Farmácia Clínica Hospitalar nos Estados Unidos da América

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Farmácia Clínica Hospitalar nos Estados Unidos da América (EUA): uma Visão por Farmacêuticos Brasileiros Felipe Costa de Souza, Luciana Moreira Maramaldo Costa, Marcos Chu e Karin Vicente Greco A farmácia clínica começou a se desenvolver nos Estados Unidos da América (EUA) por volta dos anos 60 e, desde então, assim como em outras profissões, a conquista de mudanças significativas continua sendo um desafio. Muitas barreiras ainda precisam ser transpostas (Kenreigh & Wagner, 2006). O conceito de farmácia clínica vem sendo construído para descrever o trabalho de farmacêuticos cuja função primária, em linhas gerais, é interagir com a equipe de saúde e com os pacientes, fazer recomendações terapêuticas específicas, monitorar a resposta dos pacientes à terapia medicamentosa e fornecer informações sobre medicamentos. A prática da farmácia clínica requer um bom entendimento dos processos patológicos, grande familiaridade com a terapêutica e sólidos conhecimentos dos produtos farmacêuticos. Além disso, requer habilidade de comunicação, com conhecimento das terminologias médicas e conhecimento técnico para realizar monitoramento de fármacos, provisão de informações sobre medicamentos, planejamentos terapêuticos e para avaliar resultados de exames laboratoriais. A dosagem de fármacos para a realização de monitoramento farmacocinético também são habilidades desejáveis ao farmacêutico clínico. Os farmacêuticos clínicos, geralmente, são membros ativos da equipe multidisciplinar e acompanham as visitas médicas para contribuir com as discussões terapêuticas no cuidado com o paciente (WHO, 2006). Nos EUA, o farmacêutico clínico é visto como um especialista em farmacoterapia e esse conhecimento é utilizado proativamente para garantir a terapia racional, evitando, ao máximo, erros no uso de medicamentos que se seguem às decisões terapêuticas inapropriadas.

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Farmácia Clínica Hospitalar nos Estados Unidos da América (EUA): uma Visão por Farmacêuticos Brasileiros

Felipe Costa de Souza, Luciana Moreira Maramaldo Costa, Marcos Chu e Karin Vicente Greco

A farmácia clínica começou a se desenvolver nos Estados Unidos da América (EUA) por volta dos anos 60 e, desde então, assim como em outras profissões, a conquista de mudanças significativas continua sendo um desafio. Muitas barreiras ainda precisam ser transpostas (Kenreigh & Wagner, 2006).

O conceito de farmácia clínica vem sendo construído para descrever o trabalho de farmacêuticos cuja função primária, em linhas gerais, é interagir com a equipe de saúde e com os pacientes, fazer recomendações terapêuticas específicas, monitorar a resposta dos pacientes à terapia medicamentosa e fornecer informações sobre medicamentos.

A prática da farmácia clínica requer um bom entendimento dos processos patológicos, grande familiaridade com a terapêutica e sólidos conhecimentos dos produtos farmacêuticos. Além disso, requer habilidade de comunicação, com conhecimento das terminologias médicas e conhecimento técnico para realizar monitoramento de fármacos, provisão de informações sobre medicamentos, planejamentos terapêuticos e para avaliar resultados de exames laboratoriais. A dosagem de fármacos para a realização de monitoramento farmacocinético também são habilidades desejáveis ao farmacêutico clínico. Os farmacêuticos clínicos, geralmente, são membros ativos da equipe multidisciplinar e acompanham as visitas médicas para contribuir com as discussões terapêuticas no cuidado com o paciente (WHO, 2006).

Nos EUA, o farmacêutico clínico é visto como um especialista em farmacoterapia e esse conhecimento é utilizado proativamente para garantir a terapia racional, evitando, ao máximo, erros no uso de medicamentos que se seguem às decisões terapêuticas inapropriadas.Este profissional está envolvido em uma interação direta com o paciente e em sua avaliação.

Rotineiramente, o farmacêutico realiza avaliações da terapia medicamentosa e faz recomendações aos pacientes e à equipe de saúde. Os farmacêuticos clínicos são a fonte primária de informações válidas cientificamente e de aconselhamentos relativos à segurança, ao uso apropriado e ao custo-efetivo dos medicamentos (American College of Clinical Pharmacy, 2005). Além dessas funções, deve-se considerar o impacto científico promovido pelos farmacêuticos clínicos pesquisadores, posto que eles geram, aplicam e disseminam novos conhecimentos que contribuem para a melhoria da saúde e da qualidade de vida dos pacientes.

