Fast-foods: a nostalgia de uma estrutura...

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Texto publicado em Horizontes Antropológicos - Comida, vol 4 pp:94-103, 1996. Fast-foods: a nostalgia de uma estrutura perdida Carmen Sílvia de Moraes Rial (UFSC) [email protected] A maior causa do sucesso das cadeias de fast-food é a importância atribuída a imagem 1 , de tal modo que pode-se dizer que o consumidor num fast-food come signos de um modo de vida - moderno, americano - mais do que alimentos. Como nunca antes, os fast-foods 2 apostaram na força das imagens visuais: foram os primeiros restaurantes a anunciarem em publicidade e estão entre os maiores anunciantes, o McDonald's sendo a empresa que mais investe em publicidade no mundo. Para além das imagens de marca disseminadas pela publicidade em suportes tradicionais como a televisão e o cinema, os out-doors, revistas e jornais e até o rádio, os fast-foods inovaram também na introdução da publicidade em suportes anteriormente neutros, como o cardápio e a toalha de mesa. O cardápio deixou de ser predominantemente escrito como nos restaurantes ocidentais tradicionais e passou a ser iconográfico, representando os itens oferecidos através de fotografias. E a toalha deixou de ser de tecido branco, neutro, reminiscência das imposições higienistas do passado, para tornar-se uma peça publicitária, uma folha de papel com uma mensagem, no mais das vezes a foto de um hamburguer e ou dos diferentes itens oferecidos na loja. Também nesses casos, é uma cultura visual que é valorizada. Come-se o hamburguer verdadeiro olhando-se para sua imagem fotografica: maior, mais colorida e mais apetitosa do que o hamburguer real. Isso é central na compreensão dos fast-foods como um fenômeno de alcance global, que ultrapassa com facilidade as fronteiras linguísticas. Porém, como já tratei da importância da imagem em outros artigos, gostaria de aqui apontar algumas outras especificidades dos fast-foods, especialmente no que concerne a sua culinária. Apesar de passar a idéia de restaurante democrático, onde todos comem "a mesma coisa", as ocorrências alimentares 3 e as representações dos restaurantes fast- foods junto aos usuários diferem enormemente em função do capital cultural, da classe de idade, do capital econômico e do país de origem do grupo interrogado. Uma das acusações mais freqüentes e presente tanto entre os usuários quanto entre os não-usuários desses restaurantes é a que os fast-foods estariam acabando com a comida, que o que serve-se ali é lanche. Ouvi isso no Brasil como na França, uma 1 Por imagem entendo aqui toda uma gama de signos pictórios, iconográficos, publicitários, decorativos etc. Ver meu artigo "A globalização publicitária: o exemplo dos fast-fooods in Revista Brasileira de Comunicação - Intercom-Finep v.XVI n.2, jul/dez 1993, pp.134/143. 2 Por fast-foods estarei designando aqui os restaurantes que tem como item principal no seu cardápio o

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Texto publicado em Horizontes Antropológicos - Comida, vol 4 pp:94-103, 1996.

Fast-foods: a nostalgia de uma estrutura perdida

Carmen Sílvia de Moraes Rial (UFSC)

[email protected]

A maior causa do sucesso das cadeias de fast-food é a importância atribuída a imagem1, de tal modo que pode-se dizer que o consumidor num fast-food come signos de um modo de vida - moderno, americano - mais do que alimentos. Como nunca antes, os fast-foods2 apostaram na força das imagens visuais: foram os primeiros restaurantes a anunciarem em publicidade e estão entre os maiores anunciantes, o McDonald's sendo a empresa que mais investe em publicidade no mundo. Para além das imagens de marca disseminadas pela publicidade em suportes tradicionais como a televisão e o cinema, os out-doors, revistas e jornais e até o rádio, os fast-foods inovaram também na introdução da publicidade em suportes anteriormente neutros, como o cardápio e a toalha de mesa. O cardápio deixou de ser predominantemente escrito como nos restaurantes ocidentais tradicionais e passou a ser iconográfico, representando os itens oferecidos através de fotografias. E a toalha deixou de ser de tecido branco, neutro, reminiscência das imposições higienistas do passado, para tornar-se uma peça publicitária, uma folha de papel com uma mensagem, no mais das vezes a foto de um hamburguer e ou dos diferentes itens oferecidos na loja. Também nesses casos, é uma cultura visual que é valorizada. Come-se o hamburguer verdadeiro olhando-se para sua imagem fotografica: maior, mais colorida e mais apetitosa do que o hamburguer real. Isso é central na compreensão dos fast-foods como um fenômeno de alcance global, que ultrapassa com facilidade as fronteiras linguísticas. Porém, como já tratei da importância da imagem em outros artigos, gostaria de aqui apontar algumas outras especificidades dos fast-foods, especialmente no que concerne a sua culinária.

Apesar de passar a idéia de restaurante democrático, onde todos comem "a mesma coisa", as ocorrências alimentares3 e as representações dos restaurantes fast-foods junto aos usuários diferem enormemente em função do capital cultural, da classe de idade, do capital econômico e do país de origem do grupo interrogado. Uma das acusações mais freqüentes e presente tanto entre os usuários quanto entre os não-usuários desses restaurantes é a que os fast-foods estariam acabando com a comida, que o que serve-se ali é lanche. Ouvi isso no Brasil como na França, uma 1Porimagementendoaquitodaumagamadesignospictórios,iconográficos,publicitários,decorativosetc.Vermeuartigo"Aglobalizaçãopublicitária:oexemplodosfast-fooodsinRevistaBrasileiradeComunicação-Intercom-Finepv.XVIn.2,jul/dez1993,pp.134/143.2Porfast-foodsestareidesignandoaquiosrestaurantesquetemcomoitemprincipalnoseucardápioohamburguer,sãoorganizadosemgrandescadeiasatravésdeumsistemadefranquiaseempregamemsuascozinhastécnicastayloristasefordistasdetrabalho.3Por"ocorrênciaalimentar","contatoalimentar"ou"tomadaalimentar"estoudesignandotodaingestãodealimento,estrutruadaounão.

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queixa que, as vezes, se associa a qualidade do alimento ("não têm aquele gostinho de comida caseira"; "enche mas não alimenta"); as vezes ao tempo ("aqui não se come, se devora") ou ao espaço ("a gente entra aqui com a cabeça vazia e sai com a cabeça vazia"). Fala-se do "fim da alimentação sadia", "o fim das refeições equilibradas” e o início do "reino dos lanches", ou, de modo mais simplificado, condena-se a substituição da refeição pelo snack4.

Essa desconfiança não se dirige apenas aos fast-foods mas a alimentação moderna/contemporânea de modo geral, responsável por significativas alterações no modo alimentar das populações urbanas dos países do primeiro mundo, lugares preferenciais de instalação desses restaurantes. No passado, a alimentação era fortemente determinada geograficamente (por exemplo, produtos regionais dificilmente encontráveis em outros lugares), temporalmente (produtos de estações do ano) e simbolicamente (imperativos religiosos que determinavam tabus alimentares). As ocorrências alimentares serviam para pontuar a jornada, interrompendo o trabalho e instaurando uma atmosfera de sociabilidade, freqüentemente familiar. A comida permitia a divisão entre momentos quotidianos e momentos excepcionais, festivos; a qualidade e quantidade de alimentos assinalando a diferença. Hoje, pelo menos para a parcela da humanidade que habita os países ocidentais modernos, essas limitações já não existem. Estamos longe dos imperativos sazonais e religiosos que limitavam o leque de opções e a multiplicação dos contatos alimentares se fez acompanhar das opções colocadas a nossa disposição.

Assistimos a uma ampliação da variedade de produtos e da possibilidade de encontra-los em lugares muito distantes de sua origem e em qualquer período do ano. Por outro lado, a dualidade simples trabalho-repouso parece ultrapassada no mundo moderno. A atividade domina; a refeição já não fraciona a jornada: come-se trabalhando (o business-lunch dos americanos), come-se lendo ou escrevendo, assiste-se a televisão comendo. O número de vezes em que se absorve alimentos ultrapassa de longe o número de refeições de outrora. No entanto, essas mudanças nas práticas alimentares não foram acompanhadas, na mesma velocidade, por mudanças na percepção dessas práticas. Em minha pesquisa como em outras pesquisas sobre hábitos alimentares, boa parte das pessoas interrogadas declararam manter as três refeições principais e, muitos, não ter alterado suas usanças. O que me leva a dar razão a Fischler quando afirma que "os comedores modernos continuam pensando que fazem três refeições por dia, um pouco como os amputados que sentem por um longo tempo o seu braço ou perna perdidos, como um membro fantasma".

4Mantenhoaquiapalavrasnackcomotermogenéricoparaoconjuntodenoçõesqueanalisoaseguir,taiscomo"lanche","merenda",emportuguês;"encas","colation',"trounormand"etc.emfrancês,que,emboradefinamocorrênciasalimentaresdistintasquantoanaturezadoalimentooudasituaçãoemqueserealiza,apresentamumacaracterísticaemcomum:todasseopõeà"refeição".

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É claro que as tomadas alimentares efetivamente realizadas por um indivíduo não engloba a gama enorme de produtos que se encontram a sua disposição no mercado. Em princípio o indivíduo das sociedades modernas pode escolher um alimento do mesmo modo que escolhe uma vestimenta. Cada grupo, tendo em conta as disponibilidades econômicas e o estilo de vida, compõe um conjunto de produtos para o seu consumo. Mais do que nunca, parecem apropriadas as palavras de Barthes: "Alimentar-se é um comportamento que se desenvolve para além de seu próprio fim, que substitui, resume ou assinala outros comportamentos e é nisso que ele é um signo5. Há alimentos que se adaptam a atividades, a momentos, a estilos de vida, de sorte que se pode hoje falar em uma verdadeira polissemia da comida. Esta situação foi em parte criada pelo discurso publicitário que contribui na construção de diferentes imaginários para diferentes alimentos; as atividades são atribuídos expressões alimentares próprias de modo que o esporte, a festa, o lazer ou mesmo o trabalho tem seus alimentos, esses constituindo, como quer Barthes, diferentes campos nocionais.

