Fasciculo 2 - A Justiça - Conceitos e Origens(1)

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Gretha Leite A JUSTIçA: CONCEITOS E ORIGENS Esta publicação não pode ser comercializada. GRATUITO UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE - ensino a distância ® Este fascículo é parte integrante do Curso Cidadania Judiciária - Fundação Demócrito Rocha I Universidade Aberta do Nordeste I ISBN 978-85-7529-612-7 2

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Gretha Leitea justiça: conceitos e origens

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OBJETIVOS sistematizar os principais conceitos de Justiça e acompanhar as modifi cações de seu signifi cado ao longo da história; aproximar a Justiça do Direito e da Lei e verifi car como o julgamento contribui para fazer Justiça; entender como as formas jurídicas ‒ como o processo ‒ se orientam na busca da Justiça; investigar os estudos de acesso à Justiça e como o Judiciário pode contribuir para efetivação da Justiça em nosso país.

SUMÁRIO1. Introdução........................................................................................................................192. Justiça: na Filosofi a e no Direito ..............................................................................203. A justiça na História ......................................................................................................224. Justiça, Direito e Lei ......................................................................................................245. Acesso à Justiça: o Judiciário e a efetivação de um valor .............................26

Síntese do fascículo ............................................................................................................30Referências .............................................................................................................................31Sobre a autora ......................................................................................................................31

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CURSO CIDADANIA JUDICIÁRIA 1918 Fundação Demócrito Rocha | Universidade Aberta do Nordeste

1 Universalidade: caráter do que é universal, geral, total, ou considerado sob o seu aspecto de generalidade universal.

2 Atemporalidade: característica do que é atemporal, do que não é afetado pelo tempo.

3 Processo legal é a expressão que designa o conjunto de garantias processuais que se inspiram na ideia de julgamento justo. O princípio do contraditório, que é o direito de ser informado e de participar da formação da decisão judicial, faz parte do devido processo legal. O princípio da publicidade dos atos processuais, o direito de recorrer e obter uma segunda decisão, o direito de ter um defensor e princípio da proibição de utilização de provas obtidas por meios ilícitos são outros desdobramentos do devido processo legal.

1.INTRODUÇÃO“Está vendo, Adelaida? – suspirou Felícito Yanaqué. – Eles me fi zeram passar vá-rias semanas de angústia, queimaram o escritório da Avenida Sánchez cerro, os prejuízos foram grandes porque, com medo de que os chantagistas jogassem uma bomba nos meus ônibus, muitos passageiros desapareceram. E agora esses dois safados podem voltar para casa e viver em liberdade, na boa-vida. Está vendo o que é a justiça neste país?”.

O que importa é que a noção de Justiça, assim como a de Liberda-de e Igualdade, atravessa séculos no panteão dos valores que orientam as condutas. São esses valores que dão um fundamento de validade para o comportamento humano. Em outros desdobramentos, a justiça se aproxi-ma do Direito, da Lei, e se entranha nas estruturas de todo um sistema ju-risdicional. A justiça se mostra, então, identifi cada na proposta de que todo homem tem o direito a um julgamen-to. Isso implica na existência de Tribu-nais e Juízes. Essas são formas antigas que, hoje, se traduzem na garantia do devido processo legal3.

O personagem Felítico Yanaqué, do livro O herói discreto, de mário Vargas Llosa faz a pergunta que milhares de pessoas fazem-se todo dia: o que é a justiça? No caso de Felícito, há uma especifi cidade: o que é a justiça neste país. com efeito, a palavra Justiça possui vários signifi ca-dos e pode designar desde um valor até um aparato institucional e burocrático.

No primeiro caso, estamos dian-te da perspectiva fi losófi ca, e o termo assume contornos de universalidade1 e atemporalidade2. No segundo caso, corresponde à ideia que dá suporte à expressão acesso à Justiça. A Justiça aparece, também, como algo do coti-diano, cuja experiência cada um de nós deve ser capaz de viver no dia a dia.

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2.JUSTIÇA: NA FILOSOFIA E NO DIREITOPensar sobre a Justiça signifi ca refl etir sobre o homem em sua condição de ser social. A ideia de Justiça diz respeito diretamente à maneira como os indiví-duos devem tratar-se uns aos outros. O que signifi ca que as condutas de cada um devem ser orientadas por um valor. O agir humano não é aleatório. Viver em sociedade demanda de cada membro do grupo uma refl exão sobre como se comportar. Assim, pensar sobre a Justi-ça signifi ca pensar sobre um dever ser. como deve ser minha conduta diante de uma determinada situação que me diz respeito enquanto membro numa comunidade humana. Assim, a ideia de viver coletivamente é o ponto de parti-da para a refl exão sobre Justiça.

A Filosofi a, nesse caso, apresenta--se em sua dimensão mais prática, refe-rindo-se às nossas ações. A função dessa fi losofi a prática é auxiliar os cidadãos a encontrar formas de resolver seus confl i-tos. Esses confl itos se instalam em ques-

tões do cotidiano, na determinação de políticas públicas pelo governo e nas de-liberações que resultarão em leis gerais, produzidas pelos órgãos legislativos. há casos de escolhas dramáticas: devemos torturar um suspeito de terrorismo? De-vemos autorizar a eutanásia4 em pacien-tes irreversíveis que não sofrem, mas que levam a família à exaustão? Devemos manter quotas em universidades e em-presas públicas? O que é certo fazer? Ou melhor, o que é o mais justo?

como um ramo específi co da Fi-losofi a, as teorias da justiça têm enor-me infl uência no Direito. Duas grandes escolas se destacam. Na antiguidade, as teorias da justiça eram fundadas na ideia de virtude. Na modernidade, as teorias da justiça são fundadas na ideia de liberdade. As teorias da justiça mo-dernas podem apresentar-se em três grandes abordagens.

