FÉ E CIÊNCIA Pe. Vaz

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ISSN nº 1676-7748 REVISTA MAGIS CADERNOS DE FÉ E CULTURA Número 18 – ano 1995 FÉ E CIÊNCIA: DUAS LINGUAGENS PARA UMA VERDADE

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ISSN nº 1676-7748

REVISTA MAGIS CADERNOS DE FÉ E CULTURA

Número 18 – ano 1995

FÉ E CIÊNCIA: DUAS LINGUAGENS

PARA UMA VERDADE

UNIDADE E DIFERENÇA: LINGUAGEM E VERDADE NA CIÊNCIA E

NA FÉ

Pe. Henrique C. de Lima Vaz, S.J.

1. INTRODUÇÃO

O título previsto para essa palestra: "fé e ciência: duas linguagens, uma verdade",

pode ser explicado corretamente mas pode levar a um entendimento inexato do proble-

ma. Preferimos substituí-lo pelo título acima enunciado. de fato, mais exato seria dizer:

fé e ciência, duas linguagens, duas verdades, pois sendo os conceitos de linguagem e

verdade correlativos, duas linguagens acarretam duas formas de verdade. Por outro lado,

ao falarmos de uma pluralidade de formas da verdade não pretendemos dizer que o con-

ceito de verdade seja um conceito equívoco. Há uma unidade conceptual entre as formas

de verdade. Se não é a unidade de um conceito unívoco, e não sendo a de um termo e-

quívoco, só pode ser a unidade de um conceito análogo. Podemos, pois, adiantar que

todas as nossas reflexões nessa palestra girarão em torno do problema da unidade ana-

lógica do conceito de verdade e da linguagem que lhe corresponde, e em torno da possi-

bilidade da diferenciação desse conceito numa pluralidade de formas ou categorias de

verdade com suas respectivas linguagens, situando nessa perspectiva o problema da

relação entre ciência e a fé em termos de verdade e linguagem.

Nossa palestra constará de uma Introdução, de duas partes e de uma breve Conclu-

são.

Na Introdução exporemos brevemente o problema da unidade e pluralidade da

verdade e da sua linguagem.

Na 1ª parte iremos examinar a questão dos componentes estruturais do conceito de

verdade, com uma breve referência à história desse conceito na tradição filosófico-

teológica ocidental.

Na 2ª parte nos ocupamos com a natureza e estrutura da verdade e linguagem da

ciência e com a natureza e estrutura da verdade e linguagem da fé.

Finalmente, na Conclusão, tentaremos responder à questão da relação, em termos

de verdade e linguagem, entre a fé e a ciência.

Devemos ainda observar que nossa exposição terá um caráter predominantemente

filosófico, o que, provavelmente, irá causar alguma dificuldade a quem está familiariza-

do com esse tipo de discurso. Mas é inevitável esse recurso à filosofia, já que o proble-

ma da verdade, mesmo nas teorias lógicas recentes, altamente formalizados, é, por exce-

lência, um problema filosófico.

Iniciaremos nossa exposição introdutória com uma breve análise dos diversos as-

pectos sob os quais se apresenta o fato fundamental da correlação entre verdade e lin-

guagem, que é o nosso necessário ponto de partida. Trata-se de um fato fundamental e

primeiro, porque não temos outro acesso à verdade senão através da linguagem. Admi-

timos que a verdade possa ser experimentada inefavelmente nos estados mais elevados

da experiência mística, por exemplo, ou da experiência estética. Mas ela não pode ser

comunicada senão através de uma linguagem específica, p. ex. a linguagem dos místi-

cos, na qual o poder expressivo da linguagem é levado ao extremo das suas possibilida-

des significantes. Linguagem e verdade são, pois, correlatos necessários. Essa correla-

ção já está presente desde as primeiras tentativas de reflexão sobre a verdade, nos Sofis-

tas e em Platão.

a) Um primeiro exame nos mostra a correlação linguagem-verdade estabelecendo-

se em tr6es planos:

- plano lógico - A verdade é aqui um predicado do discurso e ela tem sua sede no

juízo que afirma ou nega, ou na proposição afirmativa ou negativa. O plano lógico é,

pois, o lugar original de manifestação da verdade ou ainda a linguagem, ordenada logi-

camente, é o meio translúcido através do qual a verdade transita entre o ser e o sujeito.

A relação do problema da correlação verdade - linguagem com o nascimento da Lógica

e sua primeira codificação por Aristóteles é, de fato, o primeiro capítulo da história des-

se problema na filosofia ocidental.

- plano antropológico - Trata-se aqui do problema da dicção da verdade por um

sujeito, o que é a outra forma original da sua manifestação, pois a verdade, manifestação

do ser no lugar do sujeito, é por esse, por sua vez, manifestada como verdade do logos,

ou do discurso, na dicção com que o sujeito se inter-comunica com outros sujeitos, tor-

nando-se a verdade uma manifestação inter-subjetiva do ser no âmbito do consenso.

Essa dicção da verdade, por sua vez, manifesta-se em várias formas (verdade teórica,

verdade prática, verdade religiosa, verdade científica, etc...)

- plano antológico - A verdade é, ao mesmo tempo, atributo do ser e atributo do

discurso. Ela é dita pelo sujeito, locutor do discurso, normalmente como expressão do

ser. Mas como fazer coincidir a verdade do ser e a verdade da linguagem? Ou ainda: há

uma verdade da linguagem independentemente da verdade do ser? Aqui o plano ontoló-

gico se prolonga na sua dimensão gnoseológica ouepistemológica. Eis um dos proble-

mas mais discutidos no campo da questão que nos ocupa e sobre cuja solução, que aqui

pressupomos, ou seja, a da correspondência entre a linguagem da verdade e o ser, re-

pousam, em suma, as reflexões que iremos propor a propósito da relação entre verdade

da ciência e verdade da fé.

A interrogação fundamental que se nos apresenta é a seguinte: como conciliar a

unidade da verdade (sem a qual a realidade se nos apresentaria em estado caótico) e a

pluralidade das linguagens ou das dicções do ser, imposta pela estrutura plural da nossa

experiência da realidade?

b) Unidade da verdade e pluralidade das linguagens

Para cada um desses termos do problema podemos também distinguir três planos:

- unidade da verdade

- plano lógico - É o plano do uso correto dos critérios ou regras que tornam o dis-

curso verdadeiro do ponto de vista sobretudo da sua coerência (estrutura lógica) e da sua

adequação ao objeto do discurso (estrutura gnoseológica ou epistemológica). É também

o plano no qual se situa a questão clássica da definição da verdade (genitivo objetivo)

com o qual se ocupam as recentes teorias da verdade (ver - plano antropológico - Nele

se situa o problema da intenção da verdade no sujeito e que assegura a sua unidade co-

mo sujeito verdadeiro. É objeto preferencial das fenomenologias da verdade na filosofia

recente. Sem essa intenção desaparecida, evidentemente, o problema da verdade pois

deixaria de ser um problema para-nós. Tal foi, por exemplo, a pretensão da doutrina

sofista do "tudo é verdadeiro" (pant'alethê), examinada por Platão no diálogo Teeteto.

- plano ontológico - Qual a unidade do ser que se manifesta sob diversas formas

no discurso e cuja verdade deve ser objeto da intenção última do sujeito? Essa a questão

fundamental implicada no nosso tema de hoje sobre verdade da fé e verdade da ciência.

A ela iremos responder com a doutrina da analogia da verdade.

- pluralidade das linguagens - A raiz dessa pluralidade é, como dissemos, a es-

trutura plural da nossa experiência, ou seja a diversidade dos caminhos do nosso acesso

ao ser e, por conseguinte, a diversidade das formas com que o ser se manifesta a nós.

Em razão da correlação fundamental linguagem-verdade, a pluralidade das linguagens

acarreta uma pluralidade de formas da verdade, o que é evidente se compararmos, p.

ex., a verdade de um artigo do Símbolo dos Apóstolos e a verdade da solução de uma

equação matemática. A pluralidade das linguagens apresenta-se também sob três aspec-

tos ou em três planos, correspondendo aos planos da unidade da verdade pois, em qual-

quer hipótese, a essa pluralidade subjaz uma unidade fundamental, de natureza analógi-

ca.

- plano lógica - Nele situamos a pluralidade das estruturas sintáticas e semânticas

da linguagem, como também das suas estruturas pragmáticas. O fato dessa pluralidade

explica a existência de diversas lógicas com seus respectivos usos, e assim podemos

falar, p. ex., de uma lógica da fé e de uma lógica da ciência, que não podem ser confun-

didas.

- plano antropológico - Nele tem lugar a pluralidade dos usos da linguagem, sen-

do que o uso está intimamente ligado ao sentido objetivo da linguagem para o sujeito.

Trata-se de uma questão hoje muito discutida, depois do aparecimento dos textos cor-

respondentes à última fase do pensamento de L. Wittgentein.

- plano ontológico - Nele coloca-se o difícil e decisivo problema da manifestação

do ser na pluralidade das linguagens, ou seja da refração do ser na pluralidade das for-

mas da nossa experiência, sua expressão na pluralidade das linguagens e sua referência,

nas doutrinas realistas, a uma unidade transcendental objetiva (ou seja que atinge todas

as formas de manifestação do ser e respectivas linguagens) ou, nas doutrinas idealistas,

a uma unidade transcendental subjetiva, que unifica no próprio sujeito, as diversas for-

mas de manifestação do ser. Reencontramos aqui, em versão realista ou idealista, o pro-

blema central da analogia da verdade.]

- Fenomenologia da verdade

- Digamos ainda uma palavra, ao fim dessa Introdução, sobre a abordagem feno-

menológica do problema da verdade, que ocupa uma parte notável da literatura filosófi-

ca contemporânea (p. ex., K. Jaspers, E. Husserl, M. Heidegger, G. Marcel, H. G. Ga-

damer, P. Ricoeur e outros). A análise fenomenológica tem por objetivo, fundamental-

mente, o evento humano da verdade: sua manifestação na nossa vida, suas exigências,

sua incidência no nosso ser e no nosso pensar e agir. Como exemplo de uma brilhante

análise fenomenológica do fenômeno verdade, indicamos a obra de um dos mais notá-

veis teólogos do nosso tempo, que era também filósofo, Hans Urs von Balthasar. Essa

escolha tem ainda como justificação o fato de que a reflexão sobre a verdade é inserida

por Balthasar no contexto de uma monumental síntese teológica, apresentada numa tri-

logia que compreende 1. A estética teológica (Herrluchkeit); 2. A dramática teológica

(Theodramatik); e, 3. A verdade teológica (Theologik). Essa última parte da trilogia

inicia-se justamente com uma fenomenologia do evento verdade, à qual Balthasar deu o

título "Verdade d mundo" (Wahrheit der Welt, Einsiedeln, Johannes Verlag, 1985; tr. fr.

La Théologique I: Vérrité du monde, Namur, Culture et Vérité, 1994). Publicado origi-

nalmente em 1945 com o simples título Wahrheit, (tr. fr. em 1947 com o título Phéno-

mémologie de la vérité), foi, devidamente revisto e aumentado, inserido como 1º volu-

me da terceira parte da Trilogia teológica. Trata-se de uma obra predominantemente

filosófica mas intrinsecamente ordenada ao discurso teológico, e extraordinariamente

rica em análises e reflexões sobre o evento humano da verdade e sua abertura à Verdade

primordial de Deus. Balthasar divide sua obra em quatro partes, que vamos aqui apenas

enumerar:

1. A verdade como natureza - A estrutura relacional da verdade en-

tre o sujeito e o objeto.

2. A verdade como liberdade - A verdade como encontro entre obje-

to e sujeito, na riqueza inesgotável de um e na liberdade de acolhida de outro.