* O campo nocional do snack: desestruturação, comer primitivo e infantil

Qual o campo nocional dos snacks, os alimentos servidos nos fast-foods? Michael Nicod6 fornece elementos úteis para uma definição mais precisa do snack que serve a nosso propósito de entender as declarações dos usuários dessas redes. Segundo ele, toda circunstância onde alimentos são absorvidos pode ser denominada ocorrência alimentar. Ele distingue dois tipos: a primeira é uma ocorrência estruturada, ou seja, organizada segundo regras prescrevendo a duração, o lugar, a sucessão de ações que a compõem e um revezamento em relação a uma outra atividade; a segunda é uma ocorrência alimentar não estruturada na qual a tomada do alimento se efetua sem ritual. Se consumimos alimentos no quadro de uma ocorrência estruturada, teremos uma refeição, que se distingue do snack que é uma ocorrência alimentar não estruturada ao longo da qual podem ser servidas um ou vários pratos independentes um dos outros, sem que tenha sido previsto o lugar ou os horários do seu consumo. O snack pode se compor somente de uma bebida (uma refrigerante, um milk-shake, um cafezinho), de um prato salgado (batatas fritas, um hamburguer ), de um prato doce (uma torta de mação, um sorvete) ou ainda de uma combinação desses vários elementos. Ao contrário, a refeição não dispõe de componentes independentes; ela obedece a regras estritas quanto ao modo de casa-los entre si, a sua sucessão no tempo e também no que diz respeito ao arranjo do lugar (a mesa, a toalha de mesa, os talheres) e a composição do grupo de convidados (a família, os amigos, os colegas de trabalho). Segundo esta definição, a refeição constituiria assim uma ocorrência

5Cf.Barthes,R."Pourunepsycho-sociologiedel'alimentationcontemporaine"emAnnales,n.5,1961.6Nicod,M."AMethodofElicitingtheSocialMeaningofFood.ReporttotheDepartmentofHealthandSocialSecurity",1974.citadoporDouglas,M."Lesstructuresduculinaire"emCommunicationsn.31,1979:153.

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alimentar a horas fixas, representando uma seqüência de pratos e presumindo uma certa socialização.

O horário, a composição, a seqüência dos pratos são elementos que variam evidentemente de uma cultura a outra. Em certos países, a diferença entre uma colação e uma refeição se restringe a presença ou ausência de alguns pratos, especialmente de um alimento de base: é assim no Japão onde, sem arroz, a refeição não é considerada uma verdadeira refeição ou ainda no sul da Índia onde o pão se mantém como fundamental. "O pão integral e uma cebola crua constituem uma refeição mas a associação de um cozido com legumes é apenas um snack"7. A presença de carne, em muitas culturas, é um fator importante para que uma ocorrência alimentar seja considerada uma refeição. No entanto, até a temperatura pode se constituir em uma variável significativa nas definições dos limites do conceito de refeição. Na França, os pratos frios conseguiram afirmar seus status como refeição, depois de uma acirrada polêmica envolvendo a validade dos "tickets restaurante"8.

Uma outra distinção aplicável a díade snack-refeição também nos pode ser útil. Certos autores, influenciados pela bio-antropologia, aproximam o snack ao que chamam de "comer-vagabundo" ("vagabond-feeding") um tipo de comportamento que o etologista Biltz identificou entre os primatas, especialmente os babuinos quando em liberdade. Como o "vagabond-feeding", fazer um lanche significa para os homens comer "de maneira solitária, à intervalos irregulares, menos espaçados, por pequenas quantidades, ao azar da sua errância"9. O vagabond-feeding é julgado mais arcaico que o comensalismo observado entre outros animais, que consiste em tomadas alimentares feitas em grupo, obedecendo a uma determinada ordem onde o mais forte tem direito as melhores porções.

Os fast-foods, do mesmo modo que as carrocinhas de cachorro quente no Brasil ou os quiosques de crèpe na França, os supermercados e as máquinas de distribuição de bebidas e sanduíches no mundo inteiro, acompanham uma tendência da modernidade que favorece a essa errância alimentar e cria espaços propícios para a circulação dos consumidores e o grignotement constante. A errância é característica do comportamento dos consumidores dos fast-foods, notadamente dos turistas, e as cadeias a levam em conta na distribuição territorial das lojas nas cidades, localizadas preferencialmente em lugares de passagem e organizando-se internamente num código fundado na circulação permanente dos consumidores.

7Katona-Apte,J.DietaryAspectsofAcculturation:Meals,Feasts,andFastsinaMinorityCommunityinSouthEast Asia"Gastronomy. The Anthropology of Food and Food Habits, editorM.L.Arnott, 315-326, Tha Hague,Mouton,1975;citadoparFischler,C.,1990:36.8Naocasião,asempresasdeticketsrestaurantestiveramqueaceitarfinalmentesuautilizaçãocomomeiodepagamentoparaastomadasalimentarestantoquentequantofriasrealizadasnosfast-foods.Cf.NéoMagazine,n.186mai1988:26.9 Cf.Fischler, C. "Gastro-nomie et gastro-anomie, sagesse du corps et crise bioculturelle de l'alimentationmoderne",dansCommunicationsn.31,1979:205.

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Primitivo para os bio-antropólogos no sentido em que se aproxima de um comportamento próprio aos primatas, o "snack" é igualmente visto como primitivo pelo fato de que relaciona a um materialismo traduzido por uma primazia do corpo sobre o espírito. Nesta perspectiva, a imagem do típico fast-foodiano corresponde mais ou menos a de uma publicidade que a cadeia franco-belga Freetime divulgou no cinema e na televisão francesa em 1985 (reprisando a campanha em 1990): um homem monstruoso, parecendo idiota que, em pé diante de um balcão de fast-food, ingurgita solitariamente grandes mordidas de hamburguer, espécie de Pantagruel10 moderno. Pois, por mais contraditório que possa soar, uma vez que é visto como uma comida tomada em pequenas quantidades, o snack é concomitantemente visto como uma ocorrência alimentar onde não se degusta, se devora. Ele serve para aniquilar uma fome imediata, para a preencher um "buraco no estômago" de quem não suportaria os limites de uma refeição. Como bem formula Châtelet,

"Dizer que se tem "a barriga vazia" é anunciar uma fome tão tenaz que é grande a tentação de escamotear na ingestão do alimento tudo o que precede o momento no qual a comida chega ao estômago (...) A atração por tudo o que sugere o deglutir faz surgir do fundo do imaginário as lembranças primitivas das primeiras refeições, do tempo em que nos deglutíamos sem pensar no alimento, preenchidos imediatamente, com fluxo do leite, por uma sensação de calor e de bem-estar, o corpo inteiro se confundindo com o ventre, o corpo tornado ventre11.

O snack (ainda que o texto de Châtelet empregue o termo refeição), portanto, se aproximaria dos instintos mais primários ao passo que a refeição se situaria nas esferas da racionalidade e da inteligência. Comer para realizar uma simples função nutritiva é visto, como uma ocupação vil do corpo. Mais rápido a comida encontra o ventre, mais ela se implica nas turbulências simbólicas relacionadas a esse ventre. Se o snack é objeto de um certo desprezo, é porque dispensa o ritual (ou ao menos o simplifica) que acompanha o ato culinário e o acto de absorção do alimento. "O apressado come cru", diz um ditado brasileiro lembrado por Da Matta12 que acrescenta que a civilização funda-se no saber esperar.

Comer em forma de snacks significa recorrer a um maior número de ocorrências alimentares, e a irregularidade que isto implica foi condenada através das épocas como imprópria aos homens. Na Idade Média, um provérbio traduzia bem esta desaprovação: "Comer uma vez (ao dia) é coisa de anjo, duas vezes ao dia é humano, mas três ou quatro ou várias é coisa de bicho e não de criatura humana"13. O comer sem ritual, que responde a uma fome urgente é, para outros, o

10PantagrueléumafiguratradicionaldoséculoXV,capazde"beberoleitedequatromileseiscentasvacas",que inspirouo escritorRabelais. Cf.RabelaisOeuvres complètes, livro II, cap.4:228Paris, EdduSeuil, 1973.CitadoporChâtelet,N."Lecorpsàcorpsculinaire".Paris,Seuil,1977:91.11Châtelet,N.1977:78/9.12Cf."Sobrecomidasemulheres"inOquefazoBrasil,Brasil.RJ,Rocco,1987.13Cf.Contamine,Viequotidienne. CitadoparLaurioux,B. LeMoyenAgeàTable.Paris,EditionsAdamBiro,1989.

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comer das crianças. Mary Douglas cita um romancista inglês que descreve assim os snacks de seus personagens:

"eles comiam como as crianças, sua comida não era portadora de nenhum simbolismo fora do poder de satisfazer os simples caprichos espontâneos"14.

Concordando com ele. Douglas, vê os snacks como menos significativos do que as refeições, eles seriam privados de simbolismo. Outro antropólogo inglês, Stephen Mennell, observando o snack acaba também aproximando-o de um comer próprio as crianças mas dessa vez através de outro prisma: o de sua repetição e monotonia. Os adeptos desse modo de se alimentar são mostrados enquanto vítimas de uma doença bem conhecida dos ingleses, a "síndrome de comida de nursery", como a chama os que estudaram a indiferença de uma parte dos anglo-saxões pelo que consideram a boa cozinha15.

Ainda que tomando uma outra via, a antropóloga francesa Françoise Kerloux chega a mesma conclusão: as crianças manifestam sua inferioridade no ato de se nutrir (e, corolariamente, a inferioridade hierárquica daquilo que comem). Se o ato de se alimentar é uma linguagem, argumenta Kerloux, isso é o mesmo que dizer que os infantes dão provas de uma menor capacidade de se comunicar16. O snack aparece então como um idioma à margem da linguagem do social estabelecido, uma espécie de balbuciamento de bebê ou de gíria de adolescentes cuja estrutura (ou ausência de estrutura) não está submetida as regras sociais legítimas. Isso sem falarmos do modo como muitas vezes esse snack é consumido, com os dedos, com faz quem desconhecem as regras de polidez, dispensando os modos de comer solidamente implantados por um processo civilizatório ocidental a partir do século XVI17.

