FALAR OU CALLAR REALIDADES DE MULHERES … · calar e silenciar aos órgãos públicos competentes...

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1 Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13 th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X FALAR OU CALLAR? REALIDADES DE MULHERES SOBREVIVENTES FRENTE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. BRASIL E URUGUAI (2002-2006) Camila Rodrigues da Silva 1 Resumo: A presente pesquisa tem como objetivo identificar o impacto no que se refere a implementação da Lei de Violência Doméstica instaurada no Uruguai em 2002 frente a Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha no Brasil, bem como suas possíveis mudanças, permanências e conflitos no cotidiano de mulheres urbanas e todos os níveis sociais. Pretendo utilizar um olhar comparativo sob a perspectiva das histórias cruzadas frente as realidades jurídicas nas cidades de São Paulo (Brasil) e Montevidéu (Uruguai), pertencentes a países latino-americanos inseridos no bojo de mudanças e transformações dos movimentos feministas contemporâneos que assumem novas reconfigurações e formulações. O uso das histórias cruzadas e do método das oralidades permitirá buscar especificidades destas configurações que não são isoladas e que se cruzam e entrecruzam evidenciando as tramas de vida, as experiências e cotidianos distintos de mulheres que, diante de anos de silêncio, decidiram contar a sua história vivenciando uma nova condição além-sobrevivência. Palavras-chave: Olhar Comparativo; Histórias Cruzadas; Leis de Violência Doméstica; Relatos Orais; Mulheres Sobreviventes; Brasil e Uruguai. Falar ou callar? Tais ações exprimem sentimentos que vividos em situações de violência doméstica podem ser traduzidos em angústia, aflição e dor. Muitas mulheres vivem as experiências de agressões, abusos e torturas dentro do espaço doméstico e suas decisões em realizarem ou não as denúncias das violências sofridas provocam sentimentos de conflitos. Ao sofrerem com o medo e por se sentirem desprotegidas muitas mulheres entram em desespero e assim, algumas preferem calar e silenciar aos órgãos públicos competentes omitindo inclusive da família suas situações de violência. Constatei que este conflito contraditório entre o falar e callar era recorrente nas narrativas das mulheres que entrevistei em minha pesquisa de mestrado 2 . O acesso as suas falas evidenciou que suas subjetividades estão repletas de sentimentos de amarguras, dor, solidão, desespero, medo. O fato da violência acontecer majoritariamente no espaço doméstico sendo praticada por seus companheiros, esposos, namorados ou pai fazem-nas silenciarem ante às circunstâncias adversas. 1 Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filhos”, campus de Marília, Brasil. 2 Pesquisa intitulada: “Entre Maria e as Dores: cotidiano e subjetividades de mulheres em situação de violência doméstica, Marília SP (2006-2014)” defendida em fevereiro de 2016 pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UNESP campus Marília. A pesquisa utilizou-se de relatos orais das mulheres em situação de violência, chamadas por nós de Marias, na cidade de Marília SP buscando analisar suas trajetórias de vida e experiências vivenciadas a partir da aplicabilidade da Lei Maria da Penha (2006) no contexto das Políticas Públicas para as mulheres.

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Seminário Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress (Anais Eletrônicos),

Florianópolis, 2017, ISSN 2179-510X

FALAR OU CALLAR? REALIDADES DE MULHERES SOBREVIVENTES

FRENTE A VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. BRASIL E URUGUAI (2002-2006)

Camila Rodrigues da Silva1

Resumo: A presente pesquisa tem como objetivo identificar o impacto no que se refere a

implementação da Lei de Violência Doméstica instaurada no Uruguai em 2002 frente a Lei de

Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de 2006, mais conhecida como Lei Maria da Penha

no Brasil, bem como suas possíveis mudanças, permanências e conflitos no cotidiano de mulheres

urbanas e todos os níveis sociais. Pretendo utilizar um olhar comparativo sob a perspectiva das

histórias cruzadas frente as realidades jurídicas nas cidades de São Paulo (Brasil) e Montevidéu

(Uruguai), pertencentes a países latino-americanos inseridos no bojo de mudanças e transformações

dos movimentos feministas contemporâneos que assumem novas reconfigurações e formulações. O

uso das histórias cruzadas e do método das oralidades permitirá buscar especificidades destas

configurações que não são isoladas e que se cruzam e entrecruzam evidenciando as tramas de vida,

as experiências e cotidianos distintos de mulheres que, diante de anos de silêncio, decidiram contar

a sua história vivenciando uma nova condição além-sobrevivência.

Palavras-chave: Olhar Comparativo; Histórias Cruzadas; Leis de Violência Doméstica; Relatos

Orais; Mulheres Sobreviventes; Brasil e Uruguai.

