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FACULDADES INTEGRADAS CURITIBA PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO KATYA ISAGUIRRE A FUNCIONALIZAÇÃO DA EMPRESA NA PERSPECTIVA DO CONTRATO E DA PROPRIEDADE CURITIBA 2006

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FACULDADES INTEGRADAS CURITIBAPROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO

KATYA ISAGUIRRE

A FUNCIONALIZAÇÃO DA EMPRESANA PERSPECTIVA DO CONTRATO E DA PROPRIEDADE

CURITIBA2006

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KATYA ISAGUIRRE

A FUNCIONALIZAÇÃO DA EMPRESANA PERSPECTIVA DO CONTRATO E DA PROPRIEDADE

Dissertação apresentada ao Programa deMestrado em Direito Empresarial dasFaculdades Integradas Curitiba, comorequisito parcial para obtenção do Títulode Mestre em Direito.Orientador: Professor Doutor ClaytonReisCo-Orientador: Professor DoutorFrancisco Cardozo Oliveira

CURITIBA2006

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KATYA ISAGUIRRE

A FUNCIONALIZAÇÃO DA EMPRESA NA PERSPECTIVA DO CONTRATO EDA PROPRIEDADE

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do Título deMestre em Direito pelas Faculdades Integradas Curitiba.Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores:

Presidente: ___________________________________ Prof. Dr. Clayton Reis

Co-orientador: __________________________________ Prof. Dr. Francisco Cardozo Oliveira

___________________________________ Prof. Dr. Paulo Roberto Ribeiro Nalin

____________________________________ Prof. Dr. José Sebastião de Oliveira

Curitiba, 28 de dezembro de 2006.ii

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Às minhas avós,Noemia Batista Izaguirre e Ulda Tironi Duarti

(in memoriam)

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Agradeço à professora doutora Rosalice Fidalgo Pinheiro pela riqueza desuas idéias e por todo o incentivo no aprimoramento das reflexões aqui lançadas.

Não poderia deixar de mencionar também meus agradecimentos ao prof.Dr. Clayton Reis o qual fui aluna na graduação em Direito e agora tive o privilégiode ser por ele orientada nesta pesquisa.

Devo ainda agradecer ao prof. Dr. Francisco Cardozo Oliveira por suadedicação e paciência em discutir comigo o tema do presente trabalho e porpermitir que pudesse compartilhar seu profundo conhecimento e sabedoria.

Reservo um último agradecimento à minha família e principalmente ao meuesposo Alexandre, companheiro de toda a vida e importante incentivador dotrabalho que aqui se encontra concluído.

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O pensamento é uma folha desprendidaDo galho de nossas vidas

Que o vento leva e conduzÉ uma luz vacilante e cega

É o silêncio do cipresteEscoltado pela cruz.

Agenor de Oliveira – o “Cartola” –Silêncio de um cipreste - 1979

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SUMÁRIO

RESUMO………………………………………………………………………………. viii

ABSTRACT……………………………………………………………………………… ix

INTRODUÇÃO………………………………………………………………………….... 1

1. AS TRANSFORMAÇÕES DO ESTADO E A CONSTRUÇÃO DE UMAAUTONOMIA PRIVADA CONSTITUCIONAL.............................................. 3

1.1 O ESTADO DE DIREITO LIBERAL E O DIREITO PRIVADO MODERNO... 4

1.1.1 A Liberdade Econômica e seus Reflexos na Propriedade e no Contrato..... 9

1.2 O REDESENHO DAS RELAÇÕES ENTRE ESTADO E SOCIEDADE: O

ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO .................................. 14

1.3 OS LIMITES DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO: UMA NOVA

DINÂMICA PARA A AUTONOMIA PRIVADA............................................. 20

1.3.1 Os Contornos de uma Autonomia Privada Constitucional.......................... 26

2. A CONSTITUIÇÃO E O SIGNIFICADO DO DIREITO PRIVADO: ADIGNIDADE DA PESSOA HUMANA......................................................... 30

2.1 A VALORIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NA ORDEM

CONSTITUCIONAL..................................................................................... 33

2.2 A CONCRETIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA POR

INTERMÉDIO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS...................................... 40

2.3 A EFICÁCIA DOS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES DE

CARÁTER PRIVADO.................................................................................. 45

3. A FUNCIONALIZAÇÃO DAS SITUAÇÕES SUBJETIVAS PATRIMONIAIS:PROPRIEDADE E CONTRATO................................................................. 49

3.1 A EVOLUÇÃO DO DISCURSO PROPRIETÁRIO: EM BUSCA DA

SOLIDARIEDADE CONSTITUCIONAL....................................................... 56

3.1.1 A Função Social da Propriedade ................................................................ 62

3.2 A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO........................................................ 68

3.2.1 A Função Social Intrínseca do Contrato...................................................... 73

3.2.2 A Função Social Extrínseca do Contrato..................................................... 79

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4. A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA......................................................... 84

4.1 CONTRATO E PROPRIEDADE: FUNDAMENTO DA CONDIÇÃO DE

MERCADO ................................................................................................. 89

4.2 A FUNÇÃO SOCIAL COMO ELEMENTO DETERMINANTE DE UM

CONCEITO RACIONAL DE EMPRESA...................................................... 94

4.2.1 Empresa e Propriedade: a Função Social dos Bens de Produção............. 98

4.2.2 Empresa e Contrato: Instrumento para o Desenvolvimento da Atividade

Empresarial................................................................................................. 99

4.3 A FUNCIONALIZAÇÃO DA EMPRESA NA PERSPECTIVA DO CONTRATO

E DA PROPRIEDADE...............................................................................108

CONCLUSÃO.......................................................................................................114

REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS...............................................................................................118

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ISAGUIRRE, Katya. A funcionalização da empresa na perspectiva do Contrato e

da Propriedade. Dissertação (mestrado em Direito – Faculdades Integradas

Curitiba).

RESUMO

O presente estudo aborda a função social da empresa, partindo da análisedas transformações do Estado e seus reflexos na autonomia privada, linha mestrade condução do direito privado brasileiro. Enfoca a importância dos valores eprincípios constitucionais fundamentais e seus necessários reflexos na legislaçãocivilística nacional. Traduz a preocupação com a satisfação das necessidadessociais e sua vinculação à ordem econômica nacional através da prevalência dadignidade da pessoa humana, condicionante supremo de valores entre o mercadoe a pessoa. Faz a análise das situações subjetivas patrimoniais e trata da funçãosocial do contrato e da propriedade como estruturas assentadas na solidariedadeconstitucional. Analisa a empresa e a composição de sua função social porintermédio da propriedade e do contrato, considerando a vinculação aos finssociais como decorrência da fonte constitucional da autonomia privada através daconformação da livre iniciativa ao valor da justiça social.

Palavras-chave: empresa, contrato, propriedade, função social.

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ABSTRACT

ISAGUIRRE, Katya. Business functionalization in the Contract and Propertyperspective. Dissertation (Master in Law – Faculdades Integradas Curitiba).

The present study approaches the social function of the business, and itbegins with the analysis of the transformations of the State and its consequencesin the private autonomy, which is the key concept of Brazilian private law. Thisacademic work focuses on the basic importance of constitutional values andprinciples and their necessary consequences to the national civil legislation. Thisexamination comprehends the concern with the satisfaction of social necessitiesand its association with the national economic order through the prevalence of thedignity of the human person, which allows the good exercise of the supreme valuesbetween the market and the person. It analyzes the assets subjective situationsand deals with the social function of the contract and of the property as structuresbased on the constitutional solidarity. It investigates the business and thecomposition of its social function through the property and the contract, consideringthe connection to the social ends as a result from the constitutional source ofprivate autonomy through the conformation of the free enterprise to the value ofsocial justice.

Key Words : business, contract, property, social function.

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho preocupa-se em demonstrar a funcionalização da empresa

a partir do estudo da função social do contrato e da propriedade.

A transformação do Estado é tratada no primeiro capítulo para que, pela

compreensão dos percalços do passado, se possa compreender como a

autonomia privada, linha mestra do direito privado, também sofreu alterações de

acordo com as nuances político-econômicas de cada época.

A transição entre o Estado Liberal para o Estado Social é de grande valia para

demonstrar que os caminhos do direito civil brasileiro se encontram iluminados

pela axiologia prevista na Constituição Federal de 1988: a prevalência da

dignidade da pessoa humana.

A importância dos princípios constitucionais fundamentais é objeto de estudo do

segundo capítulo. A valorização dos direitos humanos é vista como denominador

comum, elemento presente na maioria das legislações mundiais após os horrores

da 2ª Guerra Mundial. A prevalência dos valores atinentes ao homem é uma

vertente nascida do Estado Social, mas que pode ser mais fortemente perseguida

na atualidade, ainda que sob o pesado véu da globalização.

A partir desta visão panorâmica segue o estudo sobre a influência dos direitos

fundamentais no direito privado contemporâneo. Nota-se a vinculação da atividade

privada aos ditames da solidariedade constitucional. O sentimento de cooperação

recíproca para a solução das injustiças sociais faz surgir no horizonte do direito

dos contratos e da propriedade uma preocupação com a justiça social, o que se

obtém a partir da irradiação das normas constitucionais.

Desse modo, a preocupação do terceiro capítulo é demonstrar que a

propriedade e o contrato, instrumentos tradicionais do direito privado

contemporâneo se encontram hoje funcionalizados. Esta preocupação social se

justifica uma vez que todo o mercado se encontra condicionado ao Direito, haja

vista as determinações do art. 170 da Constituição de 1988.

A funcionalização destes institutos decorre da igual funcionalização da

autonomia privada. Tendo por base essas premissas, procura-se estabelecer os

pressupostos da construção de uma função social para a empresa, partindo de

dois momentos essenciais: a) um primeiro momento que decorre da teoria da

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propriedade dos bens de produção e b) um segundo momento que considera o

contrato como elemento indispensável da atividade empresarial.

O estudo que se pretendeu realizar é, antes de tudo, um convite ao debate

para a funcionalização da empresa, considerando sua enorme importância para a

circulação e produção de riquezas na atualidade. A funcionalização por meio da

autonomia privada garante que a empresa também se encontre hoje

comprometida com o futuro do projeto de construção lançado pela Constituição

Federal de 1988.

A funcionalização do contrato, da propriedade e da empresa não são propostas

superadas pela forte regulação que caracteriza o Estado contemporâneo. Estas

perspectivas se encontram ainda mais consistentes justamente porque sofrem a

irradiação das normas constitucionais. A partir da identificação dos princípios e

valores expressos na constituição, o campo das relações privadas adquire uma

feição valorativa que permite a realização do justo-concreto.

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1. AS TRANSFORMAÇÕES DO ESTADO E A CONSTRUÇÃO DE UMAAUTONOMIA PRIVADA CONSTITUCIONAL

Pela evolução da sociedade é possível compreender de que forma as

alterações na maneira de agir do Estado acabam por influenciar os rumos do

direito privado. O direito civil é fruto da historicidade1 e forma a base do

ordenamento jurídico brasileiro. Por esta razão se torna vital considerar as

variáveis culturais que motivaram seu processo evolutivo. É sabido que o contexto

político e econômico determina variações na autonomia privada, verdadeiro

princípio político que coloca em jogo o papel do Estado em relação à sociedade2.

Por esta razão, cumpre apontar a evolução do Estado Liberal e seus reflexos

nas estruturas do contrato e da propriedade. Neste contexto se encontram

também os limites do Estado Social e as discussões acerca da participação da

iniciativa privada na satisfação das necessidades sociais.

A investigação do passado também auxilia na compreensão do presente,

especialmente para determinar quais os caminhos que serão percorridos no futuro.

A sociedade atual necessita dessa análise para garantir um desenvolvimento

econômico equilibrado. Esse é o cenário que justifica a reavaliação das situações

subjetivas patrimoniais na sociedade contemporânea.

1 Para Francisco Amaral: “O direito civil é, antes de tudo, um fenômeno cultural em quepredominam as notas da historicidade e da continuidade. Historicidade no sentido de que veioformando gradativamente, desde os primórdios da civilização ocidental, até se transformar em umdos mais importantes ramos da ciência jurídica. Continuidade pelo fato de ter-se mantido comoprocesso constante e de certo modo uniforme na maneira de solucionar os problemas que lhe sãopróprios, revelando a existência de princípios fundamentais a orientar a gênese e a realização desuas normas”. (AMARAL, F. Direito Civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.110).

2 PINHEIRO, R. F. Autonomia privada e Estado democrático de direito. In: SARLET, I. W.;PAGLIARINI, A. (Coord.). Direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p.491-508.

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1.1 O ESTADO DE DIREITO LIBERAL E O DIREITO PRIVADO MODERNO

O Estado moderno comporta duas fases distintas. A primeira fase é

caracterizada pelo Estado Absolutista que se caracteriza “pela concentração do

poder real, enfraquecimento da nobreza, ascensão da burguesia, culto da razão

de Estado e pela vontade do rei como lei”3 Esta forma de Estado permaneceu

vigente até o final do Século XVIII. A segunda fase do Estado Moderno se inicia

após a Revolução Francesa e caracteriza-se como Estado Liberal.

O período Liberal é conhecido, em um primeiro momento, pela transição entre o

feudalismo e o início do capitalismo. Tendo como um de seus marcos a Revolução

Francesa, sua construção resulta do crescimento da classe de comerciantes e

pequenos industriais que se opuseram ao antigo regime caracterizado por

estatutos sociais privilegiados4 e detentores da propriedade dos bens fundiários5.

O sistema feudal6 sofreu profundas modificações com o desenvolvimento do

comércio. O surgimento de uma nova classe atuante de comerciantes contribuiu

3 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 119.

4 De acordo com Carlyle Popp “se iniciada fosse a história do mundo pelo estado de coisasexistente na Idade Média perceber-se7-ia que em tal momento histórico as pessoas não eramvalorizadas pelos seus próprios méritos, mas sim pelo status que possuíam na sociedade. Aimobilidade social era quase que absoluta. Aliado a isto, o sistema anterior ao Estado Liberal erabaseado em desigualdades. As pessoas eram desiguais e o regime jurídico era visto em face detais circunstâncias. Basta para tanto recordar o tipo de relação jurídica existente entre o vassalo eo senhor feudal”. (POPP, C. Responsabilidade civil pré-negocial: o rompimento das tratativas.Curitiba: Juruá, 2006, p. 36)

5 De acordo com R. C van Caenegem: “Na idade média cristã o direito natural tinha conotaçõesreligiosas e estava identificado a uma lei divina distinta das leis humanas, às quais aquelas leis nãopodiam transgredir. A era moderna trouxe uma nova concepção ao direito natural: “rejeitava aconcepção do direito natural como um ideal de justiça com uma significação maior do que a daordem jurídica positiva. Pelo contrário, concebia o direito natural como um corpo de princípiosbásicos aos quais o direito positivo deveria ser diretamente aplicado: era um direito naturalaplicado. (CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito privado. 2ª ed. SãoPaulo: Martins Fontes, 1999, p. 164).

6 O período feudal se caracteriza por uma pluralidade de fontes, forte desigualdade social efalta de segurança jurídica para o desenvolvimento da atividade econômica da nova classe decomerciantes. Segundo Rosalice Fidalgo Pinheiro o sistema feudal se caracteriza “por meio deuma contratualidade assentada na forma e com fundamento na fides, constituem-se laçospersonalíssimos que impõem a obrigação de fidelidade do vassalo para com o senhorio. (...) Ematenção à política corporativa de sociedade medieval, a fragmentação política e econômicaconjuga-se com a fragmentação jurídica: o poder político subtrai-se ao controle da sociedade,deixando que esta se partilhe na autonomia e no auto-governo dos corpos sociais”. (PINHEIRO, R.F. Percurso teórico da boa-fé e sua recepção jurisprudencial no território brasileiro. Curitiba,

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decisivamente na transição para o capitalismo. Vale lembrar que para o bom

desenvolvimento dos negócios, esta classe favoreceu a concentração do poder

em torno do monarca, caracterizando o que se conhece por Estado absolutista.

Posteriormente, esta mesma burguesia que auxiliou o absolutismo se revolta

contra o sistema por este não lhe permitir a liberdade necessária a um bom

comércio de trocas7. O liberalismo, deste modo, se desenvolveu principalmente

como reação à última etapa do feudalismo, ou seja, às sociedades governadas por

monarquias absolutas.8

Desse modo, o Estado absolutista vigente até o final do século XVIII9 é

substituído a partir da Revolução Francesa pelo Estado Liberal.10 Dentre as

características do Estado Liberal se destacam as seguintes: a separação de

poderes, a generalidade e abstração das regras jurídicas, a consagração do

2004. Tese (Doutorado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná,p. 14)

7 “A anterior organização jurídica e social, caracterizada por um sistema rígido de vínculos e deencargos que oneravam a propriedade fundiária, onde o poder público e privado era concedidopelo príncipe a determinadas categorias ou grupos sociais, onde a aquisição e o exercício dodireito emergia de uma condição natural ditada pelo nascimento e pela inserção numa determinadaclasse, torna-se um difícil obstáculo ao livre desenvolvimento da indústria e das trocas”.(FIGUEIRA, E. Reconstrução do sistema de direito privado. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p.60).

8 CRUZ, P. M. Política, poder, ideologia e estado contemporâneo. Florianópolis: DiplomaLegal, 2001, p. 92.

9 O pensamento jurídico característico do século XVIII foi fortemente influenciado pela ciênciamoderna. O direito natural deste período excluía tudo o que não era científico e baseou-se emmétodos como o de Descartes. A abordagem sistemática deste período exerce influência até hojena ciência jurídica. De acordo com Franz Wieacker: “O jusracionalismo e o iluminismo dos séculosXVII e XVIII não são por natureza idênticos. O jusracionalismo foi a nova versão de uma filosofiasocial continuamente presente na tradição antigo-ocidental; o iluminismo, apesar de suafundamentação filosófica, foi uma ruptura moral ou, em última análise, religiosa, no sentido de umanova atitude perante a vida, da qual surgiu uma modificação da opinião pública e grandes reformasda vida política. Mas ambos os movimentos são intimamente ligados: tanto quanto à sua origem,uma vez que o sistema do novo jusracionalimo só se tornou possível através dos pensadores doprimeiro iluminismo, como Galileu e Descartes, que quanto à sua ação, já que o iluminismojustificou jusracionalisticamente as suas exigências humanitárias, tais como a abolição dos delitosde magia, da tortura e das penas corporais”. (WIEACKER, F. História do direito privadomoderno. 2ª ed. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, p. 354).

10 “Há de se recordar ainda os importantes antecedentes históricos à criação do Estado Liberal:“o Bill of rights inglês de 1689, a declaração de direitos de Virgínia (EUA) de 1776.” (AMARAL, F.Direito Civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 119)

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princípio da legalidade, a separação entre direito público e privado e a não

intervenção estatal na Economia11.

A separação de poderes em executivo, legislativo e judiciário, surge como

forma de reação à concentração de poder em torno do monarca. Dessa forma se

atribui ao parlamento a função legislativa e ao juiz a função judicial. Estando o

poder concentrado na vontade popular, pela atuação dos representantes do povo

no parlamento, todos se submetem à vontade da lei.

A lei, assim, é vista como uma conquista da libertação, uma vez que conforma

os atos da administração pública ao Direito ao tempo em que concebe validade

dos atos praticados por particulares, desde que não impliquem contrariedade às

normas do ordenamento.

Agregado a este modelo seguiu-se a concepção de um sistema normativo

completo e fechado, também como forma de reação ao anterior regime feudal12.

O direito é visto como um sistema13 , um conjunto de regras que deveria permitir

mais facilmente a solução dos conflitos. A função dos juízes, diante de uma

legislação completa e eficaz, se limitava a reproduzir a voz da lei14. Esta aparente

imobilidade era necessária porque “não se poderia correr o risco da nova ordem

legal ser interpretada nos termos do antigo regime”.15

11 FIGUEIRA, E. Reconstrução do sistema de direito privado. Lisboa: Editorial Caminho,1989, p. 19.

12 O direito feudal, de acordo com R. C van Caenegem: “era um sistema original de direito, quenão se ligava a qualquer nação em particular e que fora criado na Idade Média em completaindependência do direito romano ou dos direitos nacionais germânicos. Suas características geraissão, todavia, mais germânicas do que romanas: importância das relações pessoais e dapropriedade fundiária; ausência de qualquer concepção abstrata de Estado; falta de legislaçãoescrita e formal. (CAENEGEM, R. C. van. Uma introdução histórica ao direito privado. 2ª ed.São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 28).

13 Segundo Francisco Amaral: “a grande contribuição do Estado Moderno ao direito,principalmente do Estado Liberal, é a racionalização da vida jurídica, com a adoção da idéia desistema e o desenvolvimento do pensamento sistemático, do que os maiores exemplos foram oscódigos e as constituições do século XIX, e ainda o princípio da subjetividade jurídica, queestabelece o indivíduo como causa e razão final da esfera jurídica privada”. (AMARAL, F. DireitoCivil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 121).

14 FIGUEIRA, E. Reconstrução do sistema de direito privado. Lisboa: Editorial Caminho,1989, p. 64.

15 POPP, C. Responsabilidade civil pré-negocial: o rompimento das tratativas. Curitiba:Juruá, 2001, p. 39.

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Através da consagração do princípio da legalidade ocorre a formação de um

Estado de Direito: todos os poderes derivam da lei, estando a ela subordinados o

poder político na sua função administrativa16 e também os particulares.

O legislativo se concentrava na tarefa de garantir o máximo de generalidade e

abstração normativa para alcançar todos os indivíduos da comunidade. As normas

deste período deveriam ser abstratas no sentido de prever uma hipótese típica que

permitisse o enquadramento do maior número de ações possível. Também esta

norma, por meio da generalidade, possuía a característica de não dirigir-se a

destinatários diferenciados17, mas a todos18, desde que enquadrados no tipo

normativo.

Esta igualdade é resultado das exigências impostas pelo comércio e pela

crescente indústria que necessitava da equivalência entre todas as mercadorias,

considerados aqui os meios de produção, os bens de consumo ou a força de

trabalho. Toda a construção normativa da época justifica, portanto, as exigências e

os interesses da sociedade capitalista emergente que caracterizou o período.

A separação entre o direito público e o direto privado também era uma

exigência para o desenvolvimento do comércio, no sentido de conferir aos

particulares a abertura necessária às suas transações. Ao Estado, caberia a

segurança dos cidadãos.

Deste modo, no direito público ressaltou-se a função do Estado de garantia da

paz social, enquanto que o direito privado se preocupou com a solução dos

conflitos gerados entre particulares. Este período acarretou importantes

características para o direito privado, especialmente pelo fato de que suas normas

eram vistas como essencialmente dispositivas, centradas na vontade das partes

envolvidas.

16 FIGUEIRA, E. Op. cit., p. 39.

17 FIGUEIRA, E. Reconstrução do sistema de direito privado. Lisboa: Editorial Caminho,1989, p. 65.

18 “A sociedade moderna é, assim, marcada pela instituição do homem como sujeito singular,livre e igual, sem vínculos sociais (como acontecia na Idade Média) e responsável por si mesmo. Osujeito de direito em abstrato é o homem, livre e igual, do iluminismo”. (AMARAL, F. Direito Civil:introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 121)

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Com a necessidade de simplificar o direito e garantir-lhe uniformidade surgem

com o passar do tempo as codificações modernas, sistematizadas e com a

finalidade de garantir, na esfera privada, o pleno exercício das liberdades civis19. O

Código Civil francês (1804)20 e o alemão (1896)21 são exemplos de legislações da

época que serviram de referência e inspiração para diversos países, dentre os

quais o Brasil.

A codificação consagra o “mundo da segurança” onde o Estado se encarrega

da solução dos conflitos. A divisão entre o direito público e o privado acaba por

conferir as primeiras constituições da época um papel secundário22, uma vez que

toda a liberdade econômica idealizada pelos revolucionários se encontra

devidamente resguardada através das regras do código civil.

19 AMARAL, Francisco. Direito Civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 123.

20 Uma marcante característica do Código Civil Francês é o positivismo, que iria marcar a escolada Exegese, que predominou em grande parte do século XIX principalmente na França e naBélgica. Esta escola partia de uma interpretação quase que literal dos Códigos. Segundo R.C vanCaenegem: “as teses essenciais da escola da exegese afirmavam que o estatuto e o direito eramidênticos, e as outras fontes de direito – costume, erudição, jurisprudência, direito natural – tinhamapenas importância secundária. Para compreender o significado exato dos códigos era necessáriopartir do texto, apenas do texto, e não de suas fontes. (...) Caberia aos juristas apontar as medidasinjustas, na esperança de que o legislador se dispusesse a remediá-las. (...) E a obsessão com otexto estatutário conduziu o estudo erudito a inventar situações meramente hipotéticas, quepoderiam se encaixar num artigo ou noutro, em vez de considerar os casos reais encontrados najurisprudência. Era uma atitude que conduzia à discussão abstrata e teórica e queincompatibilizava a ciência jurídica com a jurisprudência”. (CAENEGEM, R. C van. Umaintrodução histórica ao direito privado. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 212-213).

21 O código Alemão sofreu um processo mais lento de elaboração principalmente em razão dasobjeções levantadas pela Escola Histórica de Savigny. Tal escola proclamava a ciência jurídicacomo fruto da experiência histórica de seu povo. De acordo com Franz Wieacker: “ O surgir daescola histórica constituiu, apesar de tudo, uma época do descobrimento da história do direitoromano. (...) Apesar da aparência externa do seu programa e apesar de muitas contribuiçõesindividuais de natureza histórico-jurídica, a Escola Histórica do direito aplicou a maior parte do seuvigor espiritual à construção de uma civilística sistemática; ela tornou-se – de acordo com o títulodos seus manuais mais característicos – numa pandectística ou ciência dos pandectas”.(WIEACKER, F. História do Direito Privado Moderno. 2ª ed. Fund. Calouste Gulbenkian, 1967, p.491).

22 Como ressalta Rosalice Fidalgo Pinheiro: “Sob o primado da separação entre Estado esociedade, ao constitucionalismo reservou-se a regulação da ordem jurídica estatal e à codificaçãorestou a tarefa de disciplinar a ordem social e econômica. Porém, esta atenta dicotomia sucumbiuao código como ‘verdadeira constituição do ideário liberal’, impresso de autenticidade superior àconstituição”. (PINHEIRO, Rosalice Fidalgo. Percurso teórico da boa-fé e sua recepçãojurisprudencial no território brasileiro. Curitiba, 2004. Tese (Doutorado em Direito) – Setor deCiências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p. 94)

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1.1.1 A Liberdade Econômica e seus Reflexos na Propriedade e no Contrato

A separação bem demarcada entre sociedade civil e Estado repercutiu na

noção de autonomia privada, uma vez que o poder estatal se limitava a garantia

da ordem pública, sem interferência no poder econômico, deixado à iniciativa

privada. A partir disso, tornava-se necessário um novo regime de propriedade, de

liberdade de comércio e de circulação de bens.23

O anterior modo de produção feudal, estruturado para a subsistência de classes

privilegiadas (clero e nobreza), não permitia o desenvolvimento do comércio uma

vez que todo excedente da produção era apropriado quase que exclusivamente

pelos senhorios. O capitalismo caracterizado por uma economia de troca exigia

uma expansão do comércio mediante a abertura e investimento, com o

deslocamento do consumo improdutivo da classe senhorial para o consumo

produtivo das novas atividades comerciais e industriais24.

Deste modo, a classe social emergente reclamava uma transformação profunda

nas relações sociais. Daqui se pode entender a necessidade de separação de

poderes a fim de evitar a manutenção de privilégios.

O Estado estruturado nos fundamentos básicos de liberdade e igualdade

considerava a vontade, elemento base para formação de qualquer negócio

jurídico, como absoluta e livre. Tal concepção se justifica porque o modelo Liberal

dava preferência aos valores relativos à cumulação de bens e riquezas, o que se

conformava com o aspecto formal de igualdade contratual.

23 De acordo com Eliseu Figueira: “Na ruptura com o sistema feudal, o jus naturalismoapresenta o direito de propriedade como um direito atual, originário, inerente à personalidade doindivíduo, portanto como elemento de sua libertação dos privilégios que estatutariamenteconstituíam o poder político e econômico da nobreza e do clero.” Assim o direito de propriedade éinterpretado como um direito de personalidade que deveria ser respeitado “através da nãoimposição de limites que afetem internamente a estrutura do direito subjetivo”. (FIGUEIRA, E.Reconstrução do sistema de direito privado. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p. 69)

24 Ibidem, p. 68-69.

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O direito privado deste período passa a espelhar a ideologia desta classe sócio-

econômica que havia conquistado o poder a partir da Revolução Francesa25.

Gustavo Tepedino afirma que os sujeitos de direito “nada aspiravam senão ao

aniquilamento de todos os privilégios feudais: poder contratar, fazer circular as

riquezas, adquirir bens como expansão da própria inteligência e personalidade,

sem restrições ou entraves legais.”26

A liberdade formal garantia ao indivíduo a possibilidade de deslocar-se, de

mudar de profissão, de praticar o comércio e de ser proprietário. Mas as desiguais

distribuições de renda acabaram por não se traduzir em uma liberdade real,

fazendo com que “a desigualdade se transformasse em igualdade absoluta.”27

Há que se ressaltar, porém, que os postulados do período Liberal se

encontravam na liberdade e na igualdade unicamente em seu aspecto formal. A

separação entre Estado e Sociedade também era uma exigência para manutenção

deste sistema, no sentido de assegurar um princípio da autonomia da vontade

sem limitações estatais.

A lógica do mercado, centrada em uma economia de livre circulação, trazia aos

bens um valor de troca medido por um parâmetro comum (a quantidade de

trabalho destinada à sua produção)28. Assim, garantia-se uma equivalência de

bens no mercado, o que se traduzia na igualdade entre as prestações do contrato.

25 FACCHINI NETO, E. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direitoprivado. In: SARLET, I. W. Constituição, direitos fundamentais e direito privado. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2003, p. 17.