3. A Verdade como mistério - A verdade como evento de misteriosa

profundidade entre o mundo das imagens e da linguagem e a situação do sujeito,

originando uma dialética de desvelamento e ocultação, e uma epifania do Ver-

dadeiro como Bom e Belo.

4. Verdade como participação - O evento humano da verdade como

abertura e participação em face da Verdade infinita e envolvente de Deus,m le-

vando o indivíduo humano a descobrir no ato da inteligência uma confissão (e

uma oração).

Essa Introdução nos mostra, embora de modo muito resumido, o amplo campo a-

berto diante de nós, quando nos dispomos a refletir sobre esse aparentemente simples

evento na nossa vida que é o descobridor a verdade (inteligência) e dizer a verdade (li-

berdade), mostrando-o como sendo constitutivamente um evento existencial, intelectual

e moral.

PRIMEIRA PARTE - Camponeses estruturais do conceito de verdade

Nessa 1ª parte vamos fazer uma breve exposição da estrutura do fenômeno verda-

de, fixando-nos nas suas componentes fundamentais que são a verdade do objeto ou do

ser, e a verdade do sujeito. Essa distinção é uma distinção inicial para-nós, pois veremos

que em-si, verdade do objeto e verdade do sujeito devem coincidir numa identidade

absoluta no sujeito infinito que é Deus. Observe-se que, para falar de uma verdade do

ser humano de pressupor que o ser seja essencialmente manifestação, e que o lugar ori-

ginal dessa manifestação seja a nossa palavra ou discurso, em suma, a nossa linguagem

(logos). Por isso falamos da verdade do seu como verdade anto-lógica. E a verdade do

sujeito será uma verdade lógica, ou seja, será o logos do sujeito como verdadeiro, ou

como lugar da manifestação da verdade do ser. Fique aqui apenas assinalada a impor-

tância filosófica do conceito de manifestação, já ressaltado por Platão ao escolher o ter-

mo idéia para designar o ser na sua verdade primordial.

1. Estrutura ontológica do conceito de verdade

Trata-se, pois, desse aspecto do evento verdade que é a manifestação do ser, e que

devemos ver sugerido pelo tempo grego de "verdade" (alétheia: desvalamento, manifes-

tação). Um simples exame semântico do termo "manifestação" nos mostra que se trata

de um termo relativo: manifestação a... ou manifestação para... e que, originalmente, a

manifestação é uma manifestação para-nós. Mas uma reflexão metafísica mais profun-

da, que aqui não podemos desenvolver, nos mostra que a manifestação relativa pressu-

põe que o ser seja, radicalmente, auto-manifestação, ou se manifeste absolutamente a si

mesmo. (Analogicamente, o conhecimento do outro - do objeto - implica em nós o co-

nhecimento de nós mesmos). Ao ser que se auto-manifesta a tradição filosófica iniciada

por Platão deu o nome a idéia, ao qual se acrescentou o de espírito (Geist, mind; ver H.

C. Lima Vaz, Antropologia Filosófica I, 3ª ed., São Paulo, Loyola, 1994, pp. 208-225),

finalmente identificados a partir do Médio Platonismo (I séc., P. C.). A verdade das coi-

sas pressupõe, assim a verdade do espírito. Ao definir a essência do ser como manifes-

tação podemos, pois, distinguir:

- auto-manifestação: espírito

- hetero-manifestação: mundo

Por sua vez a auto-manifestação pode ser ou absoluta, no Espírito infinito, ou rela-

tiva no espírito finito como o nosso.

A possibilidade do evento verdade repousa, pois, sobre essa equação metafísica

Ser = Manifestação, que é a mesma coisa que Ser = Verdade. Se agora dermos um rápi-

do olhar à história das concepções da verdade na filosofia ocidental, do ponto de vista

da sua estrutura ontológica, podemos distinguir quatro grandes versões:

a) concepção eleático-platônica ou concepção transcendental-objetiva - Aposenta-

se seja como afirmação da identidade absoluta entre o ser (on) e a verdade (alétheia): é

a concepção eleática, criticada por Platão no diálogo Sofista; seja como afirmação da

identidade na diferença (identidade dialética) entre o ser (on) e as formas (logoi) da sua

manifestação. É a concepção platônica. Essas formas são os chamados "gêneros supre-

mos" (mégistha gene), que Platão enumera sobretudo nos diálogos Banquete, Repúbli-

ca, Sofista e Filebo e nas suas "doutrinas não-escritas". É denominada concepção trans-

cendental porque esses gêneros supremos transcendem toda realidade limitada. Dessa

concepção resultou historicamente a doutrina das chamadas "noções transcendentais:

que são entre si logicamente conversíveis (ser=uno=verdadeiro-bom=belo) e constituem

o arcabouço conceptual fundamental da metafísica clássica.

b) concepção aristotélica ou concepção categorial - Mantendo a equação funda-

mental ser-verdade Aristóteles, no entanto, introduz uma polissemia original na noção

do ser (O ser se diz de muitas maneiras), de modo a pensar essa noção segundo uma

estrutura analógica ou estrutura plurium ad anum (pros em ou focal meaning segundo a

expressão de G. E. L. Owen), o que implica a divisão do ser em categorias (formas uni-

versais últimas de predicação), que todas se referem a uma categoria fundante (a ousia

ou substância) que é primeiramente e por si mesma ser. A verdade, sendo atributo do

ser, obedece igualmente a essa estrutura categorial e à sua ordenação à categoria de

substância. A verdade primeira é a verdade da substância.

c) Concepção tomásica ou transcendental-categorial. A concepção de Sto. Tomás

de Aquino é uma síntese do platonismo e do aristotelismo, tornada possível pela revela-

ção bíblico-cristã de Deus como Existente absoluto (Eu sou o que sou, Gn. 3, 14) de

sorte que a estrutura categorial do ser e da verdade, própria do ser finito, refere-se (atri-

buição analógica) à estrutura transcendental que é, por essência, a estrutura do Existente

absoluto e infinito e, por participação, dos existentes relativos e finitos. Sto. Tomás nos

deixou, num texto clássico, uma síntese magistral, dialeticamente construída, da doutri-

na dos transcendentais (De Veritate, q. I, a. 1). A importância da concepção tomásica

pode ser, talvez, avaliada no artigo "Tomás de Aquino: pensar a Metafísica na aurora de

um novo século" Síntese, 73 (1996): 159-207.

d) Concepção moderna ou transcendental-subjetiva - Convém observar que subje-

tivo aqui não se entende num sentido psicológico mas, justamente, transcendental (ter-

mo introduzido nesse contexto por Kant), ou seja no qual a inteligibilidade primeira do

ser tem seu fundamento e seu princípio no sujeito, que reivindica para si a prerrogativa

de lugar originário da verdade. As concepções modernas da verdade (idealista, empiris-

ta, pragmática, lógico-analítica) pressupõem, em suma, essa imanentização do ser no

sujeito, que é o traço distintivo da filosofia moderna e das ideologias nascidas sob sua

inspiração.

A estrutura ontológica do conceito de verdade refere-se, portanto, ao teor da ver-

dade em si, enquanto exprime a manifestação do ser. Podemos estabelecer as segui8ntes

equivalências metafísicas:

- o ser é manifestativo de si mesmo ® verdade (ens ut verum est manifestativum

sui)

- o ser é difusivo de si mesmo ® bondade (ens ut bonum est diffusivum sui).

2. Estrutura lógica do conceito de verdade

Aqui faremos referência a dois tópicos clássicos no estudo do conceito de verdade,

que são a verdade como medida e a fundamentação lógica da verdade. A primeira ques-

tão é característica da concepção da verdade na filosofia antiga, a segunda é típica da

filosofia moderna.

a) a verdade como medida (metron)

- Enquanto se manifesta ao sujeito e é acolhido no logos do sujeito, o ser torna-se

a medida objetiva do logos e, como tal, é capaz de ser expresso pelo logos que passa,

por sua vez, a determinar o modo de manifestação do ser. O logos é pensamento e lin-

guagem e, dos muitos modos de acolhimento do ser no logos, resulta a pluralidade das

formas de expressão da verdade no pensamento e na linguagem. A verdade como medi-

da é, pois, a verdade para-nós, que somos sujeitos finitos e temos como horizonte trans-

cendental do nosso pensamento e da nossa linguagem o horizonte do ser na sua verdade.

Nessa sua primeira manifestação, ou seja como medida relativa a um sujeito finito, a

verdade apresenta uma dupla face:

- o lado da normatividade do objeto ou do ser, enquanto medida objetiva do nosso

conhecer. Esse aspecto está implicado na definição clássica do conhecimento: "conhecer

é tornar-se o outro enquanto outro" (cognoscere est fieri aliud inquantum aliud).

- o lado da reciprocidade do sujeito que, na sua finitude, acolhe o ser sob formas e

modos diversos, dando origem a níveis do conhecimento (sensível e intelectual) e a uma

pluralidade de formas entre as quais Aristóteles detectou três fundamentais: teórico,

prático e poético. A elas correspondem formas diversas de pensar e dizer o ser, ou seja,

formas diversas de verdade e de linguagem. A auto-diferenciação do logos é um proces-

so fundamental da nossa atividade cognoscitiva. O aspecto da receptividade é expresso

no axioma clássico: "O conhecido está no cognoscente segundo o modo do cognoscen-

te" (cognitum est in cognoscente secundum modum cognoscentis).

Se o ser é uma medida relativa para nós como sujeitos finitos, colocou-se já nos

inícios da história da filosofia o problema da medida absoluta pois, caso contrário, a

verdade ficaria irremediavelmente relativizada e suas formas passariam a constituir uma

pluralidade irredutível a qualquer unidade, a não ser nominal. O problema da medida

absoluta aponta finalmente para a posição da verdade como identidade absoluta do ser e

do conhecer no sujeito infinito. Encontramos três soluções propostas para esse problema

na história da filosofia, para as quais aqui apenas acenamos:

1. - objetivismo platônicos das Idéias; a teoria platônica das Idéias

responde a esse problema com a posição do inteligível puro como medida abso-

luta da verdade (Idéia = Verdade) que é traduzida na forma mais alta do discurso

humano: a filosofia ou dialética na terminologia platônica (ver sobretudo o diá-

logo Teeteto).

2. - exemplarismo neo-platônico e cristão - Resulta da síntese entre

os dois conceitos já presentes em Platão e Aristóteles e na tradição platônico-

aristotélica; a inteligência (nous) faculdade de contemplação das Idéias, e as I-

déias mesmas. Intervem aqui decisivamente o conceito de Espírito (Nous) que

contem em si as Idéias como pensadas por ele e que são os arquétipos ou exem-

plares últimos de todas as coisas. Essa doutrina já se encontra no chamado Pla-

tonismo médio (I e II séc. PC) é desenvolvida no neo-platonismo (III-VI séc.) e

é recebida pela teologia cristã,m adquirindo sua forma clássica em Santo Agos-

tinho e na teologia medieval (ver Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, Iª.

p., q. 15; Summa contra Gentiles, lib. I, cc. 49-54).

