, usava um chapeuzinho preto na cabeça e, aí, ele disse assim: ―Tira esse homem daqui‖, os congregados marianos, que eram Amâncio Seco, que era o presidente, o Romualdo, Zeca Savário, era o comando da igreja, era os cabeção da igreja, tinha o Francisco Poça, era um português, tinha um que hoje é prefeito da cidade, que era português de Portugal mesmo, então eles que comandava ali, eles que faziam tudo, eles que fazia tudo. E juntaram e tiraram ele por cima do muro, jogaram por cima do muro do cemitério, o evangelista, esse irmão, jogaram ele, a polícia do lado de lá pegou... 44

A experiência mais marcante em sua vida, no entanto, foi a cura do seu

filho que já havia sido desenganado pelos médicos. Frequentando a tenda da

Igreja do Evangelho Quadrangular (IEQ), pôde ter um momento de fé que, para

Caetano mudou completamente a sua vida e a vida de toda a sua família.

O Nivaldo tinha há, um mês atrás, 40 dias fazia quando o médico me deu isso, que ele tinha engolido um caroço de milho. Milho solto no quintal, a debulhadeira debulhando, ele brincando engoliu pelo nariz. E aquilo foi pro pulmão, e aquilo não teve condições, na época, de reverter. E ele foi ficando pior, foi ficando pior, não comia, foi emagrecendo, tava com quatro anos de idade pra cinco. Aí, quando eu vi fazer todo

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aquele movimento na tenda. Numa quarta-feira, com a minha voz bem alto, igual eu tô falando aqui agora, eu disse: ―Deus, se for verdade, o que aquele homem está pregando e o Senhor fizer. Mas eu estava falando em voz alta, como se tivesse falando com outra pessoa‖, ... ―Se o Senhor fizer com o meu filho, eu vou, a partir de hoje, se o Senhor fizer com o meu filho, o que eu fazia na igreja católica, rezar terço, tirar a prenda, visitar as pessoas...‖ [...] ―... Vou fazer tudo o que eu fazia na igreja católica...‖. E eu fui pra tenda, falei aquilo com Deus, na quarta-feira, no dia 27 de agosto de 1975.

No dia 28, seis da manhã, o menino acordou e gritou: ―Pai, eu quero comida‖, eu falei: ―Meu filho tá morrendo, tá morrendo‖, corri , peguei ele com a coberta lá, passei: ―Pai, quero comida.‖, a comida que eu tinha, meu fogão era fogãozinho jacaré, aquele [...], que eu tava fazendo o cafezinho. E naquele momento, a minha comida que eu tinha, que eu tava comendo era baião de dois que eles falava lá no Paraná, mas quando eu vi baião de dois aqui, era comida de rico. Porque o baião de dois lá era feijão cozido, misturava com o arroz, cozinhava tudo junto, colocava uma couve no meio, ou senão um pedaço de chuchu e aquilo que nós tava comendo. E aquilo que eu tinha, não tinha outra coisa. Aí, eu peguei a colher com aquilo e pus na boca dele, quando pus na boca dele, ele deu aquela ânsia de vômito com toda força... Eu pensei: Tá morrendo, meu filho mesmo. Ele jogou, jogou aquele caroço de milho, mais grande que o meu dedão, preto, preto, que eu catei e fiz questão de levar pro meu médico.45

Após essa experiência de fé, Carlos resolve participar ativamente da

Igreja do Evangelho Quadrangular. Mas, com isso, recebeu toda a hostilidade

de seu pai que ficou muitos anos sem visitá-lo. Essa lembrança o marcou

muito, pois fala dela com muita emoção.

Lembra-se que no dia 1º de Janeiro de 1966 foi batizado na igreja

evangélica Quadrangular, na cidade de Londrina, em um lugar muito bonito.

Em Londrina, ficou por dez anos. Sete anos trabalhando na empresa CLEITO,

dois anos em uma cooperativa agrícola e mais um ano e meio em um ferro

velho industrial. Além de pastorear em Londrina, pois já tinha sido escolhido

para ser um pastor logo após o seu batismo.

45 Entrevista com o Pastor Carlos Caetano realizada em 25/03/2010

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O trabalho pastoral parece ser uma sequência das atividades que

aprendera na igreja católica. Isso é o que mais chama atenção do pastor

Carlos Caetano. Sua história está marcada pelo trabalho como pastor,

presidente de convenções evangélicas e atividades pastorais.

A primeira igreja em São Paulo ficava no bairro Jardim São Luiz. Esta foi

uma fase muito boa da vida do pastor Carlos Caetano porque a igreja era

amigável. Essa igreja já fazia parte da Missão ELIM.

Aí, eu vim pro Jardim São Luiz, onde a igreja foi uma mãe, aonde eu aprendi. Tinha 40 membros, tinha 40 membros, formamos uma família maravilhosa, onde eu aprendi o resto de vida que eu tô aqui até hoje. Foi uma escola, aquela igreja foi uma escola.46

Morou no Jardim das Oliveiras, no Socorro e no Jardim Ipê. Teve uma

dolorosa experiência de separação conjugal e, após ter desquitado, foi morar

com a esposa atual. Foi morar no Jardim Jomar, no Tremembé. Quando

chegou em Heliópolis, logo percebeu a presença dos grileiros. Perdeu uma

casa que havia construído e gastou muito dinheiro. Mas a pessoa que vendeu

o terreno o ludibriou e teve de ceder. Segundo o pastor, havia o espírito de

grilagem na favela de Heliópolis. Por intermédio do seu trabalho missionário

começou a se envolver com as pessoas da favela, em particular com aqueles

que lutavam por moradia na localidade.

Quando eu cheguei aqui, como eu nunca sabia o que era grilar terra. Sabia o que era favela, mas eu não sabia como invadir uma favela, não sabia como chegar na terra do outro. E quando eu vim ajudar o pastor José de Lima, a Cleide já fazia a reunião na igreja de Santa Edwiges, lá embaixo. E eu como sempre gostei de gente, e mexi, então, eu ia pra lá. A Cleide falando, meio escuro, aquele tempo ela falava novinha, querendo casar, falava forte e ela gritava mesmo, tava sem

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microfone, daqui na Coronel Silva Castro, você escutava a Cleide falando, autoridade tremenda. E juntava gente, aquele tempo juntava gente.47

Começou a participar das reuniões da comissão de moradores e

também a se relacionar com os padres que participavam ativamente das lutas

por moradia apoiando os moradores.

Interessante notar as várias situações similares nas trajetórias sociais

que foram relatadas pelos colaboradores. Podemos ver que a necessidade de

moradia está presente em cada um deles que sai de suas terras tendo a cidade

de São Paulo como o lugar para alçar voos sociais. Em suas trajetórias

percebemos algumas coisas que são recorrentes, como a migração constante

de um estado a outro como também os itinerários dentro da cidade de São

Paulo. Interessante notar que todos chegaram, de alguma forma, às

proximidades da favela de Heliópolis. Ora por força do trabalho, ora por causa

da moradia. Muitos deles trabalharam como metalúrgico, o que pode até

explicar a razão porque chegaram à região do Ipiranga que fica próximo do

ABC na grande São Paulo, que tem grande aglomerado de empresas de

metalurgia. Todos têm uma relação familiar muito marcante e valorizada. Não

perderam os vínculos familiares com os que permaneceram nas suas terras de

origem ou que faleceram. Ainda estão extremamente ligados com as terras de

que vieram e demonstram isso ao relembrar com detalhes o período da

infância. Infância celebrada por todos os entrevistados, mesmo que a vivessem

com muitas dificuldades.

Nota-se, em alguns, o valor dado ao estudo. Possivelmente por não

terem conseguido estudar durante o período em que estavam trabalhando nas

roças, ou ajudando os pais. A ajuda ao pai, figura tão constantemente

lembrada por todos, mesmo que fosse com algum pesar, foi durante muito

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Entrevista com o Pastor Carlos Caetano realizada em 25/03/2010

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tempo o ponto de importância acima da possibilidade de estudar. Entretanto, as

mães dos entrevistados são lembradas representando a luta, a determinação e

sabedoria. A mão que costurava, apoiava, trabalhava sofrendo as lutas de uma

terra distante. Ou até, aquela que tenta dar limite como no caso da Antônia

Cleide.

Essas impressões similares nas trajetórias sociais e nas histórias de vida

dos interlocutores mostram que a favela de Heliópolis está marcada por valores

familiares muito fortes. Pude notar, durante as conversas que tive, que a

questão da educação tem sido assunto permanente na agenda da liderança da

UNAS e de todos aqueles que começaram a luta por moradia na favela. Não há

neles agora desejo de cometer os erros cometidos no passado onde só a

moradia era importante. Hoje existem preocupações diversas para garantir aos

jovens que residem na favela os direitos que façam com que eles tenham mais

formação educacional para que possam percorrer novos rumos. Portanto, a

fala única de quase todos os interlocutores entrevistados é de que a favela de

Heliópolis deve ser um bairro educador que tenha condições de ser o foco de

ensino para os moradores.

Para eles, não havia divisões entre as religiões porque todos tinham as

mesmas necessidades e o mesmo sonho. A casa própria. Mas mantiveram a fé

e demonstraram os vários modos de fé que nutriam por intermédio das práticas

que ainda hoje cultivam como a Caminhada pela Paz que tem a cruz como

símbolo maior, como faziam em tempos atrás como veremos adiante.

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Capítulo III

O COTIDIANO DA VIDA ILUMINADO PELA FÉ

Este capítulo tem como objetivo mostrar como a fé estava imbricada na

vida e no cotidiano dos indivíduos da favela de Heliópolis. A luta por moradia

na favela de Heliópolis estava iluminada pela fé, o que pode ser inferido nas

leituras bíblicas, nas práticas religiosas que se faziam presentes nas ruas da

favela, por intermédio das caminhadas e das representações teatrais. Partimos

da suspeita de que a fé representava uma espécie de imaginário utópico e

empoderador que levou os indivíduos à luta por melhores condições de vida,

especialmente por moradia na favela. Nas entrevistas, vários textos bíblicos

foram citados como chaves de leitura por intermédio dos quais nossos

interlocutores davam sentido à realidade que viviam. Esse imaginário utópico,

cheio de esperança, dava aos líderes da comissão de moradores na favela de

Heliópolis novas perspectivas nas lutas populares.

Entretanto, como via de mão dupla, esse capítulo também pode mostrar

que a teologia libertária da época foi influenciada pela maneira dos pobres

verem o mundo e a realidade. A maneira que os moradores da favela de

Heliópolis encararam a vida e materializaram a fé pode ter dado à igreja da

época lições de como ser igreja. Em um contexto de luta por subsistência

básica, a igreja desenvolve seu paradigma de missão tendo os pobres como

opção.

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Mas esse imaginário não eliminou as contradições existentes nas

instituições entre lideranças e até entre os moradores da favela de Heliópolis

com respeito à fé, e quanto aos caminhos a serem trilhados na luta pela

moradia.

3.1 ―O SENTIDO DESSA CRUZ É A FÉ POLÍTICA‖

É assim que Miguel definia a cruz. Não como um simples símbolo, mas

como uma representação de resistência em meio à luta que enfrentavam a

cada dia. As entrevistas revelam uma identificação entre o símbolo cristão da

cruz e a luta por melhores condições de vida em que os interlocutores estavam

envolvidos no movimento de moradia na favela de Heliópolis. A igreja católica

tinha grande parcela no desenvolvimento desse imaginário que penetrava na

realidade dos indivíduos. Podemos perceber isso no relato de João Miranda

que diz:

a gente fazia na semana santa. A gente fazia as nossas caminhadas. E todas as paradas que teve com Jesus. A gente fazia isso voltado para a nossa luta. ―Jesus tá aqui no Heliópolis‖. Com a cruz e tudo. Cada um carregava um pouco. Caminhada em tudinho. Em todos os núcleos. Em cada núcleo tinha uma parada, e a gente falava do núcleo. O que precisava no núcleo. As famílias que tavam e tudo. Aí, rezava, pedia a Deus e saía de novo. Então a gente fez isso aqui com a igreja e tudo. 1

As caminhadas eram a demonstração de que a favela estava unida em

um só desejo. Alguns entendiam o sentido daquela cruz colocada no solo no

1 Entrevista com João Mirando realizada em 04/02/2010

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meio da favela como uma ofensa. Miguel mostra que fizeram de tudo para tirar

a cruz, pois ela falava muito mais que uma simples prática litúrgica ou religiosa.

Havia, na cruz, uma força que se projetava além das questões doutrinárias ou

institucionais. A cruz representava a união na luta social daqueles que eram

orientados sob a tutela da Teologia da Libertação que se enraizava dentro das

favelas e das periferias das cidades e do meio rural. Miguel diz que, ao dar

sentido à cruz, os moradores mexeram com os mecanismos de poder

existentes na cidade porque, com o ato de caminhar tendo a cruz à frente,

reivindicavam seus direitos e isso causou alguns transtornos, como informa:

E, numa dessas via sacra, nós tava pedindo o escritório piloto pra fazer um ponto de negociação com a COHAB e pedindo que fosse arrumada também a lagoa que alagou, enchia de água, um sofrimento. [...] Aí, o linguarudo do padre Márcio, essa cruz, eles ganharam quando eles viraram padres, aí ele falou assim: ―Essa cruz vai ser enfiada aqui como resistência, porque a luta é sinal de resistência e aqui vai ter o escritório piloto, vai ter o projeto de moradia digna‖. Aí, ele deu o sentido político da cruz, que era mesmo, queria ser político. Rapaz, quando o velho Jânio Quadros ficou sabendo, ligou pra Santa Edwiges: ―Manda tirar aquela cruz‖. Aí, mandaram me chamar lá: ―Miguel, tira aquela cruz‖. ―Por quê?‖. ―Porque os crentes não quer‖. ―Ixi, tá cheio de evangélico lá, que eles tem o sentido da cruz, é política, não é questão de fé, é fé política, fé não é fé e, é fé política‖, se a fé não for política, ela não serve pra nada.2

Um dia disseram para o Miguel que tinham roubado a cruz. Interessante

que em sua expressão, ao contar a história, ele se reporta ao roubo do corpo

de Jesus Cristo, tamanha era sua compreensão de quanto aquela atmosfera de

luta cheia de práticas de fé fincada na realidade fazia sentido.

E aí, quando de repente: ―Miguel. Roubaram a cruz, roubaram a cruz.‖. ―Aí, meu Deus do céu, roubaram o corpo do Mestre‖, porque nós brincava. Aí, ligamos, fizemos um ato ecumênico.

2 Entrevista com Miguel Borges Leal, realizada em 06/02/2010

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[...] Aí, o veiô mandou trazer a cruz: ―Leva de volta, já que eles querem‖. Aí, a cruz tava enfincada, aí, chegou lá o cara da prefeitura: ―Tá aqui o pau de vocês‖, eu falei: ―Não, você pegou ela enfincada, vai ter que enfincar.‖ O cara enfincou a cruz lá. 3

A compreensão teológica de que a cruz era o sinal de resistência fora

apreendida por Miguel e pelos moradores porque era o que os aglutinava,

independentemente da religião que professavam e dava sentido à luta de

todos. Sinal disso era quando a cruz passava de mão em mão por pessoas de

diversas crenças, como relembra, com emoção, o pastor Carlos Caetano:

―aquela estaca que ia na frente, pra nós guerrear. A cruz sempre nos

acompanhou. Aquela estaca ia na frente porque [...] . Então, era vez que eu

que tava carregando: ―Quem é esse desgraçado, pastor, carregando?‖4

Para eles, a cruz dava um sentido de que a fé incentivava os moradores

levando-os ao entendimento de que deviam permanecer naquele local

seguindo o exemplo de resistência do Cristo crucificado. Assim explica Miguel

ao relembrar que...

Quando arrancaram a cruz e depois colocaram, não, quando enfincaram a cruz , aí, me perguntaram: ‗Miguel, qual o sentido dessa cruz?‘. ‗O sentido dessa cruz é a fé política, num é fé e, é fé política, porque a fé que não revoluciona não é fé. E a cruz é um sinal de resistência, de luta e resistência, foi nela que nosso Mestre resistiu até o fim e ele não deixou não, foi até o fim‘. 5

3 Entrevista com Miguel Borges Leal, realizada em 06/02/2010

4 Entrevista com o pastor Carlos Caetano realizada em 25/03/2010

5 Entrevista com Miguel Borges Leal realizada em 06/02/2010

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3.2 ―ATÉ NÓS TINHA UM CANTO QUE DIZIA...‖

Não somente a cruz era um sinal de resistência. Os cantos que eram

entoados durante as caminhadas, que sempre eram cantados com o sentido

político de reivindicações sociais, também estavam em sintonia com os

objetivos da luta. Parecia que nenhum cântico era cantado sem que tivesse o

sentido de fortalecer os líderes, e todos os moradores davam a eles a certeza

de que eles venceriam. Exemplo disso está no cântico lembrado por Miguel

que dizia “Nossa alegria é saber que um dia, todo esse povo se libertará, pois

Jesus Cristo é o Senhor do mundo, nova esperança realizará‖.6 Eram músicas

que refletiam a realidade que viviam, embora enfrentassem as repressões

costumeiras daquela época. O canto criava certa harmonia e comunhão entre

eles e dava significado à união e à luta. Não importava se eram de religiões

diferentes, mantinham a harmonia a partir da participação conjunta do rito. Mas

todos tinham a consciência de que o canto refletia o dia a dia de toda a favela

de Heliópolis. Conforme afirma a Genésia, lembrando-se do trabalho da

pastoral da favela na comunidade: ―As músicas e os hino que a gente cantava

eram os hinos da pastoral da favela. Eram os hinos da pastoral do trabalhador.

Então, sempre os símbolos nosso foi esses. Se pegava símbolos da luta do dia

a dia, né? 7

Esse era o imaginário provocado por cada canto entoado. A realidade

estava marcada em cada verso e refrão das músicas, o que fazia com que o

povo da favela aprendesse rapidamente, podendo, portanto, compartilhar com

outros, além de cantar os cânticos nas horas de visibilidade da luta por

moradia.

Essa facilidade do povo da favela de cantar também proporcionava

harmonia com aqueles que estavam envolvidos na luta popular. Esse fato pode

6 Entrevista com Miguel Borges Leal realizada em 06/02/2010

7 Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/2010.

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ser lembrado também por Miguel quando relembra que eram movidos pela fé e

seguravam na mão de Deus com fé, cantando os cânticos que outras religiões

ou denominações também cantavam como o hino Segura na mão de Deus,8

conhecido por muitos cristãos e não cristãos.

Aí, nós com a fé, aí, meu Deus, a fé, é Deus mesmo, e nós, com a fé, segurava a mão de Deus e nós cantava: ―Segura na mão de Deus e vai...‖, aí, cantava também lá: ―O povo de Deus, no deserto andava mas a sua frente a...‖, nós pintava cara. 9

Essa postura era corroborada pela própria igreja que via nesses cânticos

maneiras de confirmar a luta e de afirmar que aqueles que lutavam por uma

vida melhor para si mesmos ou para os outros eram o povo de Deus. Quem

agisse assim, em favor de quem não tinha moradia, de quem era pobre, estava

ao lado do povo de Deus. Assim relembra o Bispo Antonio Celso de Queirós:

Os cânticos das procissões eram relacionados com a luta. Cantávamos O povo de Deus. Este era o hino nacional, e continua sendo até hoje. Muito engraçado, passou muito tempo: ―O povo de Deus no deserto andava, mas a sua frente, alguém caminhava, também sou teu povo, Senhor e estou nesta estrada, cada dia mais perto do fim da jornada. Povo de Deus...‖, e ia por aí afora. Toda a história do povo de Deus e reafirmando, também sou teu povo.10

8 ―Segura na Mão de Deus‖ é um hino que foi composto por Nelson Monteiro da Motta. Hino

cantado entre os protestantes e depois popularizado entre os católicos.

9 Entrevista com Miguel Borges Leal, realizada em 06/02/2010

10 Entrevista com Dom Antonio Celso Queirós realizado em 31/03/2010

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3.3 ―A BÍBLIA É A HISTÓRIA SAGRADA, NÓS SE BASEAVA NELA‖

Em Heliópolis, a pastoral da moradia realizou um trabalho interessante,

inserindo o ensino da Bíblia de maneira contextualizada na comunidade. Para

isso, a pastoral precisou se instalar na favela ocupando um dos espaços e

construindo um barraco que se tornou o Centro Comunitário para realizar, além

das reuniões administrativas com os moradores, algumas atividades

relacionadas ao ensino bíblico. Essa instalação na favela de Heliópolis e em

outras favelas na cidade de São Paulo não foi aceita com facilidade pela Cúria

que determinava a necessidade da Igreja de se aproximar dos pobres, mas não

aceitava muito bem a ocupação de áreas públicas. De acordo com Dom Celso

Queirós, foi necessária a ocupação para que a igreja chegasse perto dos mais

pobres.

Quem que vê claro? Num terreno minado, quem que vê claro? Ou você arrisca alguma coisa ou você não faz nada. A mesma coisa, construir esses centros comunitários, a Cúria exigia. A administração da Cúria, né? Que fosse terreno legalizado, mas não existe terreno legalizado lá ou a gente toma posse ou invade como os favelados invadiram, nós invadimos também e constrói um centro comunitário, o que vamos fazer, ué? Se vendesse, se a gente soubesse quem é o dono, nós íamos atrás e comprava, até oferecia alguma coisa. Mas então era sempre isso que... Até onde você pode ser, não coisa imoral, mas coisa ilegal, até onde você pode ser, praticar algum ato ilegal, volto a dizer, não ato imoral.11

Essa ação abriu caminho para a construção de uma relação com a

favela de Heliópolis que possibilitou a conscientização política por intermédio

do ensino bíblico dos que lutavam ativamente por moradia na área. O estudo

da Bíblia, cunhado pela realidade dos indivíduos que lutavam por direito de

11 Entrevista com Dom Antonio Celso Queirós realizado em 31/03/2010

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moradia, foi preponderante para que o imaginário religioso fizesse parte do

cotidiano da comunidade. Ao ouvir e se aproximar dos moradores da favela, a

igreja passa a descobrir as outras possibilidades da revelação. Como ensina

Míguez (2008, p. 149)

Es que la voz de las víctimas se levanta desde su cotidianeidad, desde el derecho a contar la historia de su victimización como crítica última a toda construcción legitimadora del poder opresor. Como en la hermenéutica bíblica, se trata de escuchar sus palabras, de descubrir en sus historias la verdadera condición humana y las posibilidades de la revelación.

Como relata Genésia, a presença da igreja foi marcante para sua

formação pessoal e a Bíblia era o livro principal para a conscientização social,

política e teológica dos líderes da comissão de moradores na favela de

Heliópolis. Ela diz:

Na época, tem o grupo da igreja que é onde a gente faz alguns curso de verão. Aí, um grupo da teologia da libertação. Aí, também passo por esse processo que era, pra mim, ter mais conhecimento, né? Aí, faço todos esse curso e vou me qualificando melhor. E vai melhorando as minha habilidade entendeu? De lidar. Vai melhorando as minhas coragem. Então, tudo isso contribui, né? É aquela coisa. Junta a fome com a vontade de comer. Então eu me entreguei assim de corpo e alma, né? Pra esses curso. Porque era tudo o que eu queria na vida. Tudo que eu imaginava tinha nesses curso.[...] Hoje a gente percebe, eles era um mediador na contribuição do desenvolvimento dessa liderança. Porque era muito simples tava tudo nas nossas mãos. A gente que precisava pensar, analisar e buscar os caminhos. Por exemplo, quando a gente trabalhava estudo bíblico a gente trabalhava com a própria Bíblia. Nosso caderno, nosso livro era a Bíblia. Então, a diferencia é você ler uma Bíblia ao pé da letra e você ler a Bíblia levando toda uma reflexão. Porque a reflexão te dá a noção de muita coisa, né? 12

12

Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/2010

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Possivelmente esse curso de verão de que se lembra Genésia é o

mesmo de que se recorda Miguel, com saudades. Para ele, por intermédio dos

cursos, passou a compreender de forma diferenciada tudo o que

experimentava na favela e na vida. A sua formação de vida ocorreu por meio

desses cursos que eram dados por teólogos envolvidos com um modelo de

missão comprometido com o contexto social, econômico e político.

Aqui em Heliópolis, nós tínhamos pouco, mas minha formação, com mais um grupão do Ipirangão, era Ana Flora, Frei Beto, pastor Milton Schwantes e a pastora Tânia, que era um curso de verão. Marcelo Barros, eles tinham o curso de verão todo ano.13

Nesses cursos, aprenderam a ler a Bíblia a partir da realidade. Ao lerem

a Bíblia, cultivavam a esperança de uma vida melhor em que a realidade seria

transformada pela luta. Os textos passam a fazer parte da vida fazendo-os ver

que tudo podia ser possível. Eles podiam reivindicar ao poder público, resistir

aos enfrentamentos com os grileiros ou até com os policiais. O imaginário

proposto pela fé por intermédio da leitura bíblica aplicada à realidade deu

novos contornos à utopia. Miguel pode dar uma amostra disso ao citar o texto

bíblico e interpretá-lo naquilo que vivenciou e guardou em sua memória.

Nós pegava Isaías 17: 21 que ele fala: ―Vi um novo céu e uma nova terra‖, e nós refletia: ―Quando é essa nova terra?‖, E pra nós lutar, é essa terra aqui que é a nova terra e o novo céu, temos que lutar por isso aqui, aí, no versículo 21, ele fala: ―Constrói casa e nelas habitarão, plantarão vinho e nelas comerão seus frutos, de agora em diante...‖ e aquela coisa e tudo. Falei: ―Quando isso acontece?‖, sempre era eu que falava. Aí, os padres: ―Ó, não é bom que só um de vocês fale, é bom que vocês comece a ter língua‖ e quando nós chegar lá na prefeitura, eles vão querer impedir, dito e feito. Vão querer impedir que nós falemos. Aí, eu falei: ―Quando é que isso acontece? Na nossa luz, na nossa organização‖. Moisés nunca

13

Entrevista com Miguel Borges Leal, realizada em 06/02/2010

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apareceu como imaginam, não, era uma intuição, uma simbologia, por exemplo, a sarça que tava queimando lá, coisa que não dá pra fantasiá agora aí. E nisso aí, cara, o povo encorajaram, ninguém mais tinha medo de nada. Nós enfrentava grileiro, enfrentava polícia.14

A Bíblia passa a ser não somente símbolo de orientação, mas manual de

empreendedorismo na luta da vida na favela de Heliópolis. Os líderes adquirem

mais condições de lutar baseados nos conteúdos de fé pelos quais são levados

a buscar o que idealizaram desde a chegada na cidade de São Paulo. Na lida

das articulações pela moradia, a leitura da Bíblia tornou-se a força motriz para

as ações na comunidade. Como notamos no relato de Miguel que era bem

envolvido com a pastoral da favela. Ele diz:

nós lia aqui nesse livro (apontando para a Bíblia), aqui tem uma passagem do doutores da lei, e nós lia muito aquela passagem, aonde Jesus diz: ―Ai de vocês que fazem leis injusta e provoca carga pesada nas costas do povo e nem com o dedinho ajuda a levantar. Vocês são como sepulcro caiado, por cima tá bonito, por dentro tá podre, vocês enfeita túmulo pra aqueles que o pais de vocês mataram, os profetas. Assim vocês [...], quer dizer, nós fizemos tudo aquilo com a fé.15

Tudo eles fizeram movidos pela fé. Uma fé engajada na realidade e nas

suas necessidades. Aprenderam a ver no texto bíblico táticas para as

motivações necessárias para a luta, solidariedade e negociações diárias.

E, aí, era a comparação de Pilatos, de Herodes com o que é hoje. Quem é Pilatos hoje? Será se ele morreu mesmo. Ele não tá vivo. Será que reencarnou em outro? (risadas). Herodes, quem é ele? Quantos Herodes não tem? No mundo? Né?

14

Entrevista com Miguel Borges Leal, realizada em 06/02/2010

15 Entrevista com Miguel Borges Leal, realizada em 06/02/2010

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Então, o círculo bíblico era, nesse sentido, sabe, da Bíblia pegando o evangelho pra hoje, pra os dias de hoje. O que mudou? Era uma reflexão muito legal.16

Essa análise bíblica para os seus dias, os dias de luta contra todo tipo

de exclusão, João Miranda aprendeu por intermédio da atividade da igreja e

dos ensinamentos que considera um privilégio ter recebido. Para ele, não há

nada que pague a formação que recebeu no passado que avaliza suas lutas na

vida.

3.4 ―E, AÍ, FOI ENGRAÇADO QUE NÓS DRAMATIZAMOS‖

Outra forma com que o imaginário religioso foi impingido dentro da

realidade dos moradores de Heliópolis ou a partir da realidade foi por

intermédio da representação que acontecia nas ruas durante a caminhada.

Essa caminhada, de acordo com João Miranda, era também para marcar a

presença em cada núcleo existente na favela. Tantos os moradores de cada

núcleo quantos dos outros núcleos que acompanhavam a caminhada ficavam

sabendo o que ocorria, precisamente, em toda a favela. Eles paravam em cada

núcleo, rezavam pedindo a Deus a solução para os problemas existentes

naquele núcleo. Isso deu uma dimensão mais abrangente à luta por moradia na

favela. Como relata João Miranda:

E todas as paradas que teve com Jesus. A gente fazia isso voltado para a nossa luta. ―Jesus tá aqui no Heliópolis‖. Com a cruz e tudo. Cada um carregava um pouco. Caminhada em tudinho. Em todos os núcleos. Em cada núcleo tinha uma parada e a gente falava do núcleo. O que precisava no núcleo.

16

Entrevista com João Miranda realizada em 04/02/2010

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As famílias que tavam e tudo. Aí, rezava, pedia a Deus e saia de novo. Então, a gente fez isso aqui com a igreja e tudo. 17

Havia representações nas ruas que demonstravam o imaginário de fé

existente na favela de Heliópolis. Eles representavam a Bíblia, colocando os

textos bíblicos à vista de todos. Entretanto, aplicavam os textos a tudo aquilo

que estavam vivendo ou reivindicando naquele momento. Não usavam os

textos para buscar outros mundos, mas desejavam resolver os problemas

vigentes por intermédio da compreensão que tinham recebido. Era tão

interessante que as mulheres que participavam das representações choravam

copiosamente porque, na verdade, estavam representando tudo o que sentiam

na pele. Isso ajudava na hora de representar, pois, além dos dons natos da

dramaturgia, elas tinham a vivência da luta por melhores condições de vida.

Miguel lembra que...

Aí, e as mulheres choravam, aí, Jesus falava: ―Por que tá chorando, muié?‖. ―Eu tô chorando que o prefeito num quer botar água pra nós, nem a luz‖. ―E você?‖. ―Tô chorando porque vai despejar nós‖. ―Eu tô chorando por que...‖. Aí, cada uma era uma coisa e teve a Márcia que chorou mesmo. Ela chorava, a Márcia, que é da lagoa.18

Essas representações teatrais tinham a qualidade de solidificar e

aprofundar não somente os textos bíblicos na mente dos moradores, mas

também de conscientizar para a luta que era de todos. As ruas se tornavam

palcos teatrais, e o enredo dos textos bíblicos era a realidade dos moradores

da favela.

17

Entrevista com João Miranda realizada em 04/02/2010

18 Entrevista com Miguel Borges Leal, realizada em 06/02/2010

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3.5 ―ERA ESSE DEUS QUE SE MANIFESTAVA AQUI‖

Em 1993, houve um conflito muito emblemático na favela de Heliópolis

que marcou a todos os moradores. Na Gleba N, seriam construídos prédios

para algumas famílias. Era um antigo alojamento construído pela prefeitura.

Durante o processo de construção dos prédios, que acabou por não acontecer,

algumas pessoas ocuparam o lugar. Em 1993, a prefeitura avisou que

terminaria de construir os prédios naquela área, por isso ela deveria ser

desocupada com a retirada dos moradores. A liderança da UNAS pediu que

fossem retiradas as famílias que chegaram depois de 1986 porque os mais

antigos já estavam na área há muito tempo. Não sendo ouvidos, os líderes

divulgaram a notícia de que a prefeitura estava querendo despejar todos da

favela e mobilizaram os moradores para que se reunissem em assembléia para

decidir o que fariam naquela situação. Porque entendiam que a prefeitura, se

conseguisse retirar parte da favela, acabaria por despejar todos os moradores.

Os policiais foram à favela com todo o aparato possível para retirar a

qualquer custo os moradores da Gleba N. Uma das primeiras estratégias dos

policiais foi identificar a liderança masculina entre os moradores. Feito isso, os

policiais passaram a prender os homens que lideravam a UNAS. Antônia

Cleide lembra-se dessa situação com clareza e diz:

O que a polícia fez? A primeira coisa, localizou as lideranças homem. Levou todos os homens preso. Era o Geraldo, foi o Miguel. Todos os homens. Zé Francisco. O Dito. Todos os homens, eles falaram. Então eles falaram: ―Vou tirar os homem e, aí, fica só as mulheres e... Batata‖. Foi isso que na verdade eles tiraram. Então, primeira coisa levaram os homens.19

19

Entrevista com Antônia Cleide Alves realizada em 02/02/2010

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Diante dessa realidade, as mulheres buscaram uma solução não muito

ortodoxa para resolver o problema e enfrentar os policiais. Contaram com a

participação daqueles que Antônia Cleide chamou de ―meninos‖. Ela diz que

―quem entrou mesmo na briga já na época, foi os meninos... A gente chama os

meninos. Foram os meninos do tráfico. Foram eles que seguraram à bronca‖. 20

O conflito se estendeu durante horas terminando com algumas pessoas

feridas. Só não foi pior por que a juíza da época voltou atrás e ordenou que

fosse anulada a ação do poder público e dos policiais.

Todavia, nesse conflito que se pode perceber o quanto o imaginário

religioso permeou a realidade dos indivíduos que passaram por várias

situações controversas na favela desde o início das ocupações. Conforme

mostra o pastor Carlos ao contar os momentos difíceis do conflito que causou

danos graves aos moradores, mas, ao mesmo tempo, proporcionou a chance

de os moradores se unirem mais na luta a favor de moradia para todos.

Eu via Deus presente... A primeira coisa que eu vi Deus presente, quando o batalhão começou a jogar bomba, a bomba caia no pé dele, Deus presente. Como eu vi, num abrir e fechar de olhos, o vento virar, dar aquele redemoinho e o vento virar contra eles e eles começarem a se xingar eles mesmos na minha frente. Vi Deus agir no maldito juiz que tava lá e de a liminar, ele mesmo cassar a liminar depois. Porque ele pensou: ―Eu dou um grito, e o povo vai embora‖. Não. O povo resistiu, e a coisa tá feia, tão apanhando, mas tem gente enfrentando. Vai morrer policial, ele então será o culpado. Eu vi Deus presente, quando o povo começou a se unir.21

Esse conflito que se tornou um símbolo de união entre os moradores,

quando lembrado, é relatado com um invólucro de uma atmosfera mística que

mostra a validade dos momentos ali vivenciados, uma comprovação do quanto

Deus, para os líderes da UNAS do presente e do passado, aprovava suas

20

Entrevista com Antônia Cleide Alves realizada em 02/02/2010

21 Entrevista com o pastor Carlos Caetano realizada em 25/03/2010

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ações na favela. Era como se eles estivessem fazendo realmente o que Deus

queria que eles fizessem. E as conquistas eram a demonstração de quanto

eles estavam certos. Para eles, todas as conquistas alcançadas foram

manifestações de Deus em sua vida. As ―manifestações‖ divinas eram vistas

nos momentos mais importantes da vida da favela e dos moradores,

principalmente relacionadas às vitórias que alcançavam nas lutas com os

grileiros, com os policiais ou até com o poder público. Mas também viam a

presença de Deus nas suas derrotas quando se ouve o João Miranda

reconhecer que as tiveram, mas que Deus também estava com eles. Ele diz:

Eu vejo a ação de Deus nas conquistas. Não existe conquista sem Deus tá com nós. Deus tá presente com nós nas conquistas, nas vitórias,sabe? Nos momentos que a gente tá meio... Né? Por que a gente também às vezes leva derrotas.22

Ao ouvir Miguel dizer que Deus se manifestava na favela, ―era esse Deus

que se manifestava aqui‖, conforme relato acima, leva-nos a pensar que ele

estava relembrando os vários acontecimentos das lutas pela moradia nos quais

a violência era a tônica maior que ditava a realidade daqueles moradores que

buscavam ver sua vida econômica em condições de ser administradas sem

que precisassem pagar aluguéis. Enquanto os grileiros os apertavam de um

lado, o poder público os pressionava do outro, na tentativa de retirá-los da área

que já haviam conquistado com muitas dificuldades.

No conflito de 1993, após uma liminar da justiça pedindo a reintegração

de posse de uma área específica da favela, na gleba N, João Miranda diz que

aquele dia ele viu que Deus estava com eles. E isso aconteceu pela sabedoria

que ele teve ao colocar o líder da polícia da época para falar com os

moradores, dando a oportunidade de o povo se expressar e fazer a opção pela

resistência. De acordo com João Miranda, a coragem adquirida por ele não

22

Entrevista com João Miranda realizada em 04/02/2010

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podia vir dele mesmo, mas havia algo mais ali dando a ele as condições de ver

o que ninguém via.

Essa coragem, não sei quem dá pra nós. Acho que é Deus. No meu entender. É o Deus vivo. É o Deus no meio de nós que dá sabedoria nos momentos, né? Que eu chegava: ―Mas como é que pode. Aqui tem criança não pode ser jogado. Não é lixo‖. Olha essa frase que eu vejo hoje. Eu digo: ―Mas, como é que eu falei aquilo?‖. Naquela época, né. ―Aqui tem criança morando não pode ser jogado, não é lixo‖. Né? O coronel lá pra falar. Eu chamei o coronel pra falar na assembleia geral. Olha que sabedoria. Chamar o cara pra o cara falar com o povo. A assembleia geral lá e o cara lá. O coronel que tava comandando a polícia de Choque e tudo. Sabe? Olha que coisa. Não sei como é que aconteceu aquilo. Mas que aconteceu, aconteceu. Então, eu acho que ali tava Deus. Tava. Não tinha como ali não tá a justiça do nosso lado. Deus pra mim é justiça. Falo em Deus pra mim é democracia. Deus pra mim é abundância de comida pro povo. Deus pra mim é esse. Sabe? É o Deus que representa tudo isso. Não é? E naquele momento Deus tava com nós. Deus tava com nós.23

Para ele, Deus é a manifestação da justiça e os moradores terem saído

vitoriosos naquela situação foi a demonstração de que Deus estava do lado

deles. Essa era a compreensão de parte da liderança da igreja católica que, de

acordo com Dom Celso Queirós, tinha uma evangelização libertadora e fazia

opção pelos pobres. E para ele ―opção pelos pobres não é trabalhar só com

pobre [...], é conviver um pouco com os pobres pra aprender a maneira deles

verem o mundo, a maneira deles olharem pra Deus‖. 24

Essa maneira de olhar revelava que as pessoas que começaram a

favela de Heliópolis tinham claro que tudo que aconteceu — principalmente na

década de 1970, quando os enfrentamentos com os grileiros e policiais eram

diários — era fruto da presença divina entre eles guardando-os, protegendo-os

e, sobretudo, dando coragem para enfrentarem aquelas situações tão

23

Entrevista com João Miranda realizada em 04/02/2010

24 Entrevista com Dom Antonio Celso de Queirós realizado em 31/03/2010

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absurdas. Ao relatar algumas lutas que enfrentara no decorrer do processo de

ocupações no final da década de 1970 e no início da década de 1980, Genésia

reconhece que nada fez por si mesma, mas Deus estava agindo em seu favor.

Esse imaginário que pressupunha a intervenção divina perpassa os anos na

favela dando a Genésia a certeza que toda a sua coragem era algo além das

possibilidades que ela mesma tinha para enfrentar, isto é, os instantes de

extrema necessidade e hostilidade. Ela, então, salienta:

Isso eu sempre tive muito claro que toda essa minha coragem, tudo isso que determinava. Deus estava na minha frente. Nunca. Nem um momento eu nunca fiz nada sem ter claro na minha mente que ele tava na minha frente. Independente que eu sobrevivesse ou não. Mas que ele tava na frente. Eu não tava só. Até porque eu, às vezes, ficava imaginando. Surgia as ideia assim na minha cabeça que eu ficava me perguntando a mim mesma: ―Como é isso? Como eu consegui pensar nisso? Como eu conseguia saída com essas atitudes? Como eu consegui...?‖ Coisa assim que depois eu fico imaginando, até hoje eu fico. ―Mas como é que eu fiz isso?‖ Às vezes, eu fico imaginando. Sobre algumas decisões que eu tomava. Né? Mesmo diante do grupo, eu nunca, nunca, nem um momento. Pra mim sempre tinha algo muito importante na frente que estava me dando todas as condições pra que eu continuasse. Então, por isso que eu não conseguia me acovardar, porque eu tinha isso claro na minha cabeça.25

O fato de não estarem sozinhos deu aos líderes da favela de Heliópolis a

certeza de que deviam continuar na luta por ocupação de espaços. Não

obstante tudo que poderiam passar, eles estariam seguros porque aprenderam

a ver muito além das montanhas que faziam parte de sua realidade. João

Miranda, ao lembrar-se de um texto bíblico, diz, com sua maneira peculiar, que

―a fé move montanhas. Mas, mover montanha está se dizendo move o

governo‖. 26 Dessa forma, identifica um dos obstáculos que enfrenta e em seu

25

Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/2010.

26Entrevista com João Miranda realizada em 04/02/2010

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imaginário religioso em consonância com as suas lutas sociais ressalta as

ações divinas que pode derrubá-lo.

3.6 AS AMBIGUIDADES DA IGREJA: ―SE CHEGASSE A ENTRAR EM UMA

ÁREA DELA, ELA MANDAVA TIRAR...‖

Havia na favela de Heliópolis, nos tempos mais efervescente da luta por

moradia, um ecumenismo religioso pautado pelas necessidades mútuas.

Muitas pessoas de diversas religiões participavam ativamente do movimento de

moradia dando o que podiam e vivendo em harmonia. Como diz João Miranda,

em Heliópolis aconteceram coisas interessantes em relação às religiões,

proporcionando uma interação entre os líderes religiosos que diferia de outras

regiões. Padres, pastores, freiras e mães de santo viveram juntos e até

celebraram suas cerimônias e cultos, mantendo um diálogo que influenciou a

todos os moradores.

Tinha vários pastores na luta. O pastor Carlos é um, pastor Wilson é outro. Ação deles era, por exemplo, abrir a igreja pra nós fazer reunião para a comunidade mais próxima. Pra nós não ter que trazer aqui pra quadra. Que o povo já não gosta de reunião. Chega do serviço cansado. Aí, nós pedia a igreja que, por exemplo, tava mais na beira do córrego. Pr. Wilson falava: ―João tá aí a igreja. Pode fazer aí a reunião‖. Muitas das vezes ele participava. Sabia de tudo que tava acontecendo. Teve um culto lá que a gente teve uma freira de hábito. [...] A Mércia foi falar lá no culto de hábito. E ele deu a palavra a ela. Quer dizer... Umas coisas que teve aqui, sabe? Frei Sérgio foi lá na dona Odete. Tem um terreiro de Umbanda. E Cosme e Damião é uma festa mais bonita, né? Docinho pras crianças e tudo e baixa o Cosme e Damião neles. Que vira criancinhas e fica ali. O frei Sérgio foi lá de hábito e entrou no terreiro. E conversou com eles, sabe? Entrou naquele ato de que as religiões têm que tá tudo juntas. Você entendeu? A demonstração disso. Significado de uma freira entrar no culto evangélico e ter o microfone e falar de Deus. De hábito! Um padre entrar no centro de Umbanda da dona Odete. Aqui na travessa união.

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Quer dizer essas coisas aconteceram aqui, né? Que é bonito, né?27

Entretanto, apesar disso, percebem-se algumas contradições nas ações

das religiões que prestavam serviços à favela. Contradições que foram

percebidas pelos moradores e também por líderes eclesiásticos. O pastor

Carlos Caetano, ao falar do conflito de 1993, reclama da ausência de pastores

e líderes junto à luta contra aqueles que desejavam tirá-los da favela. Ele diz

que ―não apareceu um pastor, não apareceu um obreiro, nem presbítero, de

outra igreja nem pra pedir misericórdia e nem pra falar nada‖. 28 Esse fato não

se coaduna com o que ele mesmo mostra, dizendo que para os adeptos das

igrejas evangélicas a maneira de olhar a situação era bem diferente porque

―teve grupo de irmãs que era de círculo de oração, orando daquele mal, mas os

líderes não‖. 29

De acordo com Delmiro, é também possível apontar algumas

contradições da igreja católica, imprescindível para a transformação da favela.

Por que embora a igreja tenha fundado a pastoral da favela e tenha dado todo

apoio à luta por moradia na favela de Heliópolis, ela não deixou de exercer seu

poder sobre os pobres mantendo as suas terras que não podiam ser ocupadas.

Delmiro diz que a igreja católica delimitava o apoio que dava aos moradores

que ocupavam a área de Heliópolis.

Ela apoiava nós de uma maneira diferente, ela nos apoiava na luta contra o grileiro, mas, na igreja mesmo, ela não queria ninguém. Pra morar lá dentro, pra dormi lá dentro, pra ficar lá dentro ela num dava, entendeu como é? Mas não deixava de nos apoiar na luta, entendeu como é? Ela dava, se fosse

27

Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/2010

28 Entrevista com o pastor Carlos Caetano realizada em 25/03/2010

29 Entrevista com o pastor Carlos Caetano realizada em 25/03/2010

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possível, ela dava madeira, algumas madeira pra fazer um barraco, se tivesse com telhado como ela nos deu, um telhado enorme, um telhado caro, ela nos deu pra ajudar a cobrir o barraco de enchente, meu quintal tinha um monte de telha, tudo telha de plástico, telha de seis metros que vem da igreja aí do Moinho Velho, que era pra dar pros invasores que num tinha com o que fazer os barracos, madeira, entendeu? Cesta, às vezes, ela nos cedia, nos dava algumas cestas também, entendeu como é? Trazia assistência social, nós tinha assistência social e a pastoral da moradia, ela nos cedeu algumas coisas também como a broca de bloco, ela manteve, a pastoral da moradia, muito tempo eu tinha uma broca de bloco aqui. Aqui eu tinha um depósito de cimento que eu fabricava bloco, eu fabriquei próprio aqui dentro, mais ou menos, mais ou menos uns, pra umas trezentas casas. Bloco de cimento, bloco de primeira. Tudo dinheiro doado pela igreja, ela comprava o material, comprou o cimento, comprou o maquinário, entendeu? Tudo na bitoneira, máquina vibratória, entendeu? Mandou colocar trifásico pra nós, tudo a igreja, então ela nos deu um apoio extraordinário. Agora na parte de aconchego, de moradia, pêra lá, ela não dava, ela dava o apoio em áreas que não pertencia à igreja.30

Essa contradição, se é que podemos chamar assim, é rechaçada por

Dom Celso Queirós ao dizer que a crítica feita pelos moradores e relembrada

por Delmiro não procede, porque o que a igreja tem não representa uma ajuda

substancial para resolver o problema de moradia que é muito grande.

Principalmente, porque as terras da igreja são, em sua maioria, herdadas de

famílias que fazem doações para manter seminários que, segundo ele, sempre

representaram um problema para a igreja. Só há poucas terras que são

fazendas onde tem hortas e criação de vacas. Além disso:

várias vezes, a igreja, onde tinha, ofereceu para isso. Aqui em São Paulo, quer dizer, nós nunca chamamos uma polícia, porque, às vezes, a igreja não sabia o que fazer com esses terrenos, entendeu? Não tinha dinheiro pra construir nada, mas ficava ali, né? E quando o pessoal invadia como aconteceu

30

Entrevista com Delmiro Monteiro Farias realizada em 06/02/2010

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aqui no morro, outra vez, a igreja nunca chamou a polícia. Houve terras ocupadas, aqui na cidade, coisas pequenas.31

As contradições invadem o imaginário religioso que marca a realidade

dos líderes do movimento de moradia na favela de Heliópolis. Contradições

que aparecem também nas questões de fé. Para João Isaías, a fé em Deus é

um tanto difusa porque para ele Deus pode ser a moradia digna, a boa

educação. Deus está presente nas coisas do dia a dia, nas necessidades.

Eu acredito em Deus. Só isso. Eu acredito em Deus. Pra mim Deus, presente dentro da sua necessidade. Porque Deus não quer ver ninguém sofrer, né? Acho que Deus é isso... É... Uma moradia digna. É... Né? Uma educação digna. Isso é Deus pra mim. O que eu entendo por Deus, o bem-estar do ser humano.32

Esse imaginário religioso, como relataram os entrevistados, estava

imbricado de tal forma na vida dos indivíduos que lutavam contra os mais

terríveis e possíveis obstáculos na favela de Heliópolis, foi a chave mestre para

a aceleração das transformações sociais no lugar. Ao que tudo indica, a fé

fundamentava diferentes maneiras de driblar as necessidades, fazendo com

que os moradores vissem ―um novo céu e uma nova terra‖. Essa utopia

engendrada pelo aprendizado da Bíblia conduzia os moradores a uma luta que

achavam já terem vencido. Eles não achavam que perderiam a luta que era

travada sob os ensinos da Bíblia sobre a orientação de uma teologia que tinha

um modelo paradigmático completamente diferente daqueles existentes no

Brasil.

Com uma evangelização libertadora, as igrejas, tanto católicas quanto

algumas protestantes, lançavam-se a favor do pobre e em direção a ele. Essa

31

Entrevista com Dom Antonio Celso de Queirós realizada em 31/03/2010

32 Entrevista com João Isaias realizada em 29/01/2010

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perspectiva fez com que, nas favelas, por intermédio da aproximação da igreja,

o imaginário religioso servisse de motivador para as ações dos movimentos

populares. Na favela de Heliópolis, essa realidade não foi diferente. O que

podemos perceber é a via de mão dupla onde as religiões foram criadoras

desse imaginário religioso e, ao se aproximaram dos pobres, sobretudo das

favelas, os ensinos, as perspectivas e a teologia foram influenciados pela

realidade social entre os pobres.

Não se pode negar a abrangência da Teologia da Libertação na favela

de Heliópolis. A Teologia da Libertação, segundo Boff (1996, p.13),

é a primeira teologia histórica que nasce na periferia do cristianismo e que apresenta um novo modo de fazer teologia, com uma sistematização coerente dos conteúdos da fé. Coloca em seu centro a prática de libertação com os pobres.

Essa teologia favorecia a compreensão da realidade por intermédio dos

símbolos religiosos, da leitura da Bíblia e das liturgias que se faziam

representar nas ruas da favela.

A cruz, os cantos, a leitura da Bíblia, as representações, as

manifestações serviram para criar uma atmosfera na favela que evidenciava

aos moradores a necessidade de continuar a lutar para ver suas vidas

transformadas. A transformação social se dava no desenrolar da compreensão

que adquiriam do poder que tinham quando lutavam juntos. O imaginário

religioso no contexto da favela revelava, talvez, a força que tinham quando

usavam a fé como motivador das ações.

O que me faz refletir é se a fé valorizada pelos indivíduos da favela,

como a que sustentava a luta, era fruto das necessidades que

experimentavam. Parece que alguns ali não tinham conceitos claros sobre a fé

em sentido religioso, mas criam na possibilidade de obter a moradia. Portanto,

talvez não se possa determinar que a realidade na favela, com todo imaginário

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existente, mediante a atmosfera religiosa promovida pela igreja, fosse o lugar

de conceituar Deus, mesmo que muitos dele falassem, porque as

ambiguidades existentes em Heliópolis representavam ―um desafio para

qualquer espécie de conceito de Deus‖, como salienta Troch (2007, p.68),

refletindo sobre a ambivalência do cotidiano.

Entretanto, percebe-se que a fé era a base sustentadora das lutas por

moradia. Era também ―ante todo la comunicación en verdad y la construción de

lenguajes que elabora el grupo al formarse‖ (CERTEAU,2006,p.162). A

presença da igreja foi de fundamental importância para o despertar da fé na

realidade daqueles indivíduos. A fé já fazia parte da vida deles e puderam

aprender com o ensino bíblico, seguindo uma hermenêutica da libertação,

aquilo que já estava na própria favela. Como afirma Genésia, relembrando o

trabalho realizado pela igreja na favela. Ela recorda que ―eles era um mediador

na contribuição do desenvolvimento dessa liderança. Porque era muito simples,

tava tudo nas nossas mãos. A gente que precisava pensar, analisar e buscar

os caminhos‖.33 A luta por moradia era, portanto, permeada pela fé que foi

articulada e direcionada para a realidade dos líderes da favela. A fé se tornou a

práxis, visando a suprir as dificuldades e a escassez que tinham os moradores

de Heliópolis.

Analiso que o trabalho da igreja católica foi preponderante para que

houvesse uma maior consciência das lutas e para que a favela estivesse mais

unida em um só objetivo. Entretanto, questionam-se as contradições da própria

igreja que, além de ocupar as áreas que poderiam ser destinadas à moradia ou

a área de lazer, não acolheu nessas terras aqueles que chegavam à favela.

Essa postura ambígua de dar e reter para si pode ser questionada quando se

abre mão do romantismo comum para fazer uma análise das ações da igreja.

Outra questão que me chama a atenção é que a realidade dos

indivíduos é o lugar da manifestação da fé. Como diz Troch (2007, p.65) ―o

33

Entrevista com Genésia Ferreira da Silva realizada em 02/02/2010

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127

lugar onde essa realidade da fé pode ser encontrada [...] é a vida cotidiana,

marginalizada no âmbito da atual ordem simbólica...‖. Mas, a fé, qualquer que

seja seu modo de expressão, está dentro dos indivíduos que a exprimem no

contexto que vivem e de acordo com suas necessidades. A Teologia da

Libertação trouxe elementos teóricos ao que já havia em cada líder na favela

de Heliópolis? O imaginário religioso foi criado como algo novo para aqueles

indivíduos ou ensejou o desenvolvimento dos conteúdos religiosos apreendidos

desde a infância? Será que ficou mais fácil para as ações da pastoral da

moradia usar as necessidades dos indivíduos como motivadoras para o desejo

de aprender práticas e conceitos teológicos novos?

Ainda a meu ver, o cristianismo da libertação, embora tenha causado um

impacto muito forte nas áreas urbanas, e principalmente na favela de

Heliópolis, teve uma durabilidade transitória. Mesmo que possa ver os

resultados hoje, noto que os ensinamentos da Teologia da Libertação parecem

não se encaixar na favela nos dias atuais. Será que a transitoriedade corrente

em todas as teologias atingiu de forma mais contundente a Teologia da

Libertação por que as pessoas na favela de Heliópolis transformaram sua vida

social?

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Considerações finais

Durante a minha vida, sempre refleti sobre a espiritualidade entre os

mais pobres. Meu interesse partia da minha própria experiência de vida com

conceitos rígidos de religiosidade e espiritualidade. A partir dessa vivência, as

minhas inquietações quanto às questões religiosas nas favelas me levaram a

pensar em várias formas em que a fé se materializava.

Junto a essas inquietações, tive agora a oportunidade de me aproximar

mais profundamente da Teologia da Libertação, apesar de agora ser o

momento em que ela é questionada e caracterizada como uma teologia

enfraquecida, não mais desse tempo.

Assim, cheguei para pesquisar na favela de Heliópolis, com um olhar

que não tinha nenhuma premissa delimitada. Isto até certo ponto foi bom,

porque me ajudou a ter mais sensibilidade ao escutar os meus interlocutores. À

medida que fui ouvindo as histórias de vida dos líderes da favela, dei-me conta

de que as respostas que eu mesmo tinha foram se desfazendo. Surgiram

outras perguntas que essa pesquisa deixou em aberto.

A História Oral, como metodologia, foi importante para esclarecer o que

eu imaginava ser o impacto da Teologia da Libertação nas favelas das grandes

cidades. Ouvindo os interlocutores, vi que a Teologia da Libertação, mesmo em

tempos de globalização e da realidade política diferente daquela do período

que me propus a pesquisar, ainda está presente nas ações daquelas pessoas

que se orientaram por essa teologia. Obviamente, percebi o saudosismo das

pessoas que, naquele tempo, recebiam a orientação teológica nos Cursos de

Verão. O passado para alguns tem um sabor diferente e lembrar-se dele

provoca bem-estar, alegria. Esses Cursos de Verão foram importantes para a

formação da liderança da favela de Heliópolis, como afirma Genésia Ferreira

da Silva:

Na época, tem o grupo da igreja que é onde a gente faz alguns curso de verão. Aí, um grupo da Teologia da Libertação. Aí, também passo pro esse processo que era pra mim ter mais conhecimento, né? Aí, faço todos esse curso e vou me qualificando melhor. E vai melhorando as minha habilidade entendeu? De lidar. Vai melhorando as minhas coragem. Então, tudo isso contribui, né? É aquela

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coisa. Junta a fome com a vontade de comer. Então eu me entreguei assim de corpo e alma, né? Pra esses curso. Porque era tudo o que eu queria na vida. Tudo que eu imaginava, tinha nesses curso.34

A pesquisa respondeu, em parte, minhas suspeitas. Constatei que a fé

sustentava as ações dos líderes da favela de Heliópolis. Percebi isto em vários

momentos enquanto ouvia os meus colaboradores e também relembrava suas

histórias de vida. Foi interessante ver a emoção de Miguel Borges Leal quando

ele diz: ―Nós fizemos tudo aquilo com a fé‖. 1 Por intermédio das memórias do

pastor Carlos Caetano, também notei o quando a fé sustentava os moradores

de Heliópolis na luta por moradia. Ele diz:

Eu acho que em todas as lutas que você vai fazer com

uma intenção da sua fé e você tá defendendo o direito de

outro, você tá fazendo o bem, a obra. E a fé sem obra é

morta, e eu acredito, na minha filosofia. Se eu posso

fazer e não faço, eu posso ajudar e eu não ajudo, eu

posso estender a mão e não estendo... 35

A fé era uma fonte de empoderamento para as lutas por moradia. A fé

que estava imbricada na vida dos indivíduos foi o instrumento que os levou à

transformação social na favela.

A memória coletiva, que foi construída durante os momentos de

escassez, dificuldades e lutas durante o período de 1970 à 1993, culmina na

união dos moradores da favela. Para Helbwachs (2006, p.67).

A sucessão de lembranças, mesmo as mais pessoais, sempre se explica pelas mudanças que se produzem em nossas relações com os diversos ambientes coletivos, ou seja, em definitivo, pelas transformações desses ambientes, cada um tomado em separado, e em seu conjunto

O estudo revelou que as vidas dos indivíduos que lideraram o

movimento na favela nos momentos mais cruciais e difíceis de luta foram

1 Entrevista com Miguel Borges Leal realizada em 06/02/2010

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moldadas e fundamentadas pela fé. A fé dos líderes estava enraizada no

contexto em que viviam as suas lutas por melhores condições de vida e

infraestrutura. A fala de Antônia Cleide traz essa percepção, ela acredita em

Deus, um Deus que se revela na organização da coletividade:

Eu acredito muito em Deus. Cada vez mais eu acredito mais em Deus. Acredito nessa força de bondade, nessas coisas boas, na fé. Tenho muita fé. Nessa questão da organização, nessa questão da luta. De você acreditar

que é possível mudar as coisas.36

Constata-se que a Teologia da Libertação foi de fundamental

importância para a gestação de um imaginário religioso que servia de base

para que os indivíduos se engajassem na luta por transformação social. Essa

fé está alicerçada no cotidiano da vida e mediada por essa teologia.

Ao mesmo tempo, o estudo revela algumas contradições e

ambiguidades das instituições envolvidas no movimento de moradia, mesmo

que esse envolvimento fosse proveniente dos membros dessas instituições.

Não havia controle dos pastores que discordavam das práticas de ocupações

dos membros de suas igrejas. Muitos deles participavam da luta e até oravam

enquanto algumas ações estavam acontecendo. Como relembra o pastor

Carlos Caetano, ao falar da contradição que havia entre a posição dos líderes

das igrejas evangélicas, sempre contra o movimento de moradia, e a dos seus

liderados. ―Naquele tempo tinha muito, então o povo tava orando na direção

daquilo lá. Mesmo que não aceitasse. O pastor era contra. Aquele mais

humilde sempre estava lá na oração, clamando‖.2 As contradições podiam ser

vistas quando os religiosos se reuniam e se relacionavam ecumenicamente na

favela. Coisas que para muitos era inaceitável. O pastor Carlos se lembra que

as diferenças eram respeitadas, mas havia harmonia e boas relações entre ele

e os religiosos católicos. Ele diz:

tive várias vezes aqui na igreja Santa Edwiges, que a

liturgia quem lia era eu, ele me levava pro altar: ―Pastor

Carlos aqui nos honrando‖. E dava a liturgia pra eu ler, eu

que lia , fiz muito. E pra mim não era problema, eu falei

pro bispo, falei: ―Olha, tem uma coisa que pra nós é

2 Entrevista com pr. Carlos Caetano realizada em 25/03/2010

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problema...‖. Ele me chamou pra uma missa, uma festa

no Ipiranga, e eu falei: ―Mas tem uma coisa, cada vez que

vocês passam lá na frente da igreja...‖, a minha família é

toda católica, eu tenho sobrinho, irmã dele estudando pra

padre, pra se formar. Eu falei: ―Passar em frente ao

crucifixo, faz o em nome do Pai e tem que ajoelhar, isso

eu não vou fazer‖. Ele falou: ―Meu irmão, faz o que tá no

teu coração, não vê o outro fazer e faz também não‖. Eu

esqueci o nome dele. É o bispo Celso. Me abraçou,

chorou e falou: ―Não faz isso não, isso não é a nossa

diferença não, nosso amor é Cristo‖.37

A pesquisa identificou que as trajetórias de cada indivíduo revelam que

os acontecimentos ocorridos em sua vida serviram para alicerçarem os valores

preservados em seus lugares de origem ou relacionados aos seus projetos de

vida. A terra, o trabalho, a família e a educação foram objetivos idealizados

pelos interlocutores que lutaram por alcançá-los.

A pesquisa confirma que a memória coletiva é marcada pelo processo

de migração de todos os interlocutores envolvidos na liderança da favela de

Heliópolis. Essa migração, com situações similares de deslocamentos,

proporcionou aos interlocutores a participação nas mesmas lutas para suprir

suas necessidades de garantir moradia e localização. Como diz Halbwachs, as

mudanças são aparentes e se resolvem de maneiras semelhantes (2006 p.

108).

A memória coletiva é painel de semelhança, é natural que

se convença de que o grupo permaneça, que tenha

permanecido o mesmo, porque ela fixa sua atenção

sobre o grupo e o que mudou foram as relações ou

contatos do grupo com outros. Como o grupo é sempre o

mesmo, as mudanças devem ser aparentes: as

mudanças, ou seja, os acontecimentos que ocorreram no

grupo, se resolvem em semelhanças, pois parecem ter

como papel desenvolver sob diversos aspectos um

conteúdo idêntico, os diversos traços essenciais do

próprio grupo.

Parece que Certeau (1990, p. 189) também concorda com essa posição

quando diz: ―só há lugar quando frequentado por espíritos múltiplos”. Portanto,

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o grupo não deseja esquecer que por intermédio das histórias individuais

constitui uma memória coletiva que os unifica.

A análise da trajetória mostra o quanto as mudanças e as circunstâncias

da vida podem causar rupturas ou podem produzir mais motivações para a

busca de novos sonhos e caminhos na vida cotidiana. Para isso, as táticas de

sobrevivência são criadas com objetivo de obtenção de espaços que podem

ser geográficos ou sociais. Os moradores de Heliópolis, além de buscar os

espaços constituídos para morar, instituíram espaços sociais importantes para

a luta na cidade de São Paulo. A tática, segundo Certeau (1990, p.100-101) é a

―ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio.[...] não tem

lugar senão o do outro. [...] é movimento ―dentro do campo de visão do inimigo‖

e no espaço por ele controlado. [.] a tática é a arte do fraco‖.

Sobressai a liderança das mulheres. Como afirma Genésia, as mulheres

foram responsáveis pelo início do movimento de moradia na favela de

Heliópolis. Ela mesmo relembra a participação das mulheres:

Na verdade, aqui a gente iniciou com a participação das

mulheres. Foi com um grupo de mulheres. Agora, o

desafio dessas mulheres era convencer os homens. Era

um grande desafio porque o homem não via essa

questão como correta, né? 38

Chama a atenção o fato de que, embora esse discurso seja corrente

entre as mulheres, alguns homens com que conversei e que fazem parte da

liderança afirmam que a ultima palavra sempre é deles. Ao perguntar sobre isto

à Antônia Cleide, ela disse:

A maioria eram mulheres que participava. Eram poucos

os homens. A gente foi conseguir trazer os homens já

quase começando. A gente precisa de um número de

mulheres trás, mas a gente vai construir a casa a gente

precisa dos homens. Foi assim que os homens vem, foi

assim que a gente conseguiu trazer os homens, mas

começou com as mulheres acreditando nisso. As

primeiras a acreditar era as mulheres. Então, sempre foi

muito assim as mulheres tocaram muito a luta. Eu acho

que tinha muito isso. A gente não sentia que era imposto.

Não era uma coisa imposta. Era uma coisa que a gente

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achava bom... Era muito sentido desse jeito. A gente não

tinha nenhum problema se a gente tava sendo oprimido.

39

Pude perceber que as questões de gênero podem ser estudadas em

profundidade na favela de Heliópolis, porque parece não ser algo resolvido,

mas acomodado. Essa questão, à medida que for estudada, poderá revelar os

conflitos subjacentes.

O estudo revela que os símbolos (a cruz, a Bíblia, os cantos, as

representações bíblicas) utilizados nos contextos institucionais receberam

significação prática quando entraram na realidade dos moradores de Heliópolis,

transformando-se em sinônimos de luta social. A fé passa a ter dimensões

ideológicas e políticas.

Após esta pesquisa, afirmo que a fé gerou empoderamento dos

indivíduos que se tornaram protagonistas de suas histórias e é cultivada

quando participa da concreticidade da vida desses indivíduos. Quando os

ensinamentos teológicos e bíblicos deixam de ser conteúdos abstratos e são

formados da realidade de dores e de lutas das pessoas, transformam-se em

referências poderosas que podem fundamentar ações de transformação social.

Deixo claro que não é possível nesta pesquisa fundamentar totalmente o

impacto da fé na luta por moradia na favela. Muitas coisas ficaram por refletir e

pesquisar, ainda existem inquietações.

De acordo com os interlocutores, a fé está pautada pelas experiências

de luta dos moradores de Heliópolis. Deus está presente no contexto de lutas

sociais e populares. Não há dicotomia entre a vida social e a fé praticada. A

vida é vivida como um sacramento, e os sacramentos devem ser projeções da

vida. Quando Miguel fala da cruz, das representações, dos cantos que eram

entoados nas ruas, ele mostra que não haviam barreiras entre os instrumentos,

as liturgias sacras e a sua vida cotidiana. Ele relembra:

Aí, que veio o negócio da cruz, todo ano, já fazia uns dez

anos que nós fazia na sexta-feira santa, nós não fazia

nas igrejas, nós da pastoral da favela, nós fazia assim,

nós saía daqui de Heliópolis um bocado, outro lugar e se

encontrava na Vila Mercês, de pé e nós ia com a cruz até

ali em cima, era uma via sacra.[...] Nós refletia muito a

palavra de Deus e incentivado pela fé. [...] Só quando nós

tava cantando, que nem aquela época, em volta de nós

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fazia o cordão de milico. Nós cantava lá, e eles ficava

mordido. Inclusive tinha alguns que chegava em nós e

falava: ―Olha, eu tô aqui por que eu sou obrigado, mas tô

com vocês‖, é sério, os militar chegava a ver quando o

comandante dava um forinha deles lá. Mas toda a nossa

luta foi baseada, até uns 15 anos atrás, foi toda baseada

na palavra de Deus e se não fosse ela, nós não estaria

aqui hoje. 39

Quando o que é considerado circunscrito à instituição se aproxima dos

indivíduos em sua realidade parece que se tornam mais consistentes. Percebi

que, em Heliópolis, as pessoas sentiram isso vivendo imbuídos pela fé. Como

afirma João Miranda: ―Mas aqui eu acho que tive uma participação mais cristã.

Nesse Deus vivo. Sabe?‖. 40

Ainda faltam muitos estudos no Brasil sobre o real impacto do

cristianismo socialmente engajado e mediado pela Teologia da Libertação nas

favelas e periferias das grandes cidades. Será que podemos dizer que o

cristianismo de libertação ainda está dando formação aos movimentos

populares nos contextos urbanos? As músicas, com os cantos populares,

foram instrumentos para consolidar os princípios da Teologia da Libertação

entre os pobres? Talvez questões como essas pudessem ser aprofundadas.

Não dá para colocar aqui as experiências que tive ao entrar na favela de

Heliópolis e conversar com aqueles que, por sua liderança, são admirados

pelos moradores do lugar. Muitas situações estão em minhas lembranças.

Quando João Miranda relembra a capacitação de Luiza Erundina ele disse:

Eu lembro que a Erundina uma vez veio falar pra nós e

ela escrevia assim no quadro assim pra nós é...

MOBILIZAÇÃO. Ela começou falando uma coisa sobre

isso. Ela foi didática assim numa coisa. Mobilização. Aí,

ela dividia ela falava: ‖Mo-bi-liz-AÇÃO. Não termina na

ação. Então, ação é o quê? Ação é se mover... É... Muito

legal. Muito legal o jeito que ela... Sabe? ORGANIZAÇÃO

– Organizar para a... Ação. Eu não me esqueço nunca

dessas coisas.41

Quem lê essas frases perde muito da essência do momento. Pois,

quando ele relembra a forma como Luiza Erundina ensinava, alegra-se tanto a

ponto de gargalhar. Não há como esquecer a fala que João Isaías traz à tona

sobre o filho morto e sua emoção por sentir-se traído pelo envolvimento do filho

no tráfico de drogas enquanto participava do movimento da moradia, que é e

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faz parte de sua história de vida. Quando Miguel pega a Bíblia, emocionado,

dizendo que se não fosse por tudo que aprendeu nela, eles não suportariam as

lutas. A fé no cotidiano das favelas ainda é um campo a ser explorado.

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Anexo

Histórias de vidas

Antonia Cleide Alves

Ficha técnica

Data da entrevista: 02/02/2010

Nome completo: Antonia Cleide Alves

Local e data de Nascimento:

Idade: 46 anos

Estado civil: casada

Profissão atual: Gestora de projeto social

Instrução: Contabilidade/ estudante de psicologia

Profissão anterior: auxiliar geral

Meu nome é Antonia Cleide Alves, nasci em Ibicuã – Ceará. E vim pra

cá, prá São Paulo com cinco anos de idade. Onde eu nasci... Eu lembro. Era

muita brincadeira. E nesse período lá... A gente morava numa cidade

pequenininha no Ceará. E a minha cidade... Eu lembro que passava o trem no

meio da cidade. Hoje em dia nunca mais voltei lá, né? Nesses 41 anos nunca

mais voltei prá lá. Ano que vem volto pra lá. Já não tem mais a estação de

trem. Mas, eu me recordo das brincadeiras. Me recordo que eu estudava e ia

prá escola. Mas, assim eu tenho boas recordações de lá.

Meu pai era... Minha mãe não trabalhava. Era dona de casa. E meu pai

tinha um açougue. Na realidade lá... O que eu me recordo era... Na realidade a

gente veio pra cá nem pela condição financeira. Lá a gente tinha uma condição

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melhor do que quando a gente veio prá cá. Então, lá a gente veio por conta de

uma briga de família por causa de terra. Meu pai brigou com meu tio. E ai foi

ameaçado de morte. Ameaçado pelo próprio irmão. Não irmão não. Cunhado.

Era irmão da minha mãe. Por causa da divisão de terra lá, né? Por causa de

terra. Era o motivo. Então, tinha bastante essa rixa. E meu pai tinha uma irmã

que morava em Mato Grosso. Mato grosso. Ai ela conversava muito com ele e

falava... Olha que loucura! Eu fico pensando até hoje como é que alguém pode

acreditar nisso?! Ela falava que lá em Mato Grosso o pessoal naquele período

conseguia encontrar muita botija de ouro. Olha que coisa de doido, né? Botija

de ouro! Ai juntou esse negócio de vim pra Mato Grosso. Eu fui primeiro pra

Mato Grosso. Foi um período que a gente sofreu muito lá, né? Porque ai a

gente foi trabalhar na fazenda. E trabalhar em fazenda era o seguinte; Você

comprava já comprava da própria fazenda. Você nunca tinha dinheiro pra nada.

Daí só trabalho. A gente foi morar numa fazenda lá bem no finalzinho de Mato

Grosso. Ai meu pai juntou essa questão da terra, mas por conta deste sonho,

desta questão ficar rico. Essa da botija de ouro nós éramos em quatro irmãos

contando comigo. Ai a gente sai de lá no trem. É por isso que isso ficou

marcado pra mim. A gente sai de trem de lá e vai embora pra Mato Grosso. Ai

chega lá... Minha tia bem pobre. Tudo que ela falava em casa era tudo mentira.

Bem pobre ela era, né? Ela trabalhava em madeireira. Mato Grosso naquele

período tinha muita madeireira. Tavam desmatantando tudo lá. Eu achava que

era a melhor coisa do mundo mais estavam desmatando o Mato Grosso. Nós

chegamo lá. Nós não tinha nem onde ficar. E cadê a botija de ouro? Pelo

contrário. Ai nós se ferramo. Ai ficava chato. Como que a gente ia voltar lá pro

Ceará? A gente não podia nem voltar mais pra lá. Ia pra onde? A única pessoa

que conhecia era essa tia em Mato Grosso. E São Paulo. Ai tinha o sonho de

São Paulo, né? Nós ficamo lá durante dois anos. Até meu pai conseguir a

passagem pra poder vim pra São Paulo. Juntou com uma família lá conhecida.

A gente acabou conhecendo uma família. E a gente pagou a passagem dessa

família prá poder ela... É como se fosse apresentar São Paulo pra gente. Ai a

gente veio embora pra São Paulo.

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Nesse período nós ficamo um ano lá em Mato Grosso. Porque quando

eu cheguei aqui em São Paulo, eu já começo a estudar. Com sete anos. O

primeiro ano. Então deve ter devo ter ficado lá um ano, um ano e meio mais ou

menos, mais ou menos nesse período. Ah! Acho que foi o pior lugar que me

recordo. Acho que foi o pior lugar. Porque na verdade é assim... A gente foi

morar... Era uma fazenda... Era grande. Eu lembro que era grande. E lá

trabalhava com café e algodão. Mais algodão. Colheita de algodão. E ai meu

pai que trabalhava lá. Ele tinha que colher algodão. Ai tinha que colher... Ia eu,

meu irmão lá... todo mundo pra colheita. Eu tinha... Eu tinha o quê? Eu tinha

essa idade... Cinco anos e meio. Outro meu irmão tinha quatro. A diferença

era essa. Ai tinha um que tinha a diferença de quatro anos... Tinha dois anos.

Um ano e meio e um outro bebezinho. Era assim... E outro que era... Ficava

muito doente. Eu lembro que meus irmão vivia muito doente, muito, muito,

muito doente. E tinha que ir pra poder ajudar meu pai, né? Eu e outro meu

irmão. Minha mãe trabalhava na casa da fazenda. Trabalhava limpando,

cozinhando. Ficava na família. Não lembro nenhuma brincadeira, pelo

contrário, só trabalho. Então foi um choque muito grande, né? Eu tinha uma

realidade. Uma situação. Antes era de brincadeira... Que tinha tudo. Que nas

férias lembro que ia prá Fortaleza. Eu ia pra Maranguape. Ficava na casa de

minhas tia. E ai pumba! Vou cair num lugar desse, né? Tenho as piores

recordações de Mato Grosso. Nem olho assim no mapa... .Eu olho assim Mato

Grosso... Pumba! Eu lembro que tá bem lá no fundo, no fundão mesmo. Nem

localizei no mapa hoje. É até bom falar isso pra você. Porque nem parei pra

localizar.

Depois deste período a gente chegou aqui em São Paulo. Eu lembro que

a gente chegou aqui em São Paulo. Não conhecia. A não ser essa família que

trouxe a gente. Nós fomos para Vila Zelina. Junto com essa família. Ai

chegamos todo mundo juntos na casa dos parentes dessa família, né?

