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FAMÍLIA NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: avanços e retrocessos com amatricialidade sociofamiliar

Solange Maria TeixeiraUniversidade Federal do Piauí (UFPI)

FAMÍLIA NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: avanços e retrocessos com a matricialidade sociofamiliarResumo: O objetivo deste artigo é analisar a política de assistência social e suas deliberações, como o SistemaÚnico de Assistência Social, que institui como um dos seus eixos estruturantes a matricialidade sociofamiliar,abordando as contradições e paradoxos conceituais e práticos desse eixo, que pode promover retrocessos nocampo assistencial, mas também avanços se trabalhado numa perspectiva de totalidade. Conclui-se que nãobasta ter a família como centralidade da política; reconhecer sua pluralidade de formas e singularidades; sãonecessários serviços públicos de acesso universal dirigidos à família que secundarize suas funções de reproduçãosocial.Palavras-chave: Assistência social, familia, proteção social.

FAMILIES IN THE SOCIAL ASSISTANCE POLICY: advances and setbacks within the familiar social matrixAbstract: This paper analyzes the social assistance policy and its´ decisions, such as the Unified Social Assistance,which has established as one of its´ main structural axes the familiar social matrix, by addressing the conceptualand the practical contradictions and paradoxes of this axis. This fact can cause setbacks in the assistance area butalso can present advances if working on a whole perspective. It is perceived that having the family as the center ofthe policy is not enough. It is necessary to recognize its´ plurality of forms and singularities. Besides, the familiesneed to have Universal access to the policies directed to the families as a whole instead of highlightening it´s socialreproduction role.Key words: Social assistance, family, social protection.

Recebido em: 30.09.2009. Aprovado em: 29.10.2009

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1 INTRODUÇÃO

No Brasil, a política pública estevetradicionalmente voltada, como no caso dos segurossociais, ao “indivíduo-trabalhador” e sua família, comodependentes, reproduzindo o modelo tradicional defamília, baseado nos papéis do homem\provedor emulher\cuidadora; e, no caso específico da políticade assistência social ao “indivíduo-problema”, ou a“situações específicas problemáticas”, fundadas noparadigma da família irregular e incapaz. Desde osanos 90, assiste-se a uma mudança na conduçãoda política social, em que a família assumecentralidade, como na política de assistência social.

Mas, como destaca Mioto (2006), a incorporaçãoda família nas políticas públicas se faz de formabastante tensionada entre propostas distintas,vinculadas a projetos também distintos em termosde proteção social e societário. Identificam-se duasgrandes tendências nesse processo de incorporação:uma, denominada “familista” e, outra, “protetiva”.

A primeira, a “familista”, é identificada com oprojeto neoliberal que preconiza a centralidade dafamília, apostando na sua capacidade de cuidado eproteção, enquanto canal natural de proteção social,junto com o mercado e organizações da sociedadecivil. A intervenção do Estado se daria somentequando falhassem esses canais naturais.

A segunda, a tendência “protetiva”, emcontraposição, afirma que a capacidade de cuidadose proteção da família está diretamente relacionada àproteção que lhe é garantida através das políticaspúblicas, como instância a ser cuidada e protegida.

Todavia, como a análise da política de assistênciasocial realizada neste artigo demonstra, essesprojetos não são tão antagônicos como pode parecerà primeira vista, mas se mesclam, intercruzam-se,compondo um “novo” modelo de política social,fundado no mix público/privado na provisão social.

Nessa perspectiva, o objetivo deste artigo éanalisar essa inserção da família na política deassistência social, sua centralidade reafirmada peloeixo estruturante do SUAS – a matricialidadesociofamiliar – destacando os avanços, os paradoxosconceituais que podem gerar retrocessos, posto queessa centralidade na família é reafirmada numaperspectiva contraditória, em que oferece proteçãoe reconhece a variedade de experiências familiares,em contrapartida ao reforço das suasresponsabilizações, dos tradicionais papéis dafamília, independente das transformações que aafetam.

2 A ASSISTÊNCIA SOCIAL COMO POLÍTICA DESEGURIDADE SOCIAL

Ao integrar a Seguridade Social juntamente coma Saúde e a Previdência, a Assistência Social ganhaestatuto de política pública e passa a compor osistema de proteção social brasileiro, na condiçãode política de proteção social, sob a responsabilidade

do Estado, como direito social não-contributivo, logo,um direito de cidadania extensivo aos cidadãos quedela necessitam.

A inclusão da assistência social como políticapública de proteção social tem provocadotransformações legais e institucionais,regulamentadas em diversas legislações, como aPolítica Nacional de Assistência Social –PNAS\2004, e o Sistema Único de Assistência Social– NOB\SUAS\2005, e outras normas técnicas, quevêm promovendo uma mudança de paradigma no tratoda assistência social e nas suas formas de gestão,que se encaminham para consolidar definitivamenteo estabelecido na Constituição de 1988 e LeiOrgânica da Assistência Social – LOAS, ou seja,sua condição de política pública, política de Estado.

