Falácia Naturalista e Naturalismo Moral - Do é Ao Deve Mediante o Quero. Adriano Naves de Brito

12
FALÁCIA NATURALISTA E NATURALISMO MORAL: DO É AO DEVE MEDIANTE O QUERO Adriano Naves de Brito 1 [email protected] RESUMO O objetivo deste texto é discutir alguns argumentos contra a aceitação da falácia naturalista. Pretende-se mostrar aspectos que parecem corretos na argumentação dos que recusam aquela falácia, e, a despeito de seus acertos, demonstrar que estão fundamentalmente errados. O eixo para este desfecho é a reformulação da falácia em termos da recusa da implicação entre o ser e o querer. Espera-se, assim, tornar mais claras as relações – e a ausência delas – entre verdade e moral, bem como abrir espaço para a defesa de um naturalismo moral não comprometido com a existência de fatos morais. Este texto está dividido em cinco partes. Na primeira, apresenta-se a falácia naturalista de acordo com Moore; na segunda, distingue-se essa entre as formulações de Moore e de Hume; na terceira, apresentam-se objeções à interdição da passagem do “é” ao “deve” e se formulam respostas a essas objeções; na quarta, reapresenta-se o problema da interdição entre “é” e “deve” e se focaliza uma solução alternativa a ele mediante o querer; e, finalmente, na quinta parte, elaboram-se algumas conclusões acerca do naturalismo e do realismo na moral. Palavras-chave Falácia naturalista, Naturalismo moral, Realismo moral, Controvérsia é-deve ABSTRACT This article aims to discuss some arguments against the acceptance of the naturalistic fallacy. It intends to demonstrate that some 1 Centro de Ciências Humanas da Unisinos. Recebido em 27/02/2009 e aprovado em 26/10/2009. KRITERION, Belo Horizonte, nº 121, Jun./2010, p. 215-226.

description

Adriano Naves de Brito

Transcript of Falácia Naturalista e Naturalismo Moral - Do é Ao Deve Mediante o Quero. Adriano Naves de Brito

  • fALcIA NATURALISTA E NATURALISMO MORAL: DO AO DeVe MEDIANTE O QUero

    Adriano Naves de [email protected]

    reSUMo O objetivo deste texto discutir alguns argumentos contra a aceitao da falcia naturalista. Pretende-se mostrar aspectos que parecem corretos na argumentao dos que recusam aquela falcia, e, a despeito de seus acertos, demonstrar que esto fundamentalmente errados. O eixo para este desfecho a reformulao da falcia em termos da recusa da implicao entre o ser e o querer. Espera-se, assim, tornar mais claras as relaes e a ausncia delas entre verdade e moral, bem como abrir espao para a defesa de um naturalismo moral no comprometido com a existncia de fatos morais. Este texto est dividido em cinco partes. Na primeira, apresenta-se a falcia naturalista de acordo com Moore; na segunda, distingue-se essa entre as formulaes de Moore e de Hume; na terceira, apresentam-se objees interdio da passagem do ao deve e se formulam respostas a essas objees; na quarta, reapresenta-se o problema da interdio entre e deve e se focaliza uma soluo alternativa a ele mediante o querer; e, finalmente, na quinta parte, elaboram-se algumas concluses acerca do naturalismo e do realismo na moral.

    Palavras-chave Falcia naturalista, Naturalismo moral, Realismo moral, Controvrsia -deve

    ABStrACt This article aims to discuss some arguments against the acceptance of the naturalistic fallacy. It intends to demonstrate that some

    1 Centro de Cincias Humanas da Unisinos. Recebido em 27/02/2009 e aprovado em 26/10/2009.

    kriterioN, Belo Horizonte, n 121, Jun./2010, p. 215-226.

  • Adriano Naves de Brito216

    aspects, which seem to be correct in the argumentation of those who refuse that fallacy, are, despite their pertinence in some points, fundamentally imprecise. In order to reach this outcome, the fallacy is reformulated in terms of the refuse of the implication between being and the will. Therefore, it pretends to clarify the relations and their absence between truth and morality as well as enable a defense of a moral naturalism disengaged from the existence of moral facts. This text is divided in five parts. In the first one, I show the naturalistic fallacy according to Moore; in the second part, a distinction between Moores and Humes formulations of the naturalistic fallacy is elaborated; in the third part, I do not just present some objections to the interdiction of the passage from is to ought, but also formulate some responses to them; in the forth part, the interdiction problem between is and ought is retrieved and an alternative solution via the will is suggested for it; finally, in the fifth part, some conclusions are drawn about moral naturalism and moral realism.