Chegamo lá. Porque não podia ficar mais tempo lá. Essa pessoa foi parar na

favela da Vila prudente. Comprou um barraquinho. Meu pai tem 1.70m de

altura. Meu pai não conseguia ficar em pé no barraquinho pequenininho. A

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gente ficou morando nesse barraquinho lá. E ai eu também tenho boas

recordação de lá. Lá da Vila Prudente. Isso eu já tinha sete anos de idade, né?

Me recordo lá. Lá, na verdade, tinha duas pessoas que cuidavam muito da

gente. Porque tinha que sair pra trabalhar meu pai e minha mãe. Nós éramos

em quatro. E ficava sozinho lá, né? E era um quintal lá. Eu Lembro que tinha

uma mulher deficiente. Quando lembro da minha infância. Eu sempre lembro

do livro do Aloísio de Azevedo. Eu lembro muito quando eu li ―O Cortiço‖. Eu

lembro muito daquele lugar quando eu morava na Vila Prudente. Do cortiço.

Porque assim, tinha uma pessoa que era uma prostituta. Tinha uma outro que

bebia. E tinha uma outra que era uma deficiente. Nesse local. Quando nós

morava era o único lugar que tinha água. Era um poço. Lá na Vila Prudente.

Em 70 isso já foi 70, 71. Quando nós chegamos lá... Aqui em SP. Nesse lugar

não tinha água encanada na favela. Então, todo mundo vinha naquele lugar

pegar água. Então, quer dizer... A favela inteira a gente conhecia. E todo

mundo se conhecia porque aquele era o ponto de encontro, né? Então lá que...

Então lá que eu passei dos... Passei lá dois anos. É... Porque em 72 teve

uma... O viaduto lá. E tirou a gente de lá pra cá. Foi outro momento de ruptura.

Ai eu vim morar aqui em 72. Aqui no Heliópolis, né? Mas, transferido dessa

favela. Então, lá era um local que eu tenho bastante recordação boas. Porque

eram pessoas que acolhia a gente, né? Então, naquele período a gente não

tinha dinheiro pra comprar pão. Era essa moça a Toinha que dava pra gente.

Era a outra pessoa... O que bebia... Né? Então, fico pensando assim, né? Se

você olhar a sociedade considera como que tão aquém... Foi quem mais

acolheu a gente aqui em São Paulo, né? Foram essa pessoas. E eu fui ver

depois quem era cada um. Lógico que depois que fui entender... Não foi

naquele momento. Naquele momento eram as pessoas que eu mais gostava e

que mais deu atenção prá gente, né? Eu fiz já o primeiro ano e vim fazer o

segundo ano aqui. Segunda série aqui. E sempre lá assim... Eu sempre tive

que crescer muito rápido. Porque minha mãe sempre teve que trabalhar em

dois emprego. Meu pai também. E eu tive que cuidar dos meus irmão. Eu que

tinha que acompanhar eles... Eu sem idade... Não sabia fazer nada. Mas tinha

que acolher. E naquele período era muito assim... As crianças carente, né?...

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Pelo que eu lembro. A gente saia pedindo. Nossa! Minha irmã ia catar na feira

porque o que a gente ganhava não dava pra gente comer, né? Mesmo essas

família ajudando não dava. Eu pedia, falava mais tal então eu pedia. A gente

sai... Tinha eu, mas... Tinha outras meninas de lá. Ah! A Filomena... Hoje fico

olhando...! A gente se encontra... Eu fico pensando como? Lembro de todo

mundo. Filomena, Toinha. Todo mundo da mesma época. A gente saia juntas.

Aquela turma toda. E a gente pedia. E ai era isso que [...] conseguia pra poder

comprar de manhã o leite e o pão. De manhã e café. Quando eu não

conseguia era a Toinha que dava pra gente. Ela comprava. Ela conseguia. Era

um pouco isso. Ai a minha irmã. Minha irmã que é uma diferença de quatro

anos, a Quena, trabalha com a gente aqui também. Ela fez serviço social. Ela

já era quem ia pra feira. Então nas feiras, hoje eu não sei como tá, mas

imagino que seja assim, no final da feira o que sobrava não ia... Hoje vai pro

lixo. A gente ia nas barraca. Já tinha aquelas barraca que já separava. E ai ela

ia pegando as frutas. Então, a gente sempre tinha em casa, fruta, verdura e o

pão... Isso ai era garantido. E ai minha mãe já era outras coisas. Sempre foi

desse jeito.

Então, eu apaguei Mato Grosso. Na verdade assim... Eu tenho um

problema, né? Que é o seguinte; as coisas que são ruim eu vou apagando. Eu

apaguei . Eu tinha apagado Mato Grosso. Parecia que um... Hoje que eu to

recuperando... Hoje que eu quero dizer a dez anos prá cá que eu venho

recuperando essa infância. Porque muitas das coisas eu apaguei. Agora pra

gente também... Nesse ambiente que era que todo mundo se conhecia. Que

era... Lá no... Na Vila Prudente, né? Que tinha uma... Como que quero

dizer...? Sempre teve muita solidariedade, né? Eu acho que isso é uma coisa

que me fez muito bem.Tinha muita solidariedade por onde eu tava.

Acompanhava muito essa solidariedade. Tinha muita solidariedade por onde eu

tava. Tinha muito nesse período. Nesse período, eu lembro que a igreja tinha

um trabalho. Tinha nessa favela, eu não reconhecia como igreja. Meus pais

são católicos, né? Mas, assim... Ai a igreja lá tinha um trabalho de dar cesta

básica. Eu lembro. Lá na Vila Prudente. Igreja católica. Católica mesmo que

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tem lá. Ah! Eu não me lembro. Se eu não me engano hoje era a Nª. Sra.

Aparecida. Não sei se era a mesma no período. Mas, eu acho que era a

mesma. Um padre cumprido e tal. Depois eu nem... Mas, hoje ainda eles estão

lá. Eu vejo que eles ainda fazem essa área. Muito... Muito assistencial. Então,

tinha muito isso na comunidade naquele período. Só que eu na verdade... Eu

tinha uma... A gente... Como a gente era assim... Conhecia... Eu participava

com um pessoal de um centro espírita. Tinha um centro espírita La perto da

Vila Prudente. Na rua do orfanato. E ai a gente visita... Todo o domingo a gente

ia pra lá. Que ai tinha um lanche... Tinha uma... Era mais por causa do lanche

que a gente ia. Eu lembro que a gente ia por causa do lanche. Era bom,

brincadeira, tinha brincadeira. E tinha esse lanche. Ai ia todo mundo. Uma

turma. A gente ia todo mundo. Eu Filomena, Maria... A gente ia... Mais de 12.

Era uma festa. No domingo. A gente ia e vinha a pé. Era uma coisa assim. Pelo

tamanho que é hoje. Era coisa de uma hora a pé. Mas era a pé que todo

mundo ia tranqüilo, né? Brincando. Fazendo bagunça por ai. Apertando a

companhia. Tudo essas brincadeiras era que a gente... Que a gente ia... Era

bem moleque de rua mesmo, né? Era bem assim. E ai nesse local, por

exemplo, eu visitei asilo, eu visitei e... É... Penitenciária. Porque eles fazia esse

trabalho. Em penitenciária. Eu visitei hospital. Então, eles ensaiava com a

gente no domingo também pra gente no domingo pra gente recitar verso,

cantar. Era esse trabalho que esse centro espírita fazia, né? Então assim, era

uma coisa muito... Muito... Muito legal. E ai quando foi sair da Vila Prudente

desse ambiente prá cá, foi um choque também muito grande, uma ruptura

muito grande. Porque era tudo novo pra nós. Era 120 famílias. Veio bastante

daquela área. Daquele setor que a gente tava. Mas, nem tanto porque tinha

outra opção. Não vinha todo mundo pra cá. Podia ir pra Guaianázes, né? Mas,

a maioria veio pra cá. Mas, era um outro lugar. Eu cheguei... No lugar a gente

só tinha aquelas 120 famílias que tava... Era um lugar que já tinha as

assistentes social... As assistente social. Eles montaram um alojamento.

Chamaram de ―alojamento provisório‖. Então, falaram: ―Olha, vocês vão ficar lá

durante seis meses. Depois de seis meses vocês vão ter a casa de vocês‖. Eu

falei: ―Puxa! Era tudo o que eu queria‖. Morava num barraco, num barraco ruim.

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Nesse período meu pai já tinha arrumado o barraco, já tinha ficado maior. Ele

já era podia ficar em pé, né? Já tava melhor. Na verdade eu gostava daquele

ambiente! Eu tinha religião, eu tinha escola, os amigo, né? Ai a gente veio pra

cá recomeçou tudo de novo, né? Nesse período. E ai quando a gente vem pra

cá, né? Era alojamento com essas 120 famílias. Mas, tinha um pavimento. E

era um colado no outro. Quer dizer, não tinha muita diferença da minha

realidade. A diferença era que espaço pra brincar... Lá tinha e aqui não. Mas

tinha. Não. Como que eu quero dizer? Lá era de cumprido. Lá era uma coisa

que era mais redondo né? Aqui era mais... Era rua. E um fazia fundo pro outro.

Era... Assim que a gente vê. Então, a gente ia ficar seis meses. Só que tinha

assistente social que organizava. Os banheiro era coletivo, né? Coletivos

banheiros. Tinha... Organizava as pessoas pra limpar. Isso eu to falando em

72. Quando a gente veio pra cá. Final de 71 pra começo de 72.

Na verdade, quando a gente chegou aqui tinha o quê? Tinha duas

fazendas. Era como se fosse um sitio. Dois sítio. Entrando com a Almeida

Delemare com a Sebastião. Eram dois sítios e mais nada. O resto tudo era

mato, mato. Já tinha o hospital Heliópolis. Só que em volta tudo era mato.

Tinha o hospital Heliópolis e tinha uma rua de casa que até hoje tem que perto

onde é a Rua Girassol. Que é a Frei Braule. Tinha aquelas casa lá que eram

casas todas bonitas tal, né? Mas era... Pra nós era um lugar longe, né? Porque

a gente saiu lá da Vila Prudente. Era zona Leste a gente tava indo pra zona

Sul. E hoje é perto, mas pra nós era longe e era recomeçar tudo de novo...

Normalmente. Era um barraco de sem divisão, né? Aberto. Um barracão

grande, mas um barraco grande... Era um barraco pequeno. Era alguma coisa.

Nós cinco... Quatro filho e mais dois adulto. Seis pessoas. Tanto é que depois

minha mãe ficou grávida de mais um, né? E ai a gente foi pra aquele barraco.

Era uma coisa assim que a gente tinha. O banheiro era coletivo em quatro. Lá

a gente o banheiro coletivo era em... Quantas família? 12 família. Para cada 12

tinha um banheiro. E a cada 20 quatro tinha um chuveiro. Quer dizer, então, é...

Piorou pra gente. Era um lugar limpo. Um lugar... Na madeira. Então, pra gente

piorou, né? E Tinha que conviver com mais pessoas.

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Eu tinha Sete... Oito anos quando eu comecei estudar. Tinha escola aqui

na Vila Carioca. Mas, era assim... A gente gastava... Era tudo vazio, morro.

Você imagina. A gente gastava uma hora. Eu saia uma hora e meia antes.

Porque a gente ia brincando e aquele mundarel de criança brincando, correndo

um atrás do outro. Aquele jeito! Ia todo mundo a pé, né? Condução era coisa

mais difícil do mundo. A gente andava muito a pé em toda essa área aqui

vazia, né? E nesse período eu lembro que me marcou muito essa questão das

assistentes social. De organizar, de ter reunião. Foi um período que foi...

A Prefeitura. Na época era governo de militar. Era indicado ainda. Maluf

era o governador, Não sei se era o Lauro Matel? Não era o outro. Esqueci

quem era o prefeito. Reinaldo de Barros... Não era antes do Reinaldo... Acho

que era... Curiat. Acho que era o Curiat. Reinaldo de Barros veio depois. Acho

que eu já tava um pouco maior. Eu lembro que era o Reinaldo de Barros. Um

pouco maior... E lembro que era o Reinaldo de Barros. Mas, assim... Eu

lembro que chamou atenção o Maluf. Isso eu lembro. E ele nem era o prefeito.

Era governador. Mas eu lembro que eu tenho trauma... Eu tinha trauma do

Maluf daquele tempo já. Foi quando eu reconheci de novo o Maluf... ―Não.

Maluf não‖. Lembro que fiquei com trauma do Maluf naquele período. Acho

que a situação... Acho que não... Aquela situação que tava lá na Vila Prudente.

Eu acho que era uma coisa que a gente sentia como se tivesse amparando

com aquelas família... E a gente vindo pra cá... A gente perdeu aquelas

famílias. Eles tavam, por exemplo, a Filomena... Ficou... Tava... Mas ela já não

tava mais perto. Ela não tava no fundo da minha casa. Ela já tava na rua de

trás. Agora ela não... Agora não ela tava lá pra cima. A gente ficou longe uma

da outra. Num ficaram os mesmos vizinhos que a gente tinha porta a porta lá,

né? Porque dependendo do tamanho da família tinha os barracos maiores e

tinha os barracos menores, né? Então, eu acho que essa... Essa né? Essa

carência de ter aquelas pessoas por perto... Acho que eu perdi de novo, né?

Entendeu? Acho que foi uma ruptura desse jeito. Então assim... Eu lembro que

não foi bom vim pra cá. Não era bom... Era perigoso. Era tudo mato. Era tudo

longe. Tudo diferente da Vila Prudente. Lá era tudo perto. Lá eu tinha religião.

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Local pra ir de domingo. Tinha escola. Já tinha montado lá. Tinha bombeiro.

Porque tinha lá um bombeiro lá perto. No dia das crianças a gente ia lá ganhar

brinquedo. Eu tinha a vizinha tal que eu ficava lá com a filha dela que ela me

dava presente. Eu já tinha uma estrutura. Eu tinha uma estrutura assim

mínima. Que a gente... Se precisava sentir essa solidariedade, esse conforto.

Acho que era isso que, na verdade, tinha. Quando vem pra cá, tenho que

reconstruir tudo isso de novo. Eu não tenho... Não tenho essa casa que já me...

Toda a semana eu ia pra lá e ela me dava brinquedo. Eu lembro que, por

exemplo, pra mim aprender ver relógio. Eu vi... Aprendi com essa menina, né?

É... Até hoje... É... Como ver as horas. E onde eu tinha brinquedo era lá na

casa dessa menina. Então, quer dizer, eu perdi tudo isso e vim prá cá. Então

assim... Foi difícil eu reconstruir isso, né? Prá... Eu lembro que... Criança eu

chorava muito. Chorava muito: ―Nossa. Eu não quero ficar aqui, né?‖ Eu resisti

muito na... Quando a gente veio prá cá. Ai o tempo foi passando, né?

É... Minha família era muito católica. Todo final ai... Ai o que aconteceu.

A gente tinha aquele centro espírita que eu ia lá. Que eu perdi totalmente o

contato. Não tinha mais como ir. Então me fez muita falta. Ai o que a gente

tinha? Ai foi passando com o tempo, tal. Ai depois a igreja evangélica. Tinha...

Todo domingo levava um ônibus lá e a gente ia lá prá escola dominical deles.

Então, eles botavam o ônibus e a gente ia.

Lá tinha esse centro que a gente mesmo ia, tal. Aqui, na verdade, você

tá perguntando da religião? Isso eu acho que já devia ter uns nove pra dez

anos mais ou menos. Ai nesse período ai acho que já tinha uma estrutura já

tinha. Isso eu tava te falando as assistentes social começaram um trabalho lá

durante um... Permaneceram uns três anos. Eu não sei precisar o tempo, né?

Elas acompanhando lá teve um período que elas saíram... Ai saíram. É como

se fosse assim... A comunidade mesmo é que tem que se organizar, né?

Então, assim, acho que isso foi forte comigo, né? Sempre que tinha que ter

alguma organização, isso pairou. E outra coisa que eu... Lembro que isso é

muito forte. Eu sempre achei que a gente... Essa situação de pobreza... Eu

sempre senti isso... Que não tava certo, né? Eu sempre achava assim... Não é

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certo. Eu olhava pras outras coisas. Eu comparava assim: ―Não é certo você ter

a sua casa. Porque eu tenho casa de madeira, né?‖ Tanto é que eu... E quando

eu... Prá eu entrar na...ai eu comecei a conhecer o pessoal da Teologia da

Libertação que ai teve tudo a ver e o PT. O surgimento do PT. Teve tudo a ver

com o que eu pensava desde criança. Porque eu falava assim: ―Bom é isso

mesmo é a fé... Através da fé... A gente tem que ter fé que tem mudança e tem

que ter luta, Tem que ter a fé é luta‖. Sempre Pensava desse jeito, né?

Pensava desse jeito. Na questão da caminhada daqui. Porque eu falava

assim. E esta questão do ser justo. Eu não achava justo. ―Porque eu fui parar

de morar num barraco através da luta com 25 anos de idade?‖ 20 cinco anos

de idade. Então, na verdade, eu morei dos meus sete anos até os 25 anos de

idade num barraco! Então, eu falava: ―Não é justo. Não pode ser‖. Isso dai era

outra coisa que eu falei. Eu fale, ―Bom, a vida não me deu _Eu pensava assim

_ Não me deu dinheiro. Eu não vou poder comprar uma casa. Mas eu vou lutar

e comprar uma casa. Ah! A vida não... Não me deu um emprego, mas eu vou

estudar, eu vou estudar. Eu vou aprender. Eu vou entender como tá essa

sociedade, né‖? E essas pessoas que... Eu pensava sempre assim: ―essas

pessoas que... É... maltratam as pessoas‖. Eu falava que maltratam né? ―Essas

pessoas que oprimem‖, ai eu vi na igreja... Não é maltratam é oprimem. ―As

pessoas que oprimem, né? Elas têm que ser derrubado... Não tá justo. As

pessoas têm que ter o mínimo. O mínimo é ter uma casa. O mínimo é ter um

carro‖. Eu... Eu na minha cabeça era isso. O mínimo era isso. Então, na

verdade, eu falo o seguinte. Eu consegui ai, eu entendo ás vezes por que...

Porque a gente perde muito meninos pra droga. A gente perde muito menino

prá não ir a escola. A gente perde muito menino... Por quê? Na verdade, eu

consegui... Essa minha revolta... Que eu tinha na época de juventude em

achar injustiça. Porque o mundo era injusto comigo, né? Eu centrei minhas

forças nesta questão da organização, da luta, né? Eu sempre acreditei muito

que... Existe um Deus e este Deus tá, mas, ele tá ai... Pra poder é... É...

Proteger no sentido... Falar assim... ―Mas, olha segue o teu caminho. Eu to aqui

pra te ajudar, te clarear, mas é você que tem que ir atrás‖, né? Então, eu

sempre acreditei nesse Deus dessa forma, né? Sempre me guiou nesse

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caminho. Então, da igreja a gente... Eu lembro que a gente ia lá... Era a batista.

Eu lembro que... A batista que eu lembro que era mais forte. Naquele período

não tinha muita igreja como tem hoje, né? E naquele tempo também... Acho

que outra coisa que a gente tinha de bom... As drogas não tava na

comunidade. É lógico que a gente tinha aqui os matadores, Não era nem

traficante... Era ladrão de banco. A gente tinha aqui em nossa comunidade.

Essa comunidade logo foi crescendo. Mas, as drogas na comunidade elas só

foram chegar nos anos 90. Antes não tinha. Nesse período, O perigo era por

que... Aqui tinha muito matagal. Tinha estuprador, mas não tinha droga. A

gente não tinha não. Então, assim... Tinha muita gente aqui nesse trecho aqui.

Tinha problema de grileiro. Pessoas que se diziam... Como a área é muito

grande... Se diziam dono da terra. Que não tinham os dono da terra. Pessoas

que já vieram. Porque eu tava num trecho mais lá embaixo. Aqui nos anos 80,

78, 79, né? Tinha aquelas família que... É a família Mariano. Que ai o João e a

Genésia vai poder contar mais, porque eles vêm nesse período aqui de 80.

Como eu venho de 70. E ainda tinha outra coisa aqui na comunidade. Como a

gente veio, a prefeitura é que trouxe a gente pra ficar seis meses, né? A gente

se sentia dono. Então a gente... Uma coisa que prejudicou muito a nossa... O

pessoal de lá, né? A gente falava o pessoal de lá, o pessoal de cá. Até hoje

tem isso ainda.

Porque na verdade acabou aqui a quadra A. Acabou ficando assim. Nós

que a prefeitura trouxeram... .A minha família falava assim: ―Nós não somos

invasor‖. Porque pobre tinha muito esse negócio. ―Não. Ele não é invasor‖.

Tanto é que toda a área vazia. Ficaram aquela 120 família morando... Por isso

que eu estou te falando. Com 25 anos de idade essas áreas todas vazia.

Porque quando a gente chegamo não tinha nada. A gente continuou naquele

barraquinho. Olha como a mente é mentalidade das pessoas. Como é a mente

da gente... Quer dizer... Se a gente quisesse naquele período, podia falar

assim: ―Vamo lotear‖. Cada um pegava a sua casa. Fazer uma rua entendeu?

A mentalidade que era das pessoas... Não era... As pessoas não eram. Nós

ficamos naquele barraquinho esperando a prefeitura. Então, entende que é

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uma mentalidade, né? E na hora... O restante da comunidade. Vamos

pensar... Pensando aqui na Rua da Mina. Eles pensavam diferente. Eles tavam

pagando aluguel. Não conseguiam mais pagar aluguel. Então eles tinham que

entrar aqui a ocupar. Eles não falavam invadir. Prá nós que tava lá... Que a

prefeitura trouxe... ―Eles são invasores‖. Então, era como se fosse o seguinte.

Quando o movimento unificou. Quando o movimento começou a lutar aqui para

garantir o direito das pessoas. Ele além de querer discutir com a prefeitura. Ele

ainda tinha que conscientizar essas outras pessoas pelo direito da moradia.

Entende? Eram dois trabalhos que tinha. Porque a gente tinha lá na cabeça.

―Não. Vocês são invasores... Eu não posso me juntar com vocês. Vocês são

invasores‖. Olha... A mentalidade das pessoas. E meu pai até hoje ele fala:

―Não. Eu não sou invasor... Foi à prefeitura que me trouxe‖. Então, tinha essa

visão... Isso pensando... Pega a ditadura. Vamo pensar. E... Tem toda a

questão do PT trás a questão do socialismo que tem todo um preconceito do

comunismo comer criançinha. Aquelas coisas. Entende? Essa... Essa visão

tudo? E ai a mim me recorda com 17 anos. Eu já tinha 17 anos estava fazendo

o colegial... Isso foi uma coisa que eu sempre quis. Eu sempre tive problemas

lá em casa. Porque a minha mãe falava assim: ―Não adianta você estudar

porque mulher não precisa estudar. Mulher não precisa porque você vai casar

e cuidar do filho... Cuidar da casa‖. Ai eu dizia não, não. .Engraçado! Eu

brigava com a minha mãe pra poder estudar. Porque naquele período as aulas

terminavam 11 e meia. Então, eu já tinha que trabalhar. Porque já... Logo de

pequena, me recordo, nove anos, já tava trabalhando. 12 anos já tinha carteira

assinada. Tinha que trabalhar. Hoje com a questão estatuto da cidade

melhorou... O estatuto da cidade! O ECA melhorou muito essa visão do que é a

criança e do que é o adulto. Naquele período não tinha. Filho de pobre com

nove anos, dez anos, 12 anos já tinha que completar a renda. Essa era a

realidade. Meu primeiro trabalho foi como ajudante geral de uma fábrica. Essa

fabrica fazia plástico, né? A gente mexia com plástico. E eu não tinha nem

tamanho pra poder alcançar as mesa. Precisava alcançar as mesa. Eles

colocava um banquinho. Ai com 11... Comecei a trabalhar lá com nove anos de

idade. Trabalhava meio período e a tarde ia pra escola. Com dez. 11 anos eu

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tinha que trabalhar o dia todo. Porque com 12 anos já registrava. Eu tinha

registro. Mas, ai eu com 11 tinha que trabalhar o dia todo. Ai eu fui estudar a

noite. Nesse período eu tava na quinta série. Ai abriram uma sala à noite.

Minha mãe teve que ir lá à noite dá uma autorização pra poder estudar à noite.

Que não podia. Não tinha idade pra estudar à noite. Mas, ai eu estudei, né?

Na verdade eu tive que crescer muito rápido, né? Se eu lembrar da minha

infância. Na infância de brincadeira... Mais lá em Ibicuã no Ceará. Aqui nesse

período quando a gente... Até os dez anos quando a gente ia pra escola. Era

um momento de brincadeira. Mas eu tive que crescer muito rápido por conta

que eu tinha que cuidar dos meus irmão e por conta dessa questão de

trabalhar. Que tinha que trabalhar. Minha mãe falava: ―Não. Não vai‖. Mas

mesmo assim eu ia... Ia fazer o colegial. Não teve boi. Com 18 anos eu

terminei o colegial. A escola era perto. Era no Gauter. Eu estudei aqui no

Gauter. Coisa de uma meia hora pra a gente ir. Eu estudei lá até a quarta série.

Lá na Vila Carioca. No Francisco Meireles. E ai depois na quinta série eu

estudava aqui no José Escobar. Que é do lado agora da estação de metrô.

Estudei da 5ª a 8ª. O primeiro grau fui pro Gauter. Fiz o terceiro ano. Ai eu

terminei com 18 anos. Com 11 anos eu estudava no Gauter. Lá desde a 5ª

série.

Isso ai nós já tamo falando, na verdade, de 80. Já começa as

grandes ocupações aqui. Em 80 já começa em vários locais. 86 já têm 2500

Famílias aqui dentro. De 120 em 86 que foi um cadastramento que foi feito. Só

que em 86. Nesse período de 80. Em seis anos esse movimento fez com que a

prefeitura comprasse essa área. Porque essa área do INSS.

Nesse início da nossa luta a gente contou muito com a igreja. Todas as

caminhada, todas as reuniões era junto com a igreja. Era a cruz na frente e a

gente atrás cantarolando, rezando. Então, esse foi um momento muito

importante na minha vida que foi o período da Teologia da Libertação. Que, na

verdade, a gente tinha os seminaristas juntos com a gente aqui. Ai o

surgimento também do PT. Acho que casa muito isso, né? São as

comunidades de bases. Aqui já tinha. Na verdade, quando eu conheço o

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pessoal... Eu falo o pessoal. Na verdade, a Genésia em 79. Ou é 78-79. Ela

começa a morar aqui. Ai começa a organização. Você imagina lá nós não

temos organização. O que nós temos... Nós somos 120 família que tão lá, né?

Colocados pela prefeitura. Que tá esperando a prefeitura dá uma definição. Era

um pouco essa linha que a gente tinha na cabeça. Um pouco isso.

O que eu tinha, né? Eu era uma adolescente, eu estudava, saia pras

balada. Eu tinha uma revolta muito grande, né? Eu lembro que com 17 anos eu

conheço um dia o João. Era o João e o Miguel. A Genésia eu fui conhecer

depois. Tem uma assembléia lá no Heliópolis, né? Neste período eu já tava

participando da associação de moradores lá. Eu tinha muito isso na cabeça:

―Não. A gente tem que se juntar pra melhorar‖. Lá tinha problema de esgoto. Lá

tinha problema de barulho. Me incomodava muito o barulho. Porque eu

precisava estudar e não tinha como estudar, o calor, né? Lá era a associação

de moradores... Então, eu começo a participar lá. O João Prefeito, por

exemplo, foi uma figura importante nesse trecho lá. Só que tinha uma coisa

negativa porque a associação de moradores nesse período não era pra

organizar os moradores. Era pra servir de palco pros demagogo da política. Era

isso que era. Porque a associação de moradores vem da época da ditadura.

Então, ela era atrelada ao prefeito Local. Mas, não era fazer o beneficio. Fazer

favor, né? Então, não tinha uma linha de luta. Essa fundada pelo João prefeito.

Entendeu? Não tinha uma linha de luta. Tinha uma linha de atrelamento ao

poder público e uma linha de submissão.

Eu participava lá do grupo de jovem lá com as irmã. Um período tinha

irmã lá na comunidade. Tinha reunião. Participava lá eu já com 15, 14anos eu

já fazia parte. Eu já tava engajada nesse sentido. Mas, eu tinha muito aquela

revolta: ―Eu quero melhorar a minha situação. A situação de todo mundo. Não,

tá certo desse jeito. A vida da gente tem que melhorar‖. Sempre tive muito isso

na cabeça, né? E ai, teve uma assembléia lá. Eu não sabia o que tava

acontecendo por aqui. Juntou lá e fez uma assembléia. Lá na Coronel Silva

Castro. E eu fui na assembléia. E a assembléia lá era falando exatamente:

―Essa terra é nossa. Nós não podemos sair daqui‖. Quer dizer, pra mim isso

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não dizia muito. Mas, já falava: ―Nós temos que lutar. Que não tá justo desse

jeito. Ai, pumba! Ai eu falei: ―É esse pessoal que vou‖. E ai eu conheci o João

Miranda. Lembro que eu conheci o João e o Miguel. O Geraldo não tava. A

gente veio também no mesmo período. Fui conhecer o Geraldo depois a gente

entrou muito junto, né? A Genésia. Porque aqui tinha uma mulher, tal. Mas o

que eu lembro... Eu lembro que tava nesse dia da assembléia era o João, o

Miguel. E tinha uma pessoa que era o José Mentor. Que era um político. Na

verdade, ele era um político. Da igreja tinha o Miguel e tinha o Frei Sergio. E ai

teve essa assembléia. Eu falei: ―É isso mesmo‖. Ai fui conhecer eles. E ai me

identifiquei de cara. Ai comecei achar... Onde eu tava participando... Comecei a

ver diferença no que tava se fazendo. E ai eu comecei a vim nas reuniões aqui.

Aqui tinha reunião uma vez por semana. Aqui a gente sentava, discutia todos

os problemas dos locais. Do que tava acontecendo em cada local. Tinha uma

comissão de moradores. Eu comecei participar lá e aqui da comissão de

moradores. Lá do Heliópolis da associação eu virei tesoureira. Segunda

tesoureira. Da associação de lá. Teve eleição ai eu já tinha contato com João

prefeito. Ai o João disse:‖ Não vamo prá você ser secretária. Ia fazer 18. Tinha

17 anos. Ai eu peguei e entrei na associação junto com eles. Mas, continuei

participando da reunião aqui. Me identificava mais aqui, né? Aqui do jeito de

trabalhar. Do jeito de lá era falar com os político. Eu não gostava... Eu tinha

dificuldade. Eu tinha, na verdade, ojeriza... Porque do mesmo jeito que eu tinha

eu separava o que é rico o que é pobre. Eu odiava os rico. O rico eu odiava

porque o rico tinha tudo e eu não tinha nada. Assim que era na minha cabeça.

Não era diferente disso. Eu achava isso. E eles viam e eles eram rico então eu

tinha raiva deles. Não me dava bem. Ainda me dava bem com o João Prefeito.

Ai depois, na verdade, o João era querido por todo mundo. Era muito

carismático. Ele dava a mão prá todo mundo. Ele que trazia o político, ele que

trazia um beneficio. Mas não pra organizar ele era aquele favor individual. Ele

fazia aquele papel de... Depois que ele foi ter a consciência. Ele não tinha. E

nesse período eu continuei participando enquanto comissão de moradores, né?

Teve eleição lá. Eleição da associação de moradores. Todo mundo dizia: ―O

João que vai ganhar‖. Ai tinha uma outra pessoa que é o Hildebrando. Que era,

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na verdade, oposição. Ele dizia: ―Não. Tá certo vamo trabalhar junto com o

pessoal da igreja. Vamo trabalhar junto com PT‖. Ai o que aconteceu? Eu falei:

‖Então, eu to junto com você Hilde. Vamo tá junto, vamo montar um time pra a

gente ganhar essa eleição‖. E ai começamo a discutir isso aqui junto com

Miguel, João Miranda, Genésia, e com frei Sergio. E foi uma eleição aberta.

Uma eleição que a gente fez o primeiro cartaz. Tem a foto de todo mundo. Uma

coisa bem interessante. Até hoje eu tenho lá guardado. Isso foi em oitenta e

dois. 82 a gente fez assim. E nós ganhamos do João. Que era na verdade, ele

era tão confiante nele. E nós só ganhamos do João por quê? Porque ele abriu

pra comunidade toda. Esse foi o primeiro erro do João. Como ele era muito

confiante. E ele tinha razão. Ele tinha razão. Era o mais conhecido nesse

trecho. Que era da Rua Cônego Xavier pra baixo, que é a gleba A. Lá ninguém

derrotava ele. Ele era o presidente. E aqui não tinha outra associação ao não

ser a dele. Tinha uma outra do Claudio aqui. Mas, por exemplo, quando os

políticos vinham, não sei o quê, era na Rua Coronel Silva Castro. Era só lá.

Era lá que fazia os palanque. Era lá que enchia de gente. E aqui era como se

fosse um trabalho de formiguinha. Era associação de moradores, né? Mas,

aqui tinha organização. Organização enquanto comissão. Quando o João

aceita a área toda a votar. Ele se ferra. Ele perde pela confiança que ele tem.

Ai ele perde a eleição. Ai entra o Hildebrando. Com aquela proposta que eu to

te falando. Que era pra organizar o pessoal. Que era pra lutar. Que era pra

olhar a situação da comunidade. Junto com a igreja, Junto com o PT, junto

com todo o mundo. Hildebrando assume. Eu to nessa chapa. Era eu e Hilde

que era mais velho. O que acontece? Hilde quando Ele ganha. Depois de dois

meses ele chama todo mundo. O pessoal do governo chamou ele e falou pra

ele. ―olha. o negocio é o seguinte. - Isso ele não fala com a gente- ―ou você fica

coma gente ou não tem mais nada ai pra comunidade, você que escolhe‖. O

que ele escolhe? Ficar atrelado ao governo. Ao poder público. Toda aquela

promessa de luta cai por terra. Ai Hildebrando chama todo mundo e fala:― Não

quero mais vocês aqui‖. Ai fala: ―Não, mas eu quero você ainda como

secretária‖. Nossa eu fico em crise tremenda. Não me identifico nada. Tem

toda a confusão. Não identifico nada. Ai a gente senta, conversa. Ai fica o

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seguinte: ―Eu continuo lá. Fazendo o trabalho lá. Me fortalecendo lá. A gente

continua na organização. Pro próximo mandato eu tomar a associação‖. Então,

na verdade, essa ficou sendo minha função lá. Então, eu fico participando de

reunião. Ele boicota reunião. Todo aquele problema que a gente sabe. Boicota

pra eu não participar. Só que ai eu já tenho 19 anos. E a gente começa a lutar

. Fazer reunião. A dinâmica que tem como comissão, eu começo a organizar

um grupo enquanto comissão de moradores lá. Lá dentro da associação

mesmo. Mas o Hilde continua sendo presidente muito atrelado com o governo.

Depois que surge a UNAS. Essa comissão de moradores que vai fundar a

UNAS. Essa associação que a gente tem a associação sociedade amigos que

ai depois no outro mandato eu fui disputei eu ganhei. Do Hildebrando. E Ai a

gente teve o João. Lá sempre foi disputado era com arma. A gente tinha que

sair de lá escoltado cada vez que tinha eleição. Era... Escoltado. A gente ia

pra lá e era arma. Se bobiasse dava tiro. Pra quem ganhasse era um horror,

né? Ai no outro mandato eu ganhei do Hildebrando. Mas, porque de novo eu

ganhei do Hildebrando? O João era muito forte lá. Ai não abriu pra área inteira,

lógico, o Hilde não queria. Na verdade, eu avalio que o Hilde cansou. Ele

percebeu que a opção que ele fez foi a pior. Porque na verdade o governo

usou ele também. Não teve melhoramento. Tava do mesmo jeito a

comunidade. Tava com os mesmo problemas maiores. Problema de esgoto. E

ai é como se fosse assim. Tinha toda uma promessa. ―Eu fico com o governo

que vão me dar um apoio‖ e não deram apoio pra ele. As pessoas que falaram

que deram apoio não dia não deram apoio pra ele. Ele ficou mais sozinho

ainda. Porque ele além de ficar sem o governo, porque o governo sabe como é

que é, o governo fica no período da eleição depois da eleição, depois (bata

uma mão na outra num gesto de correria) pica a mula e... To indo embora, né?

Você fica. Ele fica com os problema da comunidade. Problema não eram

pouco porque se você brigasse com seu vizinho quem ia resolver era o

presidente da associação. Tudo. Era de tudo. Não tinha muita noção. Então, as

pessoas tinham noção que você tava lá era pra resolver os problemas deles.

Então não tinha essa conscientização. Você imagina, numa área que as

pessoas achava que tinham que resolver problemas deles. A gente começou

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com assistente social tando lá organizando. Então, tinha muito essa cultura. O

Hilde não agüentou e não tinha mais como voltar, né? E ai... Eu falo que ele

deu mole. O primeiro mandato que eu ganhei lá da associação ele deu mole

senão eu não ganhava. Deu mole no sentido que ele falou o João Prefeito não

vai entrar. João Prefeito não entrou pra concorrer. Se ele entrasse eu ia perder

pra ele. Tinha certeza que eu perdia pra ele. Porque, imagina o João... Eu era

uma menina. Assim que eles tratava. ―Mas essa menina vai ter condição de

tocar a presidência dessa associação‖? Era assim. Uma mulher. Você imagina.

Mulher e menina. Era menina que eu era. Desse tamanho, né? E com 18 anos,

tinha cara de treze, 12.

Então, na verdade, a gente ia lá pra comer o lanche. Era muito isso

nesse período e brincar. Era isso que a gente ia fazer lá. Eu nunca me

identifiquei muito com a igreja evangélica. Eu me identificava, por exemplo,

aquele centro espírita eu me identificava por que a gente ia lá... Tinha a ver o

que ia. Lá não tinha. Porque a igreja evangélica tempo todo... Tinha poucas

igrejas. Tanto é que elas viam de fora pra pegar o pessoal de dentro. Não tinha

dentro da comunidade. Não, Isso, nesse período, nos anos 80 não, né? Isso

nos anos 80 não era elas tirava de fora. Então a igreja evangélica eu sempre

via ela aparte da luta. Por exemplo, quem virava crente, não sei o quê, já não

queria saber dos vizinho, já não queria nem saber de ir pra reunião. Então,

pra mim, eu tinha um preconceito, tenho ainda um pouco, preconceito muito

grande, contra os evangélicos. Por quê? Eu sempre acreditei que a gente tem

que discutir tudo coletivamente. Não digo coisa pessoal, mas o que é de

comum a todos. Os evangélicos eram o contrário. Eu tinha problema deles ir

pra reuniões. Porque eu queria todo mundo nas reuniões. Os evangélicos não

iam. Não iam. Eu nunca me identifiquei muito, O que eu lembro é que eles

falavam que você tava fazendo era bagunça, baderna, era muito nesse sentido.

Porque nesse período tava saído da ditadura. Eu lembro que, por exemplo, na

época do colegial eu tinha uma professora bem de esquerda. Eu ia no pessoal

da convergência socialista. Convergência socialista, por exemplo, pra gente

entrar lá. Tinha um código. Eu participei dessas reunião ai. A gente ia no

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Parque Dom Pedro dava um código.Quer dizer, eu fico imaginando, né?

Hoje em dia os jovens não têm idéia disso. Você tem idéia disso. Eu sei que

você é de luta. Mas, a gente tinha que ir lá no Parque Dom Pedro e dar um

código. Pra gente entrar. Senão você não entrava. Porque se você deixasse

aberto vinha lá a policia sumia com as pessoas. Então, assim, as pessoas não

gostava muito desse juntar gente, de falar que o governo não tava fazendo as

coisas certo. Se unir, de reivindicar. As pessoas achava que não era direito.

Então não tinha direito. To falando. Meu pai falava... O orgulho dele é falar:

―Eu não sou invasor‖, né? Por quê? Porque a mentalidade das pessoas era

muito do que elas não tinham direito nenhum. Que elas tinham que ter dinheiro

pra comprar que não trabalhava por isso que elas não tinham o dinheiro. Eu

achava tudo isso o contrário. E a igreja evangélica... Eu sempre achei... Eles

pregava tudo isso. Então, eles não ia pra reunião porque era uma bagunça

que a gente ia fazer. Ia sair confusão. Se eu to te falando. As eleições lá da

sede que tinha o pessoal ia armado. Se bobiasse saia pau mesmo. Era briga

que tinha que sair. Se você não ficasse em cima. Eu lembro que a gente

chamava uma pessoa de fora pra cuidar do pleito. Se fosse alguém lá dentro o

negocio ficava feio, né? Esse clima...

Meus pais? Nossa!Mas eles brigavam tanto. Eles brigava tanto comigo.

Mas brigava tanto comigo. Tanto! Tanto! Brigava demais comigo por isso.

Demais, demais, demais. Mas isso entrava por aqui e sai... Eu não ligava. Era

uma coisa que não me incomodava. Eu nem conseguia levar meus irmão pro

movimento. Eles falava: ―E isso é besteira. Ah! Isso não vai dar certo. Isso não

sei o quê‖. Né? Eu acreditava muito nas coisas. Falava: ―Não. Isso tem que dar

certo. Eu tenho que ir atrás. Eu enxergava só aquilo desse jeito, né? Acho que

a luta me ajudou nessa parte. Então, a igreja evangélica eu acho que eles não

acreditavam nisso. Eles não acreditavam que as coisa tinham que mudar. Eles

acreditavam que o mundo. Eles tinham que lutar por um mundo que não era

esse. Esse era uma grande divergência. Eu achava legal porque eu me

identificava com a igreja católica. Eu tenho que transformar esse mundo. Eles

achavam que não. O mundo é o outro depois que eu morrer. Eu achava:

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_Não... Tem que melhorar esse mundo_ . Acho que essa coisa que me

movimentava muito. Eu tinha que fazer alguma coisa agora. Pra aqui. Agora.

Não é só pra mim,é pra todas as pessoas né? Então, era como falar de uma

ilusão. A gente já tava coordenando um mutirão. Eu tinha 22 anos. A gente

começou a fazer uma reunião. Comecei fazer uma reunião. Acreditando que ia

sair um mutirão numas áreas que eram campo. Pra você ter uma idéia. Como

é...Como é as coisa. Isso tudo junto com a igreja, PT , tudo junto. Então , eu

acreditava nisso. Agente acreditava. E começava fazer reunião uma vez por

semana com 200 família. Pra sair o mutirão. Pra lutar pra sair o mutirão. E

eram um campo. Imagina tudo isso vazio. Flamengo, Portuguesa. Olha a

doidera,né? E ai a gente ia pra prefeitura. - Não . Nós queremos que seja

mutirão nesse local- . Imagina cê fazer as pessoas acreditar nisso. E toda a

semana. Se a pessoa faltasse três vezes por semana era uma falta. No fundo

às vezes eu também ficava com medo. Mas acho que eu tinha uma fé muito

grande e acreditasse,. ―Não. A força das pessoas faz com que acontece. E ai a

gente conseguiu, depois em 87. Dois anos de reunião. Toda terça-feira a gente

fazia reunião. Conseguir ter um pessoal pra isso. E fomos construir a nossa

casa em mutirão. Assim que eu tenho a minha casa. Você vê. Eu já tinha 25

anos. Essas coisas pra mim é muito simbólico. Essa questão... Esse sonho.

Essa importância do sonhar... De acreditar. Eu acho que a gente pára a partir

do momento que você não mais acreditar mais nessa mudança. E ai pra mim o

outro choque da sociedade. Ai eu fico imaginando os jovens que tinha esse

sonho. A gente queria melhorar o mundo. Tava saindo de uma ditadura, né?

Você queria falar; Você queria se organizar. Você queria contestar... Falar que

―Não isso não tá certo‖. E os jovens de hoje, o que eles têm para lutar, né?

Acho que isso é outra coisa que a sociedade vem matando. Que são os ídolos.

Nós somos de uma geração que era dos hippie, que era do John Lennon. De

pessoas que falava desse sonho, né? Dessa pessoa melhor. Desse indivíduo

melhor, né? E hoje nossos jovens o que a gente trás pra eles, né? Eu me

culpo bastante pela sociedade porque eu fico imaginando. O que trás hoje.

Trás pra eles que o importante é eles ter um tênis. Eles ter a roupa de marca.

Mas, não é importante a escola. O estudo não é importante. Não é importante

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eles lutar por uma sociedade mais justa porque parece que não tem

mais onde eles voltar, né? E ai também tem a questão da droga. Que acho que

outra coisa que acaba com a nossa classe. Classe pobre. Acho que é outra

coisa que vem pra nos destruir, né? Acho que é outra coisa que vem nos

destruir. Essa indústria de massa. Massa no sentido de conscientizar só pro ter

e não pro ser, né?

Na nossa luta uma coisa que eu acho que atrapalhou bastante essa

coisa de visão da gente. Você imagina um local. A gente tinha as assembléia.

Mas, por exemplo, a gente tinha uma preocupação muito grande que era a

questão da moradia. Então, tudo passava pela moradia. Se a gente naquele

período tivesse a consciência que não. Hoje Heliópolis seria um local que teria

mais áreas de lazer, mas áreas esportivas. Porque o que movimentava a gente

era a casa. A gente foi entender esse conceito que completa a casa nos anos

90 que a gente foi entender. Nos anos 90 quase pra 2000. A gente passa os

anos todos de 80 ate 90 até metade de 90 que a gente vai entender. Às vezes.

Eu fico pensando. Eu tenho uma pessoa que eu acho que ele não deve dormi,

né? Por que a gente tinha esse sonho de querer transformar, mas a gente não

tinha o conhecimento. A gente tinha essa vontade grande. A gente teve uma

pessoa que é esse mentor. José Mentor, que é um pilantrão, né? Na verdade

ele era um estudante na época de direito O que a gente criticava nos políticos.

A gente pensou que Ele tinha ao contrário. Acho que ele tinha isso, né? De

cooptar, de não autonomia. Quer dizer, tudo que a gente pregava ele tinha o

contrário e ele tava junto com a gente mentindo, né? . Então eu fico pensando,

por exemplo, essa ignorância que eu tinha ele não tinha. Se ele quisesse

mesmo o bem das pessoas. Se ele quisesse melhorar o local. Ele teria feito a

formação com a gente. Ele teria ajudado a gente a ter a visão mais aberta das

coisas, né?

Porque, ele na verdade coopta as pessoas depois. O primeiro racha que

a gente tem no movimento. A gente funda a UNAS em 87. A gente funda todo

mundo unificado. O primeiro racha que a gente tem é por conta do Mentor. Isso

em 2001/2002. Porque a gente já começa a perceber quem é essa pessoa. Só

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vai perceber ai. Nesse tempo. Ai ele já ter sido vereador, já ter sido candidato a

deputado ai a gente vai perceber que ele não é essa pessoa.

A igreja Também se afasta, né? Ai a gente tem que andar com a nossa

próprias pernas. Porque a igreja começa a ter toda uma crítica. O pessoal que

é mais revolucionário. Cai... Os bispos... Arcebispos, né? Na verdade já não

são mais eles que tão na direção. Então assim, a gente perde a questão da fé.

É como se fosse perder a fé. Porque a gente tinha toda a caminhada, os canto

com a com a igreja. Essa questão simbólica. Ai a gente tem que tá se

organizando sozinho agora Porque a igreja começa a perder a identidade dela.

Se mistura muito. Tem a critica: Ah! Tá cuidando só ... E ai as igrejas

evangélica tão crescendo. Ai dá um nome porque tão crescendo porque a

igreja católica não trabalha mais a fé fica só com a critica, né.

E Teve naquele período. Acho que o Miguel fica com esse medo e ai o

Miguel opta, por exemplo, é um momento que tem uma eleição na UNAS.

Miguel já tá a três mandato. O Miguel já não mais representa esse jeito de se

organizar as pessoas, os projetos. A gente sai do governo da Erundina que eu

acho que foi um governo importantíssimo nessa questão da educação. A

criação do mova, Paulo Freire. Acho que foram muito importante para as

comunidades. Acho que se a gente lembrar e Luiza Erundina era de

comunidade, né? É uma pessoa muito importante na prefeitura ela quebra

muito paradigma. Ela... Eu... Tenho... Eu acho que foi a melhor prefeita até hoje

foi a Heloísa Erundina. Por que ela teve muita coragem de inovar. Teve

coragem de fazer muito projeto com a comunidade. Ela faz isso vem

empoderar as comunidades. O empoderamento nas questões dos projeto, de

fazer convenio. Fazer entidade, né? E ai dá um outro patamar pras entidades.

Que a igreja também não dava isso. Porque a igreja por mais que ela tava lá,

os seminaristas tavam lá, a igreja é fechada. Uma cúpula fechada. Por

exemplo, a discussão de verba não se tem lá. Você vê que acontece um

projeto, mas você não sabe de onde vê. Quem é o financiador, né? Isso não

empodera a comunidade. Isso não empodera as pessoas, né? Tá certo que

nós estamos falando... Isso era 92, 93. Isso prá nós foi muito importante. Os

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primeiros convênios que nós fizemos. 89, 90. Foi com o MOVA. Começou com

o MOVA. O mutirão que nós fizemos. O URBANACOM que era um mutirão só

que era de rede e esgoto. Foi quando nós conseguimos pavimentar 80% da

comunidade. Tudo em mutirão, mas vindo verba publica. E a gente começar a

perceber que a casa não e só mais casa, entende? Fica mais palpável isso. A

gente começa a ver uma outra coisa. Uma outra coisa que eu lembro, por

exemplo, os primeiros projeto que a gente foi atrás. Acho que isso foi uma

coisa que a gente foi adquirir depois. A questão também da educação também

nos prejudicou. Os primeiros projetos que nós pegamo era no sentido de que...

―A gente precisa desses projetos porque esses projetos é que vai liberar as

pessoas pra lutar pra beneficio da comunidade‖. Então, pra nós o trabalho em

si era mais uma missão. E sempre funcionou nesse sentido que o que você tá

fazendo era uma missão. Ele não é um trabalho, né? Esse trabalho é muito

importante porque ele ajuda as pessoas. Que ele transforma o local, né? Será

que foi da igreja que veio alguma coisa nesse sentido? Eu fico ainda em dúvida

de aonde veio. Eu lembro que a primeira coisa que a gente quis depois que a

gente foi fazer o nosso planejamento estratégico. Que isso foi, acho que em 92.

Que ai a gente foi fazer o primeiro planejamento estratégico, né? E ai eu

lembro que o que mais a gente debateu foi a questão da nossa missão.

Porque na verdade foi o Mercadante que propiciou uma pessoa poder fazer

esse planejamento com a gente. E era o Henrique hoje ele não tá mais vivo.

Foi o Henrique que fez o nosso primeiro planejamento. E a gente pensou a

UNAS pra daqui a Dez anos. Ai a gente já tinha perdido o Miguel. Já tinha claro

quem era o Mentor. Nós temos outro jeito diferente de trabalhar. A gente foi

perceber depois. Que a gente teve uma reunião. Uma eleição na UNAS que foi

o seguinte. A gente queria o quê? O Miguel já ficou três mandato e a gente

queria que fosse outra pessoa. A gente queria o João. Todo mundo queria o

João. Ai vai todo mundo pro gabinete. O João era do gabinete e o Miguel.

Nesse período eu também era do gabinete. O Mentor era vereador e a gente

era do gabinete dele. Eu me lembro que o Mentor queria que passasse por lá o

Jornal que a gente soltasse. Ele queria que decidisse lá qual o panfleto que ia.

E ai a gente já tinha um maior problema por causa disso por que a gente não

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aceitava passar o jornal pelo gabinete. Não aceitava sentar lá pra discutir

alguma coisa. A gente não aceitava isso. Então, a gente já tinha problema com

Mentor com isso e ai nessa eleição o Mentor fingindo que queria os dois lados

disse: ―Não tem que unificar... A gente faz assim o João fica como presidente.

E Miguel como presidente administrativo. Não era o contrario. O Miguel com

presidente e o João como presidente administrativo. Querendo conciliar, né? Ai

nós voltamos ―que negócio é isso como pode ter dois presidente. Presidente é

presidente. Presidente é um só como tem esse negócio de dois presidentes.

Não existe isso‖ . Ai eu sei que ai a gente falou. ― a gente não aceita. A gente

quer... É o João que é o nosso presidente, né? Fica a mesma coisa porque que

diferença faz? Qual a diferença nós somos do mesmo grupo a gente é tudo

igual não tem diferença, né? Sabia que tinha diferença, mas não tem diferença.

Eu sei que ai. O Miguel falou. Ai o Mentor falou. Não conseguiu. A gente falou

que não. ―Vamo pra eleição‖. E ai nós abrimo essa eleição. Miguel e João. O

Miguel era muito mais conhecido na comunidade. O Miguel é uma figura...

Imagina. Com um crucifixo deste tamanho. Quer dizer... Carismático. Tudo que

a gente ia falar era o Miguel na frente. Era assim que a gente funcionava. Quer

dizer a gente já tinha criado o Miguel pra ter esse lugar. Miguel era especial.

Miguel era aquele tipo de pessoa que passava na sua casa a meia noite pra

dizer tudo o que aconteceu, tudo o que tinha. Tudo que a gente tinha que fazer.

Não dormia. Sabe aquela pessoa que não tem família? Tudo. Que nem ele

falava. Minha família é o povo. O Miguel era assim. Então a gente tinha

preparado esse tempo todo. Quando tinha uma assembléia quem falava? O

Miguel. O João era aquele que... ‖João você tem que cuidar da segurança‖.

―João você...‖ Entende? Era o suporte. O suporte. Então, acho que todo mundo

tinha certeza que quem ia ganhar era o Miguel. Que a gente fez? A gente tinha

aquela estrutura de liderança local. A gente montou a estratégia. A gente

ganhou a eleição por causa da estratégia. ―A gente faz o quê? Lá no núcleo

Heliópolis é a Cleide que é candidata. Nós não vamo falar do João. Porque lá

ninguém conhece o João. Lá no Pan é o Geraldo então os candidatos a gente

tem quatro candidato. Só que a nossa chapa é a chapa dois. Miguel era chapa

um. Nossa chapa é a chapa dois. Vamo lá. Lá quem é a candidata sou eu. Eu

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que era a Cleide . Eu que era a candidata. A chapa dois. Mas, o Miguel. O

Miguel tinha...O Miguel, Miguel. O Miguel candidato. Ele não tinha mais

ninguém. E nós tinha eu, o João aqui. Tinha eu lá no Heliópolis. Tinha o

Geraldo lá no Pan, né? Eram três. Mais o João Prefeito. Nós tinha quatro. A

gente tinha quatro. Então a gente tinha quatro contra um. Era isso que era a

nossa estratégia. O que aconteceu? Vamo pra urna. Vota todo mundo. Todo

mundo vota;. Chegou uma conta de luz , de água provando o endereço aqui de

dentro. Mas, só quem mora aqui dentro. A gente abriu cinco ponto de eleição.

Eu sei que ai houve a primeira eleição. Acho que foi 3 mil e poucos votos, né?

E ai a gente ganhou com uma diferença de 150 voto. Mas ganhamo. Imagina a

vitória!E era proporcional que ganhava levava parte. Era duas chapas, né? Que

teve. Ai a gente viu o Mentor. Porque o Mentor, lógico, tomou posição, né?

Apoiou tudo o Miguel. Mesmo nós no gabinete. Carregou o Miguel deu

estrutura pro Miguel. Não sei o quê. Mostrou o lado. Nós ficamo todo mundo

tiririca. Mas ganhamo a eleição a diferença de um. Eles tinham... Era 15. Eles

tinham oito a gente tinha sete. Ai dois anos de pau. Imagina. Não saiu nada. O

grupo dele não assumiu nada. Não conseguiu assumir nada. Nós ficamo com a

presidência eu fiquei como tesoureira da UNAS nesse período, né? Geraldo

ficou como secretário. Os outros cargos eles nem vinham na reunião. E ai a

gente tocou o trabalho. Dois anos pra lá. Fomo atrás de projeto e tal. João

presidente tocou. Fizemos mais uma eleição dessa forma. Na outra eleição de

novo Miguel e de novo a gente com quatro presidente. Ai o João tava mais

conhecido porque ai, né? Já tinha passado esse tempo e nós trabalhou pro

João ser presidente, né? Era proporcional ainda a eleição, né? E ai nessa daí a

gente ganhou com... 80... 90%. Eles tiveram dois membros. Ai na terceira a

gente já discutiu. Era um desgaste muito grande. Ele vinha com muito dinheiro.

A gente já não tinha... Por exemplo, a gente fez uma avaliação que na ultima

eleição a gente ia precisar gastar 60 mil reais. Nós falamo. ―olha 60 mil reais é

um dinheiro que a gente não tem. Compensa a gente fazer as eleições desse

jeito?‖ Não compensa a gente tocar as eleições desse jeito. Foi ai que a gente

decidiu... Hoje a gente faz a eleição da UNAS... Não faz mais aberto, faz com

congresso. Mas por conta dessas experiências que a gente teve. Como a

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UNAS foi ficando grande... Grande à nível de projeto não a nível de dinheiro

mas a nível de projeto. De tamanho de projeto. Então acabou tendo muita

gente falando assim: ―A UNAS tem muito dinheiro‖. Virou uma ilusão. Você olha

e fala assim: ―Puxa! É uma puta estrutura‖. Mas quem trabalha com o poder

publico sabe como é ter dinheiro pra tocar. Que não tem dinheiro pra nada. Só

que na verdade quem tá pensando só em fazer malandragem, poder . Porque

não é poder da organização, da pessoa, de dar possibilidade das pessoas ter

espaço. A garantia de direito. Quem não pensa assim. Acha que isso aqui dá

um grande poder, um grande status, né? E ai a gente conversando segurou a

bronca mudou o estatuto e fez a eleição pelo congresso. Mas toda a estrutura

da UNAS é dessa forma que a gente criou enquanto comissão. Na verdade, eu

vejo que a gente fez todos os passos que tinha pra fazer na criação da UNAS.

Hoje a diretoria não é mais de 15. Hoje nós somos uma diretoria de 21. Tem 21

membros hoje a diretoria. Então tem a diretoria mesmo. A estrutura que é

presidente, vice... Aquela estrutura mesmo que tem que ser legal. E a gente

tem o que a gente chama... A diretoria ampliada que se reúne uma vez por mês

e que procura sempre esses projetos que eram comissão de moradores hoje

nós temos eles como centro de liderança. No sentido de organização. Por

exemplo, a gente fez um projeto perto da Col. Silva Castro que atende com

criança. Lá é um local onde as famílias vão... Toma informação. Lá tem reunião

da moradia. Lá continua o corpo de organização popular. Aquele diretor que

acompanha lá ele vem pra reunião da diretoria. No final do ano a gente junta

todas essas pessoas pra poder discutir o que a gente vai fazer no próximo ano,

né? É um pouco essa estrutura que a gente construiu. E acho que uma coisa

boa que eu sinto é que um tempo a gente teve muito centrado aqui dentro.

Bom. As experiências que a gente tem a gente tem que pôr em pratica.

Não adianta eu falar... Falar... Falar... E não fazer nada. Isso acho que foi uma

coisa que a gente entrou muito em choque a gente viu muitas pessoas, por

exemplo, que falam um discurso muito legal mas que não tem nada na pratica.

Eu não acredito que transformar alguma coisa sem transformar as pessoas.

Porque a gente viu que quando chega ou o comunismo ou o socialismo no

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local e que ele não tiver incluído as pessoas. Sempre vai ter aqueles

iluminados que querem dominar os outros. É essa estrutura que eu acho que tá

errado não é o que tá certo é o capitalismo, é o socialismo. Sendo que eu sou

socialista. Acredito no socialismo ainda que é o que mais se adéqua do que eu

luto. Minha organização. Mas eu acho que pra isso a gente tem que mudar as

pessoas. Porque senão eu vou ter aquele cargo de chefe e eu vou oprimir você

eu vou oprimir o outro. E não é essa relação. Na verdade, na sociedade [...]

Como se faz isso? É o grande desafio, né?

Hoje nós tamo com 380 pessoas trabalhando com a gente diretamente.

Nessa área de 1 milhão de metros quadrado.

Eu sou de uma época do movimento que a gente deixava a vida da

gente. Largava a vida, né? Por exemplo, eu tenho uma filha de 17 anos até

hoje ela fala pra mim. Ainda fala chorando: ―Mãe aquela festa que eu tava...

Que eu fui lá... Festa junina‖. Imagina ela tava com oito anos. Dia tal... – ―Eu

tava dançando esperando você chegar e você não chegava. Você não

conseguia chegar‖. Então eu falei: ―Mas, eu cheguei depois‖. Ela falou:

―Chegou depois. Depois de duas horas já tinha ido embora todo mundo, né? Já

tinha acabado a festa. Mas eu tava dançando olhando pra ver se você tava lá‖.

Eu sou de um período que a gente deixava tudo e tudo era aquela luta. Eu

pensava assim: ―Eu sou iluminada e eu tenho que fazer tudo pelas outras

pessoas. Eu tenho que fazer tudo pelos outros‖. Não muda nada isso. Então,

naquele período o mais importante não era a minha filha. Eu achava normal ela

ir lá dançar. Alguém levou lá pra dançar e eu não posso ir... Se eu tenho isso

aqui uma reunião x e ela lá... A reunião x era mais importante. Sinceramente,

era isso que acontecia naquele momento. É claro que eu tenho que trabalhar

pensando numa melhora, no desenvolvimento, no meu crescimento. Mas eu

tenho que fazer isso com as pessoas. Por exemplo, eu não ir. Também é

importante aquela festa. Eu tenho que ir. Hoje eu tenho que conciliar pra ir.

Até mesmo pro meu filho entender que o que eu faço é tão importante. Talvez,

por isso que a minha família naquele período... Ela não ia.

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Todo mundo falava: ―Ela é louca. Como ela vai acreditar que um campo

de futebol que joga todo mundo vai virar um lugar de casa‖? Não vai dar certo,

isso. Tanto é que no dia em que nós fomos pra lá. Que a gente foi pra

construir as casa. A gente teve que enfrentar primeiro os jogadores. A gente

conseguiu que o prefeito Janio Quadros desse a área. Tudo bem deu a área

nós vamo pra lá. Nós vamo pro primeiro dia pra fazer... Vem o pessoal que usa

o campo. Vem pra cima da gente com um trator. Ah! Meu filho, nós pegamo um

pau... Ou era isso ou nada. Eu tava coordenando o mutirão. Eu falei: ―Oh!

Gente! O negócio é o seguinte. A nossa terra é essa daqui. Se a gente deixar

esse moço que tá ai no trator pegar... Vamo pegar um pau - Cada um pegou

um pau - Vamo pôr esses caras pra correr‖. É foi desse jeito... Que nós

conseguimo. Era desse jeito. Era na conversa... A gente sempre brincava

assim... É na conversa, na organização. E quando não dava certo... Vamo

radicalizar, vamo pro pau. Sempre foi assim. Vamo conversar... Vamo

conversar... Vamo conversar. Ah! Não deu não? Então tá bom, nós vamo

ocupar. Ah! Nós vamo pra mobilização. Parece que era mais fácil, né? Hoje

não... Hoje tem o fórum. Isso é bom. Foi coisa boa. É bom. Estrutura

democrática é boa. Só que ela também amarra muito as pessoas. Porque pra

você ir naquele fórum você tem que saber do que tão falando. Porque quem vai

tá La é técnico. Se você não sabe do que tão falando você vai falar uma coisa

que não tem nada a ver, né? Então isso também inibe as pessoas. Você

entende que de novo inibe a organização das pessoas? De novo inibe os

pobre, né? Porque agora a gente tá numa época que quem tem que falar pela

gente são os técnico, né? E isso não tá certo. Porque você sabe que os

técnico, é lógico eles têm.... Mas que pode falar é quem tá no local. Quem tá

sentindo lá na pele. Porque senão você vem de novo e faz pela pessoa.

Ninguém dá valor. Hoje em dia eu acho que hoje dia eu vejo uma coisa boa.

Ninguém quer saber de ninguém fazendo a coisa por ele. Ele quer fazer. Ele

quer experimentar, né? Isso eu acho que é uma coisa boa que tem... Que tá

acontecendo, né?

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Eu venho de um período, por exemplo, eu dei o nome era Genésia, o

João... Acho que uma coisa da mulher é que a gente faz o dia-a–dia. Acho que

isso é da sociedade. Tem um preconceito muito grande com a mulher. Se eu to

te falando que eu assumi aquela associação, nova, menina. Eu sempre senti

muito preconceito. Faziam com que... Que era pra ter muito preconceito. Aqui a

nossa organização toda foram as mulheres que tocaram. As mulheres sempre

tiveram na luta, as mulheres sempre organizaram. Mas eu acho que quando

tem que falar a gente acaba falando: ―Fala você‖. ―Oh! Miguel que vai falar‖.

―Não. Não é mais o Miguel, é o João que vai falar‖. Entende. A gente que já

construiu isso. Se a gente for olhar na escola hoje quem mais fala são os

homens. Acho que a mulher tem esse papel mais de arrumar às vezes na casa.

Mais dessa de enxergar, por exemplo, aqui de conversar. No movimento a

gente tinha muitas mulheres. Mas é assim, o que aconteceu? No período que

eu tava chegando não tinha jovens quase. Era muito adultos. Que nem, hoje é

difícil trazer os jovens pras reuniões. Naquele período também era. Então,

quando eu chego, depois veio também o Geraldo também jovem, nesse

período, né? Quando eu chego. Mulher o quê? Então, eu tinha um problema de

ciúmes. Tinha que andar com o João, com o Miguel, tinha que andar com o

Geraldo. Então, tinha problema de ciúmes. Ai num período vieram bastante

mulheres junto comigo. Porque da associação como eu falava que fazia

reunião lá. Quem normalmente assumia junto com a gente era as mulheres.

Onde os homens lideravam eram os homens. Lá no Heliópolis era lotado de

mulheres e tudo mulher bonita. Então era um problema quando a gente

chegava. Era Paula, era a Cleuza, a Edna. Então tinha um puta ciúmes nas

mulheres. As mulheres tinham ciúmes das meninas. Era como se fosse assim,

tá chegando as mocinhas novas, bonita, né? Na questão de organização, de

ter espaço não o espaço não era dado. Era brigado, era conquistado os

espaços, né? Essa estrutura de núcleo era muito disputada. Tanto é que, por

exemplo, onde é que mais garantia a gente nas eleição era aqui e no

Heliópolis. Eram os dois locais que a gente ganhava sempre. Que a gente

conseguia. Aqui, estourava e lá no Heliópolis. Eram os dois locais mais de

organização, né? Mas na questão das mulheres acho que a gente deixou, né?

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Agente deixou... A gente até teve um grupo de mulheres aqui. A gente

começou a discutir a situação das mulheres. Porque muitas das mulheres que

era da comissão apanhavam dos maridos. O marido não deixava vim na

reunião. Que era outro problema que a gente tinha naquele período. O marido

não deixava. ―Ah! vai pra lá arrumar homem‖. Era assim que falava. ―vai pra

essas reunião‖. Por exemplo, essas reuniões que eu to falando que a gente

fazia do mutirão que era toda a semana. A maioria eram mulheres que

participava. Eram poucos os homens. A gente foi conseguir trazer os homens

já quase começando. Trás. A gente precisa de um número de mulheres trás,

mas a gente vai construir a casa a gente precisa dos homens. Foi assim que os

homens vêm, foi assim que a gente conseguiu trazer os homens, mas começou

com as mulheres acreditando nisso. As primeiras a acreditar era as mulheres.

Então, sempre foi muito assim as mulheres tocaram muito a luta. Eu acho que

tinha muito isso. A gente não sentia que era imposto. Não era uma coisa

imposta. Era uma coisa que a gente achava bom... Era muito sentido desse

jeito. A gente não tinha nenhum problema se a gente tava sendo oprimido. O

que mais lembro que tocava a gente era se as pessoas tinham ciúmes, era

isso. Tinha muita preocupação com quem era casado e não ficar com o marido

dos outros. A gente tinha esse medo. Era mais isso que eu lembro que pairava.

Mas não tinha esse negócio que a gente se sentia... Eu nunca senti que eu não

tive voz, né? E passaram por cima.

Eu tive que dá uma de doido. Tive de ser uma outra pessoa na verdade.

Não tinha nada de doce. Não podia ser doce. Como eu to te falando o pessoal

te chamava pra resolver briga de marido e mulher. E cê tinha que ir. Não é que

cê não tinha que ir. Cê tava naquela função, você imagina, você tinha que ir. E

chegar lá ele queria que você chegasse a uma solução. Você imagina... Você

imagina a crise... Como você vai tomar posição de um e de outro? Como você

vai entrar num negócio desse? Então, na verdade, a gente precisava ou ter

marido, ou ser casada ou ter um namorado fixo, pro pessoal saber que você

não queria namorar com ninguém. Eu namorei com uma pessoa oito anos.

Esse período todo eu namorei com a mesma pessoa. Ele entendia o que eu

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fazia. Podia ir pra todo o lugar, não tinha problema nenhum. Ele sempre

trabalhou em indústria. Então ele trabalhava a noite. Ou trabalhava de sábado

e domingo à noite. Não tinha muito tempo. E eu fazia as minhas caminhada e

não tinha problema nenhum. E o pessoal não tinha medo porque era que sabia

que eu namorava a muito tempo. Que era com Jesus. E Ainda Jesus. Mas, por

exemplo, quando tinha os encontros ele vinha junto. Nessas campanha,

nessas eleições ele tava junto. Então tinha como uma pessoa. Ele também era

membro da associação. Ele não participava ativamente. Mas ele tava num

momento de decidi. Nesse momento todo ele compreendia isso. Ele entendia.

Eu nunca tive problema em casa não. Nunca tive com isso ai. Era uma coisa

que eu chegava... Saia de manhã e chegava e tirava direto sábado e domingo,

mas não tinha nenhum problema com ele não.

Eles tiveram com a gente de 80... 87,88. 90 se afastam bastante das

comunidades. Eu acho que o que eles trouxeram foi essa consciência. Que tem

pobre e que tem rico. E que a luta é que modifica. Eu acho que é isso que a

igreja contribui com a gente. E que a organização das pessoas... Que você

consegue as coisas quando você se junta. Acho que é isso que a igreja deixou

para gente. Você juntando, você fazendo caminhada... Você cantando

pacificamente acho que tinha muito isso da igreja, né? Acho que isso a igreja

deixou pra gente. A igreja não incentivava. . Porque ai nesse período falava

isso ―a igreja tá incentivando.‖ Não. A igreja trabalhava, ela trazia... Por

exemplo, a gente tinha com o frei. Rui a formação política. E ai a gente tinha os

curso de formação política. Então, a gente entendia como tava estruturado o

estado. Quando surgiu o dinheiro. Ele capacitava a gente pra entender o que

tava acontecendo com a gente. Porque que a gente morava onde morava. E só

a gente podia mudar isso. Então isso que eu acho que a igreja fazia. Não

incentivava não. Não acho que de forma nenhuma que eles incentivava não,

mas eles conscientizavam. Tinha o frei Beto. Por exemplo, a gente ia na época

da fundação da central. Central de Movimento Popular. Nossa! Era uma lição

pra gente ouvir o frei Beto falar. A gente tava sempre tendo os encontro de

formação. E isso eu acho que é uma coisa que o PT perdeu. O PT formava

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quadros realmente de base. No sentido dessa formação de base. Hoje o PT

não é mais de quadro. Quando você vê uma liderança que você ainda nem viu,

né? Naquele período não. Eles saíram todos de comunidades. Zico era um

operário mesmo, né? Tem figuras no PT. O Mentor ele fez um trabalho aqui na

comunidade. Quer dizer ele mudou. Mas, ele iníciou o trabalho dele aqui dentro

do Heliópolis, né? Defendendo as pessoas que a prefeitura queria pôr pra fora.

Mas, já naquele tempo ele fazia vários acordo que a gente não percebia, né?

Acordos com a comunidade... Teve uma vez que esse local mesmo a quadra

A, a prefeitura lá. A prefeitura do Maluf queria fazer o Singapura lá e a gente

não queria o Singapura. ―Não. Nós não queremos que faça o Cingapura lá‖. E o

mentor foi lá e defendeu o Singapura. Contra tudo que a gente tava

defendendo. Se a gente não tivesse habilidade aquele dia era outro momento

que o movimento ia rachar. Os Tato também era do movimento popular. São

os grandes nomes hoje do PT. Os tato, né? Quer dizer, então, Hoje não. Hoje

não sai mais ninguém. Porque a estrutura que virou a política é como coisa que

só quem tem muito dinheiro. Ai o pessoal fica falando. Porque nós nunca

trabalhamo pra ter um candidato nosso aqui. Falavam pra gente assim na

formação política. ―Olha, vocês tão fazendo mais tem que ter um candidato

essa pessoa vai lá e ela vai mudar‖. E a gente sabe que não... Eu nunca

acreditei nisso. Eu falei: ―Não. Não vai mudar‖. Só que hoje a estrutura que tá

ai eleitoral quem ganha uma eleição é quem tem mais dinheiro. Não tá

estruturado pra quem faz um bom trabalho. Quem acredita numa luta por

direitos são poucos. São pouquíssimos. A maioria são de família que tem

muito dinheiro. Você tem muito dinheiro ou você tem muito dinheiro pra lavar...

Ou você tem muito dinheiro... Quer dizer, quem é prefeito de uma cidade como

São Paulo, de outra cidade nunca sair da política. Não é porque fez um bom

trabalho. Às vezes é porque tem muito dinheiro e juntou muito dinheiro pra

gastar na campanha. Essa estrutura eu acho que tá muito errada. Acho não.

Tenho sérias critica. Que esse é um dos problemas pro nosso Brasil. Isso ai é

corrupção. É muita corrupção. Depois não sabe porque que o cara tá cheio de

o dinheiro na cueca. Porque que a cueca tá cheio de dinheiro. Porque a

estrutura tá montada pra sair do jeito que sai de Brasília lá, né? Cheio do

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dinheiro enquanto o pessoal ganhado 510 reais por mês. Isso é no mínimo uma

coisa,né? Que não dá pra conceber. Não dá pra aceitar.

Tem umas irmãzinhas lá que vou lá do Regina Monte. Imaculada da

Conceição. Eles ainda têm essa linha que é defender a classe oprimida. Eles

ainda têm esse olhar. Por exemplo, eu congrego com essa igreja. A igreja em

si como tá colocada do padre Marcelo, não é essa a minha igreja. Essa não é

a minha igreja. Falar da religião católica. Se hoje eu sou católica. Eu... Não. É

isso que eu to te falando. Eu separo. Nessa igreja das irmãzinhas, por

exemplo, tem o padre Paulo da igreja Edvirge. Eu gosto de ir quando ele tá na

celebração. Procuro ir todo domingo na missa. Todo o domingo eu vou, né?

Mas nessa igreja que fala dessa linguagem que eu acredito. Hoje eu me

considero assim... Eu acredito muito. Eu acredito mais... Eu acredito muito em

Deus. Cada vez mais eu acredito mais em Deus. Acredito nessa força de

bondade, nessas coisas boas, na fé. Tenho muita fé. Nessa questão da

organização, nessa questão da luta. De você acreditar que é possível mudar as

coisas. Não se conformar com as coisas por mais que teja... ―Tá cômodo pra

mim, tá bom pra mim, to acordando das oito às cinco tá bom‖. Não eu não sou

a favor dessa rotina dessa forma de rotina, desse jeito. Não acredito em nada

bom. Não acredito nisso. Acho que tá bom ele pode melhorar. Não tem nada

bom. Não existe nada bom. Eu acho que a gente todo momento tem que tá se

cutucando pra essa visão. E da igreja. Acho que uma igreja em si e hoje. Eu

não tenho uma religião em si. Se você fala assim você é espírita? Não. Não

sou. É católica? Não sou, né? Mas eu sou com essas pessoas que tão muito

olhando pras injustiças. No Brasil, no país. Eu sou muito desse pessoal que tá

mais assim. Mas, afinidade ainda maior é com a igreja católica eu tenho que

pensar assim. Afinidade é com a igreja católica. Ainda é mais com a igreja

católica. Nessa linha. Nessa outra do padre Marcelo. Eu enumero o padre

Marcelo pra ir lá pra igreja e ficar lá cantando. Ficar feliz da vida. Ficar

cantando as musica que não tem nada a ver. A letra da musica fala uns

negócio que não tem nada a ver. Fala nada com nada, né? Essa não, não. Não

gosto não.