Deve-se ressaltar que, a construção dessesinstrumentos legais, dentre eles o SUAS, resulta doacúmulo de forças dos movimentos da sociedadecivil, como as lutas do Fórum Nacional de AssistênciaSocial, dos assistentes sociais; das experiênciasmunicipais; de estudos e pesquisas dos institutosde pesquisa e universidades; e dos debates coletivos,como os realizados nas Conferências de AssistênciaSocial, com destaque para a IV Conferência Nacionalde Assistência Social, realizada em dezembro de2003, que deliberou pela implantação do SUAS,modelo de gestão próprio e único para todo oterritório nacional, que integra os três entesfederativos e objetiva consolidar um sistemaintegrado, descentralizado e participativo, tal qualpreconizado pela LOAS.

A assistência social como política pública dedireitos de cidadania e dever do Estado, no campoda “dívida social brasileira com os excluídos”,portanto, da inclusão dos “invisíveis” dentre osbrasileiros, implica possibilidade de ampliar oalcance da cidadania e da proteção social, para umalógica contrária à contributiva, e à “cidadaniaregulada”, pela inclusão pelo critério de cidadania,pelo direito à vida, à proteção social, independentede contribuição, embora mantenha o critério danecessidade. Todavia, a implementação dasmudanças legalmente regulamentadas percorre umatrajetória de desafios, dificuldades e riscos deconservadorismos, mas também se podem apontarmuitos avanços ou tentativas de superar a tradiçãohistórica da área.

Dentre os desafios, estão as resistências naincorporação do novo paradigma da assistênciasocial, considerando as características históricas quemarcaram a assistência social no Brasil:“descontinuidade, pulverização e paralelismo, alémde forte subjugação clientelista no âmbito das açõese serviços” (BOSCHETTI, 2003, p.78), portanto,práticas eventuais, pontuais, emergenciais e semcontinuidade, além da “centralização tecnocrática,fragmentação institucional, ausência demecanismos de participação e controle popular eopacidade entre público e privado na esfera da gestãogovernamental e da atuação de entidades

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assistenciais que recebem recursos públicos”(BOSCHETTI, 2003, p. 78).

A essa cultura, soma-se a vinculação daassistência à filantropia1, benemerência, caridade,benemerência, caridade, mesmo sendo ofertada pelopoder público, constituindo-se o que se denominafilantropia estatal, em parceria com as organizaçõesbeneficentes e de assistência social, comomediadoras da prestação de serviços, numa lógicade tutela, ajuda, benesse, e não do direito social.

Destacam-se, também, as práticas persistentesde duplo comando na gestão da assistência social,e o primeiro-damismo2, ainda presente na área,mesmo com a implementação das legislaçõescitadas.

Portanto, a heterogeneidade dos sujeitosenvolvidos, agravada pela herança de frágilinstitucionalização, baixa capacidade técnica degestão e o conluio entre público/privado na prestaçãodos serviços constituem grandes desafios àsmudanças legais, cuja efetivação em todo o territórionacional requer que essas mudanças sejamdevidamente apropriadas, assimiladas,compreendidas e implementadas por todos ossujeitos envolvidos, e em todas as etapas daformulação, execução, controle e avaliação dapolítica, ou seja, por todos os entes federativos,organizações não-governamentais que prestamserviços socioassistenciais, profissionais, instânciasde deliberação e pactuação, dentre outros sujeitos.

Conforme Paiva (2006, p. 9), há que se enfrentare suplantar a lógica da precarização e minimizaçãoorçamentária, ou seja, aquela que reduz o direito aoorçamento, à disponibilidade de caixa, que sãoguiadas por “opções políticas e das decisões decúpula a respeito da distribuição do fundo público”.

Apesar dos imensos desafios, os avanços jurídico-políticos são incontestáveis, e as possibilidades depráticas profissionais inovadoras, fundamentadas nalei, são grandes; mas também há riscos deretrocessos conservadores, dadas as contradiçõesna legislação e de alguns elementos do seuarcabouço conceitual.

Dentre os avanços, destacam-se:a) a primazia da responsabilização estatal na

condução da política em cada esfera degoverno, estabelecida desde a LOAS,reforçada pela PNAS\2004 eNOB\SUAS\2005, que define asresponsabilidades de cada ente federativo napolítica de assistência social. A implantaçãode equipamentos públicos estatais, como osCentros de Referência de Assistência Social– CRAS, e os Centros de ReferênciaEspecializado de Assistência Social –CREAS, sinaliza a efetivação dessa mudança.“É a presença do Estado no território queganha visibilidade social, comprometendo-secom o atendimento das demandas e direitosda população” (BRASIL, 2008, p.19);

b) a construção de um sistema próprio e únicode gestão da assistência social,descentralizado e participativo, regido por umpadrão continuado de provisão, sistemático,em quantidade e qualidade, em contrapontoàs ações descontínuas e focalizadas. Trata-se de um sistema que regula, em territórionacional, a hierarquia, os vínculos e asresponsabilidades do sistema de serviços,benefícios, programas e projetos e ações deassistência social;

c) a abrangência dos direitos e das segurançasafiançáveis, contra riscos pessoais e sociaisa indivíduos, família e coletividade, viabilizandoum conjunto de serviços, programas ebenefícios de aquisição materiais emonetárias, mas, para além desses, incluindo,igualmente, serviços socioeducativos eassistenciais, de convivência e demais, noenfrentamento não apenas da pobreza, mastambém da discriminação, do estigma, daexclusão, da vulnerabilidade, da fragilidade,dos riscos decorrentes da pobreza, datrajetória do ciclo de vida, da estruturaçãofamiliar, e de outros que promovam ofensa àdignidade humana;