Esta relação entre o fast-food e as crianças foi judiciosamente percebida pelas empresas que elegeram nas maioria das cadeias essa faixa do mercado como o seu público preferencial, criando salões de jogos, decorados ao gosto infantil e instaurando diversas promoções (festas de Natal, aniversários) e uma permanente rotação na distribuição de gadgets com temas infantis. Os próprios alimentos sólidos ali servidos parecem facilitar a mastigação, como nas papinhas para crianças, tudo parece pré-mastigado: o pão é sem crosta, a carne é de gado moída e 14Cf.Douglas,Mary."StandardSocialUsesofFood:Introduction"emDouglas(ed)FoodinTheSocialOrder,N.Y.,RusselSageFoundation,1984:15.15Porcomidadenurseryseentendia,naépocavitoriana,nãoapenasadosbebêsmastambémadosmeninose meninas da alta sociedade que viviam até a adolescência sob o rígido controle de empregadas que osalimentavamcomoqueerajulgado"bomparaeles",poucoseimportandoseosaborosagradavaounão.Asimplicidade era a característica principal desse regime, um ponto em comum com os fast-foods que noentanto se especializaram em agradar o paladar infantil hojemais capaz de impor-se. Cf.Mennell, StephenFrançaisetAnglaisàTable-duMoyenAgeànosJoursParis,Flamarion,1985:422eseguintes.16"Leparler-mangerestdoncunefonctioncomplexequis'acquiert,s'exerceets'altèredefaçondifférenciéeaucoursdesâgesd'enfant,d'adulteetdevieillard.Chezlesenfants,lafonctionn'estpasencoreorganisée;demême qu'ils mangent a tout bout de champ, ils communiquent em tous les sens" Kerleroux, Françoise Leparler-mangerinLetempsmodernesn.438,1983:1264.Valelembraraetimologiadeenfants,vemdolatimin(não)fantes(falar).17Cf.Elias,Norbert.LaCivilisationdesmoeurs.Paris,Calmann-Lévy,1991.

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a do frango branca e sem ossos, as batatas fritas se desmancham na boca, os pedaços são sempre pequenos (chamada finger-food) dispensando o uso de talheres. Isso sem falar na substituição da linguagem escrita pela icônica, já apontada, que permite a perfeita localização de crianças analfabetas no espaço.

* Falsas refeições em falsos restaurantes:

Inúmeras pesquisas confirmam a ascensão inexorável do snack18 e muitas, como vimos, associam o snack a um comer infantil, errático, primitivo. Também os consumidores, mesmo os que apreciam esses restaurantes, tendem a dizer que ali não se come uma verdadeira refeição, demonstrando que a oposição refeição/snack não é fruto de uma classificação semântica de especialistas em alimentação, ela aparece nas representações dos consumidores entrevistados que distinguem de modo claro de um lado o "almoço"("déjeuner” na França) e de outro o "lanche" ("casse-croûte" ou "en cas"). Perseguir as etimologias desses termos, que foi feito em outro lugar19, me auxiliou compreender o campo nocional da comida fast-foodiana para os clientes e o lugar secundário dos fast-foods. Nessas etimologias, seja em francês ou em português, alguns traços são recorrentes aos diversos termos que designam o snack: ele é leve e aparece várias vezes como uma "refeição leve"; ele é sempre pequeno, às vezes é associado aos jejuns religiosos, às vezes as crianças. Ele é consumido entre as "verdadeiras refeições" ou as substitui, e se acomoda a ocasiões especiais, a lugares e atitudes não-convencionais - comer em pé, sem prato, no campo ou num baile, antigamente; no carro hoje - e ele toma um tempo mais curto do que a refeição - apressadamente, de passagem, durante o recreio ou o intervalo. Em resumo, ele aparece sempre numa posição secundária em relação as três refeições principais, sem cindir de fato o acontecimento ao qual se sobrepõe (a reunião, o trabalho agrícola, o estudo, a viajem, etc). Ele é portanto duas vezes secundário: em relação a refeição e em relação as atividades as quais se associa.

Ou seja, até aqui, vimos que o snack como sendo uma "não refeição", uma "anti-refeição", uma "não estrutura", o acento não estando portanto na transformação ou surgimento de uma nova forma de comer mas sobretudo na disparição (ou regressão) de formas anteriores. É assim que, por um processo metonímico, os restaurantes que oferecem falsas refeições tornam-se eles mesmos falsos restaurantes - aliás, as próprias cadeias muitas vezes referem-se aos fast-

18UmapesquisarealizadanosEstadosUnidosmostraosnorte-americanossealimentam,emmédia,20vezespordia.Cf.Hess,J.L.etHess,K.ThetasteofAmerica.NewYork,PenguinBooks,1977.Fischlercitaumsurveyquemostraqueosnorte-americanoreduzirampara2a3vezesporsemanaasrefeiçõesregradasdeantigamenteeque,nodia-a-dia,seuslanchesduramcercade20minutos.Cf.Fischler,C."Gatro-nomieetGastro-anomie"emCommunicationn.31,pg.189/210.19Cf.minhateseLeGoûtdel'image:çasepassecommeçachezlesfast-foods-étudeanthropologiquedelarestaurationrapide.UniversidadedeParisV-Sorbonne,1992,fotocópia.

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foods empregando não o termo "restaurante" mas o termo "loja", como que marcando uma diferença inexorável.

Diante de todas essas acusações e suspeitas, é difícil encontrar uma voz dissonante na análise dessa conduta alimentar que, se não é nova, ao menos tem se propagado a uma velocidade que não conhecíamos antes. Barthes é um dos raros que tentaram compreender o dilema sem lançar mão do recurso fácil da idéia de ausência. Para ele, os fast-foods, que ele chama de snack usando uma outra metonímia, faz dos seus freqüentadores homens modernos20. Eis quem se arrisca a ver um ritual denso no ato de fazer um lanche em um fast-food, e como todo o ritual, esse ato revela uma expressão teatral: o teatro não é mais espaço doméstico, privado, familiar mas ao contrário é o da multidão, onde a cena engloba a coletividade de anônimos, ainda que a família e a criança ali encontrem um lugar.

Sem desdenhar a oposição entre snack e refeição, o historiador francês Flandrin propõe no entanto que nós consideremos como refeição toda tomada alimentar tendo um nome, quer dizer sendo vista como refeição pelo um grupo social em questão. Esta perspectiva leva em conta o dinamismo das modificações históricas e me parece mais adequada à compreensão do tipo de consumo nos fast-foods, sem os pressupostos valorativos das definições anteriores. É o caso de se perguntar se contemporaneamente, ainda é possível fixar normas de uma ciência culinária e localizar o snack para além dessa fronteira, como uma transgressão dessa norma. Uma transgressão que se universaliza e se dissemina através do planeta permanece uma transgressão ou torna-se norma?

* Nos fast-food, refeição ou snack?

A emergência insólita dos fast-foods no cenário mundial remexeu com o léxico do comércio de alimentos. Deve-se chamar de snack a todas as ocorrências alimentares em um fast-food? Isso não implicaria em ampliar semanticamente uma palavra ao ponto de lhe esvaziar do sentido tradicional? A revista Néo, importante revista francesa de alimentação industrial, tem contornado o problema com um novo vocabulário: refere-se a essas ocorrências alimentares como "prestação servida" ou "prestação vendida" ("prestation servie" ou "prestation vendue") evitando refeição ou snack. Outros preferem manter a palavra "refeição", a qual se acrescenta um adjetivo com conotação pejorativa ou não, dependendo de quem fala.

20"umacomidaenergéticaeleveévividacomosignomesmo(enãoapenasoauxiliar)deumaparticipaçãoativanavidamoderna:osnackrespondenãoapenasaumanecessidadenovamasdáaessanecessidadeumacerta expressão teatral, faz dos que o freqüentamhomensmodernos, gerentes, tendo o poder e o controlesobreaextremarapidezdavidacontemporânea,existindo,digamos,umcerto'napoleanismo’dessascomidasritualmente densas, leves e rápidas" Cf. Barthes, R. "Pour une psycho-sociologie de l'alimentationcontemporaine",dansAnnales,n.5,1961:985.

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As cadeias de fast-food perseguem a imagem de um lugar onde são servidas refeições completas. Elas propõem combinações de itens (chamados "menus" na França; "lanches" no Brasil onde também se emprega o termo inglês "comble"*) que são herdeiros dos "menus conseillés" ou dos "menus proposés" dos restaurantes franceses e que correspondem aproximadamente à estrutura de uma refeição mínima: "prato" principal (hamburger, por exemplo), acompanhamento (batatas fritas, por exemplo) e uma bebida21. De fato, seria muito simplista ligar fast-foods aos snacks e tê-los como universo exclusivo de tomadas alimentares não-estruturadas. Não seria possível comer de outro modo num restaurante fast-food? Examinemos as opções de pratos. As cadeias apresentam sugestões que tendem a se aproximar da refeição e, em alguns países, como na França, esses combles ou menus conseillés são bastante difundidos. Além do país onde se situa o fast-food, o horário parece também determinar o tipo da ocorrência alimentar: entre meio-dia e 14 horas e entre 19 e 20 horas, as tomadas alimentares são mais estruturadas e atendendo aos que, fora de casa e tendo escolhido um fast-food, desejam apesar de tudo compor um menu que se aproxime do que teriam em outro restaurante ou em casa.

"A hora do pique é entre meio-dia e 15 horas. É esse o horário no qual a média de bandeja é muito mais elevada. Depois das 16 horas é a merenda, o lanche da tarde ou da noite. As vendas são como no almoço mas há menos gente", me explicou o gerente do Quick dos Halles, à Paris.

Nesse vocabulário delimitado pelo ângulo do lucro, "média de bandeja elevada" pode se traduzir como sinônimo de "refeição". A refeição mantém, portanto, um lugar preciso no quadro alimentar de uma jornada. Se tomarmos como referência o quadro semanal, observamos novamente variações. Na França, o sábado e sobretudo o domingo são os dias em que as refeição são menos freqüentes nos fast-foods, o que se explica pela ausência de limitações de tempo e de trabalho. No Brasil, ao contrário, os sábados e os domingos são justamente os dias em que as famílias levam as crianças ao restaurante não apenas para um lanche mas freqüentemente para um almoço ou um jantar.