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Eu acho que eles tão com trabalho... Essa que eu tava te falando da

imaculada Conceição. E eles tão fazendo um papel na comunidade. Não de um

trabalho de conscientização. Eu acho que eles estão muito isolados vai... A

palavra que eu falo nesse sentido. Eu acho que eles se recolheram. Sinto um

pouco isso. Que eles se recolheram. Até outro dia a menina tava me falando da

igreja... Eu até me surpreendi. Porque vê eu não vejo nada disso. Da igreja

Santa Edvirge que eles estavam indo fazer... Não é retiro... Fazendo visita nas

casas das pessoas. Falando de Deus, falando da religião, lendo... Ai ela falou

que eles tavam fazendo isso. Achei até legal. Aquelas Maria. Não sei o quê de

Maria. Mas, eu não percebo muito isso não. Mas eu não vejo muito isso não.

Você não consegue ver mais trabalho a não ser... Tá dando uma cesta básica.

Não vejo uma coisa mais... Talvez eu não teja com atenção nisso. Não to

falando que não tá fazendo, né? Também não posso falar isso: ―Não tá

fazendo‖. Mas eu não vejo uma coisa mais organizada nesse sentido. Ou

talvez as estruturas hoje teja mais pra fazer essas coisas pulverizada. Não

enxergo isso. To achando que eles estão mais preocupados em salvar o

espírito. Mas na linha da evangélica. Frei Sergio ele já morreu já. Ele fazia

esse trabalho de conscientização. Organizava esses cursos. Ele teve muito

presente nas luta. Por exemplo, nesse dia das eleições ele tava junto. Era

mais aquela pessoa que a gente se sentia que não tava sozinho. Por exemplo,

teve um momento que os grileiro queria pegar o João. Pegar, mas pra matar

mesmo. Ficaram escondido ai. E o frei Sergio era uma pessoa que tava junto

com ele. A irmã helena. Tinha mulheres também freira. A irmã Iraildes. Irmãs

importantes que tiveram peso. Elas trabalhava mais com a juventude, com as

mulheres. Mas nessa linha de conscientização. Tiveram um trabalho muito

importante. Mais nessa parte mesmo de informação. Nunca essas pessoas que

eu to falando, tiveram um trabalho que não fizeram pela comunidade. Elas viam

e como se preparasse na gente, né? Isso eu acho uma coisa legal. Por

exemplo, meu sonho nunca foi sair daqui. Pra eu mudar. Não. Eu tenho que, ao

contrário, que mudar onde eu to. Não preciso sair pra mudar. Por exemplo,

tem pessoas que se formam se formam começam a ganhar melhor e o sonho é

sair daqui. Eu nunca tive esse sonho, o meu era o contrario. Eu ter a casa... É

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aqui. Eu quero construir minha família... É aqui. Eu quero melhor aqui. Eu vejo

que uma parte da comunidade por conta do barulho, por conta da situação de

stress, porque imagina, uma área de 1 milhão de metros quadrados, quem tem

no mínimo 125 mil pessoas, que é mais, o IBGE ta vindo agora, vai ter o senso

aqui. Com certeza vai ser mais de 125 mil. Sei lá 150 mil pessoas aqui dentro.

Numa área de stress, uma barulho, né? Pouco espaço pra tá, né? Então assim

têm outro movimento das pessoas, as pessoas querendo sair daqui. Pessoas

subalugando as casa. Uma casa pra dividir pra duas começa sob-alugar. Pra

poder fazer renda de aluguel. A gente pode pensar que é uma forma de gerar

renda, uma forma que a pessoa tem de sobrevivier. Mas, é uma forma de

explorar também, né? É uma forma de exploração. Eu vou explorando o outro,

né? Essa estrutura é muito complicada, né? E também essa questão do

barulho aqui dentro. As pessoas passam com o carro ou faz aquelas festa Funk

e vira a noite. Da pior qualidade. São música da pior qualidade e o pior barulho

que se tem, né? Isso eu acho que é um grande problema nosso. Eu não sei

como resolver isso a não ser por uma campanha de educação. Por exemplo,

outro dia na rádio o menino tava me falando a gente precisa ir atrás de um

vereador que a gente precisa criar leis pra poder penalizar essas pessoas que

fazem barulho. Eu falei: ―Não, nós precisamos, mas primeiro nós precisamos

fazer uma campanha de conscientização, né? Depois nós vamo atrás de lei.

Mas eu acho que o grande desafio pra nossa comunidade agora. É regularizar

no sentido de qualidade. De fazer melhor essa qualidade. Quando fala de

qualidade de vida que a gente tá falando de qualidade de... De tudo mesmo.

De espaço mesmo, né? Acho que a gente parte pra um outro patamar. Por

exemplo, do jeito como tá, a forma como tá estruturado as coisas ninguém vai

agüentar. Pensando em São Paulo dá uma chuva ninguém consegue andar,

né? Inunda tudo, né. Aqui essa questão tem que ser muito discutida. Por

exemplo, a questão do lixo. É um outro problema serio aqui que a gente tem

que começar fazer as discussões, né? Que toda a esquina tem lixo. Toda

esquina tem um mundarel de lixo. Essas coisas incomodam muito a gente. Por

exemplo, hoje a gente fala de um Heliópolis educador, de um bairro educador.

Pensando nesse sentido, essas mazelas que ás vezes o poder publico quando

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ele tá presente não tem tanto, né? Hoje, por exemplo, eu sinto necessidade

demais do poder publico nesse sentido. Para regulamentar ,essa questão, uma

hora nós vamos ter que regulamentar essa questão do tráfico aqui dentro.

Trafico no sentido de carro, né? Do carro ir, né? E voltar. Do

congestionamento que tem aqui, das ruas. A questão da regulamentação, por

exemplo, se tem dois pavimento não dá pra construir cinco pavimento. A

pessoa tá fazendo... Tá no quarto, quinto pavimento. Entende? Essas coisas

assim que, na verdade, hoje acho que a gente já não consegue... Tem coisa

que diz que é na conscientização, mas tem coisas que tem que vim a estrutura.

Essa garantia de direitos. Por isso que às vezes, a pessoa fala direitos e

deveres. Deveres acho que a gente tem bastante mais essa coisa de estrutura

do que é de uma cidade. Nós fazemo parte da cidade. É pra gente ter esse

entendimento também hoje que a gente necessita, por exemplo, os passos

que a gente tem que dar pensando na UNAS e na organização da população, é

nesse sentido. É da gente se incomodar com essas coisas. A gente volta de

novo a achar que porque você tem a sua arma, você pode, né? Desrespeitando

o outro, né? Eu acho que a gente tem trabalhar agora nessa... Cada momento

da comunidade e das pessoas é um momento. Acho que teve o momento que

a gente teve que discutir só habitação, teve o momento que a gente teve que ir

atrás dos projetos pra por aqui dentro. Hoje acho que é o momento que a gente

tem que olhar nossa comunidade. ―Olha, nós tamos aqui, nós não temos mais

pra onde crescer, nós vamos crescer o quê? Mas um pavimento, não dá pra

gente crescer dez pavimentos ,né? Não dá pra gente fazer uma casa que ela

não tem uma ventilação‖. Entende isso? O poder público é muito omisso nisso

todo o momento a gente teve aqui dentro, mas eles não se preocuparam com

isso. Aqui tem virando umas casas tá segurando uma a outra. É um monte de

caixinha que uma segura a outra, né? Esse mercado imobiliário ele tem que ser

redirecionado. E ainda tem outro problema, por exemplo, todo o comercio, o

setor, ele tá saturado. Ele não tem mais medo da comunidade de Heliópolis.

Essa comunidade aqui você pode andar aqui de cabo a rabo, né? Tem ainda

alguns bolsão que a gente ainda tem problema, 90% da comunidade você não

tem problema de entrar e sair, né? Tenho ainda em alguns locais aqui. E ai

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essa outra coisa tá trazendo as pessoas que querem ganhar dinheiro trazendo

o comércio pra aqui dentro. Eles não tão fazendo lá fora. Antes fazia lá no São

João Clímaco, lá no Sacomã. Estão vindo pra cá. A gente precisa tá sempre

conversando pra gente ter essa visão. Quando abrir um correspondente da

caixa aqui do lado, quando vem não sei quem. Vem vender passagem aqui

dentro. Todo mundo quer ficar do lado da UNAS. Pra eles é como se fosse:

―To com a UNAS to com... To com Deus‖. Não tem coragem e quer montar um

comércio, quer explorar no comércio. Ai o que a gente tem como meta? Tem

que ver se é a menor taxa, se é o menor valor. Mas, por exemplo, eu não quero

que o pessoal endivide assim comprando carro, endivide, entende assim?

Porque na verdade hoje o grande comércio tá pra isso. Se você ganha

trezentos você tá te fazendo trabalhar só pra pagar as coisa. Você paga 100

nisso, 50 nisso, dez no outro, 30 no outro divide em dez vez. Você tá se

endividando, né? Na verdade o trabalhador cada vez mais ele tá ficando mais

individado. Sobrando pouco pra comércio aqui dentro. Tem um comércio que

surgiu daqui de dentro e tem um comércio que agora tá vindo de fora. Daqui de

dentro. Já tinha dava conta. Tá crescendo hoje, por exemplo, vai ter com

certeza o metrô... Nós tamo falando de uma área que um metro quadrado aqui

é três mil reais? Três mil e alguma coisa. Mais ou menos isso. Três mil quase

quatro mil o metro quadrado aqui de Heliópolis. A gente tem que pensar nisso.

Quando a gente fazia as reuniões à gente falava isso: ―Gente essa área é

muito valiosa a gente não pode abrir mão nós temos que ficar aqui‖. Por

exemplo, eu temo que durante um tempo aqui, isso aqui não vai ter mais. Que

vai juntar dez casa e derrubar e fazer um espigão. É assim que eu vejo

Heliópolis, né? Por exemplo, cada vez quando eu vejo um vizinho meu dizendo

―Ah Cleide não dá mais pra ficar mais aqui... esse barulho... Olha

sinceramente...‖ Pessoas de 25 anos atrás. ―Olha não dá mesmo vou fazer o

seguinte, sabe o que eu vou fazer? Vou dividir isso aqui em cinco casa e vou

alugar e vou embora‖. Porque é assim que é... Poxa! Me dá uma crise, eu fico

numa crise tremenda, né? Ai eu fico pensando ―Meu Deus! Eu fico pensando o

que é que vai ser da comunidade. Entende? É como se fosse assim... Ai vem

toda aquela organização que a gente construiu um a um... Ai eu fico pensando,

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será que a gente também não se sente dono. Só dúvida. Só que essas coisas

a gente não pode perder. Se você perder, se você não tiver duvida, tiver

certeza de tudo enlouquece, né? É isso que na verdade acho que caminha

nossa comunidade. Que não é uma coisa da comunidade é uma coisa do

capital. Da forma estruturada dessa forma como está estruturado o capitalismo.

O capitalismo está estruturado desse jeito, né? Porque ai salve-se quem puder,

né? Hoje na nossa comunidade a gente tinha três áreas... Cinco áreas de

bolsão. Bolsão ainda são aqueles locais que tão muito junto que na verdade a

gente queria que não tivesse porque é um local que facilita o acesso de carro,

diminui a violência, o tráfico, a droga naquele local. Quando ele tá muito junto

faz com que tenha maior propensão e a gente sabe que se a gente atacar

desse jeito a gente tem menos jovens dentro dessa parte, né? A gente tem a

Lagoa, que tá pra se discutir um projeto lá. Buraco do Facão que deu uma

abertura lá deu uma melhorada, né? E a quadra H. Que o grande problema que

a gente tem de área junto tudo pensando em Heliópolis. A miséria muito mais

acentuada e de carência. Por exemplo, tinha o ultimo levantamento dessas

quadra que eu to enumerando com mais bolsão o analfabetismo lá era 20%

por cento. Imagina numa cidade de São Paulo. Por exemplo, tinha um que

chegava... O que era lá do alojamento... Era 30% você imagina 30%. 20, 30

por cento. Aqui, por aqui era 10%. O nível de analfabetismo. Aqui onde nós

estamos, né? Isso é uma coisa que a gente vai ter mais atenção nesse sentido.

De olhar como que tá. Então nesses bolsão o que acontece? A prefeitura retira

põe as pessoas no aluguel. Isso tá sendo um dos grandes problema nosso.

Foi uma reivindicação nossa não fazer alojamento, mas pôr em aluguel. Só que

por outro lado o mercado imobiliário no local... Você Imagina. Na verdade

propiciou para que eu dividisse um quarto e cozinha e alugasse por 350 reais,

380 reais é isso que tá a realidade dos aluguel hoje. Aqui de dentro, né? Vai

dar uma diminuída quando terminar esse bolsão vai dar uma parada essa

questão da urbanização aqui de dentro. Por outro lado, na verdade, a gente

como que já esperava que fosse acontecer isso. Porque imagina, é uma

questão da lei da oferta e da procura, né? Capital trabalha bem, né? Tem mais

gente procurando o preço vai lá em cima. É isso que tá acontecendo na nossa

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comunidade. E é isso também que tá facilitando com que as pessoas procurem

morar lá fora porque o aluguel aqui compensa mais e com o aluguel aqui ainda

dá pra ela pagar o aluguel lá fora. Ainda sobra. Acaba sobrando, né? E ai eu

acho que é uma coisa essa da gente vê. Essa questão que a gente tá do lado

do metrô também, essa área vai ficar valiosa. Pra entender. A Estrada das

Lágrimas você vê Banco Bradesco. Falam Itaú, né? Quer dizer tudo isso daqui

dez anos o que pode acontecer? Nós somos da época que na nossa área aqui

como nós falamo no início lá da quadra A lá queriam fazer um shopping Center,

isso nos anos 90. A gente conseguiu segurar lá de 87 até 90. A gente

conseguiu segurar lá essa área pra não fazer shopping Center. A gente tinha

muito essa questão: ―Essa área é nossa, nós não vamo deixar ninguém,

tomar‖. Quando foi o primeiro despejo em nossa comunidade em 87 todo

mundo foi pra cima. Não deixou acontecer o despejo. Acho que foi um dos

quase únicos que aqui não aconteceu o despejo. Não desculpa. 93. 93 o

despejo. Tentativa de despejo e que não aconteceu. Não aconteceu porque ia

ser uma guerra.

Naquele dia era quadra N. Depois desse período que a gente ganhou a

associação eu fiquei presidente e, nessa época, nesse espaço era outra

pessoa mais uma pessoa ligada a gente. A gente sempre pensou assim. Tanto

é que o João cumpriu o mandato dele e falou: ―Não, agora é outra pessoa‖. A

gente sempre pensou em formar outras pessoas, né? Então lá era outra

pessoa que era presidente mais era junto com a gente nesse local. O João era

o presidente da UNAS. João era o presidente e lá da associação se eu não me

engano era a Cleuza que era presidente. Uma mulher. Era a Cleuza nesse

período. Ai essa área. Era uma área que, na verdade, tinha pessoas morando

desde 86. Neste mesmo local, desde 86 já tinha gente morando lá. Era um

antigo alojamento da prefeitura, né? Teve gente que ocupou depois. Mas tinha

o pessoal de 86. Então a gente teve na prefeitura e falou o seguinte: ―Olha,

atende essas famílias de 86. Esses outros entraram depois, mas atende essas

famílias de 86‖. – ―A não. Não tem acordo, então vai despejar todo o mundo‖.

―Não, atende...‖ A gente tava a favor. A gente queria que saísse essas famílias

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mais novas. A gente tava querendo que atendesse essas famílias mais velhas.

A nossa reivindicação naquela época no movimento. Ai não. Tá bom, então,

nós vamos pra lá pra defender. E foi isso que aconteceu. Ai nós divulgamos na

área inteira. Nesse momento a gente já tinha as comissões em todos os locais.

Já tinha a UNAS. A UNAS já era fundada. Então, a UNAS era união de núcleo

associações e sociedades de moradores. Que era uma central como se fosse

uma central das associações. Então, continua tendo a associação de

moradores amigos de Heliópolis que era nossa, que tava no nosso campo. A

do Pan a gente já tinha também pego pro o nosso campo. A Norma que era

presidente, mas ela tava no nosso campo. Tinha essas duas associação no

nosso campo. E as comissões em todos os locais. E ai a gente divulgou.

Querem tirar todo mundo. Que não era pra só aquilo lá. Ai aquele negócio a

gente espalhou. ―Se tirar lá... Vai tirar lá e vai tirar você depois‖. Foi isso que

fez a gente conseguir segurar lá. Ai meu filho num dia só bastou a gente entrar

e correu esse boato, mas na verdade, quem já segurou naquele momento todo

mundo tava lá. O que a policia fez? A primeira coisa localizou as lideranças

homem. Levou todos os homens preso. Era o Geraldo, foi o Miguel. Todos os

homens. Zé Francisco. O Dito. Todos os homens eles falaram. Então eles

falaram: ―Vou tirar os homem e ai fica só as mulheres e... Batata‖. Foi isso que

na verdade eles tiraram. Então primeira coisa levaram os homens. Quando

tirou os homens o que aconteceu? Quem entrou mesmo na briga já na época,

foi os meninos... A gente chama os meninos. Foram os meninos do tráfico.

Foram eles que seguraram a bronca. Porque é isso que estou te falando

saíram todos os homens. O morador, você sabe muito bem como é o morador.

Quando vê um negócio desse... Tinha gente tirando botijão. A igreja tava

aconselhando o pessoal a sair, a deixar e nós não. Ai ficou eu de mulher,

Genésia, Cleuza, Paula. Só mulheres. Nós chamamos os meninos não deu pro

outro. Falamo: ―Olha, é o seguinte. O bicho tá pegando‖. Pronto! Eles entraram

e ai depois a grande questão era como que a gente segura pra não aparecer

que era eles. Porque na verdade foi isso que aconteceu. Como é que a gente

segura? E ai a gente conseguiu segurar por quê? Como eu tava te falando a

Santa Edvirge tava contra a gente. Porque falava: ―Não vai na deles, vamo sair,

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é melhor ter a vida do que perder a vida‖. Era isso que tava rolando aqui.

Melhor a gente largar. E era gente saindo com o botijão pra fora... A gente

falava põe botijão de fora vocês não vão sair não. Era assim que era. Imagina

morador, né? O pessoal tomou uma assembléia; ―vamo resistir‖. Mas na hora

do pau... Era cachorro, era tudo. Choque... Veio o choque. Veio aquele tanque.

Foi tudo... Tudo. E ai quem segurou a bronca foi os meninos mesmo não tenho

duvida nenhuma. Porque nós não segurava a bronca. Ai depois o desafio foi

como que a gente volta isso torna isso pra isso ser uma coisa da organização.

Que teve reunião tinha tudo, mas pra ir no pau segurar lá junto com os

cachorro como que a gente ia agüentar isso? Não ia agüentar. Ai foi barricada.

Ai o pessoal, os moradores começaram a ajudar dando sofá, dando pau,

entendeu? Ficou uma guerra. Ai salvem-se quem puder, virou uma guerra. E ai

junto com o pessoal foi a pastoral. Cê vê! A igreja local tava contra, mas a

gente fez uma reunião antes. Se você olhar a fita você vai ver que antes lá era

seis horas da manhã e a gente já tava lá. Chegou a policia pra desocupar seis

horas, seis e meia e a gente ligou pra prefeitura pediu pra vim o secretário, né?

Ligou lá pro capitão. Fez uma assembléia com os moradores. ―Gente a

situação é essa, que nós vamo fazer‖ Entendeu? A comunidade toda começou

a vim. Na assembléia não tinha mais só morador da quadra N, todo mundo já

tinha... Então foi uma decisão consciente. Foi uma decisão que todo mundo

participou. Votou. ―O que nós vamos fazer gente. tá assim... Assim... Assim‖.

Então, desse jeito, entendeu? Eu acho que esse jeito do movimento como foi

criado. Sempre quando tem uma duvida muito grande. Por exemplo, no projeto

aqui em 2006 o Kassab trouxe uma proposta de um projeto. Primeiro mandado

dele. A gente aqui derrubava um local que a gente não queria. A gente trouxe

ele pra assembléia de agora. Por quê? E ai a gente falou pro pessoal: ―olha, vai

acontecer isso, isso e isso. A gente acha que não tá bom a gente acha que

desse jeito tá errado. O que vocês acham?‖ ―Tá errado‖. Então tá. Vão borá.

Desse jeito, né? Essa estrutura de consultar, né? De consultar... De

amadurecer, né? Por isso que a gente fala assim. É na conversa. No sentido

na conversa. De amadurecer o que é os pros, os contra, o que pode acontecer.

Pesar isso na balança. Esse tempo que a gente teve essa preocupação, isso

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eu acho que é muito positivo. Sempre foi muito positivo, né? E a consulta.

Ouvir sempre o morador. Não é nós que tamo aqui que sabemo de tudo. Esse

respeito por quem tá lá no local, quem tá morando. Por exemplo, o projeto de

habitação que a gente quer que aconteça aqui. Que o PAC. A gente quer que o

morador dê opinião. Não é o técnico, o arquiteto. É lógico que ele sabe a

melhor coisa. Mas, o morador. Abre um espaço pro morador falar. A grande

maldade que se fez aqui foi essa mudança das ruas. Porque quando a

prefeitura trouxe pra gente, numa reunião lá, eles disseram: ―Não, olha precisa

porque a gente tá dando entrada pra regularizar a área‖. É muito importante

regularização da área, então ela precisava e a gente precisa mandar os nome

tem presa. Eu falei: ―gente _Numa reunião falei _ gente não precisa ter presa

pra isso. A gente já esperou 20 anos, mas vamo fazer a coisa... Vamos

consultar os moradores os nomes das ruas, né‖? Pronto. Fui vencida. Não vai

consultar nada. Eu falei: ―Olha, isso não vai dar certo. Não sei fazer assim. Eu

to fora, a UNAS tá fora disso. Esse jeito de fazer nós não sabemos fazer desse

jeito‖. Todas as outras associação ficaram com a prefeitura e mudaram os

nomes das ruas. Por exemplo, é um afronto a questão da identidade das

pessoas, né? E ai até hoje tudo o que a prefeitura agüentou de problemas com

isso é a mudança das ruas. Por quê? Porque as ruas tinham história. Quando

falava Rua da mina. Porque era mina aqui, né? É porque tinha uma história.

Era a mina. Quando falava assim: ―A Rua social‖. Porque tem uma história a

rua social, né? E se não podia ser Rua social. Qual outro nome podia ser? Um

que tem a ver com o histórico. Hoje é Ingá, Angá. Quer dizer tem até uns

nomes legais. ―Lutadores de Heliópolis‖. Mas, não tem nada. As pessoas tão

aceitando os nomes porque não tem mais jeito, dá trabalho agora pra mudar.

Porque agora precisa pegar abaixo assinado levar, fazer um projeto. Mais por

causa disso. Mas, não tem nenhuma identidade com o nome. Até hoje eu dou o

meu nome o nome da minha rua. Não tenho maior problema. Porque ela

mudou o nome dela. Mudou o nome da minha rua. Nome na minha rua e eu

não fui consultada. Esses afronto que as pessoas fazem com os outros, né?

Isso também desconstrói a identidade. Nesse período tem dez anos pra cá que

a prefeitura vem construindo uma campanha pra perca de identidade desse

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movimento. Porque do mesmo modo que a gente fala que esta questão é

importante. A organização das pessoas. pra quem quer fazer o que quer fazer

com as pessoas não é importante. É melhor você ter uma comunidade que não

tem identidade, que não tenha uma história de luta, que comece uma história a

partir deles. Então todo o momento a prefeitura quer que a história comece a

partir do dia que eles tão aqui. E não é verdade isso. A história não começou a

partir disso.

Então, esse empoderar as pessoas pra mim é empoderar da história,

né? Empoderar do que é de coisa boa daqui. Como o que eu posso falar pra

minha filha. Que o barulho que tem aqui, que esse jeito de se organizar a

comunidade que é da gente? É cultural? É nosso?. Que é bonito. Que isso é a

arte, né? A arte não é só aquilo que Da Vince fez isso aqui também é arte, né?

Essa nossa arte. Como que eu posso? Eu tenho que dá essa identidade. E ai

eu vejo que, por exemplo, a prefeitura vem desfigurando... Vem acabando com

isso, né? Jogando essa história na lata do lixo porque eles também querem

dominar as pessoas. Eles não querem que as pessoas tenham autonomia. Não

querem que as pessoas pensem, né? Uma coisa nesse sentido.

Tem um grande problema hoje, porque, vamo supor, no local onde se faz um

prédio deixa aqueles espaços que é pra uso coletivo, né? A quadra de esporte,

o espaço, o parquinho. Por exemplo, tem outro problema. O adulto brincou

quando era criança, mas agora ele esquece. Ele quer que a criança sejam

adultas ele não aceita que as crianças jogue bola. Ele não aceita que as

crianças corram. Isso é um outro problema que tem na comunidade. Então, por

exemplo, um perigo hoje é que essas áreas que são comunitárias, elas se

transformarem em outra coisa. Local que não tem organização acontece isso.

Uma quadra que era pra ser uma quadra, um espaço. Ou ela pode ser

ocupada por moradia, isso às vezes é mais difícil, mas ela pode ser ocupada

de outro jeito, né? De uma forma que afasta as pessoas, afasta as pessoas

que quer fazer esporte, né? Nós já fizemos ocupação. Por exemplo, uma área

que são prédios a gente teve que ocupar porque essa área era da iniciativa

privada e a gente queria que a prefeitura comprasse pra aumentar o número de

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atendimento. Então a gente ocupou. A gente fez uma cabana, né? Durante um

período. E essa cabana a gente ficou lá três meses. E a gente saiu quando a

prefeitura comprou a área e votou pelo projeto. A gente sempre tratou quando

a ocupação não é organizada ela também não faz bem pra comunidade. Por

quê? Vêm os oportunistas. Tem pessoas aqui que quando chegou isso aqui

tava vazio. Vamo pensar. Então, ele pegou mais esse pedaço pra ele construiu

não sei o quê. Tomou mais esse pedaço pra ele. Então a gente teve muito na

época oportunista na nossa comunidade. Quando a gente fazia essa avaliação

a gente também olhava isso. Fazia desse jeito. Então a gente acabou o tempo

todo defendendo quando a ocupação é organizada. Organizada num sentido.

Que tinha que fazer ruas, que tinha que ter um espaço comunitário, Entendeu?

Eu entrar e ocupar só pra... Ai era invasão pra nós. Quando não tava

organizada. Quando tava organizada que ela pensava ―Você tem o seu metro

quadrado, eu tenho o meu outro tem o dele. Não. ―Eu tenho tudo isso, você tem

tudo aquilo, e tudo isso‖. Então, muitas ocupação aqui dentro a gente não foi

favorável. Aconteceram, mas a gente não foi favorável. Só que depois que

entrava a gente não aceitava que a prefeitura tirasse. Porque a gente falava

assim: ―Olha, tava vazio, vocês não cuidaram, a gente avisou, e as famílias tão

lá hoje. As famílias, aquelas famílias nem são às vezes as mesmas,

normalmente são outras que tavam lá e essas que tão lá precisam. E ai não é

justo elas saírem‖. Então, na verdade, aqui dentro a prefeitura nunca conseguiu

despejar ninguém. Porque a gente nunca deixou. Nunca autorizou. Porque ai,

todo o começo a gente sempre falou: ―O que acontecer com você vai acontecer

comigo‖. Então eu não posso deixar acontecer com você porque vai vim

depois pra mim. Porque antes do estatuto da cidade as favelas, as

comunidades poderiam ser retiradas. Elas poderiam ser trocadas por outros

locais. Era lei isso. Era garantido na lei eu não tava infligindo na lei, né? Então

a gente sempre teve esse medo de ser transferido daqui pra outro local. E sem

contar da história que eu fui transferida de uma favela pra outra. Então, já tinha

precedentes, né? Já tinha precedentes neste sentido. É Mais ou menos isso.

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Genésia Ferreira da Silva Miranda

Ficha técnica

Data da entrevista: 02/02/2010

Nome completo: Genésia Ferreira da Silva Miranda

Local e data de Nascimento: 24/11/57 – Itabaiana- Paraíba

Idade: 52 anos

Estado civil: casada

Profissão atual: Gestora de projeto social

Instrução: 2º grau completo

Profissão anterior: Operadora de máquinas

Meu nome é Genésia Ferreira da Silva Miranda. Tenho 52 anos. Eu

nasci na Paraíba numa cidade chamada Itabaiana. Um local onde se cultiva

mais agricultura. Eu vivi... Eu morei lá até os sete anos de idade. A partir dos

sete anos... Ai mudamos para Pernambuco. Em São Lourenço da Mata. Ai em

São Lourenço que nós fomos... Bem, praticamente me criei lá. A gente vivia

muito na... A cidade onde nós morávamos era muito próximo a outra cidade

chamada Mogero onde mora as nossas raízes, né? Minhas avós... Os

antepassados nosso são todos desta cidade de Mogero. E... A gente vivia

muito lá também, porque era perto essa cidade. E lá meus pais trabalhavam na

roça e a gente pra lá, ficava de uma cidade pra outra, mas dessa época minha

infância foi muito boa. Porque vivia uma vida natural. A gente não... Não

existia... Assim... Maldade. A gente andava dentro dos mato. Então, brincava

ali dentro da roça, e... Né? Os pais iam trabalhar tinham que levar os

pequenininho, Então... Era uma vida natural que eu tenho boas lembranças

de... Da gente brincar... A gente brincava com milho, né. Brincava com... A

melancia que meu pai plantava que era a bola. Então, tudo isso fazia parte da

vida da gente, né? Nessa idade ai... Pequenininho. Mas, foi um momento muito

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gostoso. Que eu lembro sempre foi muito bom. Ai depois a gente muda pra São

Lourenço, né? Tamém na época era muito mato. Poucos moradores nesta

cidadezinha com o tempo foi crescendo. E a gente foi desenvolvendo conforme

a cidade, né? Mas, lá pra nós também no início não foi tão tranqüilo, né?

Porque você muda de uma cidade... pra adaptar mesmo, minha família, minha

mãe. Há muito sofrimento, né? Pra família toda. Mas era uma grande

necessidade do meu pai e da minha mãe de ir pra o Pernambuco. Por que os

meninos mais velhos estavam crescendo e não queriam trabalhar na roça e

precisava trabalhar em outro emprego, então, meu pai... Ele realmente... Saiu

pra vim pra Pernambuco. Mas ele voltava... Ele continuava trabalhando lá na

Paraíba. Ele só vinha final de semana pra casa. A semana toda era lá. Naquela

época tinha o trem, né? E ele ia na segunda-feira de manhã no trem quando

era sexta-feira de manhã ele voltava no trem. E ai onde trazia nosso alimento

tamém. Através de trem, né? Então era uma coisa muito bacana. Eu me lembro

muito bem. A gente ia esperar ele. Mais pequenininha com a minha mãe. Ai ia

meus irmãos quando ele vinha e ai trazia alimentos. E foi assim a nossa vida

até os quatorze anos.

Nós éramos dez irmãos. Morreu um com 18 anos no Rio de Janeiro. Ele

teve um problema intestinal que até chegou fazer uma cirurgia e após faleceu.

E ficamos nove. Eu sou... Entre os nove... Deixa eu ver... Tem mais três mais

novos que eu... Então, entre os nove... É... Ai tem dois que continuam morando

em São Lourenço. E o restante mora tudo aqui em São Paulo. Ai com catorze

anos eu comecei a trabalhar numa fabrica de fósforo. Em São Luiz da Mata.

Que se chamava Fiat Lux, né? Era uma fábrica alemã. E trabalhei até os 18 e

com 18 anos casei. E ai o que acontece. A partir do momento que a gente casa

eles já não quer esse funcionário. A gente naquela época era obrigado a sair. E

se engravidasse então... Não existia direitos, né? A empresa mandava

embora. Então, quando eu tive o meu primeiro filho tive que sair da empresa. Ai

foi que tivemos alguma dificuldade pra arrumar emprego e tal, e vimos pra São

Paulo. Veio eu meu esposo e um filho com seis meses de idade. Que tinha

nascido lá. Chegou em São Paulo eu vim pra casa de uma irmã que já morava

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aqui. Minha irmã mais velha. E alugamos um cômodo pra morar. No Parque

São Lucas. Ai alugamos um cômodo. Mesmo com dificuldades pra pagar,

naquela época o salário era muito baixo, né? E a gente mulher tinha muita

dificuldade pra arrumar emprego. Imagina deixar filho. Então... Meu marido...

Ele trabalhou... Na... Na INASA. Que era uma empresa de cabo de aço. Que

fica aqui em São Caetano. Ela já fechou essa empresa. É na Rua São Paulo

em São Caetano. Então, ele trabalhou muito tempo nessa empresa. Ai depois

de um tempo vim morar aqui no bairro São João Clímaco. Depois que eu vim

morar em São João Clímaco. Ah... E era sempre um grande sonho que eu

tinha era vim morar em algum lugar que não pagasse aluguel. A dificuldade era

muito grande. A gente tinha dificuldade até para se alimentar. Porque se

pagava imposto, água, luz, aluguel. Não sobrava nada, então... Tinha

dificuldade de alimentar o filho. Então, era o maior sonho era morar num lugar

que não pagasse aluguel. Eu tinha... Tava com uns 23 anos, por ai. Mais ou

menos... Não acho que era uns 20... Uns 25. Porque eu tive um outro filho...O

meu filho mais novo aqui. Eu vim com... O segundo filho tinha mais ou menos

quatro meses de idade, quanto vim pra cá e... Eu tinha uns 25 anos por ai.

Quando cheguei no Heliópolis. É difícil... Mas, não é muito difícil de saber. 52.

Uma 30 e... 32, 31 anos que eu estou aqui. Mais ou menos isso. É mais ou

menos isso. Então, ai a gente vem através de um amigo... Depois o João saiu

da INASA e veio trabalhar na Hevered no Arapuá. No bairro Arapuá. Chama

Vila Arapuá. Que era uma fábrica de pilha, né? Hevered. Uma fábrica de pilha.

E trabalhava lá um rapaz que morava num barraquinho aqui. Comentava com

ele. Ele morava aqui. O nome dele era Sebastião. Quando eu cheguei tinha

uma sessenta família aqui por esse lado. Tinha... Ai Deus... É tanto tempo!

Olha, eu acho que 79 pra 80, mais ou menos. Esse ano. Ai a gente... Ele falou

que tinha um senhor aqui que tava querendo vender o barraco. Ai a gente...

Meu marido falou... Mas ele não queria. Ele tinha muita preocupação que ele

trabalhava a noite. Vim morar aqui era muito matagal. Eu tava com já dois filho,

né? Tinha o outro bebê, então, tinha muita dificuldade. Ele se colocava assim,

que não queria. Mas eu insistia muito que queria... Que queria... Que queria...

Até chegar a convencer ele a comprar. Só que pra comprar na verdade nós

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tivemos grande dificuldade, porque ninguém tinha dinheiro. Só que eu queria o

barraco, né? Ai a gente se comunicamo com nossos familiares que estava no

nordeste, né? O irmão do meu marido. Entre ele, meu irmão, meu pai. Todos

se uniram e o mandaram dinheiro pra gente vim pra cá. Na época era 120...

Cruzeiro? Não. Qual a moeda antes? Até esqueci. (momento em que ela ri da

situação) Faz tantos anos. E a gente tinha maior dificuldade desse dinheiro.

Imagina! Nossa! Daí eles mandaram o dinheiro e nós compramos. Mas, ele

nem imaginava, minha família nem imaginava que era aqui na favela. Não...

Não... Não... Porque meu pai era muito cuidadoso com os filho e ele...

Dependendo do que falasse pra ele, ele jamais... Ele queria que voltasse pra

ficar, né, com ele. Se tivesse sofrendo. Não podia comunicar. Você sabe o

povo do Norte, principalmente essa geração. Ele são muito cuidadoso com a

família. E a nossa família sempre foi muito cuidadoso um com outro. E isso

meu pai sempre passou pra todos. Se falasse próprios meus irmão ia ter

grande preocupação. Apesar que alguns meus irmãos vieram morar na favela

no Rio de Janeiro, mas meu pai não sabia o local. Morava no Rio, num bairro...

Mas todos em busca de melhorar a qualidade de vida, de trabalho, né? A

maioria... Todos nós era em busca de trabalho. Quando migrava pra cidade

grande, né? Então, era isso que a gente queria encontrar. Então... Ai com o

tempo ele foi entendendo, né? Ele foi sempre aberto, meus pais. Eles foram

entendendo que a gente tinha que lutar mesmo pra melhorar a qualidade de

vida. Não podia se acomodar. E isso ele passou pra nós desde pequeno. Meu

pai sempre foi um homem muito lutador. Trabalhou na roça muitos anos.

Minha mãe costureira. Sempre lutaram muito para criar todos nós, né? Alem

de dez filhos ainda tinha alguns familiares que... A relação sempre foi muito

boa, eles se respeitava muito. Mesmo na família quando um tava com

dificuldade outros tinha que ajudar. Então isso era uma relação dos avós,os

bisavós, né? É a gente... [...] Até hoje mesmo nós... Eu com os meus irmãos

continuamos com essa... Vivenciando essa... E é muito gostoso.

Quando eu cheguei aqui... Era muito matagal. Mais ou menos 60

barracos, tinha aqui. Eu vim um dia... Mudei um dia a noite... No dia seguinte

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eu não sabia... Comprei um barraco sem saber que a área existia grilage, né?

Nós não tinha noção disso. Aliás, os moradores que morava aqui também não

tinham noção disso. Que existia grilage. E no dia seguinte que vim morar eles ,

eles,os grileiros pediram pra fazer algum contrato de aluguel. Pra mim... Ai foi

quando eu percebi todos os moradores tava aqui pagavam uma taxa pra eles,

mensalmente. Pra morar, ai... Eu tive muita dificuldade pra reconhecer isso. Até

por que o meu sonho era não pagar aluguel. Sai de um lugar que tinha até

dificuldade pra se alimentar pra vim pra um lugar... Um barraco. E continuar a

mesma coisa? Não. Não era isso. Na minha cabeça não era isso que eu

queria. E eu questionei... Questionei... Eles deram prazo de 24 horas pra mim

sai do barraco e ir embora. Conversei... Fui conversar com alguns moradores

eles falaram que realmente era assim. ―Eles pediram e temo que respeitar o

que eles decidiram‖. Por que se que eles não respeitassem que eles matava...

Se resistisse eles matavam, eles expulsavam. Eles falaram de um advogado

que veio aqui defender uma família de moradores e eles espancaram. Esse

advogado ficou muito tempo em coma, né? Ai... Então, imagina nós. E tem

que... E muita pobreza! Mesmo essas pessoas que moravam. Eu percebi que a

pobreza era demais. Ai eu não...Perguntava mais...Ai um dia eu fui chegando

até pra conhecer a Conceição.Ai eu fui conversar com ela pra conhecer e tinha

um grupo de homens lá na porta dela pedindo o aluguel. E ele falou: Ah! Hoje

eu não tenho só tenho o dinheiro da comida pra comprar arroz, feijão pros

meus filhos‖. Ele falou: ―Então, tudo bem se você não tem nós vamos trazer a

máquina e passar por cima‖. É... A conversa era assim. Ela correu coitada foi

lá dentro. E eu observando isso, né? Pegou o dinheiro, as despesas que era

pra os filhos e... Entregou. Fiquei olhando assim e falei: Ora, mas, porque você

fez isso‖?. Ela falou: ―Mas tem que pagar‖. Eu falei assim: ―Tem que pagar‖?

Ela falou: ―Tem. Senão pagar eles vem e passa a máquina. Eles não

respeitam ninguém‖. Eu falei: ―Nossa‖. Eu fiquei preocupada... ―Não acredito.

Não acredito que meu sonho acabou aqui na hora que eu vi essa conversa‖. E

depois quando eles me deram o prazo de 24 horas e me pediram o documento

eu me neguei a dar o documento. Eu tinha visto essa cena... Eu falei: ―Não vou

dar meu documento pra vocês fazer contrato nenhum. Eu comprei o barraco.

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Eu paguei‖. – Não. Mas aqui todos paga aluguel- Eu falei: ―Mas, eu não vou

pagar‖. Mas eu nem tinha noção de quem eu tava conversando. Eu não tinha

noção de nada... De nada. Nem conhecimento. É... E ai começo grandes

problema, né. Porque realmente eles vieram pra me tirar. Só que na hora que

me neguei a sair, mesmo sem noção de nada mesmo, achando que tudo seria

muito fácil, né? Que eles deram prazo. Eles falaram pra mim que ou eu saia ou

eles iam tacar fogo no barraco... Comigo dentro. Eu falei: Ué! Que loucura. Só

que eu tinha um problema eu não comunicava muito pra o meu marido. Prá o

João. Eu tinha medo. Ele trabalhava a noite. Ele vinha e dormia. E eu tinha

medo porque eu sabia que ele ia tirar a gente. E ficava ali, né, sem ter muita

comunicação. Mas, sempre quando ele tava dormindo eu ia conversar com a

população, com o povo. Sempre num barraquinho, no outro. E eles foram

observando que eu tava conversando com o povo. Então ai tem toda uma... Ai

eles começaram a me perseguir. Ir atrás... ―Você vai sair quando? Nós demos

um prazo. Vai sair quando? Vai passar a maquina.‖ Aquela pressão, né? E um

dia eu me zanguei e falei: ―Não vou sair e não vou pagar‖. Não tinha noção de

nada. Ai realmente eles vieram... Ah... Teve um... Um parquinho. Que veio aqui

montar na Estrada das lágrimas. Aqui, na saída da rua da mina. E tinha um

rapaz alto. Acho que esse senhor já deve ter morrido. Um alto, barbudo. E eu

conversei com ele. Ele, realmente, falou que sabia que tinha essa grilage. É

tanto que o parquinho tava lá que eles tavam pagando né? É parque tudo bem,

né? [...] Não sei se na prefeitura. Ai eu comecei insistindo e eles vieram tocar

fogo no meu barraco a noite. Uma vez tinha um senhor aqui também faleceu.

Eu conversei com ele. E ele era assim um pouco nervoso. Ele era um pouco

atrevido tamém. Não se amedrontava muito, mas só que só existia ele assim.

Era... A gente chamava ele. José da Nalva. É... A gente chamava ele de José

da Nalva. Nalva era a esposa dele. (descontração neste momento). Ai a gente

tivemos assim muito problema com a perseguição. Eu tive muito problema.

Depois o João fica sabendo que eles vêm conversar com o João. E eles já

vêm assim... Batendo, né? Vêm junta dez caras. Vem já com a maneira de

expulsar a gente. Eles não se identificava. Era uma gangue de bandidos, né?

Na época. Não se identificava. A gente sábia por que o chefe era um senhor

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chamado Geraldo Mariano. Falava que essas terra era da família Mariano.

Esse eu conhecia. Eu cheguei conhecer ele porque ele fazia grandes pressão.

Tanto ele quanto os filho dele. Ás vezes eu passava eles apontava a arma pra

minha cabeça. Falava que ia me matar. A... Então, cada vez que eu passava lá

em cima que eles me encontrava tinha esse tipo de ameaça, né? E eu não

também eu não contava nada pro meu marido, eu não era boba, pra ele me

tirar daqui. Na minha cabeça. Eu não tinha... Era isso que eu tinha na minha

cabeça. ―se eu contar que acontece isso...‖. Ai chegou. Eles viram dez homens,

meu cunhado, meu marido foi chagando e também apanharam, né? Detonaram

com a gente. Dez cara contra três pessoas, então... Ai o João foi parar no

hospital. Internou. Teve derrame no olho. Meu cunhado. Também machuquei

bastante, mas... Antes desse acontecimento aqui do lado tinha há um

barraquinho de madeira pequenininho que a pastoral de favela tinha comprado

pra desenvolver um trabalho social. Que na época tinha aquelas dama de

caridade que vinha fazer favor, vinha ajudar, trazer um pãozinho pra uma

família, pra uma criança, uma comidinha, né? Esse tido de trabalho. Quando

cheguei elas já estavam fazendo clube de mãe. Fazia assim trazia roupa pra

arrumar, fazer bazar, né? Esse tipo de atividade. Que foi comprado pela

pastoral de favela aqui da diocese aqui do Ipiranga. Era o frei Sergio era um

dos coordenadores desta pastoral. Ai a gente foi conhecendo, mas na verdade

a igreja na Vila Arapuá é quem tava desenvolvendo um trabalho. E uma pessoa

que, ela tentava fazer um trabalho com os moradores envolvendo essa questão

de direitos, né? Só que quando eu cheguei essa pessoa que eu conheci eu

percebia grande dificuldade porque os moradores não aceitava ela. Os próprios

moradores que tinha grande dificuldade sofriam muito. Porque ela era muito

brava... Ela exigia das pessoas as coisas assim... ―Olha vai ter reunião, você é

obrigado ir‖. Tipo é... Esse comportamento, né? E as pessoas tinha muita raiva

dela. E falavam: ―Não vou‖. E ficava nisso. Ai não conseguia discutir nada. Eu

comecei a sair com ela e fui observando. Era a Silvia... Não sei o sobrenome

dela. Ela chamava Silvia. É tanto que nós tivemos alguns problema. Porque eu

não aceitei quando... Eu questiono ela. Eu falo: ―Mas, péra ai. É assim que

você convida as pessoas para irem conversar? Não. Você não tá convidando.

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Você tá exigindo. Você não tá convencendo a pessoa. Você não está falando.

Elas não têm noção da vida que eles tão levando aqui. Pra ser uma pessoa...

Pra mim assim uma pessoa da pastoral tinha todo o conhecimento que mundo

pudesse oferecer, né? ―ah! Mas é assim, porque ―o povo é acomodado, pé, pé,

pé‖... . Eu falava... ―bom...‖ Eu sempre fui católica. Meus pais, meus familiares.

Meus avós, meus antepassados sempre foi católicos. Sempre fomos católicos.

Ai eu fui... Na época conversar com o padre. Falei: ―Não dá pra essa menina

trabalhar com a gente‖. E eu tive problema. Eu... Eu não tinha muito juízo era

muito atrevida Eu não... (risadas). Eu sempre fui muito... Me indignei muito

com essa questão de justiça, sabe? Ver as pessoas sendo injustiçado,

humilhado. Eu nunca me conformei com isso. E eu não gostava de... Quando vi

as pessoas humilhando um ao outro. Ai eu... Na minha cabeça pessoas da

igreja, da pastoral. Então, que formação tem essa pessoa pra tratar as outros

dessa forma. Então, por que eu vim da igreja católica e... Meu pai sempre

passou a outra imagem pra nós tudo isso. Então, mesmo que tivesse todas

dificuldade, mas... E a gente fomos reivindicar, falar com o padre Celso na

época que...Olha não dava pra continuar essa moça Silvia ela espalha as

pessoas. As pessoas não... Respeita ela. Tem até medo dela. Que ela é muito

brava. E conversei, conversei... Ele poderia mandar outra pessoa pra trabalhar

com nós, né? E... Ai ele conversou mandou Miguel. Conversei ai veio o Miguel.

Ai ele veio pra cá e nós... Miguel já era mais humilde. Um senhor mais ficou

bastante tempo no meu barraco, lá. Mas, ai foi depois quando a gente

conseguimos organizar mais a população. Por que antes no momento quando

a gente passou muito conflito tanto com a polícia quanto os grileiros, a... Ainda

a gente tava vivendo uma época muito difícil porque a ditadura ainda estava ai

muito viva, né? E a gente quando sofre grande ameaça tanto dos grileiros

como da própria policia, porque os grileiros tinha uma grande articulação com a

policia. Era época o crime organizado. E já existia aqui. E no momento que eles

queriam... Eles pegaram todo o momento a policia pra nos pressionar. Então,

muitas vezes, João chegava a policia já tava no barraco esperando o João

chegar pra prender o João. E o João, as primeiras vezes ele não tinha noção

do que tava acontecendo, né? Quando chegava do serviço de manhã. Mas, o

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que acontecia? Diante da minha atitudes. Eles não me prendiam, prendiam o

João. Porque a responsabilidade... Pra eles João tinha que cuidar dessa parte.

A mulher era dele. Então, acho que era isso. Então, sei que ele que ia preso. A

gente tivemos assim um... Várias vezes João foi preso então... Teve um dia

que prenderam ele. Isso já foi a segunda ou terceira vez que a policia veio e

levou ele. Eu fiquei muito preocupada porque eu escutava bochicho da policia

falando em dar fim. Né? Era muito fácil dar fim das pessoas. Ai eu comuniquei

com os moradores. Na época eu já tinha conseguido articular um trabalho mas

com muita paciência com os moradores que já existia, né? E conversei com

eles o que tava acontecendo. O João tinha sido preso por isso, por isso, e tal. E

um dia tava chovendo muito. Eu me senti muito fortalecida quando esses

moradores vêm junto comigo e a gente ocupa a delegacia. Ai a gente ocupamo

a delegacia. Tudo com pé de pau. Sujou tudo a delegacia. Claro a gente

morava tudo no barro, né. Ai a gente... Só que ai a gente tem uma grande

preocupação. A gente que... Quando eu ligo para o padre Celso que era de

Arapuá ai surge uma preocupação que se ele for preso de novo... Ai eu contei

pra ele e ele ligou pra Dom Celso, né? Falando da história. O frei Sergio. Ai ele

procura o advogado da ordem dos advogado dos direitos humanos que era o

doutro Jairo pra vim até a delegacia saber o que tava acontecendo. Ai o doutor

Jairo vem, né? A gente conhece ele. Ai o doutor Jairo começa a cuidar dessa

parte criminalista. Que tá implicando sobre a minha pessoa e a do João.

Durante essas vezes que o João foi preso ai ele encontra realmente o doutor

Jairo lá dentro. Quando se chama o delegado tutelar, vai tomar um cafezinho,

ai vai falar dos dois baderneiro. Ai ele não se identifica quem é ele, né? É um

simples advogado que era assim que eles compravam mesmo na época. Ele

não... E oferecem tudo pra ele. E fala que nós dois os baderneiro que estão

aqui nesta área e que têm que morrer. E o planejamento que a gente tinha que

sumir daqui. E já tinha esse planejamento e isso quem conta pro doutor Jairo o

próprio delegado. Sem saber quem era o doutor Jairo sabia que era um

simples advogado. Mas advogado que vem proteger favelado é um como o

outro que pode se matar. Violar as leis pra lês naquela época era o que eles

pouco se importava, então?É que acontecia. Se fizeram isso com um advogado

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que veio aqui defender um,a família, imagina, doutor Jairo era mais um, né?

Eles não tinha noção. Ele era dos direito humanos e uma pessoa muito

conhecedora dos direitos e naquela época, né, ele lutava muito por direito de

liderança. Ai ele volta e fala: ―vocês não pode ser preso mais. Porque se vocês

for preso vai ser a ultima vez. Por que eles vão dar fim a vocês‖. Ai contou toda

a história. A gente fez uma reunião veio o padre Celso, veio alguns seminarista,

algumas pessoa. E a gente... Na época veio a Heloisa Erundina. Eu tinha

entrado... Frei Sergio fez contato com ela. Sentamos pra elaborar um

documento. Ai ele enquanto da equipe dos direitos humanos sentou junto com

a gente, com tudo mundo pra elaborar esse documento. Com os padres e tudo

e marcou uma audiência com o secretário de segurança pública pra ir lá

entregar esse documento e via a diocese daqui da região do Ipiranga. Dom

Celso e tudo. Ai fomos, o documento tava falando do nosso sumiço que a

responsabilidade do nosso sumiço seria o secretário de segurança publica.

Que eles encontraram que já tava planejado o sumiço de nós dois. O secretario

ia responder por isto. Então, foi uma coisa... A gente pensamos bastante.

Fizemos três encontros escondido. Pra pensar. Ai a partir desse momento ai o

secretário se sente acurralado, né? E manda uma investigação para a

delegacia que era a 26. Era na Anchieta. E quando essa investigação vem pra

delegacia eles encontra tudo o que foi escrito no documento. Ai ia ter uma

grande desarticulação porque ai tira... Ai mexe com delegado, mexe com

policial, ichi! Foi... Ai o que acontece? Nosso problema se agravou mais

ainda. Uma coisa era você está sendo perseguido pelo crime organizado aqui e

os policiaisinho que tava articulado com eles. A outra coisa era o delegado.

Não sei quem. Não sei quem. Toda a corporação da delegacia. Ai a gente

tivemos que tomar cuidado por que... Mas mesmo assim... Tiraram todos, né?

Fizeram toda uma mudança na delegacia. Até o escrivão chegou pra o João e

falou assim: ―E ainda bem que não mexeram comigo se mexesse comigo você

ia ver o que eu ia fazer com você‖. Ai o João falou assim: ―Olha talvez não

mexeu com você porque você não estava mas... Não sei, você deve saber

melhor do que eu então‖. Ai a gente teve todo essa processo, né... De início.

E a perseguição continuava sempre em cima de mim e do João pelo crime

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organizado e o crime organizado não tinha nada a perder, né? Tivemos vários

conflito. Não foi só um. De vim muita gente e... Mas isso a gente nunca deixou

de organizar a comunidade. De falar que eles eram capazes de parar de pagar

aluguel. Se a gente se unir as força. O... A nossa arma é a união, né? Mas pra

isso todos precisa trabalhar tá e a conscientização política dessas pessoas,

dos moradores. Eu tinha muita dificuldade. Porque eles se escondiam, com

medo. Fechava a casa e não queria me atender. Também coitados, era pra ter

medo mesmo. Eles tavam vendo o que tava acontecendo comigo. Quase toda

noite eu era perseguida. Eu era sempre perseguida. Muitas vezes viam os

padres, seminarista, ficar no meu barraco a noite comigo. Algumas freira.

Porque eles viam me matar com as crianças. Viam tocar fogo no barraco. E

teve um senhor, esse senhor mesmo que a gente conversava do parquinho. Eu

lembro que o João foi trabalhar. Como ele estava lá em cima no parquinho

falaram pra ele que nesta noite viam colocar fogo comigo e as crianças dentro

barraco. E ele escutou. Ele veio aqui avisar: ―sra sai do seu barraco vão tocar

fogo e matar você e nas criança‖. Eu falei: ―Não. Eu não vou sair. Eu não tenho

pra onde ir‖. E o João tava trabalhando a noite. ―Mas, tem certeza a sra não

quer sair?‖. _ Não. Eu não quero sair. Tem que fazer alguma coisa, não sei...

Sair daqui pra outro lugar não. O que eu posso fazer é sair e me esconder, lá

trás sei lá‖. Era muito matagal, né? Mas... ai ele pensou...Pensou... ―Tá bom‖. E

ele conheceu o João. Ele tinha conhecido o João já. Ai ele falou: ― Tá bom

então eu vou vim aqui ficar no seu quintal‖. Eu acho que Deus preparava tudo.

Ai ele veio. E eu lembro que eu escutei o barulho de bastante gente dentro dos

mato. E ele sabia até o tambor de gasolina a cor que era tudo. Esse senhor. E

quando foram se aproximando perto do barraco. Eu também não sabia que ele

tava com uma arma. Ele começou a atirar de dentro do meu quintal. Ai

correram...Ai correram... eles...Quer dizer eles... Eu acho que esse povo de

parquinho que andava ai... O mundo todo eles...ai depois ele veio conversar

com a gente falando do risco de vida que nós tavam correndo. Ai ele veio e

também se unir com a gente. Ele se uniu... É tanto que ele nunca tirou o

parquinho. Parquinho se estragou e tudo, mas ele continuou morando ai, né?

Com tempo que ele saiu. Ele teve doente. Ele se uniu a gente e foi lutar junto.

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Era umas sessentas família. Muito espalhado. Muito espalhado. Muito

distante um barraco do outro. Eles viam na reunião, mas... Procurava não...

Que esse grupo não percebesse que eles tava unido com a gente. A gente

conseguimo mais quando a igreja vieram com grande fortalecimento, como

muita gente que eles perdeu o medo e ai se uniu. Ai eles foram percebendo no

primeiro momento quando há varias ameaça com a gente em que eles

perceberam que não conseguiram nos matar, não conseguiram... Né? E a

gente insistiu... Ai eles foram perdendo o medo. Ai vinha uns

pouquinho.entendeu? Se unindo. Vinha uns pouquinho. E eu nas casa

conversando, né? Ai vinha uns pouquinho. E daí a gente fomos pensando

juntos, né? Ai eles viram que tava os padre, seminarista junto. Ai foram

perdendo o medo.

Na época a nossa parceria era com a igreja Arapuá. Tinha outras igrejas

também. Tinha a Cristo Operário que fica na Vergueiro. Que era o frei Sergio

que era o coordenador da...Da... Das favela, né? Da pastoral de favela. Da

igreja Operária. E ai a gente... E da igreja Arapuá os seminarista tava em peso

aqui. O padre consegui fazer essa articulação. Padre Celso. E daí a gente fomo

e se organizando melhor com a população. A gente tivemos um momento

também que na época de umas agressões que tivemos chegamos ir até a

justiça porque foi até o juiz ouve julgamento. Nós com esse senhor Geraldo

que era o cabeça de tudo. Foi justo numa época que eles tavam... Que ele

vieram nos pegar. Pra nos matar e chegou dois assistente social da prefeitura

através da igreja e viram a cena começaram gritando e eles correram, né? E

essas duas assistente social foram testemunhar a favor da gente. Do João.

Contra toda... Naquela época a prefeitura jamais... Elas tinha que ser excluída

do cargo se elas fossem testemunhar, mas como tava a igreja, os direitos

humanos tava....E eles conseguiram....O advogado Dr. Jairo conseguiu

conversar com elas então...E elas aderiram à luta comigo e com o João

também. As duas. É na época elas são... Hoje elas estão ai são pessoas

maravilhosas que também tinha a expectativa, né? Elas vinha aqui ver essa

pobreza, toda essa humilhação, mas elas junto não iam fazer nada. Alguém

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tem que fazer. É o que elas podiam fazer é ajudar mesmo sem a prefeitura

saber, né? Ainda mais... E isso ela fazia conscientizar as pessoa. No momento

quando eu chego ai eu começo conversando com elas tal ai a gente começa a

ter uma boa relação. Mesmo fora do horário de trabalho delas elas vinha pra

cá. Era a Lurdes, a Gisele, a Eliana e tem outra tamém... Essa não me lembro

o nome dela. Era a Lurdes, Gisela, Eliana... A Rosana. A Eliana nessa época

era estagiária então ela... Não entendia muita coisa. Era mais em estágio, né?

E a gente conseguimo ter uma boa articulação. Foi três pessoas que fizeram

grande diferença... Quatro pessoa que fizeram grande diferença na

comunidade também. Além da igreja, né? Porque elas tinha uma grande

consciência política a contribuir com o desenvolvimento na época desse povo,

né? Mesmo nessas pequenas comunidade. Me ajudou bastante...Bastante

elas. Ai elas foram testemunhar na... Nesse dia que ouve o julgamento. A gente

ganhamo a causa com muita dificuldade. Muita dificuldade. Dez caras vêm bate

na gente e faz o que quer e... Quase que a gente perde a causa. Ninguém ia

preso. Só nós. E nessa época até... Era muita dificuldade. Alguém me falou de

um vereador aqui na região do Ipiranga... ―Porque você não vai falar com ele?

Ele pode te ajudar‖. Eu, né, muito bobinha , sem experiência fui atrás dele que

era o Almir Guimarães. Quando cheguei no gabinete aqui no Ipiranga. Que ele

soube que eu morava aqui. Nossa! Ele me expulsou. ―Aqui eu não atendo

baderneiro... É eu não atendo baderneiro nem... Na época tem um nomezinho

que eles davam quando ocupava a terra, né? Quem morasse assim nas terra.

Era baderneiro...Não era ocupador não. Era outro nome. Invasores...Alguma

coisa assim. Ai tudo bem, até conversei com a assistente social falei pra ela.

Ela falou assim: ―A gente não pode fazer nada‖. ―É eu sei que vocês não

podem mesmo‖ Eu disse. E tinha na época uma sra chamada Teresinha Reis

que era a supervisora, né,da região. E muita coisa ela nem sábia o que a

assistente social tava fazendo aqui. Sabia que tava fazendo assistência social,

né? É que era um trabalho muito paternalista naquela época, né?

Mas eles não sabia que nós tava fazendo conscientização política com esse

povo. Jamais elas podia imaginar isso. Enquanto a assistente social tava

aqui,né, época de eleição...A gente tava começando a construir o barraco aqui.

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Derrubando a madeira pra fazer junto com esses moradores já. A gente já

tava muito bem articulado, fortalecido. E como a gente começamos a quebrar

o poder dos grileiro, né? E ocupando algumas rua que é assim que....Mas isso

em reunião nas calada da noite. Em vários lugares escondido deles, né? Com

moradores de rua, com várias pessoas pra ocupar. Pra que a gente

fortalecesse essa luta. E a gente fazia realmente essas reunião escondido

porque se a policia soubesse ou eles, nós tava ferrados. Ai eu comecei

articulando assim digo: ―Bom, quanto mais gente pra se fortalecer e tomar essa

terra deles melhor‖. E os caras eram muito bem armados. Eles tinham muita

arma. A policia via eles com o carro cheio de arma, perua cheia de arma pra

vim nos atacar e não fazia nada, ficava procurando pra ver se a gente tava

armado. E tem algum momento que a gente tem que se defender também...A

gente tava lidando com bandidos. Então era muito grave, né? E a gente fomos

organizando... Tanto que a Rua União aqui o nome dela é Rua: União porque

teve esse trabalho. Ficamos três meses trabalhando os moradores... Esse

moradores de rua, moradores de cortiço, moradores de quando dava enchente

esse rio do Menino que se chama. A casa dele enchia de água, que morava

nos cortiço, né? Então, era com essa pessoas que eu me reunia e a gente fazia

reunião. Isso escondido, né? Algumas amigas junto dessa ai, né? Eu convidava

as assistente social pra vim a noite me ajudar... Era a Heloisa Erundina na

época era assistente social também. E a gente... O pe. Celso também vinha e

alguns seminaristas e a gente conseguia articular bem esse povo e falar do

risco de vida. Mesmo ocupando a gente ia sofrer. Podia morrer. Então, e

mesmo assim a gente conseguimo. Por isso que a Rua União, tem o nome Rua

União. A prefeitura vem e troca o nome. Sem consultar ninguém. Colocaram

outro nome, mas é por conta. É a primeira rua que nós ocupamo. Tem uma

história. E não é respeitada. Eles não respeitam. Mas nós respeitamos. Eu não

consigo chamar de outro nome. A Rua da Mina pra mim é Rua da Mina. Rua

União. Rua União. As ruas que eu conheço que têm história. Tem uma rua que

tem o nome Rua do Sossego. Quando eu sentei com os moradores na época

passada que era uma tranqüilidade aquela rua que colocaram o nome Rua do

Sossego foi eles que colocaram meu Deus! Tem que ser respeitado, né? Tem

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a Rua União, Rua do Povo, a Rua Paraíba que grande parte daqueles

moradores que veio são paraibanos. Então eles decidiram colocar Rua da

Paraíba. Então todas as ruas têm a sua história, né? E a prefeitura vem hoje e

destrói tudo isso e vem coloca uma plaquinha lá sem consultar ninguém. É um

grande problema.

A necessidade mesmo e o sonho que eu tinha na minha cabeça

contribuía com tudo isso. Apesar que eu vinha de uma família muito lutadora.

Meu pai foi um lutador pela sobrevivência dos filhos e dele, né? Respeitando os

limites de todo mundo, com muita humildade, meu pai foi sempre essa pessoa,

ele sempre passou essa imagem pra nós. Né? De lutar, de sair de uma cidade

pra outra, sabe, em busca de melhorar a qualidade de vida dos filho, então, a

gente tivemo todo essa educação, né? E o que era errado pra meu pai... Ele

sempre passava essa imagem. Por que tem muito essa questão que tudo é

pecado, né? Pobre não podia fazer muita coisa que tudo era pecado tava na

lei de Deus. E essas coisa meu pai sempre quebrou na nossa família. Que a

gente lutar pelo direito da gente não é pecado. A gente lutar pra sobrevivência

isso não é pecado, né? É... Questões de sobrevivência a gente precisa dessas

coisas, viver, trabalhar. E essas coisa a gente sempre via, né? Meu pai e

minha mãe vivendo tudo isso. Então, eu nunca pensei assim de abandonar

uma luta, abandonar alguma coisa, não. É tanto que na época pra mim quando

os padre vem com proposta de tirar a gente daqui. Quando vêm ameaças, que

eles percebe que realmente pode perder a gente, né? Ai eles vem com a

proposta da gente sai. Conseguiram um lugar para nos levar. Por conta dessa

ameaça tanto da policia quanto do crime organizado e tudo. E eu me neguei.

Falei: ―Não. Não vou... Eu não vou porque olha... Por que aqui... Meu sonho foi

esse. Eu tenho que lutar por ele. Que diferença faz eu tá viva e morrendo aos

pouco. Eu quero morrer lutando. É o mínimo. Morro lutando. Porque ai eu sei

que alguma coisa eu to fazendo agora me acovardar não vou não‖. Então, isso

também eu percebi que mesmo com toda essa minha inocência,com essa

ambição de querer morar, essa ambição de ter um barraquinho de madeira pra

morar, tudo isso. Essa grande ambição que eu tinha... E Sempre tive. Eles

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perceberam e isso fortaleceu. Ele viram mais gente se fortalecer aqui a

comunidade, né? Nesse momento.

Isso eu sempre tive muito claro que toda essa minha coragem, tudo isso

que determinava. Deus estava na minha frente. Nunca. Nem um momento eu

nunca fiz nada sem ter claro na minha mente que ele tava na minha frente.

Independente que eu sobrevivesse ou não. Mas que ele tava na frente. Eu não

tava só. Até porque eu, às vezes, ficava imaginando. Surgia as idéia assim na

minha cabeça que eu ficava me perguntando a mim mesmo: ―Como é isso?

Como eu consegui pensar nisso? Como eu conseguia saída essas atitude?

Como eu consegui...‖? Coisa assim que depois eu fico imaginando, até hoje eu

fico. ―Mas como é que eu fiz isso‖? Ás vezes, eu fico imaginando. Eu era

louca? Eu não tinha... Sabe assim? Sobre algumas decisões que eu tomava.

Né? Mesmo diante do grupo, eu nunca, nunca, nem um momento. Pra mim

sempre tinha algo muito importante na frente que estava me dando todas as

condições pra que eu continuasse. Então, por isso que eu não conseguia me

acovardar, porque eu tinha isso claro na minha cabeça. Esses ensinos meus

pais passaram pra nós. Quando a gente não tem maldade, mas sim que a

gente sempre tem que tá muito articulado com nossos irmão pra vida. Sempre

pensar na vida, não na morte. Então, eu venho, né? Mas, junto com o povo da

igreja. Na época tem o grupo da igreja que é onde a gente faz alguns curso de

verão. Ai um grupo da teologia da libertação. Ai também passo pro esse

processo que era pra mim ter mais conhecimento, né? Ai faço todos esse

curso e vou me qualificando melhor. E vai melhorando as minha habilidade

entendeu? De lidar. Vai melhorando as minhas coragem. Então, tudo isso

contribui, né? É aquela coisa. Junta a fome com a vontade de comer. Então

eu me entreguei assim de corpo e alma, né? Pra esses curso. Porque era

tudo o que eu queria na vida. Tudo que eu imaginava tinha nesses curso. Era

muito simples. Porque na verdade eles conseguia ser um... Hoje a gente

percebe, eles era um mediador na contribuição do desenvolvimento dessa

liderança. Porque era muito simples tava tudo nas nossas mão. A gente que

precisava pensar, analisar e buscar os caminhos. Por exemplo,quando a gente

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trabalhava estudo bíblico a gente trabalhava com a própria Bíblia. Nosso

caderno, nosso livro era a Bíblia. Então, a diferencia é você ler uma Bíblia ao

pé da letra e você ler a Bíblia levando toda uma reflexão. Porque a reflexão te

dá a noção de muita coisa, né? Seja qual for a leitura. Então, a gente buscava

muito essa reflexão. De tudo da própria Bíblia. Porque ai que era esse grupo da

teologia da libertação eles tirava muito isso porque a maioria lia a Bíblia, exibia

nas igreja muito ao pé da letra. E quando esse grupo vem no Brasil e vem

trabalhar toda essa questão, tinha a ditadura e o sofrimento desse povo. E eles

acredita muito na libertação desse povo. Esse povo pobre, camponeses, né?

Tem que lutar pra sair tudo isso. E acho que nada disso foi a toa, né? Tinha

vários padres. O frei Rui eu fiz muito curso com ele também. O frei Rui é

espanhol. É que ele veio da Espanha. Ele teve aqui dois anos atrás. Ele veio

na minha casa. Então, ele vive viajando direto, né. Por que ele é uma pessoa

fantástica. É uma pessoa que trabalha essa questão da conscientização, né?

Da população mesmo pegando esse livro que é muito importante a Bíblia e eu

fiz muito curso bíblico com ele. Bastante. Tanto eu como o João. Então a gente

se encorajava muito. Tem todo esse aprendizado na nossa vida pra a gente se

encorajar, pra se manter até hoje. É coisa que a gente não perde são

aprendizado na nossa vida que não se perde, né? Você vai reproduzindo

levando sempre isso para que as pessoa saibam que são capaz e que tem que

sonhar, ir em busca dos seus sonhos. De construir um mundo melhor. Pensar

nas nossas crianças, nos adolescentes, pensar no povo, né? Principalmente

aqueles que têm mais dificuldade. Então, isso a gente passamo pra todos, né?

Acho que enquanto a gente tiver vivo a gente vai passar pra essas novas

geração pra eles dá continuidade esse trabalho, mas sempre buscando muito

essa questão da humildade, da sinceridade , né? E pelo ser humano enquanto

ser humano independente de que ele seja branco, amarelo. Se tá na vida da

marginalidade ou não. Então, o olhar é para o ser humano. E a gente conseguir

dá oportunidade pra aquele que fizer a escolha dele. Isso eu acho que é

importante. Isso a gente aprendeu com muito carinho. Temos que reproduzir

isso.

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Mas ali grande parte da ocupação se houve negociação de pagar. De

comprar os terreno. Vendia e comprava. Não sei se o João ele lembra um

pouco disso. Eu lembro que muito antes de eu vim pra cá eu tive lá que teve

uma amiga que morava perto da casa que eu morava que foi pra lá e eu fui

junto pra ver se comprava. Eu não tinha o dinheiro pra comprar. Lá no

Heliópolis. Perto da sede. E eu não tinha o dinheiro pra comprar. Então desisti.

Mas ai porque tinha o envolvimento dos grileiro, né? Em toda a área eles

dividia em bloco esse milhões de metro quadrado, né? Só ficava fora o hospital

de Heliópolis porque ele não podia fazer muita coisa, mas as áreas vazia eles

negociava. Lá não sei se a Cleide lembrou pra vocês era o veterinário. Então,

eles vendiam. Veterinário vendeu muitos anos. E aqui na época os grileiros

queria fazer isso e nós não deixamos. Então, ocupamos da mão deles.

Entendeu? Foi diferente.

E ai com o tempo depois de muitos anos ai trabalhava a comissão de

moradores. Se reunia e se organizava nas luta para água que a gente não

tinha, luz. A gente usava água da mina aqui. Conforme a população ia

aumentando a água ia se poluindo, então. Ai tinha a luta por água, por luz. Se

organizamo. Ai não era só aqui. Essa luta, esse trabalho. A gente fazia essa

articulação em nível regional. Porque ai tava a pastoral junto, né? Tava toda a

pastoral da favela, então a gente se unificava na região do Ipiranga. Todo

essas liderança junto desse povo pra lutar. Ai quando chegava mais em cima

porque essa comissão conseguia unificar outras favela de São Paulo. Na

época a igreja, né, tinha todo esse trabalho da pastoral das favela de unificar.

Onde se juntava todos pra reivindicar. Na época o Franco Montoro, se eu não

me engano ele era o governador, Mario Covas era prefeito... A gente aqui

lutava bastante. Fazia caminhada na cidade. Era todo esse trabalho até eles se

convencer que ele tinha que ligar água e luz pra nós.

Na verdade aqui a gente se iníciou com a participação das mulheres. Foi

com um grupo de mulheres. Agora o desafio dessas mulheres era convencer

os homens. Era um grande desafio porque o homem não via essa questão

como correta, né? É tanto que quando nós fomos agredido por grileiro eu, João

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e meu cunhado. Tinha um barzinho na época um pouco mais assim lá na

frente. Estava cheio de homem. Quando eles viram os caras chegando para

nos pegar correram todos e se esconderam pra não vim ajudar, né? Eu fiquei

tão revoltada, fiquei muito revoltada. Porque na minha cabeça não imaginava

isso, tanta covardia, né, desses cara. E em seguida, depois que saimo do

hospital em seguida fui no bar peguei esses homens mais falei tanta coisa pra

eles. Eu era doidinha. Não tinha juízo não. Ninguém acredita em mim. O João

recebia reclamação todo dia de mim. Eu acho que as pessoas queria que ele

fosse meu pai, né? Ai eu fui... Eles tava bebendo, pra mim não tinha nenhum

problema. Cheguei lá e falei pra eles: ―Vocês são uns covarde sem vergonha -

Xinguei mesmo - Vocês só são homem pra bater nas mulheres de vocês. Seus

bando de covarde. Por que se vocês são tão corajoso pra bater nas mulheres

de vocês porque vocês não têm coragem pra enfrentar a realidade,tá. E brigar

pelo direito da família de vocês‖. Ai xinguei. Falei tanta... Tanta coisa. Depois

eles pegaram João Miranda. Ai meu Deus do céu! ―Sua mulher é atrevida, só

faltando com o respeito. Chamando a gente de...‖ Ichi! Mas falou muito com

João. Ai o João chega em casa: ―O que você me aprontou dessa vez? Agora é

os homem da comunidade‖. Eu falei: ―Ué! Que eu aprontei? Não. O que eles

aprontaram? A gente lutando pra melhor qualidade de vida da família dele e

tudo esses covarde, sem vergonha só sabe bater nas mulher dele‖. Falei com

as mulher deles. Ai falei pra elas na reunião: ―Olha, muita covardia dos maridos

de vocês. Agora vocês se permitirem apanhar desses homem vocês são mais

covarde que eles‖. Meu Deus! E eu nunca conheci essa realidade eu nunca vi

na minha família homem batendo em mulher, né? Como é que pode? Até o

meu pai eu nunca apanhei do meu pai nós sempre conversava e eu estranhava

tudo isso. ―Como? Se não é o teu pai não é nada. Como ele pode bater em

você?‖ Entendeu? Essa questão era muito perturbada na minha cabeça porque

eu não tinha claro isso. E eu falava: ―Como é que pode homem bater? Ele não

é seu pai não é nada como é que você permite que bata em você. Não pode

deixar ele bater em você‖. _ Ah! Mas você não entende... Os filhos [...] Eu falei:

―Mas gente os filhos. Vocês não sabe bater também nele não‖? Ai... ―Imagina a

gente vai poder...‖? ―Pode. A gente só não pode fazer isto com os nossos pais.

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Mas, homem que não é nada nosso! Vai apanhar tem que bater também‖. Eu

era doidinha. Mas com o tempo a gente fomo conseguindo organizar com eles,

sabe? Ai não ficou muito coisa perdida não. Porque ai tinha uns dois três

homens que reconhecia tudo isso e foram chegando e sempre tem, né? E tudo

tem o seu tempo pra você conseguir convencer o outro, né? Não é de uma

hora pra outra. A gente tem a nossas revolta, a gente tem raiva ai faz besteira

faz , mas tem um tempo, né, pra o convencimento.

Quando a gente vinha ocupar, por exemplo, 20 família vamo ocupar uma

rua. Eles chegavam tudo armados. Com carro. Todos armados dentro do carro.

Perua cheia. E arma pra intimidar a gente e tudo. Porque a gente dividia. Por

exemplo, essa Rua: União. Foi que nós deixamo é que nós dividia os terreno,

os metros, então. Os próprios moradores, né? Ai o que acontece, a gente tem

que resistir. Então, tinha alguns homens corajosos que se armavam também. E

quando percebia que eles vinham tinha alguns que dava tiro pro alto que é pra

intimidar, né? E ai a gente foi ocupando. Ai o que eles fazia. Eles chamava a

policia falando que a gente que tavam armado atirando nele. Na verdade não

era isso. As armas tavam com eles. A polícia chegava via as armas na perua

deles e não fazia nada. E tava atrás da gente, né? E muitas vezes alguns

homens desses que tava armado eu guardava as arma deles. Quando a policia

chegava, né? Eu saia fora e eles não pegava arma com ninguém. Eu escondia

assim... Saia com algumas mulheres, né? Tinha uma sra que era evangélica. A

dona Maria. Mas ela me ajudava muito nisso também. Era uma sra de idade

que morava aqui. Ela sofria muita perseguição era uma grande companheira da

época comigo. Então ela me ajudava. Ela falava: ―Ah! Genésia o nosso Deus é

um só. A gente precisa viver, precisa morar. Deus não vai ficar triste não.