3. - tranacendentalismo moderno, no qual a doutrina platônica das

Idéias e o exemplarismo platônico-cristão são, sob várias formas, transpostos pa-

ra o sujeito finito sob o modo transcendental que, de alguma maneira, o infiniti-

za na sua imanência. As diversas formas de relativismo da verdade como empi-

rismo, o historicismo, o culturalismo, o positivismo, o pragmatismo e outras, en-

contram uma raiz comum na convicção da ilegitimidade lógica da passagem da

medida relativa à medida absoluta no conhecimento da verdade.

b) A fundamentação lógica da verdade

Esse problema não se colocava na filosofia antiga, uma vez que a correlação

ser=verdade e a abertura da inteligência ao ser eram pressupostos universalmente admi-

tidos, com a exceção notável do Ceticismo. Daqui decorre a definição ou, mais exata-

mente, a simples enunciação da verdade como "o que é": verum est quod est, sendo "o

que é" identificado, pela tradição platônica, com as Idéias. À hierarquia do ser corres-

pondia a hierarquia da verdade, coroada pela Verdade suprema (exemplo clássico a pro-

va da existência de Deus pela presença da verdade em nosso mente, segundo Sto. Agos-

tinho). O problema moderno da fundamentação lógica da verdade, conhecido como teo-

ria da verdade, surge num espaço teórico pós-metafísico, e procede da necessidade de se

justificar logicamente a atribuição da verdade a um pensamento finito e originalmente

encerrado na sua imanência. A posição desse problema contém um paradoxo que é o de

definir o "mesmo" pelo "mesmo" (idem per idem) ou o definiendum pelo próprio defini-

endum (a verdade pela verdade), paradoxo resolvido classicamente pela distinção entre

linguagem-objeto (a verdade definienda) e a meta-linguagem (a verdade definiens). No

seu livro Wahrheitstheorien in der neuerem Philosophie, Darmstadt, Wissenschaftliche

Buchgesellschaft, 1978) L. B. Puntel distingue as diversas teorias da verdade correntes

na literatura filosófica contemporânea (com exceção das teorias fenomenológicas, às

quais já nos referimos). São elas:

- teoria da correspondência, nas quais se incluem a definição clássica, atribuída na

I. M. a Isaac Israeli (Veritas est adequatio intellectus et rei ou ad rem); a teoria materia-

lista do reflexo, e a teoria lógico-empírica da imagem.

- teoria semântica da verdade ilustrada sobretudo pelo lógico polonês A. Tarski.

- teoria lingüístico-analítica, desenvolvida pela filosofia analítica anglo-saxônica

(Ramsey, A. J. Ayer, Strawson e outros).

- teoria inter-subjetiva da verdade, originada no pragmatismo de Chj. S. Peirce e

desenvolvida por J. Habermas, com uma versão dialógica pela chamada "escola de Er-

langen" (P. Lorenzen).

- teoria da verdade como coerência - proposta, entre outros, pelo filósofo e lógico

americano N. Rescher. O próprio L. Puntel aperfeiçoou essa teoria no seu recente livro

Grundlagen einer Theorie der Wahrheit, Berlim, W. de Gruyter, 1990.

Do ponto de vista antropológico poderíamos falar igualmente de uma experiência

poética da verdade, sobre a qual ver Antropologia Filosófica, II (2ª ed.), São Paulo, Lo-

yola, 1995, pp. 102-105.

SEGUNDA PARTE - Verdade e linguagem na ciência e na fé

Trata-se agora de estudar, levando-se em conta o que foi dito na 1ª parte, duas

formas fundamentais de acesso a verdade e de respectiva linguagem, presentes na nossa

cultura e nas nossas convicções, mas muitas vezes em desconhecimento mútuo ou em

conflito: a ciência e a fé. Passamos, pois, de uma metafísica e lógica da verdade (1ª par-

te) para uma antropologia da verdade, entendida porém, ao menos primariamente, não

conto atributo ou forma da existência humana (ver supra, Fenomenologia da verdade),

mas como atributo ou forma do conhecimento humano e, portanto, na sua dimensão

epistemológica. O que pretendemos portanto mostrar é como a verdade, em razão, fi-

nalmente da sua unidade analógica, como iremos ver, diferencia-se nessas duas formas

fundamentais que são a verdade da fé e a verdade da ciência, com suas respectivas lin-

guagens.

1. Verdade e linguagem da ciência

a. O termo ciência (episthéme em grego) recebe inicialmente uma acepção muito

ampla, incluindo todo saber verdadeiro e capaz de ser demonstrado como tal. Na termi-

nologia clássica não há distinção entre ciência e filosofia que, entre os Gregos, é emi-

nentemente uma teologia, nem posteriormente entre teologia cristã e ciência. O proble-

ma moderno entre ciência e fé e a sua conceptualização teológica, começam a delinear-

se a partir do século XIII com a chamada teoria averroista das "duas verdades" recebia

por alguns Mestres de Artes (filósofos) das Universidades medievais, no chamado aver-

roismo latino. Mas é só a partir do século XVII, com o advento de uma nova forma de

ciência da Natureza, por obra de Galileu e de seus continuadores, que se configura defi-

nitivamente o problema moderno da relação entre ciência e fé, desde o início consagra-

do emblematicamente no chamado "caso Galileu". Nessa 2ª parte vamos tratar, portanto,

da ciência no sentido moderno, pós-galileiano do termo, pois é a respeito dela que se

coloca hoje o problema da verdade e linguagem da ciência confrontadas com a verdade

e linguagem da fé.

b. A ciência moderna se divide em dois grandes ramos, com suas numerosas rami-

ficações secundárias: ciências empírico-formais e ciência hermenêuticas. Essa termino-

logia foi proposta por Jean ladrère e caracteriza bem os dois tipos de ciência (ver J.

Ladrière, L'articulation du sens: discours scientifique et parole de la foi, Paris, Cerf,

1984, v. 1, pp. 25-50). Num sentido amplo as ciências empírico-formais são ciências da

natureza, as ciências hermenêuticas são ciências do homem, enquanto, pela cultura, so-

brepõe-se à natureza. Não é uma distinção rígida porque, entre a natureza e o homem,

mesmo como ser cultural, descobre-se uma continuidade profunda. Mas é uma distinção

que se justifica tanto epistemologicamente quanto didaticamente.

Na nossa exposição vamos tratar apenas das ciências empírico-formais. Essa esco-

lha tem sua razão de ser antes de tudo no fato de que as ciências empírico-formais foram

as primeiras historicamente a se constituir como ciências no sentido moderno. Em se-

gundo lugar porque elas permanecem, de certa maneira, como o arquétipo do saber ci-

entífico e exercem uma poderosa atração sobre as ciências hermenêuticas. Em terceiro

lugar porque para tratar do tema "ciência humanas e fé" seria necessário, provavelmen-

te, outra palestra. O aspecto que nos interessa nas ciências empírico-formais não é, evi-

dentemente, o seu conteúdo mas a sua estrutura ou, em última análise, a forma de ver-

dade que elas visam enunciar e a linguagem que empregam para essa enunciação.

Como a própria designação sugere, a estrutura básica das ciências empírico-

formais consta de dois componentes:

- o campo empírico onde se detectam, por procedimentos adequados de observa-

ção e experimentação, os fatos científicos a serem integrados no corpo teórico da ciên-

cia.

- a linguagem formal na qual se exprimirão os fatos e que será uma linguagem ló-

gico-matemática.

Observamos que todo conhecimento humano é, de alguma maneira, a expressão de um

dado empírico numa forma de pensamento e linguagem. O que justifica o qualificativo

"empírico-formal" para a moderna ciência da natureza são o tipo de observação a que a

natureza é submetida e as peculiaridades da forma lógico-matemática da sua linguagem.

Examinemos, pois, os componentes estruturais da ciência empírico-formal:

- o campo empírico da ciência - Compreende o domínio da natureza no sentido

moderno do termo. Convém, com efeito, distinguir entre a noção de "natureza" empre-

gado na linguagem ordinária, o conceito de "natureza" (physis) da filosofia antiga, que

;é propriamente um conceito filosófico, e o conceito de "natureza" próprio da ciência

moderna, que é um conceito empírico, de natureza operatória. Ele é caracterizado pelos

procedimentos gnoseológicos dos quais resulta o conjunto de fenômenos (conjunto a-

berto) unidos por uma forma de legalidade universal no espaço e no tempo, segundo a

definição de Kant (KRV, B, 165; ver B, 263 e 479). O campo empírico das ciências

empírico-formais é, pois, o campo da natureza assim definida, sendo que os fenômenos

nele presentes obedecem às seguintes condições:

- ser observável segundo um processo metódico de experimentação conduzido

mediante instrumentos, segundo regras, submetido a controle, e cujo resultado é codifi-

cado em linguagem própria.

- ser matematizável - ou seja, a linguagem formal de expressão dos fenômenos é,

finalmente, de natureza matemática, formulada através de medidas, de modo que a lin-

guagem dos fenômenos na ciência empírico-formal inclui um nível descritivo e um ní-

vel propriamente formal de natureza lógico-matemática.

- estrutura formal da ciência - a estrutura formal ou o arcabouço lógico da ciência

apresenta, pois, duas características fundamentais:

- sendo uma lógica matemática é essencialmente operatória, nela verificando-se de

modo privilegiado o caráter operatório do campo formal em geral, enquanto campo

simbólico (ver Ladrière, op. cit., pp. 51-71).

- por outro lado, correspondendo ao aspecto descritivo da experimentação, é i-

gualmente uma lógica do discurso que, no caso, assume uma estrutura nomológico-

dedutiva tendo como ingredientes, em nível descendente de generalidade, as teorias, as

hipóteses, as leis e os conceitos.

Entre a estrutura formal e o campo empírico estabelecem-se as regras de interpre-

tação que permitem passar do formal ao empírico, e em cujo contexto epistemiológico

se situa o problema do modelo intermediário entre o teórico e o empírico.

O que podemos designar como objeto da ciência está, portanto, circunscrito por esse

espaço epistemológico formado na articulação entre o formal e o empírico. A primazia

dada a um ou a outro dá origem a filosofias da ciência diversas, de caráter idealista ou

empirista ou, em versão extrema, ao concencionalismo, defendido no começo do século

por dois grandes físicos e historiadores da ciência, E. Mach e P. Duhen e pelo grande

físico-matemático H. Poincaré. O objeto científico não seria, no caso, simplificando, é

verdade, senão a soma das convenções que permitem a experimentação e o cálculo.

- A linguagem da ciência é, pois, uma linguagem artificial, que consta essencial-

mente de uma parte descritiva na qual os fatos científicos a serem explicados recebem

os predicados observacionais resultantes da experimentação, e de uma parte teórica na

qual se incluem o formalismo matemático, o sistema dedutivo e as regras de interpreta-

ção que articulam a descrição empírica ao sistema dedutivo. Desta sorte, o uso da lin-

guagem científica (ou sua dimensão pragmática) é estritamente controlado e a significa-

ção dos seus termos univocamente determinada. Esse caráter de rigor da linguagem ci-

entífica levou alguns cientistas e filósofos da ciência reunidos primeiramente no chama-

do Wiener Kreis ou Círculo de Viena, posteriormente Escola de Chicago (com a transfe-

rência para aquela Universidade dos seus principais representantes, que se aliaram ao

chamado operacionalismo do físico americano Percy W. Bridgman) a considerá-la a

única linguagem portadora de sentido (Sinn, meaning) objetivo nas suas proposições,

sendo as outras linguagens, com a p. ex. a religiosa, expressões apenas de sentimentos

subjetivos. No caso de se adotar essa posição haveria um abismo intransponível, em

termos de verdade, entre a linguagem da ciência e a linguagem da fé. Mas esse tipo de

reducionismo se mostrou, finalmente, injustificável. Desde já, no entanto, podemos ver

que a linguagem da ciência apresenta características que a tornam um mundo lingüístico

específico ao qual corresponde uma forma também própria de verdade.

