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  • Famlia Escrava: escravido, hierarquias sociais e economia no Rio de Janeiro setecentista. 1

    Vanessa Alves de Assis Vieira Resumo

    As transformaes ocorridas na Amrica Portuguesa, mais especificamente na capitania do

    Rio de Janeiro em fins do sculo XVII e XVIII, so de suma importncia para a compreenso

    da dinmica imperial no antigo regime portugus. Nesse sentido, o presente trabalho busca

    refletir sobre o novo papel ocupado pela capitania fluminense nos quadros desse imprio,

    avaliando principalmente o impacto dessas transformaes no perfil da escravido

    setecentista. Este cenrio foi favorecido, entre outros aspectos, pela descoberta das minas na

    centria anterior, fato este que permitiu um incremento significativo no trfico de cativos

    africanos desembarcados no porto carioca, repercutindo nas caractersticas da escravido, e

    mais incisivamente no perfil da famlia escrava setecentista.

    Abstract

    The changes that took place in the Portuguese America, specifically in the capitania of Rio de

    Janeiro by the end of the XVII and XVIII centuries are of great importance to the dinamycs of

    the portuguese ancient regime. In this sense, the present paper tries to reflect about the new

    role of the fluminese capitania om the framework of this Empire, availing mainly the impact

    of these transformations on the profile of slavery of the seventeen-hundreds. This scenario

    was favored, among other aspects, by the discovery of the mines in the century before - fact

    that allowed a significant increase on the traffic of native africans dispached at the port of Rio

    de Janeiro, repercussing at the characters of slavery, more precisely on the profile of the slave

    family during the seventeenth century.

    Introduo Este artigo a apresentao de uma das propostas para trabalho de concluso do bacharelado

    em Histria pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), intitulado Famlia Escrava:

    Estudo sobre as hierarquias sociais e a escravido setecentista que se encontra em estgio

    inicial. Portanto, minha anlise encontra-se balizada pelas recentes pesquisas que discutem a

    escravido como um marco decisivo na definio dos modos de dominao que deram forma

    ao Brasil colonial. A partir das alteraes no perfil famlia escrava ocasionadas pelo 1 Esta temtica integra meu projeto de pesquisa monogrfica desenvolvido na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) orientado pelo professor doutor Antnio Carlos Juc de Sampaio Bolsista de CNPq da UFRJ na pesquisa intitulada A arte mercantil: os homens de negcio do Rio de Janeiro na segunda metade do sculo XVIII, realizada no perodo de agosto de 2007 a abril de 2008, concernentes bolsa de iniciao cientfica -PIBIC CNPq, vinculada ao professor doutor Antnio Carlos Juc de Sampaio.

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    incremento do trafico, busco enfatizar o papel desses agentes histricos submetidos

    escravido e suas diferentes experincias sociais.

    Desde os incios da dcada de 1980, os estudos realizados em Portugal 2 sobre a histria

    poltica e institucional do seu vasto Imprio, abalaram os paradigmas interpretativos acerca

    das relaes entre a coroa e suas reas colnias. Grosso modo, essas pesquisas demonstraram

    o quanto era ingnua a imagem de uma centralizao absoluta dos poderes Monrquicos,

    vislumbrando um novo arcabouo conceitual, capaz de explicitar criticamente a dinmica

    existente nas relaes entre o reino e o ultramar. 3 O intuito destas pesquisas era ressaltar a

    fragilidade destas relaes de poder, afirmando a existncia de um equilbrio tnue, dado pela

    necessidade constante de reiterao da ordem social entre o poder central e suas diferentes

    localidades.

    A historiografia sobre o tema, discute hoje a noo de Antigo Regime nos trpicos, quando

    versa sobre a montagem de uma sociedade colonial na Amrica. 4 Percebemos que h um

    grande esforo, conseqentemente um grande avano, em repensar a idia de Antigo Regime

    para a prpria Europa. Estas noes teriam formado um arcabouo terico de bases comuns

    aos reinis, que, compreendendo a idia de uma sociedade de tal maneira, teriam engendrado

    uma transposio destas concepes para o Imprio.

    A pluralidade daquela Europa, do incio da Era Moderna, amplamente reforada nesses

    estudos, muito embora possamos perceber que h algo em comum aproximando essas

    paragens. 5 A mentalidade coletiva encarava a sociedade e o Estado de acordo com uma noo

    predominante, a qual chamamos de concepo corporativa da sociedade. 6 atravs desse