Porque eu não to fazendo nada de errado‖. Ela era uma sra de idade

entendeu? ―E Deus não vai ficar triste não. Deus vai ficar contente. Se ele não

ficou triste até agora com você. Você conseguiu tanta coisa, né?‖. Então, ela

era muito bacana ela. Ela me ajudava muito. Na época não Tinha muita gente

evangélica. Por exemplo, na Rua União. O povo que morava lá nas enchente lá

na Ponte Preta. Era evangélico. E eles vieram enfrentar a luta com a gente.

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Nós conseguimos trabalhar eles, né? Trabalhar essa conscientização... Se era

isso mesmo. E outra, eles era evangélicos, mas eles também tinha a

necessidade de morar. E ai a religião vai te dar uma casa pra morar pra você

viver com teu filho? Então estas questões às vezes a gente discutia. Eu acho

que todo mundo deve ter a sua religião, isso é importante, tá. Independente.

Mas, eu acho que a luta... Até tinha algumas vezes que falava pra eles:

―Espera ai acho que no evangelho, o mesmo evangelho que vocês lê será que

tem alguma coisas falando que todo mundo tem que se acovardar? Porque eu

não encontrei isso. Até agora. Na minha reflexão eu não encontro isso‖. Ai a

gente às vezes discutia essas questões assim, mas numa boa, né? Até com

dona Maria mesmo, já nós junto tinha um diálogo muito bem articulado sobre

esta questão dela ser evangélica e eu católica, né? E tinha uma boa articulação

com os padres, com todos. A igreja, era um grande respeito dos evangélico

com a igreja católica por essa união de luta, entendeu? A gente não tinha isso.

Essa divisão de religião.

Em 82 por ai a gente vem a pensar nessa comissão de moradores. 82,

83. Por que na verdade a gente já vivia. Esse grupinho de mulheres unido. Mas

a gente não tinha nenhuma noção de comissão de moradores, né? Quando a

gente vem mais próximo com esse trabalho da pastoral ai que a gente começa

a pensar melhor nessa organização burocrática, né? É importante. Que seja

da comissão, fulano, beltrano e tal. Vê quem quer ficar e eles decidia. Todo

mundo. Esse era o início da organização burocrática que a gente tinha.

Parte dos grileiros foram embora quando perderam os terreno pro o

povo. Outros tiveram muito problema com alguns grupo e ai foram embora.

Muitos morreram. Uns que eram assaltante de banco morreram e outros que

era... Eles eram danado. E foram morrendo. Quem vive na vida do crime não

sobrevive por muito tempo. E outros foram embora. O Flavio Mariano foi

embora. A esposa dele também chegou morrer porque ele tinha um filho que

também era assaltante. E tinha briga com outra gangue. Sei que vieram matar

o filho e a mãe ficou no meio e a mãe que morreu. Entendeu? Um desse

grileiro também aconteceu isso. Ai a gente começamos, também na época a

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comissão de moradores com a pastoral, descobrir na verdade quem era o dono

desse terreno. E ai que a gente descobre. A comissão de moradores vai

discutir junto com advogado e vai vê. A gente fica sabendo que o terreno é do

IAPAS. Na época era IAPAS, né? Chega um momento que a gente vai discutir

com o IAPAS a passagem dessas terra pra nós. Ai o que acontece? Ele fala

pra nós que não pode passar pra nós, mas que primeiro deve passar pra um

órgão público pra que seja passado pra nós. Ai a gente tamém participa dessa

negociação. Que na época era o BNH. Para que o BNH comprasse a área e

passasse pra nós, né? A gente participa dessa negociação tamém. Os valores.

Os valores que o IAPAS passou pro BNH. O custo desse um milhão de metros

quadrados tudo a gente participou. Eu não lembro hoje os valores, mas devo

ter no arquivo. Ai depois o BNH faliu ai vem a COAB. Ai passa por vários esses

processo. Não tem muita atenção. Nem vontade política dos prefeito,

entendeu? Que veio enchendo. Isso ai devia ter sido organizado em uma

cidade muito bonita. Se tivesse vontade política, né, hoje não tem. Ai há toda

uma ocupação de necessidade do povo, né? Hoje tá desse jeito, mas nós

tentamos. Mas, foi crescendo por que aquela família que pegou, por exemplo,

um terreno grande... Os familiares que tinha a mesma necessidade também de

morar. A mesma necessidade dele, ele foi dando o terreno dele. Tá

entendendo? Ai foi crescendo. O espaço que você tinha foi passando pra um

parente, pra um irmão, os pais que vem. Entendeu? E ela vai crescendo dessa

maneira. Porque se for, na verdade, falar que houve muita exploração de

venda de terreno dessas pessoa era muito pouca. Era muito pouco. Não é que

não existia. Porque em todo canto tem, né, as esperteza. Mas, você percebia

que era muito pouca. Era mais aquela questão dos familiares se ajudarem. Que

era uma coisa também muito bonita que eu vi acontecer, né? Eu mesmo por

aqui quando o cara tava vendendo eu caia de pau em cima dele. Eu falava:

―Não. Você não vai vender não. Você vai dar pra ele você vai dar, mas vender

não. Eu era doidinha. Cê não comprou‖. Entendeu? Então, eu era danada. Eu

ficava com raiva. ―Isso é injustiça. Explorar o outro? Ninguém te explorou cara,

como é que você vai explorar o outro. Não. Não é assim‖. Então, a gente tinha

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muito esses problema, né? E a gente ia lá conversar. Conversava, convencia.

―Não você não pode fazer isso‖. A gente conseguimos.

Ai a gente passa por vários processo mesmo ainda assim junto com a

igreja. Ai tem um grupo que a gente forma depois. A gente forma o grupo de

jovem, né? A Cleide vem desse grupo de jovem. Quando a gente articula esse

grupo de jovem, né? A Cleide é um desse grupo de jovem. Então vem... O

Geraldo. A esposa dele. Entendeu? E daí a gente vamos trabalhando um

pouco a conscientização desse liderança, o grupo de jovem, né? E tem uns

que vão se identificando. Ai vai nascendo assim da gente ir reproduzindo todo

esse trabalho pra criar mais lideranças, né, conscientizada, né?

Conscientização política. E a gente vem, tanto eu como o João como era uma

das nossas expectativa, né, da gente não ficar naquele mundo da Genésia e do

João, mas crescesse e o povo, a comunidade eles viesse pra lutar pelos

direito, né? Que é algo comum de todos e que vai se fortalecendo, né? Por a

gente ter essa habilidade. Nós passamos por vários processo de aprendizado

muito bom também pra nós. A gente ter vínculo com alguns político, né? Que a

gente não tinha noção no momento, mas com o tempo nós fomos criando essa

expectativa. Chegamos num momento a trabalhar no gabinete pra eles. Isso foi

um momento muito ruim pra nós, mas também foi muito importante. Porque a

gente começou percebendo que a gente não tinha outra saída. Porque tinha a

liderança que precisava sobreviver. Ter um trabalho. Por exemplo, o João com

o Geraldo ficou muito tempo pelas estrada pela igreja Edwiges. O Dom Celso

registra os dois. Foi uma opção também nossa, né? Das duas família. Tanto

da família do Geraldo como a minha. Eles ganhavam muito mais onde

trabalhava, mas passaram a ganhar um salário mínimo pra gente continuar

esse trabalho de conscientização política dentro da comunidade. Pensando na

qualidade de vida do povo. E o Dom Celso ele libera pela Santa Edwiges os

dois. E a gente faz essa opção. E eu muito feliz da minha vida que tinha o meu

barraco pra morar, a minha casa. Agradecida. Eu acho que o sacrifico a gente

tinha que fazer. Na minha cabeça esse sacrifício era importante para que

outras pessoas, outras família tivesse vida, né? Então, que era um sacrifício,

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mas um sacrifício. E assim a gente podia manter a nossa alimentação. Então

se a gente conseguia manter a nossa alimentação naquela época a gente

ganhava um salário mínimo pra gente continuar o trabalho. Tava ótimo. Pra

mim não tinha problema nenhum. Porque essas coisas materiais, moveis,

sabe? Essas coisas muito bonita, que brilha, às vezes, na mulher, eu nunca

tive essas fantasia. É legal? É. Mas naquele momento era um momento que

não podia pensar nisso. Então tinha que fazer essa opção e eles continuaram

trabalhando muito bem o João e o Geraldo. Geraldo muito novo também, mas

já vinha com aquela garra, sabe? Que a gente conseguimo transmitir a esposa

dele também e ficaram muito tempo trabalhando neste estado. Eu não lembro

quantos anos trabalharam sendo registrado pela igreja. E foi um momento

muito bom. Ai chega o momento que veio outras liderança e pra desenvolver

esse trabalho não tem como sobreviver, as pessoas têm que trabalhar. E o dia

todo no trabalho como é que você ia desenvolver o trabalho na comunidade? Ai

essa dificuldade. Ai teve um momento que tivemos alguma articulação com um

vereador e ele propõe de colocar algumas pessoas no gabinete dele. E a gente

aceitamo. Eu acho que não é muito legal falar o nome dele. Tanto é que eu não

toco muito nisso. Também respeitando a particularidade de cada um. E eu não

tenho tamém tudo isso como uma desgraça. Pra mim é o contrário. Pra mim foi

muito importante. O processo. Às vezes o sofrimento ele nos trás saída muito

importante, né? Então, eu acho que esse momento foi um momento assim de

uma crise que trouxe muitos problema, mas também trouxe outras coisas.

Porque se realmente a gente vivesse um momento como aquele achando que

esse vereador acha que é o nosso dono. E a gente ter que fazer tudo que ele

quer. E fazer da gente, da comissão de moradores um curral eleitoral. Está

aqui a serviço dele pra usar o povo da comunidade pra eleger ele. Ai a gente

também vai tomando consciência. Por que na nossa cabeça não era isso. E a

gente vamos criando de pouquinho consciência. O que a gente precisa é

pensar melhor, usar as habilidade pra que a gente vá pra cima. Questionar.

Então, o questionamento ele é muito importante. A gente começa

questionando, não concordando. Discordando daquilo que a gente achava

que não contribuía com o desenvolvimento. E desse momento houve uma crise

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muito grande. A crise foi tanta que quando a gente tem a UNAS, que se

registra a UNAS, né, isso bem antes. Ele veio disputar a direção da UNAS.

Queria a direção da UNAS. Queria tomar da gente. E a eleição era em massa

na comunidade. Nós propôs. Olha só. A gente era doidinho. E o cara tinha

grana e a gente não tinha nada. Depois que nós. Ai foi que nós pensamo no

caso. Nossa Senhora! Que risco que a gente correu. A gente ia se ferrar. Ai,

graças a Deus a gente conseguimo sem dinheiro, sem nada passar por cima.

Com todo o dinheiro que ele jogou, mas a gente ganhou a eleição assim numa

proporção muito alta. Um reconhecimento do trabalho que nós desenvolvia,

né? Então, ai houve esse processo que pra nós também foi um processo

doloroso você sabe que trás muito problema. Até psicológico. A gente podia tá

pensando em como avançar. Mas não deixa de ser um momento importante na

vida de uma liderança quando a gente leva muito a serio o trabalho, né? Eu

tenho isso como um grande aprendizado. Não como derrota. Aliás, eu não vejo

nada como derrota. Pra mim não existe derrota, existe aprendizado. Porque a

gente sempre tem que tá pronto tanto pras coisa negativa, mas refletir

pensando como sair dela, né? Da maneira mais positiva que for possível.

Então, eu acho que isso é muito importante. São as provações, coisa da vida.

E a gente não pode se enterrar, a gente tem é que sempre levantar a cabeça.

E foi um momento que a gente passamos, mas no final de tudo nós ficamos

muito felizes também, né? Então, ele não deixou de ser uma pessoa importante

também. Entendeu? É aquela coisa. Eu te dou o peixe agora vai pescar. A

gente tem que usar a criatividade e saber o que quer e juntar nossos sonhos e

pensar junto.

Na época o prefeito Paulo Maluf entrou com integração de posse. E

existia todo um projeto de uma ocupação em massa da prefeitura nessa área.

Porque existia muita especulação imobiliária. E a gente sabia que podia perder

o nosso Heliópolis. Se a gente bobiasse podia correr esse risco dependendo do

prefeito e Paulo Maluf não brincava com isso, né? E na época quando ele

começa a desapropriar alguma área no Heliópolis. Aqui a gente temos a

consciência que começando por lá terminaria aqui. Então a gente tem que

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tomar cuidado. Então a gente procura o pessoal. ―Nós temos que fazer alguma

coisa‖. Ai foi quando a gente fomos tentar negociar. Não houve negociação.

Eles não quiseram aceitar iam desapropriar mesmo. E o juiz determina e eles

manda forças policiais, né? E a gente se organiza com a comunidade conversa

com o povo o que ele quer. Se eles querem sair mesmo ou se ele quer resistir.

No momento que eles fala que querem resistir nós tamo junto. No que der nós

tomo junto. Ai quando vem a policia e a gente junto se organiza tem todo

aquele conflito. Enquanto tava algumas autoridade discutindo junto com

alguma pessoas da igreja procurando o juiz pra conversar sobre essa questão.

Porque sabia que ia morrer muita gente. Enquanto eles tão lá nós tamos

lutando com a polícia. A policia queria tirar o povo e houve todo, né, aqueles

conflito. Ai quando a juíza percebe determina que pare com a reintegração, né?

Porque realmente a gente tava preparado pra tudo também. E a gente sabe

que a policia também tava, então, com medo de ter morte, muita morte ai a

juíza volta a trás.

Teve momento que a gente conversava com o povo, né, pra saber

realmente o que eles pensava. A gente precisa ter noção disso. Ah! Em outro

momento a gente negociou lá junto porque os policiais, os comandantes eles

vêm, como você vê, com microfone falando que o povo tem que sair e tal. E na

frente deles a gente fala também com o povo: ―É isso que vocês

querem?Vocês que vão decidir‖. Ai o povo decide a gente toma a frente junto

com eles ai o povo decide o enfrentamento. Ai a gente tem essa decisão vem a

ser tomada na frente dos comandante. Entendeu? Com microfone e tudo. Na

época eu tinha passado por alguns conflitos em outras regiões aqui no

Ipiranga. A Simone, nós era liderança que acompanhava mais ficamos

preocupada quando eu vi... Nós duas toda a liderança pra decidir com o povo.

Ai nós duas ficamos escondida no canto atrás da árvore. Eu falei: ―Vichi Maria!

Simone a gente vai ter um grande problema‖. Qual? ―Vão prender a liderança

tudo. Eu não sei como o povo vai resistir‖. Como? Eu falei: ―Olha lá‖. O policial,

o comandante viu a cara de todos eles‖. Mas não deu outra. Quando começou

o quebra pau eles foi catando a liderança. Só que eles não sabia que nós

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também era a liderança. Nós não demo a cara. Mas, foi naturalmente. Quando

eu pensei que não, tava todos muito próximos. A gente não podia fazer isso.

Esse foi um erro que a gente tivemo muito grande. Ai mas, errando que a

gente... É tanto que em nenhum momento nós fomos espancado nem eu nem

a Simone. Nós procurou se esconder. Mas, a gente não foi espancado. Mas

por quê? Porque a gente percebeu isso na hora. E aquilo ali é pra isso mesmo.

Quando eles vêm trás, o microfone, quando vêm falar com o povo, porque sabe

que as liderança vão. Então isso já fazia parte quando eles iam fazer

integração de posse conhecer as lideranças. Quando eu percebi que eles

fizeram isso e uns foi... Eu Falei: E caramba! Ferrou. E agora o que é que nós

vamos fazer, né? Tavam prendendo as liderança enquanto as autoridades tava

discutindo com o advogado nós tava socorrendo, né, as outras pessoas. Lá no

meio. Mas nem eu nem a Simone nós não apanhou nenhum momento. Quem

não deu as caras não apanhou. Porque eles não sabia quem é quem. As que

eles conheceram eles agrediu. Até as mulheres. Eu consegui socorrer

pessoas, mas eu não apanhei. Porque eles não sabia quem era eu. A gente

não pode se identificar, né? Mas, na época até o próprio João foi obrigado

também a aparecer. Eles tentaram pegar o João. Só que João foi mais esperto.

O João foi obrigado, na época porque ele já era vice- presidente, né? Prende o

Miguel. Então, ele teve que ir pra lá, né? João apareceu também. Ele

apareceu, dançou. Ai foram doido atrás dele só não conseguiram pegar ele

porque os moradores conseguiram traçar ele dentro de um barraco. Os

próprios moradores eles trancaram ele. E a policia na porta derrubando pra

catar ele, mas não conseguiram. Mas ai deu certo que a juíza foi e voltou atrás.

Graças a Deus deu certo e as família continuaram.

A igreja católica tava presente em algumas caminhada. Por exemplo, a

gente tinha na Semana Santa a atividade. Entendeu? A gente chegou a andar

daqui até no Bristo a pé. A gente fazia a caminhada da Semana Santa.

Fazendo aqueles... Como é que fala os... Ai meu Deus! Tem um nomezinho na

época... Mas a gente tinha essas atividade religiosa, né? Os padre fazia junto

com a gente. Mas, não tinha aquela coisa mesmo... As músicas e os hino que a

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gente cantava era os hinos da pastoral de favela. Era os hino da pastoral do

trabalhador. Então, sempre os símbolos nosso foi esses. Se pegava símbolos

da luta do dia-a-dia, né? Os padres também. Os padres eles não era aqueles

padre conservador, né? É claro tinha a Bíblia. Alguns momentos a Bíblia era

um símbolo muito importante. Sempre foi na nossa vida. Então a Bíblia estava

sempre à frente, né?

O frei Sergio o pe. João Julio. Que na época era seminarista. Que hoje é

padre. Ele tem grande responsabilidade hoje, né? Mas tem pessoa que tão ai

assumindo grandes projeto dentro da igreja católica. Pe. João Julio, pe. Celso,

frei Sergio é faleceu, né? Chegou a falecer o ano passado, no final do ano. São

pessoas que no passado contribuiu muito. Ai tem a irmã Eni. Freira que fizeram

todo esse trabalho. Estão também assumindo cargos importantes. Tem a irmã

Eni, a irmã Helena. São freiras que estão assumindo ai.

Diante de todo o trabalho isso tudo eu hoje me sinto uma pessoa muito

vencedora. Isso em todo o momento. Às vezes eu falo até com os meus filho.

Eu falo: ―Nós tamos milionários, né? Da vida que muitas vezes nós nem

percebemos quanto nós tamos rico de tudo‖. Então eu me sinto assim uma

pessoa muito realizada, né? Em alguns momento tenho muita coisa pra fazer.

E eu me sinto muito tranqüila tamém. Procuro ficar muito tranqüila, mas ainda

com muita sede de justiça. De conseguir melhor qualidade de vida de muita

gente, né? Talvez de não fosse aqui. Se aqui não houvesse mais necessidade

eu tenho certeza que eu estaria noutro lugar. Porque é coisa que tá na gente,

no nosso sangue, a gente não consegue parar. E essa sede de justiça é uma

coisa que fica dentro da gente pra sempre não tem como você vê o seu irmão

sofrendo e você falar: eu não sou capaz de fazer nada. Eu acho que todos nós

somos capaz sim. Só querer, né? É só querer. É ter vontade e acreditar em si

mesmo. Então com toda essa expectativa eu me sinto uma pessoa realizada

em todo o aspecto. Financeiro, na educação dos meus filho. Em tudo. Porque

questão financeira que muita gente se pega. Querer ficar rico. Não. Pra mim a

riqueza maior é essa tranqüilidade. É saber construir a paz que todos nós

necessitamos, né? E a educação que demos pros nosso filho que hoje pra mim

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é... Não tem dinheiro que pague. Eu elogio os três. Tudo homem, né? Com

toda a dificuldade que eles passaram quando eram pequeno presenciando todo

esse tipo de violência que nós sofremos lutando. E ter os três filho sem

nenhuma revolta. Então, é o maior prêmio que eu tive na loteria. É ver eles três

trabalhando. Cada um construindo a sua vida e lutando também, né? Então,

pra mim é tudo. Tem alguns participa do movimento. Eles são conhecedores de

tudo que nós trabalhamos, de tudo o que acontece aqui. Mas, às vezes, na

época jovem eles ficavam olhando. Eles iam e ficavam olhando. Uma

participação assim meia... Até porque também tinha muita reclamação deles. A

gente ter abandonado muito eles, né? A gente teve um período que a gente

levava todo esse conhecimento pra eles. ―Olha, precisa tá... Não porque nós

queremos. Não é porque a gente não gosta de vocês. A gente quer construir

algo mais que vocês tenha menas dificuldade pra viver, né‖? Então, a gente

sempre passava essa relação. Mas os três têm maior orgulho tanto de mim

quanto do pai, entendeu? Eles são muito orgulhoso pelo pai e a mãe que têm e

com toda a simplicidade e tudo, mas eles também são muito organizado. Hoje

eles tão muito bem organizado nessa parte. Mas eles sofreram muito também.

Algumas vezes eu deixava. Algumas eu levava eles comigo. Onde eu ia

carregava junto. Eles iam brincar, com outras crianças, ficavam à vontade. Ai a

gente sempre levava. Só quando tinha era grandes manifestação pela cidade

era que não dava pra levar a pé senão ia se cansar. Mas eles sempre

participaram. E hoje qualquer coisa aqui na UNAS qualquer lugar, o trabalho

que necessita eles estão sempre disposto a tudo.

Eu acho que seria o mesmo. O comportamento seria o mesmo.

Modificando algumas coisa. Alguns aprendizado que nós tivemos durante esse

processo. Por exemplo, hoje a gente... Apesar naquela época a gente também

buscava isso. Procurar saber, quando tinha uma terra pra ocupar, procurar

saber quem é o dono. Se é do governo ou se não é. Se é particular. Se você

era particular a gente não fazia isso. Porque não foi só aqui no Heliópolis.

Depois essa luta a gente foi contribuir em outros bairros no Ipiranga, né? De

ocupação de terra. A gente participou de todas essa região. Mas ai a gente

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fazia isso. Quando era a terra era área pública a gente ia contribuir, particular

não. Porque particular a gente sabia que ia ter problema mais sério e era mais

difícil. E era responsabilidade do governo acolher esse povo. Esse povo tinha

que morar não podia viver na rua jogado dessa maneira. Então nosso

comportamento hoje seria esse. Era Fazer toda a essa observação se era

possível ocupar essa área dos moradores sem decepcionar esses moradores.

Não fazer uma luta pra ocupar a área aonde essas pessoas possa ter grande

decepção. Por que nós tomo vivendo um outro momento., né? Então, acho que

tudo isso a gente ia pensar com muito carinho também. Pra não deixar essas

pessoas constrangida. Até porque as necessidades são tanta, né? Que a gente

não pode usar a miséria das pessoa pra contemplar seja qual for o que a gente

queira fazer. Não é bem assim. A responsabilidade é muito grande quando a

gente pensa em ocupar uma área tem que assumir grandes responsabilidade e

organizar muito bem esse povo. Então, acho que isso a gente faria sem

problema nenhum. Com todas essas expectativa e preocupação.

João Miranda Neto

Ficha técnica

Data da entrevista: 04/02/2010

Nome completo: João Miranda Neto

Local e data de Nascimento: Pau D`alho – PE 22/08/1956

Idade: 54

Estado civil: casado

Profissão atual: Vice – Presidente da UNAS

Instrução: 8ª série incompleta

Profissão anterior: assistente geral/ operador de máquina/garçom

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Meu nome é João Miranda Neto. Eu hoje eu sou vice-presidente da

UNAS. Eu nasci em Pernambuco. Eu sou Pernambucano. Em Pau D `alho.

Pau D`alho fica na zona da Mata. Na área das usinas de cana, sabe, e tijolo. O

povo vive lá é economia de lá. O que mais fabrica e vende lá é isso. E os

aposentado hoje, né? Que tem bastante também. Então Pau D'alho é uma

cidade que nasceu por causa de um pé de alho que tinha lá. Então o nome era

Pau de alho. Ai depois esse pé de alho caiu e toda cidade ouviu o barulho.

Então, ficou Pau D´alho. Mas lá é mais conhecido como São Severino do

Ramo. Por que São Severino do Ramo todo mundo vai pra lá. Lá na Igreja São

Severino do Ramo. Uma capelinha pequena. Mas a coisa mais bonita lá, né?

Tem um pátio, então vai ônibus, caminhão. Vai muita gente pra lá e tudo.

Em Pau D'alho eu estudei, se eu não me engano, até a 3ª séria. Eu

fiquei pouco tempo. O meu pai faleceu e a gente veio pra cidade do Recife,

mais minha mãe, né? A gente veio para o bairro da Guabiraba. No Recife, já

perto da zona norte do Recife, né? E ai a gente veio pra lá eu fui trabalhar com

12 pra 13 anos eu já tava trabalhando numa...Numa churrascaria. Eu trabalhei

de garçom. Eu fui garçom também rapaz. Naquela época lá. Balconista,

garçom, né? Eu comecei trabalhando. Porque tinha que trabalhar pra

sobreviver. Não tinha jeito, né? E eu lembro que ganhava muita grujetazinha.

Os caras passavam tudo... Por que onde eu trabalhava era de frente da BR

101 que passa... Corta Recife que vai pra... É... João Pessoa, Paraíba, Natal.

Então, eu trabalhava lá. Posto de gasolina. Churrascaria ficava do lado.

Trabalhava lá. Eu lembro que meu pai trabalhava muito com rabicho, rabichola,

sela. Tudo que fosse pra animal. Então, ás vezes as usina. Porque naquela

época, não é? O transporte era mais os burro mesmo, os jumentos carregando

as canas e tinha duas coisas ao lado do jumento pra carregar, né? Então, mas

tem que ter esteira, tem que ter uma capa por cima dele pra não ferir o animal,

né? E meu pai trabalhava. Tinha pedido grande e tudo. Ele trabalhava com

isso. Eu lembro quando era pequeno eu ia pra lá, ficava, né, vendo ele

trabalhar, e era jogar bola, estudar. É... É isso. E ajudava meu pai de vez em

quando. Mas era muito pequeno. Meu pai morreu eu fiquei com nove anos.

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Mas eu ia na feira. Ele vendia. Fazia as feiras também. Eu lembro. Tinha a

barraquinha dele nas feiras. Vendia de tudo que fosse pra animal, né? Assim

tudo o que fosse pra animal. Até aquelas sela de cavalo boa ele vendia

também. Ele não construía. Não. As celas ele comprava nas feiras de Caruaru.

O que ele construía com junco e tudo era as esteira e capa. A parte de sela

que vem do coro do animal ele já comprava pronto em Caruaru e vendia lá.

Não posso me queixar muito da minha infância , não. Agora, a infância não foi

muito grande. Porque depois que meu pai faleceu a gente teve que trabalhar,

tudo. Mas a vida é essa mesmo. Teve um irmão meu que já morreu. Mas, são

três irmãos. Eu o micinho e a Nené. Nené é a Maria José. Que hoje tá em

Maceió. Mora em Maceió. Essa minha irmã. Esse meu irmão faleceu. Ai ficou

eu a Nené... Ah! O Vilmo que faleceu... Faleceu também. É mais outro irmão.

Depois que meu pai faleceu a minha mãe casou de novo então eu tive mais

três irmão. Que é por parte de mãe só, né? Que é o Marcelo, Marconi e a

Silvana. A Silvana ela tem problema assim coitadinha. Ela vive com a minha

irmã hoje. Lá em Maceió, né?

Minha mãe foi pra Recife. A gente passou lá dois anos em Pau D'alho

depois da morte de meu pai pra vender lá as coisa e tudo. Né? Por que a

minha mãe não sabia tocar o negócio lá, né? Então, a gente teve que sair de lá

trabalhar. Ela trabalhava também, casa de família pra criar a gente , né? Ai ela

arrumou outra pessoa lá na de Guabiraba mesmo. Seu José. Meu padrasto. E

foi viver com ele teve três filho com ele também. Minha mãe.

Eu trabalhava e estudava. Depois eu dei uma parada nos meus estudos

porque passei um tempo no meu avô. Na casa do meu avô é na roça mesmo,

então eu dei uma parada nos meus estudos. Acho que foi na época mais ou

menos quando ela veio morar com o meu padrasto porque eu não queria ter

padrasto, né, na verdade, é isso. Mas era pequeno, né? E minha mãe tinha a

necessidade dela, né? De ter um companheiro e tudo também, né? Mas depois

que a gente começou a se chegar eu considerava ele como um pai meu.

Sabe? Nunca vi uma amizade com um padrasto como eu tive com o meu

padrasto assim no sentido de respeito, sabe? Nunca falava de bater em mim,

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sabe? Dava conselho. Então, uma pessoa muito legal. A gente se deu bem. Ai

parei os estudos ai fui trabalhar na universidade. Trabalhava lá na lanchonete

da Universidade Federal de Pernambuco. Lá em Dois irmãos. Eu trabalhei na

cantina de lá. E lá fazia lanche. E eu lembro como hoje. Tinha estudante que

não tinha dinheiro, coitadinho. Pra fazer o lanche sabe? Então eu pegava e

dava um jeito lá. Por que tinha muita gente, ai pronto. Era dois sanduiche.

Colocava dois sanduiche lá, pá! Ai o cara pedia dois sanduiche. Ai! Eu

colocava dois sanduiche no prato e o outro já comia também e tudo. É

arrumando um jeito. Colocava mais vitamina. Se vinha vitamina eu não vou

colocar o resto fora. Servia mais pessoas então eu colocava no copinho e

dava. Isso não tinha problema nenhum problema, eu não tava fazendo nada de

errado. Nesta época ai eu tinha uns 15 anos. Eu fiquei lá dos 13 aos 15, 16

anos por ai. Com 17 anos eu fui servir o exercito, conheci a Genésia. É isso

mesmo. Conheci a Genésia e nós casamos, se eu não me engano eu tinha 19

e ela 18. Acho que era mais ou menos isso. Ai que vim pra São Paulo. Em 75

eu servi o exercito. Ai sai do exercito ela já tava grávida do primeiro filho. Ai eu

vim pra São Paulo. Vim aqui pra trabalhar pensando em voltar, sabe? Até hoje

eu to aqui. Conheci ela lá na cidade onde eu morava, no Recife. Porque eu

morei na Guabiraba vim pra Dois Irmãos onde tinha Universidade trabalhei. Lá

em Dois Irmãos a gente morava no bairro São Brás, né? E lá no bairro São

Brás e lá no bairro São Brás. Ela tinha um primo que morava vizinho comigo

era meu amigo. O Toinho. Chamava Toinho. Antonio, sabe? Sabe que lá é

Toinho. Nossa. Oh! Cabra legal. Jogava bola com a gente, tudo, né? Era um

cara muito legal. E ai ela começava ir na casa dele o primo dela tal e ai a gente

começou se conhecer. Não deu outra.

Em 75 servi o exercito. Comecinho de 76 cheguei em São Paulo. Vim

pra casa de uma cunhada. Irmã da Genésia. No Parque São Lucas. Trabalhei

em São Caetano. O primeiro serviço que eu arrumei foi na INASA. Indústria de

artefato de aço e tudo. Foi quando eu entrei de ajudante geral que não tinha

nenhuma profissão. Eu podia ir trabalhar de garçom e tudo, mas ninguém

conhecia aqui o ramo, né? Os hotéis e tudo, né? Eu trouxe até uma

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recomendação e tal que era bom funcionário. Na cantina estudantil eu

trabalhava pra caramba. Era vitamina era tudo. E o pessoal gostava, né? Já

tinha o ponto certo. Suco de laranja era pratico pra caramba na forma de fazer

o suco. Então, eu fazia as coisas mesmo. Tem que trabalhar... Tem que

trabalhar, não tem jeito, né? Ai aqui eu trabalhei na INASA consegui com seis

meses que a Genésia viesse pra cá. Eu vim antes. Trabalhar. Não tinha

dinheiro pra vim os dois ela teve que vender até uma vitrola, lembra aquela

vitrola antiga que tinha? A gente tinha uma vitrola daquela ela vendeu pra

ajudar na passagem pra trazer o meu filho com ela. Meu filho não pagou

passagem porque tinha seis meses de nascido. Era quatro, cinco meses de

nascido mais ou menos. Ai foi assim a vida nossa. Ficamos na casa da

parenta. Ai quando ela veio ficou mais apertado. Ai a gente resolveu já tava

trabalhando alugamo um quartinho na casa de um português. Tudo lá no

Parque São Lucas. Ai alugamos um quartinho lá arrumamos um fogão velho lá.

Compramos. Ai a gente começou comprar as panela fazer comida. E o

colchão, cara, de dia a gente colocava o colchão no chão a noite ele ficava em

pé porque não tinha passagem, sabe é... Ai começamos assim com filho e

tudo. Muito pequeno o quartinho. E começamos assim com o filho da gente e

pronto. Ai depois ela começou a trabalhar também e tudo, né? E a gente veio

vindo ai veio morar aqui, aqui na Rua Juca. Antiga Rua Juca aqui na... Onde o

Lula morou também, né, (O Gil ajuda lembrando ser na Vila Carioca), não o

Lula morou na vila carioca... E morou aqui na... (Gil completa Patente?)

Patente... Prá lá do Patente. Como é que chama? (Gil informa que é Ponte

Preta). Ponte Preta. O Lula morou na Ponte Preta. Eu morei na Ponte Preta

também na Rua Juca. Só quando eu morei o Lula já não morava mais com

certeza. É ai morei aqui na Rua Juca ai vim pagar aluguei. Pagando aluguel.

Pagando aluguel. Ai já tinha saído da Hevered. Da Hevered. Já tinha saído da

INASA. Ai depois eu entrei na Hevered, fui no norte. Voltei do nordeste de novo

e ai trabalhei na Hevered, na ONIEX que era aquela fábrica que tinha na

Anchieta ali de sabão em pó. Trabalhei lá. Ai trabalhei sete mês lá a Hevered

tava pegando que era do lado. Eu falei: Eu vou entrar. Hevered era uma das

fabricazinha pequena que mais pagava. Melhor. Ai entrei na Hevered e sai de

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lá já tava morando aqui. Sai de lá já tinha saído já tinha comprado um

barraquinho aqui. E ai a gente começou a se envolver nessas questões. Por

exemplo, não pagavam salubridade, e tal. Então a gente começou a se

organizar nós os piões nós lá. Eu conheci um pessoal que trabalhou com a

gente lá que era da pastoral. Lá na época chamava... Hoje chama movimento

de moradia, né? Naquela época era pastoral da moradia. Então tinha um padre

bom que tinha uma articulação. Dominicano. Frei Sérgio, né? Então ele tinha

uma articulação com o movimento sindical e tal. Ai a gente conheceu alguns

sindicalista. Depois que vim morar aqui. Eu falo muito assim que Heliópolis...

Não só a gente contribui pro Heliópolis, mas eu aprendi muito com Heliópolis,

né? Às vezes eu falo assim: ―Eu aprendi a ser gente aqui no Heliópolis‖. Você

sabe o que significa isso? Ser gente é... Eu digo cidadania. Sabe? Hoje eu

acho com toda a humildade, mas acho que eu to passando da cidadania e

chegando na construção do sujeito. Por que o sujeito ele é um passo a frente.

Porque eu acho isso? Porque no coletivo que a gente entende que o coletivo é

fundamental em todas as decisões nossas. Do movimento popular, nas

organizações, né? Tem que ter um grupo. Tem que ter um coletivo tem que ter

um colegiado. Agora a gente tem que ser sujeito nele. Ser sujeito nele é propor,

é discordar e propor também. Sabe? Como a gente faz com os governos. Tem

governo que a gente concorda tem ações do governo, pode ser de qualquer

partido, não é? O que importa pra gente é que esse povo aqui tem que ter os

direitos que foram negados para esse povo, sabe? Isso eu digo: ―Vim ser gente

aqui‖. Quer dizer entender dessa negação do direito. Dessa violência que é

maior que a violência da bala, do tiro. Que é terrível. Isso não pode, né? A

gente sabe disso. Mas tem uma outra violência que mata aos pouco, né? Que

a mídia não quer saber, né? Ninguém quer saber isso né? Porque pobre tem

que ser pobre. Por que pobre só é importante pra dá voto. Pobre é importante

por que quanto mais ignorante ele é...Ignorante é a falta de conhecimento. Por

que pra mim um tempo atrás ignorante era aquele que batia que brigava, sabe?

Mas, o ignorante maior é aquele que... (risadas) porque se ele tiver o

conhecimento ele não vai bater, não vai brigar, não vai... E vai brigar sim, mas

de outro jeito, né? Então se tiver que bater um dia tem que bater em quem tá

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tirando o direito da gente, sabe? Porque o cara precisa levar. A gente constrói

a paz, mas às vezes pra construir a paz, ás vezes, sabe? Precisa um

pouquinho de agitação, sabe? Pra construir a paz senão a paz não vem de

graça não. Paz e justiça junto. Paz sem justiça não é paz. A gente só tem a paz

quando tiver concretamente, né, um pais justo, né? Que tenha distribuição de

renda, né? Não é a distribuição de renda que dá televisão quem tem duas. Não

é isso. Não. Isso é muito pouco nós queremos é mais do que isso. A

distribuição de renda e conhecimento, né? E hoje o filho da gente quando

nasce, por exemplo, já nasce condenado, rapaz. As crianças da periferia. E eu

falo isso não pra ninguém ter dó não, sabe? Que é uma realidade. A gente tá

em busca desse real. Eu moro aqui a 30 anos e eu estou em busca desse real.

Da realidade. Do real. Por que o imaginário na cabeça da gente ele parece que

é maior que esse real, sabe? Às vezes o imaginário fala pelo real. E não é isso,

né? A gente tem que ir em busca do real. Então a criança nasce condenada

por que a gente paga universidade….. Só pobre pra pagar universidade e o

filho não ter direito de entrar nela. Você já viu uma coisa dessa? Isso é um

absurdo, né? Não é violento, muito violento? Os impostos da gente aqui de

Heliópolis. Foi feito um levantamento ai um tempo ai. Aqui é uma comunidade

de um milhão de metros quadrado. 125 mil habitante acho que já tá com mais.

Foi o ultimo senso que teve, né? E que sai aqui por ano. fizeram um

levantamento o pessoal da radio lá. O Sergio Gomes da Aboré. Ele fez um

levantamento. Ele é um jornalista antigo, famoso também. Fez um

levantamento que vai daqui mais de um milhão de reais daqui pra USP. Por

ano. Por não, né? Então, quer dizer, eu digo: ―Meu Deus! Então nós pagamos a

USP e o filho da gente não entra‖. Por que os impostos pagamos. Nós

pagamos impostos também. Nós não paga o IPTU por que a prefeitura é

incompetente, né? Os governos se fossem competente nós já tava legalizado.

A nossa luta é por asfalto, rede de esgoto. Nossa! Hoje eu falo assim: ―pô, mais

de 90% da nossa comunidade tem luz própria, tem água própria. Ainda tem uns

10% que não tem. Quem mora nas vielinhas, nos fundo, sabe? Ai pega do

outro ainda tem isso. Mas, 90%, né? 85 a 90% da nossa comunidade já têm

luz, sabe? Então isso é uma conquista, mas quanta luta não teve pra isso?

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Quantos nomes. Até tive processo de ser agitador, de virar caminhão, De virar

palanque do pessoal na época o Janio Quadros que era prefeito. Nada disso

aconteceu. Pelo contrario, a gente tava lá lutando pelos direitos, com vida, com

fibra, sabe? Isso eu aprendi aqui no Heliópolis. Aqui que eu aprendi tudo isso,

né? Inclusive de saber rapaz que os filhos da gente não entra na USP. Eu não

tenho que culpar a USP não. Ela tem que ser boa. Ela tem que ser padrão

mesmo pro mundo, sabe? Que é uma das melhores do mundo, mas tem ainda

algumas melhores do que ela. Eu gostaria que ela fosse a melhor, maior e tudo

sabe? Em qualidade e tudo. Agora o ensino fundamental é um pecado que a

escola particular, quem pode pagar a escola particular sai direto pra USP. Quer

dizer faz o vestibular, mas sabe que tá tranqüilo. E a escola pública não. E ai a

gente fica vendo que não é problema de dinheiro. Que dinheiro pra educação

tem em nosso país. Tem muito dinheiro pra educação. Sabe? Não é esse

problema de dinheiro. Não é isso. Não é problema de estrutura, por que tem

estrutura. Tem escola. A estrutura é a escola. Cadeirinha, sabe? Pra um ensino

bom, de qualidade. Não necessariamente tem que ter tudo, né? O CEU. O

CEU foi a coisa mais bonita. Nossa! Foi a coisa mais bonita. Inclusive até votei

na Marta, sabe? E tudo. E teve o CEU, uma puta vitória. O CEU e tudo. Mas a

qualidade do ensino continuou a mesma coisa, não mexeu no que tinha que

mexer, né? Que tem que ter o CEU tem, mas eu quero que tenha o CEU. Mas

quero que tenha também qualidade no ensino fundamental pra que nossas

crianças vá pra USP. Que nós tamo pagando. Só isso que eu quero. Só isso.

Isso é direito que tá sendo negado da grande maioria, você entendeu o que eu

to querendo dizer? Isso é uma violência, sabe? A escola publica hoje não ser

de qualidade. Então, a gente tá tendo um trabalho aqui com uma das escolas.

A escola Presidente Campos Sales e a gente tá indo nesse rumo ai a gente,

acredita, a gente sonha muito. A gente não pode desanimar quando a gente vê

um povo, uma comunidade que tá desanimada esta comunidade está perdendo

a razão da vida. Sabe? Por que tá sendo tirada deles. Isso ai é verdade. Por

que é violento, muito violento. Quando a pessoa perde a razão de viver. Eu via

pessoas que morava aqui na beira do córrego; ―Ih... João não vou pra reunião

não. Nós tamos vivendo aqui, perto dos ratos aqui. Sabe? E tudo. Ninguém liga

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pra nós. Só em época de eleição que você vem pedir voto pra nós‖. Desse jeito

falava. Sabe? E esse povo tava arrasado já.

Eu cheguei aqui e comprei o barraquinho de seu José, um mineiro. Seu

José, seu Manoel, não lembro o nome dele. 120 cruzeiro. Eu não tinha o

dinheiro na época. Era cruzeiro? 120 cruzeiros e eu tava com 80. E ele pediu

150 baixou pra 140, 130, ficou em 120. Eu lembro disso! Ai meu irmão que

morava comigo me deu dez cruzeiros. Ficou 90, sabe? Ai faltava 30. Ai faltava

30. Faltava 30 e esses 30 meu sogro mandou lá do norte. 30 cruzeiros pra

comprar o barraco. 30 cruzeiros. Ai eu paguei pra ele. Ele veio aqui depois e

viu o barraquinho da gente, ele falou: ―olha, esse dinheiro que tava guardado

foi minha filha mais você que me mandava todo mês e eu fui guardando, eu

não precisava gastar. Fui guardando esse dinheiro, olha como serviu pra

vocês. De hoje em diante o dinheiro que você pagava aluguel, abri uma

poupancinha. Quando você precisar... Eu não tenho poupança, mas a minha

esposa tem‖. Ele falou pra mim, é? Meu sogro falou isso. Ai quer dizer, eu

tenho meu barraco por isso. Tenho minha casinha hoje. Meu filho tem a parte

de cima. Dos meus filhos que mora lá. Tenho um filho que mora lá. A parte da

frente que é do outro que era casado, se separou tudo, ai alugou lá, mas

alugou num preço bem baratinho. Que é dele lá. O outro conseguiu comprar

uma casa fora. Aqui na Lagoa. Tá morando aqui no Heliópolis, também, né? E

ai cada um tá vivendo, mas foi pesado. No comecinho foi pesado. E ai

começamos a trabalhar o centro comunitário que era de madeira. Tinha o

centro comunitário que vinha o padre Beno se eu não me engano. Ele vinha

pra cá celebrar a missa. Pe. Beno. Aqui era ligada a São João Clímaco. Essa

parte aqui do núcleo da mina. E ele vinha celebrar a missa aqui num

barraquinho cheio de buraco. Sabe? Não era nem de madeirite completo era

cheio de madeira... Sabe? Era pedaço de madeira assim com espaço (mostra

com sinal na parede). E a gente começou a participar desse barraquinho. Vinha

assistente social da prefeitura. Teve a Silvia, primeira agente pastoral. Negra.

Depois a gente conheceu o Miguel. E começamos. Ai vinha gente. Ai

começamos a vim na pastoral. A pastoral já era mais politizada. Dominicano. O

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padre aqui era bom, ele admirava a luta. Mas ele tinha problema que a família

dele, sabe? Alemã. Sofreu muito no campo de concentração. Muitos parentes

dele sofreu muito na época por causa do Hitler lá. Ele tinha essa coisa com ele

e ele não... Ele falava: ―Eu apoio vocês em tudo, tem que meter o pau mesmo

nesse povo que não quer saber mesmo e tal. Mas, eu to pra ajudar, mas não

vou tá com vocês na luta‖. Ele já faleceu. O frei Sergio não. Frei Sérgio era

louco igual nós. (risadas) com ele a gente aprendeu muito com essa igreja do

Deus vivo, Sabe? A igreja do Deus vivo. Que tá dentro da gente, que tá na luta

com a gente. Não um Deus morto, sabe? Que você vai lá faz promessa e tudo.

Não. Nós começamos a entender um outro lado. Que ai todo mundo começou

a falar depois. Que ai era do frei Beto. Era o frei... Como é o barbudinho que

tem vários livros? O Leonardo Boff. Eu tive numa palestra com ele. Frei Beto

novinho veio aqui no Heliópolis na época, né? Nossa! Esse povo! Teologia da

Libertação, né? Esse povo ajudou muito então junto com os dominicanos e

tudo. Acho que minha formação nasce daí, né? A nossa formação aqui. Estou

falando minha assim... No meu coletivo. Mas nós aqui começamos com essa

formação. Ai depois veio o partido de esquerda. O PT, outros partido de

esquerda, tudo. Eu entendia e comecei a entender que por mais que a gente

não queira, que às vezes a gente fica chateado, agoniado, né, com essa

política, com vários políticos. Mas o que move a vida da gente quer queira quer

não é a política. Não tem jeito. Olha de oito anos pra cá como muda o nosso

país. Mas pode colocar até um pouquinho antes. Teve uma preparação

também, não dá pra negar isso, né? Que vem pra cá você vê quantos anos

passou pra que o nosso país tivesse uma política econômica mais séria,né? E

o nosso povo, né? Quando a inflação não sobe, quer dizer, a inflação só acaba

com pobre, trabalhador. Quando a inflação não sobe. A inflação não acaba

com rico não, pelo contrário, sabe? Agora pro pobre é uma miséria.

Foi toda uma necessidade. Eu ia na igreja católica. Quer dizer, eu ia aqui

no centro comunitário, ouvia a celebração. Ai não tinha luz porque a luz... Por

isso que eu digo a necessidade. Não tinha rua, era uma viela. Tinha um mato

grande aqui também que os caras vinha fumar droga. Até estupro aconteceu

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num matagal que tinha aqui. A gente começamos a limpar esse mato. Falava

com os vizinhos: ―Vamo limpar esse mato?‖. ―Então vamo‖. Ai pegava e

pronto. Foi assim que começou. Limpando mato na frente pra não ter

problema. Tinha um lixão aqui a gente começou a ficar preocupado com esse

lixão tinha cada ratazana, né? E a luz quem eu comprei o barraco a luz era do

barraco só que era da Estrada das Lágrimas. O endereço número tava lá num

poste na Estrada das lágrimas. Então a luz vinha pra cá e tinha mais seis

famílias que usava. Eu era o ultimo. Então, na verdade, era tudo de um lado só

o que acontecia eu pegava o resto da energia. Por que a energia é assim, vai

pegando, pegando quando chega lá no final você pega mais fraco ainda. Ai

veio um cara e falou: ―João, não tem três fio?‖ Eu respondi, tem. Ele disse:

―Tem dois positivo e um negativo no meio, né?‖. Então, tava assim. Negativo e

positivo só de um lado das casas. Ai ele falou: ―Não, faz o seguinte: Coloca três

negativo pro positivo e três do negativo pro outro positivo‖. E ai que a força

melhorou mais um pouco. Eu não sabia disso, né? Eu não sabia. Ai

começamos a lutar por água, por luz. Por que a água de beber era das mina e

cacimba, poço, né? Fazia poço e tomava, por exemplo, no meu barraco tinha

um poço. Ai eu limpei o poço, comprei uma bomba, né? Ai depois comprei uma

caixa d água. A bomba puxava água pra caixa d água e da caixa d água eu

tinha água encanada em casa. Um dos primeiros barracos a ter água

encanada aqui foi o meu. Eu trabalhava na Hevered, tudinho. Naquele tempo o

pessoal falava: ―E esse ai é burguês‖. A minha comadre a Conceição falava

isso. ― esse ai... Ai já chegou aqui já? Tem a caixa d água ―lá‖. E participando

do centro comunitário, participando, ai pronto. Ai começou a Genésia participar

mais, porque eu trabalhava a noite. E a Genésia participava mais. Então, tinha

reuniões. Conhecemos frei Sergio. Ele começou vim pra cá porque ele fazia o

trabalho com todas as favelas. Naquele tempo a pastoral da favela já existia.

Tá certo. E chamava as pessoas pra ir uma vez por mês na sede da região

onde ficava Dom Celso, onde ficava o bispo aqui no Alto do Ipiranga. Ai todo o

mês, parece que era o ultimo sábado do mês se eu não me engano, a gente se

encontrava lá, todas as favelas do bairro do Ipiranga e da Saúde. O Bosque da

Saúde. Sabe? Pra discussão e tudo. Eu lembro que a Erundina uma vez veio

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falar pra nós e ela escrevia assim no quadro assim pra nós é...

MOBILIZAÇÃO. Ela começou falando uma coisa sobre isso. Ela foi didática

assim numa coisa. Mobilização. Ai ela dividia ela falava: ‖Mo- i-liz-AÇÃO. Não

termina na ação. Então, ação é o que? Ação é se mover... É... Muito legal.

Muito legal o jeito que ela... Sabe? ORGANIZAÇÃO – Organizar para a... Ação.

Eu não me esqueço nunca dessas coisas. E aqui tinha um circulo bíblico. Que

nós tinha um padre que inclusive teve aqui um dia desse. Frei Rui, português.

Né? Também dominicano. Então, ele se preocupava. ―Não pode deixar essa

parte bíblica eu vou fazer isso daí todos os domingos‖. Então, eu não

participava todo o domingo. A Genésia participou mais, mas quando eu tinha

um tempinho eu vinha pra assistir a palestra.Pra assistir o circulo bíblico. E ai

era a comparação de Pilatos, de Herodes com o que é hoje. Quem é Pilatos

hoje? Será se ele morreu mesmo. Ele não tá vivo. Será que reencarnou em

outro? (risadas). Herodes, quem é ele? Quantos Herodes não tem? No mundo?

Né? Então, o circulo bíblico era nesse sentido, sabe, da Bíblia pegando o

evangelho pra hoje, pra os dias de hoje. O que mudou? Era uma reflexão muito

legal. Então, eu sempre tive o privilegio por isso eu digo que Heliópolis me deu

vida.

Eu sempre fui católico. Minha mãe era evangélica. Tenho grande parte.

Minha irmã que tá em Maceió é evangélica. Eu achei que tinha que ser católico

mesmo. Acho que os evangélicos exigia muito. E ai eu fui ser católico porque

católico não tem problema você não precisa tá na igreja direto. Não precisa

dessas coisas, né? Mas aqui eu acho que tive uma participação mais cristã.

Nesse Deus vivo. Sabe? Comecei a participar. Agora eu parei um pouco, né?

Mas eu tive toda uma construção e a gente participava de tudo. Por exemplo, a

gente fazia na semana santa. A gente fazia as nossas caminhadas. E todas as

paradas que teve com Jesus. A gente fazia isso voltado para a nossa luta.

―Jesus tá aqui no Heliópolis‖. Com a cruz e tudo. Cada um carregava um

pouco. Caminhada em tudinho. Em todos os núcleos. Em cada núcleo tinha

uma parada e a gente falava do núcleo. O que precisava no núcleo. As famílias

que tavam e tudo. Ai rezava, pedia a Deus e saia de novo. Então a gente fez

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isso aqui com a igreja e tudo. Essa igreja ficou dentro da gente. Não é aquela

igreja de Roma. Não to falando mal da igreja de Roma, não. Não to falando mal

da igreja católica. Por que a gente tem que aprender nesse mundo. Se a gente

quer um pais que a gente acredita que pode ser melhor pra nosso povo. A

gente não pode ficar em cima do muro. A coisa mais ruim do ser humano é

quando ele não sabe o que ele quer. Sabe? Então a gente tem que decidir.

Então ás vezes demora. Mas tem que decidir. Então, a igreja pra mim é isso,

não é a igreja católica. A igreja tem que ser a que teja voltada para as

necessidades do povo. Por que nós tem espírito, mas o espírito tá dentro da

carne. Se a carne não tiver bem como é que o espírito vai tá bem? Ou a alma,

ou espírito vai tá bem? Então, tem que fortalecer a carne, a gente tem que ter

condições de vida. Deus não deixou o filho dele pra sofrer não, ele não deixou

burro no mundo não. Sabe? Não deixou não. Quando vejo o pessoal

principalmente nós nordestino, né? A gente fala com o filho da gente: ―Você é

burro, você não tá aprendendo‖. Não sei o quê, sabe? E não é isso não. É

oportunidade que não teve pra todos. Deus deixou todos iguais, a sabedoria

tudo. Toda a cabeça, tudo. Esse é o Deus que eu acredito. Não acredito num

Deus que castiga, pra pessoa ser... Não isso não. Por não ter moradia também

não. Isso não. Deus quer que todos tenham moradia. Ele deixou a terra. Ele

deixou a terra pra nós. Dono da terra é todo mundo, né?. Por que hoje tem

tanta gente sem moradia? Foi Deus que quis assim? Não. Foi não. Nós somos

rebelde mesmo, os filhozinhos dele, né? Somos meio rebeldes. Nós somos

rebeldes, né? Você entendeu? Então é esse Deus que vivo. De lá pra cá a

gente começou a entrar mais nessa vida também política, dos partidos

políticos. E ás vezes é complicado. Às vezes me dá muita saudade desse

tempo, né? Eu acho que foi evoluindo em pouco no sentido mais dos partidos

políticos e da vida política do nosso país. Mas a igreja deu uma base. Eu digo

essa igreja do Deus vivo. Volto a repetir de novo. Não sabe? Foi que me

deu. Essas igrejas que tá nas periferias, que acredita, sabe? Que o povo pode

se organizar, pode lutar. Só tinha uma coisa que nós errava de vez em quando

que a gente só foi perceber depois, que era o terço. A gente não rezava o

terço. Por que a gente achava que isso era uma coisa que mais coisava o

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povo, deixava o povo alienado. E com a fé não se brinca. A fé de um

povo não pode se brincar. Então eu acho que nós devia rezar o terço mesmo e

depois da reza do terço nós falava: ―Olha, amanhã eu quero vocês na reunião

para nós discutir. Como é que vai ser o futuro? Tá vendo como é que tá a rua

aqui?‖. Pronto fazia isso. Você entendeu? Ai a gente aprendeu isso na prática.

A gente começou a ver. ―Não. Tem que rezar o terço‖. Nós não podemos

porque é a fé do povo. A gente fazia reunião na casa do povo. E eu lembro do

seu Luis, rapaz, lá no Sacomã, antes de vim pra cá nos prédinhos lá no

Sacomã. Que quando veio o anel viário, foi na época do Maluf. E o Maluf

queria despejar todo mundo. Mandou dar não sei quanto. Parece que era 1000

reais. Pra mandar embora. Mandamos as assistentes social tudo. ―Vai embora,

vai embora daqui. Pode sair tudinho daqui. Não quero ver mais vocês aqui não.

―Nós queremos vocês aqui pra dizer quando que vocês vão vim aqui pra

conversar serio com nós‖. Ai nós fizemos manifestação. Paramos a Anchieta

14 km pra chamar a atenção da mídia ai o Maluf teve que mandar negociar

com nós. Ai os prédinhos tá tudo perto de São Caetano hoje. Essas famílias

iam pra longe... Lá pro fundo da zona leste. Longe pra caramba que ia construir

lá. Depois de muita luta, por que na verdade o primeiro momento era mandado

pro nordeste. Esses 1000, 12000, pra mandar pro nordeste. Ai apareceu esse

terreno lá no fundo da zona leste, longe pra caramba. Agora o povo aqui. Não

tenho nada contra a zona leste, não é isso. É o povo que tá aqui, tem os filhos

estudando aqui, que trabalha aqui perto, sabe? Não pode ser assim.

Entendeu? Ai conseguimos fazer aqui o Singapura. Pronto Singapura foi

construído pra tirar as família de lá.

E o seu Luis, a gente chegava lá com o seminarista. Hoje ele é padre. É

o Cícero. Ele tá no interior de São Paulo. Nessa época ele era seminarista. Foi

fazer reunião lá e ele começou a falar depois... ―É que isso é idolatria‖. Que não

sei o quê e tal. A parte da idolatria da igreja e tudo. Ai ele olhou pra nós, olhou

pra mim e falou: João _ ele já falava diretor comigo, sabe?_ João a minha casa

tá aberta pra todo o tipo de reunião que você quiser fazer na minha casa.

Agora pra falar mal do meu padim padre Cícero não, viu? Nós olhou pra

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estante tava lá o padre Cícero lá. Você tá vendo. Então, a fé do povo não se

brinca. Não se brinca. O que a gente tem que fazer é que o povo tenha um

pouquinho de fé nele. Sabe? Que ele pode ser o transformador do seu bairro.

Ele pode ser o transformador da sua rua. Que o santo. O padre Cícero vai

adorar. É isso que nós temos que fazer. Cruzar essa coisa, sabe? Dá vida

mesmo.

Eu vejo a ação de Deus nas conquistas. Não existe conquista sem Deus

tá com nós. Deus tá presente com nós nas conquistas, nas vitorias,sabe? Nos

momentos que a gente tá meio... Né? Por que a gente também ás vezes leva

derrotas. As derrotas são passageiras, sabe? As derrotas servem como um

estímulo para que a gente aprenda mais. ―Olha já fizemos assim, não era

assim era pra nós ter feito de outro jeito‖. Buscar outras saídas,né? Então, ás

vezes, a gente fala derrotas. Eu falo aprendizado. Aprendizado. Tivemos maior

aprendizado. A gente foi lá bateu, batemos firme. Então batemos errado. O

problema tá em nós também. Tá entendendo? E é tão difícil quando você faz

uma avaliação de uma determinada ação que a gente discutiu na diretoria e

que a gente foi naquele rumo e que não deu certo. A gente vê o culpado no

outro. Ai mete o pau no governo.Ué! E nós. E nós. Se nós tivesse uma

habilidade maior nós tinha conseguido. Mas, é o Maluf á não sei o que? O

Janio. Eu digo: ―Não. Nós também...‖. Mas, isso é hoje. Naquela época eu

também era do mesmo jeito. Sabe? Aqui vamos aqui e pá. Tudo bem tava ali

tudinho, mas não dava certo. Mas não dava certo quando a gente via que não

dava certo. Ai como tinha que fazer? Hoje eu discuto muito isso. Tem o

movimento de mobilização. Que a gente discutiu muito isso. É o movimento de

massa e o movimento de base. Não é? E ai a gente começa a perceber que se

a gente quer que o nosso movimento ele nunca acabe. A gente tem que

priorizar a base por que é formação. Como eu tive. Eu passei a mesma coisa

que outros passam. E que seja mais rápido do que eu. Porque com tudo isso a

gente foi curral eleitoral da esquerda. É uma tristeza. Mas a gente tem que falar

isso. Porque da direita a gente não precisa falar de ter curral. Agora da

esquerda é duro. Você sabe do que eu to falando, né? Da esquerda é duro é

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pesado. Aqui a gente passou por todo esse momento. Também foi

aprendizado. A gente demorou pra aprender. Eu não gostaria que daqui pra

frente essa gente nova que tá entrando no movimento que passasse por isso.

Não tem cabimento. Tem que ter uma formação para que eles se sintam e

saiba da história. Eles vão ser sujeitos da história. Não tem que vim aqui um,

deputado pra falar o que nós vamos fazer não. O deputado tem vim aqui pra

nos apoiar naquilo que nós vamos fazer. Ou seja, o parlamento. A sociedade

civil não pode tá a serviço do parlamento. É o contrário. O parlamento tem que

tá a serviço da sociedade civil. Porque até a sociedade civil colocou lá. Elegeu

todos. To falando no geral, sabe? Presidente, deputado. Tudo. Prefeito,

governador. Deputado federal, deputado estadual, prefeito, os governadores,

né? Então, eles que tem que tá a serviço da comunidade. E aqui no nosso país

é o contrário. Né? Tem dono de cidade que é político. É verdade isso. E por

isso que não muda isso. Porque a sociedade não se apossa do seu poder que

tem, né? Porque a gente ás vezes tem um poder tão grande na mão e a gente

ás vezes se esquece disso, sabe? Esse poder é um poder que eu digo

coletivamente, né? Se a gente fosse mais junto. Então, hoje com tudo isso que

eu to passando pra você, que eu to pincelando assim as coisas passando

muito rápido como a gente morava, a formação e na formação que a gente

acredita daqui pra frente. É que é o sonho da gente hoje. É na verdade, com

toda a aliança que a gente tem hoje, com parlamentar, o Mercadante é amigo

da gente. Tem o Suplicy que é amigo da gente. O presidente Lula. Tem

comunidades no Brasil que ele ainda não foi. Aqui ele veio duas vezes. No

primeiro mandato e no segundo mandato aqui em Heliópolis, né? Tudo bem

que ele viveu aqui perto e tal. E ele veio aqui e falou da vida dele. Ele tava com

o papel na mão. No primeiro turno quando ele veio pra cá. O Gilberto Gil era

ministro da cultura. Lançou aqui o ponto de cultura. Só que ele fez a

inauguração aqui de toda São Paulo. E o Gil chegou depois. Atrasou o avião

que ele veio. Marinho que era ministro da previdência que hoje é prefeito de

São Bernardo. Ai veio aqui a policia Federal. O exercito. Até ai tudo bem.

Que eu sei que é o presidente da Republica. Olharam a quadra aqui. Ai o

pessoal do cerimonial falou assim: ―Olha, João, só vai falar ministro, senadores,

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ministro e o presidente‖. Ai eu falei: É. Ele falou: É. E a comunidade não vai

falar não? Eles falaram. Não. Eu falei. Não pode. Não pode. Aqui nunca veio

um presidente da República quando vem a comunidade não vai dar ao menos

uma recepção ao presidente da Republica. Por quê? Você tá querendo falar?

Não. Eu sou o presidente da UNAS, mas a UNAS vai discutir quem vai falar. A

comunidade é que tem que falar. Eu não to pedindo pra mim, não, mas... ―Não.

Não dá. Você quer quebrar uma coisa que é em todo o lugar no país, aonde ele

vai é assim. Eu falei: Então vocês pega ele e leva pra casa de vocês. Leva pra

casa de vocês‖. Tava lá o coronel cheio de coisa lá (se referindo as medalhas

nos ombros do coronel). Ai ele chega e fala: Ele é sempre nervoso assim. Não.

Ele não tá nervoso não. Ele tá tranqüilo. Ele não tá nervoso ele tá tranqüilo.

Falaram assim. Ai ele foi lá e falou: Então, João. Você ganhou. Seu João. O

senhor ganhou. O senhor vai ter dois minutos pra falar, tá bom? Ah! Tá bom.

Eu não to brigando pra falar não. Eu vou discutir quem vai falar. Por que eu

pensei assim. Na hora que eu tiver com o microfone na mão do lado do Lula

ninguém vai tomar, né? Tá ótimo. Vamo brigar pelo tempo? Ai seria muito

pequeno brigar pelo tempo, né? Quando Lula chegou aqui na frente tinha mais

gente que dentro da quadra. Entrou 300. Aqui cabem 800. Eles fizeram um

pente fino muito grande. Teve deputado que não entrou. Que não entrou. E

tava aquela correria. O Lula chegou no meu ouvido e falou: Oh João, porque é

que lá fora tem mais gente que aqui dentro. Por que essa atividade não tá

sendo lá fora. Eu falei: Por causa do seu pessoal. Ele falou: Meu pessoal? Seu

pessoal do cerimonial. Seu pessoal que falou que tinha que ser aqui. E falei

mais ainda. Não queria que a comunidade falasse. Ai eu falei que levasse você

lá pra casa deles. Ele olhou pra mim e falou: Você falou? Ele riu pra [...] Lula riu

pra [...]. Riu rapaz. ―Você falou?‖ Falei. Que pegasse você e levasse. Ai eles

deram dois minutos pra falar. Ai o primeiro a falar fui eu. Ai, falei com o pessoal

e o pessoal falou não, imagina João. Ai o primeiro a falar foi eu. Ai, falei da

importância. Hoje é um dia diferente e esse dia vai ficar marcado pro resto da

vida da comunidade. Ai responsabilizei a presidência também. Por que falar

disso é também falar que tu é responsável pelo desenvolvimento daqui. Lógico.

Ai pega o documento você entrega pra ele. Você vai ficar do lado dele. Sabe?

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Ele ficou aqui em baixo da quadra e ficou mesmo. Sentou sofá. Peguei o sofá

da minha casa. O Lula sentou no sofá. Precisava do sofá, precisava do negócio

de café. E Rui Otávio foi chamar o Geraldo, esse do [...] Pra você vê o Geraldo

na vida da gente. Chamou o Geraldo, tem que ter um garçom. Não Geraldo

tem que tá com a roupa branca. Ele falou: Não. Geraldo vai servir o presidente

do jeito que ele me serve lá no bar. Geraldo veio com a roupinha dele ficou lá.

Ah! Rapá. E Lula ficou lá conversando. Com o charutinho dele. Ele tem um

charutinho; né? Tiramos uma foto. Tem lá na minha casa. O Mercadante, a

Regina. Regina trabalha aqui com a gente uma vida. Esposa dele. E o Lula, o

Brás, eu a Genésia. A gente tirou mais foto. Ai falou isso. ―Lá fora tem mais

gente. Não entendo isso‖. Eu falei: Pois é, é porque o teu pessoal não quis.

Inclusive não queria nem que a comunidade falasse ai eu falei pra levar você

pra casa deles. Na segunda vez já foi aqui na rua. Palanque bonito tudo. Ai

colocaram o exercito, sabe? Ai por cima ai. Nas lajes. O povo aqui na rua. Mas

de três mil pessoas. Você tá vendo. E a gente não mobilizou por que se fosse

colocar [...] E Vigi Maria. Ia dá gente Não cabia. Pra chegar a isso foi muita

luta. Mas, quem não luta é cachorro morto. Ele tá morto mesmo. (risadas)

Os grileiros foi parte da minha formação também. E com a igreja aqui e

tudo. Tinha um pessoal que se dizia dono. Ele dizia que pegava parte do

Ipiranga, São Bernardo, parece que até perto de Santos se eu não me engano.

Era da família Penteado o nome deles. Fizeram documentação falsificada.

Conseguiram parar a construção do hospital Heliópolis por quase três anos na

justiça. Foi que descobriu que era tudo falsificado. Os caras eram valentes. Ai

começaram a vender aqui tudo. Ai a gente ficou indignado com isso. Que a

gente achava que tinha que fazer a ocupação direito. Só aqui nesta Rua:

União passamos três meses pra ocupar essa área. Mas três meses em

organização ai o pessoal já chegou com as madeira tudo já tava tudo certinho

pra fazer e deixar a rua entendeu? Nós não queria criar favela. A gente nunca

foi a favor de criar favelas. Não. Quem foi a favor, foram os governos. Não

fomos nós. Os governos que sempre foram a favor, por que nunca teve política

habitacional. Agora tá tendo um milhão de casa e tudo. Nunca tinha isso antes.

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Então quem criou a favela? Foi os governantes. Não era o povo. Mas mesmo

assim nós fizemos ocupação, mas ocupação no barracão só e tudo. Então os

grileiros foi uma passagem assim na vida da gente, sabe? Acho que foi o

primeiro momento de confronto que a gente teve assim, foi com os grileiros.

Por que eles se diziam donos e eles queriam que o povo fizesse o que eles

queriam. E ai vieram até a gente aqui. Já tinha batido num advogado que veio

aqui fazer o trabalho com o povo. Ele foi embora e nunca mais voltou. Ai eles

pensou que nós era igual. Nós não era igual, nós era diferente. Nós tamos aqui

até hoje. Eles foram embora. Alguns morreram porque se envolviam com o

tráfico. Outros saíram e sumiram. E assim por diante, mas foi um momento

muito difícil. Até porque o povo daquele tempo não tinha confiança na luta, não

acreditava. Eles amedrontavam o povo. Porque eles tinha os caras do lado

deles, né? Os caras que eu vi, o povo da máfia mesmo sabe? Que tava do lado

deles tudo. Não tava do nosso lado. E ai na hora difícil é a família mesmo. Por

que no confronto foi minha mulher, meu irmão que entrou na paulada. E teve

porrada e tudo ai. Foi difícil. Ameaçaram de tocar fogo no barraco. Ai vinha

gente ficava com nós. Mas trabalhador, pessoas, entendeu? Falava que iam

me pegar. Que eu trabalhava a noite. Chegava duas horas da manhã. Ai é o

horário, né? Ai duas e meia da manhã na Estrada das Lágrimas deixava o

ônibus. Pra não descer sozinho o pessoal subia. Três, quatro, pra lá. Todo

dia. Pra me proteger. ―Não vai matar o João, não. Se matar o João nós mete

bala também‖. E tudo gente que tava na ocupação, famílias que tava pagando

aluguel, pessoas que queria uma vida entendiam. Mas quem já tava aqui não

entendia. Porque tinha medo. Já tava com medo dos caras, né? Então foi a

primeira situação. Foi até o Dr. Jairo Fonseca que nos defendeu. Famoso

advogado criminalista. Dos direitos humanos. Do COR. E ai ele começou

também a participar com a gente na luta e tal. O COR é o Centro Oscar

Romero. Ele que fez a defesa da gente. Eu fui absolvido lá na justiça e eles

foram condenados, né? Mas, não ficaram presos não. Como é que se fala?

Aquele negócio de batucar depois das dez horas da noite e não pode ter

confusão. Ai aquietou mais um pouco. Mas, foi difícil. Foi um momento

difícil. Teve sangue nessa terra aqui. Correu sangue aqui pra que a gente

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conseguisse o que a gente tem hoje. Acho que isso faz parte também. Teve

uma parte passamos a sentir nessa luta toda corporal que na verdade o que

tava em jogo não era a briga pessoal. Não era pessoal. Era uma luta coletiva

política, né? No sentido de dizer: Olha aqui quem manda somos nós vocês tão

fora. Isso aqui é do povo, sabe? Tem que fazer um projeto. Esse 1 milhão de

metro quadrado tem que ser do povo, né? Na verdade nós tava fazendo o

papel de governo sério... É duro.

Teve uma pessoa que veio aqui conversar comigo que também tava

fazendo um trabalho pra faculdade, tá. E o trabalho dela era de psicologia. O

trabalho dela era no seguinte sentido. A pessoa nasce assim ou...? Porque a

igreja pra mim teve um papel importante. Essa pessoa começou a perguntar

pra mim como é que era o meu pai minha mãe. E minha mãe era da

Assembléia de Deus. E não podia ter televisão. Mas a minha mãe tinha. O

pastor foi lá e falou: ―Eu vou te cortar da igreja. Ela falou: ―O senhor vai me

cortar da igreja, mas de Deus não‖. Então, acho que já tinha uma coisa na

família sabe? Mesmo sendo evangélica e tudo ela não perdia um jornal, rapaz.

Era só o jornal. Por que novela ela não gostava mesmo. E tava certa, né? Por

que novela não... Mas o jornal ela não perdia o jornal. Pra assistir o jornal. Ela

falou assim: ―Eu vou sempre na igreja. Eu não vou à igreja pra ficar assistindo

televisão não. Mas o meu jornal ninguém vai tirar não‖. Falou pro pastor da

igreja. ―Eu vou continuar assistindo‖. Então acho que minha mãe era muito

lutadora. Uma mulher que lutou muito, sabe? Na vida. Ficou viúva, como eu

falei com você. Eu com nove anos. Foi trabalhar com família e tudo. E... Nossa.

Ela sofreu, né? E guerreira. Uma pessoa que ninguém pisava fácil no calo dela

não. Ela chegava e dizia: ―Opa! Perai. É assim, assim‖. Então acho que devo

ter puxado um pouco dela. Meu pai. Eu não tenho muita lembrança não, mas

ele tomava sua pinguinha, bebia pra caramba. Mas, tinha o negócio dele e

tudo. Meu pai era contra imposto. Disso eu lembro. Ele falava que não ia

pagar imposto pra vagabundo não. Que o dinheiro dele não era pra vagabundo.

Ele entendia a prefeitura como um monte de vagabundo. Dinheiro dele ele

não pagava. Não pagava. Era radicalmente contra. Acho que ele já defendia o

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anarquismo sem saber, né? O meu pai, é... Mas bebia, sabe? Então, minha

mãe. Ai eu falei pra ela (pesquisadora) pode ser que tive assim um pouquinho

disso no sangue. Não sei se é isso. Mas, na minha cabeça mesmo, veio da

igreja. Veio quando eu vim morar aqui. Como eu falo quando vim me sentir

gente e tudo. Porque antes eu era assim... Eu servia o exército. Sabe? O meu

maior sonho era ter dez filhos e todos chegar em casa e eu ver todos de verde.

Com a farda do exercito. Olha que patriotismo, né? Que honra, sabe? Eu

metia o pau nos comunista. Comunista comia fígado de menino.(risadas) No

meu tempo 75. Miguel Arraés era um comunista que não podia... Você tá

entendendo? Era o exercito que fazia isso. Lavagem cerebral contra os

comunistas.

Ai chegando aqui eu comecei por causa da necessidade. Ai entra a

necessidade de limpar, de ajeitar. Da luz, da água. Sair do aluguel pra mim já

foi uma puta vitória. Pagava aluguel. Eu falava assim: ―Eu to num barraquinho,

mas to naquilo que é meu‖. Você não imagina sabe? A coisa assim sabe?

Nossa! Foi o dia mais importante da minha vida quando eu mudei da casa de

aluguel pra meu barraco. Sabe? E hoje eu digo que não foi só aquele dia. Foi

todo um momento de formação de vida que eu tive aqui dentro no Heliópolis.

Isso foi de um jeito que não tem preço que pague. Essas coisas não existem

não. Pelo contrario. Eu tenho que fazer muito ainda, né? Por todo aprendizado

que eu tive. Um privilégio. Com todo esse sofrimento. Por que foi muito

sofrimento. Não foi fácil, não. Não foi dado nada de graça. Tudo sempre com

muita luta, luta, luta. Mesmo tando na constituição do nosso país ter esse

direito, mas a gente teve que lutar, teve que levar nome, teve que ter processo

e tudo. E os direitos ter dentro da constituição, sabe? Quer dizer, a gente tava

lutando pra cumprir a constituição, sabe? Que tinha. Toda nossa luta era pra

isso. Pelos direito humanos. Como é que o cara pode ser preso se defende os

direitos humanos. Quem tem que ser preso é quem não defende os direitos

humanos do nosso país é que tem que ser preso. Ou pelo menos, né? É o

contrário as coisas. Quem defende a vida. Não pode. Não pode mexer com

povo que defende a vida. Que defende a paz. Mas tem que ter direitos

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humanos. Tem que ter a justiça que funciona. Uma justiça que seja voltada e ai

não digo passar a mão na cabeça do pobre. Se ele errar eu digo: ―Não ele tem

que pagar pelo erro dele‖. Não é pagar do jeito que se paga hoje, né? Que não

se paga. Não é? Olha a situação dos presídios no Brasil inteiro. A situação...

Sabe? Agora estão aumentando o número de mulheres...

Eu conheci pastores de luta, sabe? Deus não manda nada. Não tá

escrito em lugar nenhum que Deus manda do céu pra nós. Deus fala: ―Farei

por onde que eu te ajudarei‖. Então, as pessoas têm que se organizar os filhos

de Deus. E ai Deus tá presente. Caso contrário ele não vai tá mesmo por que

se fosse eu também não tava. Sabe? Então é esse o Deus. É esse o Brasil que

a gente quer e os governos independente do partido de direita e esquerda e

centro direita e centro esquerda, e não seu o que lá do diabo que foi, sabe?

Independente disso eles têm que amar o Brasil. Tem que querer o melhor pro

país. Por que querendo melhor pro país tão querendo o melhor prá eles

também. Tão querendo o melhor pra classe política toda. Não dá mais pra

gente ver dinheiro entrando na cueca, entrando nas meias. Quer dizer não tem

mais cabimento. Não dá mais pra isso.