Falar ou callar? Tais ações exprimem sentimentos que vividos em situações de violência

doméstica podem ser traduzidos em angústia, aflição e dor. Muitas mulheres vivem as experiências

de agressões, abusos e torturas dentro do espaço doméstico e suas decisões em realizarem ou não as

denúncias das violências sofridas provocam sentimentos de conflitos. Ao sofrerem com o medo e

por se sentirem desprotegidas muitas mulheres entram em desespero e assim, algumas preferem

calar e silenciar aos órgãos públicos competentes omitindo inclusive da família suas situações de

violência. Constatei que este conflito contraditório entre o falar e callar era recorrente nas

narrativas das mulheres que entrevistei em minha pesquisa de mestrado2. O acesso as suas falas

evidenciou que suas subjetividades estão repletas de sentimentos de amarguras, dor, solidão,

desespero, medo. O fato da violência acontecer majoritariamente no espaço doméstico sendo

praticada por seus companheiros, esposos, namorados ou pai fazem-nas silenciarem ante às

circunstâncias adversas.

1 Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filhos”, campus de Marília,

Brasil. 2 Pesquisa intitulada: “Entre Maria e as Dores: cotidiano e subjetividades de mulheres em situação de violência

doméstica, Marília – SP (2006-2014)” defendida em fevereiro de 2016 pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências

Sociais da UNESP campus Marília. A pesquisa utilizou-se de relatos orais das mulheres em situação de violência,

chamadas por nós de Marias, na cidade de Marília – SP buscando analisar suas trajetórias de vida e experiências

vivenciadas a partir da aplicabilidade da Lei Maria da Penha (2006) no contexto das Políticas Públicas para as mulheres.

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A pesquisa evidenciou que o acolhimento realizado pelos equipamentos institucionais de

atendimento às mulheres vítimas de violência doméstica na cidade de Marília3 (SP) não oferece

estrutura adequada e profissionais preparados para acolhê-las. O que recebem na maioria das vezes

são atendimentos displicentes e mal orientados. Estas posturas fazem com que desistam em

denunciar seu agressor e deste modo muitas mulheres se calam diante das violências sofridas. A

pesquisa também revelou que há pouca credibilidade quanto ao seu testemunho. Tal fato acentua as

dificuldades em relatarem os processos traumáticos de suas histórias de violências. Por tais

situações considerei minhas interlocutoras como mulheres sobreviventes de violência doméstica. O

que fica manifesto é que sua condição de sobrevivente é acentuada pela distância entre o que diz a

letra da Lei Maria da Penha e sua execução, ou seja, sua real aplicação.

As mulheres sobreviventes vivem as experiências da violência de gênero na qual afeta tanto

seu corpo quanto seu estado psicológico. O conceito de violência de gênero cunhado por Heleieth

Saffioti está diretamente imbricado às ideias de patriarcado, poder, raça, etnia e relação exploração-

dominação. Para Saffioti (2004) violência de gênero é entendida como uma categoria de violência

mais geral que abrange a violência contra a mulher e a violência familiar. Normalmente a violência

de gênero incide no sentido do homem contra a mulher, no entanto, pode ser praticada no sentido

homem contra homem e mulher contra mulher. Ao forjar o conceito de violência de gênero, Saffioti

distingue a violência familiar que envolve membros de uma mesma família ligados por laços de

consanguinidade e afinidade da violência doméstica. A autora alude que a violência de gênero

compreendida na base familiar pode ocorrer dentro ou fora do domicílio. Já a violência doméstica

apresenta pontos de sobreposição à violência familiar na qual envolve pessoas que pertencem ou

não a uma família e que vivem parcial ou integralmente no domicílio do agressor.

Experiências vivenciadas por mulheres brasileiras e observadas nos dilemas cotidianos de

mulheres latino-americanas, em realidades como do Uruguai. Segundo um estudo de gênero

realizado em 2013 revela que sete em cada 10 mulheres uruguaias já sofreram violência em algum

momento da sua vida, seja do tipo psicológica, econômica, física ou sexual sendo que, 45,4%

afirmaram ter sofrido alguma violência por parte do seu parceiro ou ex-parceiro4. Estas mulheres

encontram inúmeros obstáculos para a efetivação do exercício de sua cidadania. Protegidas pelo

3O município de Marília é a 13ª maior cidade do interior paulista em número de habitantes com 227.649 habitantes

(2009). Se tratando de órgãos de atendimentos as mulheres vítimas de violência, a cidade conta com uma Delegacia de

Defesa da Mulher, com o Conselho Municipal de Direitos da Mulher, Rede de Serviços de Atendimento à Mulher em

Situação de Violência e a Coordenadora de Políticas Públicas para as mulheres de Marília. 4 A pesquisa foi realizada com 3.723 mulheres, a partir de 15 anos de idade realizado pelo Instituto Nacional de

Estatística com o Ministério do Desenvolvimento Social e Nações Unidas (Observatório de Violência e Criminalidade

do Ministério do Interior, 2013).