A abordagem utilitarista preconiza que a justiça signifi ca maximizar a utilida-de ou o bem-estar. O objetivo é atingir a maior felicidade para o maior número de pessoas. Outra abordagem, diz que justi-ça signifi ca respeitar a liberdade de esco-lha. A ideia de liberdade de escolha en-contra extremos em que as regras de livre mercado passam a ser o guia de orienta-ção da conduta para todas as situações reais. Por fi m, há propostas modernas que resgatam a ideia de virtude. Nestas, a justiça envolve o cultivo dos valores mo-rais e a preocupação com o bem comum.

No Direito, a questão da justiça se apresenta como um objeto da Filosofi a do Direito. Sob a infl uência do positi-vismo jurídico5 do século XX, estabele-ceram-se três campos de investigação do Direito. Esses campos se distinguem pela perspectiva de abordagem. Na perspectiva deontológica (do ponto de vista do valor), Direito é o que é justo. Na perspectiva ontológica (defi nição do ser), Direito é a norma, sua expres-são concreta. Na perspectiva fenome-nológica, Direito é o fato real.

4 Eutanásia: ato de proporcionar morte sem sofrimento a um doente

atingido por afecção incurável que produz dores intoleráveis

5 O positivismo jurídico é uma escola de pensamento jurídico que considera o direito posto (positivo) com o único objeto possível de estudo por parte do jurista. Foi formulado inicialmente por John Austin, em meados do século XIX. O principal defensor do positivismo jurídico no, século XX, foi o jurista austríaco Hans Kelsen. Ele propõe o

conhecimento do Direito por meio do estudo da norma jurídica, com foco na sanção (consequência para o não

cumprimento da norma).

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Assim, são estruturadas três discipli-nas; a Filosofi a do Direito, para os estudos do fundamento ou valor das disposições jurídicas; a Teoria Geral do Direito, para os estudos da norma, sobretudo em sua estrutura; a Sociologia do Direito, para o estudo dos efeitos concretos da norma e a experiência empírica (real) do Direito. A questão da Justiça, entre a Filosofi a e o Direito, conserva sua função de funda-mento do ordenamento jurídico.

O entendimento da relação Justiça e Direito demanda que se estabeleça o que se entende por Direito. De certo, não se pode pensar em direito justo ou injusto sem considerar o que é o próprio Direito. O seu signifi cado sofreu modifi cações ao longo do tempo. No contexto da moder-nidade, o Direito corresponde às caracte-rísticas e às necessidades (ou interesses) das sociedades industriais e capitalistas.

A defi nição mais comum do Direito o considera como uma forma específi ca de ordenação das condutas. convive com outros sistemas de ordenação, como os preceitos religiosos, a moral e as normas sociais. De toda forma, é possível des-tacar algumas características do Direito moderno. Ele é estatal e apresenta-se na forma escrita. Utiliza a coação e sua sanção (consequência para o descumpri-mento) é institucional. Busca ter efi cácia social e pretende o reconhecimento da legitimidade de suas formas. Todos esses atributos se estabeleceram na moderni-dade. Tornou-se possível referir-se ao Di-reito sem mencionar a Justiça. Predomi-na o positivismo jurídico como principal teoria explicativa do Direito.

Por outro lado, se o Direito ainda fosse visto como a projeção da Justiça, não teria sido possível articular as teo-rias críticas. As teorias críticas do Direito foram fundamentais na superação de certas distorções da lei, como a previ-são de castigos corporais. Também con-tribuíram para suprir certas ausências de determinações legais, como a de-terminação de repouso ao trabalhador.

Por isso, as teorias críticas do Direito partem da rejeição da vinculação entre direito (tal como posto) e Justiça.

Outra corrente do pensamento ju-rídico foi buscar na proposta de Justiça social o fundamento para um novo Direi-to, o Direito Social. No Brasil, essa escola de pensamento tem como referência os estudos do professor cesarino júnior6, a partir dos anos 40 do século XX.

A afi rmação do fracasso do positi-vismo jurídico dos séculos XIX e XX fez ressurgir a Filosofi a do Direito a partir da segunda metade do século XX. Filó-sofos do Direito como Giorgio Del Vec-chio e Miguel reale7 defendem que o valor próprio do Direito é a Justiça, identifi cada no bem comum. O Direito não é apenas um dever ser, mas um de-ver ser para ser justo. Dentre as teorias jurídicas contemporâneas, a teoria dos direitos fundamentais resgata a noção de justiça na proposta da proporciona-lidade. O Direito retoma o discurso de legitimação pela justa medida da deci-são. A Justiça volta a ser o pressuposto de toda a ordem jurídica. mas não sem antes ter percorrido uma trajetória his-tórica, que examinaremos a seguir.

6 Antonio Ferreira Cesarino Junior (1906 ‒ 1992), foi o sistematizador do Direito do Trabalho no Brasil, com a publicação dos primeiros livros sobre a matéria: Direito Social Brasileiro (1940) e Direito Processual do Trabalho (1942).

7 Miguel Reale (1910 ‒ 2006) provocou, quando ainda jovem estudante, verdadeira revolução, nas ciências jurídicas, ao conceber a teoria tridimensional do Direito, estabelecendo a união dialética entre os três elementos: fato, valor e norma. Coordenou e elaborou o Código Civil Brasileiro, de 2002, mas também é o criador que injetou substância no Estatuto Civil.