    keywords Naturalistic fallacy, Moral naturalism, Moral realism, Is-ought problem

    introduo

    A falcia naturalista, segundo a formulou Hume (1738-40), apresenta a demonstrao, por reduo, ao absurdo da pretenso de concluir juzos de valor a partir de juzos fcticos. Em termos gerais, a concluso a seguinte: do ser no se segue nenhum dever. Moore (1903), em seu Principia Ethica, explora a separao entre os planos do dever e do ser e, mediante o auxlio da anlise da linguagem, pretendeu ter finalmente resolvido os mais importantes problemas ticos. Embora a distino entre juzos constatativos e juzos morais seja amplamente aceita, e isso, sem dvida, se deve fora da analtica da linguagem como mtodo em filosofia, a interdio da implicao entre premissas factuais e uma concluso normativa tm sido frequentemente questionada pelos defensores do tipo de naturalismo moral que advoga haver fatos morais. Afinal, em que sentido, se algum houver, as pretenses de verdade de juzos sobre o mundo objetivo podem se converter em pretenses de justificao de juzos morais?

    O que se objetiva com este texto discutir alguns argumentos contra a aceitao da falcia naturalista. Pretende-se mostrar aspectos que parecem corretos na argumentao dos que recusam aquela falcia, e, a despeito de seus acertos, tentar mostrar que esto fundamentalmente errados. O eixo para

  • 217FALCIA NATURALISTA E NATURALISMO MORAL: DO AO deve MEDIANTE O QUERO

    este desfecho a reformulao da falcia em termos da recusa da implicao entre o ser e o querer. Espera-se, assim, tornar mais claras as relaes e a ausncia delas entre verdade e moral, bem como abrir espao para a defesa de um naturalismo moral no comprometido com a existncia de fatos morais.

    Este texto est dividido em cinco partes. Na primeira, apresenta-se a falcia naturalista segundo Moore (1903); na segunda, distinguem-se entre as formulaes de Moore (1903) e de Hume (1739-40) para a falcia naturalista; na terceira, apresentam-se objees interdio da passagem do ao deve e d-se respostas a essas objees; na quarta, reapresenta-se o problema da interdio entre e deve e apresenta-se uma soluo alternativa a ele mediante o querer; e, finalmente, na quinta parte, elaboram-se algumas concluses acerca do naturalismo e do realismo na moral.

    i Moore e a falcia naturalista

    Para Moore (1903), a falcia naturalista consiste no procedimento de se tomar bom, o adjetivo, como sendo definido em frases como: O prazer e a inteligncia so bons. Mais especificamente, a falcia consiste em se tentar uma definio de bom que, a seu ver, deve ser tomado como indefinvel em termos de um objeto natural, como se bom fosse um objeto e, alm disso, um objeto natural. o que se observa em:

    Mas a verdade que um nmero excessivo de filsofos tm pensado que ao enumerar todas essas outras propriedades (que tm as coisas que so boas) estava de facto a definir bom, que essas propriedades no eram outras, diferentes, mas se identificavam total e absolutamente com bondade. A esta posio propomos que se d o nome de falcia naturalista. (MOORE, 1903, p. 92)

    Quando uma pessoa confunde dois objetos naturais, definindo um em funo de outro, por exemplo, confundindo-se a si mesma, que um objeto natural, com sentir prazer ou prazer, que tambm o so, no h qualquer justificao para que se fale de falcia naturalista. Mas se confundir bom, que no , no mesmo sentido, um objeto natural, com um objeto natural, seja ele qual for, ento, sim, h motivo para se dizer que uma falcia naturalista. (MOORE, 1903, p. 95)

    Como se v, o nome falcia naturalista decorre do fato de que o que provoca o erro na argumentao a definio de bom por um objeto natural. Toda vez que se faz isso, o resultado um argumento que no pode ser refutado, porque uma tautologia. Como se pode definir bom por diferentes objetos naturais, cada um desses argumentos ser uma tautologia e no se poder decidir qual das teorias em questo estar correta. A falcia naturalista interdita, nessa medida, qualquer discusso tica.