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silêncio e discriminação das comunidades; pela invisibilidade nas estatísticas nacionais; pelas

resistências de instituições e profissionais em reconhecer a violência contra a mulher como violação

dos direitos humanos; pela desatenção dos governos e pelas dificuldades em transformar o

reconhecimento formal dos direitos em direitos de fato para todas as mulheres (UNODC, 2011).

Estes contrassensos são vivenciadas em países como Brasil e Uruguai, que mesmo após

avanços conquistados no que se refere a adoção de leis e políticas públicas para acabar com a

violência contra as mulheres; existe uma distância significativa entre a legislação e sua aplicação.

Tais problemáticas foram observadas em Marília quanto a morosidade do judiciário, falta de

acolhimento das vítimas e a certeza de impunidade e que se cruzam com as experiências de

mulheres montevideanas conforme depoimento a seguir. E.M.M5 nos relata a sua experiência

vivenciada a partir da história de sua irmã que mesmo ao procurar ajuda dos órgãos competentes,

recebeu atendimentos mal orientados e displicentes e que não a ofereceu proteção necessária.

Infelizmente foi assassinada e E.M.M demonstra sua indignação e a impotência diante dessa

realidade:

El 20 de mayo el ex marido la agarró del pelo y la asesino con 3 balazos. Estaba con

distancia y pedido que lo desarmaran nada hicieron. Sólo libre para matarla. Hola perdona

es que es tan la impotencia que te maten a alguien sin poder hacer nada y sus hijos sin nada

quedaron. Y es una mas... (E.M.M, 25 de julho de 2016).

Nesse sentido, a pesquisa objetiva analisar numa perspectiva comparada entre Brasil e

Uruguai o impacto da implementação da Lei n.17.514 de 2002, Violência Doméstica6 instaurada no

Uruguai e da Lei de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher7 de 2006 no Brasil, mais

conhecida como Lei Maria da Penha, bem como suas possíveis mudanças, permanências e conflitos

no cotidiano de mulheres urbanas e todos os níveis sociais. Essa minha trajetória de pesquisa me

revela uma pluralidade de mulheres cujas identidades e subjetividades foram evidenciando marcas

de dramas familiares, violências, medos, silêncios e dores.

O acesso as suas oralidades me instiga algumas indagações a respeito das dificuldades a elas

apresentadas para relatar a sua história, diante do processo traumático e de violência a que foram

submetidas: Como mulheres latino-americanas residentes em cidades como São Paulo e

Montevidéu, de classes sociais diversas contam sua experiência de sobrevivência após exposições a

5 Depoimentos colhidos a partir da minha inserção em um grupo do Facebook chamado Movimiento Feminista Uruguay

(2.396 membros) no qual me apresentei como pesquisadora brasileira interessada em compreender as experiências de

mulheres vítimas de violência doméstica tendo a intervenção de algumas mulheres que, ou se dispuseram a contar suas

histórias ou relataram episódios como estes. 6 Lei publicada em jul/2002 “Violencia doméstica decláranse de interés general las actividades orientadas a su

prevención, detección temprana, atención y erradicación” (REPÚBLICA ORIENTAL DO URUGUAI, 2002) 7 BRASIL. Lei nº 11.340, 7 agos. 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

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longos períodos do uso da força física, abusos e brutalidade do outro? Seria falar da sua própria

morte, como Levi8 nos alerta? Como superar a barreira da vergonha de ter enfrentado inúmeras

humilhações? E os julgamentos? As reprovações de algumas pessoas que sugeriram o silêncio?

Como lutar contra a incredulidade da justiça quanto ao seu testemunho e a vontade de esquecer?

Como elas observam a efetividade das leis de combate à violência em seus cotidianos?

Diante dessas indagações pretendo problematizar as múltiplas identidades femininas que

muitas mulheres assumem. Elas produzem uma variedade de novas posições de identidades

tornando-as mais políticas, unificadas, menos fixas e mais plurais. Assim foram (re) significando

suas posições identitárias de ser mulher, mãe, companheira, dona-de-casa e profissional assumindo,

portanto, novos posicionamentos cotidianos no sentido de sair da situação de violência e da

condição de sobrevivente.