Fora dos horários de ponta, as opções alimentares tendem a se tornar menos estruturadas e isso leva a combinações bem inesperadas. Para dar um exemplo extremo, escutemos Neka, brasileira, 35 anos, na sua primeira visita ao um restaurante fast-food - o da Place d'Italie:

"Fiz uma escolha bem pouco convencional, como percebi depois. Peguei um chá, um café, um suco de laranja, uns envelopes pequenos de creme para o café e uma salada de alface com todos os molhos, eu experimentei todos os molhos"

21 Naépocaemquerealizeiapesquisa,parabemmarcaradiferençaentreossnackseasrefeiçõesoBob'sservia estas em pratos cobertos por uma tampa plástica. O "menu" do Bob's brasileiro era chamado derefeição e compunha-se de um hamburguer ou uma salsicha ou um pedaço de frango, nos três casosacompanhadosporbatatasfritas.

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Mesmo que ele admita se situar fora de uma "escolha convencional" e mesmo considerando que se tratava de uma primeira visita a um fast-food, temos que admitir que o contexto facilita essas composições surpreendentes. Como pedir "todos os molhos" em um restaurante tradicional? Seria inesperado também pedir um café e um chá simultaneamente, uma redundância semântica no quadro da cultura alimentar francesa ou brasileira. A redundância é a mesma mas em um fast-food ela surpreende bem menos.

Meu caderno de notas desborda de exemplos semelhantes: um casal de idosos alemães diante de hamburguers, batatas fritas e como bebida, café com leite; jovens que, no meio da tarde, degustam dois ou mais dos maiores hamburguers oferecidos; executivos que pedem dois hamburguers duplos e mais um simples e uma bebida; outros que casam os pedaços de frango frito com um hamburguer; etc.22. Em resumo, todas as combinações ali são possíveis e ocorrem. E de um golpe a gramática convencional do bom gosto é descartada, ainda que se tenha em conta que essa gramática é em parte relativa ao lugar. Na Espanha, por exemplo, notei a preferência dos consumidores, na hora do almoço, pelos hamburguers simples acompanhados por uma ou mais cervejas, o que corresponde ao hábito local de se tomar, por volta do meio-dia, um aperitivo e bocadillos. Lá, o comer fast-foodiano entra em consonância com a refeição local.

O gerente de um McDonald's do Rio me respondeu assim a questão refeição/lanche:

"Isso depende do que se come. Se for um Big Mac com batatinhas fritas e um refrigerante, será uma refeição porque está tudo lá: a carne, a alface, as cebolas, o pão."

Essa idéia de que os elementos de uma refeição se encontram reunidos entre duas fatias de pão - "está tudo lá"...ainda que sob a forma condensada de um sanduíche faz pensar a distinção proposta por Lévi-Strauss entre uma cozinha diacrônica e uma cozinha sincrônica: o hamburguer, um sanduíche em camadas, parece condensar em si todos os elementos que compõem uma verdadeira refeição substituindo assim uma cozinha diacrônica por uma cozinha sincrônica. Pois, nos fast-foods não há uma ordem a seguir obrigando a se pedir a entrada antes, o prato principal depois e por fim a sobremesa. Come-se tudo ao mesmo tempo, e mesmo quando se trata de "combles", que poderiam reintegrar o fator tempo na tomada alimentar, isso acontece parcialmente pois os elementos da refeição são pedidos no mesmo momento e apresentados simultaneamente sobre a bandeja, a sobremesa dividindo o espaço com os pratos salgados. Trata-se de uma condensação do espaço-tempo, quer consideremos o conjunto dos alimentos servidos ou apenas o item hamburguer. Como nos mostra Gaillard, o menu tradicional "funciona como

22 Para impedir um consumo reduzido, alguns restaurantes fast-foods dispõem de anúncios estabelecendosomasmínimas a dispensar, comoosMcDonald's da Inglaterra; e outros retiramda lista do cardápio itenscomoocaféouacerveja,quepoderiamatrairconsumidoresexclusivos.

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uma forma vazia ou como um princípio gerador de formas que, do mesmo modo que as estruturas gramáticas profundas, determina a sintaxe da refeição, a compatibilidade dos pratos entre si, a ordem na qual eles se sucedem, as combinações e antagonismos (frio e quente, cru e cozido, salgado e doce)23. Se não podemos dizer que nos fast-foods, esta "grade" que cada grupo social preenche a sua maneira em função de seus recursos, seus gostos e respeitando um tempo tenha desaparecido completamente, podemos afirmar contudo que ela certamente perdeu sua centralidade.

Geralmente, é a escolha dos itens que distingue uma refeição de um snack e esse é determinado pelo horário no dia, o tempo e o dinheiro disponíveis pelo consumidor. E é determinado também por fatores dos mais inesperados: o gerente do Quick do Fórum dos Halles estima que o cinema pode ter esse papel:

"É muito engraçado a reação das pessoas vis-à-vis dos filmes. Saem do cinema e se viram um bom filme tem vontade de comer. Os que viram um bom filme tendem a se instalar e a permanecer um longo tempo aqui. Quando o filme não é bom, eles partem sem vir comer."

O horário pré-fixado, a companhia à mesa pré-estabelecida, a variedade dos pratos limitada pela região ou pela estação do ano, tudo isso parece pertencer ao passado. Liberados dos limites de antigamente, o cliente moderno dos restaurantes fast-food se deixa guiar por seu próprio humor e a escolha entre snack, uma refeição ou nada pode bem ser decretada pelo diretor do filme que se acabou de ver.

* A morte dos alimentos

O tempo de preparação e absorção constituem, como vimos, dois critérios para definir os pratos do fast-food enquanto snacks. Porém, um outro "tempo rápido" aparece como fundamental nessa definição, o tempo de vida dos alimentos oferecidos nos fast-foods, que nem sempre é considerado pelos consumidores alheios a curta esperança de vida desses pratos. De fato, como numa fábula de Cinderela, a magia da aparência dura aqui um tempo limitado: 10 minutos para os hamburguers, 7 minutos para as batatas fritas. Uma vez que o charme tenha sido rompido, os hamburguers ressecam-se, as fibras encolhem, a carne endurece e torna-se borrachenta aos dentes. Com as fritas, a metamorfose é ainda mais espetacular: de crocantes elas passam subitamente ao estado de fenação, amolecendo, brochando, segregando uma gordura antes invisível - é preciso fazer a experiência para se convencer da velocidade da degeneração.

Não surpreende portanto que esses hamburguers e batatas estejam destinados a desaparecer das vistas dos clientes alguns minutos depois de terem deixado o grill 23Cf.Gaillard,JeanneParis,laville,1852-1870,Paris,Champion,1970:233-253.

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ou o óleo fervente, existindo apenas por um momento fugaz. O que é inesperado, no entanto, é o fato dessa eliminação, que deveria ilustrar a fragilidade dessa comida e jogar um certo descredito sobre os restaurantes, ser objeto de slogans publicitários. "Hamburgers auto-destructibles" titula um dos panfletos distribuídos na França em 1991 pela cadeia Burger King: "Todo o hamburguer não servido em 10 minutos será sistematicamente destruído"24. A justificativa para a palavra de ordem "destruição sem piedade" e para adjetivos como "morte", "crime", não aborda a precariedade da preparação alimentar que resulta em algo tão efêmero mas evoca sim um argumento menor e que em nada deprecia o prato: a temperatura,25. Já o McDonald's, ao contrário, não leva em conta o calor como argumento: confessa que é a qualidade que está em jogo, como se pode ler em suas brochuras explicativas26.

Por outro lado, esse engajamento das empresas em desperdiçar todo o alimento que ultrapasse o prazo estabelecido não deixa de ser um consumo ostentatório: tudo funciona como se elas honrassem seus adeptos ao jogar na lixeira alimentos em princípio comestíveis. Esse gesto, ao mesmo tempo que consagra um desperdício de bens, se constitui em uma sorte de doação, como se, num potlach (Mauss), a empresa retirasse dessa delapidação proposital um certo poder simbólico. Este dito sacrifício en nome da qualidade visa, a toda evidência, outro alvo: dissipar as desconfianças dos consumidores e a imagem de avarice que muitas vezes aparece associada aos fast-foods. Suspeitas que se traduzem de modo dramático nos rumores sobre a proveniência da carne e possíveis adulterações (pela adição de petróleo, soja, etc.). Para dissipar esses temores, as empresas apelam ainda a outra estratégia: a denominação dos "pratos".

Neste momento, uma das maiores preocupações dos "pensadores" fast-foodianos consiste em camuflar as palavras que representam o pesado, o gordo, a carne, atrás de outras palavras dotadas de imagens menos depreciativas. Os panfletos alimentares do McDonald's transformam as "calorias" em "energia" e, nos Estados Unidos, a cadeia convida seu pessoal a utilizar as palavras "cozido" e "cozimento" ao invés de "frito" e "fritura", estes tendo adquirido conotações perigosas, ainda o processo de preparação dos "pratos" fritos não foi em nada alterado. A cadeia Kentucky Fried Chicken (pertencente à Pepsi) foi mais longe, trocou seu nome pelas iniciais KFC de maneira a evitar a palavra "Frita". A

24Cf."HamburguersAutoDestructibles",Paris,1990.Iustraçãon.41,deminhatese.25"Pourvousgarantirunproduitchaud,chezBurgerKingtouthamburguernonservidansundélaide10minutesaprèssafabricationestunhamburguermort.Vouspouvezvérifierlavéracitédecettedéclarationpuisquel'heureducrimefiguresurtoutemballage.Parexemple,sile6estentouré,lesandwichseradétruitàlademie.S'iln'estpasencorelademie,vousavezparcontretoutletempsdedégustervotrehamburguerpréféré."26"McDonald'slimitepourchaqueproduitladuréedeconservationaprèscuisson,pourluiconservertoutesaqualité.A titred'exemple, lesproduitsne sontplus servis aux clients au-delàdedixminutes après cuissonpourleshamburguersetdeseptminutespourlesfrites.".Cf."GoutezlaQualitéMcDonald's",brochuraeditadapeloMcDonald'sFranceedistribuídanosrestaurantes,ilustraçãon.42deminhatese.

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censura servirá igualmente contra a palavra "açúcar", que se vê interditada e substituída também por "energia".

Se os snacks não existem exclusivamente nos fast-foods, as angústias que causam encontram ali sem dúvida alguma um solo fértil, onde os grandes fantasmas alimentares deste fim de século puderam estar reunidos. Não é por acaso se os alimentos servidos por estes restaurantes são chamados pelos clientes norte-americanos eles mesmos de "junk-food". A comida que "enche mas não nutre", que aumenta o número de calorias mas se encontra desprovida de "verdadeiros" nutrientes.