Tinha vários pastores na luta. O pastor Carlos é um, pastor Wilson é

outro. Ação deles era, por exemplo, abrir a igreja pra nós fazer reunião para a

comunidade mais próxima. Pra nós não ter que trazer aqui pra quadra. Que o

povo já não gosta de reunião. Chega do serviço cansado. Ai nós pedia a igreja

que, por exemplo, tava mais na beira do córrego. Pr. Wilson falava: ―João tá ai

a igreja. Pode fazer ai a reunião‖. Muitas das vezes ele participava. Sabia de

tudo que tava acontecendo. Teve um culto lá que a gente teve uma freira de

hábito. Ah a Mércia. Você conheceu a Mércia. A Mércia foi falar lá no culto de

hábito. E ele deu a palavra a ela. Quer dizer... Umas coisas que teve aqui,

sabe? Frei Sérgio foi lá na dona Odete. Tem um terreiro de Umbanda. E

Cosme e Damião é uma festa mais bonita, né? Docinho pras crianças e tudo e

baixa o Cosme e Damião neles. Que vira criancinhas e fica ali. O frei Sergio

foi lá de hábito e entrou no terreiro. E conversou com eles, sabe? Entrou

naquele ato de que as religiões têm que tá tudo juntas. Você entendeu? A

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demonstração disso. Significado de uma freira entrar no culto evangélico e ter o

microfone e falar de Deus. De hábito! Um padre entrar no centro de Umbanda

da dona Odete. Aqui na travessa união. Quer dizer essas coisas aconteceram

aqui, né? Que é bonito, né? Quantos países a gente vê que parece que já

nasceram em guerra de religiões, né? E sabendo que cada um tem as suas

religiões. Acho que democracia é isso. Cada um ter a crença que queira ter e

tudo. O que não pode e ai as pessoas tem que respeitar é as pessoas viverem

sem viver. Ou viver através da luta do outro. Sabe? Ter sempre aquele pra lutar

pela luta do outro. Acho que se todo mundo lutasse seria melhor. É isso que a

gente busca. Mas isso com carinho, com jeitinho. Dizer: ―olha, tu tá devendo a

tua parte aqui também‖. Senão vira paternalismo, clientelismo. Todo o

movimento tem isso. Todas as pessoas têm isso, todo o ser humano tem um

pouco de paternalismo. Nós temos um pouco de paternalismo dentro da gente.

Esses vícios tá em cada ser humano. O que é necessário é que a gente se

policie um pouco. Que a gente fique de olho nisso. Que tente controlar um

pouco isso senão você vira alguma coisa que não vai a lugar nenhum. Quer

dizer ás vezes tem que ser isso mesmo, sabe? Por exemplo, não adianta dá a

vara pro cara pescar se o cara tá com fome mesmo. O cara vai morrer de fome

e não vai pescar. Enche a barriga dele, mas há um limite. Já dá comida pra ele,

mas ―aqui tá a vara, agora você vai lá...‖ Não é assim? Agora se você só dá a

vara e não dá outra coisa o cara [...] até chegar o peixe tudinho. Pode morrer e

tudo. Então tem essa coisa também.

Era tempo da ditadura. E acontecia que eu era agitador. A palavra era

agitador. ―Agitador, tu vai terminar morrendo porque nós vomo colocar droga no

seu bolso, nós vamo trazer você pra cá nós vamos dar uma...‖ Era desse jeito

comigo. Eu falava: ―Não, mas nunca falei mal de vocês. Sabe? A gente tá lá

lutando lá porque precisa de luz lá, é bom pra vocês entrar lá também. Não tem

a rua. Tem que abrir a rua. Pra viatura entrar‖. Eles diziam: ―Nada. Você tá

agitando ai e tudo. Cala a boca rapaz‖. Andei levando umas porradazinhas de

vez em quando, mas fazer o quê? A ditadura. Eu não participei do movimento

da ditadura eu venho depois. Mas nessa época a gente já tava, em 76. Já tava

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na transição pode-se dizer, né? Tava tendo aquele momento. Já tinha vindo

uns presos políticos. Já tinha voltado. Pronto, eu venho depois do movimento

da caristia. Lembra? Contra a caristia. Panela lá. Pronto. Eu venho depois

daquilo lá. Daquele grande movimento. Daquele grande chamativo. Eu venho

depois daquilo. Na Hevered a gente começou a se organizar. A Hevered lá

quando a gente conheceu a pastoral e os sindicalista e tudo. Então tinha um

cara que trouxe nós se reunir na igreja da Vila Arapuá. Nossa senhora

Aparecida lá. E lá o padre Celso muito bom. Muito bom! Muito bom! Bom!

Bom! Padre bom. Ai ele abria a igreja lá. Antes de nós entrar na Hevered ai nós

se encontrava lá. Ai quem que vinha. Quer dizer. Veio a comissão de fábrica da

Volkswagen. O pessoal da Cipa da Volkswagen explicar pra gente a

importância da gente entrar pra ser cipeiro. Qual era o objetivo de cipeiro pra

os companheiros da fábrica. Cipeiro é o companheiro que é eleito dentro da

fábrica. Que ele tem estabilidade. Se eu não me engano acho que o mandato

era dois ano, ou era um ano. Mas parece que mudaram depois pra dois anos.

Quando eu tava trabalhando, mas parece que mudou depois. Dois anos. Pra

ver toda a segurança dos trabalhadores. Ele é representante pra ver é luva.

Tudo que é necessário. Capacete. Dependendo do lugar do trabalho... Pronto.

A CIPA é não sei o que de prevenção de acidentes. Ai tem uma estrelinha

assim. Que era verde com um negócio assim que era contra acidente e tudo.

Representante de quem? Dos trabalhadores. Nós elegia. Então nós começou a

entender que o movimento era importante. As greves. Não adianta você fazer

uma. Greve é pra exigir, naquela época né? Pra ter um aumento se, por

exemplo, o estoque lá está cheio de mercadoria pra vender. Ninguém vai ligar

pra nada. Tem mercadoria pra vender. ―Deixa eles ai‖, né? ―Eles vão ficar

sem salário‖. O momento da greve, sabe? É o momento de trabalho e outras

coisa mais que a gente sabe, né? Que a gente foi se organizando e tudo. E o

objetivo da gente lá era salubridade. Porque trabalhar com pilha. O pó da

pilha. Aquilo é uma química que mata, né? Pode ver que pilha é uma das

coisas mais perigosas que tem. Essa pilha de rádio e tudo. Então, acho

que foi um momento importante na vida da gente entender essa luta sindical.

Os trabalhares em condição de vida também, condições melhor de trabalho

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também. Acho que a gente teve um aprendizado. Eu trabalhava com uma

maquina que eu era um dos melhores. Trabalhava com um encarregado que

eles só chamava de [...] Só palavrão. A turma. E o apelido dele era bigode. O

bigode dele era bem fechado. Comigo, eu fui trabalhar com ele, esse cara

nunca me xingou. Pelo contrário, quando tinha problema na máquina ele me

chamava e falava: Você é igual Pelé. Quando você não tá aqui. Esse mecânico

ai vai passar a vida inteira nisso ai. Doidinho. Passava a mão na cabeça e saia.

Entendeu? Mas na hora que precisou eu falar da greve ele me chamou no

canto lá e falou o seguinte: Olha, você tá na greve ai também? Eu falei: To, não

vim eu fiquei com os companheiros‖. ―Você não precisava disso. Você é uma

pessoa imprescindível aqui comigo. Uma pessoa que é da minha confiança. Tá

precisando de aumento? Por que você não falou comigo? Eu falei: ―Por que

não é eu. Eu já ganho mais um pouquinho. Os outros que já tão aqui há cinco

anos de ajudante geral. Sabe? Essas pessoas precisam mais do que eu. Têm

família também. Sabe? Eu não pago nem aluguel que to morando na favela.

Tem gente aqui que paga aluguel e que não pode comprar um barraquinho na

favela por que não têm dinheiro, não sobra. Não vai comprar lá por que não

pode. Né? Então essas pessoas‖. Ele falou: ―É você desse jeito ai. Então é

uma pena. É uma pena‖. Depois de 15 dias me mandaram embora. Nem um

aviso breve eu trabalhei. Eu vou pagar. Pagou o aviso em casa, cara, pra não

trabalhar mais lá. Fiquei na listra negra também. Já tinha a associação, mas

não era bom por que ele era paternalista, clientelista. João o movimento dele

era o quê? Bem, na política assim quando tinha eleição. Isso é normal, é um

momento de cidadania. Todo mundo tem que ver os candidatos pra votar e

tudo. Mas era entrega de cesta básica. Essas coisas. Ai depois a gente

começou. Ele era oposição a nós. A gente entrou e ele sempre... Ele era do

PMDB, mas ajudou na campanha do Maluf e tal. Entendeu? Buscava e

pensava nele tudo. Mas também ajudava a comunidade. O pessoal chama de

João Prefeito por causa disso, né? Tinha cesta básica, remédio, essas coisas.

Ajudava o pessoal nisso. Não sou contra isso. Naquela época o povo tinha que

tá se organizando. Tinha que ter isso, mas ter mais sabe? Quero saber que eu

falo da cabeça. É que a gente nasce com isso. Com a pastoral do Deus vivo ai

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já é diferente. Era na luta. Ai começou a ter confronto com ele e tal ai chega

um dia que ele se formou cara. E ele chamou eu e a Genésia pra ser padrinho

dele. Nossa! E ele chegou no bar pra mim e falou: ―João, eu quero que vocês

vão lá na minha formatura pra ser padrinhos da minha formatura porque o que

eu sofri esse tempo, eu estudando e tem um professor lá de história. E esse

professor começou a falar da luta. Eu era contra vocês. Eu tava sendo contra o

meu povo‖. – Olha, que entendimento! – ―Tem dia que eu não consigo dormir,

João. Eu ficava em casa, sabe? A cabeça doendo. Que eu fiz com vocês?

Vocês na rua defendendo o povo e eu defendendo o safado do Maluf, defendo

o outro, contra vocês‖. E ele entendeu tudo isso no estudo. Você tá vendo?

Quando pega um professor bom, né? Que é outra coisa da educação também,

né? Tem pessoas, tem professores que são de uma grandeza. Esse professor

dele que eu não sei quem é que Deus o tenha e que, né? Até uma

homenagem que eu to fazendo do João, né? Ele falou do professor de história

e outro professor lá que eu não me lembro qual era a matéria. Que falava tanto

da luta. Que falava como tinha que conquistar as coisas se não fosse assim

não conquistava tal. E ele falou que tudo o que falava era o que nós fazia. Ai

ele falou: ― Vai vocês dois‖. Eu fico muito feliz com isso. Hoje é diretor da UNAS

tá ai, sabe? Todo cheio de vontade. E tem uma história. No Heliópolis ele tem

uma história. Quando eu vim pra Heliópolis. Eu ia morar no barraco, no terreno

dele lá. Ai não deu certo a compra do terreno. Ai eu voltei e tal. Também o cara

pediu muito. Ai eu voltei comprei o barraquinho aqui na ponta. Ai ele ficou lá na

ponta e eu aqui. É, começou assim...

O que aconteceu em 93 foi um absurdo, né? Foi um absurdo por parte

do governo, por parte da justiça porque o povo que tava lá foi a própria

prefeitura que colocou. Como é que a prefeitura coloca e depois vem com uma

ordem de despejo contra o próprio povo. Quer dizer. Não tem cabimento isso

ai. E o povo já morava mal lá, né? Tinha os prédinhos. É lógico quando coloca

200 famílias, e se fica algum terreno tem mais um barraquinho, ter mais outro

barraquinho, ter mais outro barraquinho. Que não passou de 300 se eu não me

engano. É tanto que 200 foi a própria prefeitura que tirou de outro lugar e

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colocou lá. É tanto que em 93 que teve esse confronto e tudo. Pode ver que os

esqueletos dos prédios tava tudo vazio. Hoje não, tá tudo cheio os prédios.

Pode passar lá que você vê o povo mesmo fez os apartamentozinhos do jeito

deles. Naquela época não. É tanto que você vê a policia subindo no prédio. Tá

no vídeo e tudo. Eles subindo no prédio lá. Se colocando no prédio lá... Os

atiradores da policia. Por que de lá fica em cima dos barracos, né? Eles tavam

vazios esses prédios. É tanto que esse povo acreditava que iam morar lá. E

que esses prédios era pra eles. Nem ocupava os prédios, entendeu? Então

acharam por bem uma ação de despejo, a juíza deu ordem ação de despejo

para tirar o povo de lá. Ai nós tava organizado. O povo achou que tinha que

resistir. E a gente também achou que tinha que não dava pra fazer isso. Vai pra

onde? Esse povo ia pra onde. Não tinha pra onde ir. Falava que ia pra

alojamento, não sei pra onde. Não tinha lugar. Não tinha. E ai teve todo o

trabalho e ai a gente ficou junto com o povo. Não tem como, sabe? Esse é a

questão. Essa questão ser líder comunitário é bom, mas tem que ter coragem

um pouquinho, sabe? E essa coragem não sei quem dá pra nós. Acho que é

Deus. No meu entender. É o Deus vivo. É o Deus no meio de nós que dá

sabedoria nos momentos, né? Que eu chegava: ―Mas como é que pode. Aqui

tem criança não pode ser jogado. Não é lixo‖. Olha essa frase que eu vejo hoje.

Eu digo: ―Mas, como é que eu falei aquilo?‖. Naquela época, né. ―Aqui tem

criança morando não pode ser jogado, não é lixo‖. Né?. O coronel lá pra falar.

Eu chamei o coronel pra falar na assembléia geral. Olha que sabedoria.

Chamar o cara pra o cara falar com o povo. A assembléia geral lá e o cara lá.

O coronel que tava comandando a policia de Choque e tudo. Sabe? Olha que

coisa. Não sei como é que aconteceu aquilo. Mas que aconteceu. Aconteceu.

Então, eu acho que ali tava Deus. Tava. Não tinha como ali não tá a justiça do

nosso lado. Deus pra mim é justiça. Falo em Deus pra mim é democracia. Deus

pra mim é abundancia de comida pro povo. Deus pra mim é esse. Sabe? É o

Deus que representa tudo isso. Não é? E naquele momento Deus tava com

nós. Deus tava com nós. Porque foi um momento que a gente via pessoas

chorando. As velhinhas que não sabia pra onde ir. Aposentada que não...

Cortava o coração, rapaz. E o pior é que a gente perde um pouco do controle.

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Você é ser humano então dá aquela coisa de raiva. Tanta gente ai pra ser

preso e esse povo aqui pra tirar um povo que mora. Como que pode, né? Ai

começa dar aquela revolta, aquela revolta. Eu sempre digo pro povo: ―A gente

tem que controlar a nossa revolta mais nunca deve deixar de ter revolta. Sabe?

Porque na hora que o médico deixar de ter revolta de ver o corredor do hospital

de onde ele trabalha cheio de gente morrendo de dor, na hora que ele se

acostumar com aquilo nós tudo. Pronto! Nós tamo ferrado‖. Então, não pode se

acostumar. Não pode. Essa palavra não pode existir pra nós. Pelo contrario,

tem que ter revolta porque isso faz com que a gente pense que não é assim,

pode ser diferente. Que tem lugar que é diferente, por que aqui é assim? Você

entendeu? Não é verdade? Tem lugar que é diferente. Tudo bem, às vezes, eu

faço a discussão que tem gente que vem dos estados unidos aqui, gente de

outros países aqui. E eu falo com algumas pessoas sempre no final assim.

Vocês sabem por que tem primeiro mundo? Vocês são do primeiro mundo. Ai

eu falo: É porque tem segundo, terceiro, tem quarto e tá indo pro quinto. Por

isso que tem primeiro, viu?‖. Por que as pessoas que vem, coitados, são

aquelas que tem visão das coisas, né? Porque aqueles grandes mesmo que

luta pra continuar no primeiro e massacrar os outros não vêm aqui, né? Mas é

bom eles levar pra lá pra saber que nós pensa assim, né? É por isso. Porque

tem o segundo , tem o terceiro, tem o quarto. Senão não tinha primeiro, sabe?

E ai a gente viver no mundo, sabe? Que tem a tecnologia que não pode ser

vendida, porque é do ser humano,sabe? Isso tem que ser compartilhado. Tanto

no Brasil quanto nos outros países. Isso era a coisa mais bonita da vida, né?

Dizer, pô, nós tamos vivendo no mundo que tem gente, que tem povo, que tem

filho de Deus, que tem vida, sabe:? Então, não dá pra ser separado o palestino

do outro, sabe? E não é isso, né? Não pode ser isso. Eu acredito nisso.

Eu acredito que eu acho a gente tem que... Não sei quando, por que a gente

não sabe se vai alcançar. Mas eu acredito que os meus netos, meus bisnetos,

quem sabe pode ter uma vida melhor e onde eu tiver eu vou tá feliz, né? Já to

aqui sabendo o que vai acontecer. Olha to virando até profeta. A gente ás

vezes vira até (risadas). É pensar no futuro como vai ser o futuro é duro,né?

Os economistas é bom nisso porque eles já falam quanto é que vai ser, tudo.

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Então nós tem que falar o que a gente quer pro nosso povo também , né? E eu

quero que Heliópolis faça parte da cidade de São Paulo. Por que ainda não faz

parte. Nenhuma periferia faz. Não é só Heliópolis, não. E nossa luta é pra fazer

parte da cidade. Ser reconhecido como cidadão paulistano ou paulista, não sei.

Né? Com direitos e deveres,sabe? Deveres quando nós nasce nós já nasce

com eles,sabe? Agora direitos é duro. Não dá. Não tem cabimento você tem os

bairros, por exemplo, como Morumbi e outros bairros ai, né? Ter uma

qualidade de vida, de um jeito e aqui ser de outro jeito, sabe? Tá entendendo?

Aqui não tem nada. Aqui tem qualidade pra morte, não pra vida, né? A gente

é que tá buscando a vida, tá lutando pra isso. Então, isso é uma desigualdade.

Então, o que nós queremos é fazer parte da cidade como todo mundo. Nós

temos esse direito. Nós merecemos isso. A USP tem que ser pra todo mundo.

A USP não é de todo mundo. E volto a repetir não é culpa da USP não. Eu

estou falando de outra coisa aqui que é muito maior, sabe? Quem mora lá,

nesses bairros não vai para escola pública, vai? Lá tem as escolas que vai.

Arque Diocesano da igreja católica de Roma. Os colégios de igreja são os

colégios mais caros. Uns dos colégios mais caros daqui, né? De São Paulo. Dá

bolsa que é pouco que a igreja devia ver isso também. Né? Se é pra defender

os pobres. Tem coisa que eu vejo que não aceito, sabe? Essas coisas assim

eu fico meio preocupado. Eu fico vendo que, ás vezes, tem muita gente que

tem o discurso e a prática é outra. Não dá pra ser assim. Por isso que na

UNAS a gente fala sobre essa questão do preconceito. A gente tem que

quebrar o preconceito. A gente só deixa um pouco o preconceito quando a

gente trabalha junto com lésbicas, trabalha junto com os gays. Sabe? Aqui na

UNAS tem tudo isso. Tem. E são bons. Não é? (pergunta ao Gil) tem ou não

tem? E ai a gente começa a quebrar quando tá junto, construindo junto. Se nós

não tá junto como é que vou ter o discurso? Não dá. Esse discurso não é um

discurso correto. O correto é a prática de tá junto. Dizer: ―Olha eu to tentando

aprender‖. Ás vezes eu converso com o Gerô. Gerô como é que tu virou viado?

Ele falou: João tu acha que a gente vira isso por que quer? João quem é que

gosta de ser humilhado? João quem é que gosta de apanhar na rua? João

você acha que nós queremos apanhar e ser humilhado na rua, João? João isso

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é uma coisa que a gente já nasceu desse jeito. João tem homens casados que

são gays e que tem medo de assumir, João. Então já nasceu assim. Isso me

deu um negócio em mim. Eu fiquei pensando quando ele falou isso pra mim

que até hoje eu fico pensando nisso. Eu acredito que é assim. Quem que quer

apanhar em troca de um sexo? Não vai querer. Ser humilhado? Não vai, sabe?

E a gente aprende muito com eles. Eles nos ensina, né? Essa coisa, né? Da

liberdade de expressão. Da liberdade do sexo, sabe? Ai a gente começa a

querer ser completo. Porque ninguém é completo. Né? Ninguém é. A gente luta

e trabalha para que essa coisa do preconceito, do machismo, né? É muito forte

dentro da gente. É muito forte.

Teve um momento importante das igrejas tanto católicas como algumas

protestantes também. Junto com o povo, com os trabalhadores e tudo. Teve

um momento importante. A igreja católica apoiou a ditadura, mas já teve uma

parte que resistiu essa ditadura. Tem que saber separar o joio do trigo, sabe?

Nessa discussão também. Não é? Ai eu já to falando dos deuses, sabe? Da

minha forma eu já to falando. Quer dizer aqueles que apoiaram a ditadura. Isso

é o Deus morto. Não é o Deus vivo. Aqueles que resistiram e que tavam na

luta, organizando o povo, mesmo sem poder se reunir. Olha que grandeza

desses padres, das nossas irmãzinhas, das freiras! Em todo o canto desse

país, meu Deus! A CPT, né? Que é a pastoral... CPT é a pastoral da terra.

Pastoral da terra, né? Pastoral da terra se organizando em todo esse país,

sabe? Tudinho., se organizando e falando mesmo contra. Resistindo, né? Não

dá pra negar o, trabalho e a luta dessa igreja, sabe? Que tinha o Deus vivo ali

no meio do povo, sabe? Esse Deus que falava de liberdade. Esse Deus que

falava de democracia, sabe? É lógico que democracia não é só na ditadura pra

mim. Pra mim a gente tá começando o processo democrático. A gente tá

construindo a democracia. Sabe? Por que democracia pra mim, não existe país

democrático com fome e miséria. Pra mim não é democrático. Não é

democrático. A democracia ela não pode tá separada da distribuição de renda.

De uma proposta econômica. De uma proposta política deferente. Ela tá

agregada a tudo isso. A esses valores. Direitos humanos principalmente. Como

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é que vai ter democracia se não se tem respeito pelos direitos humanos? Que

direitos humanos? É abundancia, né? Fome é direitos humanos? Não. Não é

direitos humanos. Eu lembro daquela cantora. Como é o nome dela. Você vai

me ajudar. Que morreu velhinha. A Delci. Aquela que falava palavrão. Derci

Gonçalves. E uma das últimas entrevistas dela o meu neto viu e veio comentar

comigo. Ali foi que eu vi que meu neto tá bom. O mais velho, o Eric. Chegou

pra mim e disse: ―Vô. Eu ontem assisti a entrevista da Derci e ela tá velhinha,

né, vô? Eu falei: Tá. Tá muito velhinha. Ela tava falando palavrão? ―Não. Ela

falou que palavrão é outra coisa. Epa! O cara perguntou: Você é muito tal, não

sei o quê. Como é que se diz. Uma pessoa que é muito polêmica. Ela falou:

Não. Não sou polêmica. Eu falo o que eu sinto. [...] Não corta não. Porque todo

o canto que eu vou falar eles cortam. A mídia corta. [...] não é palavrão. Não

existe o [...] que a agente adora. (risos) ela falou [...] é [...] que sai... Meu neto

falando pra mim. [...] não é palavrão. Puta. Tem cada puta bonita no nosso

país. É puta. Ela é uma puta, sabe? Desse jeito. Isso não é palavrão. Agora

fome, violência, isso é palavrão. Eu fico todo arrepiado quando eu falo isso. O

Eric meu neto falou isso. Que ela falou isso na entrevista. Você acredita nisso?

Ela colocou os palavrões que não são palavrões. Certo? E colocou agora

palavrão o que a gente vê todo dia. Eu vejo todo dia a fome a miséria e a

violência. Isso que é palavrão. Esses são palavrões. Que vocês falam direto.

Ai o cara: ―Não. Não é eu. Não é eu que corto a senhora. Eu não tenho esse

poder. ―Não. Estou dizendo vocês. A mídia ai tudo‖. Olha que cabeça da Derci

Gonçalves. Então, eu fico pensando. O Deus vivo e o deus morto, quando eu

falo é isso. Tem as religiões que pregam que Deus vai dar tudo pra nós. A

gente tem só que rezar e ser fiel. E o ser fiel é você ir pra igreja. É você viver

em harmonia com a família. E pronto. É isso. E pronto. Não brigar com

ninguém e Deus vai dar tudo. Tem um outro lado. Esse pra mim é o deus

morto. Tem um outro lado que é assim: Olha, se você, né? Vai se organizar vai

lutar, e com essa fé. Essa fé que move montanha. Tá escrito lá na Bíblia. Tá lá,

meu Deus do céu! Não sei como esse povo fica cego. Porque tá lá. A fé move

montanhas. Mas, mover montanha está se dizendo move o governo, move ...

Enfim, sabe? É essa montanha que tá ai, né? Que ela tem que ser movida

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mesmo, sabe? Que tem que ser ultrapassada. O que a gente quer é fazer

parte da cidade. Como eu falei com você. O que nós queremos aqui é fazer

parte da cidade de São Paulo. Sabe? Com direito. Mas, da cidade mesmo que

eu to falando. Do Morumbi. Que tem a estrutura que tem lá. Que tem energia

que tem lá pra nós pagar. Porque nós paga igual lá, hoje. Que tenha as escola

técnicas como estamos conquistando. Que aqui tem que ser o bairro educador.

Essa palavra nasceu a cinco anos e tá dentro a três anos, mais ou menos,

quatro , cinco anos. E tá dentro da gente a construção do ―Bairro Educador‖.

Você sabe quando vai terminar? Com certeza eu sei que nunca. Mas, com

certeza eu sei que este povo vai estar sempre em busca desse bairro

educador. Sempre construindo um bairro educador. Sabe? Uma vez eu falei

numa escola e a professora ficou chateada comigo porque eu falei que o

professor ele tinha que dar aula só numa escola. E o resto do tempo dele ele

tinha que se formar. Estudar, estudar e conhecer a comunidade onde ele tá

trabalhando. São valores diferentes, né? O professor vem todo cheio de boa

vontade pra dar aula aqui na favela junto aos favelados. Quando você chega,

você toma um choque. Você vem, pô, eu vou ajudar aquela comunidade. Você

vem com boa intenção. Quando você chega tem aquele choque cultural. De

valores. Primeiro choque. Primeira porrada. Tá. ―Mas, eu vim trazendo todos os

valores meus, entre aspas, ‗meus valores‘ pra cá e eles não tão querendo‖.

Mas, não tão querendo porque tem valores aqui também. A gente tem que

entender quais são os valores aqui. Ai é que tá. Ai teve uma professora que

levantou: ―Pois, eu dou aula em três escolas. E eu não me sinto pra trás. Eu

tenho certeza que as minhas aulas são boas‖. Falou. Ai teve dez que falou e

acabou com ela. Na palestra que tava. (risadas). ―Imagina! ―Ele tá certo a gente

não conhece nem o muro da escola direito que a gente dá aula que dirá a

comunidade‖. Ai o outro falava assim: ―A gente não tem tempo pra se formar. A

gente não consegue avançar. Ele tá certo mesmo. A gente devia ganhar um

salário pra gente não dar aula em três escolas. A gente devia dar aula em uma

escola pra gente se formar‖. Pó, mas que é isso na escola de qualidade. Se

não tiver escola de qualidade vai ter quando? Então a luta era outra do

sindicato,sabe? É pra ter mais escola pro cara trabalhar em mais de três

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escolas. Que ás vezes , eu defendo isso que o sindicato foi a coisa mais bonita

que aconteceu e tudo. Mas se a gente não tiver cuidado com o corporativismo.

Que ai são os vícios que eu falei, paternalismo e corporativismo. A gente vai

achar que é só nós e pronto. Somos o rei da cocada preta os outros que se

danem. Pra que tem professor? Por que existe professor? Porque tem o aluno.

O centro das escolas são os alunos. Os professores tão em volta, como se

fosse uma roda, um circulo. Aqui no meio tão os alunos. Aqui está os

professores. (mostrando com gestos como se estivesse desenhando).

Professores, diretores, e tal e tal. Que estão aqui em volta a serviço desse

centro. E ai a gente tem que entender que nem muitas vezes a culpa e deles. É

da política. Mas a política de quem? De quem nós votou e colocou lá. Ai depois

a gente fala: ―Esse secretário desgraçado. É o governo, é o governo‖. Nós da

comunidade tamos aqui olha, num circulo maior ainda. E o que nós todos

fazemos para que essa coisa aqui melhore? Quase nada. O nosso povo não

sabe o que é projeto pedagógico. Por que se soubesse tá falando do futuro do

filho dele. Ou não é? Um projeto pedagógico na escola tá falando de quê? Do

ensino, da qualidade. Vai ser bom ou não vai. Por isso, o nosso povo, os

adolescentes, jovens, pessoas de idade também, já pensamos numa

campanha. Vamos fazer este ano da educação. Vai ser o segundo seminário. E

o primeiro seminário nós chamamos as escolas. No primeiro momento

chamamos de concepção. O que você sabe como são essa coisas de

acadêmico. Essas coisas eu acho importante. Todos os acadêmicos. A luta até

pra transformar. Os acadêmicos têm uma responsabilidade que eles não sabe

ainda. E tudo o que eles têm que me perdoe. Se eles soubessem a grandeza

que eles têm. Os acadêmicos nossos. Sabe? Eu acho que, não todos, mas

uma grande parte deve muito ao nosso pais. Os acadêmicos.

Deve...Deve...Deve. E a discussão aqui era sobre a concepção da educação.

Que concepção. Discutindo a concepção. Ai eu fiquei pensando. Ai começou a

brigar. A diretora da escola com a diretora pedagógica da outra. Uns mais com

a posição mais conservadora, outros com a posição já era pra outro mundo .

Eu fiquei ouvindo e falei: olha, vamos fazer o seguinte. Primeiro, que nós tamo

aqui nessa discussão profunda que é bonita, essa discussão com amor , com

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paixão. Mas, fazer o seguinte. Se a gente evoluir nessa discussão vai sair um

com raiva um do outro e vai ter nada. Vamos fazer o seguinte: Vamos fazer um

seminário. Vamos discutir a questão do oficial. Quer dizer vamos discutir a

questão da escola com a comunidade. Só isso. A relação da escola. Do ensino

oficial com o que não é oficial. Que eu quis dizer é isso. Tá entendendo? Dos

projetos nossos. Que as crianças que tá nos nossos projetos tá na escola. Por

que é que essas crianças passam oito horas com nós e não sabe escrever

direito? Por que passa quatro horas lá, e quatro horas aqui. É responsabilidade

nossa também. Mas, nós não somos o ensino oficial, né? Nós podemos

defender disso. Mas, nós temos responsabilidade também. É a mesma criança

que tá com nós. Por que é que a criança tem um comportamento na escola

diferente do comportamento que tem no nosso projeto? Alguma coisa tá

errado lá ou aqui. Então, é por isso que é necessário que a gente faça essa

discussão, né? Do formal e do não formal. Educação formal e não formal.

Sabe? Vamos fazer isso. Vamos discutir, vamos pensar, vamos discutir. Por

que muitas vezes a gente chama os pais, eu falei, diretores chamam os pais

pra resolver problema. Não chama os pais pra saber o que é projeto

pedagógico. É pra resolver problema. ―Pularam o muro pra roubar a escola‖. É

porque o filho tá com problema tem que chamar o pai. Tem que chamar

mesmo. Mas também tem que chamar pra outras coisas. Para que esse pai

participa da vida. Isso não é participar da vida da escola. Participar da vida da

escola é saber como é que vai o dinheiro da escola. Aqui no Campos Sales

tem verba de primeiro, segundo escalão. Agora mudou. Modificou. Mas quando

eu comecei a participar. Nossa! O Brás foi de uma grandeza! Que é o diretor da

escola. Ele chamou nós pra falar pra nós que teve um serviço lá pra

manutenção da escola que custou 140 mil reais. Com 40 mil reais nós fazia o

serviço. Os pedreiros daqui. E pra onde vai o dinheiro da educação? E ele

falou isso com toda a propriedade. Com toda a propriedade e tudo. Ele falava

direto. Escola não é o lugar pra dar leite pra criança não. As crianças precisam,

mas não é a escola que tem que dar. Isso é politicagem. Sabe? Mas tamo

dando leite. (risadas). Você entendeu? Então, ele colocava isso no conselho.

Ele queria um conselho atuante. A gente teve uma luta pra acabar com turno.

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Olha a responsabilidade que nós tava correndo. O sindicato era a favor de

manter os quatro e era impossível você ter uma escola organizada com

quatro... Impossível. Teve votação no conselho, cara. Ai saiu um grupo que era

a favor de manter os quatro. Dá mais emprego. Por que não tem outra

justificativa do seu emprego. Né? E falava que tinha mais alunos. Era verdade

também. Era verdade. Você ter mais alunos e não ter a qualidade. A gente

não. A gente pedia a questão da qualidade. Eles tinham até um jeitinho melhor

pra convencer. Ganhamos com 70 % de voto. Democraticamente. A defesa. Ai

depois todo mundo na rua e tal. Ai depois nós vamo e pá, 70% dos votos. Né?

Por quê? Porque foi uma coisa defendida a qualidade. Muito legal. A gente

aprendeu com a escola de a gente priorizar porque a gente sempre foi da

moradia, né? E continua sendo, mas a educação é fundamental pra que a

gente entenda mais essa questão da moradia. Sabe? Vem da educação

também. Então, a educação pra nós hoje é a prioridade 1, né?

Na época do Janio nós perdemos uma votação lá porque nós queria na

época que o governo viesse fazer uma reunião aqui na igreja. O padre era

bom, nessa época. Era o padre Dedino. Chamava padre Dedino. Um baixinho.

Chamava Eurico,mas a gente chama ele de pe. Dedino. E ai a gente ia fazer a

reunião lá. Por que lá cabe 1000 pessoas. Dentro da igreja. No salão embaixo.

Mil pessoas. E o governo queria que a reunião não fosse lá, pra ir só

representante do povo na reunião. Que no máximo ia 50 pessoas contando

com as associação. Já tinha duas associações. Nós tinha a comissão de

moradores. Nós tinha representante. Nós tinha uma comissão com

representante de todos os núcleos. O núcleo Heliópolis. Aqui da mina. Que é

tudo uma favela só. Mas nós sempre separamos. A lagoa, sabe? O Pan. Então

era dez núcleo. Nós tinha representante dos dez núcleos. Só nós tava com

mais de 30 pessoas na reunião. Uma associação só tinha o presidente. A outra

associação parece que só tinha três diretores. O que aconteceu. Ai ficou

aquele impasse. Nós queria e as associação quieta. Ai o cara falou: Então,

vamos botar em votação. Só que a comissão só tem direito de um voto. Porque

é uma comissão de moradores. Ai nós tomamos ferro. Os dois contra. Pra ser a

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reunião lá. Você entendeu? Nós perdemos. Ai nós voltamos putos da vida. Ai

nós criamos essa questão das associações. Ai nós pensamos. Vamos criar um

monte de associações porque na próxima votação eles vão [...] com nós. Era

associação de mutirão. Associação de não sei de quê. Associação que nem

existe mais. Criamos um mucado. Ai criamos a UNAS que é União de Núcleos

e associação e sociedade e tomamos democraticamente. Ganhamos do João

prefeito lá no Heliópolis, que foi a Cleide. Lá na outra associação que nós

levamo fumo. E o cara era comunista, pô. Do partido comunista. O Claudio.

Votou contra a gente, pô. Votou a favor do governo. Eu não entendi a daquele

cara aquele dia. Não entendi. Votou a favor da proposta do cara de fazer a

reunião lá. Não aqui na igreja. Um cara que era do povão e tudo. Ganhamos na

eleição ganhamo dele também. Fizemos articulação boa ai foi muito legal. E

fundamos a UNAS e tudo. Ai teve essa necessidade também. Tem essa

história. Porque na comissão de moradores naquela época que tinha

perseguição, até hoje tem perseguição, mas naquela época era pior. Não tinha

o presidente. Não tinha um responsável. Tinha os responsáveis. Ali ninguém

sabia quem era o líder maior. Quem era o cabeça. Como se fala, né? Então o

cabeça era muito procurado. Por isso que nós era comissão de moradores.

Entendeu? Por essa e por outras coisas mais (risadas) que era importante. Da

luta. Que fazia parte da luta. Da organização, né? A rádio pião. Por exemplo.

Quando eu falo da outras coisas mais, tem outras coisas que eu falo. Do jeito

da gente se comunicar. Umas coisas que só nos preparamos. E tinha que se

preparar mesmo, né? Por que quando vinha o despejo e tudo a gente que tinha

que tá segurando. Por que aquele despejo foi que mais saiu na televisão foi

aquele lá. Mas teve outras tentativas da policia vim aqui e tudo. Ai tinha que ter

pneu, tinha que ter gasolina pra tacar fogo. Tinha que ter essas coisas porque

se não tivesse como é que a gente ia parar? Entendeu? E isso não era

confronto. Enfrentar a policia, não. Muito pelo contrário. A polícia que não devia

entrar nisso. Mas como ela recebe ordem, né, da cúpula. Dos juízes. Tinha que

ter jeito pra acabar com a lei dos despejos. A coisa mais triste que tem no

nosso país é a acão de despejo. Isso não pode existir. Tem que ter jeito,

mecanismo que resolva os problemas. Sabe? De um povo que tá ai e paga

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seus impostos, sabe? É ao contrário. Não criar uma lei de ação de despejo. A

não ser no último caso. Que o cara, ás vezes , vive de salário e construiu a sua

casinha que tá alugada e tudo. Mas, no aluguel hoje tem ação de despejo, mas

o juiz dá um prazo de 90 dias, depois dá mais 30 dias e depois mais 15 dias.

Então, é uma saída honrosa. E o cara tá pagando o que o outro construiu pra

ganhar o seu dinheirinho de aluguel e tudo. Aqui no começo, a gente era contra

quem alugasse casa. A gente achava que não podia alugar. Depois que eu

comecei vendo os aposentados e os aposentados com o dinheiro que ganha

ainda cuida dos netos, das netas. As netas ficam grávida, ai os netos ficam, ou

as filhas também e ele fica cuidando da filha e dos netos que o marido deixa. A

realidade daqui é essa. E como o dinheirinho do véinho que ele trabalhou tanto

pra ter a sua aposentadoria, né, viver em paz e bem. Ai vai cuidar da família.

Então, essas pessoas que construíram ás vezes, alugam um quartinho para

ajudar na renda e tudo. Isso é mais do que justo. Tem que receber também.

Não dá pro cara se apossar. Eu não to dizendo de virar uma coisa. De eu

entrar na tua casa e dizer essa casa é minha e acabou. E ficar por isso mesmo.

Não. Não é isso que eu to falando. Eu to falando principalmente da terra. Que

tem que haver uma melhor democratização da terra. Tem que ter uma Reforma

agrária de verdade tem que ter para que o homem vá pro campo. Agora o que

fica na imagem de muita gente. De pobre que é triste, né? E varias pessoas

que eu converso que falam: ―Mas também tem cara que vai lá ocupa a terra,

depois vende pra outro e vai embora e só fica coisando‖. Eu digo, mas em todo

o canto tem isso. Tem gente assim mesmo. Pior é quem não faz a reforma

agrária. É quem tá com os teus impostos e não faz nada. Sabe? É que cria.

Você sabia que tem uma máquina de fazer bandidos em nosso país? A

máquina tá criada. É tá construindo bandidos por ai. Você tem que pensar

nisso. Fica pensando no cara que ficou lá enfrentou policia e tudo, ganhou o

terreno e vendeu. Pô, mas aquele cara teve uma luta lá. Teve um, a luta e

conseguiu. Também. É lógico. Era melhor que ele ficasse lá, mas vai fazer o

quê? Vai fazer o quê? Não tem jeito. Por mais que a gente fala do coletivo, mas

o individual também é importante. A sua família. Eu criei mesmos filhos. Eu não

tive muito tempo, sabe? Como os meus filhos. Inclusive tem um documentário.

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Estrada 1400. Estrada das lágrimas. Que passa em 2003. Por que foi assim a

TV cultura veio aqui fazer um documentário. No meio desse documentário que

aconteceu. Eles tiveram que cobrir e graças a Deus que não cortaram e passou

em dez países. Foi criado um pool das emissoras públicas. Que cada semana

passava uma família. E como eles já tinham feito um documentário aqui eles

escolheram eu e a Genésia. E levaram lá tudo. Nossa! Os caras chegaram aqui

quatro horas da manhã pra fazer filmagem. A Genésia cozinhando. A Genésia

indo pra escola, sabe? Eu levando o meu filho pro jogo do Corínthias. Primeira

vez que ele foi no estádio. Ai mostra ai o Joãozinho, né? E ai eu comecei a

perceber e a sentir que eu tava distante dos filhos também. O meu filho mais

velho ele fala: ―É eu senti muita falta do meu pai. Eu não gostava de reunião.

Hoje eu entendo da importância dele na comunidade. Eu não entendia isso.

Hoje eu entendo.‖ Ele faz o depoimento dele mesmo. E eu ouvi aquilo eu fiquei

assim. Eu falei puxa vida. ―É hoje eu entendo a importância dele pra

comunidade, mas naquele tempo eu tava sem ele. Eu não tinha pai‖. Não fala

assim, mas fala quase assim, né?

Pra quem for assistir. Quero mandar um abraço pra todo mundo da

Universidade, os professores. Você deve ter alguém que deve tá te

acompanhando. Parece até essas coisas, né? Queria dizer o seguinte. Eu

tenho uma dificuldade na leitura. Tenho dificuldade na escrita também. Então, a

universidade tem um compromisso muito grande com o país. As escolas, as

universidades. Tudo passa pela educação. Se é verdade isso. Então, tudo

passa pela educação. Então, é importante que cria pessoas completas. Por

exemplo, eu tenho dificuldade de ler um documento e tudo. Mas, eu acho que

eu fiz minha parte e estou fazendo,né? A gente tem todo o consenso e essa

questão do rodízio do poder é fundamental na gente, né? Pelo estatuto eu

podia ser presidente. Eu fui presidente em dois mandatos da UNAS, né? Pra

contribuir. Pra que a Cleide fosse a Cleide. A Cleide é uma companheira nossa

de 20 anos de luta. Uma mulher com família. Olha! Chega em casa ainda vai

fazer comida pro marido, pros filhos. No outro dia tá de volta, quer dizer, é

merecidamente. Ai eu volto é a questão do Deus vivo e de justiça. Ela ser a

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presidente hoje. Então, a universidade tem muito a contribuir com isso. Sabe?

Por que democracia não é só pedir e cobrar do outro. A gente na democracia

tem que aprender a criar democracia entre nós. Não democratismo, mas

democracia. Todos têm o direito de falar. Que tira uma posição, né. Com a

maioria de votos. Se tiver que votar. Eu nunca gostei de votos. Eu achava que

o debate é sempre mais importante que o voto. Sempre achei isso. A Cleide

sempre acha isso. Acho que é isso. A gente não pode cansar de conversar

com o outro. Porque pra mim a política é a arte do convencimento. Ou você

convence ou é convencido. É arte da política. Não aquela política, né? Triste. E

é com essa que eu quero viver. E a gente escolher com qual quer viver. Acho

que a universidade. Você tá vindo aqui como vários companheiros, alunos de

outras universidades têm vindo aqui. E eu acho que a gente tem aprendido

com vocês. E acho que é uma troca isso. Entendeu? E que a universidade tem

um papel fundamental nisso ia. E a UNAS não pode cobrar. O que eu to

prestando aqui é uma coisa que eu acho que as pessoas que vão ler vão

entender um pouquinho da luta. Quem sabe alguém vai falar assim: ―Lá no meu

condomínio eu não olho nem pra cara do outro. Eu to morando lá no

apartamento. Eu nem vejo o outro. Só vejo lá embaixo no elevador‖. Que dá

bom dia e ele nem olha pra cara. E que podia organizar pra diminuir um pouco

o custo do condomínio. Eu podia fazer reciclagem. Não só o condomo lá, né?

Nós vamos fazer alguma coisa. Porque eu sei classe média alta e tudo, né?

Mas também pensar nisso. De olha na cara do outro. De fazer alguma ação.

Vem pra periferia. Vamo fazer o trabalho, né? Quem quiser é lógico.

Então é isso a gente vive aqui. Tão feliz. Com muita dificuldade. Tem

tanta coisa que precisa mudar, né? Mas com essa dificuldade é que a gente vai

aprendendo, sabe? E ai eu tive uma universidade que eu acho que foi

Heliópolis. Eu comecei falando eu quero terminar afirmando isso. Por que é

como a gente nascer de novo. Heliópolis é isso. Até por eu ter ido nas

universidades. Do jeito que eu falo errado. Mas falo do meu jeito. Eu não posso

mudar o meu jeito onde chegar não. Eu tenho que ser do meu jeito. Quem me

quiser é assim. Quem não me quiser eu vou fazer o que, né? E ai eu sei que

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as universidades têm preocupação com isso, mas é importante não

demorar muito. Sabe? Não pode demorar muito. As crianças.O futuro do

nosso país não pode esperar, sabe? Nós não podemos ter o privilegio de dizer:

Ah! Deixa pra depois. Não tem mais deixar pra depois. Vamos fazendo.

Obrigado. Estamos ás ordens ai.

Delmiro Monteiro Farias

Ficha técnica

Nome completo: Delmiro Monteiro Farias

Local e data de Nascimento: Olho D'água 19/12/1938

Idade: 71 anos

Estado civil: casado

Profissão atual: Aposentado

Instrução:

Profissão anterior: agricultor/ pescador/ servente de obra/ metalúrgico/

saldador

Meu nome é Delmiro Monteiro Farias. Eu nasci no Olho D‘água, São

Luis, Maranhão. É uma praia de banho, né. A praia mais velha de banho lá é

Olho D água e lá eu nasci. Todo o povo lá de São Luis freqüentava essa praia.

Mas tem outras praias. Tem a praia do Calhau, tem outras praias mais bonitas.

Lá é uma praia pequena lá de Olho d‘água. É uma espécie de uma vila, e essa

vila é que nem um (aquípero) de São Luis, entendeu? É uma diferença, é

divido entre São Luis, depois vem Turú, ou primeiro São Luis, a capital, depois

vem Turú, aí chega Olho d‘água, que é a praia de banho. Naquela época

existia uma monstruosidade de terrenos, tudo era só mato, entendeu? Era uma

estrada de terra,chamava Piçá antigamente. Aquela estradona vermelha e o

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cara constrói, faz a caída da água pra um lado e pra outro e fica, coloca aquela

piçá, aquela terra vermelha pros carro chegar até lá. Então, era uma das

cidades que tinha pra Olho d‘água. Lá eu vivi minha infância, a bem dizer, né.

Minha infância e até a idade de mais ou menos dez anos, oito, dez anos. Aí

depois, trabalhando, trabalhava com o meu velho pai e depois eu mudei mais

pra praia, uma área que com nome Raposa, que era praia de pesca. Aí eu

comecei a trabalhar na pesca,né. E aí levei minha vida muitos anos

trabalhando na pesca.

Minha infância era uma infância muito sofrida, né? Muito sofrida, muito

sofrida. Meu pai era muito pobre, né? Meu pai era pobre, pobrezinho, né?

Naquela época a gente sobrevivia da roça, mas num dava pra todo, porque no

Nordeste, quem trabalhar na roça... Hoje existe muito a ajuda do governo, pra

empréstimo de dinheiro, na Caixa, no banco, tá entendendo? Então o cara toca

as roça, tem condição de fazer uma roça maior e ter uma cobertura, né? Não

existia isso, então o cara trabalhava só pra comer. Fazia aquela rocinha, ali ele

plantava o milho, o feijão, a melancia, o arroz, as coisas tudo, entendeu? A

mandioca, que era a maior sobrevivência, a mandioca que fazia farinha, né?

Ela chama farinha d‘água, né? E a gente sobrevivia assim. Aí pouco tempo

quando eu cheguei na idade de seis anos pra sete anos, entrou o abono

familiar que hoje chama-se o salário família, entendeu? Chama-se o bolsa

família e existia, naquela época, o abono familiar. Que hoje é o bolsa família e

que depois que entrou o militarismo, eles tiraram, acabou. E isso aí foi no

Getúlio Vargas. Getúlio Vargas, todo cara que tem mais ou menos, na faixa dos

cinqüenta anos, alcançou isso aí, ta entendendo? Talvez ele num tenha

pegado porque me parece que o Getúlio Vargas morreu em cinqüenta e dois,

cinqüenta e quatro, num é isso mesmo? Então, sobrevivia muito disso, nós era

oito irmãos todos eles pegava. Tinha os meus irmãos mais velhos também, eu

já sou dos mais novos. Meu pai tinha 16 filhos. 16 filhos. Então, eu tinha 15

irmãos. Comigo 16, entendeu? Mas só oito pegava esse salário familiar. E eu

me lembro muito quando meu pai ia pra receber, ele recebia na prefeitura. Aí

ele perguntava pra minha mãe, o meu velho era muito quieto, né? Meu velho,

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meu pai. E ele dizia: ―Mariazinha, que é que eu trago pros menino?‖ Hoje se

chama garoto, muleque, aqui no Norte é menino. ―Que eu trago pros menino?‖.

Aí minha mãe dizia: ―Cê traz uma peça de cretone, traz uma peça de riscado,

traz uma peça de mescla, traz uma peça de caqui, traz uma peça de xita e traz

uma peça de algodãozinho.‖ O que era xita? É essa [?] colorida, né? Que a

mulher faz o vestido, às vezes parece até bonito, né. Então, tem umas bonitas

que hoje são tudo acetinado. Então, isso era pras minhas irmãs. O cretone

também era pra fazer roupa pra elas trabalhar, entendeu? As meninas já,

porque a gente pegava até os 16 anos, essa bolsa familiar, elas já raspavam

mandioca, cortava arroz, apanhava feijão, trabalhavam na roça, tá

entendendo? Então fazia esse tipo de coisa e pros menino era o cáqui, a

mescla, o riscado, pra fazer a camisa, né. A mescla dava pra fazer a calça, o

caqui, nossa, era um luxo a calça do cáqui. Ela dizia, era [carçola...]. Então

meu pai ia pra receber na Prefeitura e aí quando ele ia colocava num jumento,

aqui se chama jegue, lá é jumento. Ele colocava um jogo de cambito, então ele

trazia as peça nos cambito. Três fardos de um lado, três fardo de outro. Aí

quando chegava em casa nós fazia a festa, era muito bonito aquilo. Os

cambitos são feito de madeira e tem até um ditado que diz assim: ―Qual é o

pau que tem mais mato?‖ Aí o cara diz assim: ―É o pau torto‖. E tem o gancho,

né. Num tem o tiro da baladeira, do estilingue? Então, o cambito é que nem a

forquilha do estilingue. Com aquela cortada assim embaixo e aqui eles furam e

colocam uma corda, pra colocar no cabeçote da cangalha. Então vai dois

anexados um no outro e ali tem uma guarda que segura um no outro assim,

né. O cambito, que nem a cangalha, coloca e ali coloca a macaxeira, a cana, ali

você transporta o que você quiser. Então meu pai trazia nos animais, trazia no

jumento. Os pedaços de tecido. Ah! Era uma festa. Meu pai que trazia e minha

mãe costuravam, né? Com aquela maquininha de mão. Naquela época ela

costurava naquela maquininha. Minha mãe fazia até paletó. Ela era boa

costureira, boa costureira. Que Deus a tenha. Já tem mais de 40 anos que ela

faleceu. Meu pai é falecido há quase 30, mais ou menos uns 30 anos.

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Eu comecei a trabalhar, eu tenho lembrança que eu ia pra roça com

cinco anos, eu já trabalhava. O meu pai carpinava, né? Pegava melancia,

aquela melanciona, sabe? E eu tinha verme, era barrigudo e trazia a melancia

em cima da barriga, né? Aquela [...] só tinha o rabicho aqui atrás e aquela parte

da frente aqui, era inteira. Mas assim, os quarto tudo de fora. E aquela

camisinha, antes de entrar no abono familiar, aquelas camisinha ―ratisca‖,

rasgadinha nas costa com o sol tudo queimado. Aí depois que a gente

começou a receber o salário família, aí a gente andava mais vestidinho. Mas

continuava a mesma luta também, trabalhando, sempre trabalhando.

Naquela época não se falava em escola da prefeitura, a prefeitura não

tinha escola. Não pagava escola, num existia escola da prefeitura. Existia só na

capital, na cidade né? Lá já era longe, muito longe, era 16 quilômetros, de lá

mesmo pra capital. Então a gente tinha mestre, que era aqueles caras que

ganhava um dinheiro do pai, né, pra dar aula por mês e tanto, pra estudar. E eu

estudava e meu pai pra isso, ele era ingrato, ele preferia que a gente

trabalhasse e não fosse pra escola. Então, eu fugia, minha mãe queria que nós

estudasse e eu fugia do serviço, pulava a cerca do quintal, com a cartilha, a

carta de abc, no tempo era carta de abc, né? A gente colocava aquilo dentro de

uma sacolinha, sacolinha mesmo, aquela de palha. E pulava o quintal, pulava e

ia pra escola do mestre. E lá que eu aprendi alguma coisinha, né? Então eu saí

de lá da escola. Meu estudo foi pouco tempo. Eu estudei três meses mais ou

menos. Escola paga, porque também num tinha poder aquisitivo de pagar.

Tinha que pagar os mestres. E o mestre naquela época usava uma palmatória

que tinha um buraco no meio, né. Quando você não dava a lição. Ele tinha uns

argumento, aquilo todo sábado tinha os argumento. Aí ele colocava ao redor da

mesa, aí ele começava no beabá, beabé, beabi, beabó, beabu. Aí, ciacá, ciocó,

seu cu, seu cu ele falava, aí dava aquela risadaria. Aí ele pegava aquele que

ria, aí ele pegava o cara assim, aí dava um... Puta, aí aquele moleque sacudia

a mão, virava um calo aqui dentro da mão. A palmatória tinha dois dedos de

grossura e era furada no meio. Era furada no meio, era carrasco, né, naquela

época. Então o moleque ficava de castigo embaixo da mesa, o garoto ficava ali,

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o menino, menor, como era tratado. Ele ficava lá e dizia: ―Ó menino, fica

debaixo da mesa‖ e jogava caroço de milho e a gente ficava de joelho em cima,

nos caroços de milho. Ali ficava 20 minuto e num saia mesmo, se saía,

apanhava mais e o pai num tinha nada o que falar, que se não ele expulsava a

criança da escola. Então era assim que era pior. Então eu fiquei dois mês, três

meses e pouco de escola, mas eu tinha muita vontade de aprender. Eu entrei

na carta de ABC e saí, saí no segundo ano, já saí no livro do segundo ano do

fundamental né, que é o primário né. Aí saí já quase terminando o livro todinho.

Tinha dia de eu dar dez lição. Adiantei. Eu picava mesmo, direto ali, pegava

meu livro eu ficava lá naquele banco lá, naqueles bancão de madeira que tinha

na escola, né. No salão ficava sentado lá e os outros falavam os outros

meninos de vida: ―Deomiro, Deomiro‖, aí eu nem ligava, então um estudo

danado, e eu ficava... aí ia lá no mestre e dava a lição, entendeu? E era assim,

ele passava uma lição, aí ele fazia uma pergunta: ―Como se assuletra José?‖

Aí o cara, eu assuletrava o outro assuletrava. Se eu num soubesse assuletrar,

o outro, o meu vizinho assuletrava, o outro menino. Ele dizia [Jota ó Zé e é...].

Aí como eu num tinha assuletrado ele mandava aquele que assuletrou me dá

um bolo. Aí o moleque pegava, aí eu como era esperto, eu ficava com a mão

assim (fazendo uma concha com a mão) e o moleque, o garoto batia aqui com

a palmatória e num levantava o calo, entendeu? Num pegava pressão. Tinha

três assim que o professor, o mestre, mandava o menino que ia dá o bolo,

escangotar a mão dele, que era pra ele dá o bolo e levanta o calo de sangue

aqui no meio, era duro. Hoje o estudo é uma maravilha, o garoto mata aula.

Naquele tempo num tinha isso, era duro. Depois eu fui desenvolvendo,

aprendendo com a vida, né. Aí foi tempo que chegou a época que eu saí de

casa, né. Meus pais foram embora também pro Ceará, [são cearense...], eu

sou maranhense porque nasci lá, me criei lá. Aí meus pais voltaram pro Ceará

com a família toda, aí eu fiquei lá trabaiando com alguém, né, com outras

pessoas, aí foi o tempo que eu peguei a profissão de pescador, aí fiquei

trabaiando. Aí arrumei uma mulher. Quando isso aconteceu eu já tinha quase

20 anos. Não, já tinha saído de lá. Aí eu fui prum lugar com o nome Olho de

Porco. Olho de Porco. Aí eu já tinha 20 anos. E eu já tinha até mulher. Aí

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depois eu fui prum local chamado Raposa e lá eu montei junto com os outros

uma empresa de pesca, a gente tinha a pesca né, trabalhava com curral, com

barco de pesca, pesca de zangarí, de tainha, e aí toquei a vida, né? Fui viver

minha vida. Meus outros irmãos foram tudo debandando, sabe como é, filho,

toda vida teve isso. Filhos que vai debandando dos pais, vai crescendo e

depois vai debandando dos pais, né? Vai esquecendo, alguns fica com os

pai, viu, os outros, debanda tudo. Eu tava no Olho d‘água ainda. Depois eu

juntei com uma mulher e casei na igreja, né? Casei na igreja. Minha família era

religiosa, católica, né? Era religiosa. Mas a religião é conflitante umas com as

outras, né? Naquela época, se falava na Bíblia, na Bíblia sagrada, nossa, meu

pai era inimigo. Quando tinha uma pessoa que falava da Bíblia sagrada pra ele,

ele já saia fora. Ele dizia: ―Esse é o livro do diabo‖. Ele era católico, mas só que

ele se baseava por outro livro, entendeu? Ele tinha um livro, que eu não me

lembro agora o nome do livro, ele se baseava muito por aquele livro. Era quase

que nem uma Bíblia, entendeu? Era um nomezinho gozado, num me lembro

agora o nome. Então, se um evangélico ou uma pessoa que num fosse

evangélica apresentasse a Bíblia pra ele, ele ficava bravo, ele num queria

saber, né? Porque, na verdade, naquela época, nem as igreja falava da Bíblia.

Era um tempo de Martin Lutero, a bem dizer né? Eles se baseavam, o cara

quando pegava a Bíblia e dizia que era a lei de Martin Lutero e Martin Lutero,

ele foi um seminarista, né? , você eu sabe bem isso, foi um seminarista e ele

saiu de lá porque ele descobriu alguma coisa dentro da igreja católica e ele

ficou pressionado e lá ele era, missionário, missionário não, ele era

seminarista. E ele fazia manutenção de eletricidade, de esgoto, ele fazia de

tudo, né? Lá, tudo ele fazia. Ele fazia limpeza das poças, das caixas de sujeira

que tinha lá dentro do seminário. E ele ia achando ossinho, e ele ia colecionado

aqueles ossos, porque ele num sabia o que era aquilo, depois ele encontrou

um osso diferente, entendeu? Ele encontrou uma mão duma criança, uma

ossada duma mão duma criança. Ele guardou aquela ossada. Segundo um

livro que eu tinha numa época, ele contava a história de Martinho Lutero, ele

encontrou uma ossada duma mão, ele ficou pressionado com aquilo, porque

ele achava ossinho, que nem osso de galinha, lá dentro da poça e ele ia

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guardando, lavava aquilo e colocava num certo local. Ele achava metacarpo

de dedo, né, entendeu? E ele guardava. Podia ser um osso de peru, duma

galinha, dum pato, né? Mas ele achava estranho porque era mais grosso. Um

dia ele encontrou uma mãozinha, aí pra surpresa dele, um dia ele achou um

crânio. Quando ele encontrou aquele crânio ele perguntou pro seminarista que

é o cara que comandava lá dentro o [...] né, os padre né? Parece que tinha

capuchinha, tinha alguém lá dentro, segundo a história falava e quando ele

perguntou, eles se revoltaram contra ele por que na verdade era o crânio de

uma criança. E ele já maliciou que aquilo era de freira, que era um convento,

né, entendeu? Aí ele repensou que aquilo era uma freira. E aí ele começou a

procurar saber o que tava acontecendo, da onde aquilo vinha? Aí eles

expulsaram ele de lá, ele num saiu da vontade dele, ele foi expulso de dentro

do seminário, Martinho Lutero, ele saiu expulso. E quando ele saiu, ele disse:

―Ah, a Igreja Católica apóia algumas coisas, o Seminário tem algumas coisas

diferentes‖. Por que dentro da própria Bíblia num ensina isso, não fala isto, né?

Pode ver que as lições evangélicas são diferentes, que a Bíblia é uma só. Nem

a Bíblia da igreja católica, ela tem diferença nenhuma da Bíblia dos

evangelista, religiosos, né? É principalmente o livro de Mateus, o livro de

Lucas, o livro de Macabeus, entendeu? Que na nossa, ou melhor, na Bíblia dos

evangelistas não existe. Mas na igreja católica existe, Bíblia católica tem essas

diferenças, são 36 livros. A Bíblia, a Bíblia católica e a evangélica é menos, me

parece que são 17, 16,18, uma coisa assim. Tá entendendo como é?

Apocalipses é igual, o livro de Gênesis é igual. Começo da geração toda, da

onde vem, né? Toda geração donde começou. Porque eu já li a Bíblia...

Salteada. Certos trechos, né? De Gênesis, de Apocalipses, de João, de Judas,

entendeu? O livro de Rute, Mateus, primeiro, segundo João, entendeu? Já li

muito isso aí, muitas passagens. Eu tenho a Bíblia lá em casa. Então, existem

algumas coisas.

Eu sempre fui curioso, pra procurar saber o que é. O cara diz assim: ―O

que é vulnerável?‖ A pessoa fica perdida sem saber. Muita gente até me critica.

Quando eu trabalho às vezes na [...], às vezes em um setor vulnerável que

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existe, é muito vulnerável, a vulnerabilidade é grande, ali o que é

vulnerabilidade? Vocês sabem, né? Aí eu falo o que é, né? E a pessoa, às

vezes, fica assim e diz: ―Pô, o cara quer saber demais?‖ Num é. É porque eu

tenho o dicionário na minha mão e quando eu ouço essa palavra eu vou no

dicionário procurar saber o que é. Tá entendendo?

Quando eu fui trabalhar lá. Eu já tinha esposa, só num tinha filho.

Porque eu arrumei esposa com dois filhos já, ela era viúva, novinha né? Aí eu

criei os dois filhos dela. Ela era cearense. Aí arrumei ela e depois eu tive três

filho com ela, mas depois a vida num deu certo. Nesse tempo eu já tava na

Raposa, já tinha estabilidade, já tinha minha casa lá, tinha meus apetrechos de

pesca, de pescador. Era matriculado em colônia de pesca, tudo, né? Aí foi o

tempo que a vida num deu mais certo, aí eu passei a trabalhar a borda e pesca

maior. Viajei de lá pra Santa Catarina, pra Santos, né? E desembarquei aqui no

Sul. Num deu certo eu comecei a perceber que ela tava me traindo, né?

Porque ela era evangélica, né? Só não era batizada. Aí eu comecei a perceber

que ela tava me traindo com um cara da igreja, entendeu? E muitas vezes

quando eu procurava ela, nós era novo aquela época ainda tinha 30 anos,

trinta e poucos anos, ela sempre dizia: ―Ai, tá doendo aqui, ai, não estou bem‖.

Aí eu comecei a desconfiar. Aí depois nós tivemos uma revolta um com o

outro, viu que num ia dar muito certo, eu num vou nem entrar no mérito do

assunto, né? Aí nós se separemos. Separemos, eu vim pro Sul, fiquei aqui no

Sul, como estou até hoje, né?

Eu desembarquei em Santa Catarina, em Itajaí, trabalhei numa firma por

nome Sudeb, vim pro Sul, companhia de pesca, muito grande. Trabalhava com

lagosta, né? Sardinha, todo tipo de pescaria. Aí fiquei em Santa Catarina uma

temporada lá em Itajaí, de Itajaí fui até Porto Alegre no Rio Grande do Sul, não

suportei o frio. Aí digo: ―A vida num dá pra mim‖. Eu nunca tive a intenção de

ficar em São Paulo. Aí vim pra São Paulo. Vim aqui pra São Paulo. Quando

cheguei aqui em São Paulo em 69. Fez, 40 anos, né? Vim pra São Paulo em

69.

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Eu vim, e desembarquei na estação da Luz, né? Estação da Luz ali, de

primeiro, era a estação Julio Prestes, né? Eu vim do Rio Grande do Sul, até

Santana Catarina, fui na colônia de pesca lá, dei baixa na minha carteira de

pescador que depois eu perdi porque eu tomava uns aperitivos. Eu já teria

muitos anos, né? Já teria me aposentado bem prá caramba. Hoje é um direito

do pescador regularizado, tudo. É uma profissão reconhecida, né? Mas eu de

burro perdi, né? Porque eu tomava bebida e rasguei os documentos tudo e

fiquei só com a carteira profissional. Aí naquela época eu entrei como ajudante

de pedreiro foi meu primeiro serviço aqui em São Paulo. Morava na firma, no

alojamento da firma. No Sacomã, ali onde tem aquele... Não tem aquela praça

ali que se chama praça Ademar Dutra? Ali era nosso alojamento. Nós fizemos

uma galeria e eu morava na firma. Trabalhei três meses só ali. Aquelas árvores

que tem ali em cima naquela praça. Não tem umas árvores enormes já?

Aquelas árvores fui eu que plantei, eu mais dois caras. Plantemo tudinho

naquela subida ali. E num tem aquela passarela que o Maluf arrancou ainda

umas? Foi uns dez pé de arvore que nós plantemo. E dá-se o nome de

―Pássaro Monte Azul‖, por causa do Garrastazu Médici, Presidente da

República. E aí fizeram aquela praça, em comemoração ao governo, da

presidência do Garrastazu Médici. Eu trabalhei naquela praça e ajudei a plantar

aquelas árvores que tem lá. Bonito, é uma praça bem aconchegante, ali ficam

muito idosos, crianças tudo ali, né? Mas, o Maluf tirou um bocado pra fazer

aquela passarela que atravessa por cima da Anchieta. Ali tinha um posto de

gasolina, onde desce a passarela, começa a Tancredo Neves ali. E ali eu

fiquei, depois me transferiram pro Morumbi, mesma firma. Eu fui trabalhar no

Morumbi, aí tinha um gato que trabalhava com essa firma, e o gato tinha

aqueles caras encarregados, né? Aí o cara me enchia muito o saco. Nós

fomos fazer um acabamento duma casa do Roberto Carlos naquela época, ele

tinha uma mansão lá e nós fomo fazer o acabamento da casa. Ali perto do

Jockey Clube, num sei nem se ainda existe essa mansão do Roberto Carlos,

deve ter vendido, passado pra outro, né? 40 anos atrás! Então, o que

acontece é que nesse período, o cara me colocava pra trabalhar de pedreiro e

eu era ajudante. Eu fiz um muro três vezes e todas três vezes o encarregado

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derrubou. Quando foi na última, no último dia que ele derrubou, ele chegou deu

uma pesada assim (fez o resto de quem estava derrubando algo) e falou que o

muro parecia a cara da minha mãe, aí foi a gota d‘água, eu peguei um rodão,

um vassourão daqueles que varrem a rua, né? Catei um vassourão daqueles e

desci-lhe o pau na cabeça dele. O sangue desceu e aí a peãozada que

trabalhava com nós lá, correu pra cima de mim. Aí eu catei um picarete e gritei

pros cara: ―O primeiro que vier eu travesso‖. Eu era só em São Paulo, aí os

caras se afastaram tudinho. Também aí eu fui lá no barrancão que tinha lá,

peguei minha mala e vim embora. Aí eu vim pra São Caetano, no mesmo dia,

larguei o resto lá, nem recebi nem nada. Nem disse pra ninguém que ia, aí vim

embora, né? Chamaram a polícia ainda, mas eu tava longe já. O cara ficou lá

sangrando. O cara falou da minha mãe, né? O cara xingou minha mãe, aí eu

saí fora, né? E eu era caboclo novo ainda, num pensava muito na vida. E ainda

hoje mesmo as pessoas são mais violentas, até que eu num era violento, né?

Eu levava mais no banho-maria as coisas, né? Mas, mexeu com a minha mãe,

né? Que nunca saiu do meu coração. Ela morreu. Deus que tenha lá, mas é

minha mãe, né? Era minha mãe. E, aí quando eu cheguei em São Caetano no

outro dia arrumei trabalho numa firma. Trabalhei quase três anos, mas sem ser

registrado, na Constran. Trabalhei um tempão, mas não registraram.

Trabalhava com asfalto. Fazia todo serviço. Prédio, asfalto, galeria, rede de

esgoto, tudo ela fazia. Eu trabalhava num setor de tapa-buraco, trabalhava com

caminhão, eu trabalhava com o dono do caminhão, era contratado por eles. Ele

trabalhava na praça de motorista pra firma, né? E no dia que ele não ia

trabalhar na praça, ele me entregava o caminhão. Aí tinha um cara, que

chamava marcha lenta. E ele dizia: ―O marcha lenta, amanhã eu não vou

trabalhar o Deomiro vem com o caminhão. Ele não conhece bem o caminho,

vem com ele‖. E eu não conhecia mesmo, então eu ia pilotando o caminhão e

ele ia com o caminhão dele. Aí quando chegava no setor que eu ia trabalhar,

eles destacavam o moleque e nós ficava, tomava uma cerveja, jogava um

snúque, né? Os dois motoristas. Aí quando era de tarde, nós voltava. Então,

eu fiquei uma temporada lá, mas nunca registrou. Depois nós tivemo um

problema lá dentro também. O peão me agrediu lá dentro, em três, lá dentro

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da própria firma, uma hora dentro do acampamento, ali em São Caetano. Aí eu

dei umas bordoadas no cara. Aí a firma mandou eles embora, depois mandou

embora eu também, né? Aí foi o tempo que eu entrei na metalúrgica, comecei a

trabalhar na metalúrgica. É a Corrente São Caetano. Lá era uma metalúrgica

mesmo. Ela trabalhava com corrente. Eu era soldador lá na Corrente São

Caetano. Trabalhei quase três anos lá. Nossa, eu era um dos funcionários mais

queridos de lá, o pessoal gostava de mim, o encarregado, os dono da fábrica

tinha dois sócios, aliás, três, né? Um filho, o pai e um outro senhor. Um

chamava Pepe, o outro Isidoro e um dos sócios que era filho, era João. Mas

todos os três gostavam demais de mim. Aí eles me chamavam Maranhão, né?

―Ô Maranhão, Maranhão‖. Lá que eu aprendi a soldar, né? Eu não era

soldador, aí aprendi lá dentro, fui registrado como soldador e saí como

soldador. Aí entrei na Ford porque nessa firma lá na Moscolete, eu fiquei pouco

tempo, né? Então eu lembro isso em 69, aí eu fiquei foi em 71 e em73 eu saí

da Corrente, no fim de 73. Aí entrei na Ford, dezembro de 73. Entrei na Ford.

Entrei lá como soldador também que é um tipo de solda: Ponteador, soldador.

Na Ford eu fiquei até 79. Aí eu fiquei doente e não teve recuperação foi quando

eu me aposentei. Eu morava em pensão em São Caetano. Sempre eu tratei de

morar em ambiente que tivesse amizade, né? Que tivesse boas companhias,

nunca gostei de más companhias. Sempre fui um cara chegado a amizade com

as pessoas, nunca gostei de discriminar ninguém, mas também gostei de

considerar as pessoas pra mim também ser respeitado. Sempre tive isso

comigo, não interessa pra mim se ele é rico, se ele é pobre, o que ele é, porque

eu sou pobre, né? Mas o rico também é um ser humano. A vida dele é igual a

minha vida que nem Ló e outros mais da história sagrada que eram homens

ricos né? Faraó, Saúl e todos esses são burgueses... As vidas não são

insubstituíveis. Elas têm um ponto final.

Quando eu cheguei em Heliópolis eu tava fazendo aniversário quando

eu mudei pra cá. Eu cheguei aqui no dia 19 de Dezembro de 82. Eu morava na

Ponte Preta. Eu já tinha saído da pensão, aí casei com essa mulher que é

minha hoje, né? Ela também tinha dois filhos, era mãe solteira. Aí eu casei com

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ela, criei meus filhos de criação. Pra mim são melhor que meus próprios filhos.

Gosto muito dos meus enteados. E nós morava num barraco, dava enchente,

rapaz, aquilo. Eu trabalhei na Ford, muitas vezes eu largava lá quando era

aqueles temporal que nem teve aqui esses dias eu pegava o ônibus e vinha

que nem louco. Quando chegava ali na Ponte Preta, no córrego dos meninos,

precisava atravessar com água na cintura pra mim entrar no barraco. Quando

eu chegava lá a mulher tava doidinha. Tinha um barco de assoalho que eu fiz,

mais alto o assoalho do que isso aí. E a água tava chegando no assoalho, aí

eu começava a tirar as coisas, trepar as coisa lá e fiquei lá, fiquei uns anos lá.

Aí não agüentei mais. Depois de 73 quando eu conheci ela, entendeu? Aí eu

fiquei até 79, 78 mais ou menos. Em 82 que foi quando eu mudei pra cá.

Agüentando toda essa maratona. Depois me aposentei lá. Acho que peguei

alguma doença lá, alguma coisa, né, que me agravou mais a saúde. Foi

quando eu vim pra cá. Pra essa área de baixo, mas aqui eu conheço, eu já

conhecia há muitos anos. Mas nunca pensei de morar em favela. Pra mim era

um nome tão esquisito, né? Eu conheci isso aqui... Se eu for contar a história

daqui, vamos ficar o dia inteiro aqui. Quando eu cheguei aqui já era favela, era

conhecido por favela já, tinha muita gente. Mas eu conheci os treze primeiros

barracos que foi construído em Heliópolis. Quando foi construído os treze

primeiros barracos, foi trazido treze família do Vergueiro. E quem construiu? O

primeiro invasor de Heliópolis foi a prefeitura. A prefeitura invadiu ali, quando

você vem de lá pra cá, tem uns prédios meio azulados do lado direito de quem

vai daqui pra lá, do lado esquerdo tem uma firma chamada Durável, ainda

existe essa firma, naquela época já existia, ela é muito antiga. Só que naquela

época existia uma frota de taxi que chamava Canarinho, lá na Durável,

entendeu? Aí eu vi em outubro, em outubro de 1970, eu ia passando lá, nessa

época eu ainda tava na Constran, eu ia passando, tavam construindo treze

barracos. E o motorista do caminhão, quando ele tava trabalhando eu ia do

lado dele no banco do carona. Aí ele brincava muito comigo, ele batia no meu

ombro. ―Ê Maranhão‖, ele era paulista, né? Era ―fogoiózão‖. Aí ele bateu no

meu ombro assim: ―Ô Maranhão, vão fazer uma favela aqui‖. Aí eu disse: ―Que

isso? Que é favela?‖ Aí ele disse: ―Favela é, eu vô te mostrar uma ali na Vila

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Prudente, Favela é um amontoado de barraco, só mora gente ruim‖. Eu digo ―ó

rapaz, tá doido, tu vai me levar pra um lugar desse?‖. Aí ele: ―Deus me livre‖. Aí

quem tava fazendo? A prefeitura, madeirite, ali do lado onde mesmo ali na

beira da avenida. Depois derrubaram, fizeram casa. Tem madeireira, tem

algumas coisas por ali. Aquele terreno era do Sayon acho que é uma firma.

Chama Sayon, né? E ela invadiu. Só que não era bem o terreno do Iapa ali, era

duma firma dum nome Sayon, era um dos associados também da área,

entendeu? Que tinha um terreno. Então a prefeitura que invadiu, fez os treze

primeiro barraco trouxe treze famílias da favela do Vergueiro e coloco lá. A

senhora prefeitura. E era uma área que quando eu tava lá no Sacomã, quando

dava de tarde e mesmo aqui na Constran, a noite ali dava umas prostitutas.