  • Adriano Naves de Brito218

    Veja-se o exemplo que d Moore (1903) a propsito do utilitarismo clssico. Se Bentham (1789) tivesse definido correto como as aes que levam obteno do que bom, ento o correto seria o que bom como um meio para se alcanar o que bom em si, o bem. Correto poderia, ento, ser definido como conducente felicidade. Isso, claro, sob a condio de que se defina, antes, que apenas a felicidade geral o bem, ou que apenas ela boa (o que Moore toma como sendo a mesma coisa). Se correto conducente ao bem, e o bem a felicidade geral, ento correto o conducente felicidade geral.

    Contudo, o que Bentham (1789) diz que seu princpio fundamental estabelece que a felicidade de todos aqueles cujo interesse est em causa constitui o objetivo correto e prprio da atividade humana (MOORE, 1903, p. 101). Correto , ento, identificado com o objetivo em si (ele, o objetivo, correto e no os meios para alcan-lo). Logo, a felicidade o objetivo correto deve ser lida como uma identidade (definio), isto , como o mesmo que. Donde se conclui que correto no pode mais ser o conducente felicidade sem que se tenha como resultado uma falcia, neste caso, um argumento circular que resulta da identificao do que bom com um objeto natural: a felicidade geral.

    A falcia est em que o argumento para se provar que a felicidade o fim prprio da atividade humana consiste na definio de correto, e essa definio remete ao que deveria ser provado, a saber: a felicidade geral. Se correto o mesmo que conducente felicidade geral, ento a felicidade geral o correto (o fim correto). Eis o trusmo. Ele permite agora provar o princpio de que a felicidade geral o bem: se correto o conducente felicidade geral e correto o que bom, ento a felicidade geral o bem (o que significa tanto quanto: se o bom o que conduz felicidade, ento a felicidade boa, ou o bem, mediante a substantivao do adjetivo). A prova reside, no entanto, numa definio e, embora a concluso possa estar correta (a felicidade geral pode mesmo ser o bem) o argumento nada prova. Basta que outro defina o correto como, por exemplo, o que conduz ao prazer, para se obter o resultado igualmente vlido de que o que d prazer o bem. O silogismo o seguinte: correto o que conduz ao prazer. O correto o que conduz ao bem. Logo, o que conduz ao prazer conduz ao bem, pois so uma e mesma coisa. claro que correto significa o mesmo que bom e este pode substituir aquele nesta argumentao (Tem-se, pois: bom o que conduz ao prazer. O bom conduz ao bem. Logo, o que conduz ao prazer conduz ao bem, pois so idnticos: o prazer o bem.). O resultado, para Moore (1903), que se deve tomar bom como indefinvel, no analisvel, caso contrrio pode-se cair nesta falcia: a falcia naturalista.

  • 219FALCIA NATURALISTA E NATURALISMO MORAL: DO AO deve MEDIANTE O QUERO

    O juzo de que a falcia naturalista inevitvel em toda tentativa de definir bom decorre, para Moore (1903), da peculiaridade da tica com cujos juzos nenhuma reduo dela ao mundo natural compatvel. Como as definies de bom (substantivado, ento, em o bom, o bem), aos moldes das definies de propriedades naturais, implicam alguma identificao do conceito com objetos naturais, a falcia inevitvel. Moore (1903) prope, como alternativa, uma peculiar intuio tica de que se detentor e que permite acessar o bom. Assim, embora antinaturalista, Moore (1903) no um antirrealista em tica. Esta uma combinao no menos indigesta que a entre o naturalismo e o realismo. O que se pergunta se h alguma alternativa naturalista ao realismo, quer dizer, se pode haver um naturalismo no realista.

    ii Ser e dever em Hume

    A formulao mooreana da falcia naturalista tem, diretamente, muito pouco a ver com o que se costuma chamar por este nome em filosofia prtica. comum encontrar na literatura, sob o ttulo de falcia naturalista, o erro que se cometeria ao passar do plano do ser para o plano do dever. Moore (1903) explora a distino entre estes dois planos, no para explicar a falcia naturalista, mas por acreditar que, de fato, a tica somente acessvel mediante uma especial intuio por estar ela em outro plano que no o do ser. Sobre isso nada mais se tem a dizer aqui. O que interessa averiguar, agora, a estrutura dessa falcia, que tambm chamada de naturalista, e que consiste em derivar um dever de premissas fticas, porm cuja formulao no remonta Moore (1903), mas a Hume (1739-40). O uso do nome se deve a que as mesmas doutrinas naturalistas criticadas por Moore (1903), por cometerem a falcia naturalista, tambm cometem essa outra. Afinal, ao identificar o bom com um objeto natural, naturalizam-se os valores e, com isso, transita-se, inadvertidamente, do ser ao dever, da natureza moral. Para Moore (1903), no obstante essa convico, a posse de uma intuio tica especial permitiria discernir tambm em tica o verdadeiro do falso, mesmo que esses habitassem outro plano que o plano natural. Nesse ponto, h uma irremedivel diferena entre a sua concepo e a de Hume (1739-40).