d) a territorialização da rede socioassistencialbaseada no princípio da oferta capilar deserviços, a partir da lógica da proximidade docidadão e na localização dos serviços nosterritórios com maior incidência devulnerabilidades e riscos sociais e pessoaispara a população;

e) o reordenamento da rede socioassistencial parao atendimento dos sujeitos de direitos, nadireção da superação de ações segmentadas,fragmentadas, pontuais, sobrepostas eassistencialistas para a garantia de umsistema unificado, continuado e afiançador dedireitos, no enfrentamento das perversasformas de opressão, violência e pauperizaçãovivenciadas pela maioria da população(SILVEIRA, 2007), garantidas pelofinanciamento público de fundo a fundo, derepasse automático para garantir acontinuidade do atendimento;

f) a matricialidade sociofamiliar, em que se dáprimazia à atenção às famílias e seusmembros, a partir do território de vivência, comprioridade àquelas mais vulnerabilizadas, umaestratégia efetiva contra a setorialização,segmentação e fragmentação dosatendimentos, levando em consideração afamília em sua totalidade, como unidade deintervenção; além do caráter preventivo daproteção social, de modo a fortalecer os laçose vínculos sociais de pertencimento entre seusmembros, de modo a romper com o caráterde atenção emergencial e pós-esgotamentodas capacidades protetivas da família.

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Todavia, como destaca Behring (2008), é evidentetambém que, por dentro desse projeto estruturante,numa área historicamente desestruturada, hácontradições e riscos de retrocessos, a exemplo dofinanciamento e de alguns elementos conceituais.

Em relação ao financiamento, o SUAS, segundoSilveira (2007), coloca-se como uma unidade queprovoca, de forma geral, expectativas e demandaspor recursos, pela efetivação de serviços na novalógica da gestão, por melhores condições detrabalho, dentre outros, o que exige, cada vez mais,maiores somas de financiamento público, para suprira rede de serviços na lógica do direito, da quantidadee qualidade necessárias a essa condição, o querequer, como já destacado por Paiva (2006), asuperação da inflexão economicista que reduzdireitos à disponibilidade orçamentária.

A esse exemplo, o financiamento do SUAS, aindaque tenha avançado, no sentido de buscar garantir acontinuidade dos serviços, como repasse de fundoa fundo, e os que são repassados diretamente aosusuários, na forma de transferências monetárias,todavia, expressa bem a contradição, presente,principalmente, na defasagem entre recursos parabenefícios, e os dirigidos a serviços3, ou à redesocioassistencial. Como destaca Sposati (2006,p.98),“a cobertura da rede de serviçossocioassistenciais provida com recursos federais temainda baixa incidência”. Segundo Boschetti eSalvador (2006), apenas 8 a 9% do orçamento sãodestinados a todos os programas e à implantaçãodo SUAS.

A pequena incidência de recursos em serviços eo baixo atendimento per capita nas organizaçõesassistenciais deixam-nas à mercê do trabalhovoluntário, de fontes alternativas de recursos paraseu funcionamento, em não investimentos eminfraestrutura, no quadro profissional, etc., querepercute na inviabilidade da garantia em quantidadee qualidade às demandas da população. O Estado,com certeza, diminui seus custos eresponsabilidades, repassando-os para a sociedadecivil, que não apenas executa a política, mascofinancia novamente esses serviços.

Outra contradição está presente no seuarcabouço conceitual, como a matricialidadesociofamiliar, principalmente sua incidência naspráticas profissionais e interpretação pelosprofissionais, com riscos de regressõesconservadoras, na gestão e no atendimento, taiscomo os destacados por Silveira (2007):

a) ocultamento das contradições dasociedade de classe, sem o devidoreconhecimento dos determinantessócio-históricos e das expressõesde desigualdades nas demandaspara a assistência social, e ainda ovício analítico e prático-operativo queconsiste em entender a atenção àfamília como uma via de superaçãodas expressões da questão social

ou, como afirma Mota (2007, p.46):“Uma conceituação da sociedade apartir de categorias despolitizadorasdo real, donde a sua identificaçãocom o território, a comunidade, avizinhança e a família [...] sociedadeé como reunião de comunidades efamílias, marcadas por situaçõessingulares e localizadas”;

b) prevalência do “metodologismo” eadoção acrítica de referenciaisconceituais para o atendimento;

c) existência de práticas quecentralizam as demandas nasfamílias com trabalho psicossocialde alteração de caráter, decomportamentos consideradospatológicos, de conflitos internos dafamília, culpando-a pelas situaçõesde vulnerabilidade e riscos, gerandosentimento de inadequação;

d) regressões conservadoras no tratocom as famílias que ampliam aindamais as pressões sobre asinúmeras responsabilidades quedevem assumir, especialmente nocaso das famílias pobres.

3 ARCABOUÇO CONCEITUAL DE FAMÍLIA NAPNAS E NO SUAS

No Brasil, a partir da década de 90, assiste-se,de um lado, ao crescimento de programas decombate à pobreza, dirigidos às famílias comcrianças; de outro, a programas para alvosespecíficos caracterizados como vulneráveis (idosos,crianças, jovens, pessoas com deficiência), incluindoa família como público privilegiado e a atenção aossegmentos, com o intuito de atender às demandasdas famílias, figurando esta como preocupação defundo e como estratégia de organização dos serviços,de modo a superar a fragmentação no atendimento.

Os princípios e diretrizes da política deassistência social que incorporam a preocupaçãoem ter a família como foco da atuação, decorremdesse processo e de um longo acúmulo deexperiências dirigidas às famílias, como o exemplodos Núcleos de Apoio às Famílias – NAF’s,consolidando-se como princípio fundante da políticade assistência social, formulada em 1999, que jáinstituía a centralidade na família para a concepçãoe implementação dos benefícios, serviços,programas e projetos.

O documento (BRASIL, 1999, p. 50) destacaainda que “[...] o grupo-familiar e a comunidade sãolugares naturais de proteção e inclusão social,vínculos relacionais para a implementação de projetoscoletivos de melhoria da qualidade de vida” e salientaque, como “estratégia de implementação e deserviços integrados de atenção à família, visa alterara condição de vida familiar e não apenas a de seus

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membros, como forma de superar as açõesfragmentadas, segmentadas e setorizadas”.

Nessa mesma direção, em 2003 é lançado o PlanoNacional de Atendimento Integral à Família – PNAIF,transformado pela portaria n° 78, de 08 de abril de2004, em Programa de Atenção Integral à Família –PAIF, cujos objetivos além de superar as abordagensfragmentadas e individualizadas dos programastradicionais, inclui a garantia da convivência familiare comunitária aos membros da família. E definiucomo diretriz a família como unidade de atenção,valorizando as heterogeneidades, as particularidadesde cada grupo familiar e o fortalecimento dos vínculosfamiliares e comunitários (BRASIL, 2004, Portarian°78).

Essa concepção e direção da intervenção sãoreafirmadas na vigente Política Nacional deAssistência Social – PNAS\2004, que define comouma de suas diretrizes “centralidade na família paraa concepção e implementação dos benefícios,serviços e projetos”, e como um de seus objetivos“assegurar que as ações no âmbito da assistênciasocial tenham centralidade na família, e que garantama convivência familiar e comunitária” (BRASIL,PNAS\2004, p. 33).

A NOB\SUAS define a matricialidade sociofamiliare a territorialização como um dos eixos estruturantesda gestão do Sistema Único de Assistência Social.Isso significa que a assistência social dá “primaziaà atenção às famílias e seus membros, a partir doseu território de vivência, com prioridade àquelas comregistro de fragilidades, vulnerabilidades e presençade vitimação entre seus membros” (NOB/SUAS,2005, p.28).

Sobre o eixo estruturante do SUAS relativo àmatricialidade sociofamiliar, a análise do texto daPNAS\2004 permite detectar ambiguidades, aotempo em que há reconhecimento dos processossocioeconômicos, político e cultural que fragilizamas famílias brasileiras, tornando-as vulneráveis, o quejustifica a sua centralidade nas ações da política deassistência social e, por outro lado, reconhece queisso se dá porque a família constitui “espaçoprivilegiado e insubstituível de proteção social esocialização primárias, provedora de cuidados aosseus membros, mas que precisa também sercuidada e protegida” (BRASIL, PNAS\2004, p. 41).A contradição entre cuidar e proteger a família oufornecer meios para que ela cuide dos seus membros,está posta.

Assim, há sempre o reforço das funções dafamília; ajudá-las a cuidar de seus membros é a tônicado texto; é o que é esperado, independente de seusformatos ou modelos, de sua condição devulnerabilidade ou risco, das condições materiais esubjetivas de vida, a função decuidadora\socializadora.

Portanto, conceitualmente, não se temcentralidade na família para independentizar osindivíduos e a família de papéis tradicionais, criando,em função disso, uma rede de serviços públicos que

geram autonomização de seus membros, davizinhança, da parentela, inclusive com serviçosdomiciliares de cuidados e socialização de crianças,adolescentes, jovens e idosos – membros querequerem maior atenção dos familiares e demandammais cuidados – para diminuir a carga horária detrabalho doméstico das mulheres. Antes, aocontrário, fornecem serviços para reforçar astradicionais funções da família, de proteção social,aumentando a dependência dos indivíduos da famíliae exigindo-se delas mais responsabilidades eserviços, como condição para poder ter acesso aalgum benefício ou serviço público; responsabilidadesque, geralmente, recaem sobre as mulheres.

Assim, define a PNAS\2004 (p. 41): “Acentralidade na família e a superação da focalização,no âmbito da política de assistência social, repousamno pressuposto de que para a família prevenir,proteger, promover e incluir seus membros énecessário em primeiro lugar, garantir condições desustentabilidade para tal”. O que para essa políticasignifica que sua formulação é pautada nasnecessidades das famílias e dos indivíduos.

Sem dúvida, há uma perspectiva de avanço nessainserção das famílias na política de assistência social,uma vez que não há apenas uma responsabilização,mas se oferece uma contrapartida pública emprogramas, projetos, benefícios e serviços que visamfornecer os meios necessários, inclusive renda eserviços socioeducativos e assistenciais, para quehaja, efetivamente, um retorno positivo.

Contudo, parte-se sempre do pressuposto de umpapel ideal e universal da família, aquele protetivo(das funções especializadas na formação dapersonalidade, educação e socialização, tal comodefinidas por Parsons, como típicas da famílianuclear), que a caracteriza e que deve serdesempenhado independentemente dos seusformatos, das condições de vida e acesso aosserviços sociais.

Não se pode dizer também que a política criafunções de reprodução social para a família, já queesta sempre as desempenhou, bem ou mal, comconflitos ou em cooperação. Mas, sem dúvida, asnaturaliza, perpetua e incentiva sua permanência noâmbito doméstico, privado.

Mesmo reconhecendo que a família é um espaçocontraditório, cuja dinâmica cotidiana de convivênciaé marcada por conflitos e desigualdades sociais, noentanto, a atribuição de mediadora das relaçõespúblico e privado, bem como geradora demodalidades comunitárias de vida, e o papel deinclusão social de seus membros são razõessuficientes para apostar e incentivar na suacapacidade protetiva.

As famílias que dependem do trabalho feminino,“chefiadas”, via de regra, por jovens mães solteiras,viúvas ou mulheres separadas ou divorciadas,têmdificuldades para exercer esses papéis tradicionaise precisam da rede de apoio e serviços de proteçãosocial, não só de vizinhos e conterrâneos, mas de

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serviços públicos alternativos que minimizem suasfunções de reprodução social, com ações protetivaspúblicas, nos horários que estão no trabalho; paraseus filhos (crianças, adolescentes e jovens),deficientes e idosos. Portanto, a ação de impulsionarsuas funções de guarda, cuidado, proteção,socialização e outras, social e culturalmenteatribuídas às famílias, geram culpabilização por nãopoderem realizar “plenamente”, conforme o padrão,essas funções.

Nos países europeus, especialmente, do norteda Europa, a política dirigida aos indivíduos combenefícios e uma rede de serviços dirigida à famíliatêm um efeito desfamiliarizante, no sentido de gerara autonomia dos indivíduos frente aos recursos ecuidados da família e às leis férreas do mercado, aindependência da família em relação à parentela, àvizinhança e às hierarquias familiares, contribuindopara a construção de uma família em que há maiorautonomização de seus membros, em especial ostradicionalmente mais frágeis na hierarquia familiar.

No Brasil, a política dirigida à família, mesmo queofereça proteção, o faz para que ela possa protegerseus membros, o que reforça as suas funçõesprotetivas e a dependência do indivíduo das relaçõesfamiliares, reforçando o “familismo”, ao invés de serdesfamiliarizante, pois sua rede de serviços ésubdesenvolvida face aos benefícios, e atua sempreno sentido de impulsionar as funções familiares naproteção, tidas como insubstituíveis, ampliando aindamais as pressões sobre as inúmerasresponsabilizações que devem assumir,especialmente no caso das famílias pobres evulneráveis.

Como destacam Campos e Reis (2009, p. 47):“A família é vista, ainda, como mediadora dessaproteção, quando esta é proporcionada por outrasinstituições sociais, profissões e Estado”. Não sedefende, neste artigo, a institucionalização dasrespostas à questão social que afasta os indivíduosdo convívio familiar, mas a necessidade deimplementação de uma rede desenvolvida de serviçospúblicos para substituir parcialmente essas funçõesda família, desresponsabilizando-a da solução deproblemas, que atingem seus membros, mas cujacausalidade é social e estrutural, e que mereceatenção pública; retorná-los para o âmbito familiar éum processo de privatização do enfrentamento dasrefrações da questão social.

A PNAS\2004 (p.28), tendo como referência oPAIF, destaca a concepção de família que o rege, ea política, assim define: “Estamos diante de umafamília, quando encontramos um conjunto depessoas que se acham unidas por laçosconsanguíneos, afetivos e, ou de solidariedade”,portanto, parte de uma visão ampliada de família.Reconhece, ainda, que “não existe família enquantomodelo idealizado e sim família resultante de umapluralidade de arranjos e re-arranjos estabelecidospelos integrantes dessa família”.

Pode-se então afirmar que a política (e o Estado)assume uma posição que contribui para enfraqueceros estigmas associados à maternidade semcasamento, às famílias reconstituídas, às vezes, semvínculos formais, às uniões consensuais, ao divórcio,assumindo todos esses grupos como unidade familiare sujeitos à proteção social da assistência social,desde qu,2em suas funções, papéis e relaçõesinternas, tratam-nas, a priori, como o lócus dafelicidade, do refúgio da vida desumana do mercado,espaço de proteção social.

Todavia, as obrigações atribuídas às famílias sãocriadas socialmente, e penalizam as mulheres eoutros membros mais frágeis nas relaçõeshierarquizadas dentro das famílias, relações que nãosão complementares, mas assimétricas e desiguaise que podem ser perpetuadas por políticas públicasque as reproduzem como funções “naturalizadas”.

A proteção social de assistência socialpotencializa as funções da família, reforça suastradicionais funções, que não corresponde àsexigências da contemporaneidade como o trabalhode ambos os cônjuges, ou da mulher como “chefe”de família, com a presença do cônjuge ou sem ele,e outros projetos individuais de vida de seusmembros.

O PAIF tem como pressuposto que a família é onúcleo básico de afetividade, acolhida, convívio,autonomia, sustentabilidade e referência no processode desenvolvimento e reconhecimento do cidadão e,de outro, que o Estado tem o dever de prover proteçãosocial, respeitada a autonomia dos arranjos familiares(BRASIL, 2006, p.28).

É essa dubiedade de reforço das funçõesprotetivas da família de um lado e, de outro, comoalvo de proteção social, que denota a dimensão daparceria público/privado na proteção social, e suadimensão estratégica em contexto de redução degastos sociais, posto que se pode contar com aparceria da família para potencializar a proteção socialoferecida, mesmo quando não é em quantidade equalidade suficientes para suprir todas as atençõesnecessárias e demandadas. Assim acontece quandose legitima a parceria com as organizações dasociedade civil, não interessando a amplitude dacobertura de segurança que possa oferecer, mas quebarateie o preço da proteção social e reduza osgastos sociais.

O que significa que, mesmo num projeto protetivo,há contradições que reforçam tradições históricas,como a participação da família na proteção de seusmembros e, de forma geral, da sociedade, atravésdas organizações de assistência social, que empaíses de modernização tardia e em condições desubordinação, essas funções nunca foramsecundarizadas e são constantemente reafirmadase reatualizadas pelas políticas públicas.

Como destacam Mioto (2006), Campos e Reis(2009), há o reconhecimento da extrema diversidadefamiliar na política e no cotidiano dos serviços em

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geral, mas o mesmo não é acompanhado comrelação às expectativas sobre tarefas e obrigaçõesfamiliares. Ao contrário, conforme as autoras, essastarefas continuam preservadas e perpetuadas pelaexpectativa da política, ou seja, “espera-se ummesmo padrão de funcionalidade, incluindo-se, porexemplo, a manutenção dos papéis paterno ematerno, conforme estabelecido por Parsons nomodelo de família nuclear há mais de meio século”(CAMPOS; REIS, 2009, p.45).

Assim, para Campos e Reis (2009), é perceptívelo consenso quanto às transformações na família, noseu formato, organização interna, que se restringeaos aspectos referentes à sua estrutura ecomposição, não se verificando a mesma aberturaquando se trata das funções familiares.

Não resta dúvida, que o eixo estruturante do SUASna “matricialidade sociofamiliar” pode se constituiruma estratégia eficiente na superação dafragmentação e segmentação na promoção da redede proteção social. Mas, também é preciso “superara ideia de ‘antinomia absoluta’ entre família eindivíduo na política social brasileira, mediante umaaceitação da complementaridade einterdependência, pela intervenção dos serviçossocioassistenciais” (CAMPOS; REIS, 2009, p.49),posto que atender necessidades individuais dosvários membros da família produz impacto sobre todaa família, especialmente, se esses serviços atingemaqueles que demandam mais cuidados, comocrianças, adolescentes, jovens, idosos e deficientes,desde que o fim último da organização e oferta dosserviços seja atender às demandas e necessidadesda família, visando melhorar sua qualidade de vida eo bem-estar de seus membros.

Porém, esse princípio da matricialidadesociofamiliar pode levar a reeditar antigosconservadorismos na forma de intervir junto àsfamílias, nas práticas profissionais, tais como:

· Responsabilizar e culpabilizar afamília, e dentro dela a mulher, pelamiséria, pela ausência do cuidadoou falhas na socialização de seusmembros;

· Re-normatização, disciplinarizaçãoe busca de uma volta idílica aospadrões da família nucleartradicional, considerados ideais,mesmo quando se reconhece avariedade de modelos e arranjosfamiliares, mas espera-se dela omesmo padrão de funcionalidade;

· A psicologização da realidade dasfamílias, ocultando a sua durarealidade social e econômica, atual,em função de apenas focalizar suascaracterísticas psicológicas, comoresgatar e fortalecer vínculosfamiliares, compreender as etapasdo ciclo de vida das crianças,

conflitos da adolescência, dentreoutros;

· Re-privatizar o cuidado social comodever de cada família, e dentro dela,da mulher, como forma de ocultar odescompromisso das agênciaspúblicas com a produção decuidados sociais de qualidade eacessível a todos; (VASCONCELOSapud BEZERRA; SILVA, 2007).

Em síntese, ao reconhecer e definir comoprincípio a “centralidade na família”, o Estadopreconiza o redirecionamento das açõessocioassistenciais e sua concentração nessa esfera,através de uma ação que pretende ser integral e nãofragmentada, e reafirma a responsabilidade com aproteção social, principalmente, com seu nível deprevenção antes do risco e do agravo. Mas, por outrolado, reforça em suas ações, não a secundarizaçãoda família nas ações protetivas e de reproduçãosocial, típicas da modernidade e do avanço doEstado de bem-estar Social, antes ao contrário,reforça tradicionais funções da família,constantemente reatualizadas no atual contexto,culpabilizando aquelas que não conseguemdesempenhar adequada ou idealmente os papéisesperados, pela condição de sobrevivência, ciclo devida, tamanho da família, modelo de estruturação,falta de acesso aos serviços públicos, dentre outros.

As famílias, especialmente as mais pobres, paramanter-se enquanto unidades familiares, precisamnão de novas responsabilizações e contrapartidasimplícitas ou explícitas, mas de serviços dirigidos aelas, alternativos e substitutos parciais das suasfunções, por períodos diurnos, enquanto osprovedores ou a provedora lutam pela sobrevivênciado grupo familiar.