Rapaz! Era só mato, capinzal. Ali era só mato, tinha aquela árvore. Uma

história que tiraram até uma placa que tinha, né, roubaram, pra vender no ferro

velho. Ali era onde as mães vinham chorar quando os pracinha foram pra

guerra, segunda guerra mundial, né? As mães vinham chorar ali, que aquilo ali

era deserto, era só capim, barranco, aí fizeram esses treze barracos. Quando

foi em 1970 e dois, 72, aí fizeram 50 barracos na Silva Castro, barraco de

madeira e uma cobertura linda, bonita. Aí eu criei desejo de arrumar até um

barraco ali. Entendeu? Eu pagava aluguel, ou melhor, eu pagava aluguel em

São Caetano, numa pensão. Mas achei aquilo bonito, era bonitinho, rapaz,

duas árvores, ali onde tem a Associação Central de Heliópolis, nossa, a Cleide

era novinha. Então, fizeram 50 barracos, isso em 72. Aí trouxeram as famílias

da Vila Prudente, muita gente da Vila Prudente. Trouxeram muita gente da Vila

Prudente pra cá, mas já tinha os treze primeiro que foi feito em 1970. E aí ficou

aquela parte de trás, ali onde tem, e ali na beirada das juntas provisória, tinha

só, tinha uns barracos Sumatra, sabe? Os caras fazia o barraco pra compra

ferro velho, daqueles caras que catava na rua. Mas não era morador, era cara

de rua, era morador de rua. Eu já conhecia, depois fizeram os treze e os caras

colocaram os barraquinho ali. Aí fizeram 50, lá na Silva Castro. E aí foi

crescendo, aí foi crescendo. Aí uma irmã, uma cunhada minha, trabalhava no

hospital de São Caetano, também não tinha casa. O marido dela era um

cachaceiro e desapareceu, aí outra minha cunhada comprou um terreno ali na

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Almirante Nunes, já que tinha muita casa pra dentro, muito barraco já. Na

Almirante Nunes já tinha barraco pra caramba, tudo barraco de madeira. Aí ela

comprou um terreno até dum cara. Porque aquilo era assim, o cara pegava um

pedaço grandão, né, fazia um barraco e ia vendendo pra outro e cedendo pra

outro, trazendo um parente do norte e fazendo aquele apinhado, só que

centralizou ali na Cândido Xavier, que é a rua que liga a Estrada das Lágrimas

às juntas provisórias, ficou centralizado ali a favela. Aqueles eucaliptos ali do

Hospital de Heliópolis, eu vim plantar aquilo ali tudo, em 1970. Hospital

Heliópolis tinha um barraquinho pequenininho assim, feito de madeira e com

uma tábua assim na frente. Cê fazia uma [picha...], ali o cara atendia. Aí cê

entrava e tinha a divisória, tinha um médico lá, atendia você, o remédio era AS

e penicilina. Num tinha aquele prédio. Aquele prédio é novo, aquilo ali é

desleixo do estado, entendeu? O prédio é novo, pô. Ele ficou embargado seis

anos. Então depois plantaram aquelas árvore aí eles fizeram prédio, né? Aí

quando fizeram os prédios, colocaram os seguranças. Tô falando muito?

Qualquer coisa cê dá um sinal pra mim que eu paro. Então, aí os guardas, ali

naquela esquina da Conde Silva Castro com a Cândido Xavier, ali tinha um

entulho, tinha tanto entulho, a impressão era um restaurante, uma loja, um

negócio. Ali era um monte de entulho, viga de tudo em quanto era tamanho.

Demolições enormes, aquilo ali era uma escada de lixo, cidadão. Eu falo pra

você, era enorme memo. Pra tudo quanto era canto ali, num tinha ninguém. Só

tinha o Hospital Heliópolis. Hospital de Heliópolis tinha uns quatro guarda ali. E

os guarda começaram a vender o terreno. Os próprios guardas do hospital,

porque eles ficavam ali pra não deixar entrar descarga. Porque toda a descarga

vinha pra ali, de hospital. Ali onde é a pracinha, nossa! Ali eu vi muita coisa,

tinha um barranco, ali onde tem um hospital Pan, ali tinha um barranco, ali

jogava até víscera de pessoas que tiravam, de cachorro, que eu num sei da

onde vinha. Vinha carro de noite e jogava ali aqueles vidros de soro, aquele

negóção de soro, jogaram de caminhão e acho que era vencido, né? Jogava

de sangue, trompa de mulher, descarregava tudo ali. Tinha um barranco assim

e ali onde é o Pan ali hoje. É um AMA, né? Desmancharam e fizeram um AMA.

Ali tinha um barrancão assim, nossa! Ali era um terreno baldio, mas num tinha

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como entrar ali pela rua: Almirante então eles vinham por lá e davam um

trocado pros segurança, pros guarda do hospital e fora de hora eles jogava de

tudo quanto era qualidade ali. Quando amanhecia o dia era uma carniça, dava

até urubu ali, era um barranco enorme. Aí depois foram vendendo, vendendo,

vendendo. Tinha o campo do japonês, o japonês tinha três campo. Tinha um tal

de japonês, ele tinha três campo de futebol. Num sei o nome dele, era

conhecido por japonês. Até umas tela de arame assim na entrada, quando saía

ali, que hoje é a rua Itamaraty. Então, era só o começo dela, pra cá era só

mato, era tudo. Ali tinha amora, tinha mangueira, bananeira, tinha tudo. Tudo

era muito diserto, era um diserto. E aí na parte dali que vai lá pra onde é aquele

posto de saúde, hoje aquele centro de saúde, ali era uma descarga horrível

também, ali num tinha nada. Aí entro uma firma ali por nome Paixão

Terraplanagem, o cara tirava terra pra vender pra tudo quanto era canto. Onde

tinha um começo de uma construção, uma construtora tava fazendo o serviço

de terraplanagem pra levantar prédio, precisava de aterro. Esse Paixão vendia.

Tinha uma maquinaria enorme de caminhão. A terra não tinha dono. Aqui o

Heliópolis não tinha dono. Ninguém sabia.

Aqui tinha 30 e tantos campos, eu conheci 23 campos. Aí quando o cara

coloca 30 e tantos campos, pra mim ele ta exagerando. Porque eu conheci

campos. Aqui não tinha ninguém, isso aqui era um diserto, aqui num tinha

nada, aqui embaixo tinha dois cara aí, um já faleceu que chamava Betão e tem

o [...] que ainda hoje mora aí com o pai dele. Ali tinha um expresso ali no

museu, né, ali embaixo, mas o resto era só mato. Aqui onde nós tamo, nossa!

Isso aqui era uma mata, era mato, era [quiçássa...]. Não era aquela matona,

como se fala, é, uma floresta, um diserto, não. Era um tipo dum carrasco, como

se chama no norte. Porque lá tem o carrasco e tem a caatinga. Carrasco no

nome mesmo, carrasco é aquele que mata mesmo. Aqueles que são, que

degola o cara, que põe na forca, eles chamam de carrasco, num é isso

mesmo? A gente diz assim: ―ó o carrasco‖, puxo a forca lá e degolo o cara, é

um carrasco. Mas no norte, nós tem essa língua nordestina. Carrasco, caatinga

e mata, entendeu? Tem o cara da mata, tem aquela mata, hoje não existe

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mais. E tem a caatinga também que é um deserto. E tem o carrasco que é o

lugar onde o cara roço há muito anos atrás, e tanto é aquele [cipoal...] vai

crescendo, depois são aqueles matos mais finos, onde o cara vai lá e tira uma

vara, tira um cipó pra fazer um caçoá, corta uma taboca. Então é, a gente

chama carrasco. Então aquele ali é um carrasco, aquilo era só mato, né? Mato,

tinha, só não tinha aqueles matos que vêm lá do norte, que lá tem muricizal,

tem a pitanga, tem o murici mesmo que a gente faz o suco dele, né? Tem

muitas coisas lá, tem o guabiru, tem a goiabeira. Aqui tinha muita goiabeira,

nossa! Goiabeira, araçá, até araçá tinha aqui no meio, no meio da goiabeira. O

araçá, ele é mais miudinho, entendeu? Tinha de tudo, aqui tinha de tudo. Era

uma caatinga, era mais uma caatinga. Era uma espécie de um carrasco,

mesmo, com as capoeiras, era capoeira.

Em 72 que foram construídas 50 casas. Essas aí foram em 72. Em 1970

construíram 13. 72 construíram as 50. Porque eu já vi algumas coisa aqui.

Pessoas falando que a favela começou em 70, começo em 70. Isso é história

minha mesmo. Você é a primeira pessoa que tá me entrevistando, mas já saiu

até um livro aí, que eu vi já mesmo aí que a favela começou em 70. Mas de

peso mesmo, ela começou em 72, que foi quando fizeram os 50 e que aí o

pessoal foi se aproveitando, né?! Mas tudo o começou com a prefeitura.

Começou com os 13 barraco, em 1970. Em outubro de 70. Naquela época, eu

não sei se, eu num me lembro bem. Mas me parece que era o Reinaldo de

Barros. Que ele disputou com o Paulo Maluf, né? A prefeitura em 69 por ali

assim quando eu cheguei, né? Então me parece que em 70 era Reinaldo de

Barros, me parece que era, né? Num tenho bem na lembrança, não.

82 foi quando eu mudei pra cá. Eu vim da Ponte Preta, aí eu comprei lá

onde eu moro. Eu comprei dum cara que se dizia ser, dizia ser comissão, né?

Que não era. Ele dizia ser comissão, era muito amigo da gente e tudo, mas

depois ele fez aquela idéia de começar a roubar, foi preso diversas vezes.

Depois queria complicar nós dizendo que nós tinha incentivado ele a ficar na

cadeia. E foi o contrário, nós lutemos pra tirar ele da cadeia. O nome dele é

Zé Beição. Não era Zé Beição, é um cara que morava aí com o nome José. Eu

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comprei esse terreno que eu moro hoje, eu comprei dele, grilado também. Mas

aí já tinha muito essa área de cima já tava tudo cheia de barraco, era barraco

pra tudo quanto era lado. Aí quando eu entrei, eu tava completando aquela

época, eu tava fazendo aniversário na noite que eu mudei. Eu tinha uns

toquinhos de uma casa que eu tinha em Ribeirão Pires e eu vendi. Aí aquele

plano Sarney corroeu, afinal de contas quando o cara terminou de me pagar eu

tinha débito, dívida ativa, ainda bem que eu tinha tirado o dinheiro pra comprar

aqui, o que tinha lá, eu tirei pra comprar aqui. Paguei 75 cruzados pra ele em

dinheiro e ele já tinha tomado de outro cara, ainda paguei 35 pra outro cara, aí

eu dividi pra três famílias. Pra um filho meu e uma cunhada Eu ainda to no

mesmo lugar e o meu filho e essa minha cunhada, eles tão no mesmo lugar.

E aí cheguei e conversei com esse cara que ia ser comissão, né? E aí

eu conheci o movimento, nesse tempo tinha algumas pessoas que queriam ser

político, na verdade são hoje. Que nem o Zé Mentor que cê já ouviu falar, né?

E a igreja católica também, pessoas que depois também entrou na política, que

nem a Erundina. Mas primeiro eu cheguei a conhecer o João Miranda e a

Genésia, já tinham a comissãozinha deles. Quando eu cheguei, eles já

moravam aqui, aí eles tinham quase um ano que moravam aqui. Aí eu conheci

eles. Então eles tinham uma comissãozinha e eu achei interessante porque ele

como era morador, ele avisava, saiu avisando: ―ó, a gente vai ter uma reunião‖.

Nós não tinha comunicação, a comunicação era verbal. Tá entendendo, não

tinha máquina, num tinha nada, o cara tinha que chegar na boca mesmo e falar

pras pessoas. Genésia. Nossa! Genésia é uma mulher de luta, né? João

Miranda, a Cleide mesmo mais nova, mas Nossa Senhora! Tinha esse Miguel

também, ele era também. Fazia parte do grupo, um de tal de Miguel. Hoje ele

é inimigo da gente, que assim, ele queima muito nós, né, nosso trabalho. Mas

eu conheci esse pessoal, aí eu fui pra uma reunião. Eles me convidaram e eu

fui pra reunião. A reunião é não centro da Juventude que tem ali aonde tu

mora, Gil. Tu mora na São José? É aquela outra rua, como é que chama.

Como é o nome daquela rua? São Vicente de Paula, ali tem um armazém não

tem? (pergunta ao Gil que gravava a entrevista) É da Mirene, então a reunião

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foi ali. Então lá se ajuntou toda a comissão, ali que eu cheguei a conhecer

essas pessoas. Conheci o falecido Padre Dídimo. Um cara que trabalhava lá

na Ponte Preta, não me lembro agora o nome dele, que era padre também.

Também acompanhava o nosso processo. A Pastoral da Moradia, aí tinha a

Terezinha Martins. Não tava todo, mas tinha uma boa parte. Tinha o Frei

Sérgio, que já faleceu, ta entendendo? Aí tinha o Miranda, a Genésia, o Mentor

tava lá também, ele não era nada, era um peão, mas como ele era da OAB,

estudava na OAB pra fazer advocacia né? Ele participava muito com nós.

Então tava todo mundo lá, aí eles convidavam: ―Quem quer fazer parte da

comissão?‖. Eu levantei a mão, aí eu entrei na comissão. Tinha três meses que

eu tava aqui, três meses, aí eu me inscrevi lá. Aí era anotado o nome do cara,

né? Aí eu dei meu nome lá, aí fiquei na comissão, até hoje. A atividade da

comissão era lutar pela terra. Porque aí a gente veio descobri a partir dali quem

era o dono da terra. Porque os grileiros mandavam matar a gente. Quem

entrava eles contratavam alguém, os capanga pra tirar você na marra, matava

mesmo, mandava matar. Tinha 15 ou 16 donos e na verdade os caras eram os

herdeiros. Era da Condessa Penteado, parente, bisneto, tataraneto, mas tudo

diziam ser dono. Então, e eles num moraram nem aqui dentro. Só tinha um que

morava no [ ] Preto e um tal de Zé Patrício, acho que já morreu. Eles

contratavam os caras pra tirar a gente. Inclusive um dia, antes de eu entrar

nessa comissão, tinha tido uma briga danada deles aí, tinham machucado a

Genésia, João Miranda e o João também machucou um cara e o pessoal se

uniu, né? Era mais unido do que hoje, participava mais. A comissão era

mais participativa, e tudo, ninguém ganhava nada, ninguém ganhava nada com

isso, era tudo atrás da moradia. Porque eram pessoas que queriam o seu

local da moradia, pessoas carentes que tinham chegado do Norte, tava sem

arrimo, tava sem o aconchego, entendeu? Ele não tinha onde ficar, pessoas

trabalhadoras, pessoas que chegaram aqui e arrumaram um servicinho e ele

tinha que morar, ás vezes, na casa, no fundo duma firma e agüentando

abuso do patrão, até com suspeita. Ou se morava dentro dum alojamento,

que nem eu morava, entendeu? E era assim, alguns eram que nem eu que

tinha o barraco que era da minha mulher, que tinha onde morar pelo menos

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sobreviver, mesmo com água e tudo, mas tinha o local que trabalhava e sabia

a noite onde ia dormi, entendeu? E muitos não tinham isso, muitos nem isso

tinham, ta entendendo? Então o cara chegava, a gente convidada ele, nossa!

Enchia. Nós tinha o barracão ali onde era a casa do João Miranda, onde é o

[...]. Ali na frente. E você via aquilo ali assim ó, né? Ficava lotado lá, rapaz,

ficava lotado. E o nosso trabalho era um trabalho muito unido de luta mesmo e

enfrentamento. Nós dormia no chão ali a noite inteira, dentro do barraquinho. A

Genésia, o João Miranda, o Frei Sérgio e os demais. A Erundina não era nem

vereadora e na luta ela conseguiu muito voto também, depois ela foi candidata

que saiu vereadora, né? Também me deram um apoio danado, ficaram junto

com nós, né? E assim por diante. Então, a nossa luta era pela moradia, né?

Tinha a mesma fé que eu tenho até hoje, né? Que existe um ser

supremo, além de tudo que Ele, acho que tem poder de resolver nosso

problema, mas vai depender também da gente, de um lado nós fazemos a

parte, de fé em Deus e do outro lado nós fazemos uma corrente de

humanidade uns com os outros. Da que é a nossa união, a nossa participação

junto na nossa luta, o nosso enfrentamento diante do poder público. Seja diante

de qualquer poderoso, que nós teje unidos e não rachados. Que nós sempre

teje respeitando a nossa união, respeitando o nosso semelhante e respeitando

o componente que fazem parte da nossa associação, sempre respeitando os

nossos deveres, que são os deveres sagrado, que Deus me deu, que é o

respeito...

[..] igreja, mas sempre da maneira que eu faço hoje, sempre fui católico

mas eu não deixo de ir nas igreja evangélicas, sempre eu vou, porque existe a

palavra de Deus lá também, existe o bom e existe o ruim. Porque na hora que

se diz, paga teu décimo terceiro, se você tem condição de pagar, ta escrito na

Bíblia sagrada da igreja católica, cê pode pagar o décimo, não é o décimo

terceiro, o dízimo, o dízimo faz parte da palavra de Deus e que ta no Evangelho

sagrado, parece que ta no Evangelho de São João, uma coisa assim. Então, e

a igreja, e a oferta, a oferta pode ser dada tanto na igreja evangélica quanto na

igreja católica, a oferta faz parte também do trabalho humano e nós recebemos

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muito isso, o apoio da igreja católica. A igreja católica sempre nos deu apoio.

Hoje ela não põe muita paz porque ela entrou na política também, entraram

muito na política. Eu acho que a política é uma coisa que a gente tem que

entender, que a política existe muito interesse diferenciado da palavra de

Deus, entendeu, num é? Porque a política que existia naquele tempo, o de

Herodes quando ele mandava matar todo mundo, todas crianças que nascia,

todo homem que nascia e já era uma política. Ele mandava matar toda criança

do sexo masculino, entendeu? Então ele fez isso. O que aconteceu? Aí ficou

Moisés, né? Filho de uma filha dele e ele não sabia, então existe a falsidade,

sempre existiu isso. Então na política existe isso, mas num deixa de nos apoiar,

porque se não fosse os políticos, que seria de nós? Não existia a lei também,

né?

Bom, hoje a igreja não tem muita participação. Na época ela participava

muito. Ela nos ajudava muito com o apoio do dia-a-dia perante o poder público,

ela tinha enfrentamento junto com a gente, de frente dos poderosos, porque

todos os dono de terreno são caras políticos, cara que tem muito, né? E a

igreja fazia uma parte e que depois nós começamos a cobrar dela também,

porque no terreno da igreja, ninguém entrava. Ela apoiava a invasão, mas se

invadisse a área dela, ela tirava. Veja só como ela era! Quer dizer que quando

eu coloquei que aqui agora ela faz parte da política, não é que ela seja parte de

uma política partidária, tá entendendo? Mas ela faz parte da política ambiciosa,

entendeu? Que é a política de ter, política da riqueza, a política que existe em

Roma que é só ouro, lá, entendeu? Tem aqueles leilão que tudo é ouro, lá em

Roma. Então, ela fez essa parte, se a gente entrar numa área particular, ela

nos apoiava, tava junto com nós, entendeu? Agora se chegasse a entrar numa

área dela, ela mandava tirar, ela não aceitava. Inclusive, ela nunca deu

aconchego a ninguém na igreja. Ela apoiava nós de uma maneira diferente, ela

nos apoiava na luta contra o grileiro, contra o Japa que depois apareceu como

dono da área, mas na igreja mesmo ela não queria ninguém. Pra morar lá

dentro, pra dormi lá dentro, pra ficar lá dentro ela num dava, entendeu como é?

Nós fazia reunião de peso, com a COHAB, fosse quem fosse, os movimentos,

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mas tinha um limite, tá entendendo?Tinha um limite dela, ela tinha um limite

dela, ela sempre teve um limite. Mas não deixava de nos apoiar na luta,

entendeu como é? Ela dava, se fosse possível, ela dava madeira, algumas

madeira pra fazer um barraco, se tivesse com telhado como ela nos deu, um

telhado enorme, um telhado caro, ela nos deu pra ajudar a cobrir o barraco de

enchente, meu quintal tinha um monte de telha, tudo telha de plástico, telha de

seis metros que vem da igreja aí do Moinho Velho, que era pra dar pros

invasores que num tinha com o que fazer os barracos, madeira, entendeu?

Cesta, ás vezes, ela nos cedia, nos dava algumas cestas também, entendeu

como é? Trazia assistência social, nós tinha assistência social e a Pastoral da

Moradia, ela nos cedeu algumas coisas também como a broca de bloco, ela

manteve, a Pastoral da Moradia, muito tempo eu tinha uma broca de bloco

aqui, aqui onde nós tamo mesmo. Aqui eu tinha um depósito de cimento que eu

fabricava bloco, eu fabriquei próprio aqui dentro, mais ou menos, mais ou

menos uns, pra umas trezentas casas. Bloco de cimento, bloco de primeira.

Tudo dinheiro doado pela igreja, ela comprava o material, comprou o cimento,

comprou o maquinário, entendeu? Tudo na bitoneira, máquina vibratória,

entendeu? Mandou colocar trifásico pra nós, tudo a igreja, então ela nos deu

um apoio extraordinário. Agora na parte de aconchego, de moradia, pêra lá, ela

não dava, ela dava o apoio em áreas que não pertencia à igreja. Aí ela fez.

Tinha algumas áreas, a gente conheceu algumas áreas aí que a gente não

pode justificar muito, porque na verdade, todas as igrejas, ela tem o seu limite

que ela num apresenta pra ninguém, entendeu?Ela não apresenta, o

patrimônio dela ela não vai dizer que ela tem, mas se sabe que ela tem, porque

ela tem fazendas. A igreja tem grandes fazendas, tem grandes mansões aí fora

que se sabe, né? A igreja tem terrenos enormes também. Que nem tem ali o

[...] no Ipiranga, pô, aquilo ali, só fica lá o padre e as freira. Cadê aquela

casona que tem lá, enorme? Quando tinha barraco desmoronado, a igreja

poderia dá um aconchego, mas quem dava? Nós, a UNAS, que não tinha

UNAS naquela época, mas era nós que se virava. Nós tinha o apoio da igreja,

sim, que ela até vinha nos apoiar no que nós deveríamos fazer, mas tinha um

terreninho ali, mas aqui dentro da favela, vamo conversar com o fulano de tal,

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ia a freira, um padre mais nós, aí a gente fazia com que aquele elemento até

cedesse um pedaço pra aquele desabrigado. Mas ela dizer assim: ―Vamo levar

pra dentro da igreja‖, a igreja ali, a igreja que tem ali no Ipiranga, a Nossa

Senhora da Aparecida, poxa! Nossa Senhora da Aparecida ali, ela tem uma

leva de barracos ali do lado que deve ter uns 40 barracos que deveria levar

duas ou três famílias desabrigadas pra lá, ela nunca fez isso. Mas do outro lado

ela fez, sim, nos deu apoio, nos cedeu a broca de bloco, ela pagava, a gente

pagava em dinheiro, porque não trabalhava só eu, nós trabalhava em quatro

homens, ta entendendo? Ou melhor, cinco. Tinha dois na máquina, tinha outro

preparando a massa e tinha dois que carregava as fôrmas com a máquina

também, entendeu? E eu que gerenciava, quer dizer, que nós era em cinco,

quatro que trabalhava na máquina, preparava a máquina, trabalhava na

máquina e dois que carregava as fôrmas pra pôr no estaleiro. Nós fabricava

600 bloco por dia, era grande, essa área todinha era nossa, aqui era pra ser

uma horta comunitária. Ela ajudou com máquina, deu muita máquina de

costura pro pessoal trabalhar. Mas ela era de chegar e dizer assim : ―Aqui nós

temos uma área reservada, temos uma área reservada pra na hora que tiver

um problema de um desabrigado aí, por acaso, tiver um problema, queimar um

barraco, aí tiver um incêndio, alguma coisa, trazer pra cá‖, não, isso ela nunca

pediu. Tinha participação de evangélico, tinha diversos evangélico que

participava, só que ele não dizia, na verdade, ele não se esclarecia e não

falava da palavra de Deus assim pras pessoas. Ele tinha medo, porque tinha

de gregos e troianos por aqui, por dizer assim, tinha gente de toda raça.

Porque hoje ta liberado, mas cê sabe que de primeiro, aquilo que eu falei do

meu pai, né? Se falava da Bíblia pra ele, ele condenava, né, entendeu? Ele

condenava. Então, as pessoas que vinham aqui, normalmente, tinha muito

nordestino, nordestina. E nordestino e a nordestina não tinha muita

consciência, hoje já tem, mas num tinha muita consciência da palavra de Deus,

entendeu? Mas depois eles foram aprendendo. Depois essas pessoas foram

começando a te opinar com o Zé Francisco, ele era evangélico, tinha a finada

Dona Maria que era evangélica que eu conheci, tudo era líder comunitário.

Aqui, de vez em quando eles tinham, a luta, a briga era forte, as reuniões eram

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pesadas, era de enfrentamento mesmo, num era que nem hoje, hoje é

diferente. Hoje a gente luta contra os poderosos ricos, que é conhecido,

poderoso, que é a prefeitura, o governo do estado, ta entendendo? Nós não

tamo lutando hoje, nós num tamo tendo enfrentamento com bandido. Hoje nós

sabemos que tem grupos fortes que trabalham com a droga aí e comanda, não

comanda nós, entendeu? E até eles nos apóia e fala muita na UNAS e tal,

participa com a gente e tal, mas naquele tempo não, esses caras fortes, eles

não participava não, quando a gente escutava era uma bala no muro aí. E se

dizia assim: ―Mataram tantos, mataram tantos aí, mataram quatro, mataram

cinco, mataram três‖. Quantas vezes eu não fui abordado aí, em reunião da

igreja Santa Edwiges, nós fazia muita reunião ali, o cara chegar e abordar nós

no caminho, colocar um revólver em cima, teve vez que eu consegui falar e

tinha pessoa que não conseguia nem falar, o medo, era duro, era pesado.

Grileiro, mandado pelos grileiros. Os grileiros mesmo. Só que eles foram indo e

foram se destruindo, eles mesmos, porque os próprios capanga que eles

mandavam matar, esses cara começaram a vender o pedaço de terreno que

ele tinha, vender pra colocar mais um outro, e aquele cara que ele colocava ia

defender ele, aí era onde ele ia contra o grileiro e ele ia e matava. Que nem o

Geraldão tinha um monte, Geraldão ultimamente, foi o último que morreu aí, foi

o último dos grileiros que morreu. Mataram ele dentro da casa dele. E o bicho

era forte, viu?!O bicho era forte, pra nós tirar ali o muro da mina, ele foi lá

colocar a caatinga que ele vendeu pra mulher, a mulher ameaçou nós que não

podia abrir a rua que ela tinha comprado do Geraldão, e ai daquele que pisasse

lá que ela mandava matar. Hoje ela é minha amiga e nós tivemo um

enfrentamento louco ali pra abrir. Essa rua não tinha, passava pra lá um

caminhão, derrubava o telhado da casa do cara, se ele entrasse na rua

derrubava o telhado da casa do cara e ninguém tirava, o muro tomava metade

da rua, dois metros da rua pra cá. A rua tem seis metros de largura, né? Agora

eu faço idéia, como passava um caminhão por outro. Se eles fossem desviar,

ele pegava o telhado do cara. Até hoje, né? O que ela falava muito e sempre

continua falando, que a igreja nos falava sempre é que nós tava dentro do

nosso direito, que a terra era nossa. Deus fez o homem e entregou a terra e

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ainda falou pra ele ―Crescei e multiplicai e povoai na terra‖ e nós tava mais do

que certo, que a terra se tava abandonada, nós tava ocupando uma coisa que

Deus nos deu. Isso ela falava muito, eles tinham sempre essa pregação, nós

tava lutando pelo direito sagrado, isso ela fez muito. Por que se criou essa

Pastoral da Moradia? Que ainda existe, ainda existe isso, existe a Pastoral da

Moradia. Só que é aquilo que eu volto a dizer, a área dela ninguém entra, ela

não cede, ela não dá.

Eu acho estranho, porque se ele conhece o mandamento, não é

verdade: ―Dai de comer a quem tem fome, daí de beber a quem tem sede e

comer a quem tem fome‖.‖Dai de comer a quem tem fome, daí de beber a

quem tem sede‖. Num é isso mesmo? E no mais eu te acrescentarei, né?

Então, que ela deveria fazer? Pelo menos dá esse apoio, a única coisa que ela

fazia era isso e a igreja nos cedia pra fazer reunião, nós fizemos muita reunião

na Santa Edwiges, a igreja Santa Edwiges e no seminário dos padres, só que

tinha um limite, tinha marcado um dia e um horário, tudo, entendeu? E eles

bancavam o almoço pra gente. Na verdade até foi muita coisa, eles ajudaram

bastante, foi um grande apoio que eles nos deram. A única coisa que eu achei

estranho e continuo achando estranho é essa, que existe muitas fazendas da

igreja, muitas áreas da igreja católica e se entrar lá eles tiram na hora.

O que eu digo pra você, eu esqueci seu nome... Marco, eu, esse conflito,

eu na verdade, quando eu soube do conflito ele tava terminando, entendeu?

,Foi lá na área do Heliópolis, ali na área. Na verdade foi um conflito que eu não

fui, porque quando eu soube desse conflito meus companheiros já tinham

apanhado e tava uma confusão danada e eu tava até me arrumando pra ir

quando eu soube que já tava resolvido, mas talvez eu não fui mais porque na

verdade existia um acordo. Posso falar? Existia um acordo da nossa

negociação, hoje ninguém fala nisso, nem os companheiros falam isso, mas

existia um acordo e que hoje esse acordo, o próprio cara naquela época ele era

presidente da UNAS e o João era o vice e eu era um dos primeiros diretores,

ou melhor, eu era o diretor do conselho fiscal, hoje não existe conselho fiscal,

mas existia, a UNAS tinha. E eu era um diretor de peso do conselho fiscal, eu

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chamava reunião, toda vida eu me virei. Eu sempre tive autonomia, hoje não

tenho muita, num sei é pela idade, tem muita gente nova, né, e que o novo

discrimina muito o idoso, mas eu continuo lúcido e sabendo o que tô fazendo,

entendeu? E nós assinemos um documento, que é ali onde tem aqueles

prédios grandes, num sei se você viu, atrás do hospital Heliópolis, me parece

que tem quatro prédios grandes, entendeu? E aquela área que tem aqueles

predinho tudinho. Ali nós fizemos um acordo, foi feito um acordo e que foi

assinado, esse acordo que [...] e a GLEBA K ela era uma gleba particular. É,

ela poderia ficar particular de toda a negociação que a gente tava fazendo, se

nós cedessem aquela área de baixo pra eles fazerem a área que tava

desocupada, tinha muita área desocupada, fazer prédio na COHAB. A COHAB

pra fazer casas, fazer prédio, fazer sobrado, prédio. Até oito... até seis andar ou

mais. Se nós cedesse aquela área lá, ele liberava a área aqui pra nós ficar

como nós tava e depois negociar com a COHAB o direito real de uso, o direito

especial de uso ou comprar por um preço simbólico, entendeu? Então foi feito

um acordo e foi assinado. Foi assinado pelo Presidente da UNAS. Foi assim,

dentro do Martinelli. Ele hoje num fala isso, que é o seu Miguel, ele assinou

isso aí, entendeu? Isso eu provo em qualquer canto. João Miranda participou

porque toda vida nós tava junto, ta entendendo como é? Foi feito em comum

acordo, feito um acordo e não foi só verbal porque você sabe que todo setor

grande assim, eles tão gravando, é gravado igual você ta gravando aqui [...]. E

naquela época teve isso. E aí, o que acontece? O pessoal foi invadindo, o

pessoal foi invadindo todas as áreas, ocupando, ocuparam toda a área,

entendeu? Ocuparam toda área, aí foi quando deu aquele conflito e que aí foi

resolvido, aí a HABI deu novamente, depois de ter voltado atrás. E eu não

participei disso porque eu sempre tive uma coisa comigo, seu eu disser isso

aqui num é um óculo, se eu disser que isso não é um óculo, eu posso até voltar

atrás, mas vai ser muito duro eu voltar atrás, eu dizer que num é um óculo,

entendeu? Eu dizer que é um óculo mesmo. E eu sabia da história e quando

teve o conflito lá, eu ia, porque os companheiros tavam lá e eu sempre tive

com os companheiros, mas quando eu soube já tinha sido resolvido, entendeu?

Já tinham resolvido, porque queriam tirar todo mundo, foi um conflito feio, né,

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muito feio memo. Apanhou muita gente, o João apanhou, até a Cleidinha saiu

machucada, que é uma menina de luta, né?Tinha Enéas, Nossa Senhora! Foi

feio, né? Foi muito feio, mas depois resolveram. HABI é a secretaria d e

habitação. É a secretaria de habitação. Eles chamam HABI porque ela se

divide, né? HABI, é a sigla da secretaria de habitação, então eles colocam só

essas duas siglas. HABI é habitação né.? É, bem antes do conflito foi

negociado com o COHAB. Porque a COHAB dizia ser dona. Porque quando

nós descobrimos, o primeiro conflito que teve que aí nós puxamos a

assembléia aqui na estrada lá, deu três mil e tantas pessoa. Aí nós cheguemos

a descobrimos quem era o dono da área, no momento, era o IAPAS, era o

INPS que era o dono, IAPAS. Quando nós descobrimos que era o IAPAS, aí

como que nós temos que fazer? Então com a assessoria que nós tinha da OAB

e a igreja, quem nós vamos procurar? Procura a prefeitura, né? Procurar a

prefeitura, porque o governo municipal, a gente chegava a negociar com o

governo estadual ou até com o poder federal, porque o IAPAS é federal, né?

Então, o que acontece, nós procuremos negociar com a prefeitura, a prefeitura

alegou porque nós queria uma estabilidade, o povo, todo mundo que tava aqui

era pra morar, queria morar e queria na verdade ter o seu pedaço de terra. E

nós partimos pra uma negociação. Que a COHAB fez, alegou que não tinha

dinheiro e quem vai ter dinheiro pra comprar? Porque apresentaram que a área

era do IAPAS, né? Veio um advogado do IAPAS na hora, no conflito mesmo e

apresentou a área comum do IAPAS, entendeu? Por que do IAPAS? E os

grileiros pegaram fogo, na verdade alguns herdeiros. Mas por quê? Aí o IAPAS

ligou por que era dele? Porque eles tinha 45 anos que a área não era pagada o

IPTU, entendeu? Não era pagado o imposto, imposto territorial. 45 anos, de

toda verba que entra, o IAPAS tem a parte dele, com 45 anos caducou tudo,

entendeu? E ele ó, pegou. O ministério público descobriu tudo, e aí nós

partimos pra COHAB, a prefeitura indicou a COHAB pra nós negociar com a

COHAB. A COHAB alegou que não tinha dinheiro. Num tinha dinheiro, porque

não sei o que lá e porque é de [...] Como nós vamos fazer agora? Sempre nós

trabalhando com o advogado, com a igreja, a igreja nos deu muito apoio nessa

área, ela só não cedia a área dela pra gente fazer algo, mas nos apoiar, ela

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apoiou bastante, apoiou mesmo. E a prefeitura de um lado, ela também

apoiava sim, porque ela dava muitas cestas pras pessoas. Morador daqui que

não tinha eletricidade, isso já tinha um departamento de lá que já fazia isso,

mas alegando que num tinha dinheiro pra comprar a área pra nos distribui pra

nos.. Como é que se fala? Lotear pra nós, nos ceder os terrenos, negociar os

terrenos que os terrenos era do IAPAS, e o IAPAS também não aceitava

invasão, tinha que negociar, ele aceitava por enquanto, mas a gente tinha que

procurar uma saída. E que saída é essa? Nós procuramos a COHAB, e a

COHAB alegou que não tinha dinheiro, e agora? Como nós vamos fazer?

Então tem que parti pro Banco Nacional de Habitação, que era o BNH. Aí a

COHAB partiu pra um empréstimo com o BNH, que foi extinto, na verdade não

foi é a Caixa Econômica, né? Só mudou a sigla. Aí nós fomos atrás e

começando lutando, lutando. Parece que eu tenho uns cinco boletins de

reunião com a COHAB, isso dividido os cinco por dois que dá dez, ta tudo

guardado comigo, tudo na minha pasta e a COHAB tem isso e eles me

conhece muito bem , me conhece. Aí o que acontece? Nós entremos pra

negociar com o BNH, ou melhor, COHAB, né? Com a COHAB, a COHAB tinha

que se virar porque foi passado pra COHAB. O IAPAS passou pra COHAB

procurar um meio de comprar a área. Que a COHAB fez? Ela pegou, naquela

época, 360 e poucos milhões do BNH. Era muito dinheiro, era milhão, milhão

de cruzado, naquela época, era cruzeiro ainda, cruzeiro. Isso em 86 já, por aí

assim, aí ela pegou esse dinheiro, 86? Não, não era, não foi em 86, 84, 85, por

aí assim. Sei que ela pegou esse dinheiro. E negociou com o BNH e deu uma

área, pegou esse dinheiro emprestado, entendeu? Pra comprar do BNH, pra

comprar do IAPAS, só que era mais caro. Que eles fizeram? Eles deram, eu

tinha uns documentos, depois o [...] pegou esses documento, eles deram uma

boa parte em dinheiro, me parece que deram 300 e poucos milhões pro INPS,

ficaram com uma rebarba, entendeu? E deram um terreno muito grande, que

eles tinham. A COHAB tinha um terreno muito grande, perto da Santa Casa ali

de Santo Amaro. Em troca, eles deram esse dinheiro pro IAPAS e esse terreno

lá, perto da Santa Casa em troca. E o terreno não ficou pra COHAB. Tudo

da COHAB, era tudo da COHAB . Toda a área, só que ficou assim, ela ficou

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dividida. Ela ficou dividia, ela ficou assim, aqui é a gleba, a gleba J, a gleba H,

essa parte de lá, que ela toda lá não dá o tanto da gleba K, ela ficou

praticamente desmembrada, assim, porque aqui uma parte dela, o que tava,

tava, a COHAB poderia negociar, agora o que não tava ocupado, a COHAB

poderia fazer os prédio que ela queria fazer. Como ela contratou, fez aqueles

prédios grandes lá, não tem uns prédios grandes? Aqueles prédios foi firma

particular que fez, eles contrataram. Ali quem mora não é gente daqui não, é

gente de fora, gente que tem muito dinheiro, é caro um prédio daquele e tinha

umas ilhotas, entendeu? Tinha umas ilhotas. Ali tinha umas três ilhas, uma

espécie de um ―aquípero‖ ou dum golfo, entendeu? Então tinha aquilo ali

separado. Tinha ruas assim que dividia, era a mesma área, mas ela fazia uma

divisão. A Carioca era separada. Então ficou tudo, é uma área eu não sei nem

a quem pertence aquela área na verdade. Porque é uma área que ia passar o

metrô ali. Foi cadastrado tudinho, colocando o [...] do metrô, o pessoal tirou

tudo e fez casa, mas ficou tudo desmembrado, na negociação. Na prática não

foi desmembrando, mas na negociação ficou Aí teve esse conflito, foi resolvido,

pra que a COHAB fizesse o projeto dela global, da área inteira. Aí nos

cobremos, a partir dali, um projeto global pra área inteira. Só que tem uma

restrição ainda, que a gleba K, ela ficou praticamente desmembrada de lá

nesse tempo, que foi assinar esse documento. Porque foi feito uma pesquisa

todinha, um levantamento cadastrado de todo mundo da gleba K, foi feito um

cadastro lá também, com a mesma coisa, mas sendo praticamente

desmembrado, entendeu? Mas a área toda é da COHAB, continua sendo

todinha da COHAB

A UNAS foi criada em 89. A terra onde está a UNAS pertence a

negociação com a COHAB , mas nada da UNAS pertence a COHAB. Não tem

nada, o vínculo dela não é com a COHAB. O vínculo da UNAS é com a

Prefeitura, ela pode ter vínculo com tudo, ela tem diversos vínculos, né, até

com a Caixa Econômica hoje ela tem, ta entendendo como é? Só que

praticamente, nós tamos num setor que foi autorizado pela própria COHAB,

que as áreas públicas que fosse utilizada pras associações, pras creches, não

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tinha nada a vê com a COHAB, entendeu como é? Então, elas são

praticamente desmembrada de COHAB, são áreas que é do povo, área que é

do povo, principalmente da UNAS. Deu pra entender agora? Ela não tem nada,

nós não temo nada, esse setor não tem nada a ver com a COHAB, aqui é

UNAS, ela é assegurada por lei que foi assinada pelo Ministério Público

também, eu tenho um documento do Ministério Público, foi feito tudo com

Prefeitura, que são áreas liberada pela própria COHAB pra que sejam de

propriedade da comunidade, da UNAS, representante do povo. Essa creche

que tem aí, foi a Prefeitura que fez no tempo do governo Quércia, mas pra ele

fazer, nós cedemos, a área pra fazer a creche, depois eles queriam

desmoronar pra fazer um prédio. Isso aí deu uma guerra, na Secretaria, é, na

Secretaria de Educação, o cara me levou aqui, foi quase um seqüestro e

depois ele ia fugindo comigo, é, eu já tava em Santo Amaro quando eu

descobri que ele queria me usar pra alguma coisa, um tal de Rubi e aí eu pedi

pra parar, desci do carro e perguntei pra onde ele ia, falou que tava vindo pra

cá, eu disse: ―Não, cê ta no caminho errado, ou cê vai me levar, ou eu vou

chamar a polícia agora pra você aqui‖, perto dum orelhão lá, aí teve que me

trazer aqui e eles queriam desmanchar a creche que era de madeira e depois

nós morador, com grande sacrifício, com grande luta, conseguimos a

estabilidade da creche, naquela época, não foi tirado uma criança daí e

inclusive ela foi ampliada, cê vê que hoje ela tem berçário, tem tudo que não

tinha. Hoje ela tem tudo aí. Muito trabalho.

Teve outra ocupação da Prefeitura, a Prefeitura teve três ocupações

aqui dentro e muita gente não sabe. Até mesmo uns veteranos meus, junto

comigo, não sabe. Teve uma ocupação da Prefeitura na rua Adriana, eles

fizeram 23 barracos também, onde tem uma creche, num sei se você andou lá,

tem uma creche ali, já saindo ali da rua da Alegria, tem uma creche bem de

frente, pra cá da creche, eles fizeram 23 barracos, colocaram nesses 23

barracos, eles quase 40 famílias. Isso aí já foi em 70, em 70, em 76. Não, não,

to mentindo, essa daí foi em 79. 79. Teve essa ocupação. A Prefeitura invadiu

isso aqui três vezes e agora ela ta querendo invadir de novo. Tá querendo,

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porque, se ela ta tirando uma área, como ela ta tirando, as áreas de risco. As

obras sem apresentar o serviço no local que ela removeu o povo, as obras

paradas, então ta se vendo que ela ta querendo tomar, né? E fazer uns quatro

prédinhos pagando bolsa-aluguel e tendo, num sei se você viu no jornal, que

eles tão ameaçando cortar o bolsa-aluguel. Tem uma região aí que eles tão

ameaçando de cortar o bolsa-aluguel e o pessoal vai pra rua e a gente ta com

medo disso num acontecer aqui, então isso é chato, né? Porque se ela foi a

primeira invasora e que teve três setores de invasão da prefeitura e hoje ela ta

fazendo isso e não quer respeitar um direito sagrado que veio na constituição

brasileira que eu tenho na minha casa, a constituição, que são os direitos que

não tinha áreas da prefeitura dentro da área urbana não existia o direito e que

de 74 nas emendas constitucionais, de 2004 pra cá entrou uma emenda

constitucional que se com um ano que você ocupar você tem o seu direito

preservado na área urbana ou, não precisa ser rural, pode ser urbana, não

pode nem se deixar, é urbana mesmo porque nós tamo aqui, tem o seu direito

respeitado e ela não ta querendo respeitar. Por que isso? È um absurdo. É

uma vergonha, né?

Tudo de fora. Trouxeram família da favela da Junta, trouxeram família da

Vila Prudente. Fizeram uns barracões grandes, rapaz, eram grandões os

barracos. Isso em 79. Aqui, o Gerô, conhece o Gerô? O Gerô mora quase em

frente essa invasão aqui, é só, o Gerô nesse tempo nem existia. Se existia,

num existia aqui, não morava nem aqui. É que tem muita gente hoje, Marco,

tem muita gente hoje aqui que ,às vezes, você chama ele pra fazer uma

entrevista , ele não vai fazer. Mas ele vai pegar alguma picuinha na nossa

história, ele não vai contar a história toda, entendeu como é? Agora a Cleide

conta a história toda, o João Miranda conta a história toda, a Genésia conta a

história toda, o Deomiro conta a história toda, o Miguel, se o Miguel fosse da

UNAS hoje que não é, hoje nós briga ali embaixo, ele malha muito a gente,

ele poderia contar a história, até um certo ponto, mas num contava. Ele é

conta todo o nosso trabalho, se você procurar alguém: ―Não, tem o Miguel‖,

então, ele vai ser contra nós. Ele tem a cara de falar pra nós que hoje nós se

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preocupava era com escola, era com creche, era com educação pra não sei

quem e aquilo outro, era coisa que entrasse dinheiro, na verdade a gente tem

que trabalhar pra sobreviver também, né? Porque esse pessoal que trabalha

hoje, que nem o Geraldo, a Cleide, o Geraldinho também tem uma boa história

da UNAS, cê conhece o Geraldinho? Cê fez entrevista com ele? Então, ele é

muito bom, é um moleque, mas ele não é bem do começo, do começo um

bocado de gente também que você pode ter entrevistado, mas não conta a

história do começo. Agora o pique da história mesmo, do começo mesmo é o

João Miranda e a Genésia. E eu, porque eles tinham mais ou menos uns

quatro meses, uns cinco mêses que eles tava, foram atacado por esse pessoal.

Eles já moravam aqui quando teve toda essa revolução. Então, mas eles

sabem também a história toda, ele não sabe a história desses barracos, desses

13, eles pode falar porque fui eu que falei, agora quanto a história do

Heliópolis, do começo assim a dedo.Eu tenho uma foto, eu tenho uma história

dum jornal quando começou.Tenho esse documento do Ministério Público que

eu falei pra você, tem uma parte dela que ela foi tirada inclusive eu até separei

assim, sobre o projeto Heliópolis. E que ela ta falando sobre o projeto

Heliópolis, porque nesse documento do Ministério Público, quando o Pitta deu

o real direito de uso de todo mundo aqui, que era aquele projeto Moradia Legal,

foi feito esse documento no Ministério Público, foi feito lá no Palácio das

Indústrias, lá dentro, e eu tenho esse histórico do Ministério Público. Tem

tudinho, se você pegar e tirar umas cópias cê vai saber a metragem do

Heliópolis tudinha. A metragem do Heliópolis, um milhão de metro quadrado, cê

vai pegar tudinho. Tem uns pontos, piquete por piquete, raia que eles

venderam, cederam pra Sabesp, entendeu? Tem tudo, cê tem tudo nesse

documento, ta entendendo como é? E eu tenho uma foto dum jornal do São

João Clemente, que eu fiz, eu coloquei um anúncio [pra quem não soube...] o

Cingapura que ia entrar no Heliópolis, do Maluf em 95, eu tenho esse jornal,

fica na minha pasta, mas eu tenho alguns documento. E tenho o histórico de

todas as reuniões, o valor do preço que foi negociado com o COHAB, até o

valor do preço do lote, até duzentos metros quadrados. É, essas daí me

parece que eu tenho, eu tenho com a COHAB, eu tenho em reunião com a

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COHAB parece que é de 86, são de 86, 85, 86, eu tenho. Agora essas outras,

era reunião que a gente reunia lá , como a gente não tinha muita experiência

ainda, que era comissão, a gente não ia anotando muito. Era muito pelo

destino, pela emoção que a gente tava, né? Pela ansiedade, de qualquer hora

a gente ser executado pelos grileiros e a gente tentava um pouco mais de

segurança nas reuniões e a COHAB só recebia, depois, porque que nós

criamos a UNAS? Eles não queriam mais receber a comissão, teria que ter um

vínculo registrado, criar uma associação, aí nós criemos. A UNAS tem um CGC

dela, né? Você já deve ter visto isso aí, o CGC da UNAS? Já viu? Então, aquilo

ali é internacional. E aí nós criemos a UNAS, com aquele CGC, aí nos

entramos sem precisar de parlamentar, nós tinha uma comissão nossa, da

diretoria, a diretoria ia lá em HABI. Vai se quiser, pode marcar, entra lá na

COHAB, fazer a reunião, depende da necessidade que a gente tiver aqui. E

naquele tempo a gente só ia se levasse um parlamentar ou a igreja, alguém da

igreja que se identificasse, você sabe que a igreja também tem o seu vínculo

poderoso, né? Então, nós criamos a UNAS, porque nós não queria ser

subordinado, queríamos ser subordinados ao nosso Criador e a nossa batalha,

o nosso dia-a-dia, nosso companheirismo, a nossa luta pelo avanço, pra que

nós tivesse um dia, o nosso direito preservado. E nós continuamos nessa luta,

tamo lutando pra que nós, e ainda num temo nada disso, pra você vê. Nenhum

de nós tem título de propriedade, que sempre foi o nosso objetivo. Ter de

pagar o mínimo, mas legal em cartório, que seja feito pelo estado, pela

prefeitura, toda vida no tempo esse. E, continuamos batalhando, né.

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Miguel Borges Leal

Ficha técnica

Nome completo: Miguel Borges Leal

Data da entrevista: 06/02/2010

Local e data de Nascimento: São José do Peixe – Oeras - PI -

08/05/43

Idade: 66 anos

Estado civil: solteiro

Profissão atual: Aposentado

Instrução: 4º ano primário

Profissão anterior: metalúrgico/ assessor de gabinete

Eu nasci no estado do Piauí, numa cidade chamada Olheiros, segundo

minha mãe, dia 8 de maio de 43 às 8 da manhã, num sábado. Eu morava com

os meus avós até os sete ano, aí minha vó morreu, eu voltei pra casa dos

meus pai, aí, aquela vida da roça. Eu lembro que eu era criado por vó e vô é

aquela coisa, eu não lembro muito bem a infância, eu era muito mimado, muito

mimado. Aí depois que ela morreu, eu fui pra roça. Eu era criança, tinha sete

anos. Eles tinham uma corda, que sapateava lá, era coisa muito bonita, folia de

reis. E isso foi até muitos anos, essa folia de reis. Aí depois que eu voltei pra

casa pra trabalhar com meus pais, trabalhei na roça de Belo Horizonte até os

18 anos. Na mesma cidade, nunca saí de lá, saí depois. Aí nesses 18 anos eu

fui migrado pro estado do Piauí, andei por Teresina, Floriano, perto do

Maranhão. Aí em 70 e não me vem a cabeça, eu vim pra São Paulo. Em 70,

acho que eu tinha 23, 25 anos parece, 25 anos

Aí cheguei em São Paulo em 70 e aí veio o negócio aí da igreja. Eu

sempre fui religioso, né, porque os meus pais,meus avós, minha mãe , sempre

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eram católicos praticantes faziam novenas e eu aprendi com aquilo. Só que era

uma religião. Nós tinha a religião como, sei lá, como é que se diz? A coisa de

abstrato. Só que aqui em São Paulo eu cheguei na Casa Verde Alta e Divino

Clube Mirim, aí tinha lá a paróquia chamada paróquia da Santíssima Trindade

e daí eu me ingressei lá. Só que naquele tempo era a ditadura militar, nós

ficava trancado nas igrejas. Eu entrei cinco anos, 70 a 75. Aí em 70 e... Em

junho de 72, eu mudei aqui pra Ponte Preta e minha história toda foi aqui na

Casa Verde Alta. Primeiro eu morei na Cachoerinha dois mês , aí mudei pra

Casa Verde Alta até junho de 72, aí mudei aqui pra Ponte Preta, vim nessa

estrada aqui na Ponte Preta, aqui do lado aqui . Aí nós tinha o Dom Paulo,

tinha fundado as Pastorais Sociais, Pastoral Operária, a [..] e Diretos Humanos

[Marginalizado...] e Periferia. E a pastoral de Periferia não pegou, depois virou

de favela, de favela virou moradia. Por que favela? Porque as favela ta

abandonada, não sei se você lembra que em 78... Foi quando eu conheci a

Erundina. Em 78 o prefeito era o Setúbal e lá o Setúbal proibiu, só podia sair,

não podia entrar ninguém nas favelas. E aí a Erundina já era danada como ela

sempre foi, ela era assistente social , mas era estabilizada e aí Dom Celso ,

chamou os padres, o Padre [...], as vezes até o seminarista João Judas. Isso

já foi em fevereiro de... E aí ele fundou, pediu pra fundar a Pastoral das favelas.

Aí nós viremos o bicho mesmo, nós corremos por esse país inteiro, Recife, Rio

de Janeiro, Fortaleza, Maranhão, Salvador, só aqui em São Paulo nós fizemos

várias parte de São Paulo e pra nós chega a que chegamos hoje, nós fizemos

no Ipiranga e no Heliópolis. Bom, voltando um pouquinho atrás, eu era

metalúrgico, aí em 76.

Sei que um amigo meu que trabalhava numa firma aí na Casa Verde e aí

eu entrei lá, aí depois eu tive um acidente de trabalho, fui mandado embora e

vim pra Casa Verde, depois pro Ipiranga e entrei na Metalac, aí fiquei dez anos

na Metalac, depois, endoidei a cabeça, vim, fui mexer com moradia, com

favela, com cortiço, mas quando era só aqui no Ipiranga . Por que era, quando

Dom Paulo criou as Pastorais, ele criou o [livro...] arquidiocesano, na época a

arquidiocese de São Paulo era grande, Santo Amaro, depois que o Papa

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maldito dividiu e nós fomos pra Santo Amaro, Cachoeirinha, Inajar de Souza,

nós [...] tudo.

João Paulo II era sem vergonha, ta no céu hoje, desculpa aí porque eu sou

ecumênico. E aí [...] a arquidiocese cresceu muito o movimento. Aí em 70, em

87, aí em 87, Dom Paulo chamou nós e disse não é bom ficar só nos cortiço

abandonado, as favela são muito privilegiada, é bom criar um movimento de

moradia, porque aí os cortiço foi privilegiado e as favela continua do jeito que

ta, se você vê nossa Heliópolis por fora você vê, vai entrar aí dentro você vai vê

uma pirambeira que tem aí dentro, aí, que dá até dó, só tá boa as ruas aí

porque a gente briga pra acontecer. Bom, e aí eu já tava fora da indústria pelo

acidente de trabalho, aí me enfiei aí na Vila Cristale em 78, no movimento

contra a caristia, o perdão, ah não, tem um negócio aí importante; os primeiros

passos que nos demos dentro do movimento metalúrgico em 76, foi num

movimento quanto a caristia, um movimento forte que teve aqui em SP da

igreja católica, ela que era ecumênica porque tinha bispos de outras igrejas,

pastor , era um movimento. Porque era um rompimento, foi o primeiro

movimento que estourou pra romper com a ditadura e o segundo foi o Lula que

quebrou o silêncio com a greve. E aí tinha que tá todo mundo junto, porque

senão o bicho comia nós, como quase comeu, várias vez, mas to aqui

A primeira vez que nós começamos foi em 76, assim que deu uma

aberturinha, lá em Grajaú, a mulher tá até [...]. Aí foi a primeira favela que

criou, as comissões, aí começou a crescer, é bom você lembrar disso aí. Em

79 aqui na Vila Palmares, aqui num pátio chamado, esqueci o nome dele, aí ele

organizou o núcleo de favela aí e daí cresceu tanto que foi pro Brasil inteiro que

foi criado o movimento de defesa dos favelados, MDF, e que depois de três

anos houve uma divisão infeliz aí, daí criou, daí dividiu MDF e MUF, Movimento

unificado de favela, só que aí Marco, nós não era só, era o coletivo, nós era de

Heliópolis, era de Paraisópolis, todo mundo, nós era um coletivo. Inclusive, nós

tinha as comissões locais, tinha a comissão nacional, regional pra poder nós

dá um basta nisso, as favelas tavam uma calamidade. Aí daí nós começamos.

Do movimento contra a caristia surgiu um movimento de loteamento

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clandestino, que era um loteamento que não existia documentação. Em 80

pintou o morro da USP, o morro da USP era uma área da USP e ela botou um

cara pra cuidar da área, daquela chácara, isso nos anos 60 e aí botou o cara

pra criar galinha, pato, mandioca, [...] Aí daí entrou com retenção de posse em

80 e foi um Deus nos acuda, foi meu primeiro enfrentamento, Vixe Maria! Que

era ditadura ferrada ainda. E o mentor, o mentor era divulgado desde moleque,

que trabalhava com nós, só que ele trabalhava numa firma e era na semana, a

doutora Gláucia, que era mulher dele, advogada foi quem veio, ela e os padres.

Aí chegaram aí os caras falaram assim: ― Esse cara não mora aqui não, ele tá

muito agitado‖, eu falei: ―Olha, vão me prender‖, não deu outra. ―Onde você

mora?‖, Eu falei: ―Eu moro aqui‖. ―Então me leva lá, já que mora aqui?‖. ―Mora

cinco rapaz‖. Vou começar o desfecho por aqui, só que nós tava numa

negociação pra tirar só o Sebastião e deixar as famílias, aí num dia aí

conseguiu, a USP disse: ―Doutora, se você me garantir que em 60 dias saia as

famílias lá, as outras, eu tiro o seu Sebastião‖. Ah..., tão lá até hoje. Aí que

entrei aqui no bendito Heliópolis. Em 79, 78 ou 79, só existia um pedacinho de

Heliópolis , acho que duzentas famílias, que veio 150 da Vila Prudente, quando

era o Maluf, Maluf não, Figueiredo Ferraz, chamo de Maluf porque era tudo

uma merda só , mas era Figueiredo Ferraz, pra abrir aquele treco lá, aí veio

mais 50 da Vergueirinho, aí ficou lá até 78 . Aí ninguém podia entrar porque

tinha o tal do veterinário que era bravo que só o diabo,ia dá tiro. Aí quando um

dia juntou o prefeito Valdir Milagre, eu, o Miranda, pra tentar fazer um barraco

só e foi o do Valdir Milagre, Dom Valdir... foi de Milagre? Não, rapaz, era

Valmir, Valmir da Rosa, não é Milagre, Milagre era o ladrão que queria me

matar também, era o Valdir da Rosa. Fizemos esse barraco, rapaz, de repente

aí inspetiou, aí eu comprei um barraquinho lá pra morar, mas nem morei, fiquei

uns dias com o prefeito (João Isaias) num barraquinho lá , aí fui morar com a

minha irmã aqui na Almirante Nunes, aí fiquei, fiquei um ano e pouco no

Arapuá. Aí no segundo semestre de 83 eu entrei pra Heliópolis, eu precisava,

não tinha lugar pra morar. Morei com todo mundo daqui, morei com o prefeito,

com o Miranda, com o Zé Pequeno, aí depois as irmãs compraram um terreno

pra mim aqui, eu dividi com as pessoas aqui também e eu fiz um bocado de

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cagada. Bom, só que em 84, só existia uma entidade, a de Heliópolis, a [...] da

Presidente, só existia ela e aí, o Cláudio, aí eles acharam bom, vamos fazer

isso mais com cuidado, porque tem a comissão de moradores, nós não

tínhamos a UNAS, era comissão de moradores e aí nós [...] com a entidade,

porque eles eram assim com o Prefeito Mario Covas, que era PMDB naquela

época lá, o governo daí, aí nós vota tudo, porque nós vota pelas entidades e

pela comissão. Quando nós percebemos isso, eu disse: ―Gente, é o seguinte

[...]‖. Ah... Primeiramente teve uma reunião lá, já tinha a fundação, a entidade

do Cláudio, aí teve uma reunião lá na COHAB e nós queria reunião aqui na

Santa Edwiges e eles queria lá, porque aqui era um sábado à noite e podia vir

mais gente, lá era reduzido. Aí eles votaram, votou Cláudio, o Prefeito, contra a

comissão de moradores, eu votei pela comissão e eles contra. Aí eu falei:

―Prefeito, tu nunca mais vai votar contra o povo‖, e ele nunca votou mais não,

nunca pegou mais a entidade dele lá, aquele sem vergonha, até que se juntou.

É meu amigo, mas nós tem uma divergência. E aí, que eu tava falando

mesmo? Sim, aí eu falei, vamos organizar uma entidade, e isso foi em fevereiro

de 86.

Em dezembro de 79, começou a sair uns barraquinhos na Rua da Mina

aqui, e morava Silvia, ela trabalhava lá perto da Aparecida da Arapuá, ela

morava comigo também junto, mas já tinha o morro do cristal, o morro da USP,

já tinha lá embaixo que a gente chama de quadra A, e eu falei: ―Não agüento

mais ficar aqui‖, aí eu vi a Silvia, Frei Celso, Calixto, era tudo padre e freira e o

que não era padre e freira era leigo, era tudo de nome da igreja [...] Aí o padre,

que tá com Deus, Padre Sérgio, comprou um barraco comunitário e neste

barraco a gente fazia as reuniões, que nós começava a discutir. Quando entrou

o Mario Covas, e todas essas participação, eu to até escrevendo um livro aí, to

com todos os detalhes dos padres, freira que entrou. E aí o Mario Covas foi

eleito prefeito, aí ele começou a botar água nas favelas, e os grileiros sabiam

que se botasse água e luz na favela era difícil tirar, e aí foi no primeiro

semestre de 83 e veio as meninas da prefeitura fazer uns trabalhos, aí veio 12

grileiros pegar as meninas, aí tava a Genésia, o João Miranda, o [...] e outras

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pessoa mais lá, quando eles chegaram foi uma luta, pau pra cá, pau pra lá ,

olho furado, quebrado, aí foi tudo pra delegacia , nessa época o Zé Mentor,

cuidava da questão de terra e o Doutor Jairo, não sei nem onde ele tá, cuidava

do crime, era criminalista. Aí chegou lá na 26, aí o Dr. Jairo, que também é da

igreja, tudo aqui é da igreja, depois entrou alguns evangélicos, e aí o Dr. Jairo

falou: ―Ó, agressão mútua, foi favelado e grileiro‖, que ele sabia que depois

segurava, com dois [...] foi o julgamento, aí absolveu todo mundo, até as

menina da prefeitura e cadeia lá pro Geraldão. Safado aí que morreu, mataram

aí também. Só que ele tirou em liberdade. Antes disso, no dia 30 de julho de

83... ah não, foi esse dia mesmo, eu lembrei, foi dia 30 de julho de 83 , que

deram um pau em todo mundo aqui, que furou a cabeça do João Miranda e de

outras pessoas aí . Aí eu falei: ― Olha, lá embaixo não tá muito bom, vou lá pra

cima‖, aí eu vinha da casa da minha irmã lá pra Arapuá. Aí no segundo

semestre de 83 e to até agora, depois eu vou voltar, to até agora sem arredar o

pé , se tu pega um cara, de todas as pessoa que tem aqui , que me conhece

aqui, e olha que to quase dez anos que mais nas rabeiras.

E daí, era celebração, e nós tinha um negócio, pra nós enfrenta a luta

dos grileiros, nós usava cruz, só andava com uma cruz, cruz e faixa e cartaz e

dizeres, nós pegava Isaías 17:21 que ele fala: ―Vi um novo céu e uma nova

terra‖, e nós refletia: ―Quando é essa nova terra?‖, E pra nós lutar, é essa terra

aqui que é a nova terra e o novo céu, temos que lutar por isso aqui, aí no

versículo 21 ele fala: ―Constrói casa e nelas habitarão, plantarão vinho e nelas

comerão seus frutos, de agora em diante...‖ e aquela coisa e tudo. Falei:

―Quando isso acontece?‖, sempre era eu que falava. Aí os padres: ―Ó, não é

bom que só um de vocês fale, é bom que vocês comece a ter língua‖ e quando

nós chegar lá na prefeitura, eles vão querer impedir, dito e feito. Vão querer

impedir que nós falemos. Aí eu falei: ―Quando é que isso acontece? Na nossa

luz, na nossa organização‖. Moisés nunca apareceu como imaginam, não, era

uma intuição, uma simbologia, por exemplo, a sarça que tava queimando lá,

coisa que não dá pra fantasia agora aí. E nisso aí, cara, o povo encorajaram,

ninguém mais tinha medo de nada. Nós enfrentava grileiro, enfrentava polícia.

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E a Polícia? Porque esse Geraldão era polícia expulsa, mas ele era assim com

a 26, que era 26 não era 95, era aqui em cima aqui. Tudo aqui era pau em nós,

pau em nós. E quanto mais batia mais nós ia pra frente. Inclusive eu que fui

saco de pancada aqui dentro. Eu ia achar o papel aqui e nem achei. Eu

levando um pau, um coro da polícia lá no despejo. E aí nós enfrentamos,

levamos essa luta até a saída do Mario Covas, Mario Covas saiu em julho, saiu

em 85 e entrou Jânio Quadro em 86. Foi um carrasco. Aí que veio o negócio da

cruz, todo ano, já fazia uns dez anos que nós fazia na sexta feira santa, nós

não fazia nas igrejas, nós da Pastoral da Favela, nós fazia assim, nós saía

daqui de Heliópolis um bocado, outro lugar e se encontrava na Vila Mercedes,

de pé e nós ia com a cruz até ali em cima , era uma via sacra. Aí, outro dia nós

se encontrava na Mercedes, aí vinha até nossa senhora de Fátima, levamos

essa luta até 92, aí em 92 nós começou a fazer setorizado, porque já era muito

cansativo, aquele pessoal velho e tal, já tava cansado... Então nós faz aqui na

semana santa, eles fazem aqui a procissão dos favelados. Agora eles faz da

comunidade nós termina, ás vezes, dentro duma igreja ou termina na rua. E

numa dessas via sacra , nós tava pedindo o escritório piloto pra fazer um ponto

de negociação com a COHAB e pedindo que fosse arrumada também a lagoa

que alagou, enchia de água, um sofrimento. E aí foi engraçado que nós

dramatizamos. Nós aí e as mulheres choravam, aí Jesus falava: ―Por que ta

chorando, muié?‖. ―Eu to chorando que o prefeito num quer botar água pra nós,

nem a luz‖. ―E você?‖. ―To chorando porque vai despejar nós‖. ―Eu to chorando

porque...‖. Aí cada uma era uma coisa e teve a Márcia que chorou mesmo. Ela

chorava, a Márcia, que é da lagoa. Aí o linguarudo do padre Marcio, essa cruz

eles ganharam quando eles viraram padres, aí ele falou assim: ―Essa cruz vai

ser enfiada aqui como resistência, porque a luta é sinal de resistência e aqui

vai ter o escritório piloto, vai ter o projeto de moradia digna‖, aí ele deu o

sentido político da cruz, que era mesmo, queria ser político. Rapaz, quando o

velho Jânio Quadros ficou sabendo, ligou pra Santa Edwiges: ―Manda tirar

aquela cruz‖, aí mandaram me chamar lá: ―Miguel, tira aquela cruz‖. ―Por que?‖.

―Porque os crentes não quer‖. ―Ixi, tá cheio de evangélico lá, que eles tem o

sentido da cruz, é política, não é questão de fé, é fé política, fé não é fé e, é fé

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política‖, se a fé não for política, ela não serve pra nada. E aí, quando de

repente: ―Miguel, roubaram a cruz, roubaram a cruz.‖. ―Ai meu Deus do céu,

roubaram o corpo do mestre‖, porque nós brincava, aí ligamos, fizemos um ato

ecumênico. Uma hora que você aparecer aqui, eu vou te mostrar, tem umas

fotos aqui que tem o padre abrindo a mão lá, o Zé Francisco. Aí o veio e

mandou trazer a cruz: ―Leva de volta, já que eles querem‖. Aí a cruz tava

enfincada, aí chegou lá o cara da prefeitura: ―Ta aqui o pau de vocês‖, eu falei:

―Não, você pegou ela enfincada, vai ter que enfincar.‖ O cara enfincou a cruz

lá, nós saímos e passamos.

Nós refletia muito a palavra de Deus e incentivado pela fé, até nós tinha

um canto que dizia: ―Animado pela fé... é uma coisa assim‖, nós canta, nossos

canto era tudo de igreja. Inclusive tinha um canto do Pedro César [...] que ele

dizia assim: ―Nossa alegria é saber que um dia, todo esse povo se libertará,

pois Jesus Cristo é o senhor do mundo, nova esperança realizará‖, era muito

bonita. Só quando nós tava cantando , que nem aquela época, em volta de nós

fazia o cordão de milico. Nós cantava lá e eles ficava mordido. Inclusive tinha

alguns que chegava em nós e falava: ― Olha, eu to aqui por que eu sou

obrigado, mas to com vocês‖, é sério, os militar chegava a ver quando o

comandante dava um forinha deles lá. Mas toda a nossa luta foi baseada , até

uns 15 anos atrás, foi toda baseada na palavra de Deus e se não fosse ela, nós

não estaria aqui hoje, porque nós seria exterminado pelos grileiro, porque eles

tinha arma pesada e nós tinha só um revólverzinho deste tamanho, até que o

Mentor veio e disse: ―Gente, esconde isso aí, porque se a polícia pega nós com

isso aqui, aí vai piora, vai achar que aqui é guerrilha.‖ Aí nós com a fé, ai meu

Deus, a fé, é Deus mesmo, e nós com a fé segurava a mão de Deus e nós

cantava: ―Segura na mão de Deus e vai...‖, aí cantava também lá: ―O povo de

Deus, no deserto andava mas a sua frente a....‖, nós pintava cara. Isso foi tudo

antes da UNAS, tudo antes da UNAS

Aqui tinha muitos evangélicos, porque você sabe, aonde entra

ocupação, eles chega e tinha uns que era sem-vergonha, eles ocupa depois

vende e vai embora, mas tem uns muito bons sim. E aí que nós tinha o Pastor

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Nilson, que ta aqui até agora, o [...] que morreu, o Zé Francisco morreu no

Piauí e nós tinha uns cinco ou seis pastor e aí ele foi juntando pastor também.

Tinha aquela [...] de Belém, tinha duas freiras que era de Belém, elas aí tem

freira. E quando nós se juntava era, não tinha esse negócio não, nós cantava

música evangélica, música católica, nós cantava tudo. Nós não tinha esse

negócio não.

Em fevereiro de 86 eu disse: ―O gente, ou nós organizamos a entidade

pra nós tentar filiar essas cambadinha que tá surgindo aí só pra encher saco ou

nós dança.‖ Aí começamos a organizar, essa tal de UNAS, ai que nome

comprido, porque nós queria colocar a entidade, os núcleos, a associação e a

sociedade, aí aquele palavrão. E a UNAS foi fundada de verdade, no dia, em

Maio de 86. Só que ela foi fundada sem registro, porque nós não acreditava em

registro, nós não acreditava porque era mais fácil de caçar e foi, ela não foi

porque não era registrada. Quando nós fizemos um protesto aqui o Jânio

Quadros mandou um documento, viu um cartão de imóvel, pra cassar o registro

da UNAS e não achou foi nada lá. Não foi cassada porque ela não fazia nada,

ela é quem incomodava, eles eram um pessoal lá que era do lado do governo,

era o prefeito, era [...], era um monte aí que era do lado do governo. Nós é que

era punição ferrada, não porque nós queria ser, mas porque ou nós batia.

Inclusive, quando... É que eu não tenho os jornais. Quando arrancaram a cruz

e depois colocaram, não, quando enfincaram a cruz , aí me perguntaram:

―Miguel, qual o sentido dessa cruz?‖. ―O sentido dessa cruz é a fé política, num

é fé e, é fé política, porque a fé que não revoluciona não é fé. E a cruz é um

sinal de resistência, de luta e resistência, foi nela que nosso mestre resistiu até

o fim e ele não deixou não, foi até o fim‖, nós também, se tiver que derramar

sangue, nós derrama, só que eu coloquei assim: ―Se tentar nos tirar daqui vai

correr sangue‖, só que o repórter colocou assim: ― Se tirar essa gente daqui vai

correr sangue‖, não era, eu também tava no meio, era nos tirar daqui. Quando

você vier aqui eu vou separar um monte de papel pra você tirar algumas coisas

Ah, aí fundamos a UNAS só que era só no papel. Quando do governo

da Erundina, invento aquele negócio de registrá as entidade, aquele negócio de

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chegamos ao [...] de mentirinha, vixi. Aí vamo registra a UNAS pra fazê

convênio, foi uma maldição, foi a maldição , porque entidade de classe não

pode faze convênio com o governo, porque como é que ela vai cobrar do

governo, se ela ta atrelada ao governo? Mas aí em 90, foi 20 de novembro, 20

de janeiro de 90, aí registramos a UNAS, foi registrada, que ela tem duas

fundações. Tem até carteirinha, eu até separei isso, mas eu baguncei tudo aqui

e aí foi fundado em 90, em janeiro de 90. E eu na direção, quando foi no

finzinho de 93, falei: ―Gente já to com sete anos, vamos passar pra frente

porque...‖, só que eu achava que o povo era democrático, só que na minha

intenção, não era o João que ia passar, era pro Heleno, mas era tudo uma

merda só. Se um não fez, o outro também não fez. Aí, cara, os caras entraram

tudo com mal gosto na coisa, aí ficaram quatro anos, aí desviaram tudo, cara,

desviaram tudo , era fé, brigaram com os padres, os padres que era daqui, teve

uma igreja aí que eu peitei pra ter essa igreja católica pro povo , fizemos

baixo-assinado pra ter essa igreja e eles não queria, queria sede pra UNAS pra

fazer convenio, aquela coisa. Mas aí veio caminhando, agora, depois você

pergunta pra eles, como é que tá a UNAS hoje? Infelizmente, fechada. Tem

muito trabalho mas não tem... Por exemplo, nós tem aqui 200 famílias, mas nós

não atinge nem 5 mil , quer dizer, a outra entidade que tinha na época nós

tinha 40, 50 mil pessoas, nós fazia assembléia com 5, 6 mil pessoas, aí no

piloto, todo mundo sabendo disso, tem [...] sabendo disso. Nós fizemos uma

aqui, com 3 mil pessoas em 84.

Ah, teve um outro conflito daqui pra cá , que quando o Geraldão [...] O

Geraldão queria tomar esse espaço aqui pra vender. E nós enfrentamos, aí foi

pau pros diabo, aí foi tudo de novo pra corpo e delito, mas nós permanecemos

aí, só que só morava três pessoas aqui , era o seu dono do circo e dois genro

dele, e nós ficou aí, aí foi vendendo, vendendo, num é porque venderam, é

porque vendeu o contrato aqui e isso aqui nunca vai ser regularizado, porque o

cartório de imóveis não regulariza. Aí a minha divergência com UNAS, não só

com a UNAS, com todas entidades daqui, que eles acham que regularização

fundiária não é só você dar o papel não, ela tem que ter frente, laterais e fundo.

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E hoje o cartório já até deu um jeitinho, de por exemplo, se vier aqui e aqui tiver

um biquinho, ele já aceita. O cartório já até aceitou. Por exemplo, tem essa

casa aqui, embaixo e em cima. Ele até aceitou agora, dar escritura, só com

dois nomes , só que o papel saiu na casa de baixo, mas o nome dos dois, sai

no papel, é tipo uma garantia, só que aquela escritura vale pra dois, só que

quando eu quiser ir embora, eu compro do outro.

Nós conseguimos muita coisa boa aqui, mas eu digo a você, eu to

desgostoso, não só com a UNAS, e outras entidades, mas com nosso povo

também. O povo é ruim, o povo quando não é trabalhado vira bicho. No meu

tempo, eu sabia trabalhar com ele, sabia rezar com ele, cantava com ele, nós

não fazia uma caminhada, a não ser com procissão, com a cruz , dando o

sentido da cruz que era a resistência, que nesse mundo nada vem de graça e

nós lia aqui nesse livro (apontando para a Bíblia), aqui tem uma passagem do

doutores da leis e nós lia muito aquela passagem, aonde Jesus diz: ― Ai de

vocês que fazem leis injusta e provoca carga pesada nas costas do povo e

nem com o dedinho ajuda a levantar. Vocês são como sepulcro caiado, por

cima tá bonito, por dentro tá podre, vocês enfeita túmulo pra aqueles que o pais

de vocês mataram, os profetas. Assim vocês [...], quer dizer, nós fizemos tudo

aquilo com a fé.

A Bíblia é a história sagrada, nós se baseava nela. Não era símbolo, era

a verdade, porque se Deus existe, tá revelado aqui nessa palavra, é a

revelação de Deus e nós buscava...Ó,a minha como tá, toda cheia de coisas, é

porque eu vou lendo e bagunço, mas eu não só de decorar a Bíblia não, eu leio

só as parte mais...