    A passagem clssica em que Hume (1739-40) apresenta o que ficou tambm conhecido como o problema do -deve (is-ought) a seguinte:

    Em todo sistema de moral que at hoje encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de raciocinar, estabelecendo a existncia de Deus ou fazendo observaes a respeito dos assuntos humanas, quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em vez das cpulas proposicionais usuais, como e no ,

  • Adriano Naves de Brito220

    no encontro uma s proposio que no esteja conectada a outra por um deve ou no deve. Essa mudana imperceptvel, porm da maior importncia. Pois como esse deve ou no deve expressa uma nova relao ou afirmao, esta precisaria ser notada e explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razo para algo que parece inteiramente inconcebvel, ou seja, como essa nova relao pode ser deduzida de outras inteiramente diferentes. (HUME, 1739-40, 27 do L. II, Parte I, Seo I)

    Hume (1739-40) aponta que a deduo de deveres a partir de premissas formuladas com elementos factuais no vlida e isso est de acordo com sua tese fundamental de que as distines morais no so percebidas pela razo e no so distines de objetos. Ora, por essa razo, juzos morais no podem ser verdadeiros ou falsos, no sentido lgico usual desses termos. Na verdade, eles no so juzos descritivos, mas avaliativos. Sobre essa tese, pesa uma controvrsia a ser referida brevemente na sequncia desta exposio.

    iii objees invalidade da deduo do deve do

    Suponha-se o seguinte argumento: no se deve impedir a prtica religiosa das minorias, pois a religio uma questo de estrita escolha pessoal. O que Hume (1739-40) teria colocado em dvida a validade da derivao do dever expresso no argumento do fato de a religio ser uma questo de escolha pessoal. O argumento estaria em ordem, se construdo um silogismo prtico como segue:

    P. maior: Nada do que uma questo de estrita escolha pessoal deve ser proibido.

    P. menor: Religio uma questo de estrita escolha pessoal.Concluso: A religio no deve ser proibida.Nesse silogismo, o dever expresso na concluso foi derivado do dever

    expresso na premissa maior. Alguns autores, em nmero cada vez mais expressivo, recusam esta interdio. Analisam-se trs desses argumentos.

    III.1 MacIntyreMacIntyre (1969), em seu artigo intitulado Hume on is and ought,

    prope que, naquela clssica passagem (citada acima), Hume (1739-40) no teria a inteno de afirmar que h um intransponvel abismo entre e deve. Na linha dessa interpretao, MacIntyre (1969) explica o deve em termos do do seguinte modo: O deve afirma ele logicamente dependente de um conceito de um interesse comum e somente pode ser explicado nos termos desse conceito (MACINTYRE, 1969, p. 41). Assim, que alguma coisa deva ser feita, depende de que haja um consenso dominante sobre o

  • 221FALCIA NATURALISTA E NATURALISMO MORAL: DO AO deve MEDIANTE O QUERO

    interesse comum do que deve ser feito. Em outros termos: do fato de que X seja o que do interesse geral que seja feito ( o que os homens querem ou precisam que seja feito), segue-se que X deva ser feito.

    Ao que parece, a derivao de MacIntyre (1969) falha. Se no, veja-se. O que do interesse comum o que todos querem (ou pelo menos a maioria dominante), mas do fato de que todos queiram X, ou seja, da verdade da frase 1. Todos querem X, no se segue que todos devam fazer X. Segue-se apenas que, de fato, todos querem. O dever no resulta da constatao da vontade de todos. No resulta porque, com o dever, se introduz uma obrigao, isto , a necessidade de que algo seja feito, mesmo que no seja isso o que os envolvidos queiram. O dever envolve um elemento normativo que no aparece na frase constatativa sobre a vontade geral.

    Deve-se compreender bem o alcance da filosofia moral de Hume. O que ele se esfora por mostrar que o ser age motivado por interesses e desejos e no por princpios ou distines racionais. Entre o que vcio e o que virtude (ou entre o que bom e o que ruim) no pode distinguir a razo. Mas essa psicologia da moral (quer dizer: a explicao psicolgica do fenmeno moral) no , ainda e por si s, suficiente para explicar a pretenso de validade intersubjetiva dos juzos morais. O que se pode perguntar aqui : o que h no deve que ainda no est no quero?

    III.2 ZimmermanUma outra proposta para cobrir o vo que separa e deve, a feita

    por Zimmerman (1962) em seu The is-ought: an unnecessary dualism, a converso, e consequente possibilidade de eliminao, de todas as frases com deve em frase com . Assim, tudo o que se pode dizer com deve, se deveria poder dizer com . A ideia fundamental que no se pode dar para frases com deve mais justificativas do que se do para frases com quero. Logo, toda frase que envolve uma obrigao, mais no seria do que uma frase sobre um desejo de que algo fosse feito. Contudo, parece evidente que h uma diferena semntica relevante entre expressar o que de fato o desejo e expressar um dever, mesmo que seu fundamento seja apenas o um desejo. Se se diz a algum: 2. Voc deve fazer X, no se est pelo menos no apenas isso a comunicar ao interlocutor que, nesse momento, se tenha um desejo especfico, mas se afirma que ele deve fazer o que a ele se diz, seja isso de sua vontade ou no, e seja isso da vontade de quem lhe expressa o dever, ou no. Coloca-se este que diz a frase 2 na sentena normativa na posio de um sujeito geral. No nem a vontade do concernido, nem a daquele que pronuncia a frase que esto em jogo. Esse o sentido da obrigao. A

  • Adriano Naves de Brito222

    converso de sentenas com devo em sentenas fticas, ou deixa de fora um elemento semntico fundamental, o sentido da obrigao, ou apenas repe o problema da distino entre juzos descritivos e normativos para uma outra formulao.

    III.3 SearleA ltima proposta para justificar a derivao do deve para o que se

    deseja analisar a que faz Searle (1962). Em seu artigo How to derive ought from is, Searle (1962) d o seguinte exemplo de como fazer a derivao em vista:

    1. Joo enuncia as palavras: prometo aqui pagar a voc, Silva, cinco reais.2. Joo prometeu pagar cinco reais a Silva.3. Joo colocou-se a si mesmo sob a obrigao de pagar a Silva cinco reais.4. Joo est sob a obrigao de pagar a Silva cinco reais.5. Joo deve pagar a Silva cinco reais.Ora, do fato enunciado na frase 1 no se segue, sem mais, que haja uma

    obrigao entre Joo e Silva. Justamente a obrigao no um fato como o o enunciar uma frase. O prometer, no entanto, no encontra o seu pleno sentido, seno por seu aspecto normativo, que envolve a obrigao selada entre os contratantes. E uma vez introduzida a noo de obrigao nas premissas, claro que j se pode concluir o dever de Joo para com Silva, pois esse dever agora a expresso da obrigao antes postulada. O ponto de Searle (1962) que as assunes em 1, 2, 3 e 4, no tm carter avaliativo (ou normativo), mas so meramente descritivas. Novamente, parece evidente que h uma relevante diferena entre descrever que Joo enunciou uma frase a Silva, e descrever que Joo prometeu algo a ele de modo que o prometido passa a constitui-se numa obrigao para Joo. Do ponto de vista meramente descritivo, que uma sentena tenha sido enunciada depende de que um fato tenha ocorrido: a locuo de uma frase. Que uma promessa tenha sido feita, depende de que Joo esteja disposto a aceitar uma norma: cumprir o que foi prometido. Para uma obrigao, no suficiente que uma frase seja enunciada, preciso que esteja vigente entre as partes um acordo moral; ou, ainda, necessrio que a frase seja asserida com a atitude proposicional correspondente. No caso em questo, a cobrana de uma obrigao moral assumida por Joo, ao fazer uma promessa para Silva. essencial, para esse acordo, que o prometido seja cumprido (ou, pelo menos, que se faa de boa f todo o esforo para isso, dentro, obviamente, das possibilidades fticas disponveis) a despeito dos desejos e interesses dos envolvidos. Ora, as frases de 1 a 4 no so meramente descritivas. J em 1, a promessa traz para o contexto o normativo. O argumento funciona porque j,

  • 223FALCIA NATURALISTA E NATURALISMO MORAL: DO AO deve MEDIANTE O QUERO

    desde o incio, o normativo est presente. O problema ainda a natureza desse normativo. De onde ele tira a sua fora? Se no a obtm da mera enunciao, ento da inteno do enunciador. A questo retorna mais uma vez: o que h no deve que ainda no est no quero, na inteno de Joo?