- A verdade da ciência - A verdade da ciência ou dos seus resultados teórico-

experimentais reside no seu poder de explicação do mundo real da nossa experiência e

ao qual, na medida em que pode ser compreendido pela nossa ciência, abrangemos sob

o nome e o conceito de natureza. A verdade da ciência é, pois, a verdade da explicação

científica enquanto acesso à realidade da experiência que se apresenta a nós como inte-

ligível. Essa inteligibilidade do real físico é um dado pressuposto pela ciência e que

provocava a reflexão de A. Einstein, de que o admirável no mundo não é que exista mas

que possa ser compreendido. A verdade científica apresenta, pois, as características da

explicação científica e é estritamente correlata à estrutura da linguagem científica, que é

a sua forma de expressão. Ora, o poder de explicação da ciência reside essencialmente

na possibilidade de transpor para o mundo empírico a inteligibilidade dos sistemas for-

mais ou de adequar uma à outra, de alguma maneira, a inteligibilidade do mundo e a

inteligibilidade lógico-matemática. O conceito de natureza, cientificamente considerado,

resulta da adequação dessa duas ordens de inteligibilidade. Essa adequação torna-se

possível, como vimos, através das regras de interpretação que permitem substituir fe-

nômenos empíricos aos objetos abstratos das operações formais. O caso clássico, porque

inaugura a ciência moderna, é o processo de formulação, por Galileu, da lei da queda

dos corpos, expressa por um formalismo algébrico. Como o domínio formal é um domí-

nio essencialmente operatório a explicação científica interpreta a natureza segundo um

tipo de inteligibilidade operatória. Ora, a verdade não é senão a enunciação da inteligi-

bilidade do objeto. Portanto, a verdade científica é também, essencialmente operatória,

ou seja, ligada intrinsecamente às operações formais e empíricas que permitem exprimir

o objeto atrav's de teorias, leis e conceitos empíricos-formais.

Vê-se, pois, que a verdade científica é uma verdade perfeitamente correlata à lin-

guagem científica acima descrita. É, por conseguinte, uma verdade humana, estrutural-

mente adequada ao modo de proceder da nossa inteligência na sua tentativa de compre-

ender o mundo. Não teria sentido, evidentemente, dizer que Deus compreende o mundo

segundo o modo da ciência empírico-formal, das suas leis e teorias, ou dizer, como o

filósofo idealista Leon Brunschvicg, que o Deus verdadeiro é o Deus das equações dife-

renciais. Sendo Criador, ele compreende o mundo no seu em-si numenal, como diria

Kant, não relativamente ao próprio mundo mas absolutamente nos arquétipos do mundo

na inteligência divina. A ciência humana é, para Deus, um modo de existir do homem

no mundo, não uma compreensão do mundo. Isso não quer dizer que a verdade científi-

ca nada tenha a ver com o em-si ontológico do mundo. Sendo verdade, ela tem um

componente ontológico como toda verdade, ou seja, ela é uma forma de manifestação

do ser à inteligência. Não é uma simples convenção nem mesmo uma verdade apenas

dos fenômenos, como queria Kant. Mas, avançar nessa dimensão ontológica da verdade

científica nos levaria para longe do nosso tema presente. vamos apenas pressupô-la,

para garantir o estatuto de verdade ao conhecimento científico.

Convém ainda incluir aqui uma referência ao problema da técnica na sua relação

com o problema da verdade na ciência empírico-formal. Justamente por seu caráter es-

sencialmente operatório, a ciência empírico-formal mostrou-se como o mais poderoso

instrumento de transformação da natureza e de produção de objetos ordenados à utilida-

de individual e social. Essa ordenação do saber ao fazer levou finalmente à conjugação

dos dois procedimentos na forma das ciências da engenharia que dominam a nossa civi-

lização tecnológica. Ora, a categoria de utilidade dificilmente pode ser aplicada à gratu-

idade do ato de fé, o que constitui uma fonte de dificuldades para o exercício da vida de

fé num mundo dominado pela técnica. O desejo de superar essa dificuldade leva, de

resto, a uma invasão do universo religioso cristão pelo conceito e critério do útil, con-

forme a magistral análise de Alphonse Dupront num livro recentemente traduzido (A.

Dupront, A Religião Católica: possibilidades e perspectivas, São Paulo, Loyola, 1995,

pp. 27-42).

2. Verdade e linguagem da fé

a. A passagem do mundo da linguagem e da verdade da ciência para o mundo da

linguagem e da verdade da fé não se faz por nenhum processo lógico-conceptual ou por

qualquer outra forma de continuidade que permita por simples adaptação de termos ou

conceitos passar de um para outro. São dois mundos muito distantes no universo da nos-

sa apreensão e compreensão do ser, e os sinais enviados de um para outro atestam ape-

nas a sua existência sem que nos permitam, a partir de um deles, atingir a natureza a

estrutura do outro. Trata-se de um distanciamento objeto e para o qual teremos que bus-

car a forma de unificação que nos permita falar de um e de outro, pois ambos perten-

cem, afinal, ao mesmo universo no qual se une a pluralidade das formas do nosso pen-

samento e da nossa linguagem. Aqui não falamos do problema psicológico da coexis-

tência, no mesmo indivíduo, do mundo da ciência e do mundo da fé, nem das estratégias

psicológicas com que ele unifica, nas suas convicções e na sua vida, esses dois mundos.

Nem do problema oposto, o das barreiras psicológicas que impedem em muitos casos o

acesso do cientista ao mundo da fé. Esses problemas tem interesse em si mesmos mas

devem ser tratados em perspectivas diferentes daquela em que aqui nos sistemas ao re-

fletir sobre as relações objetivas entre o mundo da linguagem e verdade da ciência e o

mundo da linguagem e verdade da fé (Um conjunto extremamente sugestivo de teste-

munho de cientistas sobre a sua relação pessoal com a fé, foi reunido recentemente por

Jean Delumeau, no livro Lê Savant et la Foi: des scientifiques s'expriment, Paris,

Flammarion, 1989).

Desde os inícios da formação da ciência moderna multiplicaram-se as tentativas de

constituição de um discurso apologético, ou de justificação das afirmativas da fé por

meio de teorias e conclusões da ciência. Esse estilo de apologética atingiu seu clímax no

século passado no chamado "concordismo", sobretudo nas tentativas de confirmação

das narrações bíblicas pela ciência. Mas o gênero subsiste ainda, embora de maneira

mais cautelosa, particularmente no campo da física e da cosmologia, como testemunha o

recente diálogo de Jean Guitton com dois físicos (J. Guitton, G. Bogdanov, I. Bogda-

nov, Dieu et la science: vers le métaréalisme, Paris, Grasset, 1991). Ou mesmo, numa

forma bem mais complexa e elaborada, na cosmovisão de Teilhard de Chardin. Também

não tratamos aqui desse tipo de relação entre fé e ciência.

Outro problema que nos interessa mais diretamente é o problema da hermenêutica

ou interpretação da linguagem original da fé como Palavra de Deus revelada, por meio

de alguma outra forma de linguagem sobretudo da que permita a transposição da lin-

guagem da revelação nas categorias e estruturas de um discurso articulado segundo a

lógica de um saber demonstrativo ou de uma ciência. É esse o problema que está na

origem da teologia, que é uma hermenêutica da linguagem da fé na forma de um certo

tipo de saber da fé ou de uma lógica da fé. Ele já está presente nas teologias implícitas

no texto bíblico, sobretudo no Novo Testamento. Mas torna-se explícito no momento

em que um saber já constituído em ciência e plenamente desenvolvido como tal, ou seja,

a filosofia grega, passa a exercer poderosa atração sobre os apologistas e Padres da Igre-

ja. Esse tipo de Saber não apenas se prestou a possibilitar uma hermenêutica bem suce-

dida da linguagem da fé na teologia patrística e medieval, mas propiciou igualmente

uma linguagem apta à expressão do conteúdo da fé nas definições dogmáticas dos gran-

des Concílios dos séculos IV e V. Um problema análogo ao da utilização da filosofia

grega para a hermenêutica da linguagem original da fé é proposto freqüentemente tanto

a respeito da filosofia moderna quanto das ciências modernas, tanto das empírico-

formais quanto das hermenêuticas. O fato é que nenhuma dessas novas linguagens cien-

tíficas se mostrou capaz de desempenhar satisfatoriamente para com a linguagem da fé a

função hermenêutica que a filosofia grega exerceu com indiscutível êxito. Todas as ten-

tativas nesse sentido tem resultado numa forma qualquer de reducionismo que atinge

algum dos aspectos essenciais do conteúdo da fé, ou da fides quae creditur. Não seja

possível abordar aqui essa questão, mas podemos dizer que a dificuldade maior vem, no

caso da filosofia, do fato de que a filosofia moderna, na sua intenção profunda, é essen-

cialmente imanentista e antropológica, ao passo que a filosofia antiga é uma filosofia da

transcendência e estruturalmente teológica (Ver H. C. Lima Vaz, Religião e modernida-

de filosófica, Síntese, 53 (1991): 147-165). Isso não quer dizer que muitos dos avanços

conceptuais da filosofia moderna, sobretudo da fenomenologia, não possa, ser utilizados

na hermenêutica da linguagem da fé. Quanto ao uso hermenêutico das ciências para

interpretação do conteúdo da fé, é dificultado pelo método e seu caráter operacional e

pela intenção profunda da inteligibilidade científica voltada para a compreensão do

mundo em termos da sua utilização técnica, o que vale igualmente das ciências herme-

nêuticas ou humanas, que são ciências do comportamento e prescidem metodicamente

da pergunta o que é o homem? Passemos, pois, a expor brevemente a estrutura da lin-

guagem e da verdade da fé.

b. A linguagem da fé - A primeira característica da linguagem da fé mostra-se no

fato de que nela há uma primazia essencial da palavra sobre o discurso. Isso significa

que a linguagem da fé não é, primeiramente, uma linguagem de persuasão e muito me-

nos de demonstração mas é, antes de tudo, uma linguagem de revelação ou de anúncio

ou confissão de fé. Essa, por sua vez, é uma linguagem de tipo performativo, ou seja, na

qual o enunciado não é apenas o registro de um fato (p. ex., faz sol) mas implica um

envolvimento do locutor e, portanto, uma ação (p. ex., eu prometo, eu creio). A resposta

positiva ao anúncio da fé é a ação de crer, expressa em linguagem performativa, como

no caso do Símbolo dos Apóstolos ou o Credo nas suas diversas versões (ver J.

Ladrière, L'articulation du sens, I, op. cit., pp. 91-139). Na linguagem da fé devemos

distinguir, pois, o anúncio de um acontecimento salvífico (fides quae creditur) e a pro-

fissão da eficácia desse acontecimento na vida de quem recebe o anúncio (fides qua

creditur). Por sua vez, o fundamento da verdade do anúncio e da sua eficácia transfor-

madora na vida de quem professa o que é anunciado, é o Deus que revela e opera a sal-

vação (fides cui creditur). A palavra da fé como anúncio torna-se finalmente substancial

na identidade da Palavra de Deus com o próprio Deus, Palavra que se fez carne e habi-

tou no meio de nós.

Se a linguagem da fé é, primeiramente, palavra que atinge o discurso humano co-

mo algo que desconcerta e escandaliza (1 Cor. 2, 1-16) é também discurso, pois a lin-

guagem humana é essencialmente discursiva. Mas não é o discurso da sabedoria huma-

na mas da sabedoria do Deus que age e revela (ibid., 1, 18-30). Essa dimensão discursi-

va da linguagem da fé aparece já no próprio texto da Escritura. Ela se prolonga na dida-

ché, no ensinamento apostólico e se desenvolve posteriormente no magistério da Igreja

ao longo dos tempos. Mas a discursividade da linguagem da fé encontra seu campo pró-

prio na constituição das teologias, já desde a idade patrística. A fé, como mostrou mag-

nificamente Santo Agostinho, é habitada por um dinamismo interno, próprio do espírito

humano mas também das virtualidades inteligíveis do anúncio salvífico, que a leva a

florescer e frutificar em inteligência. Mas essa é sempre fruto da fé. Agostinho não se

cansa de comentar a palavra de Isaías (7, 9) na versão dos Setenta: nisi credideritis non

intelligetis (se não crerdes, não entendereis). Ele a comentas na célebre oposição: intel-

lige ut credas verbum meum; crede ut intelligas verbum Dei (entende para poderes crer

a minha palavra; crê, para poderes entender a palavra de Deus, Sermo 43, PL 38, 258).

