Faulkner - Luz Em Agosto

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Eu teria feito o mesmo que o irmo. O pai tambm teria feito o mesmo. Ela no tem me, porque o sangue paterno odeia com amor e orgulho, mas o sangue materno com dio ama e coabita. 25

Porque, viesse de onde viesse e onde quer que tivesse estado, compreendia-se logo que vivia do campo, como um gafanhoto. era como se o fizesse h tanto tempo que se convertera numa coisa esparsa e difusa, e como se nada mais lhe tivesse ficado seno a casca transparente e leve, empurrada no olvido e sem rumo por qualquer vento que quisesse soprar.34

Assim era: os descendentes de ambos os grupos no eram, em suas relaes mtuas, mais que fantasma entre os quais se erguia o espectro do antigo sangue derramado, do antigo horror, da velha ira, do velho medo. 42

porque a gente receia mais as dificuldades que poder encontrar do que as que j encontrou. Antes de arriscar-se a mudar, apega-se dificuldade anterior, conhecida. Sim. Fala-se em escapar dos vivos, mas so os mortos que nos prejudicam. dos mortos que no podemos escapar, dos mortos que esto quietos no seu lugar e que no tentam agarrar-nos. 64-65

a rua, sempre sossegada, quela hora estava deserta. Ia dar na estao, passando pelo bairro negro de Freedman Town. s sete horas Christmas passara por gente brancos e negros a caminho da praa ou do cinema que s nove e meia faria o mesmo caminho de volta para casa. Mas a sesso de cinema ainda no terminara e ele tinha a rua inteira sua disposio. Prosseguiu, passando silenciosamente entre as casas de brancos, de lampio em lampio. As densas sombras das folhas dos carvalhos e dos ceres resvalavam pela sua camisa branca com pedaos de veludo negro. Nada h que tenha um ar to solitrio como um homem corpulento que segue sozinho por uma rua deserta. E conquanto Christmas no fosse nem corpulento nem alto, fosse como fosse, conseguia produzir maior impresso de solido do que um poste de telgrafo no meio do deserto. Na rua larga, erma, cheia de sombras, parecia um fantasma, um esprito perdido, extraviado do seu mundo prprio.Ento encontrou a si mesmo. Sem que ele desse por isso, a rua comeara a descer e, antes de o saber, Christmas encontrou-se em Freedman Town, envolto pelo cheiro estival e as vozes de vero de negros invisveis, que pareciam rode-lo como vozes sem corpo, murmurando, falando, rindo numa linguagem que no era a dele. Como que do fundo de um poo negro e espesso, viu-se cercado de formas vagas de cabanas, iluminadas a querosene, e parecia-lhe que os lampies das ruas estavam mais espaadas, como se a vida negra, a respirao negra integrassem a substncia do ar, e no somente as vozes mas tambm os corpos se movessem e a prpria luz se tornasse fluida e se acrescentasse, partcula junto a partcula, s partculas da noite j inseparvel e nica.Christmas estava agora imvel, respirando com dificuldade, olhando ora para um lado ora para outro. Em torno dele, as formas negras das cabanas se destacavam na escurido luz das frouxas e sufocantes lmpadas de querosene. De todos os lados, e at dentro dele, murmuravam as vozes sem corpo, suaves e fecundas, das negras. Era como se ele e toda a vida em forma humana que o rodeava tivessem voltado fmea ancestral, ardente, escura e mida. Comeou a correr em direo ao lampio mais prximo, com os olhos e os dentes brilhando, o hlito frio sobre os dentes e os lbios. Ao p da lmpada corria um beco estreito e cheio de sulcos, subindo paralelo a uma rua, dando voltas, saindo da cavidade negra. Christmas meteu-se pelo beco, correndo pela subida ngreme, com o corao a martelar, e entrou na rua superior. Parou ofegante, com o olhar feroz, o corao aos saltos, como se no pudesse acreditar ou no acreditasse ainda que o ar era agora o frio e rude ar dos brancos. 96-97