Para Refl etir1. há muitas questões que envolvem o conceito de Justiça. Imaginemos um caso em que um portador de uma doença rara procura o Judiciário para ordenar que o Estado arque com as despesas de seus medica-mentos. Pela raridade da doença, a indústria farmacêutica não investe em pesquisa para descobrir novos e mais baratos tratamentos. O gestor das verbas de saúde pública, ao receber a ordem judicial, sabe que ao dotar, em seu orçamento, valores sufi cientes para atender essa deman-da, deixará de cobrir despesas com dezenas de pacientes menos graves. O que é certo fazer? Ou melhor, o que é o mais justo?

2. Qual das defi nições de Direito é mais operacional? Aquela que pres-cinde do questionamento da justiça da decisão ou a que procura um fundamento de justiça?

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3.A JUSTIÇA: NA HISTÓRIAA ideia de justiça tem origem na Filoso-fi a. herdamos do pensamento antigo a contribuição fi losófi ca dos gregos e ju-rídica dos romanos. As refl exões sobre ética e política nasceram nas cidades gregas, entre os séculos VI e IV antes da era cristã. São refl exões, cujo objeti-vo era atingir o bem-estar coletivo, por meio do bom, do belo e do justo.

Os gregos admiravam a harmonia do cosmos e aspiravam para os homens, no seu conviver, o mesmo equilíbrio. Para Platão (428 – 348 a. c.), alcançar o bem e a justiça exigia o conhecimento do que era realmente o Bem e a Justiça. Aristóte-les (384 – 322 a. c.), entretanto, afi rmava que conhecimento do Bem e da Justiça não garantia sua realização. O conheci-mento não imprimia qualidade moral aos indivíduos. Para ele, além de ser neces-sário conhecer o que são as virtudes (va-lores morais, como a justiça), os homens deveriam querer agir em conformidade com o justo. Aqui se insere a questão da natureza humana. O homem, ao mesmo tempo racional e irracional, pode entrar em confl ito consigo mesmo sobre o que é fazer a coisa certa.

Na Grécia antiga, o cometimento de um ato de injustiça dizia respeito ao cum-primento ou não das leis da cidade. No diálogo críton, de Platão, Sócrates afi rma que as leis da cidade não devem ser se-guidas apenas quando nos convém. Viver sob as leis da cidade signifi cava aceitar um pacto, um acordo. Seus termos de-vem ser respeitados mesmo quando con-tra nossos interesses pessoais.

Qual o fundamento desse respeito às leis? Para Aristóteles, os homens obe-decem, especialmente, por medo, pelo

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Qual o fundamento desse respeito às leis? Para Aristóteles, os homens obe-decem, especialmente, por medo, pelo

temor ao castigo. Somente em poucos casos os seres humanos praticam ações virtuosas – como ser justo – porque agir assim é honrado e íntegro. Agir segundo as leis, mesmo quando contrarie interes-ses pessoais, signifi ca ir de encontro ao prazer e as paixões. Signifi ca também ter coragem, pois o medo era compreendido como uma paixão. Nota-se que Aristóte-les não condena os prazeres, mas a sua desmesura. Por isso, os gregos buscavam educar a juventude. Tratava-se de dotar a juventude de temperança, na busca da justa medida de cada prazer para a vida adulta. De toda forma, o objeto das re-fl exões era o modo como nos comporta-mos diante do prazer e do sofrimento.

Refl etir sobre o comportamento é estabelecer uma preocupação com o bem-estar do outro. Tratava-se de alcan-çar uma comunidade ordenada segundo a justiça e o bem comum. Aristóteles ar-gumentava que a fi nalidade primordial da cidade é a promoção do bem viver juntos. Este bem viver se daria com a promoção de um modo de vida determinado pelos princípios da justiça e da virtude.

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Os romanos afi rmavam que o Direi-to é a arte do bom e do justo. Na Roma antiga, cícero (106 – 46 a. c.) defendia que a Justiça era o próprio fundamen-to da República. Não se poderia defi nir direito (ius) separado da ideia de justiça (iustitia). como se vê, a justiça é o funda-mento, meio e fi m das ações humanas. mas o que é a Justiça? O que é o jus-to? Formula-se então o conceito de que justiça nada mais é do que aquela virtu-de que distribui a cada um o que é seu.

Durante a Idade média, a noção de Justiça se afasta do viés político que ti-nha na Grécia antiga. Seu conceito vai ser determinado pelo pensamento cris-tão. Santo Agostinho (354 – 430) defende que a justiça é servir a Deus. Em um mun-do de confl itos, os homens jamais alcan-çarão a justiça. De maneira incondicional, a Justiça pertence apenas à cidade de Deus, que não é deste mundo. Agosti-nho defendia a religião cristã e a ideia da justiça divina. Essa ideia, embora com al-gumas alterações, preserva, até hoje, seu vigor conceitual do que é a justiça.

Para se opor à noção de justiça divi-na, os tempos modernos construíram a proposta de justiça social8. Abandonan-do a esperança de encontrar a justiça em outro mundo, a ideia de justiça passa a referir-se às condições materiais de vida, especialmente nas cidades industriais. Além da perspectiva fi losófi ca e jurídica, o problema da justiça é referido no pen-samento econômico e sociológico.

contemporaneamente, john rawls9 (1921 – 2002) reacende a discussão sobre o ideal de uma cidade justa de cidadãos livres e iguais. Rawls redireciona a refl e-xão política e fi losófi ca para a realização efetiva as ideias de liberdade e igualda-de da cidadania democrática. Inclui nas suas refl exões tanto questões relaciona-das à forma quanto às condições mate-riais (de renda e de riqueza). A crise do liberalismo do bem-estar social e do so-cialismo real levou ao que habermas10 (1929) denominou de “esgotamento das energias utópicas”.