26 TEPEDINO, G. Temas de Direito Civil: 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 2.

27 Conforme salienta Carlyle Popp: “O sistema anterior ao Estado Liberal era baseado emdesigualdades. As pessoas eram desiguais e o regime jurídico era visto em face de taiscircunstâncias. Basta para recordar o tipo de relação jurídica existente entre o vassalo e o senhorfeudal. Assim, quando surgiu o Estado Liberal houve verdadeira mutação no tratamento jurídico; aspessoas que direito algum possuíam passaram a ter todos; a desigualdade transformou-se emigualdade absoluta”. (POPP, C. Responsabilidade civil pré-negocial: o rompimento dastratativas. Curitiba: Juruá, 2001, p. 37)

28 FIGUEIRA, E. Reconstrução do direito privado. Lisboa: Caminho, 1989, p. 72.

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Isto porque não havia distinção entre os agentes econômicos (proprietários dos

meios de produção e proprietários da força de trabalho).

Ressalte-se que o contrato foi o instrumento elaborado pela ciência jurídica

Liberal para operacionalizar todo o sistema, uma vez que este instrumento

traduzia o consenso dos agentes econômicos em uma situação de pura igualdade

e liberdade. Também era conhecido que através do contrato, as pessoas poderiam

alterar posições sociais, até então consideradas imutáveis pelo sistema feudal.

A propriedade também se modifica ao deixar de ser vista como um privilégio de

altas classes (clero, nobreza) para ser passível de aquisição por qualquer

indivíduo, independente de sua posição social29. A legitimação da transferência da

propriedade se realiza pelo contrato, como reflexo das decisões econômicas

baseadas na iniciativa privada.30

A construção do direito de propriedade é intrinsecamente relacionada com a

idéia de liberdade31, constituindo-se em um verdadeiro poder proprietário exclusivo

e ilimitado. Este instituto jurídico forma a base do sistema32 porque é voltado à

garantia de liberdade do sujeito e da conseqüente autogestão da atividade

econômica.33

29 A propriedade, segundo Eliseu Figueira, é apresentada “como um direito actual, originário,inerente à personalidade do indivíduo, portanto como um elemento de sua libertação dos privilégiosque estatutariamente constituíam o poder político e econômico da nobreza e do clero”. (FIGUEIRA,E. Reconstrução do direito privado. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p. 72)

30 LORENZETTI, R. L. Tratado de los contratos: parte general. Santa Fé: Rubinzal Culzoni,2004, p. 25.

31 AMARAL, F. Direito Civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 145.

32 Conforme assinala Enzo Roppo: “A propriedade era considerada a categoria-chave de todoo processo econômico, a verdadeira e única fonte de produção e fruição das utilidadeseconômicas, enquanto que ao contrato se assinalava o papel – complementar – de simples meiopara sua circulação, para a transferência daquele senhorio para outro: a única e verdadeira riquezaeconômica era representada pela propriedade; o contrato não criava riqueza, antes se limitava atransferi-la.” (ROPPO, E. O contrato. Coimbra: Livraria Almedina, 1988, p. 63-64)

33 BARCELONA, P. Diritto privato e società moderna. Nápoli: Jovene Editore, 1996, p. 85.

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Os limites existentes à época não se voltavam ao controle da atividade

econômica34 uma vez que tinham o objetivo de afastar possíveis interferências

estatais especialmente no tocante à liberdade e a propriedade. Consagrados nas

constituições, constituíam verdadeiros direitos negativos, a serem exigidos contra

o Estado para garantia da autonomia individual.35

Nesta forma de Estado as restrições às liberdades individuais eram concebidas

como invasões de direito essencial, uma vez que se acreditava que a sociedade

em si era uma ordem espontânea e a atividade econômica era regulada

naturalmente através do mercado.

Nesta sociedade, sem fins comuns ou previsíveis, não haveria, segundoo discurso liberal mais ortodoxo, como estabelecer uma noção de justiçasocial. Nas ordens constituídas – não espontâneas -, fechadas (família,corporações, etc.) isto seria possível, mas, na sociedade aberta, afirmam,o seria apenas se as normas adviessem espontaneamente da própriasociedade, em última instância do próprio mercado.36

Deste modo, as atividades levadas a termo consubstanciavam-se pela

liberdade e igualdade dos agentes econômicos. Aqui, acreditava-se que a

concorrência acarretaria o equilíbrio do mercado naturalmente, sem necessidade

de um maior controle externo, realizado pelo Estado.

A evolução deste sistema não intervencionista, porém, acabou por gerar

conseqüências que acabariam por abalar definitivamente sua estrutura. A

revolução industrial iniciada na Inglaterra nas últimas três décadas do século XVIII

pode ser citada como um importante fator que alterou o processo de produção e

34 Como assevera Vital Moreira: “O paradigma doutrinal clássico não se limitava a dizer que aeconomia não carecia de ser regulada, antes prescrevia que ela não devia ser regulada de fora,para não desregular o seu funcionamento”. (MOREIRA, V. Auto-regulação profissional eadministração pública. Livraria Almedina: Coimbra, 1997, p. 22)

35 SARLET, I. W. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, p. 56.

36 ARAGÃO, A. S. de. Agências reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 50.

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iniciou uma série de questionamentos tendentes à proteção dos direitos dos

trabalhadores.

A livre concorrência também contribuiu para a formação de grandes

monopólios fazendo com que predominassem os interesses dos mais fortes no

mercado, criando verdadeiros abismos sociais.

A partir desse raciocínio a construção normativa em caráter de abstração e

generalidade acaba também por perder seu sentido, uma vez que a regulação

entre os sujeitos passa a dispensar a verificação de suas qualidades concretas, a

avaliação de seus papéis no contexto social, onde se encontram inseridos. A partir

do reconhecimento de diferentes grupos sociais, a regulamentação das relações

jurídicas reconheceu que o desenvolvimento econômico propiciou uma separação

entre trabalhadores, industriais, comerciantes, consumidores, etc.37

Há que se considerar, deste modo, que a liberdade de atuação repercutiu de

modo negativo no plano econômico:

O abuso do poder econômico faz com que a igualdade do liberalismo setransforme em uma piada – uma arma nas mãos dos ricos em detrimentodos pobres. Igualdade entre um industrial e um operário, entre um grandecomerciante e um consumidor, dentre outras igualdades utópicas.Bem como a fraternidade, que se demonstra completamente incompatívelcom o regime capitalista. O individualismo do liberalismo torna afraternidade algo impraticável. Diante do capitalismo puro o atoreconômico não está preocupado com outros atores, senão apenas em simesmo, na sua atividade, na sua empresa.38

Contra as concepções liberais e suas conseqüências econômicas surgiram

algumas reações, dentre as quais comporta destacar os movimentos socialistas

construídos a partir das interpretações das obras de Karl Marx e Friedrich

Engels39. As revoluções ocorridas no ano de 184840 também são significativas

para apontar o fortalecimento da classe trabalhadora a exigir mudanças sociais.

37 FIGUEIRA, E. Reconstrução do direito privado. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p. 57.

38 NEVES, R. S. O Estado regulador: a dignidade humana como princípio informador daregulação de mercado. In: Revista de direito constitucional e internacional. São Paulo: Revistados Tribunais, ano 11, n. 44, p. 211, jul-set de 2003.

39 HUGON. P. História das doutrinas econômicas. 8. ed. São Paulo: Atlas,1966, p. 237.

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1.2 O REDESENHO DAS RELAÇÕES ENTRE ESTADO E SOCIEDADE: O

ESTADO SOCIAL DE DIREITO

As modificações do capitalismo com as contradições internas do seu modo

de produção, a acumulação do capital em grandes empresas, as crises de

sobreprodução e as posteriores crises de inflação, juntamente com os conflitos

entre trabalhadores e empresários41 acabaram por fazer eclodir uma crise nos

fundamentos do modelo Liberal de Estado.

Alguns momentos históricos podem ser citados como exemplos deste

enfraquecimento da visão do Estado Liberal:

No leste da Europa a revolução russa de 1917 inaugurara o movimentode substituição do próprio capitalismo por uma nova ordem econômicabaseada na propriedade coletiva dos meios de produção. Na Alemanha aconstituição de Weimar, de 1919, introduzira pela primeira vez aeconomia na constituição, fazendo daquela uma questão básica doEstado. Na Itália, o fascismo, triunfante desde 1923, encaminhava-separa um regime em que todos os aspectos da sociedade, incluindo aeconomia, eram colocados sob a alçada da direção do Estado42.

Os efeitos posteriores à 1ª Guerra Mundial determinaram a queda do sistema

Liberal fazendo crescer a importância da intervenção econômica do Estado na

regulamentação da economia. Esta orientação voltava-se não apenas para fins

econômicos propriamente ditos, mas também para a realização de objetivos

sociais (como a contratação coletiva, normas de segurança no trabalho, etc.) que

se haviam tornado questões relevantes durante aquele período do pós-guerra.

O Estado se desfaz da adjetivação Liberal para se revestir como Social,

reconhecendo os direitos sociais e trabalhistas como direitos fundamentais sob a

proteção do Estado43. Apesar de sua criação na década de 20, o Estado Social

40 GALBRAITH, J. K. A era da incerteza.3. ed. São Paulo: Pioneira, 1980, p.88.

41 FIGUEIRA, E. Reconstrução do direito privado. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p. 89.

42 MOREIRA, V. Auto-regulação profissional e administração pública. Livraria Almedina:Coimbra, 1997, p. 17.

43 Como afirma Ingo Wolfgang Sarlet: “O impacto da industrialização e os graves problemassociais e econômicos que a acompanharam, as doutrinas socialistas e a constatação de que aconsagração formal da liberdade e igualdade não gerava a garantia do seu efetivo gozo acabaram,

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passa a intervir como regulador da economia efetivamente na década de 30. Com

a crise de 1929, iniciada nos Estados Unidos, a economia passou a ser

considerada uma questão política fundamental dos governos44. Em países como a

Alemanha foram criados cartéis oficiais para a condução econômica regulada pelo

Estado. Nos Estados Unidos, em 1936, a “revolução Keynesiana”,

consubstanciada na General Theory of Employment, Interest and Money,

acarretou a condução estatal na direção da economia, considerando-a como

atividade fundamental do governo45.

Segundo Pietro Barcelona são três os postulados do Estado Social: a) a

igualdade material em contrapartida à igualdade formal; b) o reconhecimento

recíproco da subjetividade social em face da subjetividade abstrata e c) o princípio

da solidariedade e de intervenção do Estado na economia46.

A igualdade formal do liberalismo não conduziu à igualdade real entre os

sujeitos. A iniciativa privada era determinada pelo comportamento dos agentes

econômicos que faziam prevalecer suas regras, gerando forte desigualdade social.

A concentração de riquezas gera desequilíbrios que o mercado não tem a

habilidade de corrigir de forma espontânea, autorizando certo controle por parte do

Estado.

O princípio da igualdade substancial ultrapassa a igualdade formal para voltar-

se mais especificamente para a eliminação das desigualdades econômicas.47

Somado a isso, tem-se a suplantação da subjetividade abstrata do período Liberal

para a concepção de uma subjetividade social, mais eficiente para solução dos

conflitos.

já no decorrer do século XIX, gerando amplos movimentos reivindicatórios e o reconhecimentoprogressivo de direitos, atribuindo ao Estado comportamento ativo na realização da justiça social.(...) Não se cuida mais, portanto, de liberdade do e perante o Estado, e sim de liberdade porintermédio do Estado”. (SARLET, I. W. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 2006, p. 56.)

44 MOREIRA, V. Auto-regulação profissional e administração pública. Livraria Almedina:Coimbra, 1997, p. 23.

45 Ibidem, p. 18.

46 BARCELONA, P. Diritto privado e societtà moderna. Napoli: Jovene Editore, 1996, p. 108-109.

47 BARCELONA, P. Diritto privato e società moderna. Napoli: Jovene Editore, 1996, p. 108.

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Na ordem jurídica o sistema de um Estado Social parte da consideração que a

abstração na elaboração da lei e a conformação a tipos fechados e rígidos não é

mais eficaz uma vez que a riqueza na sociedade industrial assume formas

diversas. Assim as normas jurídicas passam a ter destinatários diferenciados por

grupos sociais como os trabalhadores, comerciantes, etc.

Tal diferenciação não comporta tratamento privilegiado, mas sim, reconhece a

necessidade de tratamento diferenciado para determinadas relações a fim de

garantir-lhes maior igualdade. Neste período se inicia a elaboração de leis

extravagantes, caracterizando a “decodificação do direito privado”:

Esse longo percurso histórico, cujo itinerário não se poderia palmilhar,caracteriza o que se convencionou de chamar de processo dedecodificação do direito civil, com o deslocamento do centro de gravidadedo direito privado, do código civil, antes um corpo legislativo monolítico,por isso mesmo chamado de monossistema, para uma realidadefragmentada pela pluralidade de estatutos autônomos. Em relação aestes, o código civil perdeu qualquer capacidade de influência normativa,configurando-se um polissistema, caracterizado por um conjunto de leistidas como centro de gravidade autônomos e chamados, por conhecidacorrente doutrinária, de microssistemas.48

As dificuldades que se verificaram no cotidiano das sociedades acabaram por

permitir uma maior mobilidade aos juízes, atenuando a rígida separação entre

legislativo e jurisdição49. O sistema jurídico é conduzido a algumas aberturas50

determinadas através da identificação dos valores jurídicos com os valores sociais,

superando a anterior neutralidade do Direito.

Através das exigências sociais o Estado torna a economia como seu principal

fator de interesse. A intervenção estatal nas atividades econômicas de um modo

48 TEPEDINO G. Introdução: código civil, os chamados microssistemas e a constituição:premissas para uma reforma legislativa. In: Problemas de direito civil constitucional. Rio deJaneiro: Renovar, 2000. p. 5.

49 FIGUEIRA, E. Reconstrução do direito privado. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p. 90.

50 Segundo Rosalice Fidalgo Pinheiro: “Valendo-se de ‘fattispecies abertas’ o juiz exerce umafunção criadora e o sistema jurídico se altera por obra de uma casuística jurisprudencial. Passa ase falar em abertura e mobilidade do sistema jurídico que encontram nas cláusulas gerais seuponto de convergência”. (PINHEIRO, R. F. Percurso teórico da boa-fé e sua recepçãojurisprudencial no território brasileiro. Curitiba, 2004. Tese (Doutorado em Direito) – Setor deCiências Jurídicas, Universidade Federal do Paraná, p. 181)

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geral se dá de forma direta, motivada pela existência de falhas de mercado e

tendo por finalidade máxima a promoção do bem-estar social.

Logicamente, ainda sob a ótica do Estado Social, continuam em vigor os

princípios da liberdade de concorrência e da liberdade de iniciativa. Esses, porém,

são limitados pelo interesse público e sofrem forte influência estatal, pelo poder de

comando do Estado sobre a economia.

O Estado Social desenvolveu-se de forma surpreendente ao longo do século

XX. Nos dizeres de Marçal Justen Filho: “o Estado transformou-se em prestador

de serviços e em empresário. Invadiu searas antes reputadas próprias da iniciativa

privada, desbravou setores comerciais e industriais, remodelou o mercado e

comandou a renovação de estruturas sociais e econômicas. 51”

Toda esta ampliação na atuação do Estado se justifica através da constatação

de que a concentração de riquezas gera desigualdades. Por esta razão, resta

enfraquecida a divisão entre direito público e direito privado52 e o Estado passa a

assumir a produção de serviços essenciais e estende a concepção de segurança

social para fins de assistência e previdência.

Nesta época a antiga separação entre política e economia é superada53. As

legislações protetivas dos direitos dos trabalhadores surgem para controlar as

atividades de produção e o Estado passa também a assumir a condução de

alguns serviços como transporte, correios, etc.

Diante das modificações, há que se afirmar que as relações entre Estado e

Sociedade são redesenhadas através da substituição de uma ideologia

individualista por uma ideologia solidarista, que se caracteriza pela “supremacia da

coletividade sobre o indivíduo”54.

O avanço do Estado no campo do direito privado acabou por produzir

mudanças significativas nos institutos jurídicos da propriedade e do contrato:

51 JUSTEN FILHO, M. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo:Dialética, 2002, p. 17.

52 FIGUEIRA, E. Reconstrução do direito privado. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p. 90.

53 Idem.

54 PINHEIRO, R. F. Percurso teórico da boa-fé e sua recepção jurisprudencial no territóriobrasileiro. Curitiba, 2004. Tese (Doutorado em Direito) – Setor de Ciências Jurídicas, UniversidadeFederal do Paraná, p. 170.

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Os referidos aspectos sobre limitações positivas, impostas por dentro,aos comportamentos dos particulares (normas imperativas relativas aoconteúdo dos contratos e à obrigação de contratar), têm a ver com o usodos bens e, portanto, com o direito de propriedade privada que, de direitonatural, segundo a escola liberal, passa a ser entendido como mediaçãopara a realização da pessoa como valor e, numa perspectiva solidarística,ganha dimensão social, abrindo-se à satisfação das necessidades dosoutros.55

Deste modo, tanto a atividade econômica pública como a privada se encontram

condicionadas a uma finalidade social. O exercício do direito de propriedade, base

do ordenamento jurídico privado moderno, passa a sofrer limitações de forma a

coibir abusos, o que não retira o seu conteúdo individual, mas acarreta uma nova

dinâmica no sentido de harmonizar interesses proprietários e não proprietários.

O abandono da concepção unitária do direito de propriedade abre espaço para

o desenvolvimento da idéia de sua conotação plural. Seu exercício passa a ser

condicionado em função do interesse social. A teoria do abuso do Direito56 e a

função social são vistas como ações positivas que superam os limites meramente

negativos do Estado Liberal.

É sabido que a evolução do sistema capitalista determinou, ainda sob a égide

do Estado Liberal, a superação da agricultura pela Indústria. O desenvolvimento

das atividades empresariais impulsionou o mercado de forma a descentralizar o

sistema, antes com base na propriedade imobiliária, para uma forma de riqueza de

natureza imaterial. Os títulos de crédito, as ações de companhias, a propriedade

industrial são exemplos de bens que passaram a ser altamente valorizados com a

evolução do capitalismo.

Com isto ocorreu um processo de desmaterialização de riquezas, através da

valorização dos bens imateriais.57 Neste aspecto, a relação entre propriedade e

55 FIGUEIRA, E. Reconstrução do direito privado. Lisboa: Editorial Caminho, 1989, p.91.

56 Como assevera Francisco Amaral: “O abuso do Direito resulta da concepção segundo a qualos direitos subjetivos não podem ser exercidos de modo a prejudicar terceiros. Nascida ediretamente ligada ao direito de propriedade, essa teoria aplica-se tanto aos direitos patrimoniaisquanto aos extrapatrimoniais(...)”. (AMARAL, F. Direito civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro:Renovar, 2006, p. 146)

57 A desmaterialização de riquezas, segundo Enzo Roppo, modifica a concepção estática depropriedade: “Num sistema capitalista desenvolvido, a riqueza de facto não se identifica apenascom as coisas materiais e com o direito de usá-las; ela consiste também, e, sobretudo, em bensimateriais, em relações, em promessas alheias e no correspondente direito ao comportamento de

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contrato se modifica e ganha maior profundidade, uma vez que é por meio do

contrato que as riquezas produzidas pelos bens imateriais passam a ser

geradas58.

Para o fim de ajustar as desigualdades entre os diversos sujeitos econômicos a

teoria contratual sofre modificações. A vontade baseada no consenso passa a ser

compreendida dentro de uma perspectiva que valoriza a boa-fé dos contratantes e

a função econômico-social do negócio jurídico realizado entre as partes. O reforço

à boa-fé não retira a autonomia privada da base central do direito privado, mas

traz a ela limites impostos pela prevalência dos ideais de justiça social.

Ao trazer limites à liberdade econômica, a norma constitucional impõe aos atos

negociais o respeito à liberdade, à segurança e à dignidade da pessoa humana

sob uma ótica coletiva59. Tais limites, nas palavras de Pietro Pierlingieri60, não são

mais externos e excepcionais, mas sim internos, sendo expressões diretamente

instituídas e geradas nos valores constitucionais. De um modo geral, as normas

jurídicas passam a ser vistas como um instrumento para desenvolver objetivos e

diretrizes políticas61.

outrem, ou seja, a pretender de outrem algo que não consiste necessariamente numa res a possuirem propriedade.” (ROPPO, E. O contrato. Coimbra: Livraria Almedina, 1988, p. 64)

58ROPPO, E. O contrato. Coimbra: Livraria Almedina, 1988, p. 66.

59 BARCELONA, Pietro. Diritto privato e società moderna. Nápoli: Jovene Editore, 1996, p.389.

60 PIERLINGIERI, P. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio deJaneiro: Renovar, 2002, p. 280.

61 LORENZETTI, R. L. Tratado de los contratos: parte general. Santa Fé: Rubinzal Culzoni,2004, p. 27.

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1.3 OS LIMITES DO ESTADO SOCIAL: UMA NOVA DINÂMICA PARA A

AUTONOMIA PRIVADA

A atuação estatal na prestação de serviços públicos e também na direção direta

de determinadas atividades econômicas geraram benefícios visíveis. Atualmente,

porém, o Estado Social enfrenta limites que dificultam a continuidade de sua

posição como grande provedor das necessidades sociais.

O endividamento dos Estados, provocado por sucessivos déficits

orçamentários, proporcionou o que se conhece por crise fiscal. A expressão crise

fiscal é utilizada para refletir uma situação de insolvência dos governos, o que

bloqueia o cumprimento das obrigações estatais, paralisa o desenvolvimento de

novos projetos e prejudica indiretamente toda a economia privada.

A crise fiscal é nitidamente maior nos países da América Latina, se comparada

com os quadros apresentados pelos países mais desenvolvidos. O populismo

econômico, característica política destes países, contribuiu para um agravamento

do quadro de endividamento estatal. Além disso, outros componentes econômicos

podem ser citados como igualmente responsáveis por este endividamento

excessivo, tais como: um déficit público elevado, poupanças públicas insuficientes,

dívida interna e externa excessiva, falta de crédito do Estado e falta de

credibilidade do governo.

Todas estas características acima são auto-explicativas, mas a falta de crédito

público é característica fundamental da crise fiscal. Quando ocorre esta perda, o

Estado perde sua capacidade de sustentar a moeda e a hiperinflação se torna

incontrolável. Luís Carlos Bresser Pereira62 explica que outro componente

fundamental da dívida fiscal é a poupança pública negativa, por que estas “tendem

a ser a causa direta de baixas taxas de investimento e de estagnação de renda

per capta”.

Além da crise fiscal que assola os Estados, surgem profundas discussões

acerca do papel do Estado na condução da economia. No final dos anos setenta

na Europa, o Reino Unido e alguns países europeus adotaram novas palavras de

62 PEREIRA, L. C. B. Crise econômica e reforma do estado no Brasil: para uma novainterpretação da América Latina. São Paulo: Editora 34, 1996, p.44.

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ordem como “privatização”, “liberalização”, “desregulação”, “diminuição do papel

do Estado”, expressões que passaram a dominar o vocabulário político local63.

Na Europa o emagrecimento do Estado é a palavra de ordem. Alguns países

como o Reino Unido já se encontram em estágio avançado neste campo,

enquanto em outros, como Portugal e Espanha, têm de adaptar suas formas de

condução da vida estatal a fim de adequarem-se aos padrões exigidos pelos

tratados que impulsionam a criação do bloco econômico.

Este panorama repercutiu na sociedade internacional e incentivou a instauração

de novos modelos políticos. Busca-se atualmente uma nova forma de agir do

Estado que demande maior eficiência, através da diminuição de gastos públicos e

da redução das atividades anteriormente consideradas essenciais. Esta nova

forma também tenta diminuir a intervenção direta do Estado com o aumento da

liberdade à iniciativa privada.

O movimento das privatizações é um reflexo da redução do papel do Estado na

economia e da revalorização do papel do mercado. Por meio da privatização de

empresas públicas ou de sociedades de economia mista ocorre a liberação das

atividades antes unicamente conduzidas pelo Estado, as quais voltam ao controle

da iniciativa privada.

Deste processo pode-se afirmar que existe atualmente uma releitura do processo

de regulação64 para o aprimoramento da atuação em parceria entre a esfera

pública e a atividade privada. Modificou-se também a concepção da realização do

bem comum, uma vez que não se pode manter a atuação isolada da esfera

pública na satisfação das necessidades sociais.

63 MARQUES, M. M. L; MOREIRA, V. Desintervenção do Estado, privatização e regulação dosserviços públicos. In: Economia e perspectiva. v.3. n. 2. Ano: 1989/99, p. 134.

64 De acordo com Marçal Justen Filho: “A regulação estatal se orientaria, então, a evitar ou aconcretização de falhas de mercado ou a ampliar a dinâmica dos fatos. Haveria o suprimento dosdefeitos do mercado, intervindo sobre os processos de mercado para instaurar uma situação demaior eficiência econômica. Mas essas concepções antigas vêm sendo objeto de intensa revisão, apropósito do que se poderia identificar como uma segunda onda intervencionista. Trata-se daregulação social, que assume outras propostas. Constatou-se que o mercado, ainda que emfuncionamento perfeito, pode conduzir à não realização de certos fins de interesse comum. A taisquestões já eram sensíveis mesmo os enfoques mais tradicionais, que reputavam cabível aintervenção estatal orientada a assegurar a redistribuição de rendas e a produzir consumoobrigatório de certos serviços (educação, por exemplo)”. JUSTEN FILHO, M. O Direito dasagências reguladoras independentes. São Paulo: Dialética, 2002, p. 38.

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Como conseqüência dessa maior participação da iniciativa privada, muito se

questiona sobre o modo pelo qual ocorre a vinculação das empresas aos objetivos

sociais. A concentração do capital e outras conseqüências da Revolução

Industrial, somadas à globalização, trouxeram para a realidade contemporânea

mega-corporações ou grandes empresas que possuem um potencial econômico

por vezes superior ao de um Estado65. Tendo em vista o seu poder, tais empresas

não podem ficar à margem da discussão acerca da função social.

A ampliação da participação da iniciativa privada na condução das finalidades

sociais é ressaltada ainda pelo que se conhece por terceiro setor. O terceiro setor

é um campo híbrido de parcerias entre a esfera pública e a privada, que atuam

principalmente em virtude de brechas ocasionadas pela saída do Estado na

prestação direta de alguns serviços públicos.66

Esta participação de entes privados nos processos de obtenção de finalidades

sociais é característica da sociedade contemporânea, pois “não há como negar

que hoje temos vários grupos ou centros de poder, semipúblicos ou privados,

dotados de autonomia, atuando dentro ou paralelamente à estrutura do Estado,

levando ao franco declínio o modelo de organização centralizado que surgiu com a

modernidade67.”

Desta forma, o desenvolvimento de atividades voltadas à consecução dos fins

sociais se encontra pulverizado entre o Estado e entidades de caráter privado.

65 Conforme citam Paulo Roberto Arnoldi e Taís Michelan: “Essas empresas globais, que jáassustam com seu tamanho atual, tendem a se tornar ainda maiores, comprando empresasconcorrentes ou se unindo a elas, e a tendência é a intensificação desse processo nos últimosanos. As empresas que hoje vemos possuem faturamento anual superior ao PIB de muitos países(caso da GM, que em 1997 teve um faturamento de 178 bilhões de dólares, quase duas vezes oPIB de Cingapura) , e empregam um número fabuloso de funcionários (a Ford Motors possui umquadro de 363.000 funcionários)”. (ARNOLDI, P. R. C.; MICHELAN, T. C. de C. Novos enfoques dafunção social da empresa na economia globalizada. In: Revista de Direito Mercantil. São Paulo:Malheiros, vol. 117, p. 159, jan./mar 2000)

66 “Na Europa e nos Estados Unidos as atividades exercidas pelas entidades sem fins lucrativosjá representam 6% do PIB, de acordo com pesquisa realizada pela Universidade de JohnsHopkins, dos EUA. Segundo o levantamento, o terceiro setor movimenta quase R$ 1,3 trilhão em35 países requisitados”. (Terceiro Setor: a força do trabalho em conjunto. Gazeta do Povo,Curitiba, 30 de maio de 2003)

67 ARAGÃO, A. S. Agências reguladoras e evolução do Direito Administrativo Econômico.Rio de Janeiro, Forense, 2002, p. 183.

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Esta atuação conjunta necessita de uma orientação que garanta plena efetividade

aos direitos humanos fundamentais:

O Estado é o instrumento para promoção da dignidade humana. Mas nãose adota a crença de que o Estado seja suficiente para realizar todas astarefas necessárias à consecução dos valores fundamentais. Os valoresfundamentais da sociedade devem ser buscados através da atuação doEstado, da sociedade civil e do cidadão. A dignidade da pessoa humananão é um valor externo a cada sujeito e todos têm um compromisso morale político em ela – não apenas com a dignidade alheia, mas com aprópria.68

A coordenação de todo este processo plural cabe ao Estado. É o controle estatal

que evita que os interesses privados se sobreponham às necessidades sociais ou

que um suposto interesse coletivo sirva de argumento para a aniquilação da

autonomia privada. Esta mescla de atores e papéis sociais modifica paradigmas

tradicionais:

A mudança é mais profunda. Público e estatal não mais se identificam porinteiro; privatismo e individualismo, a seu turno, cedem espaço parainteresses sociais e para a ‘coexistencialidade’. A superação da divisãoem pauta não fere, necessariamente, a unidade sistemática do Direito,inclusive porque ultrapassada também se encontra a fixação rígida deespaços normativos. Há searas novas, ambivalentes, nelas se inserindointeresses de dupla face, a exemplo da proteção à criança e aoadolescente, bem como no campo das relações de consumo que recaemsobre serviços bancários ou de entidades de crédito. Constata-se, pois,uma mudança de paradigmas.69

A pluralidade de agentes que se encontram ligados à satisfação das

necessidades sociais não traduz a demissão do Estado no controle da atividade

econômica, pelo contrário, sua presença é fundamental para o equilíbrio dos

interesses privados e a satisfação das necessidades sociais.

Sem o controle do Estado, o mercado livre pode fazer a sociedade retroceder,

uma vez que quando da suplantação do Estado Liberal para o Social já se pôde

68 JUSTEN FILHO, M. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo:Dialética, 2002, p. 11.

69 FACHIN, L. E. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 222.

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constatar que o desenvolvimento econômico não pode ser concebido unicamente

para a potencialização de riquezas individuais.

A autonomia privada passa a ter, diante deste contexto, uma nova dinâmica, uma

vez que a participação da atividade empresarial na obtenção dos fins sociais

passa a ser mais direta, através da condução de algumas atividades anteriormente

prestadas pelo Estado. Também as atividades promovidas pelo terceiro setor são

exemplos de que a comunidade passou a se interessar por questões relevantes,

tais como a diminuição da pobreza e a proteção ao meio ambiente. Tal

conseqüência é um reflexo da difusão da informação que promove uma maior

consciência cultural para a qual não há retrocesso.

A informação propiciada pelos meios de comunicação ainda é comprometida e

deficiente, mas há que se ressaltar que para além dos pontos negativos é este um

direito elementar, representando o “fundamento da participação do cidadão na

vida do país”.70

A educação e a informação são fatores diretamente relacionados. Na sociedade

brasileira os processos educacionais, assim como o controle da comunicação

ainda se encontram distante de um modelo de eficiência. Porém, mesmo com

todas as dificuldades é forçoso reconhecer que a consciência dos cidadãos é

muito melhor do que em épocas anteriores. Sob este aspecto, a evolução dos

meios de comunicação possui um aspecto altamente positivo.

As modificações apontadas são suficientes para demonstrar que a

concepção da autonomia privada funcionalizada que se cristalizou durante a fase

áurea do Estado Social ainda se encontra presente na sociedade contemporânea.

70 Para os fins do presente trabalho o tema da informação, diante de sua complexidade, éressaltado apenas como forma de concretização da dignidade da pessoa humana e também comofator que impulsiona uma nova dinâmica à autonomia privada. De acordo com as palavras dePietro Pierlingieri: “É preciso prever técnicas, regulamentos de controle para que a informação deper si útil, seja respeitosa da dignidade da pessoa humana e realmente pluralista. (PIERLINGIERI,P. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002,p. 192).

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A consciência cultural que se formou através do tempo acaba por exigir condutas

mais responsáveis tanto do Estado como da iniciativa privada.

A maior participação dos sujeitos econômicos na condução de objetivos sociais

deve ser controlada pelo Estado. Neste aspecto, é importante frisar que o Estado

não é inimigo da atividade econômica, mas sua força deve ser utilizada para

garantia de equilíbrio nas relações sociais:

Sua intervenção é um redutor de riscos tanto para os indivíduos quantopara as empresas, identificando-se, em termos econômicos, como umprincípio de segurança: a intervenção do Estado não poderá entender-secomo uma limitação ou um desvio imposto aos próprios objectivos dasempresas (particularmente das grandes empresas), mas antes como umadiminuição de riscos e uma garantia de segurança maior na persecuçãodos fins últimos da acumulação capitalista. 71

Todo este panorama reforça a importância da Constituição a fim de permitir ao

Estado a coordenação justa deste processo. Os princípios e direitos fundamentais

consagrados no texto constitucional servem de guias seguros para evitar os

transtornos que o retorno à política neoliberal poderia vir a causar. Os valores

superiores da justiça social e a dignidade da pessoa humana são os fios

condutores desta maior proximidade entre o público e o privado.

O judiciário detém um importante papel na concretização dos valores

existenciais da pessoa. Há que se evitar, dentro deste contexto, que os interesses

de grandes grupos acabem por interferir na Constituição* a fim de fazer prevalecer

o seu intento egoístico72. A complexidade das relações contemporâneas requer

71 GRAU, E. R. A ordem econômica na Constituição de 1988. 10. ed. São Paulo: Malheiros,2005, p. 34.

* Nota da autora: Como exemplo vale citar a supressão no texto constitucional da limitação dosjuros em 12% ao ano (art. 192, parágrafo terceiro da CF/88). Alteração promovida através daemenda constitucional de nº. 40 de 29 de maio de 2003.

72 Segundo Gisela Bester Benitez: “(...) em relação a essas normas gerarem ingovernabilidadeso raciocínio do governo é simples e simplório: em não havendo como cumpri-las tire-as daConstituição”. (BENITEZ, G. M. B. Quando, por que, em que sentido e em nome de que tipo deempresa o estado contemporâneo deixa de ser empresário? In: GEVAERD, J.; TONIN, M. M.Direito empresarial & cidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2004, p. 148-151)

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uma consciência solidária que se traduz no comprometimento de todos à

satisfação das necessidades sociais.

1.3.1 Os Contornos de uma Autonomia Privada Constitucional

Conforme foi exposto, a sociedade tem no Estado um grande controlador das

atividades ligadas à consecução de fins sociais. A execução de alguns serviços

tidos como essenciais devem ser por este mantida, sob pena de insuficiência na

prestação. Mas não é só isso. O Estado também detém um papel importantíssimo

na complexa sociedade contemporânea, uma vez que deve garantir que todos

aqueles que participam do processo de satisfação dos interesses sociais

conduzam suas atividades de forma correta.

Esta tarefa exige grande competência. Os interesses políticos e econômicos de

grandes grupos privados devem ser equilibrados pelo Estado a fim de garantir que

a dignidade da pessoa humana prevaleça em primeiro lugar. De nada adiantará a

participação da iniciativa privada sem que os interesses sejam devidamente

equacionados na ordem econômica. A globalização das sociedades deve ser

ligada à concepção de que todos têm o direito de participar do mesmo patamar

civilizatório. Para Bernardo Sorj73:

É importante confrontar simplificações maniqueístas que esquecem osubstrato de valores comuns que orienta hoje boa parte da humanidade eque se expressa na prática pelas fortes interligações, ainda que porvezes conflituosas, entre os diversos atores sociais (Estado, Empresa,ONGs). Nas últimas décadas, nas ciências sociais, predominaram teoriasque, procurando desvendar os mecanismos de reprodução dadesigualdade social, perdeu do horizonte intelectual a necessidade deexplicar os processos que atuam no sentido contrário, isto é, nofortalecimento dos valores de liberdade, solidariedade e justiça social.Uma boa teoria social deve dar conta tanto dos dispositivos quereproduzem a desigualdade e a dominação quanto dos que fazem comque a liberdade, a solidariedade e a igualdade continuem a ser valorescentrais na vida das sociedades contemporâneas. Explicar o mundo atualexige que a análise social mostre o entrelaçamento complexo entre

73 SORJ, B. [email protected]: a luta contra a desigualdade na sociedade da informação. Riode Janeiro: Jorge Zahar – Brasília: UNESCO, 2003, p. 13.

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ambos os processos: os que alimentam a desigualdade e aqueles quelevam a uma maior justiça distributiva.

A concepção do modelo Social de Estado, centrado na busca de uma vontade

real, conformada com o equilíbrio econômico-financeiro do negócio jurídico deve

ser mantida a fim de resguardar o campo da liberdade de agir individual num

diálogo equilibrado com a satisfação das necessidades coletivas.

Há que se recordar que os postulados do Estado Social na prática não

obtiveram muitos resultados74 até porque é recente a história de uma genuína

democracia no Brasil. O período da ditadura militar75 trouxe benefícios estruturais

para os serviços públicos de um modo geral, porém, pouca efetividade existiu na

temática da defesa dos direitos humanos.

No caso brasileiro, a Constituição de 1988 é um marco para uma efetiva

proteção dos direitos fundamentais, como instrumentos de efetivação da dignidade

da pessoa humana. Também no texto constitucional ocorre a consagração da

liberdade econômica, através da consagração da livre iniciativa como um dos

fundamentos da República (art. 1º, IV, CF/88).

O poder da liberdade da iniciativa privada, porém, não é absoluto. Existem

limites negativos como aqueles que se destinam a estabelecer regras para o

exercício de determinada atividade empresarial76. Mas, além destes, a livre

74 De acordo com Carlos Frederico Marés: “As ditaduras, especialmente as latino-americanas,não cumpriram a cartilha do bem estar social. A maior parte perdeu-se na corrupção ou na lutapela manutenção do próprio poder, ou como dizia Jack London, perderam tempo de vida tentandoaumentar o tempo de vida. Algumas, dominadas pelas forças do poder rural cumpriram asgarantias trabalhistas urbanas, como o Brasil de Vargas, mas deixaram totalmente de lado umareforma agrária profunda”. (MARÉS, C. F. A função social da terra. Porto Alegre: Sérgio AntônioFabris, 2003, p. 96).

75 Vale destacar o pensamento de Caio Prado Junior, datado de janeiro de 1976, que muito bemrecorda os efeitos do referido “milagre econômico” que atravessamos: “Em conclusão, o ‘milagre’brasileiro não passou de breve surto de atividades estimulado por conjuntura internacionalmomentânea e fruto de circunstâncias excepcionais. Encerrado o ciclo dessa situação excepcionale invertida a conjuntura, o Brasil retorna à sua medíocre normalidade amarrada ao passado. Com aagravante agora de fazer frente ao oneroso custo de seu instante de euforia e sonho de seusdirigentes com um Brasil ‘plenamente desenvolvido’ e ‘grande potência’ a curto prazo”. (PRADOJUNIOR, C. História econômica do Brasil. 43. ed. São Paulo: Brasiliense, 1998, p. 356)

76 Há que se considerar que a autonomia privada sofre limitações também através daslegislações extravagantes. Paulo Nalin aponta que tais restrições “acabaram por ditar um novoconceito ao princípio, a partir do qual o limite se incorporou ao princípio.” (NALIN, P. Autonomiaprivada na legalidade constitucional. In: Contrato & Sociedade: princípios de direito contratual.Curitiba: Juruá, 2006, p. 31)

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iniciativa se vincula a uma função social77. Isto significa afirmar que a autonomia

privada se pauta pela observância do progresso coletivo, “que necessariamente se

sobrepõe e não se confunde com os objetivos privados do empresário”.78

Portanto, há que se admitir a tutela constitucional da autonomia privada,

decorrente da consagração da livre iniciativa como princípio do Estado

Democrático de Direito79. Esta mesma liberdade de iniciativa se encontra hoje

vinculada aos valores de existência digna e da justiça social80. Deste modo, a

autonomia privada não decresce de importância nas relações da atualidade,

ganhando em relevância a exata coerência entre o agir individual e a satisfação

das necessidades coletivas.

Portanto, pode-se afirmar que a autonomia privada se encontra funcionalizada,

porque encontra sua razão de ser na finalidade social81. Através disto, é possível

determinar um diálogo equilibrado entre a pessoa e o mercado com a abertura e

mobilidade do sistema jurídico82.

A liberdade de iniciativa consagrada na Constituição confere à autonomia

privada a condição de direito fundamental83, mas que contém em si a preocupação

77 PRATA, A. A tutela constitucional da autonomia privada. Coimbra: Almedina, p. 203.

78, Idem.

79 Segundo Francisco Amaral: “A justiça, como valor em si, dá lugar á Justiça social, noção decontornos imprecisos que significa a justiça que exige de todos e de cada um o necessário para obem comum. Seu objetivo é a distribuição mais eqüitativa das riquezas entre os homens e, nesseparticular, constitui-se em um dos pontos fundamentais da doutrina social da igreja, sendoconsagrado na constituição brasileira, no seu capítulo da ordem econômica e financeira (CF/88,art. 170)”. (AMARAL, F. Direito civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 151)

80 PINHEIRO, R. F. Autonomia privada e Estado Democrático de Direito. In: SARLET, I. W.;PAGLIARINI, A. (Coord). Direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro: Forense, (no prelo), p.16.

81 De acordo com Paulo Nalin: “Em perspectiva, finalmente, coloca-se a autonomia privada,estruturada pela Constituição da República, a partir da livre-iniciativa; e, nesta fonte, qualificadacomo direito fundamental, relativa ao seu tempo, sendo ela, a meu ver, antes, uma decorrência daestrutura (razão) socializante do atual sistema privatístico do que um isolado princípio do DireitoPrivado que sofre os limites, influxos, talvez, de um forte constitucionalismo”. NALIN, P. R. R.Autonomia privada na legalidade constitucional. In:_____. (Coord.). Contrato & Sociedade:princípios de direito contratual. Curitiba: Juruá, 2006, p. 33.

82 MARTINS-COSTA, J. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000,p. 341.

83 NALIN, P. R. R. Contrato... p. 39.

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com a justiça social, uma vez que encontra razão de ser no diálogo entre

interesses diversos e na consonância com os objetivos sociais.

Dentro deste conteúdo finalístico a autonomia privada se encontra

comprometida com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil,

em especial para a defesa de uma existência digna84 em estreita consonância com

a defesa dos interesses coletivos.

A dinâmica atual faz com que a autonomia privada reste ainda mais bem

delineada, como fruto do desenvolvimento político-econômico das sociedades. A

sua tutela constitucional e sua posição como direito fundamental podem ser

garantia de um desenvolvimento mais equilibrado para a sociedade brasileira,

servindo como base segura da permanência do homem como centro do

ordenamento.

Na reformulação das relações entre Estado e sociedade os direitos

fundamentais passam a desempenhar o papel de valores inscritos na Constituição,

não mais como direitos naturais, mas sim como resultado de uma conquista

histórica85. A consagração da dignidade da pessoa humana passa a orientar os

rumos do desenvolvimento econômico a partir de uma concepção solidária e

orientada para a promoção da justiça social.

A convivência do código civil atual com a Constituição de 1988 pode contribuir

para conferir maior concretude aos objetivos fundamentais da República,

traduzindo maior respeito aos interesses individuais em estreita adequação com

as finalidades sociais.

84 PINHEIRO, R. F. Autonomia privada e estado democrático de direito. In: SARLET, I. W.;PAGLIARINI, A. (Coord.). Direitos humanos e democracia. Rio de Janeiro: Forense, (no prelo), p.22.

85 Como assevera Norberto Bobbio: “Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo adefender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentaisque sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados porlutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, nãotodos de uma vez e nem de uma vez por todas. Falar de direitos naturais ou fundamentais,inalienáveis ou invioláveis, é usar fórmulas de uma linguagem persuasiva, que podem ter umafunção prática num documento político, a de maior força à exigência, mas não têm nenhum valorteórico, sendo, portanto, completamente irrelevantes numa discussão de teoria do direito”.(BOBBIO, N. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 25-26).

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2. A CONSTITUIÇÃO E O SIGNIFICADO DO DIREITO PRIVADO: A

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

As transformações na forma de agir do Estado determinaram uma

interpenetração entre os ramos do direito público e do direito privado. Fala-se

atualmente em “privatização do direito público“ uma vez que o Estado reduz a sua

atuação direta e abre caminho à iniciativa privada, para atuar em esferas antes

eminentemente públicas.

Esta maior participação da iniciativa privada na execução de objetivos sociais é

coordenada pelo Estado a fim “de conduzir os particulares a atingir resultados

necessários ao bem comum”86.

Acompanhando as mudanças sociais ocorridas até então, fala-se hoje também

que o direito privado enfrenta um processo de “publicização”, no qual os interesses

dos particulares se encontram subordinados aos interesses da coletividade. Não

se trata, porém, como bem ressalta Marcos de Campos Ludwig “de uma invasão

de um no campo do outro, mas – isto sim – uma nova perspectiva a incidir sobre

os institutos tradicionais do direito privado”.87

Com este inter-relacionamento questiona-se se a dicotomia entre o direito

público e o direito privado resta hoje superada. É sabido que essa separação

deriva de momentos históricos e, em razão disso, possui dentro de cada época

uma razão de ser que determina ora a prevalência de um, ora de outro. Conforme

assinala Marcos de Campos Ludwig a distinção é antiga, a dicotomia, não.88

A expressão dicotomia envolve a concepção clássica de que o direito público se

ocupa do Estado e o direito privado das relações entre particulares. A atualidade

86 JUSTEN FILHO, M. O direito das agências reguladoras independentes. São Paulo:Dialética, 2002, p. 28.

87 LUDWIG, M. de C. Direito público e direito privado: A superação da dicotomia. In: COSTA-MARTINS, J.(Org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,p. 87-117.

88 LUDWIG, M. de C. Direito Público e Direito Privado: A superação da dicotomia. In: COSTA-MARTINS, J. (Org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,p. 94.

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comporta inter-relações que não mais justifica esta separação em graus tão

absolutos como outrora.

Tal fato, contudo, não significa afirmar que o direito privado se submete aos

mesmos princípios que regem as relações de direito público. A tal “publicização”,

como se pode observar, parte da necessidade de considerar que o direito privado

é iluminado pelos valores e princípios constitucionais através da prevalência dos

direitos fundamentais da pessoa.89

Por sua vez, a “privatização” do direito público não significa dizer que os

interesses econômicos se sobrepõem ao campo político. O que se busca, com

esta aproximação, é justamente uma melhor forma de solucionar os problemas

sociais e manter a possibilidade de uma convivência pacífica, justa e solidária.

Marcos de Campos Ludwig afirma que atualmente não se pode deixar de

reconhecer um novo ente político: a massa, que une os indivíduos em um grupo

forte. Para tanto, não se “pode mais dividir o Estado da sociedade civil em

sistemas diametralmente separados, estanques, fechados, cada um em si”.90

Desse modo a dicotomia antes existente entre direito público e direito privado

cede espaço para uma nova estrutura elíptica, que os mantém como pólos de

irradiação distintos. Este novo enfoque possibilita visualizar o fenômeno jurídico a

partir dos focos centrais (público/privado), porém, não mais de forma estanque e

individualizada, mas sim, a partir de uma ótica integrativa.

O mérito desta estrutura é a possibilidade de visualizar o direito público e o

direito privado como estruturas integradas, ambos igualmente comprometidos com

os objetivos fundamentais lançados pela Constituição de 1988.

89 Para Benedita Ferreira da Silva Mac Crorie a separação entre Sociedade e Estado gerouobstáculos para uma vinculação mais direta dos particulares aos direitos fundamentais. Estepensamento cristalizou-se principalmente porque o Estado liberal foi o precursor das liberdadesnegativas, no sentido de servirem tais liberdades para proteger o indivíduo das ingerências doEstado. Diz a autora: “a separação desta configuração dos direitos fundamentais do Estado liberalclássico, gerada pelo processo de socialização contemporâneo, implica numa modificação dosentido destes direitos; ao lado de uma dimensão subjetiva tende a reconhecer-se-lhes umadimensão objetiva, com uma eficácia irradiante em várias direções, que não apenas a dos poderespúblicos.” (MAC CRORIE, B. F. da S. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.Coimbra: Livraria Almedina, 2005, p. 108)

90 LUDWIG, M. de C. Direito público e direito privado: A superação da dicotomia. In: COSTA-MARTINS, J.(Org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,p. 106.

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Ao examinar o perfil atual do direito civil, Gustav Kloh Muller Neves o entende

como atingido por toda ordem constitucional informada através dos princípios

fundamentais. Por tal razão, é importante verificar “quais os princípios

constitucionais que orientam a formação do sistema jurídico, e que, por

conseguinte, preordenam a edição, permanência e aplicação de qualquer regra

que se enquadre na esfera privada”.91

Esta reestruturação do sistema jurídico em torno de princípios e valores faz

com que os institutos do direito civil92 se encontrem hoje funcionalizados, isto é,

vinculados à valorização da pessoa para a criação de uma sociedade livre, justa e

solidária.

A vinculação do Direito à tutela existencial da pessoa é um desafio para o

jurista contemporâneo, autorizando a busca de metas que permitam o início de um

desenvolvimento mais equilibrado e sadio. Para esta finalidade, não há razão de

se distanciar os campos do direito público e do direito privado.

A defesa dos direitos fundamentais para determinação de um conteúdo mínimo

patrimonial que garanta uma existência digna indica um compromisso tanto da

esfera pública como da privada. Como bem salienta Luiz Edson Fachin:Para o Direito impõe-se o desafio, a consciência da própria história e,

sabendo-se do que já se passou, não se acomodar na falsa idéia de queo que existe não pode ser mudado, para ser mais repetição de açõescom um fim em si mesmo. Cabe aos seus operadores, mais sensíveis àrealidade, a abertura para a constante reflexão e renovação dascategorias jurídicas de acordo com as exigências e necessidadessociais93.

Pensar o Direito e sua função social, como instrumento em favor de um

desenvolvimento solidário e concentrado na defesa do homem em seus aspectos

essenciais é vital para a evolução da sociedade contemporânea.

91 NEVES, G. K. M. Os princípios entre a teoria geral do direito e o direito civil constitucional. In:RAMOS, C. L. S.; TEPEDINO, G. (Orgs). Diálogos sobre direito civil: construindo umaracionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 18.

92 Como conclui Adriana Rocha Coutinho: A constitucionalização do direito privado deve ser,antes de tudo, entendida como uma valorização deste, já que direito público e privado devemcumprir o mesmo fim último, que é a construção de uma sociedade mais justa, com o efetivorespeito à dignidade da pessoa humana.( COUTINHO, A. R. de H. A importância dos princípiosconstitucionais na concretização do direito privado. In: LOTUFO, Renan (Coord.). Direito CivilConstitucional. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 74)

93 FACHIN, L. E. Estatuto jurídico do patrimônio mínimo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar,2006, p.267.

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33

2.1 A VALORIZAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NA ORDEM

CONSTITUCIONAL

O inicial isolamento do direito civil em face do direito constitucional advinha da

separação anteriormente existente entre as esferas pública e privada, com razões

oriundas do desenvolvimento histórico-político da humanidade. O papel da

Constituição tal qual temos hoje também é resultado de um processo histórico. A

ampliação das regras constitucionais e de seu papel na sociedade é resultado de

uma evolução gradual, até sua posição atual de fonte suprema do Direito, seja sob

a ótica da esfera pública ou privada.

As constituições que surgiram no período moderno de início viam a Constituição

apenas como um instrumento de controle da atividade dos soberanos e também

como forma de organização do Estado. O constitucionalismo moderno

desenvolveu-se a partir da Constituição de 1787 dos EUA, e na Europa após a

Revolução Francesa. Como concepção inicial a Constituição era vista como um

instrumento que trazia as regras a serem observadas pelo legislador

infraconstitucional e não pelos administrados. Este argumento era suficientemente

forte para a retirada da eficácia de suas normas, por não possuírem vinculação

com as regras que determinavam as relações travadas entre os particulares.

A partir das propostas de Ferdinand Lassale, Konrad Hesse e Carl Schmidt,

uma nova concepção de Constituição passa a surgir. A eficácia da norma

constitucional parte, exatamente, de sua proximidade com a realidade social para

a qual foi elaborada. Com o fortalecimento de sua eficácia e a criação de técnicas

de controle da constitucionalidade a Constituição ganhou em definitivo seu posto

de fonte suprema do direito.

De fato, segundo Konrad Hesse, a Constituição possui uma eficácia ao passo

que não possui uma existência autônoma da realidade:

A constituição não configura, portanto, apenas a expressão de um ser;ela significa mais do que o simples reflexo das relações fáticas de suavigência, particularmente as forças sociais e políticas. Graças àpretensão de eficácia, a constituição procura imprimir ordem e

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conformação à realidade política e social. Determinada pela realidadesocial e, ao mesmo tempo, determinante em relação a ela.94

Justamente esta pretensão de eficácia demonstrada por Hesse, resultante de

um debate intermitente de forças entre a Constituição real e a escrita, é o que

permite às regras constitucionais o alcance de sua eficácia normativa. Sua maior

ou menor força se dá de acordo com a sua vinculação às nuances e tendências de

seu tempo.

Assim, as normas constitucionais passaram a ser vistas como normas jurídicas

dotadas de superioridade hierárquica. Dentro desse contexto, que reconheceu sua

normatividade, a Constituição passou a ampliar o seu papel para além de

estruturar o Estado e também de estabelecer prioridades e objetivos públicos.

O humanismo do Estado Liberal foi importante para realçar a relevância do

homem como centro da proteção do Estado. Porém, há de se ressaltar que regras

de cunho social não existiam nestas constituições e a valorização extrema da

liberdade era sua verdadeira preocupação95.

Com o Estado Social foram acrescentadas as preocupações de garantia de

direitos das relações de trabalho e alguns assuntos tipicamente sociais como

saúde e educação. A primeira Constituição neste sentido foi a dos Estados Unidos

Mexicanos (1917). Ressalta-se aqui também a Constituição de Weimar (Alemanha

– 1919). No Brasil podemos citar a Constituição de 1934.

A preocupação com os direitos humanos surgiu após a 2ª Guerra Mundial,

principalmente nos países que mais sofreram as restrições do pós-guerra

(Alemanha e Itália)96. A partir desta data, as constituições dos países seguiram a

94 HESSE, K. A força normativa da Constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991,p. 15.

95 Conforme explica Gisela Bester: “O sufrágio escrito que operou ao longo do século XIX faziacom que as Assembléias Nacionais só tivessem acesso uma classe social única e homogênea, oque por sua vez deixou como conseqüência o perfil das Constituições como depositárias de umprograma político nacional, ou seja, foram elas nada mais do que instrumentos protetores dosindivíduos diante do poder”. (BESTER, G. M. Direito constitucional, v. 1: Fundamentos teóricos.São Paulo: Manole, 2005, p. 50/51)

96 De acordo com Fábio Konder Comparato: “Ao emergir da 2ª Guerra Mundial, a humanidadecompreendeu, mais do que em qualquer outra época da História, o valor supremo da dignidadehumana. O sofrimento como matriz da compreensão do mundo e dos homens, segundo a liçãoluminosa da sabedoria grega, veio aprofundar a afirmação histórica dos direitos humanos. ADeclaração Universal, aprovada pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de1948 e a Convenção Internacional sobre a prevenção e punição do crime de genocídio, aprovada

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inspiração dos modelos germânico e italiano, que focalizam o ser humano como o

centro de suas atenções.

No Brasil este modelo foi consagrado efetivamente através da Constituição de

1988. A experiência dos governos militares igualmente justifica, em uma razão de

ordem inversa, a inclusão da busca da dignidade humana na Constituição de 1988

como um dos fundamentos do Estado Social.

A valorização dos direitos humanos é um elemento de equilíbrio para a

sociedade contemporânea. Os direitos humanos recepcionados nas constituições

são reconhecidos como direitos fundamentais, os quais conferem coerência entre

os diversos diplomas legislativos. A influência dos direitos fundamentais no direito

civil fazem com que este assuma um “novo papel social”97 para a proteção da

pessoa.

A preocupação com os direitos humanos informa a extrema importância que

assume o princípio da dignidade da pessoa humana, o qual, de acordo com Pietro

Pierlingieri, é considerado o centro do ordenamento jurídico nacional:

É necessário que, com força, a questão moral, entendida como efetivorespeito à dignidade da vida de cada homem e, portanto, comosuperioridade deste valor em relação a qualquer razão política daorganização da vida em comum, seja resposta ao centro do debate nadoutrina e no Foro, como única indicação idônea a impedir a vitória de umdireito sem justiça98.

Há que se ressaltar, portanto, que existe certa confusão na doutrina brasileira

acerca das expressões “direitos humanos” e “direitos fundamentais”, muitas vezes

usados como sinônimos. Gisela Bester aponta a divergência e ressalta a

importância de utilização da expressão ‘direitos fundamentais’ a partir das

argumentações de Perez Luño que entende os direitos humanos como aqueles de

um dia antes também no quadro da ONU, constituem os marcos inaugurais da nova fase histórica,que se encontra em pleno desenvolvimento”. (COMPARATO, F. K. A afirmação histórica dosdireitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 56)

97 MARQUES, C. L. Contratos no código de defesa do consumidor. São Paulo: Saraiva,2002, p. 164.

98 PERLINGIERI, P. Introdução ao direito civil constitucional. 2. ed., Rio de Janeiro,Renovar, 2002, p. 23.

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conteúdo mais impreciso e que os direitos fundamentais seriam definidos como

aqueles institucionalmente reconhecidos e garantidos pelo direito positivo.99

A diferenciação, segundo a autora, parte da leitura da realidade ao considerar

que há direitos humanos que não são fundamentais. O exemplo mais evidente

desta situação é o direito consagrado pelo inciso 7, do art. 7º da Convenção

Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) de que

“ninguém deve ser detido por dívida”. Essa convenção, ratificada no Brasil,

encontra-se em vigor no País.

Também o pacto internacional sobre Direitos Civis e Políticos dispõe que

“ninguém poderá ser preso por não cumprir obrigação contratual”. A Constituição

de 1988, porém, contém dois casos em que a prisão civil por dívida está

autorizada: o depositário infiel e o devedor de pensão alimentícia. Em

contrapartida, os pactos internacionais influenciam sobremaneira nos julgados do

país que muitas vezes a utilizam como um dos argumentos para evitar a prisão

civil do devedor de um contrato de alienação fiduciária em garantia100.

Deste modo, de acordo com Ingo Wolfgang Sarlet as expressões “direitos

humanos” e “direitos fundamentais” possuem conexão ao mesmo tempo em que

se diferenciam porque a primeira expressão possui sentido mais impreciso e

amplo e se encontra ligada ao direito internacional. Por sua vez, são

99 PEREZ LUÑO, A. E. Los derechos fundamentales. 7. ed. Madrid: Tecnos, 1998, p. 44 ApudBESTER, G. M. Direito constitucional, v. 1: fundamentos teóricos. São Paulo: Manole, 2005, p.558-559.

100 Sobre a tormentosa questão recentemente o STF no julgamento do recurso extraordinárioRE nº. 466.343-1, em que foi relator o Min. Cezar Perluso, manteve a inconstitucionalidadereconhecida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo para o caso de prisão civil do devedorfiduciante. O processo se encontra com pedido de vista pelo Min. Celso de Mello. Vale ressaltar umtrecho do excelente voto proferido pelo Min. Gilmar Mendes: “Nesse sentido, é preciso concluirque, diante da supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsãoconstitucional do depositário infiel (art. 5º, LXVII) não foi revogada pela ratificação do PactoInternacional dos direitos civis e políticos (art. 11) e da Convenção Americana dos DireitosHumanos, Pacto de São José da Costa Rica (art. 7º, 7), mas deixou de ter aplicabilidade diante doefeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina amatéria, incluído o art. 1287 do Código Civil de 1916 e o decreto Lei 911, de 1º de outubro de 1969.(...) Tudo indica, portanto, que a Constituição deixa um espaço restrito para que o legislador possadefinir o conteúdo semântico da expressão ‘depositário infiel’ . Entendimento contrário atribuiria aolegislador o poder de criar novas hipóteses de prisão civil por dívida, esvaziando a garantiaconstitucional.” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 466.343-1, Relator.Ministro Cezar Perluso, publicado em 29.11.2006. Disponível na Internet via:<http://www.stf.gov.br>. Acesso em: 13 dezembro 2006)

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compreendidos como direitos fundamentais aqueles direitos reconhecidos e

positivados na esfera do direito constitucional101.