do alto via a cidade, o resplendor, uma por uma as luzes da praa de onde irradiavam as ruas. Via a rua pela qual viera e a outra rua, aquela que o havia quase trado; e mais adiante, em ngulo reto, a massa longnqua e brilhante da prpria cidade. No vrtice do ngulo ficava o poo negro do qual fugira com os beios reluzentes e o corao batendo. Dali no vinha nenhuma luz, nenhuma respirao, nenhum cheiro. L estava ele, negro e impenetrvel, com a sua grinalda de luzes trmulas de agosto. Dir-se-ia a pedreira primitiva, o prprio abismo. 98

a memria acredita antes que o conhecimento recorde. Acredita mais do que recorda, mais do que o conhecimento pode imaginar. Conhece, recorda, acredita num corredor metido num grande edifcio truncado, frio e cheio de ecos, construdo de tijolo vermelho escuro, tisnado por mais chamins do que as suas prprias, situado entre fbricas fumarentas, num recinto sem ervas e coberto de cinza, rodeado, como se fosse uma penitenciria ou um jardim zoolgico, por uma cerca de ferro e arame de trs metros de altura, onde, em ondas intermitentes, trajando uniformes azuis do mesmo pano, num pipilar de pardais os rfos entram e saem; entram na recordao e saem, mas no conhecimento permanecem to constante como as paredes lgubres, as lgubres janelas onde, sobre a fuligem das chamins, cujo nmero aumenta todos os anos, a chuva traa riscos que parecem lgrimas negras. 100

ento o menino compreendeu que ela se fora de vez, atravessara o porto de ferro e a cerca de arame. Parecia-lhe que a via ento, fazendo-se herica no momento de desaparecer para l do porto que se fechava com estrondo, desaparecendo sem diminuir de tamanho, numa coisa annima e esplndida como um pr-do-sol. Somente mais de um ano depois veio a saber que ela no era a primeira nem seria a ltima. Outros, alm de Alice, haviam desaparecido atrs do porto ruidoso, com um vestido novo, ou um macaco novo, ou levando s vezes uma trouxinha menor que uma caixa de sapatos. Pensava que era isso que lhe acontecia gora. Julgava saber afinal como era que todos eles podiam desaparecer sem deixar vestgios. Pensava que os haviam carregado, como ele era carregado agora, nas horas mortas da noite. 115

naquela noite, quando foi para a cama, estava resolvido a ir embora. Sentia-se como uma guia; duro, presunoso, sem remorso, forte. Mas isso passou, embora ento no soubesse que, como a guia, a sua prpria carne bem como todo o espao era ainda uma gaiola. 133

'nem ao menos sei o que lhe dizem', pensava Joe. No sei nem mesmo se o que lhe dizem algo que os homens no diriam a um menino que passa. No sei ainda se no momento do sono a plpebra, caindo, enclausura dentro do olho aquele rosto modesto, trgico, triste e jovem, colorido com a magia vaga e imprecisa do desejo jovem. 146

mas ele e os outros falavam de pequenas. Talvez algum deles (o que havia arranjado o caso da negra naquela tarde) estivesse informado. 'todas querem', disse ele aos outros, 'mas s vezes no podem'. Os outros no sabiam disso. No sabiam que todas as pequenas queriam; muito menos sabiam que havia ocasies em que elas no podiam. Pensavam de modo diferente. Mas admitir que no sabiam do ltimo fato seria confessar que no haviam descoberto o primeiro. Por isso prestavam ateno ao que o outro lhes contava. ()mas pintou um quadro fsico, real, suscetvel de ser percebido pelo sentido do olfato e at mesmo pela vista. Isso lhes fez impresso: a irremediabilidade temporria e abjeta daquilo que tantalizava e frustava o desejo; a forma superior e branda na qual a violao se via constrangida, a intervalos fixos e inelutveis, a ser vtima de uma imundcie peridica. 152