Na tradição ocidental esse dinamismo inteligível da fé encontrou sua expressão clássica

na sentença de Santo Anselmo: fides quaerens intellectum (a fé em busca da inteligên-

cia). Assim, a linguagem da fé não se cristaliza num grito ou numa simples proclama-

ção. Ela é unidade indissolúvel do anúncio e do discurso mas o anúncio é sempre pri-

meiro. Seu fundamento - ou sua verdade - não vem do discurso humano que dele proce-

de, com nos axiomas ou hipóteses de um sistema hipotético-dedutivo. Ele vem da ver-

dade absolutamente transcendente do Deus que se revela e cuja revelação é aceita na

confissão da fé.

Podemos, assim, resumir a natureza da linguagem da fé como Palavra que anuncia

e realiza acontecimentos salvíficos (Palavra, portanto, essencialmente histórica), que

nos é transmitida através dos sinais do seu acontecer, é recebida por nós através da in-

terpretação autêntica desses sinais (fruto da graça da fé) e se exprime na linguagem da

nossa confissão, linguagem performativa pois é um compromisso de vida. Assim, a lin-

guagem da fé é, na expressão de Donald Evans, uma linguagem de auto-implicitação

(self-involvement) daquele que a enuncia. Quais serão, pois, os critérios da sua verda-

de?

c. A verdade da fé - Aqui não se trata, evidentemente, de expor o conteúdo da fé

(fides quae) como conteúdo verdadeiro nem de apresentar uma criteriologia completa

dos títulos de verdade que a fé apresenta. Nosso propósito é apenas o de mostrar breve-

mente a estrutura do ato de fé enquanto enunciador de verdade e, portanto, na sua corre-

lação com a linguagem. Supomos, pois, que há uma verdade da fé que se exprime numa

linguagem peculiar. Como tal ela reivindica a sua originalidade irredutível no amplo

campo das formas de verdade que são acessíveis à inteligência humana e, portanto, a ela

se aplica igualmente o axioma de Espinoza: Versum index sui. A verdade da fé se funda

a si mesma e se explica a si mesma. Essa originalidade da verdade da fé se manifesta já

na intencionalidade do ato que a ela adere. Sua referência não é a um estado de coisas

apreendido pela experiência, mas aos acontecimentos salvíficos anunciados na lingua-

gem da revelação recebida na audição da Palavra (RN, 10, 8-18). Ora, a Palavra não traz

em si a evidência das proposições que enuncia nem as faz acompanhar de uma demons-

tração lógica. Como anúncio ela é um apelo e dirige-se tanto à inteligência quanto à

liberdade que aqui, de modo análogo ao que sucede no juízo da consciência moral, a-

gem numa sinergia pela qual a liberdade se move à aceitação livre da Palavra e a inteli-

gência é dotada de um movo olhar (lês yeux de la foi, na expressão de P. Rousselot),

capaz de penetrar de alguma maneira a verdade do que é anunciado. Mas o campo de

intencionalidade do ato de fé é povoado de sinais salvíficos e é através da sua interpre-

tação que a verdade da fé se manifesta. Para que essa interpretação seja possível é ne-

cessária a transformação interior da inteligência e da liberdade na graça da fé: o Deus

que se revela é o Deus que move aficazmente nossa inteligência e nossa liberdade ou,

mais exatamente, a sua sinergia vital em ordem à aceitação da verdade revelada. O ato

de fé tem, assim, uma estrutura teândrica: nele, em analogia com a Encarnação da Pala-

vra substancial de Deus, a palavra da fé se faz em nós, palavra humano-divina. Eis por-

que há na fé uma tensão permanente entre a verdade e a linguagem: as possibilidades

semânticas da nossa linguagem são necessariamente transgredidas ao tentarmos enunci-

ar a verdade da fé. Essa enunciação, nas diferentes linguagens da fé - catequética, ma-

gisterial, teológica - nunca é adequada ao seu objeto. Ela aponta na sua intencionalida-

de, para uma profundidade irradiante de inteligibilidade mas incircunscritível pela nossa

inteligência e pela nossa linguagem, e que a tradição designou com o nome de mistério.

Podemos, pois, dizer que a verdade da fé é a verdade do mistério e diante dela a inten-

ção teórica de compreender cede a primazia à intenção existencial de viver. Mas a partir

da vida da fé, a intenção de compreender ressurge no dinamismo da fides quaerens in-

tellectum. A Palavra se faz discurso nas diferentes formas da linguagem da fé que nas-

cem e se alimentam da inteligibilidade do mistério numa dialética de ocultação e revela-

ção que está presente tanto na simples linguagem da catequese quanto na linguagem

intelectualizada da definição dogmática, no discurso teológico ou nas audácias alegóri-

cas da linguagem mística.

Seria ainda necessário explicar que o fato humano da linguagem da fé como aco-

lhimento da sua verdade pressupõe como condição de possibilidade uma concepção da

existência humana como abertura tanto antológica quanto ética a um Absoluto que a

interpela no exercício da sua linguagem e da sua liberdade e pode a ela revelar-se como

Palavra de salvação. Mas a esse preâmbulo de uma antropologia teológica não é possí-

vel aqui senão um breve aceno.

Se nos reportarmos agora à análise da nossa primeira parte veremos que, na sua

estrutura ontológica, a verdade da fé apresenta a característica única de uma manifesta-

ção do ser como Absoluto pessoal, o que a torna em nós uma atitude também eminen-

temente pessoal de livre resposta a um anúncio e um apelo que nos atingem na raiz do

nosso próprio ser. E na sua estrutura lógica a verdade da fé não é uma medida abstrata

da nossa inteligência nem se funda em critérios de evidência ou demonstração. A lógica

da fé é a lógica da nossa existência na sua ordenação constitutiva ao Absoluto pessoal

que se manifesta como Amor, mas ao qual não nos abrimos senão no acolhimento de

um Dom absolutamente gratuito.

CONCLUSÃO

Nossas reflexões até aqui se desenvolvem em torno desse fenômeno fundamental

da nossa existência que é a correlação estrutural entre a verdade e a linguagem e a sua

diferenciação original em formas de linguagem e correspondentes formas de verdade, e

em torno da relação entre ciência e fé do ponto de vista da sua linguagem e da sua ver-

dade. O problema da unidade subjacente à verdade e linguagem da ciência e à verdade e

linguagem da fé, traçou o roteiro da nossa exposição. depois de descrevermos a estrutu-

ra das duas linguagens e das duas verdades, estaríamos preparados para propor uma

solução satisfatória a um problema que figura entre os mais característicos da situação

do cristão no mundo moderno? Eis a pergunta a que tentaremos brevemente responder

na nossa conclusão.

Vimos na primeira parte que toda expressão da verdade ou toda linguagem verda-

deira se constitui em torno de um núcleo estrutural fundamental no qual se distinguem

dois componentes, o ontológico e o lógico. A partir desse núcleo assistimos ao fenôme-

no a um tempo histórico e epistemológico de uma diferenciação de formas de lingua-

gem e verdade que é proporcional ao próprio fenômeno da auto-diferenciação da razão

(Sobre esse tema ver o artigo Ética e Razão moderna, Síntese, 68 (1995): 53-85; ver pp.

58-63). Formam-se então o que podemos denominar mundos de linguagem e verdade,

constituindo como que um universo intencional no centro do qual se situa a nossa ativi-

dade cognoscitiva e expressiva. Como mundos aparentemente distantes desse universo

estão o mundo da ciência e o mundo da fé. É claro que uma indiscutível unidade antro-

pológica os une no saber e na prática do cientista cristão. Buscamos, no entanto, a sua

unidade ontológica e lógica ou a sua compatibilidade na unidade de um mesmo universo

intencional. Diversas versões dessa unidade tem sido propostas na literatura recente

sobre o tema, que continua na ordem do dia para a reflexão cristã. Ainda há pouco uma

sugestiva aproximação dos dois mundos dói tentada por A. Ganoczy no seu livro Dieu,

l'homme et la nature (Cogitatio Fidei 186), Paris, Cerf, 1995. Trata-se de um livro de

rica erudição e de notável originalidade no tratamento do problema que nos ocupa. A

questão da ciência e da fé é apresentada e discutida a partir da expressão da religiosida-

de profunda que animava os grandes gênios da ciência moderna, como Newton. Einste-

in, Heisenberg e outros, e que reaparece em alguns cientistas contemporâneos. Perma-

nece, no entanto, em segundo plano na análise de Ganoczy, o caráter essencialmente

operacional da ciência moderna, que determina o seu dinamismo profundo e que se

mostra como um dos traços fundamentais da verdade da ciência na sua diferença com a

gratuidade revelada da verdade da fé. É esse caráter operacional, regido pela categoria

do fazer, que torna precárias as analogias entre ciência e fé formuladas na hipótese de

uma homologia entre os níveis epistemiológicos de ambas, como a que é proposta pelo

físico H. Dänzer (A. Ganoczy, op. cit., pp. 26-27).

De qualquer maneira a posição do problema de uma unidade na diferença entre

verdade e linguagem da ciência e verdade e linguagem da fé tem como condição de pos-

sibilidade a exclusão liminar de uma simples homonímia ou equivocidade entre os dois

mundos, a modo, por exemplo, da teoria averroista das "duas verdades". A solução pre-

conizada por uma concepção univocista da verdade aparece, por outro lado, como uma

simples supressão do problema, como no caso já clássico do neo-positivismo, em que a

única verdade objetiva é a verdade da ciência com sua linguagem própria, sendo as ou-

tras pretensões de verdade e seus respectivos discursos rejeitadas na esfera subjetiva.

Resta, pois, o recurso a uma unidade analógica das formas de verdade e das suas lin-

guagens. Não é fácil, no entanto, definir essa unidade numa cultura pluralista como a

nossa, onde o processo histórico da auto-diferenciação da Razão deu origem a uma am-

pla multiplicidade de formas de verdade e linguagem. A estrutura de uma analogia de

atribuição, proposta com êxito por Tomás de Aquino no contexto da cultura cristã da

Idade Média, não parece aplicável ao universo da nossa cultura. A unidade analógica

das ciências, na visão tomásica, se ordena à sacra doctrina como a seu analogado princi-

pal, segundo a doutrina aristotélica da subalternação das ciências. Com efeito, a sacra

doctrina ou teologia é subalternada imediatamente à própria ciência divina, o que asse-

gura seu lugar no topo da hierarquia das ciências (ver Summa Theol., q. 1, e M. D. Che-

nu, La théologie como science au XIIIème sièle, 3 éd., Paris, Vrin, 1957). Essa visão

hierárquica do saber cedeu lugar, na cultura moderna, a uma dispersão de formas de

ciência, de tal sorte que o simples problema da sua classificação apresenta uma séria

dificuldade na busca de um critério classificatório que seja universalmente aceito. Qual

a ciência fundamental? A Filosofia, a Física, a Biologia ou alguma das ciências herme-

nêuticas? A Filosofia poderia apresentar os melhores títulos históricos e teóricos a essa

primazia, mas eles seriam provavelmente contestados por outras ciências como a Física,

a Biologia e, sobretudo, a Antropologia. Quanto à Teologia, ciência da fé (Summa The-

ol., I, q. 1, a.a. 2-6), não tem mais o seu lugar reconhecido na enciclopédia das ciência

modernas. Como pensar, pois, a unidade, no quadro de uma analogia objetiva, das for-

mas de verdade e respectiva linguagem, entre a verdade da ciência e a verdade da fé?