Aqui em Heliópolis nós tínhamos pouco, mas minha formação, com mais

um grupão do Ipirangão, era Ana Flora, Frei Beto, pastor Milton Schwantes e a

pastora Tânia, que era um curso de verão. Marcelo Barros, eles tinham o

curso de verão todo ano, de 15 em 15 dias, perdão, 15 dia por ano. Mas Dom

Celso ficou quatro anos, de 15 em 15 dia, dando formação pra nós. Mas essa

formação bíblica, a palavra de Deus não é todos que aceita, eles aceitam, mas

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não abraça, porque aqui ou você renuncia o dinheiro, quer dizer, não é o

dinheiro, é o mal uso do dinheiro , tanto é que a [...] desse ano é economia e

vida, coisas assim. Porque é pelo dinheiro que você mata, você mata no

assalto, você mata no emprego que é a pior morte, você bota pra trabalhar ,

tem uma mulher que trabalha aí, a mulher ganha 500 reais, entra 9 horas, sai

dez da noite pra ganha 500 reais e a outra que é podre de rica, tá matando as

pessoas, mata por uma ganância, pelo egoísmo, por falta de solidariedade,

quer dizer, a morte não é só física não. Ela também é, que é a pior morte, que

é ir sofrendo aos pouquinho.

O Milton Schwantes é muito bom. Há oito anos ele falava da história que

daqui, foi contada de pai pra filho, só que cada casa tinha um livro, e esse livro,

cada pai escrevia como queria, era como o Novo Testamento, só que tinha 30

Novo Testamento. Aí depois uma grã-política aí que se acertaram, pode ver

que só João tem um pouquinho de diferença, os outros... Assim foi, e aí tinha

livro que me emprestavam, mas os profetas de verdade, Isaías, Moisés,

todos... Eu posso falar? Eu tenho uma história, uma visão, de Jonas, quando

Jonas ficou três dias na barriga da baleia. Você tem esse significado?

Era os três dias que Jesus ia ficar no seio da Terra. Quem lê, o Jonas

ficou três dias na barriga da baleia e não morreu? Não. Era uma simbologia,

pra mostrar já a morte e ressurreição do Cristo, assim por diante, cara.

Bom, eu via assim, Deus queria tá em todos, mas nem todos aceitava,

só que Ele como Pai, a manifestação Dele era em cada vitória que nós tinha,

cada vitória nossa era uma manifestação de Deus, porque nós nunca tivemo

uma derrota aqui. Por que? Era esse Deus que se manifestava aqui: ―Olha

gente, olha como Ele existe. Não bota esse grande Deus em prova‖, porque

nós enfrentava grileiro, era arma pesada, era canhão aqui e nós vencemo.

Então, a manifestação de Deus, nem todos... Porque é o seguinte, tá escrito

que nem todos que diz Senhor, Senhor é herdeiro do meu Pai, tem uns que

fala de Deus da boca pra fora, fala de Jesus Cristo, mas o coração tá sujo de

impureza, de alcoolismo, de inveja, de querer tomar o que é dos outros, de

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querer... Quer dizer, eu vejo a palavra de Deus mais nas coisas materiais. Eu

vejo que Deus tá brabo com nós, porque nós somos irmão, a gente não pode

judiar uns com os outros, nos tamo garantido no céu, o que nós fizer aqui na

terra, vai ser lá no céu que nós vamo pagar. Agora, se eu to aqui na Terra, só

faço desgraça piso em um, piso em outro, machuco um, calunio um, calunio

outro, eu vou receber lá, no isolamento, num sei o que... depois pra lá eu não

sei... Vai recebe lá, agora, se eu faço aqui de bom, eu recebo de bom aqui e

recebo de bom lá. Agora eu queria falar um negócio aqui, de uma quadra. Essa

aqui que [...]. Em 93, Maluf entrou de prefeito, aquele infeliz, e ele queria uma

guarda pra vigiar os terrenos que tinha pra fazer a moradia. E o prefeito Maluf

queria a guarda, então [...] ocupado. Eu dizia: ―Organiza o povo porque depois

que fizer casa, não vai sair mais‖, não deu outra. Quando fizeram, veio tirar o

povo. Aí tinha duas posses de terra, tinha a posse véia e a posse nova, a

posse nova é a que tira vapt-vupt e a véia tem defesa. E nós pregava, toda a

história de Heliópolis se resumiu naquela quadra, porque nós lia dia e noite, era

toda a Bíblia. E nós lia e falava da luta, falava do sangue até o Mentor falava

assim: ―O, para de falar de sangue‖. ―Mas é de sangue mesmo‖, o nosso

médico é no sangue, porque nós não é no sangue? É no sangue. E aí no dia

do despejo, cara, que tem advogado. O Mentor era vereador então não podia

ser advogado, mas tinha o doutor Alberto que ia junto. Nós sabia que era

despejo, mas nós viemo saber de verdade foi três dia, ficamos três dia

correndo na Prefeitura, até o Dom Celso, nosso bispo Dom Celso, mandou

pedir o Padre, que era amigo dele pra evitar o despejo porque ele sabia que ia

ter morte. Ele conhecia muito bem esse povo, eu conheço muito bem o meu

povo, ele tava em Brasília e telefonou pra [...]. Aí cheguei no [...] ―Ó, eu não

vou tá nem lá nesse dia, mas é bom mesmo, senão você vai ser linchado‖.

Rapaz, quando foi numa terça feira, me parece, chegou o pelotão lá, aí fomos

negociar. Ivan Valente que era do PT agora é do PSOL ligou lá pro secretário

da segurança e ele falou: ―Ivan, a polícia que tá aí é essa mesmo‖, mas tinha

300 polícia pra tira 150 pessoa, era polícia pra diacho. E aí, cara, quando

chegou o rebuliço lá... Eu tenho até tudo por escrito, aí o comandante:

―É, porque aqui é a polícia, tem que sair mesmo, porque...‖. Aí eu peguei o

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microfone: ―Esse policial tem que comer comandante...‖. Falei umas besteiras.

―Vocês querem sair?‖. ―Não‖. ―Então, resistência, vida digna ou morte‖. Aí

pronto, cara, só perna voou. Ai quando eles partiram pra cima me pegaram, aí

eu apanhei deles lá. Quando o pessoal viram eu apanhando, rapaz, foi todo

mundo pra cima, virou uma praça de guerra, cara. E tinha um padre velho,

mole, que tava lá: ―O gente, pára gente, pára gente‖, aí eu tava preso e disse:

―Bispo, fala pra aquele padre sem-vergonha pra ele ir embora de lá senão ele

vai apanhar lá‖, não gosto disso de para, para, pára. É pra ir pra cima.

A juíza falou para o Mentor: ―então chega lá você fala pro comandante

me ligar‖, quando o comandante ligo pra ela, ela disse: ― É verdade, já tem um

bocado de ferido aqui, sangue muito aqui‖. ―Então suspende‖. Aí o mesmo

comandante que mandou tirar o povo, o povo levou nos braços. Porque ele que

anunciou, ele que anunciou: ―Tá suspenso o despejo‖, aí levou nos braço, o

Mentor, levou eu, eu já tava na delegacia . Eu tive medo de cair, de lá até a

quadra H, jogando pra lá, pra lá, pra cá, eu falei, o povo vai me derrubar aqui,

vai me derrubar aqui, vô levar tombo aqui.

Bom, ai nós já era 19 de junho, já ia negociar essa bendita área com a

COHAB. 17. Aí fomo na negociação, negociar dois anos, chegamos num ponto,

17 de julho de 96, não, 19, nós ia fazer dez negociação, a infeliz pegou fogo foi

17, maldição, viu. Pegou fogo. Ai nesse fogaréu lá, o povo reunido lá na sede,

aí o Mentor falou: ―Rubinho, vai lá vê o que o Maluf tá fazendo lá‖, o Maluf tava

lá, aí eu fui com o Rubinho, aí o Maluf: ―É, você é do PT, porque Tânia... Pô, ia

colocar num lugar bom‖, ele ia despejar, aí eu dei uma volta bem por longe, aí

eu cheguei assim, como essa garrafa aqui, cara, e o pior é que ele vinha assim

e eu ia assim. Aí vinha os capangas dele, aí na hora que o repórter perguntou:

―Prefeito, eles iam pra onde?‖. ―Eu ia dá um lugar bom pra eles‖, eu disse: ―É

só mentira, seu velho safado, mentiroso, meti a mão‖, aí me derrubaram, até

que separam eu e ele. Aí o Dom Celso ia celebrar a missa dos mortos, que

morreu quatro pessoa, aí: ―Miguel, quem te ensinou aquilo?‖, falei: ―Chama o

Maluf de safado, sem-vergonha foi o Celso‖, agora, eu não fiz isso por... Foi um

desespero, que eu já tinha dois parentes mortos, eu não sabia quantos mortos

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tinha, quer dizer, agora tem neguinho que fala assim: ―Nós botemos o Maluf

pra correr‖, quem botou o Maluf pra correr foi meu desespero e o povo, aí

depois o povo foi pra cima dele, quebraram o carro dele, Vice Maria!

Isso aconteceu em 96, depois do incêndio só teve uma criancinha que

tava de 7 meses no bucho da mãe e abortou, nasceu viva, mas morreu. Agora,

teve muito sangue, policial também com a orelha ferida de pedrada. Não sei

onde eles acharam tanta pedra, tanta pedra pra jogar, era tijolo cara... Eu até

guardei, cheio de pedra, parecia lajeiro.

Pastor Carlos Caetano

Ficha técnica

Data da entrevista: 25/03/2010

Nome completo: Carlos Caetano

Local e data de Nascimento: Sertanópolis – PR - 02/02/42

Idade: 68

Estado civil: casado

Profissão atual: Aposentado/Pastor

Instrução: Segundo grau

Profissão anterior: Agricultor. Metalúrgico e vendedor.

Meu nome é Carlos Caetano. Nasci em Sertanópolis, Estado do Paraná

em 02 de fevereiro de 1942. Sertanópolis era uma cidade, na época, de cinco

mil habitantes, depois foi pra sete, hoje tá com 19 mil, mas era uma cidade

comandada por padre e freiras, na época.

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302

A minha infância foi criada no sítio, na roça, comecei a trabalhar com

sete anos de idade, cinco quilômetros pra escola, cinco pra ir e cinco pra voltar,

trabalhava um período de manhã, ia estudar, voltava a tarde, a tarde eu tinha

que pegar uma égua, pôr no carrinho, cortar um carrinho de cana, carrinho de

mandioca e trazer. Tomava um banho segundo a carioca, uma carioca mesmo

e jantava e ia estudar com sono, né? Cê tava estudando e batendo a cabeça

na mesa, no outro dia cê levantava quatro e meia de novo, cinco hora. E

aquele tempo tinha que decorar tabuada de um ao nove, então eu ficava

estudando a tabuada pra não fazer... Nove, de um ao nove você tinha que

fazer, por exemplo, 80, 90 cópias , ou seja, se você soubesse a tabuada, a

tabuada da escola matemática era um privilégio e você tinha que estudar. A

brincadeira, ás vezes, era o domingo. Eu levantava de manhã, seis horas,

porque tinha a missa sete horas, eu ia pra missa sete horas, voltava em casa

nove, nove e meia, fazia algum serviço, três horas, três e meia sobrava um

tempo. Você jogava uns bezerros dentro da mangueira e montava, amarrava

uma corda e pulava em cima do bezerro, senão pegava a bola de capotão,

tinha um campinho lá e a gente jogava bola. Uma maia até sete e meia, oito

horas da noite, depois vinha em casa pra dormi e no outro dia, pegar de novo.

E quando a gente já ficou com uns 15, 16 anos a gente ia pra cidade. A

festinha, muita paróquia, mas tinha uma capelinha, que eles chamavam... Nós

tinha ali na água da boca, água morena, tinha água do [...] cada um tinha uma

igreja e cada um tinha sua festa, então era festa o ano inteiro. Cê saía de uma

e ia pra outra, cê ia lá pela sete, oito horas, ficava até dez horas, todo mundo

vinha embora e no outro dia tava na roça de novo.

Eu fiquei em Sertanópolis até 1965, eu fui pra Londrina com 26 anos, eu

era congregado no[...] em Sertanópolis, eu entrei com 12 anos de idade e eu

saí com 22 anos, 23 anos na congregação [...], eu era vice-presidente da

Congregação [...]. Naquela época solteiro e rapaz, eles não aceitavam, mas

pela população e pelo que eu fazia no meu trabalho, na minha área, era uma

área muito populosa de gente e eu ia, visitava aquelas véinha, rezava terço,

tirava prenda pra festa, levava, então quando foi uma votação, eles

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conseguiram me colocar, fizeram a proposta, aquela proposta o pessoal

aceitou, não sei como, e eu fiquei comandando, ajudando as pessoas ali, não

sabia de nada, mas aprendemos com a experiência, com aqueles mais antigo

ali que fazia parte e eu era responsável por aquele setor que chamava Água do

boca, água do meio, era um campo muito grande. E eu fiquei responsável por

todo aquele setor da época. Daí foi quando eu tava tomando conta de alguma

fazendinha da Água do Meio e deu uma geada muito grande onde eu morava

com o meu pai, no sítio, e eu tive que sair do sítio e foi aonde eu encontrei... e

esta solução, vim pra Sertanópolis, morar na cidade. Mas a cidade não tinha

serviço, voltei a trabalhar no sítio e do sítio eu peguei essa fazendinha pra

tomar conta. Lá era do Banco do Brasil, eu não sabia, o Banco do Brasil veio e

levou o café que tinha, porque o patrão não pagava, [...]. Levou duzentas

cabeças de gado que não era dele e ficou sem nada . Eu tive que pegar os

caixão que eu tinha , com os filho e vim pra Londrina, fiquei um dia debaixo de

uma árvore , da casa que eu fiquei, foi embaixo de uma árvore, em Londrina.

Hoje, aonde é a rodoviária, a rodoviária de Londrina, toda vez que eu passo lá

tem uma história que eu lembro. Cheguei lá sem nada, quando eu cheguei em

Londrina, o que eu tinha era dois anel de ouro, eu tinha aquelas canetas piloto,

que a pena era ouro e eu tinha aquilo lá, era só o que eu tinha. E a primeira

casa, quem me deu a casa pra morar foi uma senhora que era dona de um

terreno, uma casa de centro na casa dela, que ela fazia trabalho na casa dela e

ela era amante do delegado da cidade. E ela me viu e, muita compaixão, [...]

gosta de fazer obra, né, eles faz muito obra e naquele momento ela conversou

comigo, contei minha situação, ela acreditou e era verdade o que eu tava

falando, ela foi e falou com o delegado, ele veio e falou comigo, me deu um

quarto da casa dela, grande, do lado do que ela alugava pra mim morar e eu

saí dali sem pagar aluguel, quando eu comprei um terreninho e fiz uma casinha

e fui morar depois de cinco meses. A primeira casa foi ali, ela me deu pra mim

morar. Quando eu cheguei em Londrina, aí tinha muito gato, trabalhava com

gato, né? Tinha muito gato, o gato então começou a procurar e eu comecei a

procurar serviço. Mas, eu não tinha carteira profissional, eu não tinha

identidade, eu tinha só a reservista, então, pra mim tirar a carteira de trabalho,

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chamava naquele tempo de profissional, de trabalho é hoje, naquela época,

que era profissional. Pra mim tirar o documento, eu tinha que vender o anel,

vender caneta, a minha casa era um quadro de um cenário de imagens, eu

tinha muitas imagens, muitas , crucifixo eu tinha uns seis ou sete. E aquele

tempo ganhava muito presente, porque eu fazia muita coisa, eu fazia injeção

naquele povo tudo, eu rezava terço, eu cantava, eu ia em funeral, ajudava a

fazer caixão de defunto. Morria já era eu e seu Vitor, seu Vitor era um senhor

que já faleceu aqui em Americana, naquela época, da congregação cristã do

Brasil, era um servo da estrada, ele era o único carpinteiro que tinha ali, era um

senhor maravilhoso, então morria, ele já me chamava: ―Carlito, morreu fulano‖,

meu pai já tinha as tábuas, ou outra pessoa tinha as tábuas, cortava, ia na

cidade e comprava mortalha e fazia. Então a gente ganhava muito presente, o

povo não tinha com o que pagar. Então, um dava uma leitoa, o outro dava uma

galinha, o outro dava um frango, sei lá, vinha pra Aparecida do Norte, pro outro

canto, o padre tem o baú, tinha muito [...] naquele tempo, trazia aqueles

crucifixo, aí eu não tinha dinheiro comecei a vender. Eu comecei a ir pra tenda,

essa tenda de... Eu comecei a ir lá... A tenda da cruzada nacional de

evangelização. Então comecei ir, eu não tinha outro recurso então comecei a

vender os santos, o cenário que eu tinha, comecei vender. E naquela época,

abaixo da rodoviária, era uma zona de prostituição muito grande e eu peguei

aquele monte de santo e saí vendendo. Num dia só eu vendi 12 pra aquelas

mulheres. Vendi 12, vortei com um pacote de dinheiro assim. Aquilo me foi, foi

fazendo eu arrumar meu documento, arrumar um servicinho indo pra tenda e

na tenda cantando, na tenda batendo palma, até que chegou um dia que

chegou minha solução. O meu sogro, ele era Testemunha de Jeová, na época,

ora tava na Cristã do Brasil, outra hora era testemunha de Jeová, outra hora

ele tava aqui, era um batedor de Bíblia, ele tinha Bíblia só pra arrumar defeito

pros outros. E aí eu cheguei em Londrina, aí ele soube, ele também era muito

carente, na época que ele ficou doente, não tinha filhos, essa filha era de

criação e aí ele falou: ―ó, ali embaixo tem uma tenda evangélica, é bom cê ir lá,

aqui a vizinha vai , a Lazinha também vai , aí fomos. Eu fui a primeira vez ,

era um negro muito amado, sorriso, popular, a esposa dele. Do jeito que eu

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trabalhava com o povo, naquela época, ele me tratou, já que aonde eu estava

na Franciscana não tinha. Era Salve Maria, Salve Maria que era o que eles

tratava, né? Era reservado, pra você falar com o padre... Se você passasse e

não cumprimentasse, eles chamava a atenção, tinha que pedir benção e beijar

a mão, entendeu? E tinha um boato que tinha ocorrido, na cidade de

Sertanópolis, eu tava em Sertanópolis. Meu pai e minha mãe, como é , meu

pai já faleceu, mas minha família é toda católica.

Nós somos em oito irmãos, quatro homens e quatro mulheres e eu sou o

mais velho. Na cidade de Sertanópolis, como é comandado por freira e padre,

só tinha uma igreja que ainda tem, que eu tenho amigos ainda, que é a igreja

Presbiteriana dentro do centro da cidade, em frente a igreja católica

presbiteriana e a igreja metodista, na época que funcionava, pouquinha gente e

a igreja Assembléia de Deus, tinha pessoas, um terreninho, com duas, três

pessoas e o resto era tudo sítio. E veio um evangelista, e esse evangelista,

sem microfone, daqui aonde o senhor foi na minha casa, dava pra escutar ele

falar. Era um homem... Ele ia pregar na igreja e falava assim: ―As vezes a

gente tá usando um chicote pra bater no burro lá na frente e tá pegando a tala

aqui atrás‖. Nunca mais esqueci uma mensagem que eu ouvi dele. E a

Metodista trabalhava com filmagem no sítio, ponhava a bateria no carro,

colocava um lençol lá á noite, duas luz e começava a passar. Então, com 17

anos era congregado mariano, mas já tava assistindo aquilo lá. Aí este

evangelista chegou na cidade no dia de Finados e foi fazer um culto no

cemitério, como ele falava muito alto, ele tinha uma voz muito bonita, a voz

dele era linda, era uma voz de um pastor meu, pastor Roberto, era uma voz

linda, a voz dele chamava atenção. E como a cidade não tinha costume, nunca

viu aquilo, então a procissão de quatro mil pessoas, era muita gente, ia

chegando no cemitério e ia entrando e ele ia pegando o canto do cemitério e o

[...] que o povo ia, ia ficando embaixo. E naquele canto pregando, o povo

começou só a olhar, ouvindo ele pregar e olhando, né? Todo mundo

assustado. O padre Domingos, era um alemão, usava um chapeuzinho preto

na cabeça e aí ele disse assim: ―Tira esse homem daqui‖, os congregados

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marianos, que eram Amâncio Seco, que era o presidente , o Romualdo, Zeca

Savário, era o comando da igreja, era os cabeção da igreja, tinha o Francisco

Poça, era um português, tinha um que hoje é prefeito da cidade, que era

português de Portugal mesmo, então eles que comandava ali, eles que faziam

tudo, eles que fazia tudo. E juntaram e tiraram ele por cima do muro, jogaram

por cima do muro do cemitério, o evangelista, esse irmão, jogaram ele, a

polícia do lado de lá pegou, só tinha três policial na cidade, pegou, colocou

dentro do jeep, levou pra delegacia que é a mesma rua, é mesma delegacia até

hoje, não mudou, só mudou o fórum e deixou ele a tarde, até o Pastor José

Joaquim, que era o presidente que morava em Bela Vista, que ainda é a sede

daquele campo, vim buscar ele na cadeia de Sertanópolis, só que hoje tá em

Paranaguá. E então, nesse episódio que eu já tinha como menino, mas sempre

gostei de história, aonde eu vim pra Londrina, fui pra tenda, aí vi pregando,

anunciando, falando em cura, a pessoa dando testemunho, eu com aquele filho

que eu levei de Sertanópolis, da cidade da Água do Cerne, que pertencia a

Sertanópolis, fui pra Londrina com ele doente, interno no melhor hospital, na

época, hospital evangélico. O médico, na época, era o melhor médico,

chamava, esqueci o nome, o nome dele é Espolador, não sei se é Henrique

Espolador, se não me falha a memória, que me deu todo o apoio. Aquilo não foi

um pai, foi uma mãe, fez tudo, o moleque tava cada dia pior e ele fez o que

pôde e falou assim: ― Você vai sair do serviço, você vai pra firma, da firma

você...‖, que eu fazia outro servicinho,‖... Você vai lá no hospital que eu quero

falar com você‖, aí quando eu cheguei no hospital ele falou assim: ―Você vai

levar o Nivaldo embora, porque ele vai morrer em casa, porque o que eu tinha

que fazer, tudo que tinha pra fazer, eu já fiz, não tem mais condições pro

Nivaldo‖.

O Nivaldo tinha há um mês atrás, 40 dias fazia quando o médico me deu

isso, que ele tinha engolido um caroço de milho. Milho solto no quintal, a

debulhadeira debulhando, ele brincando engoliu pelo nariz. E aquilo foi pro

pulmão, e aquilo não teve condições, na época, de reverter. E ele foi ficando

pior, foi ficando pior, não comia, foi emagrecendo, tava com quatro anos de

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idade pra cinco. Aí quando eu vi fazer todo aquele movimento na tenda. Numa

quarta-feira, com a minha voz bem alto igual eu tô falando aqui agora, eu disse:

―Deus, se for verdade, o que aquele homem está pregando e o Senhor fizer.

Verdade. Mas eu falando em voz alta, como se tivesse falando com outra

pessoa, ―... se o Senhor fizer com o meu filho, eu vou a partir de hoje, se o

Senhor fizer com o meu filho, o que eu fazia na igreja católica, rezar terço, tirar

a prenda, visitar as pessoas...‖ e eu ia no hospital, aquele tempo tinha tanta

coisa, eu era conhecido no hospital, o médico ia buscar laranja no sítio do meu

pai, então não tinha tanto problema e hoje eu tenho um [...] e tem hospital que

não aceita, você não entra., é um problema. De eu ter credencial e tudo e aqui

não vale nada. Então, alguns lugares te respeita, outro lugar, se eu chegar no

Heliópolis mesmo, é uma confusão do caramba que o pessoal arruma. E então,

pra mim dá respeito pro povo eu já não crio confusão, eu aprendo a respeitar o

meu direito pra respeitar o dele. E médico é supremo, né? Se eu for indo preso

agora e o médico fala: ―Não, ele é meu cliente tem que ir pro hospital‖, a polícia

tem que deixar ir pro hospital e eu ia ficar, né? Então, discutir com médico é

bobeira, né? Aí, falei com Deus desta maneira: ―...Vou fazer tudo o que eu fazia

na igreja católica...‖, e eu fazia bastante, meu pai não me ajudava. O meu

vizinho dava um carrinho pra buscar cabrito, buscar galinha, me dava um

cavalo pra eu sair com aquela lista pedindo, daquele sítio, dez, 12 quilômetro

longe , 11, 15, pedindo. Mas meu pai não me dava a égua dele, o cavalo dele,

pra mim ir. ―O padre que manda é o padre que vai, o padre que faz. Antes dele

te dar cavalo, ele te dá a condição pra você ir, ele anda de jeep pra baixo e pra

cima‖. Aquele tempo era jeep, bonito, barato. E os outros me arrumava. E eu

fui pra tenda, falei aquilo com Deus, na quarta-feira, no dia 27 de agosto de

1975. No dia 28, seis da manhã, a [...] tinha uma cadeira que levava, 13 , 14

quilos. E ela tinha uma sirene, que pegava de nove a dez quilômetros. Londrina

inteira ouvia. Então quando tava na hora, cinco e meia, colocava ela pra 15

quilo. Porque você puxava um minuto e meio, ela comia um quilo e meio de

vapor, cê ficava pendurado na corda. E tinha um carguereiro que gostava de

fazer uma arruacinha. Isso era na empresa, na CLEITO. Adelson Cleito.

Naquilo o menino acordou, eu já tava levantado. Aí o menino acordou e gritou:

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―Pai, eu quero comida‖, eu falei: ―Meu filho ta morrendo, ta morrendo‖, corri ,

peguei ele com a coberta lá, passei: ―Pai, quero comida.‖, a comida que eu

tinha, meu fogão era fogãozinho jacaré, aquele [...], que eu tava fazendo o

cafezinho. E naquele momento, a minha comida que eu tinha, que eu tava

comendo era baião de dois que eles falava lá no Paraná, mas quando eu vi

baião de dois aqui, era comida de rico. Porque o baião de dois lá era feijão

cozido, misturava com o arroz, cozinhava tudo junto, colocava uma couve no

meio, ou senão um pedaço de chuchu e aquilo que nós tava comendo. E aquilo

que eu tinha, não tinha outra coisa. Aí eu peguei a colher com aquilo e pûs na

boca dele, quando pûs na boca dele, ele deu aquela ânsia de vômito com toda

força... Eu pensei: Ta morrendo meu filho mesmo. Ele Jogou, jogou aquele

caroço de milho, mais grande que o meu dedão, preto, preto, que eu catei e fiz

questão de levar pro meu médico. Que aquilo era uma mãe que eu tinha,

aquele médico. Pra mim não, pra todo o povo. Aquele médico foi uma mãe pra

todo mundo, aquele que trabalhava ali, que ele conhecia. Ele arrumava

remédio, naquele tempo não tinha remédio do governo, não tinha nada, ele

arrumava remédio, ele arrumava injeção. Ele chegava, conhecia os meninos,

saía na rua: ―ô, eu vou arrumar um tênis bonito pra ele, vou arrumar um

sapatinho pra ele‖, ele fazia isso. Quando ele sabia que uma pessoa

trabalhava, que era honesta, ele fazia isso. Então, daquele dia em diante, meu

menino levantou, dei um banho numa bacia, arrumou um pãozinho, um bolinho,

que eles falam, na frente da gordura, comeu foi brincar. Quando foi quatro

horas da tarde, na quinta-feira, dia 28 de agosto de 65, passou um senhor do

lado de [...] e disse: ―Você é o Carlos?‖.‖Sou‖.‖Quer trabalhar?‖.‖Quero‖, eu

falei. Então seis horas eu passo pra te pega aqui. Tá bom, pode passar que eu

vou, eu tava angustiado, sem dinheiro, precisando, morando na casa dos

outros, aquilo me incomodava, a mulher é maravilhosa, a mulher é

maravilhosa. E eu passei naquele meio ali pensando. Aquela mulher quando

ela escutou eu falar aquilo pro Florisvaldo, ele era um negro bonito, usava um

chapeuzinho tombado, uma peninha vermelha assim no cabelo, moreno, [...]. E

a senhora gritou, que eu não lembro o nome dela, gritou: ―Carlos...‖, a pessoa

que me deu a casa pra morar, que trabalhava com coisas do centro lá, era

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espírita, ela era espírita mesmo. ―... Carlos, cê esqueceu o voto que você fez

com Deus?‖. Então quando eu falo que a gente sai pra obra de Deus, fica

pensando que tem... Porque Deus manda urubu pra te sustentar. Então, na

minha incredulidade, Deus já preparou alguém, porque ela falou: ―Cê esqueceu

o voto que você fez com Deus?‖. ―Ah, é mesmo. Seu Florisvaldo eu não posso

ir hoje‖. ―Ah, tá bom, tá bom. Amanhã eu passo aí sete horas da manhã‖, como

passou mesmo. Aí eu fui pra tenda, eu chegando na tenda, todo dia pregava,

todo dia o Edmundo fazia apelo, e ele era muito esperto, ele tava pregando

assim, do abrir e fechar os olhos ele já tinha tirado o paletó. E era uma pessoa

que eu não conhecia o Viaduto do Chá, essa pessoa que ganhou ele, foi uma

jovem, ele ia pular de cima do Viaduto do Chá pra baixo, pra morrer. E essa

jovem viu que ele ia pular, falou com ele , convenceu ele, tirou ele de lá e levou

na igreja que era no Centro, ali, de São Paulo, no São Paulo velho ali. A igreja ,

acho que tem um escritório que funciona lá ainda, levou ele pra lá, lá deram

comida, deram roupa, deram banho e lá o Edmundo foi essa benção na minha

vida. Então ele dá muitos testemunhos. E nesse tempo que eu fui pro culto, eu

fiquei lá, ele cantou, ele orou, todo dia ele fazia apelo, quem quer aceitar a

Jesus? Quem quer um compromisso? E aquele apelo que demorava, ele sabia

fazer um apelo muito bonito, que eu conheci pastor que pregava muito bem, ia

fazer o apelo, ninguém se decidia. Tinha um irmão na igreja que ele abria a

boca, falava três palavras, vinha cinco, seis. Aí eu to sentado, ele vai lá e

apaga a luz, ele vai lá e coloca o aparelho lá dentro, ele coloca uma coisa e

vai... Aí a irmã Eunice fala: ―Carlos, vamos embora?‖ Eu disse: ―Não, eu quero

aceitar Jesus‖. ―Edmundo, o Carlos quer aceitar Jesus‖. ―O que?‖ Me lembro

até hoje, ele deu aquele grito, desceu de cima e veio e me abraçou, ela do lado

do meu ombro com a mão assim, em cima da minha cabeça e ele com a outra

aqui em cima. Foi 40 minutos de oração, 40 minutos que ele tinha uma

lambreta. Aquela lambreta ele trazia ele, ele veio empurrando a lambreta com a

mulher, porque nós atrasamos, era dez e meia, já foi pessoas encontrar nós:

―Não, eu vou levando o Carlos daqui‖. Ai conversou com todo mundo, ele era

conhecido e me levou e eu cheguei em casa. Aquele dia então começou uma

guerra. A primeira guerra saiu porque eu tinha aceitado Jesus, que eu era

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protestante. Pro meu pai era uma apunhalada, ele queria ver a morte e não

queria ver isso, um filho protestante. Na cidade tinha um pai de santo que tinha

um centro, fazia responsa, ele sabia onde tinha coisa perdida, sabia uma coisa,

sabia outra. Naquela mesma época eu tinha uma leitoa, cara, uma porca , que

eu fiz um negócio, eu pus ela no chiqueiro, e ela sumiu. E ela desapareceu,

falam uma coisa, falam outra, vai lá no seu Manoel, ele tinha uma barraquinha

de vender erva, essas coisas na cidade, vendia santo, vendia patuá, vendia

tanta coisa, ele vendia lá, ele tinha a casa dele. Quando ele ia fazer o trabalho,

ele ligava dois rádios, que é rádio [...], grande, ele ligava, ele fazia o trabalho

dele. Aí eu fui lá e falei com ele. Ele falou: ―Entra aqui, se ela tiver morta é três

cruzeiros, se ela tiver viva, é cinco‖. ―Pode fazer‖. Ele pôs uma bacia d‘água,

dois bonecos, bacia d‘água, um pano preto na cabeça, sabe quando vai bater a

fotografia primeiro põe um pano na cabeça, assim? Nem sei pra que é aquilo,

mas ele ponhava aquilo na cabeça e começou a rugi igual porco, mesmo. Ela

tá nessa casa, assim, assim, assim, na casa duma velhinha, na hora já se

desentendemos, porque eu falei: ―Nesse caminho aí não tem casa‖, na hora eu

falei com ele. ―Cê tá teimando com o meu guia, rapaz?‖, aí eu tímido e com

medo, medo de pai de santo do caramba, que eu tinha medo. Tinha um medo.

Falava de pai de santo, joga macumba, joga [...], matava, colocava [...] na

encruzilhada, na boca do sapo, aquilo era o maior medo que eu tinha. Hoje eu

vou de encontro, já orei em centro de terreiro. Lá em Lorena tem centro que eu

orei e fechamos. E tem história lá em Lorena. Aí, ele gritou: ―Quer saber mais

que o meu guia, rapaz? Tá teimando com o meu guia?‖, aquela autoridade.

Cheguei em casa, montei numa égua que eu tinha, fui lá e não tinha casa

nenhuma mesmo. Eu tinha 18 pessoas trabalhando pra mim, antes de eu ir pra

Sertanópolis, adiantei um pouquinho, esqueci essa parte. Eu tinha um galpão,

tinha um senhor de nome Manoel, um senhor de idade, ele falou: ― Eu quero

trabalhar aqui, mas eu não quero ficar naquele galpão, se você tiver um

quartinho separado aí‖. Eu falei: ―Tem um quartinho ali‖. Ai comecei a fazer [...],

ele trabalhava sozinho, ele tinha um livro e falou: ―Conhece esse livro?‖, eu

falei, ―Não‖. Ele falou: ―Isso aqui é Bíblia‖. E de Domingo ele ia pra Bela Vista

a pé, oito quilômetro e voltava de noite. Aí que eu fiquei sabendo que ele ia pro

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culto da Assembléia de Deus, do pastor Joaquim, esse que eu falei antes. Aí

quando eu saía, ele já tinha feito comida em casa, já tava tudo prontinho e já

começou a fazer aquilo lá. Aí eu contei pra ele, ele falou: ―Ó, se essa

marruá...‖, ele via a marruá, ―se ela aparecer aqui eu vou queimar esse livro‖, já

falou isso pra mim. ―Vou queimar este livro, se ela aparecer eu vou queimar

este livro‖, hoje eu sei o que é, porque ele me falou, naquele tempo não. Eu

levantei cedo no outro dia e fui no chiqueiro, do jeito que eu levantei, eu lavei o

rosto. Ele chegou: ―Apareceu, seu Carlos?‖. ―Não? Não vai aparecer.‖ Tinha um

campo muito grande de futebol, no domingo vinha cinco, seis time fazer

torneio. E eu era conhecido daquela raça todinha, perguntei: ―Apareceu?‖. Não,

não, se aparece tá lá, é sua, se aparecer é sua‖, e naquele tempo era mesmo,

o povo era honesto... Até hoje. Eu to em Londrina, já tinha ido pra tenda, tinha

aceitado Jesus, meu pai manda o meu irmão em casa, pagou a passagem, de

Sertanópolis a Londrina, 42 quilômetros, ―Vai lá fala pro Carlito...‖ que ele me

chamava de Carlito, vim pagar o seu Manoel, que ele falou, se ele não pagar,

ele vai mandar matar ele. Aí eu fui lá e falei: ―Edmundo, tô com um problema

assim, assim...‖. ‖Vai mandar matar nada, rapaz, isso é obra do capeta‖, e me

deu uma explicaçãozinha mais ou menos: ―Vamos orar‖, e eu tinha que ir votar

na cidade, aquele tempo a gente pegava o ônibus, mostrava o título e tinha que

ir votar em Sertanópolis ainda e eu cheguei, essa mulher que me hospedou era

muito amável, contei pra ela. Aí o amante dela chegou, o delegado, ruinzinho

mas... Hoje que eu fico sabendo que ele pegava dinheiro de todo mundo,

delegado malandrão, sabe? Ele chegou e falou assim: ―Ô Carlos, você tá com

problema em Sertanópolis‖? Eu Falei: ―Não‖. ―Tem um cara que quer te matar

lá, um pai de santo‖. Eu falei: ―Tô, meu pai mandou falar‖. ―Você pode ir e se

ele te cobrar, você fala pra ele que o doutor fulano...‖ o delegado me deu o

nome dele escrito, doutor fulano, ―... vai buscar ele lá, vou buscar ele lá. Se ele

te cobrar, fala que eu vou mandar... eu vou buscar ele lá, dá o meu nome, que

eu vou mandar buscar ele lá‖. Diz que o diabo muitas vezes prepara o caminho

certo, eu não sei quem foi que preparou, porque o destino do homem, ele

estava no ponto de ônibus, quando ele me viu: ―Ô, Carlos, você por aqui‖? Eu

falei: ―Tô‖, aquela hora eu virei 50 homens e eu falei: ―Eu trouxe um recado pro

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senhor, eu trouxe um recado pro senhor‖, esqueci o nome do delegado. Aí li e

falei: ―Doutor fulano...‖. ―Não, não, não, tá tudo certo, pode deixar, você não me

deve nada, quem mandou o recado pra você‖?. ―Meu pai mandou o Toninho,

que é meu irmão, lá na minha casa dizendo que o senhor ia me matar, jogar

uma macumba pra me matar. E ele falou que mandou esse recado‖. ―Não, não,

tá tudo certo, não esquenta com isso não‖. Daí três meses mataram ele, esse

pai de santo, que ele tava mexendo com a mulher dos outros, segundo eu

fiquei sabendo depois, isso foi se formando, era pilantrão. Um cara

descarregou um revólver nele lá, matou ele. Matou a amante, amiga também,

né? Serviço que ele falou que fazia e não fez e aquele negócio que era

mentira do capeta mesmo. Aí meu pai ficou três anos sem vim na minha casa e

eu nunca deixei de ir na casa do meu pai, nunca, eu entrava pela porta da

frente e ficava o dia inteiro com o meu pai, conversava com o meu pai, tomava

o café da tarde, pegava o ônibus e vinha embora. Eu entrava: ―Benção, pai‖.

―Uhhmm‖, entrava pela porta da sala, tomava um café, não comia não. Minha

mãe fazia pão em casa, eu comia um pedaço de pão, bebia um copinho de

leite. ―Ah, seu pai tá bravo, seu pai ta bravo...‖. ―Benção, pai‖. ―Uhhmm‖. Três

anos, com três anos, nesses três anos, eu não sei até hoje e não procurei

saber, o que aconteceu na família eu não sei. Tem um irmão da minha mãe, o

caçula, que ainda tá vivo, mora em [Guerê...] no Paraná, que ele falou pro meu

pai assim: ―Francisco, os protestante é muito sérios, os protestantes não são

iguais os católicos, eles têm rigor, tem ensino. Você tem que se preocupar com

os que tá aqui, com o Carlito você não precisa se preocupar com ele, que lá ele

tá bem guardado‖. Nesse período de tempo, em três anos que meu pai ficou

sem vir na minha casa, em um mês, ele veio três vezes. Passou um dia, ficou

um pouco lá, na outra vez ele passou, me trouxe um franguinho e um cacho de

banana, na outra vez me trouxe metade de um capado, e eu tava na hora de

eu vim pra igreja. Que eu nunca ninguém me segurou, deu a hora, toda a vida,

eu vinha embora pra cá. Ai ele me trouxe até a porta da igreja, no Jardim

Leonor, avenida [Tungue...], 540, é na mesma rua, na mesma tudo, só mudou

a igreja que era de madeira e agora fizeram de alvenaria, uma igreja bem linda

naquele bairro. E, umas pessoas, umas três ou quatro é daquela época ainda.

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E meu pai mudou completamente. Aí dia primeiro de janeiro de 1966, eu me

batizei nas águas, pelo pastor Samuel, da igreja quadrangular e a irmã Lídia,

no centro de Londrina, numa chácara batista, onde tinha uma mina d‘água que

saia assim, um tanque do tamanho dessa igreja, era direto cheio e a água

vazava e fazia um córreguinho lá pra baixo lá, então foi uma coisa linda ali.

Muitos tiveram o privilégio de ver.

Aí eu fiquei dez anos em Londrina, entrei na CLEITO e fiquei sete anos

trabalhando, dois anos na cooperativa agrícola de Cotia, trabalhei mais um ano

e meio em um ferro velho industrial que era de um pastor, era evangelista,

fazendo campanha em Curitiba, Brasília, Apucarana, Guaravera, Água do Pau

Galho, Água da Utinga, norte do Paraná, tive, Argentina, né, na divisa do

Paraguai, ali, passando noites ali com amigos, pregando. E aí trabalhando,

pastoreando como evangelista da igreja de Londrina, teve uma convenção

internacional e eu tava pastoreando lá em Londrina, no Jardim do Sol, na Rua

Vênus, 319.

Era evangelista e estava pastoreando essa igreja. Ai veio a convenção,

que já tava separado pra pastor. Pra Londrina concorreu três pastores e eu

tinha três cartas me chamando para pastorear, uma pra Presidente Epitácio,

uma pra Curitiba e uma pra Brasília, como eu não gosto de Brasília, Brasília é a

melhor cidade que eu achei no Brasil pra fazer campanha, Brasília e Curitiba, ,

mas pra morar, Curitiba não, Brasília não e Curitiba porque era muito frio,

aquele frio derrubava árvore. Daí então eu rejeitei e concorri pra Londrina.

Quando concorreu pra Londrina os três, tinha um irmão que era da Light e ele

era evangelista também, ele ia de mês em mês em Londrina, e ele era muito

conversador, ele levava um presentinho pra um, levava pra outro, a igreja dele

aqui tava tombada e ele queria ir pra Londrina, e ele tava dirigindo uma igreja

que a igreja tava com problema. Aí quando concorreu pra pastor, eu não aceitei

Brasília, não aceitei Curitiba e não aceitei uma igreja em São Paulo.

Concorremos, ele ganhou pra ficar em Londrina, aí o meu pastor falou assim,

me chamou em particular, ele e o missionário [...] Jeff da Inglaterra, mais o

irmão secretário, que era pastor, ele falou: ―Carlos,vai ter mais duas igrejas pra

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concorrer, pra São Paulo. Como ninguém te conhece em São Paulo, e nós

estamos com 70 obreiros de São Paulo...‖, uma minoria pra cá, de 84, 70, só

tinha 14 de lá do Paraná, ―... então é claro que eles vão votar nos caras de lá e

você então vai concorrer, porque o Delfonso aqui não vai dar certo e se não der

certo ele vai culpar você.‖ Porque se fosse pela igreja, eu ficava, aí como foi

pela diretoria. E o povo de São Paulo votou nele, porque não queria que ele

ficasse em São Paulo, depois que eu ia entender, votou pra ele vir pra Londrina

pra sair de São Paulo, que ele era um espinho da diretoria aqui, entendeu qual

era a jogada? Aí ele falou: ―E ele não vai dar certo aqui‖, porque lá nós

tínhamos dois pastores que eram meus amigos, um já faleceu, um negro que

jogou no Londrina, Pastor Carleto, era procurador de um dos sociólogos mais

ricos de Londrina, e era um presbítero e dele era tudo em cima do i, tudo, tudo,

maravilhoso, bom pra servir e pra me ajudar, nunca tive um problema com

ele, nunca, nunca. Irmã Jacira que tá viva, tem um filho pros lados do Chile, Zé

Luis, dois tá na polícia militar, um na federal. E, tamos lá, eu falei: ―Pastor

Alberto, mas eu não vou concorrer‖. ―Não, você concorre porque você não vai

ganhar mesmo, então aí você fala que você aceitou, se der algum problema...‖,

Eu aceitei: ―Eu vou na do pastor Alberto‖. Quando é pra vim pastorear o Jardim

São Luiz, essa igreja em Santo Amaro, Jardim São Luiz, eu sei que eu tive 97

votos. Só o pessoal de Londrina que não votou, que no último dia foi três

carros daqui. Lá só tinha 14, no primeiro dia que foi votação, Aí eu falei: ―Puxa

vida, vou pra São Paulo‖, ganhei pra vim. Aí cheguei na firma que era um

pastor, conversei com ele: ―Oh, que maravilha que você vai‖. Fui lá pedir a

conta: ―Não, tudo o que é seu direito, você vai levar‖. Naquela época, me deu

todo o meu direito e me deu mais 500 cruzeiros ainda, que era um dinheirão na

época. Ele disse: ―Isso aqui é pra você chegar lá e já começar, trabalhar com a

barriga cheia, você precisa pra você fazer uma compra aqui pra quatro

meses...‖. E era mesmo, dava pra quatro meses, açúcar pra quatro meses,

tudo pra quatro meses, pra ficar quatro meses sem pensar em comida, porque

o obreiro que trabalha com a barriga cheia, ele é um bom obreiro, agora dirigir

com a barriga vazia, tinha muito isso naquela época, muito isso. Aí eu vim

pro Jardim São Luiz, onde a igreja foi uma mãe, aonde eu aprendi. Tinha 40

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membros, tinha 40 membros, formamos uma família maravilhosa, onde eu

aprendi o resto de vida que eu to aqui até hoje. Foi uma escola, aquela igreja

foi uma escola.

Era igreja ministério Elim de vez em quando eu vou lá, ficava dez

quilômetros pra ir pra igreja quadrangular. Igreja evangélica pentecostal Elim.

Trabalha de missões da Inglaterra. E eu tava na quadrangular a dez

quilômetros, essa igreja ficava uma base de cinco ou seis quilômetros, longe de

casa. No tempo que pastor respeitava pastor, eu fui nesse culto umas duas

vezes, o ritmo é quase o mesmo, aí falei com o pastor Samuel, pastor Samuel

falou com o pastor Rui Barbosa Valim: ―Você cuida deles? Se você cuida deles,

eu passo você pra eles. Que eu tenho uma família sua lá, congregando

comigo. E eu to fazendo visita pra eles, porque eles pediram, orando, mas eu

falei que vinha conversar com você, eles pediram pra ficar lá e falei que vinha

conversar com você‖. Aí ficou e eu fiquei na Elim, nunca deixei de visitar o

pastor Samuel. Há uns cinco anos atrás, que eu fui em Londrina, antes de eu ir

primeiro na igreja onde eu recebi como diácono, como evangelista, como

pastor, como seminarista, meu começo de vida foi primeiro visitar o meu

pastor, que me batizou, me deu um abraço, ficou olhando em mim assim,

pensando: ―Não to te lembrando‖. ―É porque eu fiquei mais novo‖, aí a Lídia

falou: ―Ah, pelo sorriso agora eu sei quem é‖, aí conversamos lá um pouquinho,

e eu vim pro culto que eu ia pregar no culto da noite, me deu um abraço todo

feliz, me abençoou e eu vim embora.

Depois de São Luiz, eu fiquei três anos e meio em São Luiz,

trabalhando com o missionário que veio da Inglaterra e com os seminários. O

nome dele era Estevão. Ele trabalhava com seminário teológico. Ele era

bacharel e formava obreiros. Aí ele precisou tirar um ano na Inglaterra. E ele,

por falta de obreiro, tava pastoreando Socorro. Socorro tinha seis obreiros,

inclusive dois pastores, e ele falou: ―Você vai pastorear Socorro‖. ―Não vou‖.

―Vai‖. ―Não vou, lá tem obreiro, pra que eu vou? Vou deixar aqui, onde é minha

casa‖. E lá era uma igreja que era racista, ou eles aceitavam missionário inglês

ou tinha que ser zóio azul, negro eles não aceitavam. Dois negros que teve lá,

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pouquinho tempo, eles tiraram. Tiraram mesmo, que o poder aquisitivo era

deles. E, aí o que me pediram? Uma carta e fizeram uma votação. Votaram

120 pessoas, 119 a favor pra eu ir, aí ele falou: ―Vou falar pra você que você

não vai falar pra ninguém, eu pus o cofre lá pra voltar, um só contra‖, aí eu

falei: ―Quem é contra eu sei, é quem quer ficar lá, não?‖, ele falou: ―É‖. ―Então

eu já sei‖. Então, você vê a diferença que tinha. Aí eu falei: ―Porque o senhor

quer que eu vou?‖ Ele falou: ―Porque de todos que tá aí, quem prega a palavra

é você, a igreja do Socorro quer ouvir palavra, não meninice‖. Eu falei:

―Estevão, é isso?‖. ―É, vou te dar prazo de 30 dias‖, pra não ir, nos 30 dias,

uma coisa impossível do impossível acontece. Tinha uma senhora que morava

no fundo da igreja de São Luiz, colocaram ela lá porque ela pagava aluguel pra

um pastor, ela não pôde pagar mais aluguel, ele pegou, tirou ela dali e colocou

no fundo da igreja, ela tinha duas filhas e um filho e era viúva. E não sei como

que foi que eles conseguiram tirar ela da igreja, o pastor. E ela foi ficando

naquela bronca. E tinha um poço fundo, ele não dava mais, as irmãs da igreja

não iam mas tirar água do poço fundo pra lavar a igreja, pra limpar a igreja, pra

varrer, nada. Eu cheguei lá, vi a situação, não conhecia. Ela tinha um jardim

muito lindo, cada flor tinha o nome de um pastor e o [..] na cabeça que ela tava

indo pro centro. E eu sabia, comecei a ver aquilo, comecei a olhar aquilo. Aí

peguei uma foice, do lado era muro, peguei uma foice, fui nos pés de

bananeira, limpando, tirando tudo, comprei tinta, pintamos a igreja por fora,

pintamos por dentro, era um banheiro de cada lado, muito grande, arrumei o

banheiro, chamei o vidraceiro, arrumei o vidro, deixei lindo, pintei. Aí ela falou:

―Poxa, esse magrelo parece que é de Deus mesmo, ele vai ficar aqui‖. Cheguei

lá limpando tudo, tinha um pé de flor tampando o banheiro, eu não quebrava,

morrendo de medo da macumba da véia, pra você ver como é. Aí eu fui, cortei,

limpei assim: ―Oh, bom dia, qual é o nome da senhora?‖. ―O prazer, to aqui

muito tempo‖, fomos conversando. Aí no outro dia: ―Aqui tem um poço, a água

aqui é linda, água gostosa. Toma um copo d‘água‖, entrei lá, era um

barraquinho que não valia nada, o meu barraco é um tesouro perto dela, pelo

menos o meu é bem arrumado. Aí, era um barraquinho que chovia dentro.

Chamava-se Geralda, eu fui conversando com aquela mulher. A corda tava

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véia, o balde caiu, eu fui lá e comprei 25 metros de corda. Aquele tempo eu

tava com um dinheirinho, comprei a corda, comprei um balde e coloquei. Falei:

―Geralda, o povo pode vir pegar água aqui?‖ Ela: ―Não, isso aqui é da igreja‖. Aí

tem um processo contra ela, tem o juiz pra fazer o despejo dela. Vai fazer

despejo. Eu falei: ―Mas você vai levar ela na justiça?‖. ―Ah, ela não tá na igreja‖,

o Delfonso que [...], esse que foi pra Londrina. Ai eu cheguei, nada da igreja.

Cheguei lá, arrumei, chamei um carpinteiro que tinha lá, ele fez uma caixinha

bonita, o poço tava tudo podre, caindo... E na hora de subir tinha uma escada.

Ela ficava em cima da escada, ninguém alcançava, tudo passava de cabeça

baixa. Reuni os [...] : ―Ó, a partir de hoje , se a igreja quer ter vitória, a igreja

quer conquistar alguma coisa, tudo que passar aqui, subir, dona Geralda tá aí,

tem que falar boa noite, o que vocês quiserem pra ela. Boa noite, paz do

Senhor, bom dia, porque pra mim, um bom dia pra mim é uma paz‖. Porque

quando você dá um bom dia, que coisa mais linda. Tem uma irmã, ela chega e

fala: ―Bom dia irmão, bom dia‖, é uma coisa linda , bom dia, aquela voz cheia.

―Vocês falam que não, mas vocês não vão mais subir sem falar com ela‖, Por

quê? Pegava pra mostrar a fotografia, ela tava no meio, a Geralda que fez,

essa foi a Geralda que trouxe, essa festa das crianças foi a Geralda que fez,

esse grupo de jovens, foi a Geralda que fez, tudo foi a Geralda. Eu falei: ―Que

praga que é essa mulher aqui dentro, que agora o povo é contra ela? Eles tão

com ciúme‖. Só uma que chamava Carmelita, que já morreu, uma baiana: ―Eu

não faço e não vou, se for pra mim ir pro inferno, eu vou. Mas eu não

cumprimento aquela mulher, ela não merece‖. Irmão, a Bíblia diz, perdoa para

ser perdoado, se a senhora não dá o perdão, a senhora não é perdoada e se a

senhora não é perdoada a senhora vai criar um câncer dentro da senhora, vai

criar problema no seu coração, vai ―desemocionar‖, vai criar problema, a

senhora vai se descontrolar da sua vida. ―Não, eu não faço‖. Todos. Era 39 fora

eu e minha família. Com ela 40. E uma irmã que vinha só aos domingos eram

as 41 pessoas que eu tinha na igreja. Todos, tinha a Marcelina, o Dinho, o

Claudio, a Maria, a irmã dele, chamava Rute, Marcio, Carlos, chegou todo

mundo: ―Geralda‖, abraçando, irmão, aquilo foi , me arrepia todinho, que aquilo

é ovelha mesmo. Aí foi abraçando, abraçando. A véia subiu, cabeça baixa, não

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falou com ninguém: ―É uns tonto‖, ficou no culto assim e foi falar pro pastor na

sede. O Pastor falou: ―Lá é o pastor Carlos, ele fez isso, irmã? Ele teve

coragem de fazer isso? Isso é homem de Deus‖, falou pra ela. Ela voltou, mal

dizendo, com 15 dia deu um derrame, foi pra cadeira de rodas, pra vir na igreja,

na ceia, tinha que ir pegar de carro e trazer, babando. A mulher era ruim. E eu

guardando isso. No outro dia: ―Geralda, domingo eu quero ver você no culto

hein‖. ―eu venho, nunca ninguém me convidou, o senhor ta me convidando, eu

venho‖. Veio, entrou na igreja, todo mundo abraçou a Geralda, eu falei: ―Vem

cá, tem um hino aqui que a senhora gosta de cantar na harpa‖. Eu cantava

muito o cantor batista, sabia muito de batista e na harpa eu cantava pouco. Aí

eu falei: ―Eu quero aprender esse hino‖, ela tinha uma voz que... ―O senhor vai

me dar essa oportunidade?‖. ―Vou, só vou levantar e fazer a oração primeiro‖,

Ela ajoelhou, pediu perdão pra Deus, não pedindo perdão pelo que ela fez, ela

não fez nada errado. Os irmãos assim, o pastor aceitar, convidar ela e se ela

prejudicou alguém [...]. Aí ali começou a desenvolver o trabalho lá da igreja. E

desse tempo, aí como ela tava na justiça, eu falei pro Estevão: ―Estevão, eu só

aceito ir pro Socorro se Deus resolver o problema que tem hoje, a Geralda na

justiça. E ela tá construindo uma casinha e ela disse que só sai daqui quando a

justiça vir tirar. Mas Deus vai mudar a vida dela, vou dar 30 dias, eu vou falar

com ela amanhã, vou pedir pra ela sair, e eu sei como é que eu vou falar com

ela, se ela sair eu volto pro Socorro, se ela não sair, eu não vou. ―. Cheguei:

―Paz do Senhor, irmã Geralda‖. ―Paz do Senhor, irmão Carlos‖. Falei: ―Geralda,

a senhora tá num quartinho aqui que ta molhando, você tem umas filhas mais

lindas, suas filhas são lindas, maravilhosas. Seu filho pegou uma pneumonia

aqui, ele trabalha na Philips‖, na ponte do Socorro tem uma Philips. Ele

trabalhava ali já há vários anos. ―Pegou uma pneumonia, tá lá encostado na

Caixa e a senhora aqui com a casinha da senhora lá, não faz isso não. A

senhora faz um favor, sai, deixa isso aí, isso é um lixo, não vai valer nada. Eu

vou orar, a senhora vai orar, a senhora pensa e quinta-feira a senhora me dá a

resposta. Não fica aqui não, não leva a pique não, Deus não gosta disso, a

senhora tem a casinha pra senhora morar, gostosinha lá. Diz que é bem

feitinha‖. ―É, tá bem feitinha mesmo,‖. Eu não tinha visto só me falaram. ―A

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senhora vai ficar aqui? Prejudicando as suas filhas, que já tão moça, seu filho

com a pneumonia, daqui a pouco fica a outra, chovendo tudo dentro, não vão

arrumar, eu não vou vir morar aqui.‖. Depois eu fui. Na quinta feira. Ela disse:

―Carlos, você não conta pra ninguém, você não me fala pra ninguém, que eu

vou deixar a chave na sua mão, se eu não deixar a chave‖. Ela não tinha nada,

né? ―Que eu saí e que eu vou deixar a chave aqui, ó, se o [..] da porta tiver ou

não tiver, a chave tá aqui, ó.‖ Com 18 dias, a Geralda mudou, isso eu não falei

pra ninguém, não contei pra ninguém, só a igreja sabia, obreiro, pastor não. Dia

30, no domingo, terminei o culto dez horas. Eu tinha uma cachorrinha, Lulu.

Aquilo era uma barulhenta danada. ―Carlos, Carlos‖. ―Oh,irmão Estevão. O que

é?‖. ―Hoje é 30‖. Ele não esqueceu: ―Hoje é 30, você vai pro Socorro ou não

vai?‖. ―Vou‖. ―Ah, então graças a Deus‖. Foi onde eu vim pastorear a igreja do

Socorro, ali na sede. E fiquei lá mais quatro anos, na igreja sede, eu já era

vice-presidente da época, fui presidente nacional, fiquei quatro anos de

presidente, quando foi na outra convenção, eles não quiseram outra eleição,

não aceitaram fazer eleição, a maioria votou pra não ter eleição, pra eu

continuar sem eleição. Fiquei mais dois anos, aconteceu um problema em

Londrina com um pastor de 72 anos e aí eu dei baixa, ficou o vice-presidente,

que só ficou três meses. Eu dei baixa e fui pastorear em Londrina. Pastorear

em Londrina, aqui eu tinha uma ajuda de custo, lá eu não tinha. Depois de uns

quatro ou cinco dias que eu tava lá, recebi uma carta de uma irmã que

trabalhava no Banco Itaú, como sub-gerente, e essa carta foi para o Telex,

recebi rápido a carta, demorava três dias naquela época, aí ela falou: ―Você

saiu, fez o culto, só pediu oração, não falou nada, o porquê, não contou pra

ninguém. E eu perguntei pro meu pai que é presbítero, ele também não quis

me falar. Eu to enviando dois salários mínimos e mais um pouquinho, por nove

meses pra você. Juntou cinco igrejas aqui, depois de 20 dias me deram uma

resposta, que ia dar um salário mínimo de 110 reais, na moeda da época‖. Aí

eu falei: ―Não precisa mandar não, que Deus já supriu minha necessidade, não

precisava mandar não, fica pra vocês mesmo.‖ Mas ela continuava mandando,

depositava na conta, né? Falei: ―Não‖. ―Por quê?‖. Eu fui deixando aquilo lá, só

pegando da irmã e deixando o que eu precisei. E depois de lá, eu voltei um ano

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e quatro meses que eu tava lá, consegui reconciliar um pastor fundador da

igreja, que morreu agora semana passada, pastor Pedro Dias. Trouxe ele de

volta, ele ficou um ano lá comigo, aí foi recebido na convenção, aí deixei ele no

meu lugar, que a ordem era deixar um no meu lugar, por enquanto, se eu não

conseguisse um pra ficar na minha altura lá, que é um campo longe, um campo

vasto. Tinha que deixar um da minha altura e ele era mais capacitado que eu,

porque foi ele que fundou, e ele ficou no meu lugar e eu voltei pra São Paulo.

De São Paulo eu passei para o Jardim das Oliveiras. A igreja tava fechada há

um ano, foi um desafio que eu fiz, com os magnatas. Porque a igreja deu

problema com obreiro, deu problema com o outro, aí cinco empresários

falaram: ―Vende lá, só dá problema‖. Aí eu no meio da reunião, com presbítero,

evangelista, tesoureiro. Eu falei assim: ―Não, lá não vai vender, vocês sabem

quanto custa uma obra pra Jesus?‖, ficaram tudo quieto. Aí ficou um ano

fechada. Aí era pra eu vim pastorear o Socorro, ou o Jardim São Luiz de novo

ou Parque Brasil, e eu fui pra essa igreja que tava fechada. Eu falei: ―eu quero

ir pra lá, eu fiz um desafio e vou pra lá‖. Aí com seis meses eu restaurei a

igreja, em nome de Jesus, seis meses. Fiquei seis meses dirigindo sozinho,

seis meses que vinha saco de folheto da Inglaterra, veio com sete tipo de

folheto. Eu tirei um folheto pra cada dia, carimbava. Depois de seis meses, a

primeira alma que eu ganhei foi num funeral. No funeral eu ganhei 12 almas e

as 12 desceram às águas antes de maio, no Jardim das Oliveiras. De lá, foi

quando deu o problema conjugal, que eu já tava sabendo do caso, antes já

tava sabendo. Tinha ido pra convenção, continuei e tentei, tentei, tentei, até

que não deu mais. Quando eu saí, deixei tudo pago lá, conta de luz, tudo, tudo,

passado pra eles, certinho, com relatório, direitinho. Sai. Aí o Estevão falou:

Você fica mesmo no Socorro. Onde estiver você pertence ao Socorro. Fui

morar no Jardim Ipê. Aí na época, me desquitei, não tinha divórcio, foi em 85,

me desquitei. De 85, que eu me desquitei e vim morar com essa mulher que é

minha esposa hoje. Que também é desquitada.

Ganhei 12 pessoas, e daquelas 12 pessoas, eu consegui descer os 12

nas águas batismais, e como era um bairro muito violento, um bairro de muitos

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crimes, ainda é violento, mas naquele tempo era demais, você descia do

ônibus, o cara te roubava, você chegava no ponto de ônibus de manhã, era

carteira, era bolsa, era camisinha, era calcinha, era blusa, era cueca, o que

tinha eles arrancavam. E um dia eu estava orando de manhã, eu levantava

cedo, ia pra igreja, orava, pegava a Bíblia, sentava numa mesa, preparava uma

mensagem, um estudo, depois eu saia pra rua. Saia oito e meia, nove horas,

depois voltava 11:30. Almoçava, voltava duas horas e depois ia até às cinco,

todo dia. Isso foram seis meses. E um dia um rapaz veio correndo na igreja:

―Você ora por pessoas doentes?‖, disse: ―Oro‖. ―É que tem uma moça ali que tá

passando mal‖. Aí eu fui com ele, quando cheguei lá, tinha um arsenal. Eu

entro na sala, uma sala muito grande, eu nunca tinha visto arma daquele

tamanho, a parede tava cheia e num grupo de malfeitores mesmo, lá dentro. E

no quarto, estava a menina e bastante gente. Aí cheguei e lembrei daquela

carta de Pedro, olhei assim: ―Quem é a mãe da menina?‖. ―Sou eu‖. ―A senhora

é mãe dela? E a senhora, é evangélica?‖. ―Não, num sou nada‖. ―E você?‖. ―Ah,

também num sou nada‖. Falei: ―Por favor, e você?‖. ―Ah, eu sou da igreja

adventista‖. ―Fica você aqui‖, uma tal de Maria. Falei: ―Por favor, todo o pessoal

sai pra fora, fica só a mãe da menina aqui comigo‖. Eu encostei a porta, a

oração que eu fiz foi o Pai Nosso, a menina ficou liberta, sem manifestar nada,

o diabo foi embora da vida dela. À noite ela veio pro culto, aí dali ela foi pra

Santo Amaro, no Jardim Ângela. A tia dela levou ela pra uma igreja da

assembléia que tinha lá, de lá ela foi pra um grupo de jovens, de uns 15 jovens

da igreja batista. Ela foi pra igreja batista, se batizou, e veio me convidar pro

casamento. E aquele dia foi guiado por Deus, tudo por Deus, porque quando

eu desci no ponto de ônibus, dez e meia, 11 horas, meia-noite: ―Oh! o pastor,

oh! o pastor‖. Abria tudo de lado, me chegava: ―Pastor, vai por essa rua aqui,

que lá em cima tem um problema‖. Quantas vezes eles [...] pra pessoa [...] é

roubado? Eles me levavam até o portão de casa. Essa igreja foi assaltada

semana passada, depois que eu saí de lá foi roubada umas cinco ou seis

vezes. Eu fiquei lá quatro anos, eu saia com a minha família toda. Eu ficava

quatro, cinco dias fora, eu falava: ―Ó, dá uma olhadinha pra mim‖, porque a

igreja ficava no alto, na porta da igreja, eles viam tudo que tava acontecendo.

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Na hora que a polícia entrava, quando vinha, ela entrava [...]. E eu falava: ―Ó,

eu vou sair esses dias aí, cê dá uma olhadinha pra mim?‖. Quando eu voltava:

―Pastor, tudo certo, ninguém mexeu?‖. Então, ali foi um plano, já de Deus.

Quando deu tudo isso, o problema do desquite, o problema do casamento, que

eu saí, eu vim pro Jardim Ipê. Do Jardim Ipê, eu comecei a trabalhar com a

UFER, trabalhei quatro anos com a UFER de vendas. Eu fui morar no Jardim

Jomar, lá em Tremembé. Aí comecei a dirigir uns cultos lá, com umas pessoas

parentes da minha esposa que são todos batistas, todo mundo é batista. E aí

comecei a fazer uns cultos lá, um pessoal tava afastado, vinha de outro lugar e

deixou a congregação lá. E vim pro Heliópolis, quando eu vim pro Heliópolis,

que eu tava ajudando a igreja Betânia, que tinha sido da [...] e deram pra eles,

pro pastor. Me liberaram pra eu fazer uma campanha aqui, e eu fiquei aqui

fazendo campanha, ajudando o pastor, pessoa muito humilde. Isso já foi em

87. E eu vim morar no Heliópolis, perdi uma casa que eu construí 32 milhões,

na época, que falava milhões. Com uma família crente aqui e comprei esse

barraco que eu to. O dono não era tão grileiro, ele não era grileiro, mas ele

comprou casa de grileiro e fazia parte. Tinha aquele espírito, entendeu?

E aí comecei a fazer culto pra missões. Aí vim pra igreja pentecostal do

Brasil, quando eu comecei a fazer culto, foi na época que teve que tirar os

missionários, ficou os brasileiros, e eles acharam uma vez que aqui não dava

que achavam a favela falavam: ―Você é louco de ficar aqui‖. Quiseram me levar

pra outra igreja. Eu, como tinha prometido, que nós ia fazer um campo aqui e

aqui nós ia tirar uma igreja, [...] um campo da Zona Norte, quer dizer, da Zona

Sul, descendo pra Baixada aqui, e comecei a dirigir e a pregar da minha casa,

juntar os irmãozinhos. Na última vez, eles acharam que não dava certo, como

num achou quem queria ficar responsável, eu continuei dirigindo, mas

continuando membro lá em Santo Amaro, e como pastor. Quando nós tava

conversando, trabalhando unido. Esse pastor que é o presidente e que foi

secretário meu oito anos, tinha ido pra Inglaterra, tinha partido pras

convenções. Aí ele veio, conversamos então ele falou: ―Não, vou dar um jeito,

um terreno num lugar melhor aqui, nós compra um terreninho aqui, vou ver se

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dá pra ir pra Silva Bueno‖. Era a idéia dele, eu falei: ―Então tá bom‖. Deu

conseqüência que naquele tempo veio um grupo de irmãos, cinco ou seis. Aqui

era só favelão, casa. Aqui nego dava tiro, correndo na rua e eles ficaram com

medo, os caras roubando, entendeu? Eles ficaram com medo. Aí eu falei:

―Também não corro‖. Fiquei. Deu na época, aí veio aquela união que tinha o

registro da igreja e então tinha que reunir com não sei quem, tinha que fazer

uma igreja e era só aquela conversação bagunceira que tinha. Eu fui, registrei

com a diretoria, o estatuto, até fiz o estatuto igual do ministério Elim. E

continuei dirigindo culto, fazendo batismo. Que eu sou da casa, continuo da

casa, o presidente hoje é filho meu na fé, era menino na época. A esposa dele

e alguns pastores que têm, na época, que tão hoje pastoreando. E fiquei,

continuei, aí daí quando eu registrei, que saiu o [...], se não me engano, foi 28

ou 29 de setembro, que o presidente assinou. No dia 1º de agosto eu fui no

cartório, dia 30 de agosto eu casei. Saiu num dia, no outro eu casei. Fui no

cartório, levei uns papel, aí dia 30 de agosto eu casei. Saiu no jornal, fiz

questão de sair, publicar. ai vieram um monte de pastores atrás, aí passou o Zé

Pedro: ―O socorro, tem um trabalho aqui, mas tem o Lourival que gosta de

evangelizar, nós trazemos ele pra cá. Aí você...‖. ―Não, continuo aqui‖. Deu

naqueles meses, que ele faleceu. Nós reunimos, ia para, pagar o estatuto [...].

Não tinha nada pra pagar, eu só passo e pronto, dou baixa no estatuto. Ele

faleceu, [...] na igreja que ele construiu, ela tinha três andar, ele subiu com uma

[..]. Não sei como aquilo escorregou e foi fatal. Quando o helicóptero chegou lá

pra pegar ele, que ele tinha um convênio não teve mais jeito. Aí eu lavei as

mãos, e continuei com a igreja, compramos aqui.

Quando eu cheguei aqui, como eu nunca sabia o que era grilar terra.

Sabia o que era favela, mas eu não sabia como invadir uma favela, não sabia

como chegar na terra do outro. E quando eu vim ajudar o pastor José de Lima,

a Cleide já fazia a reunião na igreja de Santa Edwiges, lá embaixo. E eu como

sempre gostei de gente, e mexi, então, eu ia pra lá. A Cleide falando, meio

escuro, aquele tempo ela falava novinha, , querendo casar, falava forte e ela

gritava mesmo, tava sem microfone, daqui na Coronel Silva Castro você

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escutava a Cleide falando, autoridade tremenda. E juntava gente, aquele tempo

juntava gente. Hoje cada um pensa que é dono do seu nariz. Se fosse fazer

uma manifestação aqui, não sei como que fica, parou o povo. Que nem os que

estão no apartamento acha que não precisa mais, quem tá no apartamento e

vivia no barraco não é favelado mais. E tá tudo no mesmo barco, o dia que

quiser mexer, e minha idéia é essa ainda, que tá tudo no mesmo barco.

O dia que o prefeito falar que aqui é lugar de primeiro mundo que vai pôr

metrô aqui, todo mundo vai querer vir pro Heliópolis. Por que tem metrô aqui,

trem ali, tem condução pra todo canto. O dia que ele falar que a prestação vai

ser quatrocentos, como é que a gente pode pagar quatrocentos reais? Hoje é

75, 80. Não vai precisar o povo reunir, ir lá na cidade e fazer igual fizemos na

Eletropaulo, na [...] Igual nós enfrentamos a polícia do Maluf? Nós tem que

fazer a mesma coisa, porque o povo tem união e a união faz a força. Aí eu

participava, quando eu perdi esse terreno lá, essa casa lá, que eu comprei

aquele pedacinho ali que eu moro, veio a polícia do Maluf, 16 de dezembro de

1993. Eu não sei se existe o filme ainda, mas toda vez que eu vejo, eu choro,

porque aí eu vejo a coragem que a gente tem. E a gente às vezes erra por

causa da coragem. A coragem que a gente tem, a polícia veio dia 16 de

dezembro, foi um presente de Natal de 1993. A polícia invadiu, fechou tudo e

nós de braço de ferro, naquele tempo era Miguel, João Miranda, Genésia,

Cleide, Cleusa e eu era já vice-presidente da Cleusa. Nessa sede que era de

madeira, padre Pedro, padre Miguel, que era [...] até hoje, de guerra, de luta,

de união,não tinha placa de igreja pra ele, eles contavam o segredo da igreja,

eles sabiam,era contra o Papa em muitas coisas, tava no domínio do Papa e

muita coisa eles eram contra o Papa.

Então, pra [...] gostar, tomava um café, ele ia lá no meu barraco e ficava

duas horas conversando, que era uns homens simples: ―Vim tomar aquele café

gostoso que só a Cleide sabe fazer‖, fazia um café lá, contava história. E

fizemos muitos cultos ecumênicos aqui dentro.

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Aí vem a polícia e o [...], e o povo do lado de cá. Os outros de lá orando,

um povo orando aqui o outro de lá, e aquele dia veio gente da Vila Moraes,

veio da favela da Vila Prudente, veio da favela de Cachoeirinha, veio da favela

de São Miguel. E quando começou a desmanchar, que começou a levar

borrachada, a Cleide levou borrachada nas costas, outros levaram meio

presos, apareceram uns rapaz, uns catatal, uns desse tamanho com um braço

dessa grossura. Eu me lembro que eles tacavam uma pedra do Acácio. A

pedra vinha dessa altura, as pedras eram desse tamanho, redonda, tijolo. Do

jeito que saia do braço deles, ia 80, 90 metros na mesma altura, quando batia,

esbagaçava. E a polícia veio e fizeram uma barricada, com bomba de gás, em

frente o meu barraco fizeram a barricada. Nós tinha sofá, pneu, aquele fogo e

aí jogamos bomba. Só que o feitiço da minha bisavó, que dizia que virava

contra o feiticeiro. Eles jogavam a bomba. Começou o vento soprar, do leste

pra cá. Conforme ele jogava a bomba e aquela fumaça de sofá velho, jogava a

bomba, a fumaça ia pro lado deles. E eles começaram a jogar bomba. A bomba

caía no pé deles. Eles já estavam horrorizados, daí uns 30 minutos, acalmou,

porque veio a ordem do juiz, aí parou, liminar, parar. Aí conseguimos a vitória

daquele dia, mas a luta não parou.

Os crentes ficaram de braços cruzados. Mas, nós tinha por exemplo, um

que era falado no começo, que era o pastor Wilson, o finado pastor Cícero,

tinha o finado pastor Manuel, tinha o Zé Lima que eu falei pra você.

A maioria dos pastores tinha as igrejas aqui dentro. Eles tinham as

igrejas aqui dentro. Tinha salão Deus é Amor. Na época, o PT pra eles era o

demônio, pros pastores, o PT era um demônio e eu era o filho do demônio,

porque além de estar filiado ao PT e trabalhava com padre e carregava uma

caixa, que ontem mesmo eu utilizei, em Sumaré. ―Essa caixa eu dou pra quem

eu quero, eu comprei com o meu dinheiro, não foi de igreja‖. O pessoal daqui

não tem problema pra levantar aqui, mas tem lugar que é um inferno. Então,

julgava tudo de uma maneira, que eu precisava ser liberto. Mas eu sempre

apresentei relatório, do povo que entra, do povo que sai, do que gasta. Eles

perguntavam, eu sabia tudo. Então, tá precisando de caixa, lá tem duas

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caixinhas que é daqui e essa caixa é a caixa boa. Onde eu ia, eu levava essa

caixa, nas costas . E fui separando do Miguel, depois eu conto essa história,

depois você me lembra. E continuamos fazendo essa luta, mas os pastores,

pra mim, eu era o filho do diabo. Porque, filiado ao PT, andando com padre,

capeta que idolatra fariseu. Como eu fui criado com padre e freira, eu sei que

não é assim. A igreja católica tem coisa ruim, mas tem muita coisa boa. Aonde

que eu falei com o bispo, ele chorou comigo, me abraçou, eu fui em muita

ordenação de diácono aqui, muitas. E teve uma que me emocionou que eu

chorei, não agüentei. Que eu vi isso com os ingleses, o padre negro, você

lembra o padre que foi consagrado diácono ali em cima na [...]? Esse era uma

festa africana que era a coisa mais linda do mundo, aquilo me arrepia até...