A teoria da justiça de Rawls deu novo ânimo aos debates sobre os fundamentos de uma sociedade jus-ta. Seu liberalismo político igualitário desenvolve uma concepção de justiça como equidade. São discussões sobre a justiça nas sociedades democráticas contemporâneas11.

Segundo Rawls, a justiça é o funda-mento da vida social assim como a ver-dade é o fundamento do conhecimento.

Para Rawls, assim como uma teoria deve ser rejeitada se não for ver-

dadeira, as leis e as institui-ções, por mais bem or-ganizadas que estejam, devem ser reformuladas ou abolidas se foram in-justas. Existem duas cir-cunstâncias da justiça: a justiça distributiva e a questão da tolerância12.

Em outra linha de pensamento, o fi lósofo m. Sandel (1953) resgata

8 A expressão Justiça Social surgiu em meados do séc. XIX, para designar uma proposta política baseada na igualdade de direitos e na solidariedade coletiva. É com referência à ideia de justiça social que se organizaram as ações afi rmativas, como a política de quotas que assegura a admissão de um número específi co de estudantes de certos grupos minoritários em universidades americanas, há mais de 30 anos.

9 John Rawls publicou Uma teoria da Justiça em 1971, livro no qual defende um vínculo necessário entre a justiça e a estrutura básica de uma sociedade democrática. Nessa estrutura básica, incluem-se a constituição política e os principais arranjos econômicos e sociais, como a liberdade de pensamento e de consciência. Nessa obra, apresenta-se a ideia da posição inicial de igualdade (a ideia do véu da ignorância). Em 1993, Rawls publica O liberalismo político, respondendo às críticas comunitaristas, no qual discute questões relativas ao pluralismo cultural e ao princípio da tolerância.

10 Jürgen Habermas é fi lósofo e sociólogo alemão, inserido na tradição da teoria crítica e pragamatismo.

11 Nas sociedades democráticas contemporâneas, a complexidade e a pluralidade são as marcas mais distintivas, ao lado de uma crescente desigualdade de renda e de riqueza. Acrescente-se também a pluralidade de culturas e planos de vida individuais. Esse cenário potencializa confl itos profundos no acertamento dos critérios de justiça distributiva. Há uma gigantesca rede de direitos e deveres que temos de reconhecer reciprocamente como membros de uma comunidade política de livres e iguais

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os contextos simbólicos e culturais, os laços de solidariedade e valores comuni-tários como o que dá sentido à vida das pessoas. com isso, opõe-se ao liberalis-mo de Rawls, que se funda em valores abstratos como liberdade e igualdade. Para que se realize a justiça, devem ser levados em consideração os valores con-cretos da comunidade política. Sandel alinha-se ao pensamento comunitarista.

Para Refl etir1. Se a Justiça pretende ter valor universal, referindo-se a todos os ho-mens em todos os lugares, é válida a proposta de contextualização cultural proposta por Sandel?

2. Ao sabermos do veredito de ape-drejamento de uma mulher viúva por ter se relacionado afetivamente depois da morte do marido, nos dias atuais, devemos considerar a decisão justa, uma vez que alinhada com os costu-mes locais e ancestrais desse povo?

12 Segundo Werle (2012), as questões da justiça distributiva decorrem

da escassez moderada e referem-se ao modo de estabelecer em termos

equitativos que determinam a partilha dos encargos e benefícios decorrentes da cooperação social. As regras do livre mercado não se aplicam a estas

questões, porque não se orientam pela justiça, mas pelo máximo proveito. As questões de tolerância, por sua vez, são decorrentes do reconhecimento do multiculturalismo, que necessitam

da especifi cação de direitos e de deveres para cidadãos que possuem

interesses e projetos de vida diferentes e se encontram profundamente

divididos entre si por uma diversidade de doutrinas e convicções fi losófi cas,

religiosas, morais e políticas.

13 Poderosos Instrumentos: a força da Lei escrita não advém somente de seu caráter estatal. A cultura

jurídica ocidental é marcadamente infl uenciada pelas religiões ocidentais, que por sua vez se fundam em livros sagrados (a Bíblia, o Alcorão e o Torá).

Como herança dessa tradição do uso da palavra, constituíram-se duas

espécies de vínculos de direito que nos asseguram e nos fazem assegurar: a lei e o contrato. Do lado da lei, encontram-se os textos e as palavras que se impõe a nós independentemente de nossa vontade; do lado do contrato, as

palavras que vinculam procedem de livre acordo. Mas, diferentemente da lei judaica ou da mulçumana, o Direito que se desenvolveu no Ocidente não exprime uma verdade transcendente que se impõe ao Homem. O Direito

procede dos fi ns que lhe são conferidos do exterior pelo Homem, fi ns humanos e não divinos. Daí sua capacidade para servir a fi ns diversos, na história dos

sistemas políticos.

4.JUSTIÇA, DIREITO E LEINa modernidade, o Direito assume a fei-ção de técnica. como vimos, sua defi ni-ção se constrói sem menção à Justiça. O Direito é defi nido como uma técnica que organiza o convívio pacífi co das comuni-dades humanas. Sua função é estabilizar as expectativas pela redução e controle das tensões sociais.

controlar as tensões sociais torna--se o objetivo do Estado na era indus-trial. Na cidade moderna, o homem converte-se em operário, que faz parte do processo produtivo. A lógica que orienta esse processo é o da máxima produção. Por isso, a disciplina e o con-trole, inclusive dos hábitos de higiene, tornam-se fundamentais. As cidades industriais são espaços perigosos de convivência. Neles surgem doenças e ideias. Era preciso controlar ambas. O Direito assume o lugar de técnica de controle mais efi ciente para atingir esse objetivo.