Mesmo após passarem por situações traumáticas de violência por anos (7, 15, 17 anos),

minha experiência em Marília evidenciou que elas, se sentiram fortalecidas a partir de engajamentos

em suas comunidades, nos movimentos sociais, grupo de mulheres; que as ajudaram a enfrentar

com coragem suas situações de violência. A partir deste enfrentamento e fortalecimento decidiram

reconstruir suas vidas para além de sua condição de sobreviventes. As articulações, conversas e

trocas de experiências com outras mulheres dentro dos movimentos contribuíram para o processo de

empoderamento e agência vivido por elas.

A ideia em privilegiar as cidades de São Paulo e Montevidéu como foco de análise deve-se

ao fato de que nestas cidades as transformações e mudanças provocadas pelo movimento feminista

assumiram novas configurações e novas formulações produzindo novos modos de vida.

Parafraseando Schorske (1989) não fui guiada por nenhuma prática ou especialidade particular, mas

pela morosidade do judiciário brasileiro e as dificuldades de aprovação e real implementação da Lei

Maria da Penha e o cenário de lutas das mulheres uruguaias e as inúmeras dificuldades apresentadas

para a aprovação e efetivação da Lei de combate a Violência Doméstica no Uruguai. Essas

realidades que se assemelham, também são observadas nas participações em eventos internacionais

que motivaram e influenciaram na luta pelos direitos e combate a violência contra as mulheres que,

entendidos como processos, resultaram nas instaurações das Leis de Combate a Violência Contra as

Mulheres em cada país.

8 Primo Levi (1919-1987) foi um dos poucos sobreviventes de Auschwitz, o campo de concentração onde milhões de

prisioneiros, judeus como ele, foram assassinados pelos nazistas. Sobreviveu para regressar a Turim, sua cidade-natal,

local onde escreveu um dos mais extraordinários e comoventes testemunhos dos campos de extermínio nazista. Seu

principal livro muito lido até os dias de hoje intitulado “Os afogados e os sobreviventes”, de 1986.

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Pretendo utilizar um olhar comparativo sob a perspectiva das histórias cruzadas (PEDRO;

WOLFF, 2011) observando as realidades jurídicas nas cidades de São Paulo9 (Brasil) e

Montevidéu10 (Uruguai). Estas cidades são cosmopolitas e concentram pessoas dos mais diversos

locais produzindo uma verdadeira mistura de referências culturais. Sendo cosmopolitas São Paulo e

Montevidéu reúnem pessoas que convivem com diferenças, mas, que autorizariam conexões de

significados entre culturas diversas com suas trocas, interações e comunicação.

Escolhi como marco de análise o período de 2002 a 2006 tomando como referencial a

instauração da Lei de Violência Doméstica no Uruguai (2002) e da Lei Maria da Penha no Brasil

(2006). Importa esclarecer que as leis, tanto no Brasil como no Uruguai, foram resultados de

processos de lutas das mulheres e da atuação dos movimentos feministas por uma legislação mais

contundente contra a impunidade no cenário nacional e internacional de violência doméstica e

familiar durante anos.

Os movimentos feministas no Brasil e no Uruguai ganharam mais espaço de atuação a partir

dos anos 1970 com a criação pela ONU do Ano Internacional da Mulher (1975) possibilitando

ampliar o debate e estimulando eventos e deliberações sobre Direitos Humanos das mulheres. Além

da organização de eventos internacionais os grupos de mulheres e os movimentos feministas locais

motivaram países na promulgação de legislações específicas de combate a violência contra a

mulher. A participação das mulheres brasileiras e uruguaias na Conferência Mundial de Beijing em

1995 também foi um passo importante na conquista de direitos.

No Uruguai esta foi a primeira vez que o movimento voltou os olhos para a situação da

mulher no país com início de levantamento de dados, diagnósticos e encontros envolvendo a

sociedade civil como também o Estado. Ao retornarem e após a participação efetiva nos debates, as

mulheres uruguaias conseguiram manter a articulação assumindo novos compromissos. Foi criado a

Comisión Nacional de Seguimiento de los Compromisos de Beijing, comissão esta, encarregada de

monitorar e cumprir o plano de ação da conferência por parte do Estado (WHITE, 2009).