Aquele me deixou saudades, que eu vi isso nos sonhos. Nos meus sonhos eu

vi isso, mas eles fizeram uma coisa tão linda, linda que ficou na história. Aquilo

eu chorei, chorei mesmo. E, tive várias vezes aqui na igreja Santa Edwiges,

que a liturgia quem lia era eu, ele me levava pro altar: ―Pastor Carlos aqui nos

honrando‖. E dava a liturgia pra eu ler, eu que lia , fiz muito. E pra mim não era

problema, eu falei pro bispo, falei: ―Olha, tem uma coisa que pra nós é

problema...‖, Ele me chamou pra uma missa, uma festa no Ipiranga, e eu falei:

―Mas tem uma coisa, cada vez que vocês passam lá na frente da igreja...‖, a

minha família é toda católica, eu tenho sobrinho, irmã dele estudando pra

padre, pra se formar. Eu falei: ―Passar em frente ao crucifixo, faz o em nome do

Pai e tem que ajoelhar, isso eu não vou fazer‖. Ele falou: ―Meu irmão, faz o que

tá no teu coração, não vê o outro fazer e faz também não‖. Eu esqueci o nome

dele. É o bispo Celso. Me abraçou, chorou e falou: ―Não faz isso não, isso não

é a nossa diferença não, nosso amor é Cristo‖. Então eu tenho essa lembrança

comigo, ele era um [...], tenho essa lembrança comigo. Eles faz 25 anos de

prata de padre, né? 25 anos fez do padre Pedro, do padre Mario, da capela

aqui debaixo. Daí fui convidado, tive a honra, tive parte. Quando morreu quatro

pessoas queimadas aqui na igreja, dessa quadra que pegou fogo, morreu

quatro queimado. Eu tive aí, participei do funeral, participei da missa, usei da

palavra. A Globo tava aí dando cobertura, atingiu o nordeste todo, cê sabe

quantos telefonemas veio? 38 telefonemas perguntando se eu tinha voltado pra

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igreja católica, porque nós tava no meio, pra você ver aonde tá a cabeça. Um

trabalho ecumênico, irmãos nossos que tinham morrido. Eu não sei quem tirou

os banquinhos da igreja, quem tirou as coisas da minha casa, eu só senti o [...]

que eu perdi, o que era dos outros eu devolvi meus livros de teologia, que se

eu quiser, eu não consigo comprar mais, um dicionário que eu tinha, que hoje

eu não encontro, além de tudo de fotografia que eu ganhei, sumiu,

desapareceu, nunca mais consegui. Isso eu senti, mas quem tirou das minhas

coisas, eu não sei. O fogo chegou lá, aí você tá fazendo outra coisa e cabeça

muito longe, ainda fizeram isso.

E o dia do fogo, o dia da manifestação da polícia do Maluf, não apareceu um

pastor, não apareceu um obreiro, nem presbítero, de outra igreja nem pra pedir

misericórdia e nem pra falar nada. Aconteceu isso e eram de várias. Mas tinha

irmãos orando lá em casa, igrejas que pôs, por exemplo, a comunidade. Tinha

uma comunidade batista aqui que tinha um quartinho, tomaram deles, aqueles

dez irmãos que tinha, ficaram dez irmãos só. Aqui nessa rua onde é a rua

hoje, era uma viela. Foi tomado, eles vieram fazer o culto e tinham invadido.

Então, eles ficaram orando, a igreja católica, em peso fez oração, chamaram

uns cabeças e foram pra igreja orar, fazer a reza. Enquanto tava acontecendo

o conflito. Então, pra você ver , teve grupo de irmãs que era de círculo de

oração, orando daquele mal, mas os líderes não. O líder fora, o líder não

compareceu. Então hoje eu falo de cabeça erguida, falei isso pra muitos

pastores, quando um falou assim, pregou uma noite sobre tímidos e covardes,

quando ele terminou de pregar tímidos e covardes, eu perguntei: ―Irmão, 16 de

dezembro de 1993, o irmão estava morando aqui em Heliópolis, não tava?‖.

―Tava‖. ―O irmão não estava trabalhando naquela época, tava?‖. ―Não‖. ―E o

senhor não foi nos ajudar‖. Porque, se eles conseguem, se o Maluf consegue a

quadra H, ele conseguia Heliópolis todinho. Se ele consegue derrubar a quadra

H, ele consegue tirar Heliópolis todinho. Então a quadra H foi o perímetro que

foi a enfrentação que diz: ―O povo de Heliópolis não é fácil, nós temos que

respeitar Heliópolis‖. E naquele tempo a UNAS era UNAS de garra, de luta, de

enfrentar. Hoje é mais comunidade, é escola, hoje preparando as pessoas pra

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faculdade, é creche, mas aquele tempo, além disso, o povo jogava o povo pra

luta, pra guerra. Por que eu fui me afastando de Miguel? Porque o Miguel, ele

tinha, ainda que ele fala um pouquinho difícil, mas ele era de luta, ele conhecia

lá no Piauí, o povo lá do Piauí é mais de garra, um povo sofrido, eles

enfrentam, se for pra matar, mata, então é um povo desse tipo, é meio difícil,

tem que saber como cuidar. E fazia uma reunião assim...

Eu nunca gostei de elogio, se tiver me elogiando ou falando mal, pra

mim é a mesma coisa. Porque eu sei a capacidade que eu tenho e até onde eu

posso ir, se fala de mim mais do que eu sou, eu posso esperar que quer

ganhar alguma coisa. ―Não, cê fez aquilo...‖. Eu fiz o que eu deveria fazer.

Agora, o Miguel, você chegava naquela época, hoje não, ele é meio bravo,

barrigudo, gordo: ―E, Miguel, você é um homem de garra‖. Aí a gente punha a

mão, [...] com o melhor dele. E aqui tinha prostituição, uma maconha corria,

umas mulheres vagabundas, vagabundas mesmo. Ela ria pra você, capaz de

sair com você, pegar o dinheiro e ir lá dar pro bandido. Você falar que vai ver

uma coisa e ficar na mira do cara. Aqui morreu muitas mulheres aqui, morreu

muitas. Matadas. Pessoa que você nem pensava que era, mulher linda, moça

linda, por causa disso. Ela olhava pro cara, ela que se ofereceu, o cara tinha o

comando, falava que errada era ela, nós somos homens, os homens vão

sempre na frente. Aconteceu isso, morreu muita. E ele chegava: ―Ah você vai

ser não sei o que, você não sei o que‖. E eu fui saindo fora. Eu fui apertando,

eu fui vendo, eu fui observando. Tinha um senhor aqui com o nome de Antônio

Bezerra que trabalhava aí também e hoje ele tá na Paraíba. Eu aprendi muito

com ele, aí ele foi passando e eu fui seguindo ele e fui saindo fora, saí fora e fui

deixando o Miguel. Aí rachou mesmo, aí o Miguel ficou com o Mentor e o

Mentor era um pai, tio, ele foi inclusive... se o Mentor falasse: ―Deita aí, Miguel‖

e fosse passar um caminhão por cima... é verdade.

Pra falar que eu desliguei de UNAS, nunca. Hoje é que eu não tenho

tempo de ir lá e fazer as coisas, mas a minha mesada é a mesma. O João faz

anos que eu não vejo, ás vezes tem uma pessoa, por exemplo, tem o Buiú,

ele pode ser bom pra mim ou não, eu não vou... Que eu trabalho com o Buiú

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assim, ter confiança no Buiú, eu não. Mas tem a Cleide que eu amo o João

Miranda, Genésia, o Geraldinho. Custei entender o Geraldinho, mas é um cara

maravilhoso. Um cara que não sabe fazer não, mas você tem que entender.

Que ele tá falando com você, chamando tua atenção e ele tá andando, ele vai

falando com você e vai saindo, vai indo embora, você pensa que a coisa é

brincadeira, amanhã ele tá te cobrando e você nem pensou naquilo. Mas é um

cara inteligente, um cara que luta, um cara de guerra. A Cleide, o João

Miranda, Genésia, Geraldo, Solange, trabalhei com a Solange no Eliah, porque

eu trabalhei muito tempo.

Olha, a igreja, ela começa e ela acredita como é o líder, como eu fundei

a igreja com o povo e já mudou muita gente daqui, aqui é difícil hoje você

formar um grupo forte, ano passado saiu 22 pessoas daqui, pessoas que hoje

me fazem falta. Mas a igreja é assim mesmo, mas estou feliz com o que eu

consegui com essa igreja aqui, que antes eu não conseguia, louvo a Deus pela

minha vida, pela vida do que eu consegui aqui dentro. Na época, começou oito

trabalhos, já tinha igreja aqui dentro pagando aluguel, antes de eu começar a

minha, que fez 15 anos, eles continuam pagando aluguel, nós conseguimos

comprar isso aqui, pagar, nunca devi pra ninguém, nunca peguei emprestado

uma cadeira de ninguém, nada. Hoje é tudo da igreja, tem um trabalho lá na

Bahia, lá é tudo da igreja, não estamos importunando ninguém, tem um lá em

Sumaré. Paga aluguel lá, mas cadeira da igreja, caixa, microfone, toca CD,

tudo lá. Falta aluguel, não deu, daqui vai pra lá, se não tiver dinheiro pra pagar.

Venceu hoje, não dirige o culto não. Paga. Como que Deus tá abençoando e

você não ta pagando aluguel? Foi igual aqui em Heliópolis, aluguel dois meses

sem pagar, ele falou que ta [...]a benção. Não é benção nunca, irmão. Benção

é quando você tá cumprindo com o seu dever, eu aprendi assim e não vai

mudar, pode ter certeza, mudou muitas coisas, mas nisso aí não me muda.

Então, na época, tava tudo no mesmo barraco. Pois [..] as pessoas da

igreja nos apartamentos, tem pessoas da igreja que tá hoje... Então, ninguém

nunca me criticou. Nunca, porque sabiam que eu trabalhava pelo povo.

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A única coisa que eu não fiz muito e hoje tem alguns, é afiliado ao

partido. Eu nunca foi de colocar esse candidato, eu nunca disse: ― ó, to

trabalhando pra esse candidato‖ [...], o ano retrasado trabalhei, no ano... andei

com vários aí. Porque tinha a minha quadra e muitos iam distribuir coisa e não

tinha onde entrar. Entrar ficava manjado. Então eu entrava com eles, entrei do

PT, entrei com uns três grupos aí. Porque tem umas pessoas aqui dentro do

próprio PT, por isso que hoje é mais dividido. Que é o seguinte, ele ta

trabalhando por certo candidato. Na época da eleição, eu pareço ser inimigo

dele, ele passa de carro, ele nem te olha, ele passa por você e nem te vê. E

pra mim é bobagem, porque, por exemplo, depois dessa época fiquei mais do

lado que é da [...] . Se eu ligar no celular agora ele me atende, um tá em

Brasília, que é o Paulo Teixeira, tem o Simão Pedro, qualquer hora que eu ligar

no celular dele, ou se eu encontrar ele ali ele logo pergunta: ―O que foi? O que

ta acontecendo?‖. Então, pra mim é um grande valor isso daí. Eu sou afiliado.

Então, pra mim é uma grande coisa. Mas tem,por exemplo, pra mim, sonho é

tudo igual. Se eu bater numa porta, ―você vai votar em quem? Ah, eu vou votar

pra prefeito, pra vereador, eu vou votar em fulano. É do PT, eu nem falo nada

com ele, nem apareço. Agora, não vai votar? Tem candidato fulano e fulano. E

o cicrano, é bom? É ótimo‖, eu to procurando voto pra isso, mas se ele falar

que é bom, não pode é perder o voto do partido. E assim é a nossa

comunidade aqui dentro. Tem o Mercadante é uma pessoa que teve o

problema com as pessoas, essa semana mesmo eu vi ele e disse: ―Rapaz, mas

você tá velho hein‖! Então, a Marta, é pra você ver na rua, Suplicy é meio [...]

mas é um cara legal. Não tem o problema de divisão.

Depois do conflito em 93, continuou a luta, a mesma coisa, o povo

enfrentando a luta. O segundo passo foi quando chegaram pra tirar uma

favelinha aqui que tinha embaixo, aonde é a passarela hoje. Perto daquele

cruzamento da [...] e aquele povo ia pra rua, ou ia voltar pra outra favela ou ia

pra Tiradentes. Então começou uma luta, uma guerra, de nós parar na

Anchieta 40 minutos, seis horas da tarde. Chegar a rota, eu com a caixa e o

microfone na mão. E vinha rota e chegava, porque nós vinha , porque a

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Anchieta foi parar até o quilômetro 29. Bem pra lá de São Bernardo. Então

conseguimos parar até que fez a negociação. Aí veio o vereador que era o

Mentor, quando eu tava que chegou a polícia, que a rota tava e empurrando

assim, o Mentor pegou meu microfone: ―Aqui é o vereador que tá falando‖. Aí

ele falou: ―Vereador também vai preso. Ele respondeu: ―Mas também polícia vai

pra fora da corporação‖. Até que veio o comandante, aquela negociação,

amarrando um pouco pra chamar a atenção, veio a televisão, avião por cima.

Chamou atenção, cada um foi pra suas casas, caixa nas costas. Teve a

negociação na COHAB e aqueles 600 apartamento que tem lá embaixo, que o

povo ta morando. Que tirou o povo daqui, foi os primeiros que foram morar lá,

aonde foi lançado o Pitta candidato pra prefeito.

Eu vejo três partes, a primeira parte, quando Deus diz pra Josué: ―Como

eu fui com Moisés, serei contigo pra você tomar posse da terra prometida, não

seja tímido nem covarde, porque Eu sou contigo, vai nessa luta‖.

Uma do povo, que eu ainda moro no barraco, sou feliz, onde eu tenho

de tudo que eu preciso, tenho amigos, amigo advogado , tenho pastores

amigos da alta sociedade, tenho pessoas que se preocupa com a minha vida e

tinha pessoas que as vezes precisava e eu ajudava com uma cesta básica.

Se eu me acovardo como homem, como pastor, um homem de Deus, eu

ia ser a vergonha pra Ele, se eu corresse, eu tava no mesmo barco dentro, e

eu tenho certeza que eu tinha uma esperança de lutar, junto com mais um, com

aquele que está lá na frente, quem estava na frente seria uma igreja só, era um

barraquinho de quatro por quatro, que era o cômodo da igreja. Padre que é

condenado ao inferno, que é idolatra, que ta lá lutando pelo povo , uma cruz na

frente, que acharam que aquela cruz era só pra expulsar o diabo, muitos

pensaram assim e muitos evangélicos também. Aquela estaca que ia na frente,

pra nós guerrear. A cruz sempre nos acompanhou. Aquela estaca ia na frente

porque [...] . Então, era vez que eu que tava carregando: ―Quem é esse

desgraçado, pastor, carregando?‖

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Quando eu comecei aquele barraquinho ali, que eu comecei, uma irmã

escreveu numa faxinha, num pano, de tinta azul; Poder de Deus, oração, Poder

de Deus. Era pra parede. Passa dois pastores de gravata, paletó, da

assembléia de Deus, eu com os madeirite cheio de barro, [..] no papelão,

podre, cavando e sobrava uma horinha, eu ia fazendo uma cerca, passou: ―Ó

que vergonha, oração Poder de Deus, isso é cara que quer ser pastor?

Excluído de igreja, coloca uma coisa dessa, isso é uma vergonha‖. Mas me deu

uma coisa tão ruim, eu falei: ―Cleuza, quem colocou isso aí?‖. ―Foi a irmãzinha‖.

―Tira isso aí, tira isso da parede. Não deixa aí‖. ―Vem almoçar‖. ―Não, não vou

almoçar, já almocei‖. Continuei naquele barro. Duas horas e meia depois,

passa um pastor, cabelo grisalho, camisa fora da calça, com a mão no ombro

da esposa, de uma igreja tradicional: ―Oh, graças a Deus‖, desse jeito: ―Mais

uma igrejinha, mais uma casa de oração aqui, precisa mais dessa nesse bairro

aqui... Tantos bares, tantos ponto de maconha aqui...‖. Desse jeito. Falei:

―Deus, tu és maravilhoso‖.Cinco horas da tarde, eu cheio de barro, passa um

americano com a bolsa nas costas: ―To vendo uma plaquinha de igreja aqui,

quando começa a igreja no Brasil? O senhor pode me dar o resultado das

igrejas no Brasil?‖. ―O senhor é da onde?‖. ―To fazendo um trabalho aqui, vou

embora amanhã, mas eu prometo que lhe mando um binóculo desse‖. Mandou

um binóculo desse tamanho assim, com a fotografia aqui. ―Posso fotografar

aqui?‖. Eu falei: ―Pode, claro que pode‖, fotografou a plaquinha, o Poder de

Deus, eu mexendo com madeirite, expliquei pra ele como funcionava a igreja

no Brasil, a missão que eu trabalhava, ele disse que conhecia, lá de Londres.

Daí em 90 dias chegou um binóculo, que era da fundação daquilo que eu tava

fazendo.

Eu acho que em todas as lutas que você vai fazer com uma intenção da

sua fé e você tá defendendo o direito de outro, você tá fazendo o bem, a obra.

E a fé sem obra é morta, e eu acredito, na minha filosofia, que você pode ser

professor pra nós e corrigir, nos ensinar, tem muito pra fazer isso. Se eu posso

fazer e não faço, eu posso ajudar e eu não ajudo, eu posso estender a mão e

não estendo. Eu via Deus presente... A primeira coisa que eu vi Deus presente,

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quando o batalhão começou a jogar bomba, a bomba caia no pé dele, Deus

presente. Como eu vi, num abrir e fechar de olhos, o vento virar, dar aquele

redemoinho e o vento virar contra eles e eles começarem a se xingar eles

mesmo na minha frente. Vi Deus agir no maldito juiz que tava lá e de a liminar,

ele mesmo cassar a liminar depois. Porque ele pensou: ―eu dou um grito e o

povo vai embora‖. Não. O povo resistiu e a coisa tá feia, tão apanhando, mas

tem gente enfrentando. Vai morrer policial, ele então será o culpado. Eu vi

Deus presente, quando povo começou a se unir, então eu digo, tem igrejas

grandes em Heliópolis, mas não lutaram em favor. Por isso que é uma guerra

com muitas igrejas, por causa disso. Porque não lutaram em favor de uma

palha, de participar de uma reunião, do plano piloto, participar da reunião na

UNAS, participar de uma manifestação, participar numa reunião, igual aquela

que foi feita num salão da igreja que tava ali pra todo mundo. Não participou de

um braço forte de ajuda, sempre esperando que alguém ia pra resolver. E eu

conheço pessoas aqui que foi disciplinada porque foi. Tá viva, faz mais ou

menos uns dois anos que eu não vejo, mas acredito que deve estar morando

aí,se não foi embora. Foi disciplinada pelos pastores porque participou. Então

tudo o que eu fiz, não sei se eu teria a mesma força hoje, coragem sim, mas a

força que não sei. Até agora não veio diabetes, colesterol, não tem problema

de pressão, só cresceu a barriga um pouco, mas o ânimo é o mesmo. Mas se

fosse pra começar hoje, de novo, eu começava.

Aqui nós tínhamos vários grupos fiéis de igrejas orando pelo movimento.

Pra aquele trabalho que tava, porque, por exemplo, você tá lá na Aclimação,

bairro lindo e famoso, mas bem que podia ter um parente, um irmãozinho aqui,

então vamos orar. Naquele tempo tinha muito, então o povo tava orando na

direção daquilo lá. Mesmo que não aceitasse. O pastor era contra. Aquele mais

humilde sempre estava lá na oração, clamando.

Da reunião não, até hoje, ainda é poucos que vai. Eles perguntam:

―Como que foi lá, pastor? O senhor teve lá hoje?‖. Ontem mesmo, ontem não,

anteontem: ―E a quadra lá, como é que ta?‖, dia 31 eu tenho uma resposta, dia

31 eu tenho uma reunião aqui. Já me ligaram no celular, semana passada que

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era dia 24, mudou para 31. ―Ei, mudou a reunião?‖. ―Ah, eu num to sabendo

não, to com muitos compromissos aí‖. Então [...] a gente falha, ainda mais eles.

Dia 31 tem uma reunião pra resolver um problema de Heliópolis, das casas,

moradia. Como minha quadra vai mexer no mês de abril pra maio, então, to

participando pra ver, passar alguma coisa, se num der, vou fazer o que?

Olha, quando tem é dois ou três, é quatro. Que cada um tem a sua, uns

estuda, outros é de idade, outro mora em outra quadra. Um mora na

Imperador, o outro mora na Carioca.Às vezes, a reunião é de dia e uns não tão

em casa, tão trabalhando. Então sempre eu to participando. Agora, às vezes,

tem reunião nos prédios, pra quem mora, então tão participando, e eu sempre

incentivo. Por exemplo, outro dia alguém disse: ―Pastor, eu tenho uma reunião

lá no meu prédio, mas é no dia do culto‖. ―Falte no culto e vai na reunião‖. Não

interessa, pode faltar no culto e ficar até o fim. Porque é o seguinte, reunião de

condomínio ninguém gosta, ninguém vai. Os cabeças é a panela deles, vai 20,

12 são deles, oito são contra. Você vai perder e vai fazer o que eles querem.

Sempre eu falo isso, sempre eu passo isso pra igreja. E tem um, eu sempre

ensino, que toda mulher devia fazer um curso culinária e todo homem um curso

de como gastar o dinheiro, pra não gastar o supérfluo, porque mulher joga

muita coisa fora e o homem compra coisa que, às vezes, não precisa. Então é

uma parte, porque como condomínio é isso mesmo, faço questão. Oriento a

ficar lá e participar da reunião.

Entrevistas

Dom Antonio Celso Queirós

Ficha técnica

Data da entrevista: 31/03/10

Nome completo: Antonio Celso de Queirós

Local e data de Nascimento: 24/11/33- Pirassununga

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Idade: 77 anos

Estado civil: solteiro

Instrução: Filosofia e Teologia

Profissão anterior: Padre.

Profissão atual: Bispo da Igreja católica em Catanduva

Meu nome é Antônio Celso Queiros. Nasci em 24 de novembro de 33 na

cidade de Pirassununga, minha cidade de nascimento. Eu era da diocese de

Campinas. Pirassununga pertencia a diocese de Campinas, mas depois

quando eu voltei dos meus estudos concluídos, eu fiquei um pouco aqui em

São Paulo e depois, como bispo, é que eu vim pra São Paulo. Em 75. Eu fui

ordenado em 60, faço 50 anos esse ano de padre. Eu me formei... Foi com

quantos anos? Acho que eu tinha 26 anos. 26 ou 27, vai fazer 27, não me

lembro, no dia 17 de abril. Foi na Espanha, porque eu terminei meu curso na

Espanha. O curso de teologia.

Ah sim, eu sempre pensei, nunca me lembro, sempre dizia que eu ia ser

uma das três coisas ou padre, como é que era? Ou detetive ou artista cômico

de rádio, porque não tinha televisão naquela época, o mais engraçado é que no

fim eu fiquei padre, já li tudo quanto foi livro de detetive, é um dos livros que

mais me distrai e sempre fui palhaço, no tempo de seminário, mesmo aquele

que [...]. Gozado, mas eu acabei sendo as três coisas

Minha infância foi em Pirassununga, depois vim pra Campinas pra fazer

o ginásio e o colegial, a gente fazia o seminário menor, né, e depois vim pra

São Paulo pra fazer filosofia e teologia. No Ipiranga aqui e daqui é que eu fui

pra Espanha pra fazer a teologia. Três anos de filosofia e quatro de teologia,

até hoje é assim. Atualmente já se faz, em faculdades até muitas vezes leiga.

Porque a gente estudava todo esse tempo e depois não tinha documento na

mão reconhecível. A teologia não interessava para o Estado, agora até isso

reconhece. Mas então, quando nós terminamos e havia um movimento que

lutava muito pra que os padres pudessem ter uma... Conseguiram então,

conseguiram revalidar o curso por algum... Então eu fui fazer a revalidação em

Mogi das Cruzes, na faculdade de Mogi das Cruzes. Fiz, fiz tudo, passei e

nunca fui buscar o diploma, até hoje eu nunca fui buscar o diploma, paguei,

deixei pago o diploma. Foi até engraçado, porque eu dava aula na faculdade de

Campinas, aula de Cultura Religiosa, Doutrina Social da Igreja, então tinha

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hábito de estudar. Mas o pessoal que foi comigo, os outros padres tavam nem

aí, entendeu? Então meu grupo, eu que fazia todos os trabalhos, tinha que ir

atrás do fulano e pedir: ―Assina senão eu não posso entregar e não vai ter

nota‖. Ninguém nem tava interessado nisso. Depois vários começaram a dar

aula por aí, mas era engraçado. Foi uma enxurrada, sei que eu acabei nem

indo buscar o diploma, nunca mais dei aula de Faculdade, eu fui trabalhar no

Rio, na Conferência dos Bispos e lá fui nomeado bispo, então, não me faz falta

esse diploma

Da Espanha eu voltei pra Campinas. Fiquei dez anos em Campinas , aí

que eu trabalhei na Universidade Católica, trabalhei muito com leigos, nunca fui

pago, nunca fui encarregado duma paróquia, trabalhei muito na Pastoral e

depois eu fui pro Rio pra trabalhar na Conferência dos Bispos do Brasil em 71.

E de lá, eu voltei pra Campinas em 75 porque eram quatro anos, mas aí fui

nomeado bispo auxiliar de São Paulo, então vim pra cá e fiquei até dez anos

atrás quando fui pra Catanduva . Em São Paulo fiquei, olha, de 76... acho que

25, 26 anos.Já em Catanduva foram dez anos, fui pra lá no ano 2000 e voltei

neste ano, 11 anos, né? E me aposentei, to aqui, voltei pra São Paulo. Agora

eu não tenho mais um trabalho oficial, realmente, agora quando me pedem eu

ajudo aqui e ali, mas num quero assumir compromisso não porque... mas

ajudo. Eu to começando, né, as celebrações, atender o povo, conversa, pra se

confessar, pra dá um conselho e vou, vou ver até onde vai isso. Quando me

pedem alguma coisa eu vou no retiro, na palestra.

Eu fui auxiliar o Paulo Evaristo. Nós éramos um grupo. Foi a época mais

saudosa da minha vida porque nós éramos uma equipe, nós nunca fazíamos

nada sozinhos, se encontrava duas vezes por mês, sempre. Uma vez,

inclusive, fora de São Paulo, era ali no Paulo VI em Taboão da Serra e ali

passávamos uma tarde, dormíamos o amanhã, na tarde do dia seguinte é que

voltávamos. Então, todo nosso trabalho era planejado, revisto, discutido em

comum. Era uma equipe de bispos, éramos dez bispos com Dom Paulo, mas

sempre tinha um ou outro padre ou leigo que a gente convidada pra um

assunto muito específico na área dele. Foi um tempo realmente glorioso pra

nós e, acredito, pra igreja de São Paulo também. Pelo menos é o que a gente

ouve dizer, pelos que conheceram e conviveram nesse tempo, Nesse tempo,

Dom Valdir esteve aqui. Eu convidei pra vir falar aos padres, depois ele voltou

de novo pra pegar num retiro pros padres. Dom Valdir, Dom José Maria Pires,

Dom Helder.o Dom José Maria Pires ainda é vivo e corre num sei quantos

quilômetros toda madrugada, coisa de louco, viu, coisa de louco. Ele ta

morando em Belo Horizonte e toma conta de uma paroquinha rural. Porque ele

é mineiro, né? Ele é mineiro, ele era de Araçuaí quando foi nomeado bispo.

Mas é impressionante a vitalidade desse homem, o Zé Maria Pires, deixa eu

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ver que idade ele tem... (Foi buscar um livro que contém informações sobre os

padres e bispos) Ele foi arcebispo de João Pessoa, tem nordeste cinco, lá é

nordeste dois. Nordeste dois, tá aqui. Olinda, Recife, Paraíba, Zé Maria Pires

nasceu em 1919. Da Primeira Grande Guerra Mundial, 1919, já pensou numa

coisa dessa? Quer dizer que ele tem 91 anos. Que coisa, impressionante!

Eu costumo distinguir teologia da libertação e evangelização libertadora,

eu nunca fui um técnico da teologia da libertação. Eu sempre, quer dizer, desde

quando a gente foi padre, era época de pós-concílio Vaticano II, a gente lutou

muito naquela época pra captar as idéias do concílio e introduzi-las, né? E

depois, sobretudo, com o sínodo de 74, mas aí o meu trabalho na CNBB

também me colocou em contato, muito maior com as pessoas, aí eu conheci

todo esse pessoal, os teólogos da libertação, da teologia da libertação. Me

lembro que o Leonardo tava começando, primeiro livro dele, Leonardo Boff e foi

por aí. Então a gente foi se envolvendo nisso, quer dizer, eu não tenho dúvida

nenhuma que aí pipocou um engano muito grande por parte de altas

autoridades da igreja. Elas nunca conseguiram distinguir essas coisas, a

teologia como teologia, vale o que vale uma teologia, entendeu? Todas elas

são questionáveis, tem acertos e tem erros. Agora, outra coisa é a postura.

Qual foi a postura de Jesus Cristo? Jesus não era teólogo. Qual foi a postura

dele, não é? Qual foi a postura dos primeiros evangelizadores? Dos apóstolos?

Dos grandes evangelizadores? Então o Zé Maria Pires não é teólogo, Valdir

não é teólogo, Helder não é teólogo, entendeu? E são os homens que fizeram

a igreja naquela época. Então eu acho que nunca, nunca a cúria romana

conseguir perceber essa distinção. Então, debitavam possíveis erros ou

discordâncias deles, porque tem muita coisa que você discorda que você não

pode dizer que é erro. Eu não penso assim. E debitavam como se fosse a

postura da igreja do Brasil, não é? A gente defendeu esses teólogos quando

eles foram atacados, defendeu. Sim, sem dúvida. Porque a gente achava que a

igreja deveria respeitar mais, acolher, que ela iria se enriquecer. A igreja, digo,

a hierarquia. Eu digo e eu distingo muito a igreja dos eclesiásticos. Os

eclesiásticos têm os seus defeitos, as suas qualidade, seus defeitos como

qualquer classe tem. E quanto mais classe eles forem pra se defenderem, mais

defeitos têm. Você vê as classes que são mais unidas pra se defender, são as

que têm mais defeito. Veja os médicos, os advogados, são os mais safados.

Mas então, quanto mais você é povo junto com o povo, quanto mais você ta

imbuído daquela perspectiva: ―Eu pertenço ao povo de Deus, tenho aí uma

missão. Mas essa missão aí é menor que a minha de povo de Deus‖. Que não

é o sentido sociológico, embora, na verdade, quem melhor guarda essa postura

é, sociologicamente, o povo. As elites não guardam. Guardam com alguma

dificuldade. Nós estamos vivendo aqui a campanha da fraternidade. Eu nunca

me esqueço, mas o nome dele que não me vem, até to vendo aqui na minha

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frente, me encontrei com ele esses anos, quando ele dizia assim que ele

sempre ficava impressionado que Jesus, falava muito do Reino, o Reino era o

ideal de Jesus, o Reino de Deus. E pra colocar como modelo do anti-Reino,

Jesus podia ter escolhido tanta coisa, tanto pecado, esses inclusive que dão

manchete, pedofilia. Não, ele foi escolher o dinheiro, apego ao dinheiro. ―Vocês

não podem servir a Deus e ao dinheiro‖, que coisa, né? Um leigo, professor da

USP, não era nem um padre, um teólogo, né? Então, porque eu entrei por esse

caminho? Sei lá, eu quero dizer, a distinção entre a postura de quem percebe

que a mensagem de Deus é de libertação e que o povo que mais necessita

disso é o povo mais pobre, porque não tem experiência nem de uma libertação

humana, nem de ser livre pra comprar alguma coisa. Então, a igreja e, aliás, é

a mensagem de Medelin, do Vaticano II, a opção pelos pobres. Daí começa

aquelas coisas, mas então vocês não trabalham com rico? Não se trata disso,

opção pelos pobres não é trabalhar só com pobre, meu Deus do céu, é

conviver um pouco com os pobres pra aprender a maneira deles verem o

mundo, a maneira deles olharem pra Deus. Mas é sempre difícil porque a

igreja, os eclesiásticos sempre se colocaram aqui e o povo ali. Então vamos

trabalhar com todo mundo, teoricamente é com todo mundo, na prática não é,

você sabe, né?Na prática, quando a turma dizia: ―Mas eu acho que vocês

exageram‖. Exageramos? Exageramos nós esses anos todos de ficar só com a

classe média, né, que consola muito mais a gente. Eu não sou de classe média

culturalmente, minha mãe era professora do curso primário, era viúva, só que

naquela época, uma professora do curso primário educava quatro filhos e todo

ano nós íamos passar dez dias na praia do Rosário em Santos, tá certo?

Coloque isso pra uma professora do primário hoje, do primeiro grau hoje ou do

segundo, não dá. E a pessoa era honrada na cidade. Todo mundo conhecia,

né? Então, é evidente que a gente, sei lá,trabalhava mais, os pobres surgiam

mais dessa classe ou desse estamento social. Mas, é assim.

Por causa dos teólogos da libertação sofremos pressões. Eles queriam

que a gente condenasse esse pessoal todo, né? Como eles condenaram. Me

lembro de uma vez duma reunião do CELAM, Conselho Episcopal Latino

Americano, eles estavam falando: ―El hermano del Leonardo, este...‖ o que eles

diziam? Ai meu Deus do céu, os nomes agora não me vem, sabe? Imagina,

conhecido nosso, Frei Beto. ―Frei Beto porque és hermano de Leonardo porque

não sei que‖ e eu tava passando aí. Eles me perguntaram: ―Dom Celso, non es

que Frei Beto es hermano de...‖ ―Não, não, Frei Beto não é irmão de Padre

Leonardo, o irmão do Padre é o Clodovis. ―Mas este Frei Beto es...‖. ―Não, Não,

acho que o Frei Beto fez uma opção de vida, ele é um religioso mas ele não

quer ser padre e eu acho uma coisa muito acertada, acho que religioso é uma

coisa e padre é outra, né? E justamente porque todos os religiosos acabam

sendo padre, é que a vocação do religioso se esvaiu. São Francisco nunca quis

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ser padre, São Francisco era religioso, né? Era consagrado a Deus. Então

―Pera ai. Não. Acho que os senhores estão enganados, o Frei Beto num é isso

não. O senhor pode discordar alguma coisa dele, mas dizer que ele é um... que

ta contra a igreja, o senhor não pode dizer não, é uma pessoa que eu admiro, é

uma pessoa dedicada a defender as classes mais pobres‖. ―Mas este

Leonardo...‖. ―Leonardo também, Leonardo é um místico‖. Ele não tinha saído

ainda, não tinha deixado o ministério, aí ele virou, esse bispo, tava uma roda de

bispos. Ele virou e falou assim ―Bueno, já que usted [...] los teólogos del

América del sul ao céu, no hay mas nada que decir‖. Falei: ―Não, o senhor ta

enganado, eu não [...] ao céu nenhum. Lo que isso es [...] del inferno [...].‖ Ah,

ficaram bravos, mas aí isso quer dizer um pouco a prevenção , também por

outro lado, naquela época, como a teologia da libertação tava crescendo, esses

nossos irmãos não faziam questão nenhuma de adoçar um pouco a pílula. E aí

aguçava mais ainda, né, faziam mais ainda. Mas olha que coisa engraçada, há

quatro anos atrás, é quatro anos, três anos atrás, eu era vice-presidente da

CNBB, portanto olha, o tempo já passou muito disso, e nós sempre... A

presidência da CNBB é interessante, ela não tem a figura de vice-presidente

como na política, o vice-presidente é eleito por dois terços, pode ser até de

uma tendência contrária ao presidente. Ele é eleito também e sempre que a

CNBB se reúne, a presidência deve estar completa, vice e o secretário geral,

pra você ver, os três assinam sempre, a não ser um caso assim

excepcionalíssimo, mas se um deles, por exemplo, não pode estar, sem o

presidente, o vice assume, se é o vice, ele deve escolher o membro da

pastoral mais antigo como bispo, automaticamente faz o papel de vice naquele

momento, sempre a presidência quem escolhe, entendeu? Então, nós íamos

sempre a Roma, conversar com o Papa e prestar uma declaração para as

congregações romanas, quando fomos a congregação da doutrina da fé, que

foi o Leonardo, curiosamente é um detalhe que as pessoas não se atentam a

isso, Leonardo nunca foi condenado por causa da teologia da libertação,

condenado por causa de outro... Condenado? Colocado, mas no fundo é

condenado. Mas aí queriam saber do Leonardo, porque que o Leonardo não...

Ah, mas o senhor vai ressuscitar isso de novo? Leonardo ta em paz lá na

opção que ele fez. Não, mas a conferência dos bispos? Não, eu acho que o

senhor... Falei eu como vice- presidente, o presidente falou, eu falei: ―ó eu acho

que é uma loucura, acho que não é o caso da CNBB fazer isso, daí o

presidente também, a gente acha que só vai ressuscitar de novo essa coisa, o

mal estar contra a Santa Sé de ter condenado o Leonardo, porque queria saber

se ele tinha pedido dispensa. Eu falei: ―Ele é religioso, o superior dele que vai

saber, faz tanto tempo, deve ta casado, deve ter filho, não sei, nunca mais

encontrei com ele. Embora na véspera dele sair ainda, dele publicar e eu

telefonei pra ele: ―Leonardo, espera um pouco, você não é mais dono de si,

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você já tem tanta gente ao seu lado te defendendo, isso aí vai ser uma água

fria em toda...‖ Ele chorou no telefone até, eu chorava de cá e ele chorava de lá

, mas é assim, é a vida né? Mas até hoje ele me manda os livros dele. Sempre

que ele escreve um livro, ele me manda. Então foi assim, quer dizer, havia isso

e a gente notava também certos exageros e falava. Isso eu fazia, o que a gente

não ta de acordo , antes fala. Por exemplo, um deles foi visitar a Rússia, e o

Leonardo voltou dizendo que a sociedade soviética era moralmente,

eticamente pura. Ah, mas que isso? Não, porque não se vê uma prostituta,

primeiro não se vê prostituta só nos lugares muito sem vergonha é que se vê?

Segundo, quer dizer, é só isso que volta? E a falta de liberdade e a

perseguição? Quer dizer, Stalin foi um dos maiores crápulas. Só comparável a

Hitler ou outro assim, mas como é que se fala uma coisa dessa? Quer dizer, e

ele não tinha saído ainda, não tinha deixado , então ele ainda era um teólogo

valorizado pela igreja . Mas é a vida humana é assim, entendeu? A vida

humana é assim, tem coisa de lado a lado, mas eu sempre achei que foi uma

pessoa admirável, é até hoje tem alguns que continuam dizendo que são

teólogos da libertação e fazem muito bem, o Libânio faz muito bem, a Maria

Clara, minha amiga aquela mulher, faz muito bem e outros, né? É verdade,

então agora a coisa ta mais apagada, mais tranqüila de um lado e apagada do

outro. Mas acho que a história é um pouco assim

As igrejas próximas a Heliópolis territorialmente, se sabe que as

paróquias são divididas por território, né, é um ponto de referência, pertencia a

igreja de São João Clímaco e aqui pertencia a igreja de Santa Edwiges, que

era uma igrejinha pequenininha no começo da estrada das lágrimas é uma

capela transformada em igreja e era um padre assim, eram padres italianos,

religiosos, mas muito tranquilinhos, muito parados, nunca perceberam o que

tava acontecendo. Também depois eles morreram, foram substituídos, depois

foram chegando padres bons ali e ao mesmo tempo, como a diocese, falava

muito disso e eu falava e insistia, outras congregações religiosas foram...

Porque nós não tínhamos padre diocesano, foram assumindo um trabalho ali e

acabaram fundando uma pequena comunidade católica, uma igreja. Foi aí que

surgiu, não sei que pé que ta isso agora, Nossa Senhora Aparecida lá em cima

e aquela outra que fui até inaugurar, que era maior ali, mais embaixo, será que

era Cristo Operário, não? Cristo Operário é aqui da Vergueiro, não me lembro

agora, viu, mas tinham vários grupos assim, que tinham sua igreja pequena ou

maiorzinha , agora tão dizendo que ta construindo, que vão construir uma igreja

maior, não sei, de Santa Paulina que viveu nessa região aqui. Eu não lembro o

nome dessa igreja que era a mais ajeitada, tinha até um segundo andar que

servia de salão

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Esses padres ficavam, pastoralmente, sob minha orientação. Agora, a

gente, eu nunca fui de ficar assim, em cima. Porque se fosse olhar assim, tudo

certinho, eles faziam algumas coisas além, entendeu? Mas como os outros

fazem aquém, contra balança, né? Como eu dizia: ―Fulano é muito exagerado

no amor dele pelos pobres‖, você fica procurando aqueles que são exagerados

no amor pelos ricos e tá tudo certo. Então tinha vários núcleos assim, agora eu

não sei qual é a situação lá, e é um pouco delicada porque eu sei que essa

paróquia que criaram lá, o pessoal mais antigo foi meio contra, eu ouvi dizer,

né? Então pra mim fica um pouco complicado, como ainda ta muito recente, eu

sai daqui há dez anos, um dia eu vou chegar lá. Tem também umas irmãs, que

tinham uma casa lá, mas até, as irmãzinhas lá da Imaculada tinham, lembra da

irmã Cidinha? (pergunta ao Gil que gravava a entrevista) A baixinha, né? Disse

que não tinha medo de... Depois teve uma época que começou a ser invadido

por criminosos mesmo, né? No começo essa favela era tranqüila era gente

que queria morar mesmo, queria um lugar pra morar, né. Diziam até que

tinham vindo do Rio, esses vendedores de droga, passadores de droga, sei lá.

Eu sei que as irmãs foram morar lá, o pessoal não queria, aí um deles chegou

pra ela e falou: ―Olha, com irmã a gente não mexe não, pode ficar tranqüila aí‖.

Tem essas coisas, essas história aí. Com o Valdir lá, padre e bispo nós não

matamos (lembrando do Dom Valdir, bispo de Volta Redonda)

A gente insistia muito nisso, a igreja tem que, eu até dizia assim que

quem mora em favela e se diz católico é como alguém que se diz brasileiro,

mas não tem os direitos que brasileiro tem, entendeu? Você mora numa favela,

numa periferia, se você fica esperando quem vem à igreja, eles não virão

nunca, a igreja tem que ir lá, né? A igreja tem que ir. Então, a gente insistia

muito e nesse ponto era difícil porque os padres que estavam ali no começo

eram padres antigos, que não tinham essa visão. Tinham a visão da

paroquinha, pequena, rezar, né? Mesmo o padre de São João Clímaco, que

era uma pessoa interessante, o padre Beno. Você chegou a conhecer o Beno?

Que interessante. Dava um trabalho pra gente porque de vez em quando ele

fazia umas coisas lá que eu dizia: ―Beno, não pode isso, Beno‖, num fazia

assim... Mas era umas loucuras dele lá, né? A liturgia. Ele ia receitar o povo, a

gente ficava com pena porque realmente que remédio o povo recebe? Os

médicos , a psiquiatria dão? O mesmo remédio que davam cem anos atrás,

cem eu não digo, mas cinqüenta anos atrás e que o Beno receitava sem cobrar

nada. Mas aí os médicos começaram a reclamar, quiseram falar comigo. Eu

falava: ―Beno, não faça isso, porque eles vão pôr você contra o judiciário e

você vai ser condenado‖. Dei conselho, mas não adiantou, e depois assim:

―Olha, ele é médico, conversa com fulano, ele toma uns remédio aí mas eu não

to receitando, entendeu? Não faça nada por escrito porque não pode‖. Eu dizia.

Olha, agora eu sei que o povo não tem dinheiro pra pagar esses psiquiatras,

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mas essa vez ele até concordou: ―Ah ta, brigado, eu prometo pro senhor .Não,

não, eu não posso, ta certo, ta certo.‖ Mas outras vezes ele discutia: ―Não, por

quê?‖ Era gozado. Mas as discussões com o Beno era por ele ser tradicional

demais, entendeu? Mas com ele se podia discutir, depois ele foi se abrindo

também. Também fez lá um pequeno grupinho lá na favela perto de São João

Clímaco, mas tudo isso passou, não tem mais nenhum deles aí, nenhum deles

mais ta aí.

Aqui em São Paulo a gente era favorável e apoiava isso daqui. A

pressão era em relação com a igreja de São Paulo. Não era sobre favela, era

sobre a igreja de São Paulo. Então às vezes pegava as coisas mais sensíveis

assim, por exemplo, formações de padre, futuros padres, se encrencavam. O

curso que dá ali na faculdade, mas a gente foi, Paulo nisso teve muita

coragem. Como nenhum de nós era carreirista, nenhum de nós queria subir na

vida eclesiástica, a gente procurava corrigir o que tava errado, mas continuava

tocando. A gente achava que tava certo, era esse o caminho, era um

pouquinho, a arquidiocese de São Paulo sofreu um pouquinho isso mais

ultimamente, no começo não, mais ultimamente. Nos últimos anos nossos aí e

de Dom Paulo.

A ditadura. Isso foi terrível. Era sempre suspeito, né? Sempre suspeito.

Me lembro de uma vez, houve até padres condenados, expulsos do Brasil,

padres italianos. E eu era secretário-geral da CNBB. Eu acompanhava muito

isso porque eu via a coisa dos dois lados, né? A CNBB era pressionada

também e a igreja de São Paulo, então eu não tinha sossego, quando eu ia pra

lá, era lá, quando ia pra cá, era aqui. Mas acho que a gente fez o que podia

fazer e a gente é feliz de pensar que ajudou as pessoas, defendeu muita gente,

muita gente. Muita coisa não aconteceu aqui em São Paulo e no Brasil por

causa da CNBB e por causa de Dom Paulo e da nossa postura. Mas não

conseguimos livrar todos. Quando eu fui nomeado bispo, foi a morte do Wlad

(se referindo à Waldimir Arzog, morto em 1975) né? Até eu falei: ―Dom Paulo,

eu vou à catedral também‖, ele falou: ―Não, espera, você ainda ta novo, não tá

muito visado aqui em São Paulo, espera, espera, vão ter outras oportunidades

que eu vou precisar de você.‖. E eu não fui à cerimônia que fizeram, mas eu

lembro depois que Manuel viu. Mas então a gente conseguiu alguns. A gente

conseguiu outros. Mas nunca teria conseguido se não fosse Dom Paulo. Dom

Paulo era de uma clareza, uma... E também tinha um grupo de leigos, a

Comissão Justiça e Paz, que era muito atuante, muito... É o Fabio Comparati,

que é o aluno lá do anti-reino, não podeis servir a Deus e ao dinheiro. Mal

imaginava eu que isso ia ser nome da campanha da fraternidade, né? O Fabio

Comparati que era da Comissão Justiça e Paz. Lá em Brasília, a mesma coisa,

lá era Dom Aloísio, Dom Ivo e eu comecei a fazer muito, logo em seguida eu fui

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nomeado bispo e fui eleito secretário-geral e o Dom Luciano, o Dom Angélico

daqui de São Paulo. Então nós éramos uma turminha meio maldita pelos

santos, né? E bendita por outros que sofriam. Mas foi um período de vida muito

bacana. Os bispos confiavam muito na gente, as assembléias da CNBB. Então

foi assim que a gente ficou até o fim, olha aí, eu passei minha vida toda aqui

em São Paulo e depois em Catanduva, quando eu fui pra Catanduva, eu falei:

―Bom, agora acabou.‖. Acabou nada, já era o vice-presidente. E agora ainda

tem um ofício na CNBB, eu to aposentado e ainda ficou um rabinho lá de

acompanhar a comissão dos leigos. Então assim eu vou umas três, quatro

vezes por ano eu vou a Brasília. Ou outros lugares, se eu não vou a Brasília, é

Curitiba, pra isso. Mas realmente quando perguntam pra mim, da minha vida de

bispo, o que eu mais lembro, o que mais me marcou foi esse esforço por uma

igreja assim, junto do povo, evangelizando os pobres e a partir dos pobres. E

aqui em São Paulo era muito isso, né? A Pastoral das favelas, a Pastoral do

homem de rua, eu nem sei agora como é que estão essas coisas, com o tempo

eu quero ir entrando naturalmente, conhecendo, vendo como é que estão .Por

que essas pastorais foram criadas progressivamente , a Pastoral do homem de

rua, que havia uma coisa pequenininha, né? O padre Júlio fazia desde o

começo, aí Dom Paulo ganhou um prêmio lá no Japão, um prêmio valioso em

dinheiro e ele falou: ―Bom, isso aqui nós vamos construir um lugar para a

Pastoral dos homens de rua‖, e aplicou todo o dinheiro numa casa de homens

de rua, entendeu? Então foi assim. Eu não sei agora como é que tá, mas a

gente até chamava a Catedral do povo de rua, ali perto do metrô Sé, do metrô

Sé não, do metrô Luz, uma região meio decadente que tem ali mas aquilo um

dia vai ser... Porque tá no centro da cidade. E a Cúria tinha um terreno ali, a

arquidiocese, dedicamos a isso. Mas era essa pastoral que eu capacitei. Tinha

a Pastoral do menor também, que entrou depois aqui, né? Sobre tudo animada

por Dom Luciano. Então, essas pastorais iam se localizando, a Pastoral da

Moradia, mais do que da favela, que foi lá no Parque Bristo, João Julio e outros

padres no tempo da Erundina. Ali a prefeitura já ajudava. Uma vez, houve uma

invasão lá do povo que saiu lá de um local perigoso, veio aqui pra perto da,

como é que chama ali, meu Deus do céu? Depois da Vila das Mercês, Vila das

Mercês, como diz o povo. Vila das Mercês, aquela primeira que tinha uma

paróquia ali. E então, quando o povo começou a chegar com o caminhão, com

as coisas, né? Telefonaram pra polícia e tal, daí eu fui lá também, né? Ah,

não, isso foi lá no Parque Bristo, eles entraram numa praça lá. E o tenente ou

sargento da polícia militar que mandava derrubar o que eles já tinham

construído tava completamente bêbado, entendeu? Chamava-se o sargento

Maluf e a turma dizia: ―Nós vamos denunciar por que...‖. ―Ele vai ficar quieto,

sorte nossa que ele tá bêbado, ele não tá entendendo o que tá acontecendo

aqui‖, aí eu disse: ―Olha só seu sargento, a constituição diz que não pode

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derrubar quando a coisa já tá em pé, então o senhor não pode derrubar isso

aqui‖ e falava pro povão ―Vão construindo‖ e eles querendo denunciar o

sargento e eu ―Deixa pra lá, sorte nossa que ele ta bêbado‖. Então tem essas

coisas curiosas assim. E ali também foi a mesma coisa

A pastoral da favela... Quer dizer, a muito de comum, mas tem um

pontozinho que na Pastoral da moradia era mais visado, era construir novas

moradias. Era lutar por isso, não era só defender e fazer... Mas construir

realmente, como aconteceu lá, no Parque Bristo, né? O governo da prefeitura

com o auxílio também da Alemanha, construiu novas moradias, mas realmente

era o povo que já vivia em favela. Isso não tenha dúvida não

Uma ou outra vez a gente fazia isso, embora é arriscado, né?De vez em

quando a gente empregava gente do movimento de moradia como funcionários

da igreja. Mas é arriscado porque a administração diocesana diz: ―Mas como é

que vocês vão agora? O dia que precisar pagar?‖ e eu dizia: ―Deixa, deixa,

vamos aí‖. Como antes dizia: ―Quem que vê claro? Num terreno minado, quem

que vê claro?‖, ou você arrisca alguma coisa ou você não faz nada. A mesma

coisa construir esses centros comunitários, a Cúria exigia. A administração da

Cúria, né? Que fosse terreno legalizado, mas num existe terreno legalizado lá

ou a gente toma posse ou invade como os favelados invadiram, nós invadimos

também e constrói um centro comunitário, o que vamos fazer, ué? Se

vendesse, se a gente soubesse quem é o dono, nós íamos atrás e comprava,

até oferecia alguma coisa. Mas então era sempre isso que... Até onde você

pode ser não coisa imoral, mas coisa ilegal, até onde você pode ser, praticar

algum ato ilegal, volto a dizer, não ato imoral. Numa situação que é

completamente imoral e ilegal, né? Não é humano, a favela. Agora, no mundo

em que o pessoal, porque naquela época, antes mesmo das favelas

estourarem aqui em São Paulo ou quando começaram as primeiras pra cá e

pra lá. Falava-se de favela, como você fala de... Parecia que a favela fazia

parte da cidade, como os prédios fazem parte da cidade. Cidade boa, grande,

tem favela, entendeu? Cidadezinha pequenininha é que não tem, tem favela

como tem rua de prostituição e que em cidade pequena não tem. Quer dizer,

você passa do lado de uma favela e você acha que é normal, quando muito

você tem pena: ―Puxa vida, né?‖. Agora quem realmente se sente responsável

por aquilo, ou pensa: ―Eu também tenho responsabilidade, não só o governo‖?

É muita pouca gente, muita pouca gente. E a gente também tinha muito

cuidado desses favelados da Pastoral da Moradia, de não tirar essa

consciência deles de assumir a responsabilidade social para com os irmãos, né

? Quando cheguei em Catanduva, também tem uma favelinha no centro da

cidade, um lugar ao lado do Rio São Domingos que é um rio pequeno, mas

que enche, então era uma desgraça aquilo ali, e aí não pode, que isso ?

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Reunimos lá as paróquias e conseguimos fazer um movimento grande, foi a

única vez que eu pedi dinheiro ao governo. Eu fui ao Frei Beto, no começo do

governo Lula, quando o Beto era lá auxiliar, depois ele se afastou, né? Falei:

―Beto, eu nunca pedi nada e não vou pedir, muito menos dinheiro, mas isso

aqui foi um contrato assinado‖, o Governo Federal ficava responsável pela

infra-estrutura, a prefeitura, o Governo Estadual pela aquela coisa, o Pro -

Casa, que é um programazinho e a prefeitura em outros longos aspectos, lá.

Agora nós queremos. Vocês não podem falhar. Vocês tão começando. Foi no

primeiro ano do governo Lula, vocês não podem falhar, quer dizer, o povo tá

sabendo disso. E aí, nós como igreja, apoiávamos muito a reunião que eles

faziam. E a construção, cada um construindo, o povo construindo as casas,

entendeu? Mas era construir casa mesmo, mudamos de lugar. E então era o

nosso papel, sobretudo, eu pedi pras paróquias que elas assumissem a comida

dos pedreiros que estavam trabalhando voluntariamente lá, né? Comida, água,

algum socorro médico, então fizemos isso, todo fim de semana o povo baixava

lá pra construir e as paróquias da cidade, duas de cada vez, mandavam a

comida, as quentinhas e foi interessante, foi bonito aquilo e depois quando se

inaugurou foi bonito porque era uma coisa conjunta, a prefeitura do PT, do

Governo do Estado também, que era o Alckmin na época e do governo federal,

né, e da igreja. Então reuniu tudo ali, né? Foi uma coisa bonita, mas assim, o

pessoal: ―Ah, é o PT, vocês tão apoiando o PT‖, sabe? Então, essa

mentalidade daquele povo, sabe quem ganhou pra senador na última eleição?

Quem foi mais votado lá? Na cidade de Catanduva, cidade de 120 mil

habitantes. O Quércia. O Quércia! Pra você ver a mentalidade daquele povo.

Por quê? Quando o Quércia era governador de São Paulo, ele minou o Estado

inteiro, quando ele foi vice-governador e depois de governador, ele continuou,

foi senador, né? Um amigo meu que era, na época, do PMDB, não tinha ainda

o PSDB, que era secretário... Lembro que. Você ta em São Paulo desde

quando? Então você não foi dessa época, mas o PMDB só conseguiu entrar no

governo de São Paulo, era agarrado pelo Maluf, pela turma do Ademar, quando

o... Mas ainda não existia o PSDB. Eu sei que os dois senadores de São Paulo,

não, Quércia não era senador, o Montoro que era senador, se candidatou a

governador, e o Quércia tava bandeando de apoiar o Maluf ou num sei quem,

só conseguiu que o Quércia entrasse na coisa, porque ele era do PMDB na

época, se o Montoro aceitasse como vice-governador. Então, pro bem maior

aceitaram o Quércia. Esse tempo todo que ele ficou vice-governador, ele ficou

debitando pra si tudo que se fazia no interior do estado. Então quando ele, na

reunião, da executiva ele percebia que tinha sido dado um dinheiro, exemplo,

pra construir uma estrada em Catanduva ele telefonava pro fulano de

Catanduva, lá o cupicha dele. ―Diga pro povo aí que eu consegui aquele

dinheiro‖. Então, esse interior, o Quércia era... Sobre toda essa região norte de

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São Paulo, Rio Preto, ele asfaltou aquela estrada de São Carlos lá até Rio

Preto. Então era tudo quercista e é até hoje, se o Quércia se candidatar a

senador de novo, eles vão votar nele, num tenha dúvida não. Impressionante,

né? E era assim

Em Catanduva era em proporção menor, né? Lá é tudo menorzinho,

pequeno. Lá não tinha um grupo do povo que tivesse mentalidade, então foi

preciso até criar um grupo desse. Eu me lembro que o chefe do grupo

chamava-se Coalhada, o líder, porque ele conhecia todo mundo, entendeu? E

quando eu fui visitar a favela pela primeira vez, combinaram com ele lá,

entendeu? Com o Coalhada e o Coalhada dizia assim: ―Essa casa o senhor

pode entrar, aquela ali o senhor não pode porque aquela ali é de drogueiro,

passador de droga, é perigoso‖, mas foi gozado. Mas havia assim, uma ou

outra pessoa que já tinha tentado trabalho, mas um trabalho que não envolvia a

diocese. Era só paróquia e não envolvia o povo também, me lembro até o

padre dizendo: ―Sabe, a gente até desanimou porque a gente começou a

construir aí com o pessoal da paróquia aí aos domingos mais umas casas ali

no terreno e o pessoal da favela ficava sentado no muro dando risada de nós‖,

lá, construindo a casa pra eles. Então o pessoal desanimou, a juventude, um

grupo de jovens, né? Mas então havia assim, uma ou outra coisa, né? Uma

certa consciência, mas também depois a prefeitura não pode continuar

apoiando, mudou, o PSDB ganhou, saiu todo o pessoal que era mais voltado

pras necessidades do povo, então aquilo virou assim, um bairro meio que...

Você falava que morava no El Dorado, Você não conseguia emprego, foi pena.

Mas enfim, pelo menos tem onde morar, sabe? Coisa que ali embaixo não

tinha. Impressionante! Cheio d‘água ali, o rio transbordava, mas aquilo, o pouco

que eu fiz que eu pude fazer, de lá dessa questão das favelas, eu aprendi aqui

em São Paulo, realmente eu levei daqui.

A gente era acusado, que em vez de formar padre a gente tava

preocupado em formar líderes políticos, uma besteira. Agora, tem a turma

daqui que cochichava lá na orelha dos Cardeais de Roma e até do Papa. Foi

muito difícil, mas valeu a pena, valeu a pena sim, agora esse povo que ficou

assim igual a gente teve mais proximidade tipo Genésia, esses a gente sabe

que não vão esquecer nunca, não vão esquecer não.

Pra não falar coisa assim, muito forte, em geral, eu comparo a igreja de ontem

e de hoje à onda do mar, sabe? A de ontem era onda que vinha, né, a de hoje

é onda que recua. Uma vez na CNBB, lá uns bispos, eu falei: ―Eu sou

plenamente contrário a isso, agora, eu queria que vocês entendessem uma

coisa, eu me formei e gastei minha vida querendo que a igreja avançasse,

pisando no acelerador, o meu pé não consegue mais pisar no breque o tempo

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inteiro‖, de vez em quando umas brecadinhas a gente dá. Mas guiar com o pé

no breque não dá. Aí eu falei. É isso, eu acho que a igreja já teve um momento

mais avançado de arriscar mais, de ir além daquilo,né, que até hoje não foi

feito e atualmente ela é mais de conservar o que já foi feito. Por outro lado

também, eu vejo a igreja naquela época, e um pouquinho do sofrimento da

gente até hoje, muito mais voltada para o reino de Deus, vamos ajudar a

construir o Reino de Deus. Hoje a instituição é mais voltada para, vamos deixar

bonita a instituição, vamos deixar limpa e bem organizada, esse é o valor

também. Mas, acho que Jesus pensou muito mais no Reino... Jesus pensou na

igreja instituição como ferramenta do Reino, ela não tem sentido em si mesma,

ela vive para o Reino e pra Deus. Eu acho que a gente com muita freqüência

tem essa tentação de se voltar pra si e depois do Concílio do Vaticano II, a

gente teve essa possibilidade de realmente se lançar. Agora o Concílio vai

ficando pra trás, a meninada de hoje já nem sabe mais o que foi isso. Eu digo

que eles olham para o Concílio Vaticano II, como nós no meu tempo de

seminário, olhava pro Conselho de Trento, nossa, mas Trento. Depois a gente

vai descobrindo que Trento tinha umas coisas boas também, mas, agora eu

acho que a igreja, a gente não perde a esperança, a gente aprendeu muito

com Dom Paulo, o lema dele de esperança em esperança. E eu converso

muito com Dom Paulo sobre esperança, me lembro que um tempo, até uns

textos que a gente tinha. Aliás, a primeira vez que eu tive um contato com Dom

Paulo foi relacionado com a esperança, interessante, eu era padre e fiz parte

de um grupo e participei da assembléia da CNBB dos bispos em Brasília, 1970,

agora esse ano vai ser em Brasília de novo, 30 anos depois. Mas, Dom Paulo

era o secretário que tava preparando o texto do relatório dos grupos, ele

pertencia ao nosso grupo. Eu era padre e eu falei muito disso desse texto de

São Paulo, que o mundo geme esperando a libertação dos filhos de Deus, e eu

achava que a esperança é que era o grande motor da igreja e depois ele deu

uma voltinha e disse: ―Escreve pra mim o que você falou aí, pra eu colocar no

relatório‖, foi aí que eu conheci Dom Paulo, assim que tive o primeiro contato

com Dom Paulo. É um homem admirável e os outros também, né? Dom

Luciano, Dom Angélico, que coisa meu Deus, Décio, cada um do seu jeito, mas

era um grupo admirável.

O relacionamento da igreja católica com a igreja evangélica na época

dependia de cada lugar. Em Heliópolis eu não me lembro da gente ter feito

alguma coisa explícita, eu me lembro que a gente insistia muito nisso. ―Olha,

nós temos aqui um problema humano, muito grande, vamos nos unir todos‖, a

gente insistia muito nisso. Mas a gente não trazia à baila a questão religiosa,

que inclusive, por medo de dividir. E a gente sabia que, embora naquela época,

não havia essa enxurrada de igrejinhas aí. Mas então, é possível que houvesse

certamente, uma ou outra pessoa assim, né?

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Lá não tinha igrejas históricas, da época que eu soubesse, não. Não

tinha não, não sei... Atualmente deve ter. Nas paróquias que pertencia a

Heliópolis já havia, São João Clímaco, era um pedaço da cidade já povoado,

né? Tinha São João Clímaco e Santa Edwiges já havia sim, talvez ali naquelas

primeiras ruas perto da igreja de Santa Edwiges, já havia alguma coisa. Me

lembro que havia sim, porque uma vez a, não, mais aí já era essa época da

invasão dos pentecostais, nós estávamos fazendo a procissão de ramos

justamente daquela igreja cujo padroeiro eu não lembro. Tem São José lá?

Naquela capela e até a igreja de Santa Edwiges. Procissão de ramos e nós

passamos em frente a uma... Já era igreja pentecostal e eles estavam

cantando lá dentro e eu falei pro povo: ―Não, não, não canta, nós estamos

passando aqui, respeita‖, e depois eles pararam, também quando viram aquele

silêncio e os responsáveis... Eu fui até a porta e falei pros responsáveis: ―Olha,

a gente deseja uma boa páscoa pra vocês, que Deus abençoe muito‖ e fui

embora, mas nunca mais tive contato assim com eles. Não me lembro de ser

assim tão... Hoje em dia, nossa senhora, deve tá cheio lá dessas igrejas, né?

Tá lotado, no centro da cidade tá assim. É triste porque no fundo, no fundo,

eles não querem nada de ecumenismo, eles não querem não. Muitas delas, é

questão de dinheiro mesmo

Nossa visão era ecumênica... Não, a gente nunca entrou em briga, nem

nada. Mesmo porque nessa visão, que eu chamo de evangelização libertadora,

havia pastores protestantes, teólogos bons, se davam muito bem com os

teólogos católicos, os bispos, já se faziam alguma reunião de bispos com

pastores, depois eu participei, pertenci ao grupo, eu ainda pertenço de bispos

que fazem, que compõem o CONAR, o CONAR é da igreja anglicana, então

são bispos, pastores, padres, leigos, né? O ecumenismo assim, em alta esfera,

ele sempre existiu, desde aquela época do Concílio, foi sendo implantada.

Agora, o duro é que eles num querem, eles não querem não. E depois, tem

cada coisa, meu Deus! Em Catanduva, uma vez a gente foi atrás, pra

conversar: ―Olha, vocês não querem... é semana de oração pela unidade, é só

pra rezar junto‖ e o pastor falou: ―Unidade? Unidade entre os... não, nós não

queremos unidade, porque Jesus falou que um dia vai ser um só rebanho e um

só pastor, nós não queremos que esse dia chegue logo, senão é o fim do

mundo, não queremos que o mundo acabe‖, eu falei: ―Ah meu Deus do céu,

nessa base dessa teologia, o que você pode falar de ecumenismo, né?‖ O

máximo que eu dizia lá em Catanduva era: ―Não vamos atacar ninguém‖, mas

depois também começou umas coisas, apareceu uns lá que se chamavam

padres e padres católicos, então, é fogo, né? Agora, isso aí eu acho mais um

problema cultural, do que um problema religioso, é a rebarba da religião num

problema cultural e a indefinição que a gente vive hoje, que vai ser amanhã?

Então vamos aproveitar o dia de hoje, cada um se defende e se agarra aonde

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pode. Você podendo comprar um violão, uma Bíblia e alugar uma garagem,

você garantiu sua vida e pronto. E você sabe que, uma igreja católica, isenção

de impostos e um monte de coisas. Como o Brasil é um país laico, tem que

tratar todas as igrejas assim, considera isso também como igreja, e o poder

civil não tem o que fazer. Então é mais fácil fundar uma igreja do que uma

quitanda, muito mais fácil. Não tem documentação mínima, tendo um

responsável, onde funciona, pronto, não paga nada, não paga aluguel, não

paga imposto territorial

Essa crítica não procede, viu? Não procede, não. Porque, a igreja

herdou muitas terras, muito, mas muito menos... Eu tinha aí, eu não sei se

tenho ainda ou se eu joguei fora, porque na época nós fizemos um estudo, não

chegava a ser... Como é que é? Entre os grandes possuidores de terra, a igreja

católica não entrava na lista, com todas as terras que tinha. As terras que a

igreja têm, ficamos nós assim, lá em Catanduva quando a diocese foi formada,

não tinha terra nenhuma, nem pra construir a cúria, o seminário. Então,

naquela época antiga, a igreja era muito procurada assim para... Sobretudo por

famílias que deixavam a herança da sua casa por um terreno, e o único meio

de sobrevivência, sobretudo pra manter os seminários, que sempre foram um

problema sério da igreja católica, não é brincadeira você pagar pra 100

rapazes, estudo, comida, casa. Era realmente, digamos nós, tem uma

fazendinha pras verdura, pras outras coisas, criar umas vacas, aqui nós nunca

tivemos isso. Mas então, não procede nesse sentido, seria muito pouco.

Segundo lugar, várias vezes a igreja, onde tinha, ofereceu para isso. Aqui em

São Paulo, quer dizer, nós nunca chamamos uma polícia, porque às vezes a

igreja não sabia o que fazer com esses terrenos, entendeu? Não tinha dinheiro

pra construir nada, mas ficava ali, né? E quando o pessoal invadia como

aconteceu aqui no morro, outra vez, a igreja nunca chamou a polícia. Houve

terras ocupadas, aqui na cidade, coisas pequenas. Mas em vários lugares, a

igreja... Mas agora, acho que ainda hoje, não por causa de resolver o problema

do povo, porque as terra não dá pra isso, embora acho que a igreja não pode

mais aparecer com essa face, entendeu? Essa desconfiança, então não vale à

pena, não vale, entendeu? Mas é história, questão dos templos, você passa em

frente à Catedral da Sé, uma pessoa de má vontade, o que pensa? Pô, se

tem dinheiro pra construir um negócio desse então um apartamentinho de dois

quartos aí, dois quartos hein! Imagina se o povo todo tivesse um apartamento

de dois quarto, dois banheiro, sala e cozinha. Nossa, custa aí duzentos e tanto,

aqui custou cento e tanto, foi antes dessa última subida, imagina o que não

gastaram pra construir uma catedral dessas. Agora, isso aí é coisa... As

grandes catedrais do mundo foram através de séculos. Agora, assim mesmo, é

certo, a igreja não constrói essas grandes igrejas que ela continua construindo

hoje em dia, se ela não vai atrás de certos ricos, a verdade é essa. Do que eu

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conheço e isso não tá certo, não é evangélico, entendeu? Catanduva é a terra

das usinas de cana, tem 12 usinas, houve uma época que Catanduva foi a

terra do café, já foi a terra da laranja, agora é a terra da cana. Quando eu

cheguei lá, os pequenos sitiantes disseram pra mim: ―Olha, antigamente,

quando era o café e a laranja, a gente podia viver da terra, atualmente não. A

gente tem que entregar pros plantador de cana, alugar. Então, a cidade perdeu

completamente a vitalidade, eu nunca procurei uma usina pra pedi dinheiro pra

lá. Quando nós construímos o seminário, eles têm uma associação lá né? o

diretor da associação, que era um católico, católico sincero, antigo, mas

sincero e me conhecia do tempo do seminário de Campinas, ele se abrigou no

seminário no tempo de estudo, porque não tinha dinheiro. Ele me procurou:

―Celso, eu vou conseguir que os donos de usina ajudem o seminário, nós

vamos comprar um carro pro senhor rifar‖, acho que foi dez mil reais um gol em

2000, no ano 2000. Dez mil, dez mil e pouco, que eu não pedi, inclusive, ou se

pedi não fui atrás, mandei uma cartinha [...] se o senhor puder ajudar, né? Mas

nunca fui visitar, não é por aí, não é por aí, eu acho que a igreja não pode...

como lá em Heliópolis, a gente nunca foi atrás do povo, do pessoal pedir

dinheiro pra ajudar, nunca fomos não. Era o dinheirinho do povo, quermesse,

essas coisas né?

O objetivo era mostrar pra eles que o que eles estavam fazendo era lutar

pelos direitos deles. Impressionante como o povo é mal educado, de ouvir

quase uma confissão de uma pessoa: ―Tem uma coisa na minha consciência,

não sei se algum dia eu confessei, um dia eu participei e ajudei a organizar

uma greve‖, eu falei ―Mas isso é mérito diante de Deus, não é pecado‖. ―Num é

pecado?‖. Pra você ver o tipo de pregação, claro que nenhum padre falou que

era pecado, mas o jeito de pôr as coisas. Que coisa? Aquilo na cabeça do

povo, você tá contra, o povo jamais distinguiu o legal do imoral, se é contra

uma lei do governo. Na ditadura, eu disse: ―Mas menina, você ia esperar que

baixasse um decreto falando que é lícito fazer greve?‖, claro que ela vai dizer

que é proibido. Mas pra vê como o povo não tem uma consciência firme dos

seus direitos. Então a gente se preocupava com isso, a dignidade como pessoa

humana, os seus direitos como pessoa humana.

Eu acho que a igreja hoje luta menos, pelo que eu vejo, ela luta menos,

né? Embora a situação hoje tenha mudado muito, né? As condições são

outras, os próprios operários buscam, hoje em dia, muito mais uma

estabilidade onde estão do que no que dá pra melhorar, entendeu? Porque

com essa questão da globalização aí, você, de uma hora pra outra é

dispensado, né, e aí? Agora veja, é interessante, tem certas coisas que estão

na cabeça do povo pobre que custa pra tirar. A história da igreja que tem

muitas terras e não manda invadir, até a história que a igreja manda invadir, a

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igreja não manda invadir. Eu sempre falo: ―É um absurdo ter que invadir terra‖,

mas eu reconheço o direito que eles têm. O direito que eles têm. O ideal pra

nós, o que nós pregamos, é que haja uma repartição, haja uma reforma agrária

que possibilite ter terra. Mas, não fazem, nem o Lula fez , uma reforma agrária

digna desse nome, mas uma vez eu falei pro Lula, das poucas vezes que eu

falei com ele, disse: ―Olha, ou você põe pra caminhar a reforma agrária ou seu

crédito diante do povo vai cair muito‖, foi logo no começo, quando o [...] tava

interessado [...] Sampaio. Então eu falo: ―Olha, eu não posso condenar esse

pessoal que não tem terra pra trabalhar, que morre de fome?‖. A moral mais

antiga dizia: ―Pegar coisa dos outros, pra matar a própria fome não é roubo, é

direito‖. Então, eu não posso condenar. Agora, o ideal não é esse, nós estamos

lutando pra que haja possibilidade de todo mundo ter o seu pedaço de terra.

Fizemos uma, mais de uma campanha da fraternidade por uma reforma

agrária, mais de uma, acho que umas duas ou três. É assim, mas tem certos

estereótipos que não sai da cabeça, né? Não sai. Motivo houve, houve porque

em determinadas épocas as pessoas agiam assim como os próprios ministros

da igreja faziam, como a questão de ter terras, são pequenas fazendas pra

manter o seminário, coisa assim. Mas acho que hoje em dia não pode mais,

entendeu? Não pode, isso cria uma imagem, não compensa, entendeu? Não

compensa

Os cânticos das procissões eram relacionados com a luta. Cantávamos

―O Povo de Deus‖. Esse era o hino nacional, continua sendo até hoje, muito

engraçado, passou muito tempo: ―O povo de Deus no deserto andava, mas a

sua frente, alguém caminhava, também sou teu povo, Senhor e estou nesta

estrada, cada dia mais perto do fim da jornada. Povo de Deus...‖ e ia por aí

afora. Toda a história do povo de Deus e reafirmando, também sou teu povo.

Me lembro uma vez, esses padres mais entusiasmados, um deles era meio

músico de violão, era um nordestino e fizeram uma música pra comunhão e a

música dizia assim: ―Mãe Maria, socorre que a polícia vem baixar o pau.‖ Eu

falei: ―Ah, mas vai pôr isso daí numa letra de música, o que é isso?‖ Eles

disseram: ―Mas é verdade‖. Eu falei: ―É verdade, é verdade que você vai ao

banheiro também, mas você não vai colocar isso numa letra, numa música de

comunhão que você foi fazer cocô no banheiro.‖ Põe isso na cabeça, de joelho

―Ah, o senhor é reacionário‖. Paciência, né? A polícia baixa o pau... (dando

risadas)

A nossa postura era de resistência. Agora, você sabe, que quando

começa a repressão, chega um ponto que você fala, eles estão dispostos

mesmo a matar, aí então a gente pensa: ―Escuta, vamos tentar...‖? Qualquer

exército no mundo faz isso quando vê a disparidade de força, né? Eu mesmo,

se tivesse lá,no conflito de 93, tentaria conversar com os homem da lei, né?

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Diria: ―O gente, vamos tentar, né? vamos dá um pouco de espaço pra depois‖,

agora, simplesmente recuar seria difícil, eles já estavam na terra. Embora, você

sabe, continua acontecendo, não tem, diante de fuzil e bomba, você não tem o

que fazer. Olha aquele massacre de Eldorado, até hoje não foram julgados.

Então é assim.

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Termo de Consentimento Livre e Esclarecido

Eu, ________________________________________________________fui

convidado a colaborar com a pesquisa intitulada: Práticas religiosas para

transformação social: A influência da religião no movimento de moradia

em Heliópolis – 1970 – 1993. A minha colaboração será através de

entrevistas dadas ao pesquisador Marco Davi de Oliveira aluno do curso de

pós-graduação em Ciências da Religião da Universidade Metodista de São

Paulo.

Estou ciente que estas entrevistas serão gravadas, em gravador, sendo depois

transcritas fielmente no corpo da pesquisa. Espero assim que possa contribuir

para uma análise da importância da religião como motivadora na construção de

Heliópolis e no engajamento dos indivíduos que participaram da luta por

moradia que é o objetivo principal desta pesquisa.

A metodologia utilizada pelo pesquisador é a História Oral que consiste nas

entrevistas que serão gravadas eletronicamente. Compreendo que esta

metodologia fará com que eu tenha voz como interlocutor da minha própria

história e que serei respeitado (a) e valorizado (a) por contá-la.

Estou ciente de que esta minha participação é como colaborador (a) para a

pesquisa e que, portanto, não tenho possibilidade de receber nenhum valor por

esta participação. Declaro que não me sinto coagido de forma alguma e que a

qualquer momento tenho liberdade de recusar a continuidade de minha

participação sem ser penalizado e sem sofrer nenhum dano por isso. Logo,

participo voluntariamente desta pesquisa cedendo os meus testemunhos e a

minha imagem sabendo do valor para a comunidade de Heliópolis e para esta

pesquisa.

____________________________ ____________________________

Colaborador Pesquisador

CPF: CPF: