Fagundes Varela, Por Wilson Martins

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    Wilson Martins

    Poeta maldito

    3.12.2005

    Em nossas letras, Fagundes Varela figura paradigmtica do poeta maldito,numa escala em que, alis, no eram os poetas tenebrosos que faltavam (Melhorespoemas, Sel. Antnio Carlos Secchin. So Paulo: Global, 2005). Em 1861, asNoturnas, seu livro de estria, continham dez poemas arcaizantes, prolongando aatmosfera byroniana da Academia de So Paulo na gerao anterior: A temticado maldito e do errante, do foragido e desenraizado predomina nesses poucospoemas, escritos no perodo em que ele escolhia existencialmente a sua prpria

    biografia (O foragido, Fragmentos, Sobre um tmulo, Tristeza), descontada aesprtula que pagou imitao literria e aos lugares-comuns da escola, observeina Histria da inteligncia brasileira.

    No era, contudo, e diferena de tantos outros, uma atitude literria oucacoete romntico: era um destino e uma condenao prometica. Nas palavras deAntnio Carlos Sechin, toda a sua vida foi marcada por desencontros, projetosinconclusos, infortnios. Na vida acadmica, no conseguiu concluir o curso deDireito (...) na vida afetiva, foi infeliz nos dois casamentos ... dois dos seus filhosmorreram antes do primeiro aniversrio... dependia financeiramente do pai..zanzou, bbado, por lugarejos e fazendas fluminenses, declamando de improviso

    versos que passaram tradio oral (...).

    Nos romnticos da gerao anterior, o byronismo foi uma extravagncia dejuventude; ele, chegando tarde demais num mundo demasiadamente velho,viveu a frustrao de no poder competir em igualdade, menos ainda superar, osmarcos que outros haviam plantado antes dele. Sua vida desregrada foi umavingana, uma reao de ressentimento. Era tambm uma obsesso obscura: em1865, prefaciando os Cantos e fantasia, Ferreira de Menezes dizia tratar-se da

    ressureio de lvares de Azevedo, mas, acrescento por minha conta, eleapresentava sobre o autor adolescente da Lira dos vinte anos a vantagem doamadurecimento emocional e potico. O volume incorporou para sempre nossa

    literatura o Cntico do Calvrio, alm de introduzir uma nota nova no lirismoamoroso: a desgraa de uma personalidade anormal, condenada sem esperana infelicidade e ao sofrimento.

    Falecendo em 1875, ele deixou no prelo Anchieta ou O Evangelho nas selvas,tentativa, ao mesmo tempo, de epopia crist e reafirmao de fidelidade catlica e

    jesutica, linha de inspirao que seria retomada por Bittencourt Sampaio, em1882, com A divina epopia de Joo Evangelista, parfrase evanglica a colocar namesma estante da parfrase vareliana da histria sagrada. De fato, seus mais deoito mil decasslabos brancos, escreve Antnio Carlos Secchin, revelam um escritorde grande domnio tcnico, embora o imperativo de obedincia narrativa do Novo

    Testamento acabe freando maiores mpetos de imaginao, reduzindo o nvel dotexto a uma mediania algo tediosa ao leitor no particularmente aficionado do

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    assunto. o menos que se pode dizer a respeito de um poema mais propenso adesencorajar a f do que a estimul-la. Para comp-lo em alto plano potico seriapreciso um pensamento poderoso, uma maturidade filosfica e uma inspiraopica que lhe faltavam por completo, idealmente imaginveis na pena de umAntnio Vieira, no na do bem intencionado Anchieta.

    Sua incapacidade para trat-lo aparece desde logo na fico de que se serviu:os Evangelhos explicados aos ndios, o que corresponde a ignorar-lhes a grandeza ea essncia. Sua tarefa seria, antes, a de interpretar e no a de parafrasear, seria,por assim dizer, cri-los no piano potico, como Victor Hugo criou a histria dahumanidade na Lgende des sicles. Quando Varela se atreve a abandonar oscarreiros estreitos da parfrase para cair, ou na heresia teolgica, apresentandoScrates como precursor de Jesus, ou na antecipao malvinda, com a anteviso docontinente americano, ou no anacronismo puro e simples, colocando os Francos naGlia ao tempo de Jesus. Nesse quadro, surpreende encontr-lo compromissadocom a realidade social e poltica do momento, a exemplo do poema A esttua

    eqestre, que encerra o volume de 1861. Trata-se da enorme polmica queagitara o pas em 1855, quando Haddock Lobo props Cmara Municipal do Rioerguer um monumento ao fundador do Imprio, na praa da Constituio. quelaaltura, o projeto no despertou nenhum antagonismo, abrindo-se o concurso emque foi escolhido o modelo do escultor Mafra, mandado executar em Paris.

    Contudo, ao se aproximar a data da inaugurao, os liberais mais exaltados eos republicanos viram nessa homenagem uma tentativa dissimulada de revitalizaras instituies monrquicas. Publicado no momento da inaugurao, um poemaclebre de Pedro Lus chamava esttua mentira de bronze, opondo a Pedro I onome de Tiradentes como verdadeiro heri da emancipao brasileira. Datado de

    1861, o poema de Varela insiste nos mesmos temas, nas mesmas imagens eparalelos histricos: Ergue-te ousado sobre o cho da praa,/ Homem de bronze imagem de monarca / Simulacro fatal! (...) Raa de ilotas ... por que reledes opassado escuro / Quando deveras derribar os tronos / Cantando a liberdade ? //Vota-se treva o busto dos Andradas, / Some-se a glria de ferventes mrtires /Na lama do ervaal! / Mas fria a esttua pisa a turba, como / As dura patas docorcel de bronze / O cho do pedestal!.

    O poeta tambm comungou na indignao coletiva por ocasio da famosaQuesto Christie diplomata insolente, ave maldita: Dize, filho da sombra, onde aprendeste / A voar como as guias ? . Reconheamos que no estava

    nada mal no seu gnero, inspirando-lhe ainda, com o poema A So Paulo,ptria de heris, bero de guerreiros , uma das pginas mais belas e perfeitas denossa literatura potica, tanto mais admirvel quanto no faz a menor aluso aoincidente diplomtico: Foi no teu solo, em borbotes de sangue/ Que a fronteergueram destemidos bravos (...). O que, sub-reptcia e ironicamente, significavarestituir a Pedro I o seu papel no processo da Independncia...

    Fonte: JB ON LINE