No Brasil, foi somente no ano de 1999 que as propostas para implementação de políticas

públicas obtiveram seus primeiros resultados. Em 2002, foi criada a Secretaria Nacional de Defesa

9 São Paulo é um município brasileiro, capital do estado de São Paulo e é considerado o principal centro financeiro,

corporativo e mercantil da América do Sul. É a cidade mais populosa do Brasil com aproximadamente 11.253.503

habitantes (IBGE, 2010) exercendo significativa influência nacional e internacional, seja do ponto de vista cultural,

econômico ou político. 10Montevidéu é a capital e maior cidade do Uruguai com aproximadamente 1.304.687 habitantes e é também a sede

administrativa do Mercosul. Localiza-se na zona sul do país, às margens do rio da Prata e que caracteriza como rota

principal de movimentação de cargas do Mercosul. É considerada a cidade latino-americana com a maior qualidade de

vida. Disponível em:< <http://www.welcomeuruguay.com> Acesso dia 6 jul. 2016.

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dos Direitos da Mulher (SNDM) e, em 2003, houve a criação da Secretaria de Políticas para as

Mulheres (SPM), responsável pela reformulação do texto da Lei Maria da Penha e sua aprovação

em 2006 juntamente com a organização de ONGs feministas11. O caso Maria da Penha12 tornou-se

emblemático no que se refere as conquistas de direitos das mulheres no Brasil, que após ser

submetido a apreciações internacionais, condenaram o Brasil por omissão e negligência. Esta

condenação em âmbito internacional foi um impulso importante para que as reivindicações das

mulheres e os debates e discussões sobre violência doméstica chegassem ao executivo brasileiro

(BORELLI, 2013).

O movimento feminista político e organizado no Brasil começou a ganhar visibilidade a

partir da década de 1960, quando novos comportamentos afetivos e sexuais surgiram operando em

significativas transformações de atitudes e valores. Essas mudanças trouxeram à tona manifestações

para além do espaço privado, com discussões sobre a intimidade doméstica como a educação dos

filhos, o trabalho feminino, o direito ao prazer, o casamento, o divórcio, e o aborto (SARTI, 2004;

AZEVEDO, 2009).

Esses grupos feministas possuíam perfis não homogêneos com diferenças inclusive,

ideológicas. Um grupo possuía características esquerdistas participando ativamente do processo de

redemocratização do país (a partir dos anos 1970) e, mesmo diante do regime ditatorial dos

militares e do cerceamento das liberdades democráticas, passaram a conquistar a cena política,

fazendo emergir novas organizações de mulheres que visavam resistir contra a ditadura militar

brasileira. Este grupo de feministas denunciou a dominação sexista existente nas relações sociais,

inclusive no interior dos grupos políticos, defendendo que os direitos das mulheres deveriam ser

diferenciados e não condicionados às lutas gerais do povo brasileiro. Outro grupo almejava que as

ações fossem mais pontuais e menos teóricas e que efetivamente conseguissem benefícios às

mulheres, como creches e escolas nos bairros periféricos. Outras questões entraram em pauta, como

a liberação do aborto, o direito à posse do próprio corpo, o fim da violência contra as mulheres e o

reconhecimento das diferenças (SARTI 2004; AZEVEDO, 2009).

11 As ONGs feministas Agende; Themis; Cladem/Ipê; Cepia e Cfemea se reuniram em 2002 para elaborarem uma

proposta de um Projeto de lei que objetivasse combater a violência doméstica. Este projeto foi reformulado por um

grupo de trabalho que envolveu membros de vários ministérios, sendo coordenado pela Secretaria de Políticas para as

Mulheres e enviado pelo governo federal ao Congresso Nacional (BORELLI, 2013). 12 A denominação da lei faz alusão à biofarmacêutica cearense Maria da Penha Maia Fernandes que protagonizou um

caso de violência doméstica contra a mulher que foi notícia em todo Brasil. Em 1983, seu marido, Marco Antônio

Herredia, professor universitário colombiano, tentou assassiná-la por duas vezes, sendo a primeira por arma de fogo e a

segunda, por eletrocussão e afogamento. Estas tentativas de homicídio resultaram em lesões graves à sua saúde, como a

paraplegia e outras sequelas. O descaso sobre a questão foi tão explícito que a punição do agressor só se deu após 19

anos da ocorrência e quando o caso passou a ter repercussão internacional, forçando o governo brasileiro a sancionar

uma lei específica para mulheres que sofriam de violência doméstica e familiar.

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Com a oposição à ditadura militar fortalecida na década de 1980 o movimento feminista

aproveitou a oportunidade para reivindicar um serviço específico para atender as mulheres vítimas

de violência. Era uma forma de o Estado responder aos altos índices de violência que sofriam as

mulheres e que ganhavam visibilidade no Brasil. O movimento feminista passou a dar visibilidade a

questões específicas de outras categorias sociais, como mulheres negras e lésbicas, além de

visibilizar a violência contra as mulheres, que ganhou espaço na mídia depois de assassinatos

cometidos por esposos e companheiros13. Em resultado, foi proposta a criação das Delegacias

Especializadas de Atendimento às Mulheres (DEAMs) compreendendo que o fenômeno da

violência não dizia respeito apenas ao campo jurídico, mas também, deveriam oferecer atendimento

social e psicológico às vítimas como uma maneira de mediar tais conflitos.