    IV Como se vai do quero ftico ao quero moral?

    Todas as sugestes discutidas introduzem, em algum momento, o querer como fundamento do dever. Por razes que, em virtude dos limites desta exposio, no possvel expor, h a tendncia de pensar que, se algum fundamento se puder dar para a moral (e ela no poderia vigir entre os homens se fosse completamente infundada), ento ele tem mesmo de ser o querer. No obstante essa concordncia quanto fundamentao da moral, h entre o que pensa o articulista e os trs autores comentados uma diferena decisiva. A diferena a mesma que separa, de maneira irreconcilivel, o pensamento moral de Moore (1903) e Hume (1739-40), a saber: para o primeiro, juzos morais podem ter um valor de verdade e, para o segundo, no. diferena dos autores aqui discutidos, no se considera que juzos morais sejam equivalentes ou mesmo redutveis a juzos fticos, mas se aposta na rigorosa distino entre os planos do ser e do dever. Pois bem, se o querer o fundamento da moralidade, como tendo a conceder, e o querer algo sabidamente ftico, como pode ele fundar algo que est para alm do descritvel?

    A seguir, esquematiza-se esta passagem com um silogismo prtico:

    A. Se a ao X me agrada, ento ela deve ser feita.

    Tomando o dever como fundado num querer, posso parafrasear essa frase com a frase B.

    B. Se a ao X me agrada, ento eu quero que seja feita.

    Supondo agora a premissa C:

    C. A ao X me agrada.

    terei, ento:

    D. Eu quero que a ao X seja feita.

  • Adriano Naves de Brito224

    Como, agora, a partir disso, que um silogismo prtico de carter naturalista, introduzir o dever? Como sair de D para E?:

    E. A ao X deve ser feita.

    possvel entender essas passagens analisando o dever em termos do querer. Essa seria uma leitura naturalizada. Ora, o deve implica em E tanto quanto implica em F.

    F. Eu quero que a ao X seja feita sob quaisquer circunstncias das vontades dos envolvidos, inclusive a minha prpria.

    As circunstncias naturais eventualmente impeditivas da ocorrncia de X no precisam ser mencionadas, j que tolice querer algo naturalmente impossvel e o que no ocorre por impossibilidade natural no passvel de julgamento moral. Assim, F pode ser analisado do seguinte modo:

    G. Eu quero que todos queiram que a ao X seja feita.

    Pois bem, o que est no deve que ainda no est no querer subjetivo o querer que o que se quer seja o que todos queiram.2 esse querer, e somente ele, que tem um carter moral. isso o que fica explcito na anlise3 de E em F e G. A moralidade est constituda por quereres que se querem dominantes. Em consonncia com isso, o dever o querer que se quer dominante, um querer que quer ser o querer de outras vontades (e mesmo o da minha, se ela tender a mudar de direo). esse querer dirigido aos demais, mas tambm reflexivo, portanto, a todos concernente, que desse modo objetivado. ele que permite a passagem do plano no ftico subjetivo (eu quero, eu desejo) para o plano do normativo (eu quero que todos queiram, deve-se!). A descrio meramente ftica do querer no d conta do compromisso do querer moral com a vontade dos concernidos, a que, precisamente, dirige-se o querer normativo.

    Mesmo que a expresso de uma disposio volitiva subjetiva seja, em princpio, a expresso de algo ftico, o desejo subjetivo, o que transcende a faticidade subjetiva desse querer (presente) que ele se projeta para um plano

    2 Confrontar, a propsito, a teoria moral de Tugendhat, em especial, Lies sobre tica, 1993, e o artigo Como devemos entender a moral, 2001.

    3 Vale ressaltar que o silogismo terminou em D. E, F e G no so concluses adicionais, mas anlises de E. Portanto, uma anlise naturalizada de como o quero em D deve ser entendido no mbito da moralidade.