* Conclusão

O modo alimentar de uma época é consoante com suas outras dimensões sociais e com a identidade dos seus indivíduos. A alimentação contemporânea nas grandes cidades (lugares preferenciais de instalação dos fast-foods) não poderia, em nome de uma nostalgia, se manter dentro das mesmas estruturas de antigamente: uma época de velocidade, de aceleração do tempo, demanda uma alimentação rápida.

Aproveitando um trocadilho de Fischler, poderíamos dizer que não estamos apenas diante de uma gatro-anomia que substitui a gastronomia anterior, pois novas regras (nomos) de alimentação se constroem ao lado do comer fast-foodiano e doutrinas alimentares rígidas como o vegetarianismo, a macrobiótica, dietas sem carne ou derivados, etc ganham espaços. Não se trata de abordar a mudança apenas do ponto de vista dos elementos que preenchiam uma determinada estrutura e, diante da constatação de lacunas, lamentarmos essa desestruturação; não estamos diante da simples alteração de elementos, a própria estrutura foi alterada. Trata-se de perceber novas estruturas ao invés de ausência de estrutura. ************************************

De consumidora à trabalhadora, de trabalhadora à antropóloga.

A primeira vez que me encontrei do outro lado de um balcão de um restaurante fast-food foi em março de 1985, no meu primeiro dia de trabalho no maior restaurante Quick de Paris, localizado num shopping center do bairro futurista de La Défénse. Este foi o meu primeiro emprego "manual" e embora tivesse com os hamburgers e os fast-foods uma intimidade desde a adolescência, quando morei nos Estados Unidos, não era uma consumidora freqüente. O impulso inicial para escrever sobre os fast-foods resultou de uma necessidade de entender meus sentimentos de incapacidade para realizar aquele trabalho duro, pelo esforço físico e pela humildade diante de chefes autoritários, sentimentos agravados pelo

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fato de ser estrangeira e não dominar a língua francesa nem os códigos particulares daquele lugar27. Por 4 meses trabalhei no Quick de La Défénse, 5 vezes por semana, com uma jornada que variava de 2 a 5 horas dependendo da escala. E por 5 anos - em 1985 e depois em 1988/92 - acompanhei a trajetória de expansão dos fast-foods no mundo e especialmente na França, onde residi nesses períodos. O relato que se segue foi elaborado a partir de minhas observações enquanto trabalhadora/consumidora de fast-foods e de entrevistas com outros trabalhadores, consumidores, gerentes de lojas, diretores de cadeias, publicitários responsáveis pelos anúncios e o marketing das cadeias além de anotações de observações feitas pelas mais diferentes atores sociais cada vez que dizia estar pesquisando os fast-foods. Essa foi uma pesquisa itinerante. Ainda que inicialmente o trabalho de campo tenha se centrado nas cidades de Paris, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, realizei visitas e entrevistas em muitos outras cidades. Observações e entrevistas foram feitas em Campinas, Brasília, Recife, Belo Horizonte, Curitiba, Campina Grande e Florianópolis. Na França, observei e entrevistei também em Rouen, Marseille, Nîmes, Toulouse, Reims, Grenoble, Avignon, Strasbourg, etc. Além desses dois países que foram meu campo preferencial, realizei entrevistas com clientes e trabalhadores em cidades como Buenos Aires, New York, Londres, Marrakeche, e observações em diversos outros lugares entre as quais lembro Budapeste, Berlim, Helsinque, Colônia, Amesterdam, Bruxelas, Madri, Barcelona, Lisboa, Viena. Além disso, contei com um batalhão de caçadores de guardanapos de bandeja que me trouxeram troféus e me mantiveram atualizada com a publicidade de países como a Turquia e Grécia, a Austrália, o Chile e a Argentina, a Itália e os Estados Unidos. Essa pesquisa teve como objetivo fornecer dados etnográficos de um lugar e uma comida que, embora sua imensa visibilidade mediática e no espaço urbano das grandes metrópoles, continua bem pouco abordado, constituindo-se um universo (especialmente em sua dimensão de trabalho) quase desconhecido. Busquei analisar os fast-foods enquanto um caso exemplar de tentativa de multiplicação mundial de um padrão (global standart) homogêneo, sugerindo que sua lógica de disseminação planetária, onde se mescla homogeneidade e heterogeneidade, pode nos dizer muito sobre os processos de globalização cultural contemporâneos. Para isso, foi preciso primeiramente me afastar de toda uma mitologia a respeito desses restaurantes. Essa mitologia é cuidadosamente construída pelas direções das cadeias, pelas suas agências de marketing e publicidade que gerem somas imensas pois os fast-foods estão entre os maiores anunciantes do mundo e também por autores de best-sellers que cantam as ascensões aceleradas dos homens que fizeram essas cadeias (e se fizeram através delas), de modo acentuado pelo McDonald's e recriam em suas narrativas sempre 27 A experiência angustiante do trabalho no Quick e as primeiras impressões desse campo foram plenamente partilhadas com outra antropóloga Míriam Grossi, a quem agradeço também pela idéia de transforma-la no trabalho de D.E.A.. Devo ao prof. Louis-Vincent Thomas, meu orientador no doutorado em Paris V, o incentivo para que transformasse aquele relato inicial na tese de doutorado e o seu encorajamento durante todo o trabalho que foi financiado pela UFSC e por uma bolsa do CNPq, a quem também agradeço.

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gloriosas diversas origens: como inventou-se o hamburger, como surgem os fast-foods em meio a uma tempestade californiana, como o iluminado Ray Kroc descobre a pequena loja dos irmãos Mac e Dick e a transforma na maior cadeia de restaurantes do planeta ou, as histórias podem ser contraditórias entre si, o iluminado Kroc funda o primeiro McDonald's da história em Chicago, Illinois. Nesse artigo, trato especificamente da culinária fast-foodiana, procurando entender o seu lugar no sistema alimentar contemporâneo, suas especificidades, distâncias e aproximações com a cozinha/culinária tradicional.

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O primeiro dia de trabalho:

"Pela primeira vez na minha vida, me encontrava atrás do balcão de um fast-food, um território muito diferente do que poderia imaginar enquanto consumidora. Minha primeira impressão foi a lembrança de um outro lugar que conheci bem, os bastidores de uma estação de rádio brasileira durante a transmissão de um jogo da seleção nacional. A agitação ali era a mesma, comparável, para quem não conhece uma rádio, com um boxe de um Formula Um no momento da troca de pneus. Todos se moviam freneticamente, os objetos são deslocados de um lado a outro, apitos e luzes jorram das máquinas. O formigamento que reinava naquele espaço era tão impressionante que imediatamente pensei, de fato, estou no "Quick".

A população aos meus olhos de debutante, se dividia entre "amarelos" e "brancos", os primeiros bem mais numerosos que os segundos. Eu pertencia aos amarelos, os uniformes brancos estavam reservados - logo percebi - aos chefes. Ninguém parecia se dar conta da minha presença, estavam todos concentrados em suas tarefas e eu permaneci ali alguns segundos, plantada diante da porta que separava o hospício das salas do fundo, invisíveis ao público, hesitando entre o desejo de entrar no palco e o de voltar correndo para o abrigo silencioso do vestiário. Foi então que um dos brancos, em um tom irritado, me apontou uma folha colada a parede ao meu lado: "Vite, regarde où tu es, Carmen".

Meu nome todos sabiam pois, como as árvores de um jardim botânico, eu portava uma etiqueta indicativa: a palavra Quick vinha logo abaixo do meu nome. Quick podia assim ser visto como um nome de família, comum a todos nós tornados irmãos pela vontade de embolsar 24 francos a hora preparando hamburgers para uma população de consumidores que bufava de impaciência do outro lado do muro de caixas registradoras.

Um pouco tonta pela corrida que se desenrolava diante de mim, procurei meu nome na lista indicada e lá estava ele, escrito ao lado da palavra "bebidas". Mal tive tempo de encontra-lo e a mesma voz, agora mais alta e agressiva, me ordenava de lhe acompanhar e me postar diante da máquina para observar o que deveria ser feito. Levei um instante olhando para o lado para me situar no espaço e minha professora já tinha enchido seu terceiro copo de Coca-Cola. "É fácil", eu pensei; a tarefa parecia simples. Eu deveria pegar os copos arrumados segundo os seus tamanhos distintos, enche-los de gelo, coloca-los sob o jato do refrigerante correspondente, indicado na máquina, escolher o botão pequeno ou o grande segundo a quantidade de bebida desejada, pressionar o botão e esperar que o copo estivesse cheio e que a máquina parasse, fecha-lo com uma das tampas plásticas arrumadas em duas fileiras - pequenas e grandes - e, para terminar, deveria arrumar os copos no lugar adequado para que um outro colega amarelo pudesse lhes apanhar. A operação se repetia indefinidamente.

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Observei com atenção os movimentos da assistente, uma mulher de uns 40 anos e o corpo três vezes o meu tamanho, branca apesar do seu nome africano, e também escutei suas recomendações que me pareciam inúteis tendo em vista a facilidade da operação. Ela me aconselhava de repetir todos os seus gestos: de colocar apenas 5 cubos de gelo em cada copo, de não encher mais do que dois copos de uma vez e de me servir das duas mãos para faze-lo, etc, etc. Eu acreditava ter compreendido tudo e tomei o seu lugar diante da máquina para afrontar o que ira ser nosso primeiro contato face a face.