Há que se ressaltar também que o rol de direitos fundamentais consagrados na

Constituição não é fechado, em razão do § 2º do art. 5º que estabelece: “Os

direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes

do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em

que a República Federativa do Brasil seja parte.”102

O reconhecimento progressivo de novos direitos fundamentais possui um

caráter de complementaridade o que afasta a sua classificação em diferentes

gerações103. Existem, de acordo com este entendimento, três dimensões distintas

de direitos fundamentais, as quais derivam da evolução político-econômica da

sociedade.

Os direitos de primeira dimensão são frutos do pensamento liberal de cunho

individualista, caracterizando-se como direitos dos indivíduos diante ao Estado.

São notadamente de caráter negativo por refletirem a preocupação de garantia da

liberdade individual e da não intervenção. São enquadrados aqui os direitos à

vida, à liberdade e à propriedade. Também se caracterizam como de primeira

dimensão algumas liberdades como de expressão, imprensa, manifestação e os

direitos de participação política (direito de voto e capacidade eleitoral passiva).

Ainda integram o rol algumas garantias processuais como o devido processo legal,

o habeas corpus, etc.

Os direitos de segunda dimensão são resultados dos avanços na formação do

Estado Social e, por esta razão, possuem um conteúdo positivo para propiciar a

redução das desigualdades. Aqui se enquadram os direitos à saúde, educação,

trabalho, assistência, previdência, etc. A partir do segundo pós-guerra estes

direitos passam a ser consagrados em várias constituições. Também se

101 SARLET, I. W. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2006, p. 35.

102 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Saraiva, 2004.

103 Para Ingo Wolfgang Sarlet a expressão “geração” deve ser afastada porque pode levar auma impressão equivocada, “da substituição gradativa de uma geração por outra”. (SARLET, I. W.A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 54)

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enquadram aqui determinadas liberdades como o direito de greve, o direito a

férias, salário mínimo, dentre outros.

Os direitos fundamentais de terceira dimensão se caracterizam pela superação

do homem-indivíduo104 gerados pela evolução tecnológica e pelas transformações

sociais do segundo pós-guerra. Estes direitos são tratados também como direitos

de fraternidade ou solidariedade105 justamente porque ampliam o campo da

proteção para uma noção de titularidade coletiva. Dentre estes, destacam-se o

direitos à paz, ao meio ambiente, ao desenvolvimento, à autodeterminação dos

povos, etc.

Ainda que esta classificação comporte alterações106 existem outros direitos

fundamentais como aqueles ligados à bioética, os relativos à mudança de sexo, ao

direito de morrer, etc., que poderiam ser concebidos como direitos de quarta

dimensão. Como já visto, as mudanças sociais demandam a concepção de novos

direitos fundamentais.

Para a finalidade da presente pesquisa esta classificação procura ressaltar a

importância do estudo dos direitos fundamentais e, mais ainda, de ressaltar a

imensa responsabilidade de toda a sociedade em trazê-los à realidade de forma

concreta e consistente.

Assim, há que se entender também que os direitos fundamentais são

essenciais para o funcionamento e direção do Estado contemporâneo.

Constituem-se em verdadeiros mandamentos a fim de evitar que a defesa dos

valores existenciais acabem por se traduzir em meras garantias de viabilidade

econômica.107

104 SARLET, I. W. A eficácia ... p. 58.

105 SARLET, I. W. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2006, p. 58.

106 Para Gisela Bester os direitos citados por Ingo Sarlet como de terceira dimensão estariamincluídos em uma quarta geração de direitos fundamentais. (BESTER, G. M. Direitoconstitucional, v. 1: Fundamentos teóricos. São Paulo: Manole, 2005, p. 594)

107 Como afirma João Pedro Gebran Neto: “Num momento em que o homem passa a sercodificado, órgãos e pessoas são medidos segundo cifras econômicas, em que a eficiência éconfundida com capacidade de arrecadação, é imperativo que os juristas reafirmem seu papel desalvaguarda da Carta Constitucional, buscando não só preservar, mas principalmente, concretizaros direitos fundamentais assegurados na Constituição de 1988, por meio de uma interpretaçãoprincipiológica e de máxima efetividade”. (GEBRAN, NETO, J. P. A aplicação imediata dos

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Por esta perspectiva, logicamente que os órgãos públicos têm o dever de tudo

fazer para realizar os direitos fundamentais. Os particulares não assumem

responsabilidade por alguns direitos fundamentais que se ligam diretamente ao

Estado, situação esta que compreende os direitos políticos e algumas garantias

processuais (habeas corpus, mandado de segurança) previstas na Constituição108.

Alguns direitos fundamentais se dirigem diretamente aos particulares, tais como

o direito à indenização por dano moral, a inviolabilidade de domicílio e o sigilo da

correspondência. Também alguns direitos sociais, como aqueles voltados à

proteção do trabalhador evidentemente vinculam empregadores, sejam estes

públicos ou privados. Mesmo para estes direitos existe alguma discussão sobre

qual seria a forma exata de sua vinculação aos particulares.

Ressalte-se que os direitos fundamentais são ainda, “multifuncionais”,

concepção esta que afasta a vinculação clássica destes direitos como

instrumentos de defesa contra o Estado. Essa diversidade de funções também

remete à uma consideração bipartida que, ao mesmo tempo, permite considerá-los

como direitos subjetivos individuais ou direitos objetivos fundamentais da

comunidade (perspectiva jurídico objetiva e jurídico subjetiva.)109

Relacionando-se diretamente à perspectiva axiológica traçada pela

Constituição, assegura-se que os direitos fundamentais não devem ser apenas

valorizados do ponto de vista individual, sendo certa a importância de um

reenquadramento desta visão a fim de conceber o devido resguardo do campo de

agir privado, dentro de um campo de reconhecimento de sua perspectiva social.

Em outras palavras, é conceber um diálogo de equilíbrio entre interesses coletivos

e individuais para a proteção dos direitos do homem110.

direitos e garantias individuais: a busca de uma exegese emancipatória. São Paulo: RT, 2002, p.47)

108 Para Ingo W. Sarlet existem garantias processuais, na verdade “direitos” ou “princípios-garantia” que podem e devem ser aplicadas aos particulares, por exemplo, o devido processo legale o contraditório. (SARLET, I. W. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2006, p. 394)

109 SARLET, I. W. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2006, p. 167.

110 Para Norberto Bobbio: “Diante da ambiguidade da história, também eu creio que um dospoucos, talvez o único, sinal de um confiável movimento histórico para o melhor seja o crescenteinteresse dos eruditos e das próprias instâncias internacionais por um reconhecimento cada vez

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2.2 A CONCRETIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA POR

INTERMÉDIO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Os princípios fundamentais são as normas embaixadoras e informativas de toda

a ordem constitucional111. Segundo Canotilho há de se observar, contudo, que os

princípios estão mais próximos de uma idéia valorativa e de interesses112, o que

lhes confere um grau de abstração mais elevado. Também o grau de

determinabilidade na aplicação do caso concreto oferece distinção uma vez que os

princípios carecem “de mediações concretizadoras, enquanto as regras são

suscetíveis de aplicação direta”113.

Os princípios também traduzem um caráter de fundamentalidade, vez que são

tidos como elementos estruturais do ordenamento jurídico. Nesta mesma linha são

os princípios, segundo Dworkin, standards vinculados à idéia de justiça114.

O caráter abstrato do princípio é contraposto à caracterização mais precisa das

demais regras constitucionais. Portanto os princípios acabam por demandar um

esforço de interpretação muito maior que o das demais regras que compõem o

ordenamento jurídico.

São os princípios, conforme Paulo Bonavides115, “a pedra de toque ou o critério

com que se aferem os conteúdos constitucionais em sua dimensão normativa mais

elevada”. De fato, possuem a função de fundamento de toda a ordem jurídica e

também orientam a interpretação de toda a legislação.

maior, e por uma garantia cada vez mais segura, dos direitos do homem”. (BOBBIO, N. A era dosdireitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 148).

111 SARLET, I. W. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2006, p. 113.

112 CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 6. ed. Coimbra:Livraria Almedina, p. 1145.

113 Idem.

114 “Denomino ‘princípio’ um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ouassegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é umaexigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade.” (DWORKIN. R.Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p.36)

115 BONAVIDES, P. Curso de direito constitucional. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p.285.

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Ainda que os princípios se subdividam em categorias diferenciadas não há

como negar que eles buscam atingir efeitos concretos. José Afonso da Silva

classifica, de acordo com Canotilho, os princípios em político-constitucionais e

jurídico-constitucionais.116 Os primeiros são tidos como resultado das decisões

políticas fundamentais que se concretizam em normas conformadoras do sistema

constitucional positivo117, e se encontram traduzidos nos arts. 1º a 4º do título I da

CF/88 e que depois são refletidos ao longo do texto da Constituição. Seriam estes

os genuínos princípios fundamentais.

Os princípios jurídico-constitucionais são apontados como aqueles que

informam a ordem jurídica nacional. Por vezes são desdobramentos dos princípios

fundamentais como o princípio da supremacia da Constituição, o princípio da

legalidade, isonomia, da autonomia individual, da proteção social aos

trabalhadores, da proteção da família, do ensino e da cultura, da independência da

magistratura, o da autonomia municipal, os da organização e representação

partidária. Também, se enquadram aqui os princípios-garantia tais como o

princípio do juiz natural, do devido processo legal, dentre outros.118

Nos princípios fundamentais se encontram os fundamentos do Estado

Brasileiro: soberania, cidadania, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa,

o pluralismo político e a dignidade da pessoa humana. É a dignidade um

“superprincípio, que se sobrepõe a tudo e em primeiro lugar”119 e que tem sua

efetividade demonstrada através de vários outros artigos da Constituição e da

legislação infraconstitucional. Tanto a ordem pública como a privada dependem de

sua observância para atingir os objetivos almejados.

A dignidade da pessoa humana possui diversos conteúdos dentre os quais

estão os chamados direitos individuais, políticos e sociais. Em sua compreensão

se inter-relacionam outros princípios citados ao longo do texto constitucional. Esta

116 SILVA, J. A. da. Curso de direito constitucional positivo. 5. ed. São Paulo: RT, 1989, p.82.

117 Idem.

118 SILVA, J. A. da. Curso de direito constitucional positivo. 5. ed. São Paulo: RT, 1989,.p.83.

119 BESTER, G. M. Direito constitucional, v. 1: Fundamentos teóricos. São Paulo: Manole,2005, p. 290/294.

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mescla de direitos fundamentais por vezes resulta na incapacidade de definir os

efeitos que eles devem produzir. A amplitude do princípio é um dos argumentos

citados por alguns para a dificuldade de sua aplicação prática120.

Segundo Antônio Junqueira de Azevedo a concretização de um princípio carece

de modelação para adaptação ao concreto. Isso ocorre evidentemente com o

princípio da dignidade. Aos argumentos que pretendem demonstrar o vazio do

princípio da dignidade como mera norma de conteúdo programático há que se

ressaltar ainda que o princípio da dignidade da pessoa humana não admite

atenuação. Se afastado nada sobra para ser regulamentado.121.

Como princípio máximo do ordenamento jurídico, a dignidade da pessoa

humana não pode ser um conceito preciso e fechado porque possui em cada

época uma conotação diferente, sendo fruto das transformações sociais. Maria

Celina Bodin de Moraes assevera que apesar desta flexibilidade, não se pode

admitir como “válido tudo aquilo que puder reduzir a pessoa (o sujeito de direitos)

à condição de objeto.“122

A dignidade da pessoa humana possui como fundamento os princípios da

igualdade e da liberdade. Note-se que estes princípios não são mais direcionados

em uma perspectiva individualista e se encontram informados pelo princípio da

solidariedade social. Este último é uma conseqüência lógica que se extrai das

conseqüências do segundo pós-guerra, sendo compreendido como um valor que

se pode extrair da “consciência racional dos valores em comum”.123

A solidariedade é, portanto, um valor que permite identificar as desigualdades

ao mesmo tempo em que outorga liberdade, num sentido de permitir a atividade

dos homens desde que concebidas em um plano de reconhecimento da liberdade

120 Como bem ressalta Ana Paula de Barcelos: “Na prática, acabam por se opor, de um lado, osefeitos almejados por outras normas constitucionais e, de outro, o vazio, já que não se apurou queefeitos concretos a normas relacionadas com a dignidade pretendem produzir; o resultado é,fatalmente, a atribuição de uma eficácia jurídica frágil e inconsistente para estas normas”.(BARCELOS, A. P. de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio dadignidade da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 172)

121 AZEVEDO, A. J. de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. In: Revistados Tribunais ,ano91, n 797, p. 19, março de 2002, p.19-20.

122 MORAES, M. C. B. de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil constitucional dos danosmorais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 85.

123 Idem, p. 113.

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do outro. Dentro deste entendimento a solidariedade leva ao entendimento de que

a Constituição determina o alcance de uma dignidade social.

A dignidade social leva á um critério de ponderação entre liberdade e

solidariedade, como explica Maria Celina Bodin de Moraes:

Não se trata, portanto, de impor limites à liberdade individual, atribuindomaior relevância à solidariedade, ou vice-versa. O princípio a seralcançado é o da dignidade da pessoa humana, o que faz com que amedida de ponderação para sua adequada tutela propenda ora para aliberdade, ora para a solidariedade. Tal é, justamente, uma das medidasde aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana: a ponderaçãoa ser feita, em cada caso, entre liberdade e solidariedade – termos que,stricto sensu, são considerados contrapostos124.

Deste modo, a liberdade é regulada em razão da solidariedade social,

procurando nas relações que se travam na sociedade o interesse de cada pessoa

e sua relação com os valores coletivos, no intuito claro de redução das

desigualdades dentro de um critério de razoabilidade.

A concretização da dignidade da pessoa humana, de acordo com Antônio

Junqueira de Azevedo, pressupõe o respeito à integridade física e psíquica das

pessoas, a consideração dos pressupostos materiais necessários para o exercício

da vida e o respeito às condições mínimas de liberdade e convivência social

igualitária125.

Maria Celina Bodin de Moraes, por sua vez, afirma que a concretização da

dignidade da pessoa humana não se traduz em hipóteses exatas. Para a autora,

nos conflitos entre particulares que envolvam situações jurídicas patrimoniais e

existenciais, a defesa desta última deverá prevalecer. No confronto entre o Estado

e o particular a defesa da dignidade da pessoa humana não oferece muitas

dificuldades, vez que o Estado diretamente se vincula á sua defesa, como fator

primordial de sua atividade.

Pelo exposto há que se concluir que a Constituição de 1988 não pretendeu com

a inclusão da dignidade da pessoa humana em seu art. 1º, inc. III resguardar

apenas seu valor hermenêutico. O legislador constitucional preocupou-se com as

124 MORAES, M. C. B. de. Danos à pessoa humana: uma leitura civil constitucional dos danosmorais. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 108.

125 AZEVEDO, A. J. de. Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana. In: Revistados Tribunais ,ano91, n 797, p. 19, março de 2002, p. 23

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condições materiais de existência dos indivíduos elaborando diversos artigos

espalhados ao longo do texto que se ocupam de ressaltar a prevalência da

dignidade através da proteção de bens que lhes são essenciais: tais como o direito

à saúde e a educação, dentre outros.

No campo estatal, o Estado deve preservar a dignidade e criar condições para

seu pleno exercício126. Nesta ótica, a dignidade da pessoa humana ao tempo em

que limita a atividade estatal também conduz um aperfeiçoamento de suas

políticas a fim de obter o máximo de sua concretização no meio social. Assim, há

uma forte vinculação deste princípio com a ordem comunitária, justamente porque

a complexidade das relações contemporâneas não permite ao indivíduo satisfazer

suas necessidades básicas de forma isolada.

A preocupação com a defesa da dignidade não é unicamente papel do Estado,

mas também deve resultar das parcerias firmadas com a iniciativa privada. O setor

público e também o privado devem ter suas atuações pautadas pela defesa deste

objetivo fundamental da sociedade brasileira.

A atividade econômica, em razão de sua importância para o desenvolvimento

nacional, deve respeitar os valores existenciais e a dignidade social. o

desenvolvimento econômico é condição para o exercício da dignidade humana e

também instrumento potente para sua efetiva proteção.

A finalidade da ordem econômica, consubstanciada no art. 170 da Constituição

de 1988 é estreitamente vinculada ao princípio da existência digna. Deste modo, a

liberdade de iniciativa (que informa a autonomia privada)127 é garantia de

mobilidade aos agentes econômicos no mercado. Esta necessária liberdade,

contudo, não é absoluta, uma vez que a própria busca da dignidade condiciona a

autonomia privada a uma função, voltada ao equilíbrio entre os interesses

individuais e coletivos.

126 SARLET, I. W. S. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2006, p.119.

127 SARLET, I. W. S. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 2006, p.119.

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45

2.3 A EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES

INTERSUBJETIVAS

Tanto o poder público quanto a iniciativa privada estão hoje comprometidos

com os objetivos fundamentais da República, em especial com a concretização do

princípio da dignidade da pessoa humana. A ordem econômica, desta forma, deve

equilibrar as atuações no mercado a fim de garantir um desenvolvimento

consciente voltado para a satisfação dos interesses inerentes ao homem.

Nessa perspectiva se torna importante avaliar quais as formas de eficácia dos

direitos fundamentais, a fim de permitir a concretização das exigências que se

extraem do princípio da dignidade da pessoa humana. A importância dos direitos

fundamentais supera a original concepção de defesa da liberdade individual para,

em conjunto com os princípios, integrar o núcleo substancial do Estado

democrático de direito:

(...) além da íntima vinculação entre as noções de Estado de Direito,constituição e direitos fundamentais, estes, sob o aspecto dasconcretizações do princípio da dignidade da pessoa humana, bem comodos valores da igualdade, liberdade e justiça, constituem condição deexistência e medida de legitimidade de um autêntico Estado Democráticoe Social de Direito, tal qual como consagrado também em nosso direitoconstitucional positivo vigente128.

A eficácia e aplicabilidade das normas que contêm direitos fundamentais são

resguardadas pelo art. 5, § 1º da CF/88 ao dispor: “as normas definidoras dos

direitos e garantias constitucionais têm aplicação imediata.” Tal regra, contudo,

não é suficiente porque muitas vezes consigna esta eficácia à elaboração de lei

complementar e ainda porque muitos dos direitos fundamentais se encontram

disciplinados não só no art. 5º da Constituição, mas também se encontram

refletidos em outros artigos da carta magna129.

128 SARLET, I. W. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2006, p. 74.

129 Ingo Wolfgang Sarlet “na esfera dos direitos econômicos, sociais e culturais”, aponta algunsdireitos fundamentais dispersos no texto constitucional, “tais como o direito à utilização gratuita dostransportes públicos coletivos para pessoas com mais de 65 anos de idade (art. 230, § 2º), o direitoà proteção do meio ambiente (art. 225), os direitos à previdência social e à aposentadoria (arts.201 e 202), bem como o direito à assistência social (art. 203), os quais a despeito de enunciadosem normas de eficácia limitada (não auto-aplicáveis) já foram ainda que de forma por vezes

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Os direitos fundamentais não se prendem apenas à função precípua de

proteger o indivíduo contra as ingerências do Estado. A aplicação dos direitos

fundamentais é irradiada para toda a ordem jurídica, seja esta de caráter público

ou privado. A aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares

adquire relevância através das transformações sociais:130

A ampliação crescente das atividades e funções estatais, somada aoincremento da participação ativa da sociedade no exercício do poder,verificou-se que a liberdade dos particulares – assim como os demaisbens jurídicos assegurados pela ordem constitucional – não careciaapenas de proteção contra ameaças oriundas dos poderes públicos, mastambém contra os mais fortes no âmbito da sociedade, isto é, advindasda esfera privada.

Ao entender o poder de agir dos particulares como intimamente relacionado

com os princípios constitucionais da solidariedade e da dignidade da pessoa

humana131 há de se admitir que os direitos fundamentais também possuem

vinculação imediata nas relações jurídicas de caráter privado.

A forma da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais envolve o

estudo da eficácia direta ou indireta das normas constitucionais. A eficácia direta

decorre da unidade do ordenamento e afasta a vinculação exclusiva do poder

público aos direitos fundamentais132, como decorrência lógica de sua concepção

valorativa.

Por sua vez, a eficácia indireta entende que a aplicação de forma direta dos

direitos fundamentais propicia um esvaziamento da autonomia privada e uma

incompleta ou não satisfatória, devidamente concretizados pelo legislador”. (SARLET, I. W. Aeficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006,.p. 138)

130 SARLET, I. W. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno davinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In: SARLET, I. W. (Org.) A constituiçãoconcretizada: Construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2000, p. 118.

131 FACCHINI NETO, E. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direitoprivado. In: SARLET, I. W. (Org). A constituição concretizada: construindo pontes com o públicoe o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p.22.

132 SARLET, I. W. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno davinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In: SARLET, I. W. (Org.) A constituiçãoconcretizada: Construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2000, p. 121.

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estatização do direito privado.133 Neste entendimento, a vinculação dos direitos

fundamentais deve ocorrer através de cláusulas gerais previstas pelo legislador no

direito privado e, na ausência destas normas, por meio da interpretação ou

também uma integração jurisprudencial. A teoria da eficácia mediata (ou indireta)

acabou por prevalecer no seio da doutrina e jurisprudência alemãs134.

As teorias da eficácia direta ou indireta possuem um ponto em comum: ambas

consideram superada a concepção liberal de que os direitos fundamentais são

oponíveis somente contra o Estado135. Igualmente partem elas da constatação de

que os direitos fundamentais expressam valores objetivos, cujos efeitos alcançam

todo o ordenamento, de forma irradiada.

Os adeptos da eficácia indireta sustentam que cabe aos legisladores e ao juiz,

em caráter suplementar, a função de intermediar a aplicação das normas de

direitos fundamentais às relações entre particulares. De fato, esta tarefa é muito

importante na atividade legislativa e judicial. Há de se ressaltar, porém, que a

aplicação desta teoria limita a influência direta dos princípios e valores

fundamentais na esfera privada.

A aplicação dos princípios fundamentais se dá em caráter de especialidade, o

que contraria o verdadeiro sentido de um princípio, vetor máximo que determina o

que é essencial para a vida em sociedade. O efeito irradiante, pela teoria da

133 Ibidem, p.123.

134 Claus Wilhem Canaris noticia o célebre caso Lϋth para ressaltar que esta foi a primeira vezque o tribunal constitucional federal da Alemanha admitiu a irradiação dos direitos fundamentais aodireito privado, porém, por meio da interpretação das cláusulas gerais do BGB: “No caso emexame, um particular (um cidadão de nome Lϋth, que ingressou por força dessa sentença nahistória do direito alemão) apelara, em 1950, aos proprietários e freqüentadores de salas decinema ao boicote de um novo filme, argumentando que o diretor do mesmo rodara um filme anti-semita durante o período nacional socialista. Os tribunais cíveis consideraram o apelo um atoilícito, por ofensivo aos bons costumes no sentido do estabelecido pelo § 856 do BGB,condenando, por conseguinte, o sr. Lϋth a não repeti-lo. Em resposta, o Tribunal ConstitucionalFederal cassou a sentença do tribunal cível, pois este teria, na opinião do § 826 do BGB, violado odireito fundamental de opinião do sr. Lϋth, assegurado pelo artigo 5º, inciso I, da LF. (...) Dissoseguiria que o sistema de valores dos direitos fundamentais ‘obviamente também influi no direitocivil [e] nenhuma prescrição juscivilista pode estar em contradição com ele, devendo cada qual serinterpretada à luz do seu espírito”. (CANARIS, C. W. A influência dos direitos fundamentais sobre odireito privado na Alemanha. In: SARLET, I. W. Constituição, direito fundamentais e direitoprivado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 227/228)

135 SARLET, I. W. Direitos fundamentais e direito privado: algumas considerações em torno davinculação dos particulares aos direitos fundamentais. In: SARLET, I. W. (Org.) A constituiçãoconcretizada: Construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado,2000, p. 140.

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eficácia indireta resta, portanto, limitado. No caso brasileiro, alguns julgados

adotam a eficácia direta dos direitos fundamentais. Vale citar como exemplo um

trecho do voto proferido pelo Ministro Ruy Rosado de Aguiar no julgamento do

habeas corpus nº. 12.547 do STJ*:

Não me parece que a eficácia na relação de direito privado seja somenteindireta, pois bem pode acontecer que o caso concreto exija a aplicaçãoimediata do preceito constitucional, quando inexistir normainfraconstitucional que admita interpretação de acordo com a diretivaconstitucional, ou faltar cláusula geral aplicável naquela situação, muitoembora esteja patente a violação do direito fundamental.137

Há que se salientar, porém, que a pluralidade de relações jurídicas da

atualidade não mais justifica que se adote uma única forma de eficácia para a

vinculação dos direitos fundamentais ao direito privado. A coexistência da teoria

da eficácia direta (ou imediata) e também da eficácia indireta (ou mediata) 138 se

traduz em equilíbrio uma vez que a sociedade atual é por demais complexa para

se ver atendida apenas através de soluções únicas e fechadas.

A aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas deve ser a que

melhor se adaptar à realidade. Há direitos fundamentais estruturalmente

diferentes, alguns em que a vinculação dos particulares não se discute (como os

direitos do trabalhador, a liberdade sindical), outros que se ligam somente ao

poder público (vedação à tortura, voto) e outros que se ligam ao campo do direito

privado. Ditas liberdades não mudam de natureza quando frente a particulares, o

que muda são os limites. Os direitos fundamentais podem ter sua eficácia no

campo do direito privado, há que se ponderar sua forma de incidência em

conformidade com o caso concreto.

* Nota da autora: O tema do acórdão é controverso na jurisprudência. Trata-se da prisão civil dodevedor de um contrato de alienação fiduciária em garantia. Até pouco tempo existia divergênciaentre as posições dos Tribunais Superiores, porém, recentemente O Supremo Tribunal Federalproferiu decisão na qual confirma o afastamento da prisão civil nestes casos. Vide nota 91.

137 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça - Habeas Corpus nº 12.547/ D. F. (2000/0022278-0).Impetrante: William David Ferreira. Impetrado: Desembargador Relator do habeas corpus20000020010410 do Tribunal de Justiça do Distrito Federal. Relator Ministro Ruy Rosado deAguiar, julgado em 01 jun. 2000, publicado no Diário de Justiça em 12 fev. 2001. Disponível em:<http://www.stj.gov.br> Acesso em: 03 jan. 2007.

138 MAC CRORIE, B. F. da S. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.Coimbra: Livraria Almedina, 2005, p. 110-111.

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3. A FUNCIONALIZAÇÃO DAS SITUAÇÕES SUBJETIVAS PATRIMONIAIS:CONTRATO E PROPRIEDADE

A visão do direito civil, iluminada pelo direito constitucional, importa rompimento

de conceitos rígidos e estanques a fim de garantir às relações jurídicas privadas

uma adequada e efetiva proteção da justiça. Os conceitos e regras da doutrina

clássica139 devem, portanto, permitir um entremeio de princípios formadores da

base do convívio social, flexibilizando o Direito. Sem descaracterização, porém, da

validade e eficácia normativa infra legal, devidamente irradiadas pelos princípios

constitucionais fundamentais, em especial a dignidade da pessoa humana.

Assim, a rigidez de conceitos da doutrina clássica140 se torna fluida, maleável e

aberta, admitindo interpretações que façam prevalecer a eficácia dos direitos

fundamentais sobre o direito civil, garantindo condições efetivas para a defesa dos

valores atinentes à pessoa.

No Brasil, a reformulação dos conceitos clássicos da teoria contratual somente

teve impulso a partir da promulgação da Constituição de 1988. O Código de

Defesa do Consumidor teve um papel preponderante para esta alteração de

conceitos, pois, a partir deste instrumento legal, inicia-se a proteção adequada dos

consumidores contra os abusos decorrentes do capitalismo.

A importância da lei consumerista é ressaltada através das palavras de Cláudia

Lima Marques:

A maior importância da lei consumerista foi, sem dúvidas, a maiorconscientização da população acerca dos seus direitos dentro de umaeconomia voltada para as grandes concentrações de capital. O Código deDefesa do Consumidor reconhece a importância das novas técnicas de

139 “O Código Civil de 1916 era um código de sua época, elaborado a partir da realidade típicade uma sociedade colonial, traduzindo uma visão de mundo condicionado pela circunstânciahistórica, física e étnica em que se revela. Sendo a cristalização axiológica das idéias dominantesno seu tempo, principalmente nas classes superiores, reflete as concepções filosóficas no seutempo, principalmente nas classes superiores, reflete as concepções filosóficas dos gruposdominantes, detentores do poder político e social da época, por sua vez determinadas oucondicionadas, pelos fatores econômicos, políticos e sociais. Tinha formação eclética, compredomínio de concepções do direito francês e da técnica do código alemão”. (AMARAL, F. Direitocivil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 131).

140 Segundo Orlando Gomes: “O Código Civil de 1916 consagrava 4 princípios fundamentais: apropriedade privada, a liberdade contratual, o matrimônio monógamo e a sucessão hereditária”.(GOMES, O. A crise do Direito. São Paulo: Max Limonad, 1955, p. 87).

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vendas, muitas delas agressivas, do marketing e do contrato como formade informação do consumidor, protegendo o seu direito de escolha e suaautonomia racional, através do reconhecimento de um direito mais fortede informação (arts. 30,31,34,46,48 e 54 do CDC) e um direito dereflexão (art. 49 do CDC).141

De fato, a liberdade absoluta dos contratantes verificada em tempos anteriores

permitiu alguns abusos contratuais. Hoje, o contrato deve ter sua estrutura e

interpretação voltada para correção destas desigualdades, devendo ser

considerado além de uma fonte de circulação de riquezas, um instrumento de

proteção aos direitos fundamentais do cidadão142.