  • 225FALCIA NATURALISTA E NATURALISMO MORAL: DO AO deve MEDIANTE O QUERO

    geral, no mais ftico, porque no constatvel imediatamente, mas normativo. Um plano no qual as vontades da comunidade moral (a vontade de cada eu concernido) exercem presses mtuas para que as coisas se passem (no futuro) como o devido. A mediao entre o ser e o dever feita pelo querer, mas um tipo especfico de querer, o querer moral, dirigido, portanto, ao querer de todos os demais.

    A postulao deste plano geral no qual a vontade se coloca e partir do qual legisla praticamente encontra equivalncia nos enunciados assertivos. Ao fazer uma assero descritiva sobre o mundo, o falante toma distncia de suas prprias representaes e se projeta para um plano geral. Muito embora o sujeito disponha sempre e apenas de suas representaes, sem o movimento de tomar distncia delas, seu discurso perderia o valor cognitivo, deixaria de candidatar-se a um valor de verdade. De modo anlogo, no obstante tenha o sujeito prtico apenas os seus desejos, o seu querer ftico, sem tomar dele distncia, sua legislao perderia o valor, pois deixaria de candidatar-se avaliao pblica que a distinguiria como boa ou m. O querer despretensioso com respeito aos demais quereres, como o esttico, por exemplo, no est submetido ao crivo da avaliao moral.

    V Concluses

    E o que dizer do naturalismo sem realismo? Pelas reflexes feitas at aqui evidente que concordo com a ideia geral de que a moral tem de estar inserida no mundo natural e a via de ligao entre ambos, moral e natureza, o querer dos agentes (querer que , por suposto, determinado pelos interesses subjetivos a que cada um est exposto como ser natural). nesses termos que defendo o naturalismo na moral. Quanto ao realismo, a ele est vinculada a ideia de que s distines morais bem, mal, bom e mau correspondem fatos. O naturalismo aliado ao realismo apresenta um mundo em que h fatos morais. Isso vai muito alm da afirmao de que os fatos morais esto vinculados ao mundo (pelo querer, por exemplo). O realista no tocante moralidade aceita que os valores morais podem ser identificados (e at percebidos) no mundo como o so outras propriedades naturais. Disso, discordo. A naturalizao da moral no implica, necessariamente, na reduo do valor ao mundo ftico. A comparao entre valor moral e valor cognitivo sugerida acima mostra que nem mesmo a verdade ou falsidade podem ser assim reduzidas. O ponto fica mais evidente quando se pergunta pelos critrios de validade dos valores atribudos aos enunciados que se proferem, sejam eles prticos ou tericos. A procura por alguma correspondncia entre eles e suas contrapartidas naturais no resolve

  • Adriano Naves de Brito226

    a dificuldade. claro que caso se encontrasse o que lhes correspondesse, ter-se-ia de perguntar, mais uma vez, pelo critrio de correspondncia entre o que se encontra e aqueles valores. Nesse sentido, eles so, de fato, como apontava Moore (1903), indefinveis.

    No posso, aqui, ir alm desse ponto. O prximo passo procurar compreender melhor a natureza do plano em que vigem os valores. O peculiar desse plano sua sui generis natureza entre imbricado na natureza e, no entanto, no redutvel a ela. Face a essa constatao sobre o carter bidimensional dos valores natureza, parece-me que uma via de acesso a eles se abre. Refiro-me investigao da natureza do significado que, como os valores, se encontra naquela mesma peculiar posio: no mundo e, contudo, fora dele.

    referncias

    BENTHAM, J. (1789). Uma introduo aos princpios da moral e da legislao. so Paulo: Abril Cultural, 1979.HUDSON, W. D. (Org.). The is-ought question. Bristol: Macmillan, 1969.HUME, D. (1739-40). Tratado da natureza humana. So Paulo: Unesp, 2000.MACINTYRE, A. (1969). Hume on is and ought. In: HUDSON, W. D. (Org.). The is-ought question. Bristol, Macmillan, 1969.MOORE, G. (1903). Principia Ethica. Lisboa, Calouste Gulbenkian, 1993.SEARLE, J. (1969). How to derive ought from is. In: HUDSON, W. D. (Org.). The is-ought question. Bristol: Macmillan, 1969.TUGENDHAT, E. (1993). Lies sobre tica. Petrpolis, Vozes, 1997.TUGENDHAT, E. (2001). Como devemos entender a moral. Philsophos, v. 6, n. 1-2, p. 59-84, 2001.ZIMMERMAN. M. (1962). The is-ought: an unnecessary dualism. Mind, 1962, v. 71, n. 281, p. 53-61.