Pensava que tratava de fugir da solido e no de si mesmo. Mas a rua continuava a correr: como um gato, todos os lugares era iguais para ele. No entanto, em nenhum deles Joe podia ficar quieto. Porm a rua, sempre deserta, continuava a correr com as suas mudanas de carter e as suas fases. Joe podia ver a si mesmo em numerosos avatares, em silncio, condenado a mover-se, impelido pela coragem do desespero enfraquecido e esporeado; pelo desespero da coragem cujas oportunidades tinham de ser enfraquecidas e esporeadas. Tinha trinta e trs anos. 185

j comi antes em alguma parte. Dentro de um minuto a memria comeava a estalar, a saber. Vejo mais do que ouo; vejo minha cabea inclinada, ouo a voz montona e dogmtica que, parece-me, no cessar nunca, e, ao escutar, vejo a indmita cabea inclinada e penso: como possvel que tenha essa falta de apetite e gosto, e minha boca e minha lngua choram o sal ardente da espera e meus olhos sentem o sabor do bafo ardente do prato! 188

' como todas as outras. Tenham dezessete ou ou quarenta e sete anos, quando chega o momento de se entregarem de todo, o fazem com palavras' 197

lembre-se disso. Seu av e seu irmo jazem aqui, assassinados no por um branco mas pela maldio que Deus lanou sobre toda uma raa antes que algum sequer pensasse em seu av, em mim ou em voc. Sobre uma raa maldita e condenada para sempre a ser parte da condenao da raa branca e da maldio por seus pecados. Lembre-se. Sua condenao e sua maldio. Para sempre, eternamente. A minha, a de sua me, a sua, ainda que seja uma criana. A maldio de toda criana branca, nascida e por nascer. Ningum escapar a ela.' perguntei-lhe: 'nem mesmo eu?' e ele me respondeu: 'no. Nem mesmo voc. Voc menos que ningum'. eu via negros e conhecia-os desde que tivera uso da razo. Olhava para eles com a mesma indiferena com que olhava a chuva, os mveis da casa, a comida ou o sono. Mas desde ento passei a v-los pela primeira vez no como pessoas mas como uma coisa, uma sombra na qual eu vivia, na qual vivamos ns, os brancos, e todos os outros. Pensei que as crianas brancas chegavam constantemente ao mundo sob a sombra negra que caa sobre elas antes que pudessem respirar pela primeira vez. E parecia-me ver a sombra negra na forma de uma cruz. E parecia-me que via as crianas brancas forcejando, antes ainda de respirar pela primeira vez, por escapar sombra que no somente estava sobre elas mas tambm debaixo delas, estendendo-se, como elas estendiam os braos, tal como se os tivessem cravados na cruz. Vi as crianas brancas que nasceriam na terra, as que ainda no tinham nascido uma longa fileira delas com os braos estendidos em cruzes negras. 207

a princpio fora uma torrente; agora era como uma mar que subia e baixava. Na preamar Miss Burden podia zombar de si mesma e de Christmas. A coisa passou-se como se, de saber que se tratava de uma mar que havia de reagir bem depressa, nascesse uma fria mais selvagem, uma negao feroz que podia forar a si mesma e forar Christmas a uma experincia fsica, que transcendia o imaginvel, transportando-os, ainda que apenas por um momento, arrastando-os sem vontade e sem plano. Era como se ela soubesse de certo modo que o tempo era breve e que o outono a ameaava, sem saber contudo a significao exata de outono. Parecia ser unicamente instinto: instinto fsico e negao instintiva dos anos perdidos. Depois a mar baixava. E ficavam abandonados, como detrs de um mistral que se fosse extinguindo sobre uma praia esgotada e saciada, olhando um para o outro como estranhos, com os olhos desesperanados e cheios de censura da parte dele, denotando fadiga; da parte dela, desespero. Mas a sombra do outono caa sobre ela. 215