Desde a primeira tentativa, percebi que não seria tão fácil quanto pensava. Uma vez sozinha, tentei acomodar os copos sob o jato de líquido negro, de lhes fechar com a tapa plástica e de lhes equilibrar na prateleira sem derruba-los no balcão. Isso, é claro, levava tempo. Os copos deixados pela assistente foram levados rapidamente por mão que eu entrevia por detrás da máquina. Como eu não conseguia enche-los na mesma velocidade com que desapareciam, a reserva terminou por se esgotar ao fim de alguns minutos e diante mim surgiram mãos que exigiam: "Coca-Cola, limonade, bière, fanta.. vite, Coca-Cola". Uma antropóloga pode ter dificuldades em se comunicar com os nativos mas, mesmo sem conhecer suas língua, acaba por encontrar um modo de se fazer compreender, seja gesticulando, saltando, gritando, usando onomatopéias ou trocando presentes. Mas quando se trata de comunicar com uma máquina, não há muito a fazer e as aulas de método não me vinham em auxílio. Ela não respondia as minhas súplicas e parecia sabotar voluntariamente o meu trabalho. Eu hesitava entre o pânico total e a gargalhada solta, quando a assistente reapareceu, pois percebera que o setor bebidas estava bloqueado, atrapalhando todo o sistema. Eu pensei que poderia contar com a sua compreensão. Erro. Ela me fez compreender logo que eu tinha ingressado em uma espécie de exército onde não se distribuía medalhas, apenas ordens. Ela reagia como se eu fosse culpada de algo horrível, como se minha incompetência se constituísse em uma falta moral grave e passível de uma punição exemplar. Era como se tivesse feito propositadamente mal o trabalho. Aos seus olhos, se tratava de uma recusa em encher os copos de Coca-Cola, de uma ofensa deliberada da minha parte a todos os outros empregados, aos consumidores, a empresa, quiçá ao país. Conclusão: eu não havia trabalhado cinco minutos e já me ameaçavam de me colocar na rua. Não fui despedida. No entanto, a recordação dessas primeiras horas de trabalho me incitam a aumentar o coro dos que já trabalharam num fast-food na França e que dizem: "c'est dur"."(março de 1985).

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A genealogia dos fast-foods

As origens históricas mais distantes dos restaurantes fast-foods não são americanas. Elas remontam aos restaurantes criados em paris no final do século XVIII, ao fim de uma polêmica comercial. O termo restaurante foi criado na França nos anos 1760 - antes, restaurar-se significava fortificar-se. Restaurante designava o consumo do "bouilli" servido nos estabelecimentos chamados de "bouillons". Boulanger, um parisiense que mantinha um desses "bouillons" exibiu em 1765 diante de seu estabelecimento um cartaz onde lia-se: "Boulanger serve divinos restaurantes" fazendo assim publicidade não somente dos "bouillons" oferecidos na casa mas também de um prato feito com pés de ovelha coberto de sal. Este prato foi imediatamente acusado de ser um "ragoût", que, por lei, só podia ser servido pelos "traiteurs". O caso acabou nos tribunais e foi resolvido por um decreto de 1786 que autorizava os "traiteurs" e os "restaurateurs" a servirem refeições em estabelecimentos abertos ao público. Os ancestrais mais próximos dos fast-foods? Deve-se procura-los entre as diferentes fórmulas de restaurantes populares que surgiram nos Estados-Unidos da pós- Revolução Industrial e que tinham como público alvo os trabalhadores de fábricas. De fato, a chegada às cidades de operários que trabalhavam longe de suas casas tendo que adquirir ali parte da sua alimentação cotidiana, levou ao surgimento de modos de alimentação e à restaurantes de baixo preço e serviço rápido, que se acomodavam perfeitamente nos intervalos da jornada de trabalho. Disso a transformação dos restaurantes em unidades moveis foi só um passo. De fato, Rhode Island, um dos centros industriais mais importantes dos Estados-Unidos, assistiu, ao final do século XIX, ao nascimento dos diners: carros que serviam aos operários dia e noite, através de um janela, mesmo nos horários em que as tabernas e os restaurantes já haviam fechado. Tanto por seu sistema quanto por sua estruturação espacial, esses diners já se assemelhavam aos drive-in californianos dos anos 50 e aos fast-foods surgidos posteriormente. Esse novo estilo de alimentação se disseminou rapidamente pelo país, acompanhando de perto as novas demandas. Além disso, alguns desses diners cedo se organizaram em cadeiras. De fato, proprietários controlando simultaneamente muitos restaurantes existiam bem antes do McDonald's: quando um deles obtinham sucesso, tentava abrir outros estabelecimentos fundados sobre os mesmos princípios. As primeiras dessas "cadeias" começaram a aparecer na metade do século XIX nas cidades do leste dos Estados-Unidos. Howard Johnson's que existe até hoje, surge em 1925 como um modesto quiosque de refrescos, hamburgers e hot-dogs em Massachusetts. O sistema de cadeia tornava esses restaurantes, por assim dizer, mais moveis que os precedentes: eles iam aos encontro dos consumidores. Uma das mais famosas dessas cadeias foi a de Fred Harvey, na qual os restaurantes eram localizados nas margens das estradas de ferro - o que facilitava o transporte dos

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produtos alimentícios até as comunidades mais distantes e garantia um público consumidor - os viajantes de trem. Harvey introduziu diversas inovações cruciais para o desenvolvimento posterior das cadeias de restaurantes e que permanecem importantes hoje. Para serem mais facilmente identificáveis, as jovens que trabalhavam como garçonetes se vestiam todas de um modo idêntico e os estabelecimentos adotavam o mesmo estilo arquitetural. Assistentes de Harvey visitavam constantemente os restaurantes para assegurar seu controle, sua homogeneidade, do mesmo modo que fazem hoje os supervisores das cadeias de fast-foods. Assim garantia-se um padrão. No entanto, no que respeita a variedade dos pratos, os restaurantes de Harvey não se comparam com os fast-foods: seus menus eram variados e concebidos de modo a permitir aos viajantes ferroviários não repetir a refeição nos diferentes restaurantes da cadeia. Cadeias como essa se multiplicaram nos Estados-Unidos entre 1920 e 1940. É verdade que a recessão econômica, além do aumento de trabalhadores de fábrica, teve sua importância nisso: sendo menos caros que os restaurantes tradicionais, eles atraiam cada vez mais um público que via seu budget encolher. É durante esse período que nomes conhecidos hoje apareceram: Bob's e BigBoy na Califórnia, Dairy Queen em Illinois, e White Castle no Kansas. Por causa da permanência desses nomes e de sua visibilidade, ou seja, da facilidade de se reconhecer sua marca, somos levados a crer que esses estabelecimentos eram mais numerosos do que de fato o eram: em 1939, somente 4% dos cerca de 100.000 restaurantes que existiam então nos Estados-Unidos pertenciam a cadeias. Do mesmo modo que os fast-foods contemporâneos eles também permaneceram, embora as aparências, minoritários sobre o mercado de restaurantes. No que nos concerne diretamente, é a White Castle que, entre todas as cadeias, é considerada como o ancestral dos fast-foods de hamburger. Tudo começou com Walter Anderson, cidadão do Kansas, que abriu um "dinner" em um veículo remodelado, em 1916, especializado em hamburgers. Seu hamburger cozido à vapor custava apenas 5 centavos de dólar, e, pode-se imaginar, não continha quase nada. Como os primeiros diners, os restaurantes da White Castle visavam os operários que utilizavam o transporte público para ir ao trabalho, longe de suas residências, e que faziam pelo menos uma refeição fora de casa. No entanto, a White Castle estava longe do que se entende hoje por fast-food: a rapidez não fazia parte de suas preocupações, ela mantinha o serviço à mesa, oferecia talheres e se apoiavam na ajuda dos garçons. A importância da White Castle reside no fato que ela espalhou pelos Estados- Unidos o hamburger, sob uma forma e segundo uma receita idêntica em todos os lugares, um prato que se tornou no mundo o símbolo não apenas de sua cozinha mas da própria cultura americana.

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A denominação dos pratos

É interessante observar a nominação atribuída aos pratos nas cadeias de fast-food. Nos anos 50 e 60, os cardápios eram formados por um conjunto reduzido de itens que tinham, em todos os lados, denominações semelhantes: hamburger (hamburguer simples), cheeseburguer (hamburger simples com queijo) e, às vezes, um hamburger (duplo ou composto) com o nome do estabelecimento acompanhando de um adjetivo aumentativo como o Big Bob's ou o Big Mac. Estes nomes eram dados pelo proprietário do estabelecimento. Quando os fast-foods começaram a ser franquias, os nomes passaram a ser escolhidos pelas cadeias, pelo presidente ele mesmo ou até por sua esposa, como foi o caso do McNuggets ou dos EggMcMuffins, sugeridos pela mulher de Turner28. A escolha destes nomes obedece uma semântica própria ainda que não explicitada em documentos. A principal regra é a que eles sejam em inglês. De fato, as diferentes empresas parecem concordar que o inglês seja o segundo idioma nos fast-food, e isto em quase todos os países - a Espanha é excessão, com leis que proibem o uso do inglês. As palavras "hamburger", "chessburguer", "milkshake", "nuggets", "sundaes", "dips", constituem o vocabulário primário do cardápio, em São Paulo como em Paris, em Buenos Aires como em Marrakech. "Chicken" é quase universal, assim como "fish". A preferência pelas palavras em inglês não se restringe aos pratos já bem conhecidos; também os lançamentos portam nomes anglo-saxões. O Quick chamou seu hamburger "duplo" de "Giant" (e não "Géant", em francês), seu hamburger com tomate chama-se "Big Tom" e sua sobremesa "Softy". Quando expressei minha estranheza pelo uso do inglês ao um gerente do Quick, ele considerou: "é justo, os americanos inventaram o hamburger. Então, é uma homenagem justa que nós lhe fazemos". O nome da cadeia continua omnipresente na denominação dos pratos: no McDonald's, quase todos os recém nascidos receberam o "Mc" como prefixo, como nos "McChicken" (Brasil), "McFritas" (Brasil), "McBacon" (França e Brasil). No Bob's, temos o "Bobburguinho" (Brasil) e o "BigBob's". Alguns adjetivos e prefixos são empregados com muita frequência. "Big" funciona como um aumentativo universal servindo para apontar ao cliente o maior item do cardápio - Big Mac, Big Bob's, Big Tom (Quick), Big Bacon (Quick). No Brasil, a preferência recai às vezes no sufixo: a terminação em "ão" é então empregada como aumentativo ("Quarteirão"), enquanto que o sufixo "inho" serve de diminutivo, como no Bobburguinho". Na França, é a terminação "maxi" e os prefixos 'hit", "perfect", "super" e "double" (para o que se refere à carne) que funcionam como aumentativo, como no "hamburger maxi", o "supercheese", o "hitjambon" (Freetime, 1985) - hoje em dia substituído pelo ("perfect Jambon", etc) - e o "Double cheeseburger" de McDonald's. Com muita frequência, se apela aos adjetivos que refletem as noções de finesse e de nobreza - "Royal" (McDonald's), "menu de luxe" (Burger 28 Cf. idem:361.