No Uruguai o regime de ditadura no país (1973-1985) também motivou o nascimento do

movimento feminista contemporâneo que determinou o ingresso de mulheres no mercado de

trabalho e a possibilidade de desenvolvimento de diferentes mecanismos de resistência ao regime,

refletidos em âmbitos domésticos como em espaços públicos. Esses espaços de encontros

(militância e trabalho) permitiram que as mulheres compartilhassem suas histórias com outras

mulheres que acabavam coletivizando seus problemas pessoais, domésticos e profissionais

possibilitando-as entender que havia uma condição que lhes eram próprias por serem mulheres: “La

posibilidad de encontrarse, poner en palabras y dialogar tuvo un efecto transformador y les permitió

develar una realidad oculta: el de la violência doméstica” (WHITE, 2012:03).

O problema da violência doméstica não estava em discussão nos primeiros anos de formação

do movimento feminista, pois por muito tempo acreditaram que havia problemas que não afetavam

o país, já que a história do Uruguai mostrava que o contexto havia sido favorável a mulher em

relação aos outros países da América Latina. Porém, ao se reunirem para organizar marchas contra

o regime autoritário, foram surpreendidas com condições de injustiça prioritariamente em relações

familiares, inclusive, muitas mulheres sofriam violência física por parte de seu companheiro, mas

acabavam silenciadas diante da “naturalização” da violência (WHITE, 2012).

Flor de Lis Rodrigues ilustra essa realidade do país em 1989. Flor de Lis tinha uma relação

muito próxima com o movimento de mulheres o que a auxiliava na superação de sua situação de

violência que sofria há anos por parte de seu marido, que acabou matando-a na rua quando saiu para

13O caso “Doca Street” ficou famoso e moveu grupos feministas, intelectuais e artistas com passeatas e pressão no

judiciário diante do julgamento do playboy. Ângela Diniz foi assassinada em sua casa na praia pelo seu companheiro

Raul Fernandes do Amaral Street (Doca Street) em dezembro de 1976 alegando ao júri que havia matado em defesa de

sua honra. Assim, as feministas iniciaram uma campanha: “Quem Ama não Mata”, slogan que ficou amplamente

conhecido (AZEVEDO, 2009).

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comprar pão em um domingo. Para White, (2012), o caso de Flor de Lis representou para as

mulheres do movimento:

[...] uno de los primeros hechos de indignación, toma de conciencia y posterior denuncia:

frente a los esfuerzos realizados, el Estado no tenía respuestas eficientes. Me animo a decir

que el caso de Flor desnudó la situación de negligencia por parte del Estado y de la

sociedad toda que aún estaba adormecida (WHITE, 2012:05)

Essa nova consciência, continua White (2012), levou o movimento a voltar-se para a criação

de grupos que deram respostas a situação de violência doméstica e se constituíram como

organizações governamentais e não governamentais com perfis voltados a reflexão e discussões

sobre o tema e trabalho direto com as mulheres de assessoria jurídica e social. Esta sensibilização

sobre a violência doméstica ficou cada vez maior na sociedade uruguaia o que impulsionou outros

esforços em nível de Estado e relacionados a outros grupos de mulheres que estavam fora das

ONG’s, mas ligadas diretamente aos movimentos de mulheres. Como é o caso da Bancada

Bicameral Femenina14 que no dia 8 de março de 2000 em seu primeiro ato coletivo solicitou que

fosse desarquivado o projeto da lei sobre violência doméstica que havia sido apresentado em 1999

pela bancada do Encuento Progresista - Frente Amplo.

O processo de redação e aprovação final da Lei n. 17.517/2002 após 15 anos de luta15,

permaneceu entre os anos 1999 e 2002, e significou um grande esforço de mulheres pertencentes a

todos os setores da sociedade civil, política, acadêmicas em um esforço de reconhecer os

compromissos internacionais. Representou também o reconhecimento do Estado sobre a existência

da violência doméstica com esforços ao trabalho no sentido de violações dos direitos das mulheres

(WHITE, 2009; 2012).