A evolução nos contratos implica reformulação de toda a teoria do negócio

jurídico, em especial na caracterização do seu elemento formador: a autonomia

privada. Claudia Lima Marques reforça a idéia de que se deve “garantir uma

autonomia real da vontade do contratante mais fraco, uma vontade protegida pelo

direito, vontade liberta das pressões e dos desejos impostos pela publicidade e por

outros métodos agressivos de venda.”143

A funcionalização da autonomia privada mostra a importância dos arts. 1º e 3º

da Constituição da República servindo “precisamente de princípios vetores,

capazes de subordinar e validar qualquer regra infraconstitucional de direito

privado.”144

A principiologia não se utiliza apenas dos valores expressos na Constituição.

Existem princípios mestres em cada um dos ramos do direito, em especial no

direito privado. Através da forte influência constitucional os princípios do direito

privado influenciam na interpretação da norma, de forma harmonizada com

princípios fundamentais. Desta forma, podem ser admitidos como princípios do

direito privado:

141 MARQUES, C. L. Contratos no código de defesa do consumidor. 4. ed. São Paulo: RT,2002, p. 225.

142 Segundo Edson Luiz Fachin: “A ‘reelaboração’ de uma teoria do direito civil há de ter comoponto de partida mais que a sua utilidade e, como perspectiva, a reordenação dos fundamentos dosistema jurídico à luz de outro projeto sócio-econômico e político.” (FACHIN, L.E.. Teoria Críticado Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 216)

143 MARQUES, C. L. Op. cit, p. 155.

144 NEVES, G. K. M. Os princípios entre a teoria geral do direito e o direito civil constitucional. In.TEPEDINO, Gustavo et al. Diálogos sobre direito civil: construindo uma racionalidadecontemporânea. Rio de Janeiro, Renovar, 2002, p. 19.

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a) O reconhecimento da pessoa e dos direitos da personalidade; b) Oprincípio da liberdade contratual (liberdade de iniciativa e liberdade deempresa); c) A responsabilidade civil; d) A concessão de personalidadejurídica ás pessoas privadas; e) A propriedade privada; f) O núcleofamiliar; g) O direito sucessório, o direito de herança e o direito detestar145.

Existe um vértice na linha principiológica do direito privado que é justamente a

dignidade da pessoa humana. Conforme foi exposto nos capítulos anteriores, esta

preocupação se legitima porque, afinal, “não se poderia aceitar que o direito

privado venha a formar uma espécie de gueto à margem da Constituição não

havendo como admitir uma vinculação exclusivamente do poder público aos

direitos fundamentais”. 146

Assim, a preocupação de condicionar o agir individual aos objetivos

constitucionais é estendida ao direito privado. Tereza Negreiros indica que, por

esta constitucionalização, “passam a fazer parte do horizonte contratual noções e

ideais como justiça social, solidariedade, erradicação da pobreza, proteção aos

consumidores, a indicar, enfim, que o direito dos contratos não está à parte do

projeto social articulado pela ordem jurídica em vigor no país”. 147

Assim pode-se falar que a declaração da vontade, elemento essencial de

existência e validade do negócio jurídico deve atualmente não apenas respeitar as

regras do direito privado, mas se orienta para uma relação de equilíbrio entre os

interesses individuais e a busca do progresso coletivo.

Ao entender a fonte constitucional da autonomia privada e sua vinculação aos

ditames da justiça social, os princípios da boa-fé objetiva148 e da função social

145 POPP, C. Responsabilidade civil pré-negocial: o rompimento das tratativas. Curitiba,Juruá, 2001, p. 52.

146 SARLET, I. W. A constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado.Porto Alegre: Editora livraria do advogado, 2000, p. 121/122.

147 NEGREIROS, T. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.107.

148 A boa-fé é um critério que se liga diretamente à concepção de solidariedade contratual. Deacordo com Paulo Nalin “quanto maior for a equivalência de forças na relação, maior também seráa autonomia para contratar; por outro lado, quanto maior o distanciamento socioeconômico daspartes contratantes, mais arraigado será o preenchimento da boa-fé no espaço do contrato,servindo ela de termômetro da legalidade das obrigações assumidas e parâmetro para se dosar aauto-responsabilidade do contratante mais forte”. (NALIN, Paulo R. R. Do Contrato: conceito pósmoderno em busca de sua formulação na perspectiva civil constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá,2006, p. 138)

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conformam o centro de orientação da nova teoria contratual, mantendo-se

vigentes mesmo tendo-se em conta os limites que hoje enfrenta o Estado Social.

Os arts. 112 e 113 do CC/02149 indicam uma importante alteração em relação

ao Código Civil de 1916 acerca do princípio da autonomia privada. À primeira

vista, acreditamos, pela análise do art. 112, que nada mudou. A vinculação,

porém, ao princípio da boa-fé objetiva nos informa que a interpretação dos

negócios jurídicos deve buscar no comportamento da parte o que indica a sua real

expectativa.

O que importa, então, é o modo pelo qual se conduzem as partes em relação ao

negócio jurídico e, nesse sentido se impõe a lealdade, pois a boa-fé passa a ser

um condicionante da liberdade individual150.

Desse modo, a segurança jurídica nos contratos se traduz pelo princípio da

boa-fé objetiva. Para Paulo Nalin151 esta é uma alteração paradigmática, ao

subverter a vontade aos padrões de lealdade e confianças recíprocas impostos

pela boa-fé.

A interpretação através da Constituição confere coerência ao ordenamento

jurídico e, sob este aspecto, deve-se ressaltar que todo o regramento

infraconstitucional se orienta pelos objetivos de construção de uma sociedade

livre, justa e solidária. De fato, toda a ordem civil se encontra hoje conformada na

Constituição:

Devemos, pois assumir a realidade contemporânea: os Códigos exercem,hoje um papel menor, residual, no mundo jurídico e no contexto sócio-político. Os ‘microssistemas’ que decorrem das leis especiais, constituempólos autônomos, dotados de princípios próprios, unificados somente

149 “Art. 112 – Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciadado que ao sentido literal da linguagem.; Art. 113 – Os negócios jurídicos devem ser interpretadosconforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.” (BRASIL. Código Civil. São Paulo:Saraiva, 2005)

150 Para Paulo Nalin esta vinculação concentra “a interpretação do negócio jurídico nasdeclarações individuais e na sua síntese conclusiva do negócio, vale dizer, na sua dimensãoobjetiva”. (NALIN, P. R. R. Autonomia privada na legalidade constitucional. In: Contrato &Sociedade: princípios de direito contratual. Curitiba: Juruá, 2006, p. 26)

151 NALIN, Paulo R. R. Do Contrato: conceito pós moderno em busca de sua formulação naperspectiva civil constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 211.

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pelos valores e princípios constitucionais, impondo-se assim oreconhecimento da inovadora técnica interpretativa.152

Assim, na interpretação dos contratos devem buscar-se, primeiramente, os

princípios do direito privado e as cláusulas gerais e interpretá-los por meio dos

valores fundamentais consagrados na Constituição. Segundo Carlyle Popp esta

visão do interior para o exterior permite a preservação das garantias

constitucionais “porque sempre que os princípios fundamentais do direito dos

contratos restarem objetivamente violados, vistos estes sob o enfoque do

personalismo ético, não restará nenhuma dúvida que o princípio da dignidade

humana igualmente foi maculado.”153

A propriedade, por sua vez, instrumentaliza a autonomia privada de um modo

que revela uma ligação direta com o sentido de liberdade154. Esta liberdade,

porém, igualmente não se afasta da preocupação com a satisfação das

necessidades sociais.

A propriedade é o instituto que mais se modificou com o passar dos tempos.

Consagrada está na atualidade a suplantação de sua noção unitária para adoção

de um conceito plural. É a propriedade o instituto jurídico que primeiro se

submeteu às limitações decorrentes do abuso do Direito e que se encontra hoje

fortemente caracterizado pelo pluralismo de seu objeto.

Fala-se hoje de “propriedades e não de propriedade”155, concebendo suas

múltiplas formas tais como a propriedade mobiliária e imobiliária, a propriedade

urbana e rural, a propriedade de águas, de minas, propriedade industrial,

intelectual, de marcas e patentes, a propriedade literária, científica, artística, etc.

152 PEREIRA, C. M. da S. Instituições de direito civil. v. 3. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense,2003, Prefácio.

153 POPP, Carlyle. Responsabilidade civil pré-negocial: o rompimento das Tratativas.Curitiba, Juruá, 2001, p. 71.

154 Segundo Francisco Amaral a propriedade é: “o direito subjetivo por excelência, o maiscomplexo e absoluto, definido na lei civil e garantido constitucionalmente (CF, art. 5º, XXII), comosuporte da vida econômica individual”. (AMARAL, Direito civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro:Renovar, 2006, p. 144)

‘155 CORTIANO JUNIOR, E. O Discurso Jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio deJaneiro: Renovar, 2002, p. 160.

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A função social da propriedade foi desenvolvida na passagem do Estado Liberal

para o Social, como forma de ação positiva156 que autorizava o Estado a intervir na

ordem econômica para garantia de interesses coletivos. O sistema jurídico da

propriedade hoje comporta normas constitucionais, que a reconhecem como

direito fundamental (CF/88, art. 5º caput), estabelecem a sua garantia (CF/88, art.

5º, XXII), e a condicionam à sua função social e permitem a desapropriação

(CF/88, art. 5º, XXIV)157.

Antônio Junqueira de Azevedo assevera que “a Constituição, sobre a função

social, não se limitou a dizer que a propriedade tem função social, como está no

art. 5º. Na verdade, disse o que era função social no art. 182, § 2º, para os imóveis

urbanos e para a propriedade rural no art. 186. Ou seja, fornece diretrizes, não é

um jogo de palavras retórico. “158 Além destas disposições constitucionais, a

regulamentação da propriedade segue as disposições do Código Civil e demais

legislações especiais que regem a matéria.

Diante das transformações substanciais que ocorreram na estrutura do contrato

e da propriedade, iniciadas após o advento do Estado Social, pode-se afirmar que

estes institutos se revelam na atualidade importantes instrumentos para, através

da solidariedade constitucional, concretizar as exigências mínimas que se extraem

da dignidade da pessoa humana.

Sob o viés solidarístico não há como manter a estrutura da relação jurídica

como sendo a relação entre sujeitos ativos e passivos. A funcionalização da

autonomia privada modifica este visão singular trazendo complexidade às relações

do direito civil. Esta é uma decorrência do fato que cada sujeito envolvido na

relação é titular de um conjunto de deveres e direitos, variáveis de acordo com as

“circunstâncias em que se encontram ou as atividades que desenvolvem”:159

Não se pode distinguir as situações subjetivas – a não ser em termosquantitativos – em ativas e passivas, já que aquelas ditas ativas

156 AMARAL, F. Direito civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 146.

157 AMARAL, F. Op. cit., p.147.

158 AZEVEDO A.J. de. O princípio da boa-fé nos contratos. Revista CEJ, n. 09, set./dez. 1999.Disponível em: < http://www.cjf.gov.br/revista/numero9/artigo7.htm> Acesso em : 03 jan. 2007.

159 AMARAL, F. Direito Civil: introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 186.

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compreendem também deveres e obrigações e aquelas ditas passivascontêm frequentemente alguns direitos e poderes. A relação não está naligação entre direito subjetivo, de um lado, e dever ou obrigação, dooutro. É difícil imaginar direitos subjetivos que não se justificam no âmbitode situações mais complexas, das quais fazem parte também deveres,ônus, obrigações, isto é, posições que, analiticamente consideradas,podem ser definidas como passivas160.

A solidariedade constitucional informa que as situações subjetivas se encontram

também vinculadas a uma função161 que determina que os interesses sociais se

equilibrem com os individuais visando o bem estar econômico coletivo162. A busca

de uma função163, desta forma, é elemento inerente da relação subjetiva

patrimonial, uma vez que interessa a toda e qualquer forma de pertinência

(appartenenza) da riqueza164.

Portanto, a função social é garantia de atendimento aos princípios solidarísticos

de convivência165, mas que não afasta a condição de ser proprietário ou

empresário ou a liberdade de contrato. Em outras palavras, a funcionalização das

situações subjetivas patrimoniais não exclui a possibilidade de circulação privada

de bens, mercadorias e serviços, condição esta fundamental para continuidade de

operação do sistema vigente

160 PIERLINGIERI, P. Perfis do direito civil: Introdução ao direito civil constitucional. 2. ed. Riode Janeiro: Renovar, 2002, p. 117.

161 Para Paulo Nalin: “O entendimento da força irradiante do princípio da autonomia privada,estruturado em base socialmente funcional, também conduz à conclusão de que os seus institutosderivados – dos atos e dos negócios jurídicos interpretados – ao contrário do que uma análisesuperficial poderia levar a imaginar, são função social, eles não têm função social”. (NALIN, P.R. R. Autonomia privada na legalidade constitucional. In: Contrato & Sociedade: Curitiba: Juruá,2006, p. 33).

162 Para Francisco Amaral a funcionalização dos institutos jurídicos significa: “ que o direito emparticular e a sociedade em geral começam a interessar-se pela eficácia das normas e dosinstitutos vigentes, não só no tocante ao controle ou disciplina social, mas também no que dizrespeito à organização e direção da sociedade, abandonando-se a costumeira função repressivatradicionalmente atribuída ao Direito, em favor de novas funções, de natureza distributiva,promocional e inovadora, principalmente na relação do Direito, ou melhor, dos institutos jurídicos,inicialmente em matéria de propriedade e, depois, de contrato”. (AMARAL, F. Direito Civil:introdução. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 364)

163 Para Ricardo Lorenzetti: “la ‘función’ es um standard de juzgamiento de la sociabilidad delcontrato”. (LORENZETTI, R. L. Tratado de los contratos: parte general. Santa Fé: RubinzalCulzoni, 2004, p. 102).

164 PIERLINGIERI, P. Perfis do direito civil: Introdução ao direito civil constitucional. 2. ed. Riode Janeiro: Renovar, 2002, p. 230.

165 CORTIANO JUNIOR, E. O Discurso Jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio deJaneiro: Renovar, 2002, p. 134.

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3.1 A EVOLUÇÃO DO DISCURSO PROPRIETÁRIO: EM BUSCA DA

SOLIDARIEDADE CONSTITUCIONAL

O Brasil, por não ter vivenciado o sistema feudal, tem o centro da concepção da

propriedade em uma estrutura de concessão de natureza jurídico-administrativa.

As sesmarias são o instituto símbolo da história territorial brasileira.166

A Sesmaria era a forma pela qual o governo português concedia terras aos

particulares. Esta concessão era feita para desenvolver a agricultura, a criação de

gado e povoar o território. Também era vista como uma forma de recompensar

nobres, navegadores ou militares por serviços prestados à coroa portuguesa.

As sesmarias167 no Brasil atendiam a fins econômicos diversos uma vez que, de

acordo com a sua localização geográfica, haveria a obrigatoriedade de se construir

fortes, construírem engenhos de açúcar e adquirir escravos. Os interesses dos

senhores de escravos ditavam as regras do que era importante para a política da

época. A formação dos latifúndios decorre desta época, mas não é fenômeno das

sesmarias, mas sim, do interesse econômico predominante na época que fazia

com que a coroa dependesse das relações com os proprietários das terras para a

defesa das fronteiras.168

166 De conformidade com o pensamento de Laura Beck Varela: “Trata-se em suma, de umaforma de propriedade não absoluto-condicionada ao princípio da obrigatoriedade do cultivo –expressão, na cultura lusitana, do ‘reino da efetividade’, que caracteriza o ordenamento medievalem sua generalidade”. VARELA, L. B. Da propriedade às propriedades: construção de um direito.In: MARTINS-COSTA, J. (Org). A reconstrução do direito privado. São Paulo: Editora Revistados Tribunais, 2002, p. 749/750.

167 Segundo Francisco Cardozo Oliveira: “No Brasil não há consenso entre historiadores,cientistas políticos, economistas e juristas a respeito da ocorrência histórica no país da transiçãoentre o sistema feudal de apropriação da terra e o sistema de propriedade privada, próprio docapitalismo. Segundo alguns, nas relações de produção do campo brasileiro operou-se a transiçãopara o sistema da propriedade privada, fato que dispensaria a realização da reforma agrária. Paraoutros, as relações de produção no campo ainda mantêm elementos de estrutura feudal, o quetornaria necessária a reforma agrária para operar a transição definitiva para o sistema de produçãocapitalista e superar os obstáculos ao desenvolvimento econômico e social do país”. OLIVEIRA, F.C. Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 129.

168 Idem, p. 754.

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A concepção de propriedade privada decorre da extinção do regime de doações

de sesmarias em período ligado ao fim do tráfico negreiro e da independência da

colônia. A apropriação da terra se vincula ao regime de produção que se destinava

à exportação de produtos agrícolas. A Lei de Terras (Lei 601 de 18 de setembro

de 1850169) mercantiliza a propriedade ao apontar-lhe valor econômico, porém

“mantendo a estrutura de apropriação imobiliária estabelecida desde o regime da

economia colonial” 170.

As legislações que se seguiram disciplinavam o direito de propriedade nos

moldes liberais. Os doutrinadores civilistas que já se encontravam inspirados nas

leituras francesas passaram a defender a propriedade como um direito absoluto,

nos moldes do direito romano. Deste modo, logicamente o Código Civil de 1916

passa a acolher o ensinamento francês de propriedade nos moldes do Estado

Liberal.

O Código Civil alemão e sua concepção da propriedade como direito subjetivo,

vinculado à idéia abstrata de liberdade infinita do homem171, também acabou por

influenciar o direito de propriedade brasileiro172.

169 Como assevera Laura Beck Varela: “Daí a importância da Lei de Terras de 1850, que marcaa definitiva passagem do patrimônio fundiário da Coroa às mãos dos particulares, buscandodisciplinar a caótica realidade agrária brasileira de então, composta de terras dadas de sesmaria –muitas vezes não cultivadas, não demarcadas, não registradas, em desconformidade à legislaçãovigente – e pelas posses em terras devolutas. Na mesma lei, seriam proibidos os apossamentos econceituadas as terras devolutas, com o escopo de definitivamente separar o público do privado,firmando as bases para a regularização da propriedade privada no Brasil e para o afastamento dafórmula jurídica condicionada por deveres como o cultivo. Nessa passagem de uma economiaescravocrata, onde a principal categoria econômica é a renda do escravo, a uma economiabaseada na mão-de-obra livre, a propriedade da terra assume valor econômico fundamental”.(VARELA, L. B. Das sesmarias à propriedade moderna: um estudo da história do direitobrasileiro. Rio de Janeiro: renovar, 2005, p. 7).

170 OLIVEIRA, F. C. Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade. Rio de Janeiro:Forense, 2006, p. 131.

171 Como salienta Francisco Cardozo Oliveira: “Na sistemática do BGB, a disciplina do direito depropriedade está caracterizada pela influência abstratizante da idéia de liberdade ilimitada dohomem da filosofia hegeliana. A propriedade se apóia na vontade individual. O § 903 do BGBconferiu à propriedade caráter subjetivo. Houve pouca preocupação no código com a regulação domodo como o proprietário exerce concretamente os poderes proprietários e dos efeitos doexercício desses poderes”. OLIVEIRA, F. C. Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade.Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 108.

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Clóvis do Couto e Silva relembra que o Código Civil Brasileiro havia sido

publicado quando foi editada a Constituição de Weimar, que em seu art. 153

consagrou o princípio clássico de que “a propriedade obriga” - Eigentum

verpflichtet. O seu significado, segundo Clóvis do Couto e Silva, não foi fácil de ser

determinado uma vez que o direito constitucional e o direito civil eram

considerados autônomos e incomunicáveis – resultado próprio da concepção

liberal então dominante.173

Até meados da década de 50 não existiu grande aprofundamento sobre a

função social da propriedade na doutrina civilista pátria, caracterizando “um direito

civil eminentemente individualista e com fulcro patrimonial, sendo o interesse

social, aqui, entendido, como um limite externo, de direito público, longe de

configurar um elemento conformador de um novo perfil do direito de propriedade

privada” 174. Foram os estudiosos do direito constitucional que primeiro se

dedicaram ao estudo do tema, já que a primeira referência à função social da

propriedade se encontra na Constituição de 1934.

Orlando Gomes inicia o debate no direito civil ao propor a teoria da propriedade-

empresa175, ao adotar a classificação dos bens segundo sua função econômica e

apontar a sua necessária vinculação com os interesses sociais. Ao considerar que

o processo de desmaterialização de riquezas176 traz novas dimensões ao direito

172 SILVA, C. V. do C e. O Direito Civil Brasileiro em perspectiva histórica e visão de futuro. In:FRADERA, V. M. J. de. O Direito Privado Brasileiro na Visão de Clóvis do Couto e Silva. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 11-31.

173 SILVA, C. V. do C. O Direito Civil Brasileiro em perspectiva histórica e visão de futuro. In:FRADERA, V. M. J. de. O Direito Privado Brasileiro na Visão de Clóvis do Couto e Silva. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 21.

174 VARELA, L. B. e LUDWIG, M. de C. Da propriedade às propriedades: função social ereconstrução de um direito. In: MARTINS-COSTA, J. (Org.) A reconstrução do direito privado.São Paulo: RT, 2002, p. 776.

175 De acordo com Orlando Gomes: “A propriedade de maior significação social já deixou deimplicar posse, a riqueza não mais se traduz na materialidade de bens corpóreos e a iniciativaindividual e a concorrência desaparecem à medida que as empresas se agigantam” ( GOMES, O.Novas Dimensões da propriedade privada. In: Revista dos Tribunais, n. 411, de jan. 1970 p. 11).

176 ROPPO, E. O contrato. Coimbra: Livraria Almedina, 1988, p. 64.

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de propriedade, aponta que a utilização dos bens de produção só adquire

legitimidade quando exercida em conjunto com os interesses sociais177:

Em suma, uma construção espaçosa e arejada, que abrigue todos osmodos porque se permita no Ocidente a satisfação do interesse individualda apropriação e utilização dos bens de todas as espécies, conserve-seou não o nome tradicional de propriedade, nesse caso com osqualificativos adequados. Certifique-se, para finalizar: Ou propriedadetem novas dimensões; ou existem novas situações jurídicas irredutíveisao seu conceito.

De fato, o desenvolvimento econômico propicia a ampliação do uso do termo

propriedade para “propriedades”. A atualidade comporta regimes proprietários

diversos, tendo em vista a pluralidade de bens e suas diversificações em bens de

uso ou de consumo, bens materiais e imateriais, propriedade empresarial,

imaterial, industrial, dentre outros.

Cada um destes bens envolve regime proprietário diverso. Aqui se encontra o

caráter plural e complexo da propriedade contemporânea. O estudo da função

social necessariamente deve se deter em identificar nestes diversos regimes178

qual a melhor forma de sua realização em concreto.

A propriedade é o instituto jurídico que mais se alterou de acordo com o

desenvolvimento econômico da sociedade. No período liberal seu caráter absoluto

e individualista eram condições para o desenvolvimento do sistema. No estado

Social, sua estrutura sofre uma reformulação a fim de melhor atender ás

dificuldades que surgiram com a expansão do capitalismo179. Esse novo enfoque

177 GOMES, O. Op. cit., p. 15.178 Na conformidade do pensamento de Eroulths Cortiano Junior: “A diversidade dos bens, seja

por sua natureza, seja pela destinação que se lhes dê, envolve uma análise circunstancial econcreta – implementada pelo trabalho do legislador e do jurista – para implementação de suafunção social. A equivalência das mercadorias deve ceder diante do princípio da função social, queserá definida caso a caso, fixando os modos de agir do proprietário.” (CORTIANO JUNIOR, E. Odiscurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 159).

179 De acordo com Francisco Cardozo Oliveira: “A funcionalização da posse e do direito depropriedade insere-se no conjunto de novos paradigmas contemplados pelas constituiçõescontemporâneas para a reorientação valorativa e finalística do exercício da posse e dos poderesproprietários, de forma a preservar os interesses comunitários, sem necessariamente negar opapel da iniciativa individual para o desenvolvimento social e econômico dos povos”. (OLIVEIRA, F.C. Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 241).

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ocorreu para atender situações de necessidade para manutenção do sistema, a

fim de adequar à propriedade às novas relações sociais180.

O rompimento da idéia absoluta e individual da propriedade ocorre com León

Duguit através da consideração de que o proprietário não possui um direito

subjetivo de usar a coisa, mas sim o “dever de empregá-la de acordo com a

finalidade assinalada pela norma de direito objetivo”181. Sua idéia é importante

para a noção de deveres ligados ao conceito subjetivo de propriedade182.

Com Augusto Comte o pensamento de León Duguit é aprimorado para concluir

que a propriedade seja compreendida como a função social do detentor da

riqueza183, vinculando-a a um aspecto objetivo. Com Stefano Rodotá a função

social é inserida como elemento interno da propriedade, compondo sua estrutura

de seu conceito184.

O conceito de propriedade possui em sua estrutura uma função social – função

esta que lhe é inerente e essencial. Há que se ressaltar ainda a importância da

Constituição de Weimar, o que, segundo Clóvis Veríssimo do Couto e Silva foi

especial para a revolução da concepção, que perdurou durante todo o século XIX,

de propriedade:

Quando o art. 153 da aludida constituição de Weimar exarou o princípiode que a ‘propriedade obriga’, dando expressão a uma idéia aindainforme, mas vigorante no mundo social, Martin Wolff assinalou que setratava de um princípio tradicional do direito germânico. Este princípiodeveria servir como uma diretiva para adequar as decisões às

180 Francisco Eduardo Loureiro aponta a influência da Igreja Católica na reformulação dapropriedade: “Para a Igreja, a propriedade não é uma função social a serviço do Estado, pois queassenta sobre um direito pessoal que o próprio Estado deve respeitar e proteger. Mas tem umafunção social: está subordinada ao bem comum”. (LOUREIRO, F. E. A propriedade como relaçãojurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 107)

181 LOUREIRO, F. E. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro:Renovar, 2003,p. 108.

182 De acordo com Orlando Gomes: “León Duguit pode ser considerado o pai da idéia de que osdireitos só se justificam pela missão social para a qual devem contribuir e, portanto, que oproprietário se deve comportar e ser considerado, quanto à gestão dos seus bens, como umfuncionário”. GOMES, O. Direitos Reais (Atual. L. E. Fachin).19. ed. Rio de Janeiro: Forense,2007, p. 126.

183 LOUREIRO, F. E. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro:Renovar, 2003, p. 110.

184 Idem.

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necessidades dos novos tempos. Em suma, segundo Martin Wolff, “ doaludido princípio resultaria para todo e qualquer direito subjetivo e nãoapenas para o de propriedade, uma dupla obrigação para o seu titular: odever de exercer o direito se for de interesse público que ele sejaexercido e não fique paralisado; e o dever de exercer o direito de umaforma que satisfaça ao aludido interesse público”.185

Com esta análise a propriedade passa a ser vista como uma situação jurídica

complexa186 que, através da função social faz com que proprietário busque

exercê-la de modo correto, de acordo com os limites e regras impostos a cada

regime proprietário, de modo a impulsioná-los à satisfação dos objetivos sociais.

Ao conjugá-la a um sistema normativo inspirado na solidariedade constitucional,

a função social é a razão de ser da propriedade187, o sentido de sua atribuição ao

sujeito. Como elemento da propriedade a função social autoriza a intervenção

estatal para condicioná-la ao pleno desenvolvimento da pessoa.

Há que se resguardar, todavia, um conteúdo mínimo de liberdade proprietária.

A propriedade não é, segundo Pietro Pierlingieri, horrível ou temível. A função

social não contrasta com o conteúdo mínimo de liberdade proprietária, uma vez

que: “funzione sociale e contenuto mínimo sono aspetti complementari e

giustificativi della proprietà.”188 A liberdade do proprietário está, deste modo,

vinculada a “centros de interesses extraproprietários”189 transformando-se em

instrumento para obtenção dos objetivos fundamentais da República.

185 SILVA, C. V. do C. O Direito Civil Brasileiro em perspectiva histórica e visão de futuro. In:FRADERA, V. M. J.de. O Direito privado brasileiro na visão de Clóvis do Couto e Silva. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 1997, p. 22.

186 LOUREIRO, F. E. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro:Renovar, 2003, p. 122.

187 A função social, para Pietro Pierlingieri: “deve ser entendida não como uma intervenção em‘ódio’ à propriedade privada, mas torna-se a própria razão pelo qual o direito de propriedade foiatribuído a um determinado sujeito, um critério de ação para o legislador, e um critério deindividuação da normativa a ser aplicada para o intérprete chamado a avaliar as situaçõescomplexas à realização de atos e de atividades do titular.” (PIERLINGIERI, P. Perfis do DireitoCivil: Introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 226).

188 PIERLINGIERI, P. Il diritto civile nella legalità costituzionale. Napoli: Edizioni ScientificheItaliane, p.455.

189 TEPEDINO, G. Contornos constitucionais da propriedade privada. In: Temas de direito civil.2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 280.

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3.1.1 A Função Social da Propriedade

A Constituição de 1946190 foi a primeira a inserir regras que vinculavam o direito

de propriedade à busca do bem estar social. Tal inclusão é resultado da influência

das primeiras idéias de Estado Intervencionista que se refletiu no Brasil, sobretudo

após os anos 30. A Constituição de 1934 inicia esta orientação, seguida pela

Constituição de 1937191, posteriormente ampliada depois pela Constituição de

1967 e pela emenda constitucional de 1969.

Foi com a Constituição de 1988 que a função social da propriedade foi elevada

à garantia de direito fundamental (art. 5º, inciso XXIII, da CF/88). A atual

Constituição também manteve a preocupação com a função social da propriedade

como integrante da ordem econômica e financeira nacional (art. 170, CF/88). A

Carta magna trata de forma separada a função social da propriedade urbana e

rural. No art. 182 a Constituição remete a função social urbana às exigências do

plano diretor dos municípios. Os artigos 184 e seguintes regulam a propriedade

rural no capítulo dedicado à política agrícola e fundiária e à reforma agrária.