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King), King fish (Quick), "cheeseburger de luxe" (Burger King), perfect jambon - especialmente na França mas também em outros países, como nos Estados Unidos - McLean Deluxe. Entretanto, apesar da predominância do inglês, a denominação dos pratos cada vez mais combina expressões locais. Assim, no Brasil, o cardápio proposto pelo McDonald's é chamado de "menu paulista", "menu carioca" ou "menu gaúcho" dependendo do local onde a loja se encontra e pode incluir um "molho caipira". Na França, o cardápio dos fast-foods, que até a metade dos anos 1980 era apresentado completamente em inglês, hoje em dia oferece itens que são nominados nas duas línguas, como Filet O' Fish, e outros que são indicados por expressões francesas equivalentes: "apple pie" virou "chausson as pommes" (McDonald's), "tarte as pommes" (Quick) e "délice" (Freetime). Quando se trata de saladas (um item com grande aceitação na França), os nomes são todos locais: Quick propõe as saladas "Ocean", "Fermière", "Printanière"; Burger King as saladas "Méditerranéenne", "Fraîcheur", "Maraîchère"; McDonald's opta por "Jardin", "du Chef" e "as Crevettes"; o Freetime prefere a "Française", a "Japonaise", a "Californienne". Quanto aos molhos, não somente eles são representativos dos gostos locais como têm nomes locais. Na França, temos os molhos "Cocktail", "Fines herbes", "Fromage bleu", "Vinaigrette", enquanto que na Inglaterra eles são chamados de "Sweet curry", "Barbecue", "Mild mustard", "Sweet and sour". Estas escolhas parecem coerentes com o movimento de apropriação de uma memória social e de transformação, através dela, do discurso universalista das cadeias. A escolha de nomes locais age assim do mesmo modo que a decoração: serve para enraízar estes restaurantes, à primeira vista americanos, em um tempo definido e um espaço local, mantendo sua ligação com os Estados Unidos.

A esquizofrenia linguistica

Estas traduções de inglês para uma língua nativa começaram, de fato na cozinha, entre os funcionários. Quando trabalhava no Quick, notei surpresa sintomas de um tipo de esquizofrenia linguística: um mesmo alimento podia ter dois nomes dependendo do lugar onde se encontrava. O queijo era chamado "fromage" ("queijo") quando se encontrava no interior da geladeira (eu recebia a ordem: "vai buscar o queijo!"), mas ele virava "cheese" assim que entrava em uma cadeia de produção (meus companheiros de trabalho diziam: "os cheeses estão prontos" querendo dizer "os hamburgers de queijo estão prontos"). Os pedaços de peixe continuavam sendo chamados de peixes ("poissons") quando crus mas transformavam-se em "fish" após serem fritos. Observei esse mesmo procedimento no Rio onde o "McFish" aparece menu oficial (para os clientes) mas é chamado de "Filet de Peixe" na hora da comanda (entre os empregados). Graças a este novo batismo, os ítens parecem adquirir algo que os valoriza em relação ao produto

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bruto. O queijo, uma vez no hamburger, não é mais um simples queijo; ele é um cheese que valoriza simbólicamente o hamburger. Tudo se passa como se, por um processo não previsto pelo célebre triângulo culinário levistraussiano29, a denominação em inglês fosse responsável ela mesma por uma transformação do alimento, quem sabe aproxima-o do ângulo da Cultura, afastando-o do ângulo da Natureza. Da mesma maneira, na França, alguns pratos guardam um nome oficial em inglês mas os empregados os denominam com uma expressão francesa. É o caso do "Magic Box", que os empregados do Quick chamam de "menu enfant". Por outro lado, um certo numero de palavras em inglês passa por um processo de francesação: em vez de "coke", utilisa-se o nome "coCA"; "manager" ficou "manaGER", (com o acento tônico sobre a última sílaba), etc. O caso das batatas fritas é também interessante: elas são chamadas nos países de língua inglesa de "French Fries" (literalmente fritas francesas), enquanto que na França são chamadas simplesmente de "Frites" (fritas). Às vezes, as traduções se transformam em palavras incompreensíveis. No Brasil, o Quarter-pound (que significa 1/4 de libra no mundo anglo-saxão) foi traduzido oficialmente para "Quarteirão", o que significa uma grande "quadra" (quadra em português é uma unidade de superfície e não de peso)30. A cultura popular brasileira encontrou uma maneira curiosa de simplificar a denominação dos cheeseburgers, pela substituição da palavra "cheese" "pela letra "X" (pronunciada como "cheese" em inglês). Assim, encontramos no menu de lanchonetes particulares e em pequenos quiosques que não pertencem as grandes cadeias itens como o "X-burger".

29 Cf. Lévi-Strauss, C. "Le triangle Culinaire", L'arche n.26, 1965. 30 É pouco provavel que o original em inglês tenha se inspirado no Quarteirão medieval, pão que fazia as vezes de um prato como suporte de outros ítens alimentares Cf. Laurioux, Bruno - Le Moyen Age à Table Paris, Editions Adam Biro, 1989.

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* Cozinha laboratório

Nos fast-foods, os "chefs" deixaram o domínio da cozinha para se aquartelarem, em outro lugar, nos laboratórios centrais onde desenvolvem experiências comparáveis a experimentações químicas. Ou seja, não se abandonou totalmente a idéia de chefes-de-cozinha; eles foram transportados das cozinhas para os centrais de alimentação - e como fazer de outra forma? Precisaria-se de 15.000 chefes somente para atender uma das cadeias. Mudou o nome - não falamos mais de cozinha mas de laboratório ou de centrais de alimentação - e mudaram também os hábitos: os chefes mantiveram as altas tocas brancas mas adotaram luvas transparentes e guadapós ao invés dos tradicionais aventais, evocando mais o cientista que o cozinheiro, numa imagética futurista perseguida pelas redes. Os "chefs" desta cozinha moderna detêm um novo poder; o de ter mais de 4000 aromas artificiais a disposição e assim serem capaz de recriar toda a sorte de sabores "naturais". No entanto, é a estética dos pratos mais do que o sabor que os preocupa. Os produtos vindos de tais laboratórios são aureolados com a graça da ciência, uma graça ambígua, que é percebida como sinal de segurança ao mesmo tempo que inspira as inseguranças mais secretas, como explorei na análise dos rumores envolvendo a deturpação da carne dos hamburgers31. Na passagem da cozinha para o laboratório, grandes chefes perderam a notoriedade para mergulhar no anonimato - ninguém sabe dizer quem foi o inventor de tal ou tal item num fast-food, o artista passou a ser o fabricante de imagens. A reputação de um cozinheiro antes célebre arisca assim a cair no esquecimento, como foi o caso de René Arend de Luxemburgo, contratado por Kroc em 1976 para criar novos pratos32. O artista encarnou-se em outros personagens: sabemos por exemplo que o arquiteto Wilmotte decorou os novos restaurantes da cadeia Quick na França; isto está inscrito sobre placas douradas colocadas em cantos visíveis das salas tanto quanto que em prospectos editados pela empresa. Entretanto, nada é dito sobre o "chefe de cozinha" do Quick ou das outras cadeias. Talvez por isso chefs procuram manter uma distância das redes como atesta o processo movido por Paul Bocuse contra o McDonald's que usou, sem sua permissão, uma foto sua em um anúncio publicitário do Big Mac33. No entanto, a comida fast-foodianas têm inventores e podemos localizar nos anos 60 o início da busca "científica" dos pratos. Love, o porta-voz oficial da cadeia McDonald's, considera as experiências com as batatas fritas como sendo a primeira grande conquista dos laboratórios. A sua narrativa dessa descoberta se reveste de dos mesmos suspenses presente em árduas descobertas científicas. 31 Cf. meu artigo Rumores sobre alimentos: o caso dos fast-foods,1996 no Em Primeira Mão, PPGAS/UFSC. 32 Cf. Love, J. A Verdadeira Historia Do Sucesso. Sao Paulo, Brasiliense.1987:410. 33 Cf. "O revide de Paul Bocuse" IstoÉ/Senhor 4.03.92:55. Bocuse pediu US$2,7 milhões em indenizações e posou para a revista Time montado em um cavalo espetando à la São Jorge vários Big Macs.

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Precisava-se obter as batatas fritas ideais, aquelas que se mostram crocantes e douradas após a fritura. E para isso a empresa empregou mais de 3 milhões de dólares em pesquisas que começaram nos fundos de um restaurante, passaram para o que foi o primeiro laboratório, uma sala de 12m por 15m, que cedo deu lugar a um novo laboratório, instalado na fazenda de Kroc. Hoje em dia, as pesquisas são feitas em laboratórios da Hamburger University, controlada pela empresa. Conclusão: entre as centenas de variedades de batatas existentes, o McDonald's emprega apenas duas: a Russet Burbank e a Marijke, e não bastasse isso, apenas as batatas Russet que atendem as exigências de um mínimo de 21% de matéria seca. Isso porque, depois das longas pesquisas a empresa concluiu que são essas as que apresentam as elevadas taxas de matéria seca necessárias. O segredo para chagar a batata ideal? Bem, é uma combinação entre a batata, o processo do seu congelamento (devem ser secas antes de congeladas) e a variação da temperatura do óleo da fritura (é curioso mas pouco importa a temperatura inicial do óleo e sim que ele suba os graus previstos). Já nos anos 80, 14 pessoas trabalhavam exclusivamente nos laboratórios McDonald's para desenvolver novos produtos e aperfeiçoar os já existentes. Para colocar em ponto Mcchicken Nuggets, por exemplo, foi formada uma equipe, chamada SWAT, que possuía independência total com relação a burocracia e respondia diretamente do presidente da empresa34. Esses laboratórios estudam, além da comida, a melhor ergometria para sua produção. O taylorismo e o fordismo, a economia de gestos aplicada em uma produção em cadeia, que surge com o primeiro fast-food aberto pelos irmão Maurice e Richard, é o que permite que jovens inexperientes reproduzam através do mundo hamburgers tão semelhantes. Pela primeira vez um sistema fundado sobre os conceitos de Taylor e de Ford era aplicado aos restaurantes; o processo de preparação dos alimentos se viu portanto dividido e reconvertido em operações simples e repetitivas (taylorisação) de modo a implicar vários trabalhadores na preparação de um único produto (trabalho em cadeia fordiano). Desse modo, empregados sem nenhuma experiência anterior podiam ser empregados e a substituição de um por outro não tinha mais consequências a nível do produto final.