Surgem as grandes codifi cações e as leis penais tornam-se poderosos instrumentos13 de repressão à vadia-gem e à mendicância. Também prote-gem a propriedade acima de qualquer valor. Foram muitos os serviços presta-dos pelo Direito moderno ao sistema de mercado. O maior deles foi a segu-rança das relações comerciais.

A reaproximação do Direito e da Justiça diz respeito à redefi nição de seu papel e do papel do Estado nas socie-dades contemporâneas. Fundamentado no princípio da Justiça social, o Direito realiza uma intermediação entre a po-tência das máquinas e os limites físicos do corpo humano. As primeiras leis tra-balhistas reprimem o desejo de lucro e

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resgatam o respeito do uso do corpo humano. São estabelecidos limites às jornadas de trabalho extenuantes e pe-ríodos de descanso. Essa é a resposta jurídica do século XX aos séculos XVIII e XIX. Também é preciso considerar o processo de mecanização dos processos produtivos. As máquinas contribuíram para a redução das jornadas e do uso da força humana.

Para a antropologia jurídica, hoje se multiplicam os pedidos de ajuda lança-dos ao Direito e aos juristas a fi m de que consolidem escolhas morais de nossas sociedades. As recentes descobertas em matérias científi cas contribuem para o aumento dessas demandas ao Direito.

Por um lado, se amplia nosso domí-nio sobre a vida, por meio de técnicas de intervenção no corpo humano. Por outro lado, os cientistas se interrogam até onde ir sem ultrapassar o limite ético de respeito à pessoa humana. O Direi-to, porém, não pode mais se limitar a ser mais uma técnica. Alan Supiot (1949) res-gata a função antropológica do Direito na imagem do homo juridicus. O Direito, nessa perspectiva, assume uma função de técnica humanizadora da técnica.

considerar a justiça como um atri-buto do Direito robustece o Direito fren-te a outros fundamentos. Na Alemanha nazista, o fundamento do Direito era a vontade do soberano – o Führer. Tam-bém havia um apelo às leis da raça, às leis da história. Em outros regimes, são as leis do mercado que se apresentam como alternativas para orientar as con-dutas humanas.

contemporaneamente, as leis da genética pretendem ditar os destinos dos homens. De todas essas propos-tas de fundamento, somente o Direito atende à necessidade de ser uma re-presentação comum da Justiça. Essa necessidade é vital para toda a socieda-de, pois a busca por Justiça confere um senso comum à ação dos homens.

Para Refl etir1. mencionamos as discussões sobre o que fazer em face de transplantes de órgãos e de manipulação de ma-terial genético. O que estas questões têm a ver com o signifi cado de Justi-ça? Por que precisamos de leis para regulamentar escolhas tão pessoais, como a possibilidade de um casal escolher a cor dos olhos de seu fi lho ainda por nascer?

2. Por que não nos parece correto que as pessoas possam vender luga-res nas fi las para eventos gratuitos? Por que não nos parece justo que um homem muito rico compre por um alto valor de dinheiro um rim de um homem muito pobre?

14 Eugenia: teoria que busca produzir uma seleção nas coletividades humanas, baseada em leis genéticas.

Assim, no limiar do séc. XXI, o Di-reito também atua no reconhecimen-to da condição da pessoa humana em cada ser humano. Essa tarefa se renova diante do deslumbramento com a ci-ência e sua técnica. As discussões con-sistem no questionamento sobre o que fazer em face de transplantes de órgãos e de manipulação de material genético.

m. Sandel refere-se a um mal-estar, um desconforto moral, com certos avan-ços da ciência. hannah Arendt (1906 – 1975) vê a natalidade, ou seja, o fato de os seres humanos nascerem, e não serem fabricados, como uma condição para sua capacidade de ação e, portan-to, de transformação. E habermas inter-roga-se, de fato, se a humanidade está a caminho de uma eugenia14 regulada pela lógica da oferta e da procura.

Por fi m, é preciso afi rmar o óbvio: que uma pessoa não pode ser objeto. Todo ser humano é um fi m em si mesmo, como nos ensinou Kant (1724 – 1804). Não pode ser objeto de uma encomen-da para fi ns utilitários. As condições em torno da origem são de extrema impor-tância para os seres humanos. São elas que se garantem o que, até agora, foi formulado em termos de viabilidade para o projeto de convivência humana: que as pessoas sejam livres e iguais.

O Direito se apresenta, então, como o instrumento regulador ao qual cumpre o controle ético das condutas diante de novos dilemas. Essa preten-são somente será viável com o funda-mento de Justiça que confere ao Direi-to sua dimensão, não somente técnica, mas humana.

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5.ACESSO À JUSTIÇA: O JUDICIÁRIO E A EFETIVAÇÃO DE UM VALORO que exploramos até aqui diz res-peito à concepção teórica de Justiça. Vimos que a palavra Justiça também pode fazer referência a uma estrutura

SAIBA MAIS

A estrutura básica de um aparelho judiciário é constituída por um tribunal e seus juízes. Os juízes são os órgãos de 1º grau de jurisdição, o que corresponde ao primeiro exame da questão. Os Tribunais são os órgãos de 2ª grau de jurisdição, encarregados inicialmente de receber os recursos das decisões dos juízes. Existem ações que se processam e julgam pelos Tribunais, originariamente.

Os Tribunais são compostos por colegiados e suas decisões em regra são acorda-das por pelo menos três julgadores. São os Tribunais que fazem a gestão adminis-trativa e orçamentária dos órgãos jurisdicionais. Os Tribunais também possuem um órgão máximo, composto por todos os membros reunidos (o Pleno do Tribunal). No Brasil, a opção pelo federalismo determinou a estruturação da Justiça Federal (da União) e a Justiça Estadual (dos estados). Os órgãos do Poder Judiciário estão identifi cados no art. 92 da constituição Federal de 1988. há um tribunal com juris-dição em todo o território nacional para uniformizar a aplicação da lei federal, o STJ – Supremo Tribunal de Justiça.