A função social da propriedade não é um comando vazio de conteúdo192 tendo

seus requisitos estabelecidos no art. 186 da Constituição de 1988. São eles: a) o

aproveitamento racional e adequado; b) a utilização adequada dos recursos

naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; c) observância das

disposições que regulam as relações de trabalho; d) exploração que favoreça o

bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.

190 De acordo com Francisco Cardozo Oliveira: “o reconhecimento do conteúdo finalístico dapropriedade – pela Constituição de 1946 não modificou o pensamento da doutrina e dajurisprudência – que continuaram a buscar os contornos do direito de propriedade nas disposiçõesdo Código Civil de 1916, sem valorar os elementos de interesse público e social integrantes doinstituto”. (OLIVEIRA, F. C. Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade. Rio de Janeiro:Forense, 2006, p. 151).

191 Segundo Eroulths Cortiano Jr. A “Constituição de 1937, ainda que fizesse referência à leique viesse a regular o exercício do direito de propriedade, nada falou sobre sua função social. Em1946 o constituinte preocupa-se em condicionar o uso da propriedade ao bem-estar social, nãosem antes garantir o direito de propriedade, à semelhança da Constituição anterior”. (CORTIANOJUNIOR, E. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro: Renovar,2002, p. 93p. 178).

192 VARELA, L. B. Da propriedade às propriedades: construção de um direito. In: MARTINS-COSTA, J. (Org). A reconstrução do direito privado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais,2002, p. 779.

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Estes requisitos ressaltam o uso solidarístico da propriedade193, fazendo com

que sua concepção seja vista como forma de concretização do princípio da

dignidade da pessoa humana. O Estado detém instrumentos como a limitação

administrativa, a servidão administrativa, o tombamento, a ocupação temporária; o

parcelamento, a edificação ou utilização compulsórios; a desapropriação e a

requisição de bens194 que podem impulsionar à concretização da função social.

Leis infraconstitucionais procuram garantir maior efetividade a função social da

propriedade, como o Estatuto da Terra (Lei 4504/64), a Lei 8629/93 (que

regulamenta aos dispositivos constitucionais relativos à desapropriação para

reforma agrária) e, mais recentemente, o Estatuto da Cidade (Lei 10257/2001).

Note-se que o Estatuto da Terra é uma legislação que muito pouco acrescentou à

prática195. Sua promulgação atendeu a interesses políticos externos, comprovando

que algumas leis do país são feitas para serem “esquecidas” pelo poder

econômico dominante*.

O Estatuto da cidade196 foi elaborado para o fim de complementar o

conteúdo dos artigos 182 e 183 da CF/88. É um projeto inovador que tem como

objetivo o desenvolvimento de política de desenvolvimento voltada a promover a

inclusão social nas cidades brasileiras.

Entre suas diretrizes se destacam: a preocupação com o desenvolvimento

sustentável das cidades, a participação democrática e a cooperação de governos,

o planejamento e a distribuição da população de modo a evitar efeitos negativos

ao meio-ambiente e a integração e complementaridade entre as atividades

193 CORTIANO JUNIOR, E. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio deJaneiro: Renovar, 2002, p. 183.

194 JUSTEN FILHO, M. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Dialética, 2005, p. 404.

195 Segundo Carlos Frederico Marés: “De fato, o Estatuto não alterava o conceito depropriedade privada, apenas estabelecia mecanismos de correção das injustiças sociais agráriaspor meio da desapropriação, dependendo, então, do poder político do Estado e da interpretaçãodos Tribunais, sempre voltadas para a proteção da propriedade absoluta”. (MARÉS, C. F. Afunção social da terra. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, p.108.

*Nota da autora: Ressalte-se que a elaboração da lei 4504/64, conhecida como Estatuto daTerra, não representou avanço significativo, uma vez que não permitiu passos concretos emdireção à reforma agrária. Elaborada no período militar pelo Presidente Marechal Castelo Brancoesta legislação atualmente sofre de uma espécie de “revogação tácita”.

196 Lei 10.257 de 10 de julho de 2001.

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urbanas e rurais (a fim de permitir o desenvolvimento socio-econômico do

Município e do território sob sua área de influência);

Esta legislação é importante vez que motiva a discussão acerca da função

social das cidades. A implantação de suas regras depende de um plano diretor a

ser elaborado pelos municípios, de acordo com suas diretrizes. Há que se evitar,

na prática, que esta lei acabe por ter o mesmo destino do Estatuto da Terra.

Além da legislação especial há de se salientar a importância do Código Civil de

2002. O Código traduz compatibilidade com os requisitos constitucionais ao dispor

no § 1º do art. 1228 que “o direito de propriedade deve ser exercido em

consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam

preservados, de conformidade com o estabelecimento em lei especial, a flora, a

fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e

artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas”197

As demais regras do Código acerca da propriedade justificam sua estreita

correlação com as regras e princípios constitucionais de forma a auxiliar o trabalho

do intérprete na concretização da dignidade da pessoa humana.

A propriedade, ou melhor, os diversos regimes proprietários devem levar o

operador do Direito para análise de cada situação concreta em que se insere a

situação proprietária198. A superação de seu caráter individualístico leva à

orientação pelos valores mais relevantes da sociedade, num diálogo de equilíbrio

entre interesses proprietários e não proprietários.199

No tocante aos bens de produção há de se evidenciar que a função social vai

além de meras limitações, traduzindo-se fonte de estímulos à atividade produtiva:

197 NERY JUNIOR, N.; NERY, R. M. de A. Novo código civil e legislação extravaganteanotados. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 966.

198 CORTIANO JUNIOR, E. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio deJaneiro: Renovar, 2002, p. 150.

199 Segundo Eroulhs Cortiano: “O não proprietário não é mais apenas o sujeito passivouniversal, titular de um dever genérico de abstenção, mas se insere numa situação jurídicasubjetiva complexa. Tem o direito a exigir de quem proprietário é o cumprimento da função socialda propriedade, e tem direito a que lhe sejam dadas condições materiais de aceder à propriedade”.(CORTIANO JUNIOR, E. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro:Renovar, 2002, p. 154)

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Basta lembrar que a mesma figura da função social serve para protegercom incentivos a pequena e média empresas. Serve para subsidiar ainstalação de indústrias em determinadas regiões do país. Serve paraisentar do pagamento de tributos propriedades de valor histórico,preservadas ou tombadas. Serve para concessão de crédito emcondições privilegiadas para a aquisição da casa própria, ou para ainstalação de indústrias geradoras de empregos. Serve para impedir apenhora sobre bens imóveis residenciais e suas pertenças.200

Ao estudar a complexidade da relação que se forma entre o proprietário

individual e a coletividade, Pietro Pierlingieri deduz que este instituto acarreta

relações diretas de cooperação: sejam estas entre proprietários vizinhos, terceiros

e poder público.201

Assim, para além do proveito econômico a propriedade deve permitir a

avaliação de seu potencial para a defesa da dignidade humana. Obviamente, não

há que se falar em crescimento econômico genuíno sem a devida preservação das

garantias fundamentais do cidadão. A defesa da função social da propriedade se

impõe, então, como instrumento para o desenvolvimento nacional.

Segundo Canotilho, a propriedade é um direito econômico, social e cultural, do

tipo self-executing202 que na categoria de direito fundamental não se reduz a um

simples apelo do legislador, Existe uma verdadeira imposição constitucional

legitimadora, entre outras coisas, de transformações econômicas e sociais na

medida em que estas forem necessárias para a efetivação desses direitos.203

Deste modo, resta claro que a funcionalização da propriedade valoriza seu

potencial econômico num equilíbrio com a utilidade coletiva. Neste sentido, forçoso

é reconhecer que a propriedade é função social:

Uma vez considerado que os elementos da função social estãovinculados à realidade social e histórica, qualquer tentativa de conceituá-la sem levar em conta esta vinculação está sujeita ao fracasso. (...) A

200 LOUREIRO, F. E. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro:Renovar, 2003, p.127.

201 PIERLINGIERI, P. Perfis do Direito Civil: Introdução ao direito civil constitucional. Rio deJaneiro: Renovar, 2003, p. 222.

202 CANOTILHO, J. J. G. Direito constitucional e teoria da constituição. 6. ed. Coimbra:Livraria Almedina, 474.

203 Idem, p. 476.

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funcionalização inscreve na concretude das relações sociais e deprodução uma dinâmica que busca realizar objetivos de justiça social204.

Apesar dos requisitos estabelecidos no art. 186 da Constituição não traduzirem

um conceito preciso para a função social da empresa há que se concordar que a

vagueza da indeterminação é correta diante da concepção da propriedade como

situação jurídica complexa.

A disciplina do direito de propriedade envolve um sistema jurídico composto

pelas normas constitucionais, o Código Civil205 e demais leis ordinárias. A

legislação infraconstitucional, em uma convivência harmônica e orientada pelos

princípios constitucionais, é que se encarrega de adequar o conceito de função

social aos diversos regimes proprietários. Para isso, considerará a qualidade

natural e econômica do bem e por meio disso definirá a forma de exercício da

propriedade em conformidade com os requisitos estruturais estabelecidos no art.

186 da Constituição.

A legislação, então, determina que se busque na propriedade uma dimensão

qualitativa206 para exigir do proprietário o uso dos bens de forma correlata com os

parâmetros estabelecidos pela função social. Os interesses não proprietários

passam a exigir o uso e a utilidade do bem a fim de propiciar o desenvolvimento.

A propriedade rural, por exemplo, é concebida para propiciar lucro ao

proprietário, mas também detém capacidade de gerar empregos e movimentar o

consumo na comunidade e ainda preservar o meio ambiente para as gerações

futuras. Igual preocupação detém a propriedade urbana e a empresarial. Dessa

maneira, a propriedade permanece como uma forma de desenvolvimento pessoal,

o que a Constituição não nega. Ao consagrar a função social como instrumento

estrutural da ordem econômica (art. 170, III, da CF/88) esta passa a ser vista como

204 OLIVEIRA, F. E. Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade. Rio de Janeiro:Forense, 2006, p. 244.

205 Francisco Cardozo Oliveira, na esteira do pensamento de Clóvis Veríssimo do Couto e Silva,ressalta que: “O Código Civil, concebido como código central de unidade valorativa e conceitual,permitirá interpretação sistematicamente aberta entre as regras do Código e as demais regras dalegislação esparsa e, principalmente, entre as disposições da legislação ordinária e os princípios enormas constitucionais”. OLIVEIRA, F.C. Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade. Riode Janeiro: Forense, 2006, p. 251.

206 OLIVEIRA, F. C. Hermenêutica e Tutela da Posse e da Propriedade. Rio de Janeiro:Forense, 2006, p. 271.

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instrumento para a distribuição eqϋitativa de riquezas e diminuição das

desigualdades.

A determinação efetiva da função social da propriedade depende, sempre, de

interesse e vontade política. As lutas que se travaram neste país para que a

ocupação da terra atendesse às desigualdades sociais são antigas e, quase

sempre, representam pequenos avanços em direção à busca de concretização à

função social da propriedade207.

O sistema jurídico da propriedade pode trazer à realidade uma genuína função

social, complementando o sentido dos direitos e princípios fundamentais

consagrados na Constituição de 1988. A interpretação das regras do Código Civil

e legislações extravagantes devem possuir o real sentido pretendido pela

Constituição cidadã. O judiciário pode e deve garantir a propriedade daquele que a

faz função social, em uma atuação de acordo com os objetivos fundamentais da

República.

As regras de nossa Constituição merecem ser respeitadas e sob este aspecto

cresce com o passar do tempo a valorização do conteúdo dos princípios e direitos

fundamentais. Não é somente o Estado que oprime o desenvolvimento da função

social da propriedade, também as liberdades privadas possuem sua parte de

responsabilidade para a dificuldade de aplicação da dignidade da pessoa humana

em uma ótica solidária. A superação do individualismo, neste aspecto, é fator

decisivo para um progresso econômico genuíno.

207 Como bem recorda Carlos Frederico Marés os movimentos de Canudos e a Guerra doContestado poder ser citados como dois exemplos de lutas para uma melhor distribuição de terras:“Os dois movimentos se parecem muito e são os maiores de um conjunto de outros querepresentam a reação contra a ofensiva da nascente República de desocupar terras decamponeses para integrá-las no sistema jurídico proprietário em nome da elite política eeconômica. (MARÉS, C. F. A função social da terra. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2003, p.106).

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3.2 A FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO

O contrato sempre deteve importante posição no desenvolvimento da

economia, uma vez que é este o instrumento que permite a circulação de riquezas.

Assim, seu conceito jurídico acaba por atrelar-se à sua concepção como “contrato-

operação econômica”.208 Desta forma não há como deixar de vincular o contrato a

uma operação econômica, ou seja, o contrato existe desde que identificado na

hipótese concreta uma atual ou potencial transferência de riqueza.209

Esta inter-relação entre contrato e economia permitiu mudanças significativas

de acordo com a evolução das sociedades. É sabido que a liberdade absoluta e a

igualdade apenas formal dos contratantes cedeu espaço à grandes desigualdades

durante o período liberal.

Em contrapartida, também é forçoso reconhecer que o período liberal trouxe

benefício porque alterou a forte estratificação social pelo qual se caracterizou o

período medieval. A partir da modernidade, a liberdade contratual fez com que o

destino dos indivíduos pudesse ser modificado por suas condutas, ou seja, que

por sua iniciativa poderiam contratar e melhorar suas condições de vida,

independentemente de sua classe social*.

O Estado Social, centrado na preocupação com a redução das

desigualdades210 para o fim de permitir o desenvolvimento do sistema, acabou por

208Para Enzo Roppo: “O conceito de contrato está, em suma, indissoluvelmente ligado ao deoperação econômica (ainda que em certo sentido, como já se assinalou e como melhor seespecificará, conserve, em relação a esta, uma relevância autônoma), enquanto que o inverso nãoé necessariamente verdadeiro.” ROPPO, E. O contrato. Coimbra: Livraria Almedina, 1988, p. 8.

209 Vale ressaltar mais uma vez o pensamento de Enzo Roppo: “Isto significa, justamente, poroutras palavras, que aquele que celebra um contrato, bem pode prosseguir, subjetivamente, uminteresse não econômico (mas sim ideal, moral, cultural), sendo certo que o resultado objetivo docontrato deve ao invés, consistir na obrigação de fazer ou dar qualquer coisa susceptível deexpressão pecuniária, segundo os valores do mercado, e, portanto, numa qualquer forma decirculação de riqueza, em suma, numa operação econômica”. Idem, p. 14.

* Nota da autora: Deste modo, a sociedade evoluiu do “status para o contrato” conformeafirmava Henry Summer Maine. É necessário salientar, porém, que a liberdade formal acabou porcriar uma classe de excluídos, pessoas que estavam muito distantes das possibilidades reais deromper barreiras sociais através do contrato.

210 De acordo com Carlyle Popp: “Percebeu-se que com o advento do Estado Social, ou seja, apartir do momento em que o Estado deixa de se portar como Pilatos e passa a se preocupar comos administrados, a autonomia privada passou a desempenhar um novo papel. A lei não surgepara limitar a liberdade, mas sim, para aumentá-la, na medida em que ela passa – a liberdade – a

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introduzir importantes alterações no direito dos contratos. Assim a autonomia da

vontade passa a ser vista como um direito passível de limitações.

Ricardo Luís Lorenzetti condensa as principais alterações na teoria dos

contratos como sendo: a) o surgimento de contratos obrigatórios a partir da

prestação de serviços públicos pelo Estado; b) a limitação do consensualismo

através da criação de normas de ordem pública que deveriam ser respeitadas

pelos contratantes; c) as restrições à força obrigatória dos contratos através da

possibilidade de revisão judicial; d) a proteção ao contratante mais fraco através

de institutos como a lesão, a resolução por onerosidade excessiva, o abuso do

direito, a boa-fé211.

Para o estudo da funcionalização do contrato é importante evidenciar que a

partir do Estado Social surge a preocupação de considerar o individuo como

inserido em sua realidade e detentor de garantias e deveres substanciais para

preservação de sua própria existência.

A evolução da economia também modifica a preponderância de alguns tipos

contratuais sobre outros. O processo de desmaterialização de riquezas deslocou

os comandos de força do capitalismo contemporâneo para os bens imateriais. Por

meio disso temos a preponderância de contratações que envolvem o fazer e

outros tipos complexos como joint-ventures, distribuição, franchising, time-sharing,

dentre outros212.

Outro exemplo são as contratações efetuadas por meio eletrônico. As

contratações a distância, quer sejam entabuladas através da Internet ou por meios

de telecomunicações de massa (TV a cabo) são novos meios de criação de

relações jurídicas, que em conjunto com as demais formas contratuais, são

igualmente preponderantes na atualidade.

Esses exemplos indicam a grande complexidade das relações contratuais. O

processo de globalização e a conseqüente abertura de mercados igualmente

ser real. Assim, o legislador começa a se preocupar com a diminuição das desigualdades”. POPP,C. Responsabilidade civil pré-negocial: o rompimento das tratativas. Curitiba: Juruá, 2006, p.38.

211 LORENZETTI. R. L. Tratado de los contratos: parte general. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 2004, p. 26.

212MARQUES, C. L. Contratos no código de defesa do consumidor. 4.ed. São Paulo: RT,2002, p. 180.

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contribuem para a importância que o contrato assume na realidade social. A

intensidade do comércio internacional faz surgir a necessidade de estabelecer

regras comuns, para assegurar a circulação de bens e serviços213.

Para assegurar a devida proteção dos interesses atinentes à pessoa nessa

intensa pluralidade que envolve o direito dos contratos Claudia Lima Marques

reforça o valor supremo dos princípios fundamentais expressos na Constituição:

Propomos uma utilização atualizada do direito internacional privado,preenchendo estas normas com valores sociais que oportunizarão aharmonia das relações internacionais necessária em nosso tempo; umDIPr de solução material dos complexos conflitos pós-modernos queagora envolvem direitos humanos e limites constitucionais, um DIPr‘narrativo’, que vise a, que ‘discurse’ – ao mesmo tempo promova a‘discussão’ – que efetive a necessária proteção dos mais fracos nosmercados internacionalizados dos dias de hoje.214

A concepção atual de contrato mantém sua estrutura e interpretação voltada

para correção das desigualdades e, além disso, por força da constituição se

ressalta seu aspecto de instrumento para uma potencial proteção aos direitos

fundamentais do cidadão215.

A Função social é um conceito que prescinde da análise, sobretudo, da

concepção de justiça social, valor máximo expresso na Constituição:

O valor da justiça social, expresso no texto fundamental, no sentido e noslimites antes traçados, há de incidir no direito civil contribuindo, sem sedeinterpretativa, para individuar o conteúdo específico que, concretamente,devem assumir as cláusulas gerais das quais é cravejada a legislação: daequidade à lealdade (correttezza), do estado de necessidade à lesão(stato di bisogno), e à causa não imputável, da diligência à boa-fé, etc.216

213 VETTORI, G. Materiali e Comenti sui nuovo diritto dei contratti. Casa Editrice AntonioMilani, 1999, p. 875.

214 MARQUES, C. L. Confiança no Comércio Eletrônico e Proteção do Consumidor. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 344.

215 Segundo Edson Luiz Fachin: “A ‘reelaboração’ de uma teoria do direito civil há de ter comoponto de partida mais que a sua utilidade e, como perspectiva, a reordenação dos fundamentos dosistema jurídico à luz de outro projeto sócio-econômico e político”. (FACHIN, L. E. Teoria Críticado Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 216).

216 PERLINGIERI, P. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio deJaneiro, Renovar, 2002, p. 49.

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A funcionalização do contrato, que se inicia através do Estado Social, deve

ser hoje reforçada para conferir maior segurança às relações contratuais. Para

a ótica contratual deve-se ter em mente que o contrato produz efeito para além

dos interesses únicos das partes contratantes. Tereza Negreiros entende a

função social do contrato como princípio que autoriza e conforma a

multiplicidade de relações contratuais da atualidade:

Nesse sentido, o contrato não mais se compadece com uma leituraindividualista, de acordo com a qual haveria somente limites externos,isto é, confins para além dos quais seria concedida aos contratantes umaespécie de salvo conduto para exercerem a liberdade contratual àmaneira oitocentista, isto é, de forma absoluta. Deve, pois, ser reforçadaa idéia de que a funcionalização, acima de tudo, é inerente à situaçãojurídica, conformando-a em seus aspectos nucleares, qualificando-a emsua natureza e disciplina, donde ser equivocada a conceituação defunção social como algo que seja contraposto ao direito subjetivo e que odelimite apenas externamente217

Deste modo, para além de sua concepção econômica, o contrato pode ser visto

como uma “relação complexa solidária”218, que possui como elemento estrutural

de seu conceito a função social. Ressalte-se que a solidariedade constitucional

fundamenta a “comunidade em função do homem”219 e por esta razão, um

contrato que não observe a pessoa em seu aspecto existencial220 não possuirá

validade por evidente descompasso com a carta constitucional.

217 NEGREIROS, T. Teoria do Contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.207.

218 Segundo a proposta de Paulo Nalin: “(...) sendo o contrato interprivado a relação jurídicasubjetiva, nucleada na solidariedade constitucional, destinada à produção de efeitos jurídicosexistenciais e patrimoniais, não só entre titulares subjetivos da relação, como também peranteterceiros”. (NALIN, Paulo R. R. Do Contrato: conceito pós-moderno em busca de sua formulaçãona perspectiva civil constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 253).

219 PIERLINGIERI, P. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio deJaneiro: Renovar, 2002, p. 38.

220 Para Paulo Nalin: “O deslocamento do foco de interpretação do contrato do código civil paraum sistema civil constitucional é que enquadra o homem no centro das atenções do ordenamento.A Constituição Brasileira tem nele – o homem – seu ato maior, revelando um efetivo direitoantropocêntrico, ao passo que o Código Civil trabalha com o homem ecocêntrico. Não hánecessário conflito entre as duas leituras, pois ambas trabalham com o mesmo titular de direitos edeveres. Todavia, à luz da Constituição, esse mesmo titular ou sujeito do Código Civil ganha umadescrição concreta, não meramente abstrata, na medida em que se importa à Constituição com osseus valores existenciais (ser) ”. (NALIN, P.R.R. Do Contrato: conceito pós moderno em busca desua formulação na perspectiva civil constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 244).

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Mediante a solidariedade221 constitucional se extrai um sentido de dignidade

social222 que justifica a razão de ser contratante e proprietário. Partindo do viés

solidarístico, deve-se entender a função social do contrato como bipartida em um

aspecto intrínseco e extrínseco223.

O perfil intrínseco envolve diretamente os contratantes e sua vinculação aos

princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio econômico dos contratos. O seu perfil

extrínseco224 é considerado através do rompimento do princípio da relatividade225

dos efeitos do contrato, uma vez que passa a considerar os efeitos deste contrato

e suas repercussões nas relações sociais.

221 Partindo da superação da visão liberal individualista o valor da solidariedade carrega àsinstituições jurídicas tradicionais da idéia de função social. Conforme assevera Luiz Edson Fachin:“A solidariedade adquire valor jurídico. A preocupação do jurista não se dirige apenas ao indivíduo,mas à pessoa tomada em relação, inserida no contexto social. A pessoa humana, como bemsupremo do Direito, não é só um elemento abstrato, isolado, dotado de plenos poderes, comdireitos absolutos e ilimitados. A coexistencialidade implica que se assegure não só o plenodesenvolvimento da pessoa individual, mas simultaneamente, que as demais pessoas com asquais o indivíduo está em relação também possam ter esse desenvolvimento, de forma solidária. Apessoa tem o dever social de colaborar com o bem do qual também participa, ou seja, devecolaborar com a realização dos demais integrantes da comunidade”. (FACHIN, L. E. Estatutojurídico do patrimônio mínimo. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 47).

222 De acordo com Pietro Pierlingieri: “O tema da solidariedade constitucional, portanto, deve serentendido em relação aos da igualdade e da igual dignidade social. A corte constitucional afirmouque a igual dignidade social significa que ‘deve ser reconhecido a todo cidadão igual dignidademesmo na variedade das ocupações ou profissões, ainda que ligadas a diferentes condiçõessociais; porque toda atividade lícita é manifestação da pessoa humana, independentemente do fimao qual tende e das modalidades com as quais se realiza’. A igual dignidade social não se referesomente às profissões ou às atividades que se exercem. Por estes motivos, não pode serpartilhada nem mesmo a interpretação que identificou a dignidade com a estima no ambientesocial, acrescentando nas entrelinhas que essa estima não é igual para todos (como dizer que adignidade social não pode ser igual para todos)” . (PERLINGIERI, P. Perfis do direito civil:introdução ao direito civil constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 38).

223 NALIN, Paulo R. R. Do Contrato: conceito pós moderno em busca de sua formulação naperspectiva civil constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 223.

224 NALIN, Paulo R. R. Do Contrato: conceito pós moderno em busca de sua formulação naperspectiva civil constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 224.

225 O princípio da relatividade é ligado à concepção clássica de contrato, pelo qual seconsagrava a vinculação de seus efeitos exclusivamente às partes contratantes. De acordo comTereza Negreiros: “O princípio da função social pode alterar este quadro, desafiando as categoriasdogmáticas clássicas e enfatizando os contornos sociais do contrato – aqueles que o tornam umfato social diante do qual os terceiros não estão, nem devem estar, indiferentes”.(NEGREIROS, T.Teoria do contrato: novos paradigmas. 2 ed. Rio de Janeiro: renovar, 2006, p. 218).

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3.2.1 A Função Social Intrínseca do Contrato

A liberdade de contratar se encontra vinculada à observância dos princípios da

boa-fé objetiva, do equilíbrio econômico e da função social.226 Através da

funcionalização da autonomia privada, tais princípios garantem a concepção do

contrato como instrumento a serviço do desenvolvimento da dignidade da pessoa

humana.

A conjugação destes princípios propicia a justiça nos contratos227,

demonstrando a estreita relação entre o direito civil e o direito constitucional. O

princípio do equilíbrio econômico traz para a seara contratual a preocupação com

o justo228 por intermédio de uma análise de proporcionalidade das prestações do

contrato.

A desproporção exagerada nas prestações do contrato autoriza sua revisão

judicial ou até mesmo o rompimento do pacto, quando impossível sua restauração

em patamares razoáveis. O Código Civil atual contém instrumentos voltados à

garantia do equilíbrio dos contratos, tais como a lesão e a resolução por

onerosidade excessiva.

A lesão se diferencia da teoria da imprevisão justamente pelo momento da

ocorrência do desequilíbrio das prestações. Para aplicação da teoria da

imprevisão, a disparidade das prestações ocorre durante a execução do contrato.

Na lesão, o desequilíbrio já se encontra presente desde o momento da

contratação.

Sua conseqüência direta é a possibilidade de anulação do ato. Existe

ainda a possibilidade de aproveitamento do negócio jurídico praticado, desde que

a parte beneficiada pela avença concorde em fornecer suplemento suficiente ao

226 NEGREIROS, T. Teoria do Contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.114.

227 De acordo com Carlyle Popp: “A liberdade negocial pode ser limitada, desde que uminteresse mais relevante, igualmente de caráter constitucional, apresente-se. Por fim, nasce umnovo princípio, ou seja, o da justiça contratual. Tal idéia justifica o princípio contratual maismoderno decorrente da necessidade de eqϋidade contratual, ou seja, de equivalência dasobrigações assumidas”. (POPP, Carlyle. Responsabilidade civil pré-negocial: o rompimento dastratativas. Curitiba: Juruá, 2006, p. 95).

228 NEGREIROS, T. Op. cit., p. 169.

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contrato ou em reduzir seu proveito, de forma a restabelecer o equilíbrio

contratual. Serpa Lopes bem ressalta a finalidade da lesão:

A idéia de lesão é um dos movimentos tendentes a restaurar a equidadenas obrigações, posta de lado, como se encontrou, pelos princípios doliberalismo econômico preponderantes ao tempo da feitura do nossoCódigo Civil. Visa impedir a injustiça usurária, sendo certo que o credorabusa do seu direito se, no exercício do seu crédito, consegue obter umenriquecimento injusto.229

A lesão é um bom exemplo da transformação do princípio da obrigatoriedade do

contrato. Por meio desse exemplo se pode identificar a importância do princípio da

boa-fé objetiva como verdadeiro paradigma de segurança nos contratos.

A boa-fé objetiva informa um dever de agir de acordo com os padrões sociais

determinados e reconhecidos pela média da sociedade. É um aspecto que vai

além da concepção subjetiva, que interfere no animus do sujeito e que sempre

esteve presente na teoria clássica dos contratos.

A boa-fé objetiva exigida dos contratantes é um reforço acerca da necessidade

de lealdade, de retidão, de honestidade na manutenção das relações contratuais.

Diretamente relacionada com a solidariedade constitucional e fundamentada na

função social do contrato230 a boa-fé objetiva é um instrumento de abertura do

sistema jurídico e justifica a funcionalização da autonomia privada na sociedade

contemporânea.

A noção de boa-fé objetiva foi introduzida no Código Civil de 2002 através dos

artigos 113, 187 e 422. No Código Civil de 1916 a boa-fé objetiva era somente

reconhecida expressamente pelo art. 1.443 do CC de 16, que a afirmava para os

contratos de seguro. A boa-fé objetiva importa uma atuação pensando no outro

229 SERPA LOPES. M. M. Curso de Direito Civil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1996,V. III, p. 73.

230 De acordo com Rosalice Fidalgo Pinheiro: “A cláusula geral da boa-fé exige sua leitura áluz dos princípios constitucionais que presidem a atividade econômica: a função social do contratoerige-se como fundamento daquele princípio, submetendo as relações patrimoniais à suarepersonalização. Por conseguinte, reveste-se a boa fé de um ‘substrato constitucional’ e torna-sepossível resolver a tensão valorativa que preside certos aspectos da codificação: ao procurarconciliar a liberdade com a justiça, revela-se um antagonismo de valores, que rompe com acoerência entre disposições gerais e particulares”. (PINHEIRO, R. F. Percurso teórico da boa-fée sua recepção jurisprudencial no território brasileiro. Tese (doutorado em Direito) – setor deciências jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004, p. 285).

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parceiro, respeitando os interesses e agindo com lealdade, sem intenção de

causar uma lesão ou de buscar uma vantagem excessiva. Sua vinculação aos

contratos se traduz em uma atuação em regime de cooperação entre os

contratantes.