O processo de instauração das Leis de Violência Doméstica no Brasil e no Uruguai possuem

pontos de cruzamentos que permitem buscar as especificidades destas configurações que não são

isoladas e que atravessam a partir do olhar da história comparada. Estes pontos também são

evidenciados ao analisarmos as definições de violência doméstica encontradas nas leis que

considera os graus em que esta pode se manifestar. No Brasil ela foi tipificada como física,

psicológica, sexual, patrimonial e moral e no Uruguai como física, psicológica e emocional, sexual

e patrimonial. Instauradas as leis, ficou estipulado a responsabilidade do Poder Público no

14 A bancada é um instrumento utilizado pelas parlamentares na conquista de avanços significativos relacionados ao

Gênero, além das diferenças partidárias. É um espaço de coordenação interpretativa, horizontal e transversal aberta a

todas as legisladoras que desejam integrá-la. Geralmente as legisladoras tem uma trajetória de militância no movimento

de mulheres que beneficia o diálogo com as organizações de mulheres e consolida a consciência a nível parlamentar. 15 No Uruguai foi criado em 1988 as Delegacias da Mulher e da Família, posteriormente chamadas de Unidades

Especializadas em Violência Doméstica (UEVD) sob a Direção de Segurança da Chefia da Polícia de Montevidéu.

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desenvolvimento de ações de enfrentamento à violência contra a mulher como a punição, proteção,

prevenção e educação no caso do Brasil e, no Uruguai, cabe ao Estado adotar medidas para

prevenir, sancionar e erradicar a violência doméstica e fomentar o apoio integral a vítima.

A lei de violência doméstica no Uruguai estende sua proteção a todos os membros da

família, independente do sexo e da idade das vítimas. Por grupo familiar, compreende relações de

consanguinidade, afetividade ou afinidade. Já no Brasil a legislação contempla medidas específicas

para proteção das mulheres (independente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura,

nível educacional, idade e religião) em situação de violência, baseadas no gênero.

No Uruguai a lei oferece medida de proteção à vida e integridade física ou emocional das

vítimas, bem como assistência econômica e integridade patrimonial do núcleo familiar, além do

direito a assistência legal e obrigatória por meio das vias civil, penal ou da infância. Para tanto, o

Estado pode exigir que cada programa (saúde, educação, serviços da justiça e de policiamento)

inclua medidas e prevenções nesse sentido (WHITE, 2009). No Brasil a lei contempla medidas de

proteção a integridade física da vítima com decretação da prisão preventiva do agressor e medidas

de assistência que contemplam além do atendimento jurídico civil e criminal, o atendimento

psicológico e social.

No campo da punição, no Brasil temos a instauração de inquérito, aplicação de medidas de

prisão, proibição da aplicação de penas alternativas ou pagamento de multa e restrição da

representação criminal para determinados delitos sob a jurisdição de Juizados de Violência

Doméstica e Familiar contra a Mulher. Em Montevidéu a lei é aplicada pelos Juizados de Família

especializados e no interior do país, pelos Juizados de Famílias e de Paz e pela Ley de Seguridad

Ciudadana16 de 1995 que criou o delito de violência doméstica como um novo tipo penal.

Diferentemente do Uruguai, o Brasil oferece medidas de prevenção e de educação, compreendidas

como estratégias possíveis e necessárias para coibir a reprodução social do comportamento violento

e a discriminação baseada no gênero.

Os movimentos feministas contemporâneos na América Latina desempenham papel

importante dentro do processo de reconhecimento, empoderamento, agência vivenciado por essas

mulheres nas quais estão perdendo sua força, devido a fragmentação e crise dentro do próprio

movimento. Os feminismos também se multiplicaram e acabaram por percorrer caminhos diversos

adquirindo novos lugares de enunciação, novas formulações, novos conceitos, novos modos de ação

plurais e algumas vezes contraditórios. Estendendo-se aos feminismos conhecidos como “radicais”

16 Ley Nº 16.707 LEY DE SEGURIDAD CIUDADANA (1995).

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aos apelidados como de mainstream17 ou mesmo o transfeminismo às reações mais ou menos

agressivas dos diversos patriarcados. Certamente os feminismos transformaram em escala global, a

maneira de pensar as sociedades ocupando um espaço permanente na produção do conhecimento

em uma perspectiva transdisciplinar e nos desenvolvimentos de modos de intervenção públicas e

coletivas.

Sonia Alvarez em seu artigo Encontrando os feminismos latino-americanos e caribenhos

(2003) pontua que os feminismos latino-americanos e caribenhos, assim como os Encontros18, são

considerados espaços não só de solidariedade e expansão como de conflitos e de exclusão, de

negociações e renegociações refletidas em contextos de mudanças políticas e econômicas, no qual

os feminismos se desenvolvem. Desde o início desses Encontros (1981) o quadro político da

América Latina passou por transformações como o período de ditaduras e repressões políticas e a

intensificação de crises econômicas que por sua vez, deram lugar a modelos de desenvolvimentos

baseados no capitalismo de mercado dentro de uma arena cada vez mais globalizada.