Também foram estruturadas três Justiças especializadas: a trabalhista, a eleitoral e a militar. As Justiças especializadas são organizadas e mantidas pela União, por isso fazem parte da Justiça Federal. Acima de todos os órgãos do Judiciário está o STF – Supremo Tribunal Federal. Sua principal função é atuar como guardião da constituição. É o órgão que exerce o controle concentrado de constitucionalidade de leis ou atos normativos, por meio de ações diretas declaratórias de inconstitu-cionalidade (as ADINs). mas o STF também funciona como tribunal recursal.

O conselho Nacional de Justiça também é órgão do Judiciário, embora não te-nha função jurisdicional. Os Juizados Especiais cíveis e criminais são parte do Judiciário Estadual, para confl itos de menor complexidade e potencial ofensivo. A Justiça Federal também estrutura Juizados Especiais Federais, principalmente para pequenas ações contra o INSS. Os Tribunais de contas, ressalte-se, não fazem parte do Poder Judiciário. São órgãos técnicos que auxiliam o Poder Legislativo no controle das contas do Podes Executivo. Assim como não faz parte do Judiciário a Justiça Desportiva.

burocrática. A fi nalidade dessa estru-tura é garantir a realização do Direito. Uma vez recuperada a noção de Justi-ça como fundamento do Direito, cabe investigar de que forma Tribunais e juí-zes relacionam-se com esse valor.

Veremos também, de que forma a ideia de um julgamento condiz com a noção de Justiça que buscamos. A ideia de que a Justiça não se faz de for-ma espontânea é antiga. O julgamen-to, enquanto procedimento que leva a uma decisão mais sábia e mais justa, tem registros históricos longínquos.

Esse procedimento se caracteri-za por exigir que a decisão sobre uma questão não seja tomada sem um mí-nimo de refl exão sobre a escolha fi nal. Desde antígona15, fi rmou-se a noção de que a aplicação da lei não deve ser imediata, exigindo uma refl exão sobre a justiça da decisão. A proposta de um julgamento determina um marco civi-lizatório para a humanidade. Institui o terceiro imparcial e afasta do ofendido o direito de confrontar diretamente ao agressor. constantemente, essa mo-dalidade de resposta direta resulta em outra ofensa, quase sempre despropor-cional ao agravo. Quando se faz justiça com as próprias mãos o confl ito não é resolvido, a sociedade não se sente pa-cifi cada e a Justiça não é alcançada.

15 Antígona, de Sófocles, é uma tragédia grega que narra a disputa entre o laço

de solidariedade de Antígona com o irmão morto e as leis da cidade, encarnada em seu tio e soberano Creonte. É parte das tragédias tebanas, que

iniciam com a história de Édipo, pai de Antígona. A tragédia

trabalha com a relação entre leis humanas e leis divinas

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16 As provas mais comuns eram as testemunhais. Quando os juízes tinham conhecimento dos fatos, julgava conforme sua consciência. Todos podiam depor, inclusive os escravos. Os depoimentos dos escravos eram precedidos pela tortura. Acreditava-se que sem a tortura, naturalmente mentiriam!

17 Os ordálios tinham um caráter mágico e não investigativo: era a prova pela qual se invocava a divina providência para intervir. Havia os ordálios unilaterais: o acusado submetia-se à prova e passar pela prova equivalia a uma declaração de inocência. Era literalmente o que se chama passar pela prova de fogo: apertar uma brasa, por a mão na água fervendo ou no fogo. Deus faria com que as mãos do inocente não queimassem. Se o acusado se negava a passar pela prova, isso equivalia a uma confi ssão de culpa. Havia os ordálios bilaterais: as duas partes se submetiam a uma espécie de duelo; quem ganhasse era inocente ou falava a verdade.

há muitas espécies de julgamen-to. Na Grécia antiga, para os casos de crimes públicos, o julgamento era fei-to por tribunais com dezenas ou cen-tenas de membros. É desse período que herdamos a tradição dos discur-sos jurídicos de defesa e acusação. Os gregos também já utilizavam um dos elementos mais importantes de um julgamento: a prova16.

Os romanos desenvolveram formas sofi sticadas, por meio das quais pratica-vam o Direito como uma arte. mas, foi o processo canônico que estabeleceu as principais formas processuais modernas. O processo canônico era o meio pelo qual se acusavam alguém, diante dos Tri-bunais do Santo Ofício, pela prática de heresia e outros delitos. Ao treinar uma classe de funcionários – profi ssionais do processo – disseminou a prática racional da argumentação jurídica. O processo

canônico era prioritariamente escrito, su-perando as práticas de oralidade antigas. Instituem-se os autos do processo. É tam-bém no direito canônico que surge tipica-mente a fi gura do advogado, um perito em Direito.

mas a transformação mais signifi -cativa se deu no procedimento proba-tório. Até então, as provas eram ditas irracionais, os ordálios17. No proces-so canônico, as provas se dirigiam ao juiz. O juiz assume a tarefa de fazer as perguntas. com isso, a ideia de justi-ça se aproxima da ideia de verdade. Essa noção continua presente até hoje no nosso modelo de prestação jurisdi-cional. A ascensão do indivíduo e do liberalismo político clássico faz nascer uma série de garantias individuais no processo. De forma concisa, essas ga-rantias são expressas na já mencionada fórmula do devido processo legal.

SAIBA MAIS

Na Alemanha nazista, o Judiciário teve participação efetiva na construção do Esta-do totalitário. O modo como os julgamentos se realizavam se distanciava totalmen-te dos princípios e garantias processuais modernos.