Esses serviços, como já destacado anteriormente,devem ter caráter não institucionalizante –historicamente responsáveis pelas reclusões emasilos, hospitais, orfanatos, com dimensõesestigmatizantes, repressivas e punitivas queseparavam os indivíduos da convivência familiar – maspúblicos e alternativos na forma de abordagem, comoos serviços domiciliares ou em espaços públicosdestinados a fortalecer a convivência, a socialização,a recreação, a ocupação do tempo livre, oferecercuidados especiais etc., em quantidade e qualidadepara suprir as necessidades das famílias e, de fato,garantir o direito à convivência familiar e comunitária.

Para que uma política pró-família, ou que a tenhacomo centralidade, que de fato possa ajudá-la,seriam necessários a oferta e o acesso universal,como direito de cidadania, aos serviços de creches,jardins da infância, serviços de ajuda domiciliar paraidosos e pessoas com deficiência, serviços deconvivência e expressão cultural para adolescentes,jovens, idosos independentes, como direito de todocidadão, como o são a educação e a saúde.

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Entretanto, no escopo da política de assistênciasocial, constituem público usuário apenas oscidadãos que se encontram em situação devulnerabilidade e risco. Como destaca Boschetti(2003, p. 69), a assistência, embora reconhecidacomo direito, mantém prestações assistenciaisapenas para pessoas comprovadamente pobres(renda mensal per capita abaixo de um quarto dosalário mínimo e incapacidade para o trabalho, comono caso dos idosos e portadores de deficiênciasincapacitantes para a vida independente e para otrabalho) e implementa programas e serviços cadavez mais focalizados em populações tidas como derisco social pelo jargão técnico.

Com a PNAS\2004 e a NOB\SUAS, avanços sãoidentificados nas ações preventivas de proteção socialbásica, superando as atuações somente emsituações extremas, embora mantenha o princípioda menor elegibilidade e a seletividade dos maisvulneráveis.

Como destaca Couto (2006), permanece o dilemada área ser restritiva, particularista, ou ser campoda provisão social, de caráter universal, como direitode cidadania de todo cidadão. Como diz Boschetti(2003, p. 69), “Permanece a tensão entre consolidaruma seguridade pública, ampla e universal ourestringir sua função pública às camadas maispobres da população”.

Conforme Navarro (2002), a dificuldade de aceitaro princípio da universalidade do direito ao apoio eajuda familiar é devido, em parte, a uma visãoconservadora, que a família e a sociedade civil sãocorresponsáveis por resolver tais problemas(sobrecarregando, por conseguinte, a família e amulher e a oferta de serviços na rede não-governamental), e em parte, também, a uma supostacarência de fundos, necessidade de reduzir gastossociais, argumento que, segundo o autor, entra emcontradição com a política de apoio às grandesempresas e indústrias em crise, de amparo à reformafiscal, dentre outras.

No Brasil, como podemos observar, desde aConstituição Federal de 1988, que definiu a famíliacomo a base da sociedade e merecedora de proteçãosocial, avançando na década de 90 para políticas eprogramas que a tomam como alvo, há umarevalorização da família. Mas essas iniciativas sãoescassas em desenvolvimento de ações de apoioàs famílias, sem contrapartidas de novas ou antigasresponsabilizações.

Com certeza é mais humanizante tratar os idosos,os deficientes, em casa, e mais barato, mas paraisso não sufocar a família com responsabilizações,face às condições postas pela modernidade emercado de trabalho, é necessário uma rede deserviços, incluindo os domiciliares, de caráterpúblico, de suporte para as famílias, de cuidadosdiários, atividades lúdicas, recreativas, preventivase curativas, se for o caso, investimento que aindagera emprego na área de serviços.

Apesar da retórica da centralidade na família, deuma política pró-família, em realidade o Brasil é umpaís que sobrecarrega a família, e muitoespecialmente a mulher, devido às grandes limitaçõesdos serviços de ajuda às famílias, situação que nãopode ser revertida sem a participação ativa do Estado,que dá passos iniciais nestas últimas décadas, comavanços significativos na política de assistênciasocial, apesar das limitações já indicadas

O reforço das funções protetivas da família, do“familismo”, mesmo seguidas de ações de proteção,reforça a dependência dos indivíduos da família. Comoressalta Navarro (2002), essa dependência familiar,não obstante sobrecarregar a mulher, reduz opotencial da juventude, dependência que, comoconsequência, inibe a habilidade para prover osjovens com meios para indepedentizarem-se etambém repercute no atraso do processo de formaçãofamiliar, causa da baixa fertilidade.

A universalização do direito de acesso aosserviços de ajuda à família permite maisautonomização de seus membros; às mulheres,compatibilizar responsabilidades familiares com asprofissionais e a independentizar jovens e idosos,ou seja, a democratizar as relações familiares. Mas,a expansão do Estado Social, em países como oBrasil, além de tardia é ainda muito deficiente tantoem cuidado aos idosos como aos jovens e crianças,apesar das legislações avançadas do ponto de vistajurídico-político para esses segmentos. Isso porquese expande em uma conjuntura adversa àconsolidação dos direitos sociais, com as reformasneoliberais na década de 90.

Contudo, como destacam Battini e Costa (2007),se o contexto neoliberal colocou desafios, tambémé verdade que fez surgir novas formas de resistênciase de articulação da sociedade civil em defesa depadrões de seguridade social, dos quais sãoexemplares as lutas e conquistas da LOAS, PNASe SUAS.