Tomando como exemplo mais específico as atividades de farmácia clínica desenvolvidas no New York Methodist Hospital (NYM), lideradas pelo PharmD (doutor em farmácia) Marcos Chu, brasileiro que atua como farmacêutico nos EUA há 14 anos e como farmacêutico clínico há oito anos, poderemos exemplificar melhor a atuação dos farmacêuticos nos EUA.

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O NYM é uma instituição privada com cerca de 600 leitos, localizado no bairro do Brooklyn, em Nova York (EUA). A visão que se tem do farmacêutico clínico por parte de médicos, enfermeiros e outros profissionais da equipe de saúde é a de um profissional capaz de contribuir efetivamente para a otimização da farmacoterapia. Existe uma solicitação rotineira, por parte de médicos, de informações sobre doses de medicamentos a serem prescritos, sua potencial toxicidade e sua relevância para determinado tipo de paciente ou patologia. O que se observa é que a equipe conta com a participação desse profissional na execução de suas atividades, identificando-o como alguém que pode, de fato, prover informações atualizadas e promover intervenções relevantes e eficazes, objetivando o uso racional de medicamentos.

Diariamente, o farmacêutico avalia todas as prescrições médicas, decidindo sobre a dispensação dos itens nela presentes. Havendo a necessidade de efetuar intervenções quanto à indicação, dose, interações ou qualquer outro parâmetro, o médico prescritor pode ser contatado por meio de um sistema de Pager intra-hospitalar. Todas as intervenções efetuadas e as decisões tomadas são registradas no próprio sistema de prescrição integrado utilizado pelo hospital. A automação de muitos serviços, como o fracionamento, a entrega e a armazenagem de medicamentos, bem como uma equipe técnica bem preparada e treinada, permitem que o farmacêutico tenha tempo hábil para analisar cuidadosamente cada prescrição e intervir sempre que necessário, além de contribuir para a prevenção de erros relacionados a medicamentos.

De forma sistemática, a farmácia clínica é exercida nas Unidades de Terapia Intensiva (UTI) do NYM, conforme recomendações da Joint Task Force of the Society of Critical Care Medicine (Rudis & Brandi, 2000). As intervenções realizadas pelos farmacêuticos são referentes à posologia de antimicrobianos, a ajustes de dose e até mesmo à escolha do fármaco mais adequado para o paciente em questão. Como suporte para suas intervenções, o farmacêutico tem acesso a informações dos pacientes contidas no sistema integrado como peso, altura, idade - imprescindíveis para o cálculo de dose e posologia - creatinina sérica, clearance de creatinina, resultados de antibiograma e concentração plasmática de “pico” e “vale” de alguns medicamentos importantes, como a vancomicina, além de outros parâmetros laboratoriais, como contagem de células, dosagem de glicose, uréia, enzimas hepáticas etc. A partir dessas informações e das  fontes bibliográficas disponíveis, o farmacêutico clínico pode, com um bom embasamento teórico sobre a fisiopatologia das doenças comuns em seu âmbito de atuação, realizar intervenções que contribuam para a otimização da farmacoterapia empregada para cada paciente.

O serviço de farmácia, em seus diferentes setores - farmácia principal, farmácia satélite e sala de manipulação de injetáveis, além do serviço de informações sobre medicamentos e o escritório de farmácia clínica – conta com inúmeras fontes de informação impressas e bases bibliográficas disponíveis on-line, como o Micromedex.

O serviço produz ainda um jornal interno com informações sobre medicamentos, publicado periodicamente, com a finalidade de esclarecer dúvidas dos profissionais da saúde e divulgar informações a respeito da eficácia e da segurança de fármacos, o que contribui para a atividade clínica. Os residentes de farmácia integram, juntamente com seu preceptor, as visitas da clínica médica e cirúrgica, por meio das quais, junto com os residentes médicos, participam do processo de aprendizado e podem, concomitantemente, exercer atividades de farmacovigilância. Além disso, todos os

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farmacêuticos participam periodicamente de um processo de educação continuada e são submetidos a um teste, cujo resultado implica na renovação ou não de seus registros profissionais perante o estado.