    2 Ver as pesquisas de Antnio M. Hespanha, ngela Xavier e Nuno G. Monteiro para o Antigo Regime em Portugal. 3Ver, por exemplo: HESPANHA, A.M. A constituio do Imprio portugus: Reviso de alguns enviesamentos correntes. In: FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria Fernanda & GOUVA, Maria de Ftima (orgs). O Antigo Regime nos trpicos: dinmica imperial portuguesa (sculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001; Idem. Poder e Instituies na Europa do Antigo Regime. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkien, 1994. 4 Novas abordagens trouxeram, desde as dcadas de 1970 e 1980, produes que pem em xeque as idias tradicionais de se pensar a lgica da sociedade colonial brasileira. No cabe neste trabalho apresentarmos as antigas noes sobre o tema, que vm desde a referida poca sendo discutidas e remodeladas. Apenas lembramos que o vnculo da Amrica com Portugal era compreendido como uma relao predatria por parte deste ltimo, o qual visava explorar ao mximo as terras conquistadas. Para maiores detalhes de tal corrente, cf. PRADO Jr., Caio. Formao do Brasil contemporneo. So Paulo: Brasiliense, 1977. Ou ainda NOVAIS, Fernando A. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial, 1777-1808. So Paulo: Hucitec, 1983. Para as novas discusses, cf. FRAGOSO, Joo; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVA, Maria de Ftima. (orgs.) O Antigo Regime nos trpicos: A dinmica imperial portuguesa (sculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001. Ou ainda FRAGOSO, Joo e FLORENTINO, Manolo Interpretaes. In: O Arcasmo como projeto. Mercado Atlntico, sociedade agrria e elite mercantil em uma economia colonial tardia: Rio de Janeiro, c. 1790 c. 1840. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2001. p. 23-59. 5 FRAGOSO, Joo, op.cit. , p.41. 6 HEPANHA, Antnio Manoel. (coord.); MATTOSO, Joo. (org.) Histria de Portugal: O Antigo Regime (1620-1807). Lisboa: Estampa 1998.

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    arcabouo conceitual que buscamos analisar alguns aspectos da vida do escravo no Rio de

    Janeiro setecentista. Ao desembarcar um dos fatos que um escravo novo deveria enfrentar era

    o carter estratificado da sociedade colonial, com posies e qualidades bem demarcadas. 7

    Escravos e senhores reproduziam essas hierarquias no seu dia-a-dia, e foi esta dinmica que

    engendrava o sistema escravista.

    Sendo assim, ao demarcarmos a presena destas fronteiras na sociedade colonial, estamos

    indicando tambm a existncia de determinados espaos para ao, nos quais os escravos

    podiam estabelecer barganhas, obtendo em alguns casos, conquistas. Procuramos analisar a

    famlia escrava como parte de uma conquista realizada no cotidiano, em meio s hierarquias

    existentes no interior da sociedade escravista, acreditando que a escravido constitui-se como

    um dos principais sustentculos desta hierarquizao.

    A historiografia mais recente sobre a escravido, no Brasil, apesar de ainda em

    nmero reduzido em relao a outras reas escravistas8, tem procurado investigar a questo da

    formao de relaes sociais escravas, e de forma particular, os laos de parentesco entre

    esses agentes histricos. De fato, hoje as concepes clssicas9 sobre o acesso dos cativos

    formao de famlias j foram questionadas. Entretanto, o debate em torno desta temtica

    ainda suscita inmeras divergncias entre os historiadores. 10 A famlia escrava, mesmo

    interpretada sob diferentes matizes, atualmente entendida como uma realidade estrutural

    entre os estudiosos do escravismo colonial, embora h algum tempo atrs a simples hiptese

    de que os escravos pudessem ter acesso constituio de laos familiares fosse um absurdo

    completo. 11 Posto desta maneira, aos escravos restaria apenas a passividade frente ao julgo

    senhorial, restando pouco, ou nenhum espao para manifestaes culturais, negociao e

    estratgias de vida cotidianas.

    7 KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). So Paulo: Companhia das Letras, 2000. 8 Por exemplo, a bibliografia sobre escravismo nos Estados Unidos e Caribe. Cf.BERLIN, Ira. Geraes do Cativeiro: Uma histria da escravido nos Estados unidos. Rio de Janeiro: Record, 2006. 9 Baseados desde o sculo XIX, nos binmio escravo-coisa, escravo-promscuo e escravo-degenerado, podemos afirmar que at bem pouco tempo atrs, essas concepes ainda estavam presentes na historiografia sobre o tema aqui proposto. Ver: RODRIGUES, R. Nina. Os Africanos no Brasil. Braslia: Ed. Universidade de Braslia, 1982, p.5; FREYRE, G. Casa Grande e Senzala. So Paulo: Record, 1998, p.338; COSTA, Emlia Viotti da. Da Senzala Colnia. So Paulo: Companhia Editora nacional, 1982: p.257; PRADO Jr., Formao do Brasil Contemporneo. So Paulo: Brasiliense; GORENDER, Jacob. O Escravismo colonial. So Paulo: tica, 1978; CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e Escravido no Brasil Meridional: O negro na sociedade escravocrata do rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. 10 Para compreender parte dessas discusses, ver: SLENES, Robert. W; FARIA Sheila de Castro. Famlia escrava e o Trabalho. In: T