34 Cf. Love, 1987:411/412.

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As lendas sobre a origem do hamburger:

O termo "hamburger" é, freqüentemente, relacionado a cidade de Hambourg, na Alemanha, que teria sido o seu lugar de origem. Ainda assim, essa informação está longe de ser a mais digna de fé. Pillsbury35 assinala que a primeira aparição impressa da palavra "hamburger steak" teve lugar sobre o menu do restaurante Delmonico's, à Pearl Street, New York, em 1834 - considerado aliás como o primeiro menu impresso na América. Outros autores afirmam que esse "pioneiro" era bem diferente do hamburger atual: "hamburger steak" significava então um bife batido, não moído. Foi somente 50 anos depois, em 1884, que se constatou a primeira ocorrência da palavra em um jornal de Boston, mas a conotação de "fatia de carne moída" só lhe foi dada em 1902. Assim como a etimologia da palavra hamburger, também a história da origem do sanduíche hamburger permanece na sombra - e é talvez arriscado de se falar aqui de uma história36. Com efeito, mais do que uma história são a lendas que nos somos confrontados: a lenda dos marinheiros russos, a lenda da feira de St Louis, a da feira de Ohio, etc. Vejamos algumas mais de perto. A primeira que é também a mais divulgada, explica a gênese do hamburger reconduzindo-a a sua relação com a cidade alemã de Hambourg, e mais precisamente ao seu porto: navios russos ali acostavam, com marinheiros a bordo que amavam um tipo de sanduíche particular, feito com pão e fatias de carne. De onde se deduz que os russos, em Hambourg, foram os inventores do hamburger. Esta é, em todo o caso, a história oficialmente difundida pelo McDonald's através de seus realeses de imprensa, pelos menos nos países estrangeiros onde a cadeira se instala. Encontramos essa história também em enciclopédias e na história oficial de algumas outras cadeias. e mesmo em certos livros de antropólogos reconhecidos, como é o caso de Marvin Harris37. Também na França essa é a versão da história que mais freqüentemente é aceita pelos jornalistas e escritores que tratam da origem do hamburger. O Petit Robert, dicionário francês mais popular, faz referência a ela e acrescenta que existe uma variante francesa do prato. McDonald's chegou ao ponto de fazer uma reconstituição da lenda e levou um hamburger ao prefeito de Hambourg - o qual disse ignorar totalmente que o sanduíche tinha nascido em sua cidade e exclamou simplesmente: Sou eu o hamburger" 38.

35 Cf.Pillsbury,Richard From Boarding House to Bistro - the American Restaurant then and now. Boston, Unwin Hyman, 1990. 36 Podemos considerar o hamburger como pertencendo a fam;ilia dos sanduiches, que segundo outra lenda, teria sido inventado pelo nobre John Montagu, quarto Conde de Sandwich, que viveu na Inglaterra entre 1718 e 1792. Amoroso dos jogos de carta, ele não se afastava da mesa nem para se alimentar, se contentanto de pedir aos servos de lhe trazer pão e carne. Num dia de inspiração, dispos a carne no interior do pão: assim nasceu o sanduiche. 37 Cf. Harris, M. Bueno para Comer, Madrid, Alianza Editorial, 1989. 38 Cf. Love, J.,1987.

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Mas, se o hamburger é um prato originalmente alemão, cabe perguntar porque então ele não se enraizou na Alemanha e sim nos Estados-Unidos? Como foi importado para a América? E porque não era conhecido na Rússia até recentemente? Colocando todas essas questões sobre sua origem, não chegamos a nenhuma resposta precisa. De acordo com uma segunda versão também muito difundida, o hamburger teria nascido em St Louis, nos Estados- Unidos, durante a exposição mundial que ali se realizou em 1904. Existe ainda uma outra história, menos conhecida, que diz que o hamburger teria sido inventado em 1892 por um dono de restaurante de Ohio quando da realização de uma feira. A invenção teria sido fruto do puro acaso: diante da falta de carne porco, utilizada na época nos sanduíches, ele teria tentado substitui-la por carne de gado moída. E as histórias não param por aí. Para o antropólogo/sociólogo francês Claude Fischler, o hamburger teve uma origem judeo-europeana: ele teria sido importado na América por imigrantes judeus39. Pillsbury, por seu lado, faz referência a outras origens mais controvertidas, a mais conhecida atribui a sua invenção a Walter Anderson, que teria criado os hamburgers em 1916, em Wichita, no Kansas. Segundo uma outra história, o estabelecimento onde nasceu o hamburger chamava-se Louis' Lunch, em New Heaven, no estado de Connecticut, em uma data anterior40. Outra versão ainda aparece no livro "Les cinglés du Hamburger", segundo a qual Luigi Cremonini, o rei do fast-food italiano, atribui sua origem a uma espécie de croquette de carne moída muito antiga e tradicional na Itália - cuja receita encontramos já no livro de cozinha assinado por Bartolomeo Sacchi e publicado em 1475. Esse prato era "costumeiramente servido, quatrocentos anos mais tarde, aos emigrantes da terceira classe, muitos dos quais eram italianos, nos navios da empresa Hamburgo-América"41. De fato, podemos remontar os ancestrais do hamburger bem antes, à idade Média se levarmos em conta o fato de que "nas tavernas, o pão era então servido em lanche, com um pouco de toucinho42". Norbert Elias nos fala do quarterão, um pedaço de pão que recebia a carne e o molho e que fazia as vezes de um prato na ausência desses. Se a sua origem se mentem duvidosa, é provável no entanto, como sustenta Pillsbury, que hamburger já era conhecido através de todo os Estados- Unidos no primeiro e segundo decénio do século XX, com uma receita que variava de região para região (com ou sem cebolas, com ou sem legumes, sobre uma simples fatia de pão ou nos "buns"43, a carne podendo ser cozida ou grelhada, o hamburger podendo ser redondo ou quadrado, etc). Os cheeseburgers apareceram quase que simultaneamente. De qualquer modo, mesmo se o hamburger já era conhecido no início do século, ele precisou esperar até os anos 60' para atingir sua popularidade atual.

39 Cf. Fischler,C. L'homnivore. Paris, Odile Jacob, 1990:159. 40 Cf. Pillsbury,R. 1990:49. 41 Bernard, Pierre Les cinglés du hamburger, Paris, Herme, 1989. 42 Cf. Laurioux, Bruno "Le Moyen Age à Table Paris, Editions Adam Biro, 1989:56 43 "Buns" é um pão especial para hamburgers, macio e sem crosta, arrendondado.

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Essas histórias ou lendas revelam intenções contraditórias mas que tem um papel simbólico totalmente complementar. No primeiro mito, o dos marinheiros russos, o hamburger é visto como um produto estrangeiro, alemão ou russo. No segundo e terceiro, os que falam do seu nascimento em uma feira, ele é tido como um produto tipicamente americano. A aproximação com uma ou outra dessas origens tem como consequências conotações nacionalistas e os fast-foods - e especialmente o McDonald's - manipulam essa origem segundo o público a que a história se destina: é vantajoso, as vezes, aproxima-lo dos Estados Unidos, outras distancia-lo. Quando se trata do público americano, liga-se o hamburger à América e o acento é colocado sobre referentes nacionais criando um imaginário patriótico, o que aparece de modo ainda mais claro no discurso publicitário. Ao contrário, quando se trata de um público na França ou na Inglaterra, o hamburger é sempre um prato de origem, não-americana, e a história então será a dos marinheiros russos. Para além dessa reconstrução com intenções provavelmente estratégicas, é interessante que atentemos a certos elementos. Em todas as versões, o hamburger aparece como um prato que é inventado fora de casa, em muitas, são viajantes que o inventam (marinheiros, emigrantes) - não qualquer viajantes mas os que se dirigem aos Estados- Unidos. Ou seja, esses mitos parecem buscar elementos do presente para se constituir: hamburger é consumido quase sempre fora-de-casa, os viajantes são os seus clientes preferenciais e, acima de tudo, ele é visto como ligado a um modo de vida norte-americano. Antes porém de procurar uma verdadeira origem deste prato, parece interessante colocar a questão do porque dessas versões serem tão divulgadas pelas cadeias de fast-foods, do porque, em relação ao hamburger, existe uma necessidade imperiosa de conhecer sua origem. Creio que essa procura da origem se relaciona com as suspeitas relativas ao conteúdo do hamburger, manifestas por rumores que circulam entre os usuários desses restaurantes, assim como as desconfianças suscitadas por um prato que é o exemplo máximo do snack, um modo de comer visto como anti-social, infantil e até mesmo bárbaro ou primitivo.

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44 On ne connaît pas non plus l'origine des frites (appelées French Fries dans les pays de langue anglo-saxonne), mais il est peu probable qu'elle ait um rapport avec a France. Les frites säo connues aos Etats-Unis depuis 1894, mais ce n'est qu'après a Seconde Guerre Mondiale qu'elles ont acquis a popularité actuelle. Il est intéressant de signaler que a première annonce nationale du drive-in des frères McDonald à San Bernardino était une publicité disant que o petit drive-in vendait 30.000 sachets de frites par mois, parue dans o magazine American Restaurante, em 1952. L'annonce a été publiée par Primex "shortening", a sauce des frères bien entendu. L'origine des hot-dogs est elle aussi controversée. Depuis 1860 des vendeurs ambulants offraient des "frankfurters" servis dans um morceau de pain dans les villes industrialisées des USA. a date de a naissance d'un pain spécial pour hamburger n'est pas connue, mais o terme "hot-dog" semble être né em 1906, à partir des bandes-dessinées de T.A. Dorgan que paraissaient les colonnes sportives de Herst. Ce que l'on sait em revanche, c'est qu'il est apparu dans a région de New York. D'autres versions ont essaimé dans o nord-est des USA sous des noms tels que: "frankfurters", "frank", "wiener", "dog", "coney" et"red hot".Pillsbury, R.1990:51.

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