Não há dúvidas de que o reconhecimento da relevância desta área da farmácia por toda a equipe da saúde, associado a uma justa remuneração, são fatores que possibilitam o seu exercício pleno. A contratação de farmacêuticos para trabalhar em farmácia clínica, nos EUA, é uma prática comum, adotada pela maioria dos hospitais de grande porte, o que já começa a ocorrer em alguns hospitais no Brasil, seja pelo entendimento da importância deste profissional no cenário clínico ou  pelas exigências cada vez maiores de organismos responsáveis pela acreditação hospitalar.

A remuneração adequada também é algo que estimula o crescimento da farmácia clínica nos EUA. O farmacêutico clínico recebe, geralmente, um salário superior ao de um farmacêutico contratado como dispensing pharmacist, por exemplo, o que garante condições mais confortáveis de vida no País. Além disso, devido ao número reduzido de profissionais habilitados para o exercício, tanto da farmácia quanto da farmácia clínica, é possível conciliar o trabalho em duas instituições  hospitalares, sob o regime de plantão, elevando ainda mais a remuneração.

Outra questão que apresenta ainda alguma diferença entre a farmácia clínica nos EUA e a desenvolvida no Brasil é o embasamento teórico e prático obtido durante o curso de graduação em farmácia. Muitas faculdades de farmácia nos EUA introduziram em seus currículos o estudo da farmácia clínica, como já ocorre em várias Universidades no Brasil. Os cursos de farmácia norteamericanos têm duração de seis anos, após os quais se recebe o título de PharmD.

Muito se tem discutido no Brasil sobre o papel de farmacêutico como dispensador de medicamentos x cuidador da farmacoterapia, porém, de maneira geral, pouco se tem realizado para que seja plena a inserção do profissional farmacêutico na prática clínica (Greco, 2006). Isso ocorre por uma série de fatores que dificultam, porém não inviabilizam o desenvolvimento da  farmácia clínica no Brasil. Dentre esses fatores, pode-se citar a formação ainda desintegrada da prática clínica, a falta de reconhecimento da importância do farmacêutico clínico pela equipe de saúde e a falta de uma remuneração justa e de um plano de carreira adequado ao profissional.  Além destes fatores, deve-se levar em consideração que, infelizmente, grande parte das farmácias hospitalares no Brasil ainda não possui condições de desenvolver todas as atividades básicas de um serviço de farmácia hospitalar (gerenciamento, seleção de medicamentos, logística, informação  e distribuição). Segundo estudo realizado pela Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), apenas 5,9% dos serviços de farmácia hospitalar de maior complexidade no Brasil desenvolvem todas as atividades básicas e cerca de 55% desses foram classificados como insuficientes (Messeder et al, 2007). Assim, mesmo sabendo que a farmácia  clínica é uma área em expansão dentro da profissão farmacêutica, a farmácia hospitalar no Brasil ainda precisa vencer uma série de desafios para que essa atividade seja desenvolvida em sua plenitude.

Por outro lado, pode-se ver alguns serviços de farmácia hospitalar no Brasil senão mais avançados, no mesmo nível de alguns hospitais norte-americanos e europeus, o que leva

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a acreditar que se caminha para uma evolução da farmácia hospitalar e clínica também no Brasil.Além disso, a literatura sobre a importância do farmacêutico clínico ganha cada vez mais espaço  tanto no Brasil quanto no mundo. Vários estudos demonstram que a inclusão de um farmacêutico na equipe de cuidado ao paciente traz melhores resultados, tanto clínicos quanto econômicos (Kenreigh & Wagner, 2006) e isso, somado aos esforços individuais de vários farmacêuticos  conscientes de mudança e de desafios, pode levar ao pleno desenvolvimento deste árduo trabalho dentro do âmbito hospitalar.

Publicado na Revista Racine 107 (Novembro/Dezembro 2008)

Atualizado em Sex, 13 de Agosto de 2010 09:59

O que é Farmácia Clínica?

O que é Farmácia Clínica?

Seria fácil escolher uma definição de farmácia clínica e responder esta pergunta de forma objetiva, mas é difícil compreender o que é farmácia clínica sem voltar no tempo para entender em que contexto este conceito foi desenvolvido. Assim, aqui se procura fazer uma síntese muito breve do contexto histórico da farmácia a partir do século XX para facilitar a compreensão do tema.