O declínio do Estado de Direito inicia quando as cortes judiciais aceitaram funda-mentar suas decisões em defesa do Estado ou da Nação, para julgar contra a lei. Declarado o estado de emergência, declarava-se também o fi m do Estado constitu-cional alemão. Os magistrados eram orientados para adotarem uma interpretação generosa para as leis penais. Isso signifi cava uma abreviação no tempo dos proces-sos criminais (foi possível chegar aos ten-minute trials, julgamento em 10 minutos).

O Judiciário se torna um perseguidor dos oponentes políticos ao nazismo, com o incremento das penas de morte e prisão perpétua. cada princípio fundamental do Estado de Direito foi desconsiderado: a lei penal tornou-se retroativa; era possível e recorrente o enquadramento de conduta como criminosa sem prévia cominação legal; prisões preventivas eram possíveis sem qualquer interferência do Judiciário, mas sob o controle exclusivo da polícia; a ideia de punição ao ato criminoso foi substituída pela noção de personalidade criminosa, determinada por nascimento; foi considerada apenas a intenção como cometimento de crime; foram criados inú-meros tribunais especiais e de simulacros de julgamentos sumários, decididos com referência a valores como “honra” e “dever de lealdade ao povo”, com fundamen-tação sucinta das decisões. Fonte de consulta: mÜLLER, Ingo. hitler’s Justice – The courts of the Third Reich. I.B. Tauris&co Ltd Publishers: London, 1991.

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18 Conferir: Direito e Justiça - a função social do Judiciário, organizado por José Eduardo Faria; Corpo e alma da

magistratura brasileira e A judicialização da política e das relações sociais no Brasil, de Luiz Werneck Viana; Magistrados ‒ uma imagem em movimento, de Mª Tereza Sadek.

19 A expressão Estado de Direito designa um modelo político disciplinado por um ordenamento jurídico específi co (em geral consagrado na Constituição), que

controle o exercício do poder por meio de instrumentos jurídicos ‒ especialmente a lei, e limita as possibilidades de exercício

arbitrário do poder.

20 Direitos coletivos: são aqueles que se referem a um grupo específi co ou a uma categoria profi ssional, como o direito à greve; direitos difusos são aqueles cuja titularidade não pode ser determinada,

como o direito a um meio ambiente equilibrado

Por fi m, o termo Justiça pode ter por signifi cado o aparelho estatal buro-crático composto por Tribunais e juízes. Os estudos sobre acesso à Justiça, rea-lizados a partir dos anos 80 no Brasil, se propõem a pensar soluções para o “pro-blema da justiça18”. O Judiciário assu-me um papel de protagonista na luta pelo estado de direito19.

há um reconhecimento da impor-tância do Judiciário na consolidação da nova ordem constitucional. Tal as-pecto, por si só, já reclamaria um Ju-diciário que se deslocasse da sua con-dição de periférico para o lugar de instituição central. A neutralidade pre-conizada não poderia mais signifi car indiferença às questões nacionais.

mauro cappelletti e Bryant Garth realizaram um amplo estudo sobre ex-periências de acesso à Justiça em vários sistemas judiciários. Os autores identi-fi caram e sistematizaram os principais obstáculos ao acesso efetivo à Justiça. Os principais avanços foram a garan-tia de assistência judiciária aos pobres e o reconhecimento de defesa dos direitos coletivos e difusos20.

Os principais obstáculos são eco-nômicos e culturais. Os obstáculos eco-nômicos são o alto custo e a lentidão do processo, que se converte em prejuízo econômico. Os obstáculos culturais são percebidos nas representações simbó-licas do Judiciário. Identifi cado como um poder muitas vezes autoritário, o

Judiciário é visto de forma confusa. Ele está imerso em um complexo aparelho repressivo que engloba também a polí-cia e o sistema carcerário.

Pesquisas constatam que a elite brasileira raramente vai ao Judiciário. Difi cilmente as grandes empresas, com seus grandes negócios, nos quais gi-ram vultosos interesses econômicos, gostariam de ter um poder judiciário examinando suas entranhas. Os po-pulares, o outro extremo do horizonte socioeconômico brasileiro, iam (vão) ao judiciário pela via repressiva. São os usuários forçados do sistema. Réus em processos criminais de furtos e roubos, que superlotam o sistema carcerário e as delegacias. O desafi o é oferecer um serviço jurisdicional que atenda os inte-resses da grande maioria dos cidadãos. muitas têm sido as discussões sobre o papel do Judiciário no combate à cor-rupção no Brasil.

Outro obstáculo da ordem cultural é a imagem dos Tribunais. Esses são associados a um labirinto incompreen-sível. Lá trabalham homens e mulheres de toga, a quem é preciso tratar com toda deferência. As decisões se articu-lam numa linguagem indecifrável para o leigo. O desconhecimento ou pouco conhecimento dos direitos contribui para o distanciamento entre o Judiciá-rio e a sociedade brasileira. Esse fenô-meno é identifi cado como baixo aden-samento da cidadania. Sua correção se

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dará por meio de um esforço coletivo, que envolve o próprio Judiciário e to-dos os grupos sociais.

há ainda dois outros importantes mecanismos de democratização do Judiciário brasileiro. O primeiro é a geração de novos e atualizados dados estatísticos, absolutamente necessários a uma boa administração judiciária. O segundo é a permanente capacitação de servidores e magistrados. A criação do conselho Nacional de Justiça, pela Emenda constitucional nº 45/2004, ob-jetiva sanar esses problemas.