As interações continua Alvarez (2003), têm sido permeadas pelos significados de

autonomia, em constante mudança, que geram critérios de inclusão e exclusão nas comunidades

feministas. Assim, questões são colocadas como: Do que as feministas devem ser independentes,

dos partidos, do Estado ou de outros movimentos de mulheres? E quem será aceita como feminista,

as faveladas, as latinas, gringas ou institucionalizadas? Para a autora talvez a questão de mais

importância fosse: Quem decide? A resposta a esta última questão tem se tornado cada vez menos

clara na medida em que, “outros feminismos” reconhecem a diversidade, mas acreditam que não é

uma resposta suficiente para que se leve a sério a desigualdade. Para elas, as análises feministas

deveriam incluir e expor as desigualdades reais de poder e privilégio, geradas por classe,

raça/cultura, identidade sexual, lugar ou idade (ALVAREZ, 2003).

Essas questões a respeito da fragmentação “pós-moderna” dos movimentos feministas,

apesar de não serem questões novas na teoria e na prática dentro e fora da região latino-americana,

são celebradas por algumas feministas, mas lamentadas por outras dentro da comunidade feminista

internacional. No entanto, Alvarez (2003) acredita que o grande cerne da questão gira em torno da

avaliação das “[...] interações dinâmicas entre as diversas actoras que se identificam com o

17 Na tradução para a língua portuguesa o termo Mainstream expressa uma tendência ou moda dominante, na tradução

literal significa corrente principal. Ou seja, é o feminismo que exclui mulheres negras, trans, lésbicas, deficientes,

pobres, etc. em detrimento de mulheres brancas heterossexuais, classe média e da universalização da categoria mulher. 18 Sonia Alvarez pontua que os Encontros latino-americanos e caribenhos são espaços entre fronteiras ou

transfronteiriços que não apenas refletem, “[...] mas que também reconfiguram os discursos e as práticas dos

movimentos locais nacionais e regionais” (ALVAREZ, 2003:543). Eles permitiram também que as militantes pudessem

compartilhar suas diferentes perspectivas e construir significado políticos e culturais alternativos (ALVAREZ, 2003).

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feminismo observando a formação e reformulações de alianças, colusões, conflitos e confrontos

diretos entre elas” (ALVAREZ, 2003: 570) evidenciando o fluxo desigual de poder dentro dos

movimentos principalmente quando se é dado atenção a quem fala, quais são as vozes hegemônicas,

questões e interesses de quem predominam e quem fica ausente ou é silenciado (a).

Diante desse novo contexto latino-americano que evidencia as diferenças entre as mulheres e

suas demandas ressaltando lugares de poderes privilégios, geradas por classe, raça/cultura,

identidade sexual, lugar ou idade que o trabalho se propõe trazer colaborações para o campo das

pesquisas sobre violência de gênero e experiências subjetivas de mulheres sobreviventes frente ao

impacto das leis de combate a violência contra a mulher a partir de um olhar comparativo sob a

perspectiva da história cruzada em países como Brasil e Uruguai. Olhar com mais atenção para as

possibilidades da comparação e dos cruzamentos contribui para a produção historiográfica brasileira

trazendo para a reflexão novos problemas e questões promovendo o que Prado (2005) chama de

“conexões globalizantes” (PRADO, 2005:30).

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SPEAK OR SHUT UP? Realities of women surviving front of domestic violence. Brazil and

Uruguay (2002-2006)

The present research aims to identify the impact of the implementation of the Domestic Violence

Law established in Uruguay in 2002 and the Law on Domestic and Family Violence against

Women, better known as the Law Maria da Penha in Brazil in 2006, both a result of a long process

of struggles and demands, analyzing the distinctions and approximations existing in both societies

in the course of women's achievements in Latin America by observing the changes / permanences,

conflicts / tensions, resistances in institutional daily life and urban women. I intend to carry out a

comparative study from the perspective of connected Histories, in the face of legal realities and

domestic violence in the cities of São Paulo (Brazil) and Montevideo (Uruguay), which are part of

the debates of the contemporary feminist movements that take the place of their discourses revising

concepts, categories and reconfigurations of subjects of law. From the perspective of connected

histories, the oral and memory method, I will try to understand the specificities of the existing

configurations in each country that are not isolated and that intersect and intertwine with evidence

of life patterns, experiences that, given the silence, they decided to tell their story by experiencing

them in the condition of beyond-survival.

Keywords: Domestic Violence Laws Brazil and Uruguay; Oral reports; Women Survivors;

Connected Histories