O caminho que aqui se nos apresenta é o de uma analogia de proporcionalidade,

na qual a vertente ontológica da verdade - o ser - e a sua vertente lógica - a linguagem -

tanto na ciência quanto na fé estejam entre si numa relação que nos permita estabelecer

entre ambos uma igualdade proporcional autorizando-nos a reconhecê-los na unidade

transcendental do ser como verdadeiro (verum = ens) e na unidade transcendental da

linguagem, correlativa ao ser, como sistema de símbolos (verum = ens = logos), passan-

do de um a outro numa igualdade (ou unidade) de proporção. O ser da physis está para a

linguagem simbólica da ciência assim como o ser do mistério está para a linguagem

simbólica da fé. Essa analogia supõe que a Palavra de Deus se revele a nós como pala-

vra humana e seja enunciada por nós num discurso humano, o que a submete aos condi-

cionamentos da nossa linguagem e da nossa lógica. É essa uma das conseqüências mais

profundas da lei da Encarnação, que está no centro do mistério cristão e que Paulo e-

nunciou de maneira tão enérgica no célebre texto da Carta aos Filipenses (Fil, 2, 6-9).

Evidentemente a aceitação dessa analogia supõe que o evento da fé tenha tido lugar na

inteligência e na liberdade daquele que acolhe a Palavra, pois a linguagem da fé não é a

denotação de uma evidência nem um discurso de demonstração, mas um anúncio e um

apelo. Mas, uma vez suposto esse evento, o que crê não tem nenhuma razão de opor ou

mesmo de separar em registros incomunicáveis de verdade, a verdade da fé e a verdade

da ciência. Nenhuma contradição pode substituir entre as duas linguagens, sob pena de

uma ruptura irremediável do horizonte do ser ao qual se ordena a inteligência, e do salto

irracional da fé na escuridão do absurdo. Convém lembrar, no entanto, que a analogia de

proporcionalidade não exclui, ao contrário, implica uma relação secundum prius et pos-

terius entre seus termos, ou seja, uma relação de anterioridade ontológica de um termo

com respeito ao outro, sob pena da predicação analógica permanecer num horizontalis-

mo que retorna, de certo modo à univocidade (Ver A. de Muralt, Néoplatonisme et aris-

tot;elisme dans la métaphysique médiévale, Paris, Vrin, 1995, p. 42, n. 1). É claro, nesse

caso, que a verdade da fé, para o cristão, reivindica uma anterioridade ontológica com

relação à verdade da ciência, sendo a verdade divina princípio e medida transcendentes

de toda verdade.

Convém lembrar, finalmente, que a verdade da fé implica, no próprio assentimen-

to da inteligência e no consentimento da liberdade, sob a ação da graça, uma transfor-

mação existencial do sujeito, a abertura de um novo horizonte de vida. A verdade da fé

é, indissoluvelmente, verdade da contemplação e verdade da ação. É a mais alta forma

de uma verdade prática, uma vez que a sua enunciação como verdade da Palavra de

Deus é o bem maior da inteligência, que se comunica à liberdade como sua verdade e o

seu fim. Nessa perspectiva alguma analogia poderia também ser estabelecida entre a

dimensão prática da fé e o caráter intrinsecamente operativo da verdade científica que se

traduz modernamente no imenso processo histórico de transformação técnica do mundo.

Mas a comparação deve ser extremamente cautelosa e não pode ter lugar no mesmo

plano epistemológico, pois aqui os tênues traços da semelhança são envolvidos por uma

máxima dissemelhança: de um lado temos a transformação do sentido mais profundo da

vida humana por uma operação de natureza teândrica na qual a ação da graça divina é

soberana; de outro o projeto fáustico do home de transformar a natureza - e a si mesmo -

segundo o seus desígnios de realização terrena do seu bem humano. Subsiste, no entan-

to, a analogia, pois tudo o que procede genuinamente do homem revela um traço da

imagem e semelhança divinas, nele impressa na criação. Depois da Gaudium et Spes o

olhar cristão sobre a imensa aventura técnica da humanidade, sem se deixar levar por

um otimismo ingênuo, é um olhar que poderíamos reconhecer como teolhardiano: a

ciência e a técnica aparecem aos olhos da fé como o pressentimento e o anelo daquela

liberdade e glória de que fala São Paulo (Rm, 8, 18-23), que os filhos de Deus partilha-

rão um dia com toda a criação. Nessa perspectiva escatológica ciência e fé podem i-

gualmente encontrar-se e é talvez aí que irá revelar-se a sua convergência mais profun-

da, na unidade concreta do único desígnio divino, traçando para o universo e sua evolu-

ção, e para a humanidade e sua história o caminho que leva à plenitude final do Deus

tudo em todos (1 Cor, 15,28).

FÉ E CIÊNCIA - DUAS LINGUAGENS PARA UMA VERDADE

Prof. Geraldo Monteiro Sigaud

Como podemos entender a Ciência como uma "linguagem para a Verdade"? O que

é "verdade científica"? O que é a "Verdade"?

É claro que nenhuma destas questões é nova ou original, mas, nem por isso, são

elas fáceis de responder. De fato, à última delas, por exemplo, talvez somente Um tenha

tido a resposta... Mesmo assim, quando perguntado diretamente, preferiu calar-se, guar-

dando-a para Si. Entretanto, tentarei, aqui, indicar algumas respostas possíveis às duas

primeiras, ou, pelo menos, como a Ciência tem evoluído no sentido de buscar tais res-

postas ao longo da sua história, e o que eu considero serem as principais dúvidas e ten-

dências atuais.

O objetivo primordial da Ciência - na verdade, talvez seu único objetivo - é a bus-

ca de compreensão da Natureza. Esta compreensão - ou conhecimento da Natureza - é

considerada satisfatória quando se descobrem, em meio à diversidade de fenômenos

observados, certas regularidades, certos padrões de comportamento. Estas regularidades

são por nós chamadas de Leis da Natureza. O que é extraordinariamente nisto é que, em

primeiro lugar, estas regularidades existiam e, segundo, que nós tenhamos sido capazes

de descobrir pelo menos algumas delas, em meio à absolutamente fantástica complexi-

dade do mundo em que vivemos. E eu não estou falando da complexidade por nós in-

troduzida através do desenvolvimento tecnológico que nos deu esta parafernália de ob-

jetos que tornam nossa vida hoje mais confortável. Estou, sim, me referindo à Natureza

sem a intervenção dos seres humanos. Todos os fenômenos naturais que observamos

apresentam uma complexidade extraordinária, desde uma simples brisa até o mais forte

dos temporais, desde o movimento das asas de uma borboleta até o movimento das es-

trelas e galáxias. O fato de termos conseguido descobrir padrões ordenados e, muitas

vezes, universais de comportamento para grupos de fenômenos naturais aparentemente

tão desordenados e desconectados entre si é certamente motivo de satisfação, orgulho e

- por que não? - fé.

Gostaria, aqui, de enfatizar a observação como base fundamental de toda a Ciên-

cia. Por observação entendo eu não só a observação de fenômenos naturais que ocorrem

sem a intervenção direta do Homem, mas, também, principalmente nos últimos séculos,

aquela provocada por nós através da realização de experiências. É importante também

que não nos esqueçamos do caráter sensitivo embutido na atitude observacional. De

fato, a ampliação das possibilidades de observação, que tem, ao longo dos séculos, po-

ermitindo um número cada vez mais de novas descobertas e, conseqüentemente,m ser-

vido de base experimental para o desenvolvimento de novas teorias científicas, cada vez

mais abrangentes, nada mais é do que uma extensão dos nossos sentidos naturais: teles-

cópios, microscópios, detectores de radiação, de partículas, etc. Em paralelo, é claro,

com a disponibilidade cada vez maior de aparatos e equipamentos provocadores de fe-

nômenos novos de forma tão sistemática e repetitiva quanto for necessário, tais como,

aceleradores de partículas, simuladores, novos materiais, novos produtos químicos e

biológicos, etc. A lista é infindável.

Mas, nesta busca pelo conhecimento, não basta observar os fenômenos, sejam eles

naturais ou provocados. É absolutamente necessário que o que foi observado, natural ou

sistematicamente, seja sintetizado de alguma forma em regras gerais, ou teorias. Este

tem sido, em última análise, o papel de quem tem trabalhado em Ciência ao longo des-

tes 2500 anos desde a Grécia Antiga. Entretanto, este trabalho de síntese do já-

observado tem, em toda a História da Ciência, sofrido alguns cortes fundamentais, reali-

zados por cientistas de gênio, que conseguiram, a partir de teorias existentes, muitas

vezes sobre assuntos aparentemente desconectados entre si, dar passos gigantescos em

direção ao novo, revolucionando não só a Ciência como, também, as próprias idéias da

Humanidade. Tratarei, agora, brevemente de alguns destes cientistas, todos, à exceção

do primeiro, ligados à Física. Esta aparente restrição - pela qual peço desde já desculpas

- reflete principalmente uma espécie de deformação profissional minha, apesar de con-

siderá-los - e suas idéias - como causadores de algumas dentre as mais profundas revo-

luções do Espírito Humano em sua procura incessante da Verdade.

Antes disto, porém, gostaria de ressaltar que é preciso não esquecer que nenhum

dos cortes fundamentais ocorridos na Ciência partiram do nada. A Ciência é construída

sobre bases desenvolvidas anteriores, cada nova teoria, mesmo revolucionária, abran-

gendo as anteriormente aceitas. Como afirma Thomas Kuhn: "teorias obsoletas não são

acientíficas em princípio, simplesmente porque foram descartadas" (Thomas Kuhn, A

Estrutura das Revoluções Científicas, Coleção Debates. Ed. Perspectiva, 3ª edição,

1995). Este conceito de cumulatividade da Ciência é de fundamental importância; a

rigor, são mais importantes para nossa perspectiva atual as contribuições permanentes

de uma ciência desenvolvida anteriormente a nós, do que tratar restringi-las à sua época,

mesmo respeitando-se sua integridade histórica.

Costuma-se localizar o início da moderna busca da verdade científica em Galileu e

a introdução do método científico. Não há nenhuma dúvida que Galileu foi o grande pai

da Ciência como a conhecemos - e fazemos - hoje e, obviamente, voltaremos a ele mais

adiante, Entretanto, eu gostaria de pular no tempo cerca de 2000 anos para trás de Gali-

leu e discutir brevemente aquele que talvez tenha sido o primeiro corte na tentativa de

compreensão da Natureza. Sim, porque foi na Grécia Antiga, principalmente com Aris-

tóteles, que o que nós conhecemos hoje como Ciência deu seus primeiros passos. A Fí-

sica nasceu na Grécia há 2500 anos e foi lá que se estabeleceu que a observação da Na-

tureza era o estágio inicial de qualquer tentativa para sua compreensão. Anaxágonas,

filósofo grego que viveu no século V a.C. e que talvez tenha sido dos primeiros a intro-

duzir a idéia de átomo como uma partícula básica da qual toda a matéria é constituída,

dizia "Eu nasci para poder contemplar as obras da Natureza". Nesta época, começou a

se desenvolver o que chamamos de Filosofia Natural, isto é, uma busca de compreensão

dos fenômenos naturais observados através da tentativa de descobrir leis naturais que

fossem eternas, sem ter de recorrer a explicações míticas. Provavelmente o maior de

todos os filósofos naturais gregos foi Aristóteles. Na verdade, ele foi o último dos gran-

des filósofos gregos e talvez o primeiro grande cientista, principalmente porque, além

de usar sua razão, ele se utilizou dos seus sentidos.