O cNJ é órgão de controle da atua-ção administrativa e fi nanceira dos tribu-nais, conforme art. 103-B, §4º, da consti-tuição. São também atribuições do cNJ propor novas formas de composição dos órgãos diretivos dos Tribunais, enfren-tando o corporativismo e o nepotismo. Esses últimos aspectos dizem respeito aos processos de democratização inter-nos do Judiciário, bem como da constru-ção de um verdadeiro espírito republica-no dentro da magistratura.

De tudo o que dissemos, fi ca claro que um Judiciário efi ciente contribui para a administração diária de nossas doses essenciais de Justiça. Um Judi-ciário operante contribui para aproxi-mar o cidadão dos meios legais de re-solução de confl ito. Essa convivência pode gerar um enorme adensamento de nossa cidadania.

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Para Refl etir1. A vingança ou o “acertamento de contas” pessoal ainda é comum em nossos dias? Por que resistem à proposta civilizatória de um terceiro imparcial e da aplicação de uma pena baseada na lei e na justa medi-da da decisão?

2. O Judiciário brasileiro sinaliza com um movimento de aproxima-ção dos cidadãos. São realizados mutirões de conciliação para resol-ver de forma mais rápida confl itos de menor potencial ofensivo e baixo grau de litigiosidade. De que forma poderá o Judiciário tornar-se mais atrativo enquanto meio de solução de confl itos individuais e sociais?

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SÍNTESE DO FASCÍCULO

Neste fascículo, foram abordadas ques-tões sobre a Justiça. No tópico I, foi dito que a Justiça, para a Filosofi a, refere-se ao modo de como os homens orientam suas ações para viver coletivamente. O Direito foi defi nido como uma forma es-tatal de ordenar condutas, tendo a Jus-tiça como seu fundamento.

No tópico II, a Justiça foi estudada na história. Na Antiguidade, seu obje-tivo era alcançar o bem-estar coletivo pelo cumprimento das leis. Na Idade média, a Justiça torna-se servir a Deus.

A única Justiça possível era divina. Na Idade moderna, supera-se essa pers-pectiva e propõem-se o conceito de Justiça social, que envolve aspectos econômicos. contemporaneamente, a Justiça, como fundamento da ordem social e jurídica, refere-se à realização da liberdade e da igualdade.

No tópico III, foi discutido o papel do Direito, de instrumento de controle das tensões sociais à intermediação das relações entre o homem e a máquina, entre o homem e a ciência. A Justiça re-

LINHA DO TEMPO DOS PENSADORES CITADOS

platão428 - 348

a.c

aristóteles384 - 322

a.c

santo agostinho354 - 430

a.c

hannah arendt1906 - 1975

habermas1929

M. sandel1953

cícero106 - 46

a.c

immanuel Kant1724 - 1804

john rawls1921 - 2002

alan supiot1949

toma seu lugar de valor de orientação diante de dilemas éticos.

No tópico IV, investigou-se a forma de fazer Justiça e a função do julgamento como um procedimen-to realizado por terceiros treinados e mediante provas. Foram expostos os obstáculos de ordem econômica e cultural sistematizados pelos estudos de acesso à Justiça. Foi apresentada a estrutura básica do Poder Judiciário e foram discutidas algumas ações para sua democratização.

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REFERÊNCIAScAPPELLETTI, mauro. GARTh, Bryant. acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfl eet. Porto Alegre: Fabris Editor, 1998.

WERLE, Denilson Luis. o Liberalismo contemporâneo e seus críticos. In: RA-mOS, Flamarion caldeira et alii (coord). Manual de Filosofi a política: para os cursos de teoria do estado e ciência política, fi losofi a e ciências sociais. São Paulo: Saraiva, 2012.

SANDEL, michel J. justiça: o que é fazer a coisa certa. Trad. heloísa matias e ma-ria Alice máximo. 8. ed. Rio de Janeiro: civilização Brasileira, 2012.

SANTOS, Boaventura de Sousa. para uma revolução democrática da justiça. São Paulo: cortéz, 2007.

SUPIOT, Alan. homo juridicus:ensaio sobre a função antropológica do Direito. São Paulo: WmF martins Fontes, 2007.

SOBRE A AUTORAGretha Leite é doutora em Direito pela Universidade Federal do ceará. Profes-sora adjunta da Faculdade de Direito da UFc. Professora da pós-graduação da Escola Superior do ministério Público e da Universidade de Fortaleza (Unifor). Foi coordenadora geral adjunta do curso de

Direito da Faculdade christus, professora do curso de Direito da Faculdade chris-tus, professora do curso de graduação e pós-graduação em Direito da Faculdade Farias Brito e diretora de Ensino da Escola superior do ministério Público.

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ApoioRealização

expediente FUNDAçãO DEmócRITO ROchA Presidência joão dummar neto | Direção Geral Marcos tardin UNIVERSIDADE ABERTA DO NORDESTE coordenação Pedagógico-Administrativa ana paula costa salmincURSO cIDADANIA JUDIcIáRIA | concepção e coordenação Geral cliff Villar | coordenação Técnica gustavo Feitosa | coordenação de Edição raymundo netto | Gerência de Produção sérgio Falcão | Edição de Design amaurício cortez | Editoração Eletrônica dhara sena e cristiane Frota | Ilustrações Karlson gracie | catalogação na Fonte Kelly pereira

Este fascículo é parte integrante do curso cidadania judiciária da Fundação Demócrito Rocha (FDR) / Universidade Aberta do Nordeste (Uane) isBn 978-85-7529-612-7

Fundação deMócrito rochaAv. Aguanambi, 282/A - Joaquim Távora cep 60.055-402 - Fortaleza-ceará Tel.: (85) 3255.6037 - 3255.6148 Fax: (85) 3255.6271

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