Nessa mesma perspectiva, Behring (2008) afirmaser perceptível que várias medidas, criadas pela PNASe SUAS, geram tensão com a política econômica ea desestruturação do Estado preconizado peloneoliberalismo, posto que supõe investimentos,ampliação de recursos, contratação de pessoal,capacitação, aquisição de espaço físico,investimentos tecnológicos e de monitoramento comoa rede SUAS, além de equipamentos permanentes,oferta de serviços diretos nos CRAS e CREAS, dentreoutros, aspectos que colocam a novainstitucionalidade criada pelo SUAS como nichos deresistência, embora não exclua contradições, comojá destacado.

4 CONCLUSÂO

Em síntese, a centralidade na família na políticade assistência social apresenta aspectossignificativamente positivos, tais como: redução de

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custos sociais, que seriam maiores se os serviçostivessem como foco os indivíduos; é uma estratégiapara se romper com a lógica da fragmentação, postoque põe a família no foco das ações e não mais oindivíduo, isoladamente, pelo fato de ela representaruma unidade de referência mais abrangente e tambémpor articular ações e políticas diferentes noenfrentamento das necessidades do grupo familiar;permite uma intervenção articulada, mesmo quandohá atendimentos por segmentos, à realidade edemandas da família; fortalece o princípio da vidafamiliar, comunitária, logo, em grupo, e suaconvivência com as diferenças e conflitos.

Contudo, há paradoxos e dubiedades nesseprincípio da matricialidade sociofamiliar querepresentam os pontos problemáticos e que podemlevar a retrocessos, tais como: na PNAS e SUAS, oprojeto “protetivo” às famílias exige contrapartidas“implícitas”, ou seja, que a família cumpra suasfunções de proteção social. Logo, o reforço dasfunções de guarda, socialização, cuidado, proteção,apesar de reconhecer o contexto de vulnerabilidadeem que se encontram e de que estas precisam serprotegidas. Assim, não apenas reforça asresponsabilidades familiares, como há expectativade que a família cumpra funções tradicionais e ideaisatribuídas à família nuclear.

Para constituir-se em uma política dirigida àfamília, requer uma oferta de serviços de suporte quesecundarize suas funções de reprodução social; quese ofereçam serviços universais, de acesso local,em quantidade e qualidade, sistemáticos econtinuados; serviços que garantam direitos e geremindependência para jovens, idosos, mulheres; quedemocratizem as relações familiares, defendendo eoferecendo serviços que autonomizem os membrosmais frágeis e dependentes na hierarquia familiar, oque supõe a oferta de todos os serviços previstospelo PAIF nos CRAS e unidades operacionais deassistência social.

Portanto, deve-se recusar o “familismo” comoperspectiva de responsabilização das famílias paraalém das suas possibilidades e que reforce adependência dos seus membros dos serviços,recursos e apoios familiares e por uma política“desfamiliarizante”, no sentido de oferecer serviçosbásicos fundamentais, universais, de apoio àsfamílias, que independentizem os indivíduos dasfamílias e das leis férreas do mercado.

Todas essas indicações requerem não um Estadoforte, democrático, capaz de articular parcerias, masum Estado protetivo, gestor, administrador efinanciador de serviços, fundado no princípiodemocrático do controle social e da descentralizaçãopolítica e administrativa. Apostar em redes frágeisna oferta de serviços, dados os limites da proteçãooferecida pela iniciativa privada (mercantil e não-mercantil), é não assumir a responsabilidade públicapela proteção social.

Fortalecer a vida familiar é possibilitá-la nessecontexto de vulnerabilidade que a desagrega; é não

reforçar responsabilidades para otimizar as reduzidasofertas de serviços públicos e privados (mercantil enão-mercantil); é não reforçar as relações dedependência dos indivíduos dos recursos, serviçose cuidados familiares; mas é dar sustentabilidadematerial e de serviços que ofereçam proteção aosseus membros, cumprindo funções que a família,em decorrência das contingências sociais,econômicas, políticas e culturais vem apresentandodificuldade para exercê-la.

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NOTAS

1 Como destaca Mestriner (2001, p.10), longe, portanto,de assumir o formato de política social, a assistênciasocial desenrolou-se ao longo de décadas, comodoação de auxílios, revestida pela forma de tutela, debenesse, de favor, sem superar o caráter de práticacircunstancial, secundária e imediatista que, no fim,mais reproduz a pobreza e a desigualdade nasociedade brasileira, já que opera de formadescontínua em situações pontuais [...].

2 Segundo o Álbum de fotografia da gestão daassistência social (apud BRASIL, 2008, p. 24), maisde 40% dos municípios brasileiros ainda têmprimeiras-damas na gestão da assistência social.

3 Sobre essa defasagem, Sposati (2006, p.98) destacaque os recursos financeiros do BPC, no orçamentofederal, são oito vezes maior do que os serviçossocioassistenciais. Caso se somem a essemontante os recursos do Programa Bolsa Família, adiscrepância entre benefícios e serviços sobe paraquatorze vezes.

Solange Maria TeixeiraDoutora em Políticas Públicas e Pós-Doutorandaem Serviço Social Pela PUC-SP, Professora doDepartamento de Serviço Social da UniversidadeFederal do PiauíE-mail: [email protected]

Universidade Federal do PiauíCampus Universitário Ministro Petrônio Portela, s/nBairro Ininga – Teresina – PiauíCEP: 64.049-550

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Solange Maria Teixeira