O aspecto fundamental da Filosofia Natural aristotélica é o conceito de que o Uni-

verso, o Cosmos, constitui um conjunto ordenado em que reina uma hierarquia determi-

nada e soberana, porém obviamente subjetiva. No Cosmos aristotélico, cada coisa, cada

objeto, cada ser tem o seu lugar próprio, o seu estado próprio. Se algo não estiver no seu

lugar natural, tenderá a voltar a este lugar por uma "potencialidade" que lhe é própria.

Esta "hierarquização" do Universo ligava a doutrina aristotélica irremediavelmente às

causas finais. Partindo desta premissa, Aristóteles construiu um monumento de Lógica

alicerçado no senso comum, que iria dominar, por mais de 2000 anos, o pensamento do

Mundo Ocidental. Este monumento ruiu porque não era levado em conta o papel fun-

damental da experiência na elaboração de uma teoria científica. Além disso, a doutrina

aristotélica, por sua própria natureza, era incapaz de prever fenômenos ainda não obser-

vados, sendo, portanto, estéril. Assim, Aristóteles possuía espírito científico, mas não

método científico. Entretanto, não podemos esquecer o legado que Aristóteles nos dei-

xou em sua síntese da filosofia natural grega: a curiosidade para a observação e o estudo

da Natureza, a convicção que esta Natureza é regida por leis universais, e a fé na capa-

cidade humana em buscar entender estas leis.

A obra de Aristóteles, praticamente esquecida no mundo ocidental durante boa

parte da Idade Média, permaneceu viva no mundo árabe e passou a ser difundida na

Europa por volta do ano 1200, principalmente na Espanha e no norte da Itália. Esta di-

fusão despertou mais uma vez o interesse pelo estudo das ciências naturais que, de uma

certa forma, tinha permanecido estagnado durante todo este tempo. E, além disso, trou-

xe novamente à tona a discussão sobre a relação entre a filosofia grega e a fé cristã, já

surgida com a "cristianização" das idéias de Platão por Santo Agostinho no século IV.

Tornou-se imperioso que a filosofia natural aristotélica fosse compatibilizada aos textos

bíblicos, principalmente no que se refere à Criação e à Cosmologia como um todo, Este

papel de "cristianização" de Aristóteles foi feito, como sabemos, por São Tomás de A-

quino, que teve o imenso mérito - entre outros, é claro - de ter conseguido a grande sín-

tese entre a fé e o conhecimento. Para São Tomás de Aquino, não há um paradoxo irre-

conciliável entre a filosofia, ou a razão, por um lado, e a revelação, ou a fé cristã, por

outro. Na verdade, para ele havia as "verdades de fé" como, por exemplo, que Jesus é

filho de Deus, e as "verdades naturais teológicas", que são as verdades a que podemos

chegar tanto pela fé cristã quanto pela nossa razão natural como, por exemplo, a da exis-

tência de Deus. São Tomás de Aquino acreditava, portanto, que dois caminhos levavam

a Deus: o da fé e revelação cristãs, e o da razão e dos sentidos, sendo o mais seguro,

obviamente, o da fé e da revelação, já que, muitas vezes, a razão pode ser enganosa.

Mas, no fundo, São Tomás de Aquino quis nos mostrar que só há uma verdade. Uma

parte da verdade podemos reconhecer através da razão e da observação; a outra nos foi

revelada por Deus através da Bíblia - estas duas partes se sobrepõe em muitas questões

como, por exemplo, a da existência de Deus. De fato, na sua hierarquização do Cosmos,

Aristóteles pressupunha a existência de um Deus, ou um Ser Supremo, ou uma "causa

primordial", que era responsável pelo "funcionamento" de todo o Cosmos, apesar de

não descrever este Deus. Aí, segundo São Tomas de Aquino, devemos seguir a Bíblia e

os ensinamentos de Jesus. Assim, a nossa razão nos permite reconhecer que para tudo

há uma "causa primordial"; como Deus se revela a nós pela Bíblia - "teologia revelada"

- e pela razão - "teologia natural" - há, segundo ele, dois caminhos para a Verdade, isto

é para Deus.

São Tomas de Aquino conseguiu, portanto, mostrar que, desde que conveniente-

mente interpretadas, a Cosmologia e a Física aristotélica não conflitavam com os prin-

cípios da doutrina cristã. Depois da publicação do seu grande monumento teológico, a

"Summa Theologica", a Igreja não só deixou de pôr em dúvida a ortodoxia aristotélica

como foi muito mais adiante aceitando sua Cosmologia como o modelo do Universo

criado por Deus e encorajado os estudos e a propagação pelo ensino de toda a obra de

Aristóteles.

Talvez seja importante, neste ponto, e antecipando um pouco o que vamos discutir

em instantes, notarmos que, com a queda da filosofia aristotélica no que se refere às

ciências naturais a partir principalmente de Galileu e Newton nos séculos XVI-XVII,

também os pensamentos de São Tomás de Aquino sobre a inexistência do paradoxo fé-

razão (isto é, dos "dois caminhos" para a Verdade) se tornaram quase que inaceitáveis

para grande parte da comunidade científica que se formou desde então. O resgate destas

idéias nos dias de hoje por parte desta mesma comunidade é um dos pontos que iremos

abordar mais adiante.

O método científico, como conhecemos e aplicamos hoje, teve sua sistematização

nos "Discursos sobre Duas Novas Ciências", escrito por Galileu, completado em 1636 e

publicado 2 anos depois. Nos "Discursos", Galileu deixa de lado todas as conotações

medievais e transforma o estudo dos fenômenos naturais numa investigação científica,

cujos passos resumidores a seguir. Em primeiro lugar, há a observação do fenômeno;

esta observação suscita geralmente uma pergunta, a qual caracteriza a existência de um

problema. Galileu teve a intuição, incrível para a época, de que tanto a pergunta quanto

a solução do problema devem ser elaboradas numa linguagem especial: a linguagem

matemática. É exatamente nisto que reside a chamada "Revolução Científica do Século

XVII". Ora, para que o fenômeno estudado possa ser tratado matematicamente, é neces-

sário reduzi-lo a um conjunto de parâmetros suscetíveis de medição"isto é chamado de

"construção do modelo". Este modelo deve obedecer, por decisão ou escolha do investi-

gador, a certas leis ou teorias preenxistentes que, se não existirem, serão substituídas

por certas hipóteses de trabalho. As leis ou hipóteses impostas ao modelo levam a certas

deduções analíticas que fornecem uma resposta provisória à pergunta inicial e permitem

geralmente que se façam previsões verificáveis quanto às respostas a outras perguntas

porventura suscitadas pelo modelo, no decorrer da investigação. No entanto, por serem

as leis e hipóteses de trabalho imposições humanas feitas pelo investigador, resta ainda

saber se a Natureza "concorda" com a resposta encontrada. Só há um meio de sabê-lo:

voltar à experiência, isto é, intervir na Natureza. Somente a experiência permitirá deci-

dir se o modelo construído estava correto - isto é, se todos os parâmetros relevantes para

a pergunta feita foram incluídos - e, por outro lado, se as leis ou hipóteses de trabalho

impostas ao modelo estavam corretas. O grande mérito de Galileu foi ter entendido que

a chave do método científico estava precisamente na passagem do real inicial - a obser-

vação - para o real final - a experiência. Ele foi o grande artesão da libertação da Ciên-

cia das essências aristotélicas, da magia medieval e das qualidades ocultas, que por mais

de 2000 anos haviam impedido o seu desenvolvimento.

Não podemos esquecer que Galileu estendeu em muito o ato de observar, ao voltar

a recém-inventada luneta para o céu e fornecer as primeiras evidências observacionais

da validade do modelo heliocêntrico de Copérnico sobre o sistema geocêntrico de Aris-

tóteles. Mais importante, no entanto, do que a construção de uma nova cosmologia -

que, na verdade, não foi completada por Galileu e sim por Newton quase 80 anos depois

- foi o fato de que observações de fenômenos novos fizeram-no refutar completamente

uma "teoria" já existente, por ser esta absolutamente incoerente e incapaz de explicar

estes fatos novos. Esta atitude de "corte" caracteriza uma mudança profunda na maneira

de se estudar a natureza, sendo, como já vimos, a base do método científico que usamos

até hoje.

Com Newton, a Revolução Científica do século XVII atinge seu apogeu. Em me-

nos de 50 anos, o gênio de um homem consegue alcançar o que 2000 anos de esforços

tinham preparado: a formulação de uma teoria científica. Newton nos fornece o exem-

plo típico de um gênio que desabrochou e produziu com extraordinária fertilidade apoi-

ado nos "ombros dos gigantes" - conforme sua própria expressão - que o precederam,

como Copérnico, Kepler e sobretudo Galileu, como legou o seu método científico. Mas

o método científico, sem uma teoria para sustentá-lo e nutri-lo, era um esqueleto sem

substância. Os modelos construídos exigiam hipóteses de trabalho para serem capazes

de fazer previsões verificáveis experimentalmente. Newton foi o primeiro a encontrar

Leis que não só traduzem a regularidade do comportamento da Natureza em classes

isoladas de fenômenos mas que, descendo a um nível mais profundo de compreensão,

vão revelar esta regularidade em todos os fenômenos no caso, relacionados ao movi-

mento -, quaisquer que sejam a sua causa ou a sua origem. Podemos aqui, para ilustrar

este ponto, usar as palavras do próprio Newton nas "Regras a seguir para o Estudo da

Filosofia Natural", que constam do início do Livro III dos "Philosophiae Naturalis Prin-

cipia Mathematica" ou simplesmente os "Principia", sua obra máxima:

Regra 1: Não se devem admitir outras causas dos fenômenos naturais que as cau-

sas verdadeiras e suficientes para explicar os fenômenos.

Regra 2: os efeitos de mesma natureza devem ser sempre atribuídos à mesma cau-

sa, no que for possível.

Regra 3: As qualidades dos corpos, que não sejam suscetíveis de acréscimo ou de

decréscimo, e que pertençam a todos os corpos sobre os quais for possível experimentar,

devem ser considerados como pertencentes a todos os corpos em geral.

É importante lembrar que a separação entre fé e razão ainda não estava totalmente

manifesta, pelo menos para Galileu e Newton, apesar dos problemas - diferentes - p[elos

quais ambos passaram. Galileu, apesar de todas as divergências com a Igreja Católica da

época - que todos nós conhecemos e que só foram devidamente resolvidas há cerca de 4

anos -. era - e permaneceu - profundamente católico até sua morte. E mesmo Newton,

que por pouco não foi considerado herege antes de assumir sua cátedra no "College of

the Holy and Undivided Trinity" - hoje conhecido simplesmente como "Trinity College"

- em Cambridge (Newton era "arianista", isto é, não acreditava na Santíssima Trindade),

declara, no "Escólio Geral" que encerra os "Principia".

"Esse belíssimo sistema do Sol, dos planetas e dos cometas só poderia provir do

plano e da sabedoria de um Ser inteligente e poderoso (...) Esse Ser rege todas as coisas,

não como a alma do Universo, mas como o Senhor de todas as coisas; e, em virtude de

seu domínio, ele sói ser chamado de Senhor Deus, ou Senhor do Universo; (...) Ele não

é apenas virtualmente, mas também substancialmente onipresente, pois a virtude não

pode subsistir sem a substância. Nele estão contidas e se movem todas as coisas (...). É

isso o que eu tinha a dizer de Deus, e suas obras constituem o objeto do estudo da Filo-

sofia Natural (...).