Nas duas formas de boa-fé, objetiva e subjetiva, existe um dever subjetivo

representado pela confiança de alguém que acreditou em algo, mas somente na

boa-fé objetiva existe um segundo elemento, que é dever de conduta de outrem.

Este seria o traço distintivo entre as duas figuras231.

A inserção como cláusula geral no Código Civil de 2002 é recente, mas, não

obstante isto, o Código de Defesa do Consumidor já constituía a boa-fé como um

de seus princípios orientativos.232. O art. 4º, III, do CDC determina seu uso como

parâmetro para proporcionar a harmonia das relações de consumo com os

princípios da ordem econômica233. Também o art. 51, IV, do CDC lhe faz

referência quando prescreve que são nulas de pleno direito as cláusulas dos

contratos de consumo que estabeleçam obrigações incompatíveis com a boa-fé.

A boa-fé objetiva possui a função de interpretação do contrato, traduzindo-se na

tutela da confiança, a fim de fazer prevalecer que “no caso de dúvida, a optar pelo

sentido que propicie a conservação do contrato, que seja o mais favorável à parte

débil, ou o menos gravoso à parte onerada”234. Através da interpretação é

possível o uso da boa-fé objetiva para invalidar ou neutralizar as cláusulas do

231 Para Fernando Noronha: “A boa-fé subjetiva também tem subjacente um estado deconfiança, mas agora esta é meramente subjetiva, já que não pode ser imputada à atuação deoutra pessoa”. NORONHA, F. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais. SãoPaulo: Saraiva, 1994, p. 80.

232 POPP, C. Considerações sobre a boa-fé objetiva no direito civil vigente – efetividade,relações empresariais e pós-modernidade. In: GEVAERD, J; TONIN, M. M. (Orgs). Direitoempresarial e cidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2004, p. 24.

233 De acordo com Rosalice Fidalgo Pinheiro: “Prevista no art. 4º, III, como princípio geral,promove a ligação da tutela do consumidor com os valores constitucionais que presidem a ordemeconômica. Há nisto estreita relação com a função social do contrato, uma vez que a livre iniciativasubmete-se à justiça social, à solidariedade, e à dignidade da pessoa humana. Em última instância,resta uma autonomia funcionalizada: não subsiste como um valor em si mesma, mas como umaliberdade, cujo exercício é corrigido por uma justiça social”. (PINHEIRO, R. F. Percurso teórico daboa-fé e sua recepção jurisprudencial no território brasileiro. Tese (doutorado em Direito) –setor de ciências jurídicas, Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2004, p. 301).

234 Idem, p. 136.

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contrato sempre que estas se revelem incompatíveis com a finalidade

econômica235 determinada através da função social.

A função interpretativa se complementa com sua função integrativa, no sentido

de propiciar o esclarecimento de eventuais lacunas, favorecendo seu papel criador

a fim de autorizar que o judiciário interprete o contrato à luz da boa-fé para conferir

sentido às cláusulas que vinculam os contratantes de forma a garantir a

prevalência dos princípios fundamentais expressos na Constituição.

A importância da boa-fé repercute ainda na reformulação da relação

obrigacional. A visão estática nada mencionava acerca dos múltiplos deveres a

que estão adstritos todos os contratantes, vinculando as partes em uma relação

simples de débito-crédito. Esta era uma visão puramente externa (definida por

seus elementos principais: sujeito, objeto e o vínculo de sujeição que liga o crédito

e a dívida) sem a menção aos múltiplos deveres de proteção que decorrem do

vínculo que se forma entre credor e devedor236.

Mediante a boa-fé objetiva a identidade da relação jurídica obrigacional passa a

ser dinâmica, ao identificar que tanto o devedor quanto o credor são titulares de

direitos na relação jurídica, que não é vinculada a uma ilimitada forma de

manifestação da vontade237. Os deveres de proteção surgem durante o

desenvolvimento da relação jurídica obrigacional, como situações fáticas

supervenientes à formação do vínculo e que refletem na obrigação e são também

denominados de deveres laterais. Por eles surgem determinados

235 Negreiros, T. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 136.

236 MARTINS-COSTA, J. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000,p. 384.

237 Um exemplo da violação dos deveres acessórios de conduta pode ser demonstrado pelaseguinte ementa jurisprudencial: Furto de motocicleta em pátio de empresa em que o autor prestaserviço. Obrigação de Indenizar. Dever anexo de proteção dos interesses do outro contratante,derivados da boa-fé objetiva. Sentença mantida. Recurso desprovido.(...) Efetivamente, o fato de oautor manter relações negociais com a ré, pois presta serviços – embora terceirizados – noestabelecimento desta, impõe à ré certos deveres. Trata-se dos deveres anexos, instrumentais oulaterais de conduta, derivados da boa-fé objetiva, que percorrem todas as fases do relacionamentocontratual, abrangendo a responsabilidade pré-contratual, contratual e pós-contratual.Determinados deveres surgem do próprio fato do chamado contato social, em que a aproximaçãodas partes pode ser suficiente para gerar deveres (RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça doRio Grande do Sul. Recurso Inominado, 3ª Câmara Recursal Cível do Juizado Especial, EFN nº.71000746933, julgado em 17 jan. 2006. Disponível na Internet via: <http://www.tjrs.gov.br.>Acesso em: 28 mar. 2006.

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comportamentos, impostos pela boa-fé objetiva, em vista do fim do contrato. Sua

justificativa surge da relação de confiança que o contrato fundamenta. Eles podem

manifestar-se durante a execução do contrato e podem ser deveres de cuidado,

de esclarecimento, de informação, de cooperação, etc.

Tais deveres não são taxativos e podem variar de acordo com o caso concreto.

Há situações fáticas que fazem surgir a responsabilidade por quebra dos deveres

acessórios independente do contrato já se encontrar devidamente cumprido.

Como ilustração, cite-se o julgamento da Apelação Cível nº 588042580 do

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

O acórdão, datado de 1988, analisa a responsabilidade de um vendedor que,

após receber o preço da venda de um imóvel e entregá-lo à compradora, passa a

ameaçá-la de morte. Com o fato a compradora abandona o imóvel e este é

revendido a terceira pessoa pelo mesmo vendedor.

O Ministro Ruy Rosado de Aguiar, à época relator do acórdão, bem ressalta que

na hipótese ocorreu a afronta á um dever acessório de conduta, traduzido em um

“compromisso de não praticar no futuro imediato, nenhum ato que inviabilize a

normal continuidade da situação adquirida pela compradora através do

contrato238.” Saliente-se que a hipótese envolveu culpa “post factum finitum”

prologando os efeitos do princípio da boa-fé para além dos limites da compra e

venda. A data do julgamento (1988) faz perceber que a teoria dos deveres laterais

já era tratada pela jurisprudência muito antes da entrada em vigor do Código Civil

atual.

A relação jurídica obrigacional que envolve credor e devedor não pode ser vista

apenas de um modo estático, mas sim como algo dinâmico que envolve toda uma

complexidade de direitos e deveres os quais podem ser exigidos de cada uma das

partes. Segundo Judith Martins-Costa, ao considerar os múltiplos elementos

238 Compra e Venda. Resolução. Culpa “post factum finitum”. O vendedor que imediatamenteapós a venda torna inviável à compradora dispor do bem, ameaçando-a de morte e escorraçando-ado lugar, para aproveitar-se disso e vender a casa para outrem descumpre uma obrigaçãosecundária do contrato e dá motivo à resolução. Princípio da Boa-fé. Preliminar de nulidaderejeitada, Apelo provido em parte, apenas para suspender exigibilidade dos ônus da sucumbência.( BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – Apelação cível nº 588042580/ Porto AlegreApelante: Carlos Antônio de Lima Gonçalves. Apelado: Zilma da Silva Cândido. RelatorDesembargador Ruy Rosado de Aguiar, TJRS, Revista de Jurisprudência do TJRGS, n.133, anoXXIV, 1989, v. 133, p. 401-405).

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formadores da complexidade da obrigação será permitido integrá-la não apenas

dos fatos decorrentes da lei ou da vontade, “mas, por igual, de fatores

extravoluntarísticos atinentes à concreção de princípios e standards de cunho

social e constitucional”.239

Deste modo a relação jurídica obrigacional pode ser concebida como um

processo240, uma vez que é composta de deveres que vão além daqueles

previstos pelas partes no contrato241. Sob este aspecto, a boa-fé objetiva

transcende os limites do contrato, autorizando sua vinculação às etapas anteriores

e posteriores do contrato:

Os deveres anexos ou instrumentais decorrem da boa-fé, prestando-seao exato processamento da relação obrigacional. Guardam consigo aparticularidade de coexistirem e acompanharem todo o desenvolvimentodessa relação jurídica, fazendo-se presente, desde os primeiros contatoscom vistas à sua conclusão, até os últimos atos, que sucedem ocumprimento da obrigação principal. Nesse momento, a tutela outorgadapelo ordenamento jurídico ao contrato amplia seus limites para momentosanteriores á sua conclusão e posteriores à sua extinção242.

As novas formas de responsabilidade pré-contratual e pós-contratual acabam

por aproximar a responsabilidade contratual e extracontratual. Através de suas

funções, ampliando ou criando obrigações e ainda como elemento de

interpretação, a boa-fé objetiva consolida sua importância como fator de

segurança ás relações jurídicas que se formam na atualidade.

Assim, através de uma instância solidarística, a boa-fé e a autonomia privada

se encontram diretamente relacionadas, sendo a primeira fundamento construtivo

239 MARTINS-COSTA, J. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000,p. 395.

240 Segundo Judith Martins-Costa: “A concepção da obrigação como um processo e como umatotalidade concreta põe em causa o paradigma tradicional do direito das obrigações, fundado navalorização jurídica da vontade humana, e inaugura um novo paradigma para o direito obrigacional,não mais baseado exclusivamente no dogma da vontade (individual, privada ou legislativa), mas naboa-fé objetiva.” A função social da obrigação justifica, desse modo, que se pense a coexistênciade deveres oriundos da vontade ao lado de outros que se criam a partir da boa-fé. (MARTINS-COSTA, J. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 394).

241 MARTINS-COSTA, J. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000,p. 439.

242 PINHEIRO, R. F. Percurso teórico da boa-fé e sua recepção jurisprudencial no territóriobrasileiro. Tese (doutorado em Direito) – setor de ciências jurídicas, Universidade Federal doParaná, Curitiba, 2004, p. 208.

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da segunda, ambas voltadas à garantia para que as operações econômicas que

se travam no mercado sejam mensuradas com os valores existenciais do homem.

3.2.2 A Função Social Extrínseca do Contrato

A função social em seu aspecto extrínseco suaviza o princípio da relatividade

dos efeitos do contrato vez que compreende uma análise exterior, para além dos

efeitos produzidos no interior da relação obrigacional, traduzindo-se na

repercussão destas obrigações no meio social. Desse modo, aquele que promete

dar, fazer, ou não fazer alguma coisa, detém um compromisso para com os

interesses sociais243, devendo respeitar os valores e princípios que a sociedade

elege como fundamentais.

A função social modifica a concepção clássica de que o contrato apenas vincula

os contratantes, como fundamento do princípio de la sociabilidad, uma vez que

importa uma “limitación al principio de los efectos relativos del contrato,

permitiendo la tutela del crédito de los terceros; un reforzamento de conservación

del contrato asegurando intercambios útiles y justos.”244

Deste modo, a função social faz com que o contrato acabe por alcançar

terceiros que não figuram como partes da relação jurídica, mas que acabam por

sofrer, ainda que indiretamente, os seus efeitos. O terceiro, nesta ótica, por vezes

poderá se comportar como vítima de um dano que se liga ao inadimplemento de

uma obrigação. Em outras situações poderá motivar o descumprimento da

prestação pelo devedor, agindo como um agressor ao contrato.245.

243 Segundo Augusto Geraldo Teizen Junior: não significa limitar a liberdade contratual; garante-se a liberdade de contratar, preservando-se, legalmente, valores fundamentais ligados à dignidadehumana. Assim como a propriedade é vista como um direito-função, no sentido de ser garantida apropriedade natural, condicionado o seu exercício ao fim coletivo, também o contrato deve perquirireste sentido: o bem estar social. (TEIZEN JUNIOR, A. G. A função social no Código Civil. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 165).

244 LORENZETTI, R. L. Tratado de los contratos: parte general. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 2004, p. 112.

245 NEGREIROS, T. Teoria do Contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.232.

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Alguns exemplos desta ruptura com o sentido tradicional do princípio da

relatividade pode se realizar através do Código de Defesa do Consumidor, ao

consagrar em seu art. 12 a responsabilidade de todos aqueles que participam da

cadeia produtiva em razão de defeitos apresentados nos bens que disponibilizam

no mercado. Também há de se fazer uso do exemplo dos arts. 2º § único e art. 17

ambos do CDC. Através destas regras, pessoas não vinculadas a uma relação de

consumo poderão ser equiparadas à consumidores para busca de uma efetiva

reparação.246

Ao analisar a figura do consumidor por equiparação Claudia Lima Marques

afirma que estes poderiam ser considerados como “ex-terceiros”247:

Efetivamente, ao analisar a jurisprudência brasileira sobre o CDC e suasdefinições de consumidor, hoje podemos afirmar que o CDC assegurauma forte e efetiva proteção aos sujeitos antes denominados ‘terceiros’na relação agora alçado ao status novo de consumidor stricto sensu ouconsumidor equiparado. O fato do sistema do CDC, tanto em suas regrasmateriais como processuais, não distinguir este tipo de consumidores eassegurar iguais direitos contratuais a todos os consumidores, tanto osdo art. 2º, como os consumidores equiparados dos arts. 17, 29 eparágrafo único do art. 2º, tem fortes efeitos no mercado, a assegurarboa-fé, legitimação processual e garantias aos entes denominadosterceiros nos contratos. É o que podemos chamar de ‘fim dos terceiros’nas relações de consumo, pois estes terceiros geralmente são incluídos,ora como consumidores, ora como fornecedores da cadeia defornecimento de produtos ou serviços.248

Sob este aspecto, interessantes posicionamentos são analisados por

pesquisadores a fim de vincular a função social aos contratos. Em sua tese de

246 Como exemplo, vale ressaltar o trecho do acórdão proferido pelo Ministro Castro Filho queanalisa a explosão de uma loja de fogos de artifícios na cidade de São Paulo: “E a equiparação detodas as vítimas do evento aos consumidores, na forma do citado artigo 17, justifica-se em funçãoda potencial gravidade que pode atingir o fato do produto ou do serviço. É o que se verifica nahipótese em análise, pois que tragédias como a tratada nos autos, via de regra, causam danos nãosomente àqueles que no momento da explosão estavam no interior da loja adquirindo produtos, emautêntica relação de consumo, mas também a muitos outros que acabam atingidos como vítimasdesse acidente de consumo, porquanto, na hora fatídica, se encontravam nas proximidades dolocal. (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Extraordinário nº. 181.580/SP. RelatorMinistro Castro Filho, julgado em 9 dez 2003, publicado no Diário de Justiça em 22 mar. 2004.Disponível em: <http://www.stj.gov.br>. Acesso em: 01 jan. 2007.

247 MARQUES, C. L. Contratos no código de defesa do consumidor. 4. ed. São Paulo: RT,2002, p. 302.

248 MARQUES, C. L. Contratos no código de defesa do consumidor. 4. ed. São Paulo: RT,2002, p. 299.

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doutorado, Diego Richard Ronconi utiliza a função social da propriedade como

meio de vincular o credor fiduciário à responsabilização por delitos que venham a

ser cometidos pelo devedor fiduciário quando da utilização do veículo alienado

fiduciariamente à instituição financeira. Sua argumentação parte da função social:

Destaca-se, nesse ponto, que a condição de credor fiduciário, no contratode alienação fiduciária em garantia é de proprietário, ou melhor, deproprietário resolúvel ou fiduciário. Mesmo que sua propriedade seencontre na situação de resolubilidade, ainda assim essa propriedadeexerce uma função social, pois não há limites constitucionais ouinfraconstitucionais dizendo qual espécie de propriedade deve atender àfunção social. Entende-se, portanto, que o bem alienado fiduciariamenteenquanto propriedade fiduciária do credor-fiduciário também tem a suafunção social condicionando os limites e responsabilidades inerentes aqualquer espécie de propriedade249.

O autor supracitado argumenta que a função social legitima a responsabilização

do credor fiduciário sugerindo uma alteração no teor do art. 933 do Código Civil

atual para admitir também a hipótese do proprietário fiduciário na modalidade de

responsabilidade solidária, porém subsidiária250.

Deste modo, além dos contratos consumeristas, a função extrínseca do

contrato autoriza a revisão das definições de “parte” e “terceiro” nos contratos

regidos pelo Código Civil:

Verifica-se em relação ao princípio da relatividade que a suadogmatização com base na concepção voluntarista do contrato tende aser substituída – ou, quando menos, retificada – pelo surgimento denovas categorias jurídicas, necessárias para solucionar problemasligados a novas formas de produção e comercialização”251.

Logicamente a massificação das relações contratuais, a utilização dos contratos

de adesão e todas as características plurais da sociedade se refletem nos

249 RONCONI, D. R. Os institutos da alienação fiduciária em garantia e daresponsabilidade civil em face do princípio da função social da propriedade: um estudo à luzda política jurídica e da função legislativa do Estado. Itajaí/SC. 2005. Tese (Doutorado em CiênciaJurídica) - Universidade do Vale do Itajaí. p. 184.

250 RONCONI, D. R. Os institutos ... p. 295.

251 NEGREIROS, T. Teoria do Contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.243.

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contratos para ampliar os seus efeitos, “no sentido de incluir aquelas pessoas a

quem o contrato concerne diretamente sob o ponto de vista funcional.”252

Quando o interesse geral se sobrepõe à satisfação dos interesses individuais

há de se recordar que o art. 187 do CC/02 deve ser utilizado para complementar o

sentido do art. 421, justificando a busca da sanção para o desrespeito da função

social no instituto do abuso do direito.253

Há também a hipótese do terceiro agressor, ou seja, aquele que contribui para

o inadimplemento de uma ou mais das diversas obrigações do contrato. Em

determinadas hipóteses, a função social autoriza que o credor promova ação para

responsabilizar diretamente este terceiro que não respeita o contrato254.

Quanto à segunda hipótese, vale lembrar ainda a regra consagrada no art. 608

do Código Civil de 2002, que vincula a possibilidade de um terceiro vir a indenizar

o contratante do serviço por aliciamento de mão de obra alheia. Esta típica regra

protetiva de concorrência desleal pode ser utilizada quando a situação concreta

envolve profissionais especializados e que prestem serviços em regime de

exclusividade.

Neste entendimento, as nuances do caso concreto podem fazer surgir a

responsabilidade do terceiro que motiva o rompimento do contrato pelo prestador,

possibilitando ao contratante prejudicado o pedido de uma indenização calculada

em dois anos da remuneração do prestador inadimplente.

252 NEGREIROS, T. Teoria do Contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.233.

253 Para Fernando Noronha: “Com relação aos contratos, o interesse fundamental da questãoda função social das obrigações está em mostrar que a liberdade contratual (ou mais amplamente,a autonomia privada) não se justifica, e deve cessar, quando afetar valores maiores da sociedade,supra contratuais, e, além disso e agora no âmbito estritamente contratual, também deve sofrerrestrições quando conduzir a graves desequilíbrios entre os direitos e obrigações das partes, quesejam atentatórios de valores de justiça, que também têm peso social.” (NORONHA, F. Direito dasobrigações. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 27-28).

254 Um dos primeiros exemplos na jurisprudência sobre o terceiro agressor é o noticiado caso docantor Zeca Pagodinho e seu envolvimento em campanhas publicitárias de duas conhecidasmarcas de cervejas. O trecho do acórdão proferido pelo desembargador relator Roberto Mortarivincula uma das empresas a observar o contrato inclusive com imposição de multa diária: “Mesmoporque, ainda que a AMBEV não tenha sido signatária do contrato entre Zeca Pagodinho eSchincariol, sua conduta, ao deixar de observar o pacto de exclusividade nele contido, épotencialmente apta a gerar dano indenizável, o que, se de um lado deverá ser alvo de regularcontraditório na ação principal a ser proposta, lhe confere, ao menos por ora, status para figurar nopólo passivo da demanda”. (SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo deInstrumento nº. 346.328.4/5 e 346.344.4/8. Relator Desembargador Roberto Mortari, julgado em 31de dezembro de 2004 . Disponível em: < www.tjsp.gov.br>. Acesso em: 01 jan. 2007.

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Através destas considerações admite-se que o princípio da relatividade sofre

uma ruptura através da dinâmica da função social aplicada ao contrato. A

vinculação dos terceiros aos contratos, portanto, é um exemplo significativo que a

função social impulsiona o contrato à correção das desigualdades e abusos que

surgem na complexidade das relações contemporâneas.

Sob este viés, a reformulação do direito contratual através da humanização do

capitalismo é uma realidade possível255. Entender os limites da autonomia privada

como parte de sua essência sobrepõe a tutela existencial da pessoa aos

interesses puramente lucrativos.

O desenvolvimento econômico deve ser guiado pela solidariedade

constitucional, auxiliando deste modo na difícil tarefa de diminuição das diferenças

sociais. Os limites ao agir individual podem perfeitamente conduzir à maior eficácia

da busca de uma vida digna ao maior número possível de pessoas. Resta ao

jurista e ao aplicador do direito consciente a tarefa de garantir eficácia a esta

dimensão humanista das situações subjetivas patrimoniais, superando o

individualismo como condição de permanência da sociedade.

255 Para Francisco Cardozo Oliveira: O desenvolvimento econômico e social dependerá cadavez mais da capacidade de administração verdadeiramente racional de recursos humanos emateriais. Uma postura inadiável para a realidade social e econômica brasileira, que precisarecuperar a capacidade de inclusão para deixar de figurar entre as sociedades mais injustas domundo. (OLIVEIRA, F. C. Uma nova racionalidade administrativa empresarial. In: GEVAERD,J.; TONIN, M. M. Direito Empresarial e Cidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá,2004, p. 125).

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4. A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA

O Código Civil de 2002 reúne em um mesmo corpo legislativo regras típicas do

direito civil e comercial. A aglutinação das matérias atende a evolução da

sociedade, afinal, é a empresa que hoje fomenta e desenvolve a economia

mundial. Deste modo, é benéfica a reunião de temas tão relevantes, uma vez que

a sociedade evolui com muita rapidez e o direito deve preocupar-se em criar

caminhos que facilitem a compreensão de suas regras.

A ligação entre a doutrina civil e a comercial decorre de diversos fatores, tais

como a substituição do mercantilismo pelo capitalismo industrial, a urbanização, a

concentração de capital e a massificação da sociedade. A autonomia do direito

comercial surgiu através do Estado Liberal, em virtude da necessidade de maior

agilidade aos negócios conduzidos pela classe que havia conquistado o poder.

O desenvolvimento da atividade econômica, porém, a partir do século XIX, fez

com que os interesses dos empresários acabassem por se confundir com os

interesses de toda a sociedade256. Esta proximidade de interesses, de acordo com

Fernando Noronha, contribuiu para que o direito das obrigações do direito civil

fosse aos poucos “comercializado”:

Com essa comercialização, deixou de existir a necessidade de regrasjurídicas diferentes, aplicáveis somente aos empresários. Pode-se dizerque hoje a atividade econômica de todos os cidadãos é regida pornormas que incorporam o espírito que era característico do DireitoComercial. Por isso é compreensível que desde o século XX se tenhapassado a defender a necessidade de unificação dos Direitos Civil eComercial, como entre nós acabou acontecendo no Código Civil de 2002[1.9], ainda que neste se continue reservando para a atividadeempresarial todo um livro da parte especial (cf. os arts. 966 e ss.) E deacordo com as características da sociedade contemporânea, nesse livroé atribuída especial importância ás sociedades empresárias (cf. arts. 982e 983), porque é nas mãos delas (e é em especial nas mãos das grandessociedades anônimas) que se concentra o poder econômico (financeiro,industrial, comercial), em nível nacional e internacional.257

256 NORONHA, F. Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações: introduçãoà responsabilidade civil. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 117.

257 NORONHA, F. Direito das obrigações: fundamentos do direito das obrigações: introduçãoà responsabilidade civil. v. 1. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 117.

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A unificação das matérias é conseqüência das necessidades econômicas, isto

é um “modus vivendi” que se legitima pela intensidade e importância da relação

entre Direito e Economia para melhor compreensão da sociedade. Não se deve

dizer que o direito comercial foi superado pelo direito civil ou vice-versa, há que se

ter em mente que todo o ordenamento jurídico é criado para acompanhar a

sociedade e fazer valer suas regras fundamentais, expressas na Constituição. A

concepção unitária, portanto, é também decorrência lógica do próprio sistema

jurídico nacional e determina a vinculação da finalidade econômica aos objetivos

sociais.258

A unificação do direito civil com o direito comercial também deve ser lembrada

para afirmar que também o mercado se submete aos controles estabelecidos pela

Constituição em seu artigo 170. A aproximação das regras civis e comerciais

demonstra que a preocupação com os objetivos lançados na carta constitucional

devem ser seguidos por todos e, nesta perspectiva, a regulação do mercado é

concebida como um pressuposto essencial de seu efetivo funcionamento.259

Nos moldes do Código Italiano, o atual Código Civil não definiu o que é a

empresa, concentrando-se na definição de empresário260. Assim, o atual direito de

empresa fez desaparecer a antiga distinção entre comerciantes e não-

comerciantes, suplantadas pelas figuras do empresário e não-empresário (art.

966, § único CC/02). Serão enquadrados como não empresários os cientistas,

literatos ou artistas, que segundo Nelson Nery:

Embora produzam bens ou prestem serviços, falta-lhes a organizaçãoempresarial para obtenção de lucros. Se a organização existir, permitindo

258 CASTRO, C. A F. de; NALIN, P. R. R. Economia, mercado e dignidade do sujeito. RAMOS,C. L. S; TEPEDINO, G; ECT. al. (Coord). Diálogos sobre direito civil: construindo a racionalidadecontemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 113.

259 LORENZETTI, R. L. Tratado de los contratos: parte general. Santa Fé: Rubinzal Culzoni,2004,.p. 79.

260 Para Fernando Netto Boiteux, interpretando os sentidos dos arts. 966, 968, 972, 974 e 975do Código Civil: “a empresa se exerce, ou seja: ela é o resultado da atividade do empresário”.(BOITEUX, F. N. A função social da empresa e o novo Código Civil. In: Revista de DireitoMercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, Malheiros, n. 125, p. 49, jan/mar de2002)

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que seu labor intelectual ou artístico seja o próprio elemento da empresa,são considerados empresários.261

Vinícius Marques Gontijo estabelece que, para a composição do tipo

“empresário” mister se faz a configuração de alguns elementos: profissionalismo,

atividade econômica; organização e produção ou circulação de bens ou

serviços.262

O profissionalismo é o exercício habitual de determinada atividade, voltado ao

desenvolvimento econômico da pessoa natural ou jurídica. A determinação do

conceito de atividade econômica requer a obtenção do lucro, ainda que na prática

o empreendimento não obtenha o mesmo retorno idealizado quando do início de

suas atividades. A organização é determinada a partir do exercício coordenado e

regular da atividade.

O quarto requisito é a exigência que a atividade do empresário se ligue à

produção ou à circulação de bens ou serviços. Deste ponto resulta uma

interessante conseqüência da unificação das obrigações civis e mercantis, uma

vez que o Código Civil de 2002 não mais traz a distinção entre as sociedades civis

e empresariais. Estão fora do conceito de sociedade empresária as sociedades

sem fins lucrativos, as não profissionais e os ruralistas que não optarem pela

atividade empresarial (art. 971 CC/02).

O empresário pode exercitar a atividade de modo individual, sendo assim

considerado como empresário individual ou ainda reunido com outros em uma

sociedade empresária. Independente da forma societária escolhida, a empresa é

colocada para a sociedade como sendo uma comunidade de trabalho, com

determinado escopo produtivo e na realização do interesse geral da economia.”263

O conceito jurídico de empresa se assenta em um conceito econômico, mas

que é entendida no direito como uma atividade exercida pelo empresário264.

261 NERY JUNIOR, N.; NERY, R. M. de A. Novo código civil e legislação extravaganteanotados. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 966.

262 GONTIJO, V. J. M. O empresário no Código Civil Brasileiro. In: Revista de DireitoMercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, vol. 135, n. 63, p. 82, jul/set de 2004.

263 SIMIONATO, F. A. M. O Interesse social da empresa como interesse em si. In: Revista deDireito Empresarial. Curitiba: Juruá, n. 2, p. 15, jul/dez de 2004.

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Partindo da concepção de que a empresa é uma entidade abstrata que, uma vez

constituída dentro da lei, adquire categoria de pessoa jurídica. 265

A conclusão de um conceito de empresa como resultado da atividade do

empresário nem sempre é condizente com a prática. A atualidade traz formas de

riquezas imateriais que fazem com que as pessoas adquiram ações de uma

determinada empresa apenas para obter rendimentos. Não poderão, desta forma,

ser enquadrados como empresários.

Assim, considera-se que nas grandes empresas organizadas sob a forma de

Sociedade por Ações nem sempre os detentores do capital serão empresários.

Por sua vez, também os empresários em algumas situações não serão detentores

de parte expressiva do capital social266. Para estas situações, a lei das Sociedades

por Ações introduziu a figura do acionista controlador (art.116 da Lei 6404/76) que

é a pessoa que efetivamente exerce e controla a atividade empresarial.

A empresa é hoje um poder.267Tal constatação é uma decorrência do

desenvolvimento econômico da sociedade. O período liberal marca o início do

capitalismo e o desenvolvimento do comércio. A liberdade formal, porém, gera

desigualdades que faz surgir o controle estatal para viabilidade do sistema

econômico.