A farmácia no início do século XX estava associada à figura do boticário, que preparava e comercializava produtos medicinais. Este papel tradicional começou a ser alterado quando a preparação de medicamentos passou a ser desempenhada gradualmente pela indústria farmacêutica, a partir da Segunda Guerra Mundial. Esse fato levou a um descompasso entre a formação do profissional e as ações demandadas pela sociedade, gerando uma frustração em alguns profissionais, pois os conhecimentos adquiridos na graduação já não eram mais aplicados de forma permanente na prática diária e acabavam se perdendo. Como consequência, os farmacêuticos, que atuavam na área assistencial, começaram a converter-se em meros dispensadores de produtos fabricados, distanciando-se da equipe de saúde e do paciente.

As inquietudes, geradas pela situação acima descrita, levaram ao nascimento, na década de 1960, de um movimento profissional que, questionando sua formação e atitudes, determinou como poderiam ser corrigidos os problemas que estavam sendo detectados. Assim, líderes profissionais e educadores norte-americanos passaram a discutir o conceito de “orientação ao paciente” que levou à criação do termo farmácia clínica, compreendida como uma atividade que permitiria novamente aos farmacêuticos participar da equipe de saúde, contribuindo com seus conhecimentos para melhorar o cuidado.

A partir de 1960 foram formulados vários conceitos para farmácia clínica, como, farmácia orientada de forma equivalente ao medicamento e ao indivíduo que o recebe, farmácia realizada ao lado do paciente, entre outros. Segundo o Comitê de Farmácia Clínica, da Associação dos Farmacêuticos de Hospital dos Estados Unidos: “A farmácia clínica é uma ciência da saúde, cuja responsabilidade é assegurar, mediante a aplicação de conhecimentos e funções relacionadas com o cuidado dos pacientes, que o uso dos medicamentos seja seguro e apropriado, e que necessita de educação especializada e/ou treinamento estruturado. Requer, além disso, que a coleta e interpretação de dados sejam criteriosas, que exista motivação pelo paciente e que existam interações interprofissionais”.

Os conceitos de Farmácia Clínica foram sendo paulatinamente difundidos e incorporados pela profissão farmacêutica no mundo todo. No Brasil, o grande interesse pelo tema se deu na década de 80, em especial na área hospitalar, onde esta prática desenvolveu-se com mais força. Por esta razão, ainda hoje, existe a ideia de que

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Farmácia Clínica é uma atividade que somente é exercida no ambiente hospitalar, onde está presente toda a equipe de cuidado do paciente. Esta é uma ideia que pode e deve ser repensada, pois o exercício da atividade clínica não pode ser uma questão de ambiente e oportunidade, mas na realidade é uma questão de filosofia profissional, ou seja, o profissional que está voltado para o exercício da clínica age como clínico em qualquer ambiente onde se requeira uma postura de avaliação de situação para identificação e resolução de problemas de saúde.

Um exemplo disso pode ser verificado diariamente na postura de profissionais clínicos diante de situações que demandem sua atuação como, em vias públicas, cinemas, aviões, ou seja, em qualquer local onde estejam presentes e surja um problema que gere necessidade de prestação de cuidado especializado: o profissional clínico percebe sua responsabilidade de atuar e age no sentido de identificar e ajudar a solucionar o problema. Pensando dessa forma podemos compreender que a atividade clínica do farmacêutico não pode e não deve ser exercida unicamente no ambiente hospitalar, mas em qualquer ambiente onde haja usuários de medicamentos que possam estar expostos ou experimentando agravos relacionados aos efeitos de seu uso.

É importante ainda destacar que a Farmácia Clínica representou a introdução da orientação da prática farmacêutica ao paciente. Contudo, alguns conceitos propostos colocavam ainda os medicamentos como elemento principal e somente mencionavam o paciente, o que fez com que a atividade de Farmácia Clínica fosse associada tanto a atividades diretamente realizadas com o paciente (clínicas) quanto com atividades realizadas de forma indireta. Esta mescla de atividades diretas e indiretas regidas pelo mesmo termo contribuiu para sua própria descaracterização, enquanto atividade estritamente clínica, contribuindo para as discussões que geraram a proposta um redirecionamento da atividade do farmacêutico clínico através do conceito de Atenção Farmacêutica ao final da década de 1980.

Fonte: Grupo Racine*