A Mecânica Clássica desenvolvida por Newton eliminou qualquer referência ao

finalismo aristotélico, já que, dadas as leis de força que regem um dado sistema, os a-

contecimentos resultantes são uma conseqüência automática de condições iniciais men-

suráveis num dado instante. Assim, a Mecânica Clássica possibilitou um amplo esclare-

cimento das questões de causa e efeito. Sabemos como o progresso tremendamente

bem-sucedido da Mecânica, baseado nesta visão determinista e causal, causou uma pro-

funda impressão em toda a Ciência contemporânea, chegando-se a atitudes extremas,

como a expressa na famosa concepção de Laplace sobre uma máquina universal, na qual

todas as interações de seus componentes seriam regidas pelas leis da Mecânica. Desta

forma, uma inteligência que conhecesse as posições e velocidades destas partes, num

dado instante, poderia prever todos os acontecimentos subseqüentes do mundo, inclusi-

ve o comportamento dos animais e dos homens. Esta concepção mecanicista da Nature-

za tornou-se um ideal de explicação científica em todos os campos do conhecimento,

independentemente do modo de obtenção do conhecimento. Além disso, o desenvolvi-

mento desta concepção foi uma - senão a mais - importante das causas do verdadeiro

cisma entre Religião e Ciência ocorrido a partir do Renascimento europeu. Por um lado,

muitos fenômenos até então explicados pela intervenção da Província Divina foram

identificados como conseqüência de leis gerais e imutáveis da Natureza, Por outro lado,

os métodos e pontos de vista da Física eram, muitas vezes, bastante distintos da ênfase

nos valores e ideais humanos, essenciais à Religião. Assim, prevaleceu uma atitude de

distinção entre o conhecimento objetivo e a crença subjetiva.

Em seu campo de aplicação, a descrição objetiva apresentada pela Mecânica Clás-

sica aos fenômenos da vida cotidiana utiliza, entretanto, conceitos que transcendem em

muito suas idealizações básicas. Assim, o uso adequado das noções de espaço e tempo

absolutos, tão arraigados no nosso senso-comum e tão fundamentais para a formulação

da Mecânica Clássica, está intrinsecamente ligado à propagação instantânea da luz, que

nos permite localizar - observar - os corpos em nosso redor, independentemente de sua

velocidade, e dispor os acontecimentos numa seqüência temporal única. Mas a tentativa

de elaborar uma explicação coerente para os fenômenos eletromagnéticos e óticos, a

partir do enunciado das leis de Maxwell no final do século XIX, revelou que diferentes

observadores, movendo-se com grandes velocidades em relação uns aos outros, coorde-

nam os acontecimentos de maneiras distintas. Estes observadores não só podem ter vi-

sões diferentes das posições e formas de corpos rígidos, como também eventos separa-

dos no espaço, que talvez pareçam simultâneos a um observador, põem ser observados

por outro como ocorrendo em instantes diferentes.

O que inicialmente poderia parecer uma fonte de confusão e complicação - a sa-

ber, que a explicação dos fenômenos físicos depende do ponto de vista do observador -

revelou-se, na verdade, um guia inestimável para desvendar leis físicas gerais, comuns a

todos os observadores. Einstein conseguiu, preservando a noção do determinismo, mas

confiando apenas nas relações entre medidas não-ambíguas referentes a coincidências

de eventos, reformular e generalizar todo o edifício da Física Clássica (essencialmente a

Mecânica e o Eletromagnetismo Clássicos), além de conferir à nossa imagem do mundo

uma unidade que superou a todo o previsto.

Além destes problemas relativos à Mecânica e ao Eletromagnetismo Clássicos,

novos e insuspeitados aspectos do problema observacional foram revelados pelo estudo

da constituição atômica da matéria. Já mencionamos que vem da Antigüidade a idéia de

um limite para a divisibilidade dos corpos, que surgiu da necessidade de se explicar a

persistência de suas propriedades características apesar da diversidade dos fenômenos

naturais. Entretanto, até recentemente, as idéias atomistas foram consideradas mais co-

mo hipóteses do que modelos teóricos comprováveis, já que pareciam impossíveis de

serem confirmadas pela observação, tendo em vista a precariedade dos nossos sentidos e

dos instrumentos da época. No entanto, a teoria atômica foi ganhando corpo, não só

com o grande progresso da Física e da Química até o final do século XIX, como tam-

bém, no começo deste século, com o estudo de propriedades recém-descobertas da ma-

téria, como a radioatividade natural. O desenvolvimento de novos sistemas de detecção

permitiu identificar algumas características fundamentais da matéria, como o reconhe-

cimento do elétron como componente comum a todas as substâncias e a descoberta, por

Rutherford, do núcleo atômico, que guarda as propriedades essenciais dos elementos.

Embora muitas características fundamentais da matéria tenham sido explicadas

por uma imagem simples do átomo, desde logo ficou evidente que as idéias clássicas da

Mecânica e do Eletromagnetismo eram insuficientes para explicar a estabilidade obser-

vada das estruturas atômicas. Somente através do formalismo da Mecânica Quântica,

desenvolvido pelos esforços conjuntos de toda uma geração de físicos teóricos a partir

da descoberta do quantum universal da ação por Planck em 1901, é que se conseguiu

uma descrição detalhada de uma imensa quantidade de dados experimentais referentes

às propriedades físicas e químicas da matéria. Além disso, adaptando o formalismo às

exigências relativísticas, foi possível expandir os limites da Mecânica Quântica à des-

crição das propriedades das partículas elementares e dos núcleos atômicos. O formalis-

mo quântico não admite as interpretações pictóricas a que estamos acostumados no nos-

so cotidiano; ele tem por objetivo direto o de estabelecer entre as observações obtidas

em condições bem definidas. Como, num dado arranjo experimental, diferentes proces-

sos quânticos individuais podem ocorrer competitivamente, essas relações são de caráter

intrinsecamente probabilístico, e não determinístico como em toda a Física Clássica. O

Princípio da Incerteza de Heisenberg expressa esse caráter probabilístico através da a-

firmação de que, contrariamente ao estabelecido pala Física Clássica, é impossível me-

dir a posição e a velocidade (ou a energia e o tempo) de uma partícula com precisão

arbitrariamente grande. Neste contexto, fala-se às vezes em "perturbação dos fenômenos

pela observação". O reconhecimento de que a interação entre os instrumentos de medida

e os sistemas físicos investigados constitui uma parte integrante dos fenômenos quânti-

cos não só revelou uma limitação da concepção mecânica da Natureza, como também

nos forçou a prestar a devida atenção às condições de observação. Na verdade, a Mecâ-

nica Quântica como que elevou a observação a um novo status, no sentido de que temos

de admitir que não existe realidade sem observador.

Com isso, atingimos, a meu ver, o último grande corte na História das Ciências Fí-

sicas, que, como os anteriores, deixou marcas profundas na própria história do pensa-

mento humano. (E não se esqueçam que sequer mencionei aqueles ocorridos em outros

ramos da Ciência como a Biologia e a Química).

Mas, cabe, ainda as perguntas:

- Qual será o próximo grande corte?

- De onde virá este corte?

- O que este corte poderá nos trazer na nossa busca da verdade?

- Haverá, de fato, um novo grande corte?

É claro que eu não tenho as respostas para estas perguntas (e outras que possa ha-

ver, é claro), e que, de fato, são uma só. Mas, admitindo que ocorram descobertas que

levem à necessidade de introdução de um movo grande corte, podemos brevemente es-

pecular um pouco sobre ele e suas eventuais conseqüências. Até há muito pouco tempo,

era crença geral na Física que o objetivo final a ser atingido era a assim-chamada Teoria

da Grande Unificação, que, como o próprio nome indica, englobaria as quatro intera-

ções fundamentais da Natureza em uma só teoria. Muito esforço, tempo w dinheiro fo-

ram investidos nesta busca, através, principalmente, da construção de gigantescos acele-

radores de partículas e de enormes e sofisticados detectores e sistemas de aquisição e

análise de dados experimentais, para a realização de experiências reunindo milhares de

pesquisadores em diversas cooperações internacionais. Os progressos obtidos por meio

destes esforços inegáveis, não só no que se refere ao objetivo primário de se tentar en-

tender melhor a estrutura mais fundamental da matéria, mas também no que eles repre-

sentam como desenvolvimento tecnológico e de formação de pessoal altamente especia-

lizado e capaz. Por exemplo, uma das conseqüências destes esforços que está se tornan-

do cada vez mais popular e corriqueira no nosso cotidiano é a rede internacional de in-

formações - a INTERNET -, que foi desenvolvida inicialmente com o objetivo de tornar

mais rápida e eficiente a troca de informações entre os cientistas envolvidos nestes pro-

jetos. Apesar disto tudo, eu vejo que este caminho está se tornando cada vez mais estéril

no sentido de fornecer os requisitos para um novo grande corte.

Por outro lado, os últimos anos têm visto uma verdadeira explosão de interesse no

estudo da origem do Universo, principalmente depois da entrada em operação efetiva do

telescópio espacial Hubble, que tem enviado informações sobre o Universo impressio-

nantemente livres de interferência. É importante ressaltar que, depois de uma intensa

investigação teórica sobre a Cosmologia a partir da Teoria da Relatividade Geral de

Eintein, houve um certo declínio de interesse, não só pelas grandes dificuldades formais

da teoria, como também pelas restrições na observação do Universo impostas pela at-

mosfera terrestre, mesmo após o desenvolvimento dos rádios-telescópios. Entretanto, a

possibilidade de obter informações a partir de observações muito mais "limpas" e, além

disso, a disponibilidade quase simultânea destas informações para cientistas no mundo

inteiro tornam este um campo muito rico de investigações. Ademais, por trás desta ex-

plosão de interesse está aquela que talvez seja a pergunta mais fundamental da Humani-

dade: De onde veio o Universo? ou, em última análise De onde viemos? e que, na minha

opinião, é bem mais atraente e instigante do que perguntar De que é feita a matéria? Ou

De que somos feitos?

E isto nos remete de volta à questão da separação histórica entre Fé e Razão. Na

verdade, muitos dos físicos que estabeleceram as bases da Física Moderna admitiam e,

mais, acreditavam na existência de Deus, como, por exemplo, Einstein, Pauli e Heisen-

berg. Mais recentemente, alguns físicos como Willem Drees, físico e teólogo holandês,

têm buscado estabelecer as bases da assim-chamada hipótese teológica. Esta hipótese

argumenta que o século XX foi tão cheio de sucessos científicos, em que, como esboça-

do aqui, a Física revelou grande parte dos segredos da matéria e das leis naturais, que se

pode discutir a questão Deus existe e está na origem das coisas? sem escorregar para o

misticismo e as superstições. Por exemplo, a conseqüência do Princípio da Incerteza,

básico de Mecânica Quântica, de que não há realidade independente do observador, leva

naturalmente à pergunta Quem foi o observador do Universo antes da existência do

Homem? A isso, responde Drees: O grande observador, medidor e, em última análise,

criador do universo foi Deus (...) que precedeu o nascimento das leis naturais e certa-

mente vai sobreviver a elas.

Assim, gostaria de encerrar esta participação, em primeiro lugar, renovando meu

pedido inicial de desculpas, por ter falado de temas tão gerais referindo-me quase que

exclusivamente ao campo das Ciências Físicas. Em segundo lugar, eu espero ter deixa-

do claro que a inexistência de incompatibilidade entre Fé e Razão como caminhos para

a Verdade é um tema em discussão hoje em pelo menos uma boa parte da comunidade

científica.