Com o Estado Social surgem as empresas públicas e sociedades de economia

mista, através das quais o Estado passa a exercer diretamente uma atividade

econômica. A intervenção estatal igualmente passa a ser vista como condição de

264 Rubens Requião em crítica aos criadores do projeto do Código Civil: “Não teve o legislador,constrangimento em definir a empresa em sentido objetivo. Já a comissão de professores queelaborou o Projeto do Código Civil se deixou dominar pela timidez e perplexidade dos juristasitalianos de 1942 e evitou definir a empresa. Adotou o mesmo critério do Código Italiano,conceituando apenas o empresário”. (REQUIÃO, R. Curso de direito comercial. São Paulo:Saraiva, 2003, p. 58)

265 Para José Lamartine Côrrea de Oliveira: “Não são, porém, pessoas, de modo idêntico aomodo pelo qual são pessoas os seres humanos. São instrumentos de realização da pessoahumana e têm por finalidade servir ao homem e à sua vida em sociedade”. (OLIVEIRA, J. L. C. de.A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 606).

266 BOITEUX, F. N. A função social da empresa e o novo Código Civil. In: Revista de DireitoMercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo: Malheiros, n. 125, p. 49, jan/mar de2002.

267 ARNOLDI, P. R. C.; MICHELAN, T. C. de C. Novos Enfoques da Função Social da Empresanuma economia globalizada. In: Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico eFinanceiro, São Paulo: Malheiros, vol. 117, p. 157, jan/mar de 2000.

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operabilidade do sistema268, fazendo cair por terra os ideais de plena liberdade do

período anterior.

O desenvolvimento do sistema econômico de início era centrado na

propriedade imobiliária, em razão de sua concentração na atividade agrícola.

Através do crescimento da indústria e do comércio a concentração da riqueza é

deslocada dos bens materiais para os de natureza incorpórea (do qual são

exemplos: a propriedade industrial, os títulos de crédito, as ações de sociedades),

concentrando-se na organização dos fatores produtivos como novo centro deste

processo.

A movimentação das riquezas passa a ser efetuada então através do contrato,

fazendo com que este tome novamente a importante posição de elemento

instrumental e funcional, porém, não vinculado diretamente à propriedade estática,

mas sim à propriedade em seu aspecto dinâmico.269 A empresa, enquadrada no

perfil dinâmico da propriedade, passa a ser vista como base e elemento de

impulsão de todo o sistema econômico vigente.

Desta forma, a construção de uma função social para a empresa passa

necessariamente pela análise da propriedade e do contrato, instrumentos

imprescindíveis para a organização da atividade econômica e fundamentos de

viabilidade do mercado.

268 De acordo com Carlos Alberto Farracha de Castro e Paulo Nalin: “(...) a ampla autonomiaprivada, na qual se alavancava o Estado liberal clássico, foi a antítese da própria liberdade, poisem espaços tão amplos de atuação a tendência é a do aniquilamento do operador fraco pelo outromais forte, conduzindo à derrocada do próprio mercado. O Estado liberal viu-se, desta forma,compelido a mudar seu modo de atuação econômica, em vista do social e, sem ingenuidade, emvista de sua própria sobrevivência.” (CASTRO, C. A F. de; NALIN, P. R. R. Economia, mercado edignidade do sujeito. RAMOS, C. L. S; TEPEDINO, G; et al (cord). Diálogos sobre direito civil:construindo a racionalidade contemporânea. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 106).

269 Segundo Enzo Roppo: “Quer isto dizer, mais concretamente, que a substância econômicado fenômeno cambiário, acionário ou do conhecimento de carga não deve ser procurada napropriedade e disponibilidade material da folha de papel munida respectivamente das inscrições‘letra’ ou ‘ação’ ou ‘conhecimento de carga’, e devidamente preenchida, mas nos direitos e nasexpectativas econômicas que ela simboliza: respectivamente o direito de participar nasassembléias da sociedade e de orientar sua gestão com voto próprio, bem como o de receber seusdividendos; o direito à entrega de um certo estoque de mercadorias. E todos estes direitos podemser cedidos a outrem mediante correspectivo”. (ROPPO, E. O contrato. Coimbra: LivrariaAlmedina, 1988, p. 85).

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4.1 CONTRATO E PROPRIEDADE: FUNDAMENTO DA CONDIÇÃO DE

MERCADO

Antes de abordar o mercado e seus movimentos é importante destacar que o

desenvolvimento econômico se encontra diretamente vinculado ao progresso

coletivo. A liberdade de agir dos particulares, consubstanciada na autonomia

privada funcionalizada, se vincula à realidade do seu tempo para a procura de

uma função distributiva e promocional que propicie uma adequada mensuração

entre interesses individuais e a realização do bem comum270.

Assim, partindo da premissa de que o contrato e a propriedade possuem uma

vertente complexa e plural, voltada para a defesa dos valores socialmente

relevantes, cumpre destacar qual o sentido da expressão solidariedade no texto

constitucional.

Consubstanciado no art. 3º, inciso I, da Constituição de 1988 “a construção de

uma sociedade livre, justa e solidária” é um dos objetivos fundamentais da

República Federativa do Brasil. A liberdade271 deve ser traduzida para a busca de

seu sentido real de condições de escolha e determinação de procedimentos. Uma

sociedade justa para os fins da Constituição prescinde da superação das

desigualdades sociais e regionais para a realização da democracia genuína de um

Estado Democrático de Direito272

270 Segundo Francisco Amaral: “O bem comum não se pode considerar nem sob umaperspectiva individualista, na qual seria apenas a soma dos bens individuais, nem sob umacoletivista, que subordina os valores da personalidade aos coletivos. Traduz um equilíbrio entre ointeresse geral e os interesses privados, assim como a cooperação dos indivíduos para a obtençãodos fins comuns a todos. O bem comum é, portanto, o conjunto de condições necessárias ao bemparticular dos membros da comunidade, e é também um valor social que se realiza com aparticipação de todos na criação das condições necessárias à existência de paz e estabilidade,presidindo o desenvolvimento do direito em geral”. (AMARAL, F. Direito Civil: introdução. 6ª ed.Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 20).

271 Sobre o tema da ordem econômica Eros Grau define a liberdade de iniciativa como“sensibilidade e acessibilidade a alternativas de conduta e de resultado”, no sentido de indicar aconsciência para a escolha e as condições efetivas de exercício do caminho escolhido. (GRAU, E.R. A ordem econômica na Constituição de 1988. 10. ed. São Paulo: Malheiros, p. 201)

272 SILVA, J. A. da. Curso de direito constitucional positivo. 5. ed. São Paulo: RT, 1989, p.107.

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O princípio da solidariedade é aquele que determina a aproximação entre os

homens, que não os inimiza entre si273. A solidariedade constitucional traz um

evidente sentimento de cooperação recíproca entre todos os membros da

sociedade brasileira, fazendo com que estes valores lançados no inciso I passem

a ser considerados também como deveres do Estado e também dos

particulares.274

A solidariedade275 no campo do direito privado está estritamente ligada à

concepção de boa-fé uma vez que a confiança e a lealdade são hoje elementos

essenciais de toda e qualquer relação jurídica276. As relações obrigacionais

passam a ser vistas como relações complexas, nas quais se exige diretamente a

cooperação, determinando uma verdadeira solidariedade contratual.

Também a solidariedade se traduz na busca de um valor coletivo277,

diretamente vinculado no campo do direito privado através da função social. A

determinação da presença da função social nos institutos jurídicos do direito

privado – em especial a propriedade e o contrato – é uma relação direta do direito

civil com os objetivos constitucionais. Qualquer interpretação que se faça

contrariando este elemento não possuirá validade, por evidente descompasso com

a proteção aos interesses fundamentais da pessoa.278

273 GRAU, E. R. Op. cit., p. 215.

274 Para Gisela Bester o princípio da solidariedade é: “sem dúvida, um valor que vivia no maisíntimo recanto de cada um de nós, exercido pelas pessoas mais altruístas e mais humanistas,geralmente ligado a outro valor próprio de pessoas pouco egoístas e com elevada consciênciasocial, que é o voluntarismo, dando consistência às ações de voluntariado, e que agora passa aser um objetivo do próprio Estado brasileiro, e, portanto, um dever desse mesmo Estado para comtodos os integrantes da sociedade brasileira, notadamente para os que dele mais necessitarem”.(BESTER, G. M. Direito constitucional, v. 1: fundamentos teóricos. São Paulo: Manole, 2005, p.305).

275 Para Paulo Nalin: “A melhor descrição da solidariedade deve estar voltada à verticalizaçãodos interesses do homem, eficaz o suficiente para aniquilar as desigualdades subjetivas eregionais, configurando-se como indissociáveis a solidariedade e a igualdade”. (NALIN, P R. R. DoContrato: conceito pós moderno em busca de sua formulação na perspectiva civil constitucional. 2.ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 177)

276 NEGREIROS, T. Teoria do contrato: novos paradigmas. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar,2006, p. 117.

277 NALIN, Paulo R. R. Op. cit., p. 180.

278 A solidariedade é valor intrinsecamente ligado à pessoa. Vale aqui relembrar o sentidosocial que embasa a propriedade contemporânea: “Todas as normas que tratam especificamenteda função social da propriedade devem ser lidas como complementares à proteção que a

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Sob a ótica do mercado, a solidariedade se impõe como valor orientativo

máximo, pela previsão do art. 170 da CF/88 que subordina a ordem econômica à

realização e a defesa de interesses existenciais. Ao sobrepor a dignidade da

pessoa humana como fundamento da ordem econômica se pretende obter a

conexão equilibrada e solidária entre a pessoa, o Estado e o mercado. A

solidariedade constitucional é, portanto, fruto da evolução das sociedades e

legitima-se por meio da concepção de dignidade social.279

A orientação da atividade econômica pela dignidade da pessoa humana

justifica a funcionalização dos institutos jurídicos, em especial o contrato e a

propriedade. Partindo desta premissa, é fundamental a análise de como se

estabelece a ligação entre o direito e a economia. Essa análise merece atenção já

que a expressão “mercado” traz dualidade, uma vez que pode ser identificada

como “uma rede de cooperação ou ás vezes como uma arena de conflitos”280.

Com a solidariedade, economia e direito não podem deixar de ser vistos como

áreas integradas, uma vez que são frutos de uma evolução social unitária e

historicamente condicionada281. Uma análise econômica do Direito pode

apresentar riscos quando admite relegar a um segundo plano os valores que

digam respeito à dignidade da pessoa. Há de se frisar que não existe uma

prevalência entre o direito ou a economia e, por esta razão, há de se admitir que

ainda que o mercado surja como uma realidade abstrata e espontânea, o Direito

lhe segue posteriormente condicionando-o aos valores socialmente relevantes.

Desta forma, o mercado pode ser entendido como uma instituição jurídica e

econômica ao mesmo tempo, porém que tem sua estrutura variável conforme o

contexto cultural e normativo de cada época. A sociedade contemporânea

prescinde de uma interpretação do mercado como instituição jurídica garantida por

Constituição oferta à pessoa humana, e intrumentalizadoras dessa mesma proteção.” (CORTIANOJUNIOR, E. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas. Rio de Janeiro: Renovar,2002,.p. 184)

279 PIERLINGIERI, P. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio deJaneiro: Renovar, 2002, p. 36-38.

280 PERLINGIERI, P. Introdução ao direito civil constitucional. 2. ed., Rio de Janeiro,Renovar, 2002, p. 240.

281 Ibidem, p. 272.

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controles externos, que delimitam suas ações através da prevalência dos valores

constitucionais diretamente ligados á prevalência da pessoa.

A solidariedade constitucional, portanto, é parâmetro de equilíbrio do mercado,

para o fim de evitar a mercantilização do sujeito e que a dignidade da pessoa

humana se resuma a um simples valor de troca282. Desse modo, o contrato, a

propriedade e, como não poderia deixar de ser, a empresa, são concebidos como

instrumentos para promoção de uma justa distribuição da riqueza, concebidos

como meios para a obtenção de uma genuína democracia econômica.

Ao afirmar que o problema presente é o avanço dos grandes grupos

econômicos sobre o indivíduo isolado e despersonalizado Ricardo Lorenzetti

aponta que existem novos valores a identificar a sociedade civil283. O primeiro

valor parte da compreensão de que devem existir limites à atuação do Estado e do

mercado na condução da autonomia privada. Posteriormente, também se faz

necessária a criação de pontes mínimas de ligação entre o público e o privado

para a garantia do desenvolvimento de valores coletivos.

O direito privado contemporâneo reconhece a autoridade estatal e a regulação

da atividade dos particulares. Logo, a autonomia privada não detém o condão de

impor suas particularidades especialmente quando contraria um interesse coletivo.

A ordem pública de direção deve ser seguida na multiplicidade das relações

atuais, fazendo com que os valores coletivos não enfraqueçam, mas

complementem e ajustem a normativa individual284. Deste modo, todo o

ordenamento se ajusta na produção de um efeito jurídico determinado e coerente,

tendo por guia a defesa dos valores fundamentais previstos na Constituição.

As relações que se travam no mercado prescindem também da conjugação

correta entre eficiência econômica e direitos humanos, mercado e democracia.285

282 Ibidem, p. 232.

283 LORENZETTI, R. L. Fundamentos do direito privado. São Paulo: RT, 1998, p. 325.

284 LORENZETTI, R. L. Fundamentos do direito privado. São Paulo: RT, 1998, p. 541.

285 PERLINGIERI, P. Il diritto dei contratti fra persona e mercatto. Nápoli: Ed. ScientificheItaliane, 2003, p. 267.

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O mercado pressupõe a propriedade privada286 pois é por meio da interação dos

agentes econômicos que ocorre a apropriação da riqueza.

A propriedade considerada como uma relação jurídica complexa287 envolve

hoje limites que não são apenas externos. Ao possuir a função social como

elemento integrante de seu conceito a iniciativa econômica privada possui

objetivos que, ao mesmo tempo, autorizam a lucratividade e garantem interesses

não proprietários. Com os contratos ocorre semelhante processo. A complexidade

do contrato faz com que seu conceito contenha necessariamente a função social.

Assim, toda a teoria contratual está direcionada para a busca da igualdade

material dos contratantes e a realização da justiça contratual.

Ressalte-se que o contrato é o instrumento que propicia ao empresário a

obtenção dos recursos produtivos e a posterior oferta de produtos. É por ele que

se legitima o uso da força de trabalho em troca de correspondente remuneração.

O contrato é o instrumento que proporciona a transferência dos diversos

regimes proprietários e traz a dinâmica para o mercado. Ambos, contrato e

propriedade são, portanto, instrumentos fundamentais para o desenvolvimento

econômico.

Através da função social que se arraiga aos conceitos destes institutos

jurídicos, a sociedade pode limitar os efeitos da lex mercatoria que orienta o

mercado internacional. O contrato movimenta todo este processo de abertura de

mercados288 e, por essa razão, não pode deixar de ser lembrado como importante

instrumento para a promoção da justiça social.

286 BARCELONA, P. Diritto privato e società moderna. Napoli: Jovene Editore, 1996, p. 259.

287 LOUREIRO, F. C. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar,2003, p.108.

288 Como observa Vera Maria Jacob de Fradera: “Assim sendo, levando em consideração ofato de que o homem deva ser o ponto para onde convergem todos os interesses, e, na medida emque o direito contratual se adapte efetivamente a esse movimento, ele estará, sem dúvida, inseridona via do progresso e do desenvolvimento”. (FRADERA, V. M. J. de O direito dos contratos noséculo XXI: a construção de uma noção meta nacional de contrato decorrente da globalização, daintegração regional e sob a influência da doutrina comparatista. In: DINIZ, M. H.; LISBOA, R.S.(Coord.) O direito civil no século XXI: São Paulo: Saraiva, 2003, p. 569).

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4.2 A FUNÇÃO SOCIAL COMO ELEMENTO DETERMINANTE DE UM

CONCEITO RACIONAL DE EMPRESA

A partir da definição da figura do empresário surge o direito empresarial como

o direito dos empresários e das empresas289. É fundamental evidenciar que,

embora possua seu foco central na atividade empresária, também estas normas

se encontram fortemente iluminadas pelos princípios e valores expressos na

Constituição. Como afirma Clayton Reis a empresa possui um papel central no

desenvolvimento econômico de uma sociedade, uma vez que a partir dela são

geradas riquezas, ampliam-se os quadros de empregos, etc.:

Na modernidade a empresa vem sendo considerada como o centro daatividade social e econômica, em razão da produção de bens destinadosao consumo. Por sua vez, em face da geração de empregos e tributospara o Estado, a empresa assume importância expressiva no mundocontemporâneo. O seu destaque na ordem social não se resume apenasem seu potencial econômico, mas reflete no equilíbrio político do Estadoonde desenvolve suas atividades. Na medida em que contribui para ageração de empregos e fortalece a economia através de contribuiçõestributárias, propicia o desenvolvimento das atividades laborais, bemcomo, permite ao Estado direcionar os recursos captados para asatividades sociais, tais como segurança, saúde, educação, saneamento eoutras, definidas no art. 114 e seguintes da Constituição Federal de1988.290

O desenvolvimento prescinde, portanto, da atividade empresarial. A

concorrência e a competitividade demandam em um constante aprimoramento da

atividade empresarial, fazendo com que muitas empresas se reúnam através de

contratos para melhor condução de seus objetivos ou até para sua manutenção no

mercado.

A formação de conglomerados empresariais traz conseqüências para a política

econômica mundial, especialmente no tocante à política de cortes de

trabalhadores. Para reduzir os custos da cadeia produtiva as empresas investem

289 GONTIJO, V. J. M. O empresário no Código Civil Brasileiro. In: Revista de DireitoMercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, vol. 135, n. 63, p. 77, jul/set de 2004.

290 REIS, C. A Responsabilidade Civil do Empresário em face dos novos comandos legislativoscontidos no Código Civil de 2002. In: GEVAERD, J.; TONIN, M. M. Direito Empresarial eCidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2004, p. 55.

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em tecnologia291 e passam a reduzir o custo da mão-de-obra. A recessão

resultante é sentida principalmente nos países subdesenvolvidos ou em

desenvolvimento.

A importância da empresa no desenvolvimento da economia é tão grande que

a maioria das contratações da atualidade pode ser dividida em dois grandes

grupos: os contratos consumeristas e os empresariais292. A relação entre

empresas e consumidores também é influenciada pela abertura dos mercados,

trazendo ênfase às contratações internacionais. Essa economia transnacional cria

obstáculos para o respeito às regras tradicionais estatais, criando dificuldades

para que grandes empresas possam ser exigidas de sua função social.

Algumas empresas do planeta possuem um prestígio econômico acima de

alguns Estados, com poderes para influenciar a elaboração de políticas que lhes

pareçam interessantes. As associações empresariais fazem com que estas

empresas se tornem forças exponenciais, com enormes potenciais de emprego e

expansão.293

Diante deste quadro, lembre-se que a lógica do mercado é informada através

da solidariedade constitucional para a busca das exigências que se extraem do

princípio da dignidade da pessoa humana. Nesse entendimento a funcionalização

da autonomia privada é uma condição de garantia de todo sistema e, por meio

dela conclui-se que os institutos jurídicos se encontram comprometidos com a

concretização dos objetivos sociais. Assim, da mesma forma que o contrato e a

291 Para Paul Hugon: Impossível fugir às conseqüências desse progresso tecnológico que crioumeios de transporte cada dia mais aperfeiçoados e rápidos, tanto para os homens quanto para oseu pensamento e os produtos de seu trabalho. Nada de admirar, pois, se tenha desenvolvido,com efeito, no decurso destes últimos séculos, a concepção de se compor a humanidade dehomens iguais entre si: a noção de economia mundial pode sobrepor-se, assim, de modo cada vezmais imperativo, à noção de economia nacional. (HUGON, P. História das DoutrinasEconômicas. 8. ed. São Paulo: Atlas, 1966, p. 462)

292 LORENZETTI, R. L. Tratado de los contratos: parte general. Santa Fé: Rubinzal Culzoni,2004, p. 80.

293 Calcula-se que um grupo de 100 grandes empresas transnacionais seja responsável hojepela metade do comércio mundial, sendo que as 10 maiores corporações industriais possuemfaturamento anual superior a 1 trilhão de dólares, número bem maior que o PIB do Brasil, 9ªeconomia mais industrializada do mundo. (ARNOLDI, P. R. C.; MICHELAN, T. C. de C. NovosEnfoques da Função Social da Empresa numa economia globalizada. In: Revista de DireitoMercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. São Paulo, Malheiros, vol. 117, p. 158, jan/marde 2000).

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propriedade, também a empresa se encontra vinculada ao desenvolvimento do

progresso coletivo.

A construção de uma argumentação sólida para a funcionalização da empresa

vai contra os postulados tradicionais do Estado Liberal que não autorizava o

controle estatal nos rumos da economia. Com o advento do Estado Social se

iniciou uma série de limites negativos à iniciativa privada, para a finalidade de

correção das desigualdades e manter a operabilidade do sistema. Sob essa ótica

a preocupação com as necessidades sociais passa a influenciar também a teoria

de construção da pessoa jurídica:

A ordem jurídica só tem sentido quando orientada basicamente pordeterminados valores sem os quais ela não tem justificativa possível. Taisvalores radicam, em última análise, na dignidade da pessoa humana, nafundamental existência de direitos dos homens, e de igualdade entretodos os homens. A pessoa jurídica, realidade acidental e subordinada aesses valores reitores da ordem jurídica, existe em função dedeterminados fins, considerados humana e socialmente relevantes.294

Assim, partindo da idéia de que o mercado desenvolvido por meio de suas

próprias leis gera grandes e permanentes males295 se criou a necessidade da

intervenção estatal para propiciar um diálogo equilibrado entre os interesses

econômicos privados e a busca do progresso coletivo.

A preocupação com o atendimento às necessidades sociais passou a integrar

as normas que regulam as Sociedades Anônimas (arts. 116 e 154 da Lei

6.404/76).296

294 OLIVEIRA J. L. C. de. A dupla crise da pessoa jurídica. São Paulo: Saraiva, 1979, p. 605.

295 GRAU, E. R. A ordem econômica na Constituição de 1988. 10. ed. São Paulo: Malheiros,2005, p. 30.

296 “Art. 154: O administrador deve exercer as atribuições que a lei e o estatuto lhe conferempara lograr os fins e no interesse da companhia, satisfeitas as exigências do bem público e dafunção social da empresa.; Art. 116: (...) Parágrafo único: O acionista controlador deve usar opoder com fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e temdeveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham epara com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar eatender.” (BRASIL. Lei nº. 6.404, de 15 de dezembro de 1976. Código Civil; Código Comercial;Processo Civil e Constituição Federal. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006)

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A função social da empresa parte da concepção de uma autonomia privada

funcionalizada, direito fundamental que se extrai da análise do art. 170 da CF/88,

que vincula a livre iniciativa aos ditames da justiça social.

Ainda que para alguns a crença na função social da empresa signifique fechar

os olhos para o mundo297, é certo considerar que a ordem econômica é vinculada

ao princípio da dignidade da pessoa humana.298 Sob este aspecto, atente-se para

o pensamento de Gustavo Tepedino:

Ao eleger a dignidade humana como valor máximo do sistema normativo,o constituinte exclui a existência de redutos particulares que, comoexpressão de liberdades fundamentais inatas, desconsiderem arealização plena da pessoa. Vale dizer que família, propriedade,empresa, sindicato, universidade, todo e qualquer tecido contratual devepermitir a realização existencial isonômica, segundo a ótica dasolidariedade constitucional.299

A empresa, independente de seu porte, contém em sua estrutura elementar a

busca de uma função social. Esta função promove a autonomia privada

constitucional, direito fundamental que traz em sua substância à vinculação aos

objetivos determinados pela justiça social.

Considerando a importância dos institutos jurídicos da propriedade e do

contrato para a atividade econômica, deve-se estabelecer a análise da função

social da empresa através de dois momentos essenciais.

Um primeiro momento necessariamente relaciona a empresa e a propriedade.

Em um segundo momento a função social da empresa é determinada pelo

contrato, considerando sua importância como principal instrumento300 que

impulsiona a atividade empresarial.

297 TOKARS, F. L. Função Social da Empresa. In: RAMOS, C. L. S. (Coord.). Direito civilconstitucional: situações patrimoniais. Curitiba: Juruá, 2002, p. 81.

298 André Ramos Tavares, ao comentar o caput do art. 170 da CF/88, aponta que já no art. 1ºhavia a referência à dignidade da pessoa humana. Conclui seu raciocínio sobre a Justiça Socialafirmando que: Trata-se, sem dúvida, no art. 170, do mesmo princípio constante do art. 1º aplicado(especificado) no âmbito econômico. Aliás, a dignidade da pessoa humana ou a existência dignatem, por óbvio, implicações econômicas. (TAVARES, A. R. Direito constitucional econômico.São Paulo: Método, 2003, p. 138)

299 TEPEDINO, G. O direito civil e a legalidade constitucional. In: Revista Del Rey Jurídica.São Paulo: Del Rey. Ano 6, n. 13, p. 23, 2 sem. 2004.

300 Segundo Pietro Barcelona o contrato é também o principal instrumento de justiça social dasrelações contemporâneas. “(...) Ovvero il contratto norma, che si sostituisce alla legge, rigida escarsamente flessible ai mutamenti, per organizzare la società civile e gli interesse social;

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4.2.1 Empresa e Propriedade: a Função Social dos Bens de Produção

A atividade empresarial é um dos diversos regimes proprietários que

representa a pluralidade do direito de propriedade. A classificação dos bens de

acordo com sua função econômica, segundo Orlando Gomes301, faz referência aos

bens de produção, compreendidos como aqueles utilizados pela empresa no

desenvolvimento de sua atividade econômica.

Ao reconhecer que a produção em massa alterou conceitos econômicos, o

autor reconhece que a própria natureza do capital mudou, uma vez que a riqueza

não mais pode ser medida apenas por aqueles que detêm a propriedade de bens

corpóreos. Também a concorrência e a iniciativa individual são prejudicadas à

medida que as empresas se agigantam. Por esta razão entendeu Orlando Gomes

que a estrutura da propriedade na sua concepção clássica deveria mudar para

atender as peculiaridades do processo produtivo.302

Com isso ocorre a desintegração do direito de propriedade303, deixando

transparecer a empresa como um regime proprietário que concentra elementos

humanos e materiais voltados ao desenvolvimento de atividades produtivas. A

empresa é hoje um poderoso instrumento de dominação, de grande valorização

amministra giustizia , si sosttituisce al soggetto pubblico, si candida in definitiva como principalestrumento regolatore.” (BARCELONA, P. Le instituzioni del diritto privato contemporaneo.Nápoli: Jovene Editore, 2002, p. 297).

301 Segundo Orlando Gomes: “É unicamente quanto à propriedade desses bens, exercida sob aforma de empresa, que se advoga a necessidade de utilizá-la em harmonia com o interesse social,sujeita, portanto, a limites, ônus e obrigações, sem que, todavia, se precise aceitar a idéia de quepassou a ser uma função social, porque, em verdade, o proprietário não chega a ser um órgão deatuação do interesse público e o empresário não é um funcionário do Estado. As limitações sejustificam porque a propriedade ou o controle da empresa atribui aos titulares do direito, ou aosgestores, considerável soma de poderes. No seu próprio âmbito, o poder hierárquico, o poderdiretivo e o poder disciplinar sobre o pessoal. Em relação a terceiros, principalmente quandoexercem monopólio virtual e concentram grande soma de recursos, controlando a riqueza, comovem acontecendo nos países desenvolvidos do mundo livre”. (GOMES, O. Novas dimensões dapropriedade privada. In: Revista dos Tribunais nº. 411, jan. 1970, p. 11)

302 GOMES, O. Novas dimensões da propriedade privada. In: Revista dos Tribunais nº. 411,jan. 1970, p. 11.

303 GOMES, O. A crise do direito. São Paulo: Max Limonad, 1955, p. 149.

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social. Quem reúne estes elementos é, dessa forma, um proprietário que reúne

poderes diretivos, legislativos e disciplinares304.

Tais poderes, no entanto, também não podem ser considerados absolutos. As

normas protetivas dos direitos dos trabalhadores e a regulação da concorrência

são alguns exemplos que, na época do Estado Social, já condicionavam a

propriedade dos meios de produção a uma espécie de função, ainda que

concebida como limites externos.

A lei das sociedades por ações também absorveu as concepções relativas à

função social dos bens de produção. Ao instituir a figura do acionista controlador

este diploma legal estabeleceu deveres destes para com a comunidade. A regra

do art. 116 da Lei das SA, segundo a doutrina do direito comercial, sempre

enfrentou longos debates, especialmente acerca do aparente conflito existente

entre o interesse da empresa em si e o interesse da sociedade:

Na realidade, essa teoria contém um germe destruidor do instituto dasociedade anônima, enquanto típico instrumento da iniciativa privada, amáxima economicidade da própria empresa é garantida pela leieconômica da tendência individual à maximização do lucro. Quando, naformulação dos fins da sociedade, a idéia do lucro cede seu lugar à idéiado interesse público, a empresa está madura para ser socializada ou, aomenos, como primeiro passo, para ser submetida a um pesado sistemade controles externos, a cargo dos órgãos administrativos ou judiciários,não só com respeito à legalidade, mas antes sobre o mérito de cada atode administração. Isso significaria o fim da autonomia da sociedadeanônima e a sujeição das deliberações da assembléia geral ao princípioda sanior pars, ressaltado pelos canonistas, que é a negação do princípiomajoritário305.

Aprofundando seu estudo, Modesto Carvalhosa reprime a interpretação de

sujeição da empresa ao controle estatal, nos moldes do institucionalismo da

empresa em si, teoria desenvolvida na Alemanha após a Primeira Guerra para

defesa da economia nacional contra a invasão dos capitais estrangeiros. A crítica

acima exposta tende a negar ao máximo o controle estatal direto sobre os fins da

companhia.

304 A empresa moderna, segundo Orlando Gomes, já foi comparada “às sociedades políticas,dizendo-se que nelas, vigora o regime da monarquia absoluta, em proveito do capital”. (GOMES,O. A crise do direito...p. 153)

305 CARVALHOSA, M. Comentários à lei de sociedades anônimas. 3. ed. São Paulo:Saraiva, 2003, v. 3, p. 482.

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Pietro Pierlingieri afirma que no atual estágio do ordenamento jurídico não se

pode admitir um interesse superior da empresa, mas apenas um interesse geral

que determina seu correto funcionamento, como fim social que realize uma

conexão justa entre finalidade social e individual306.

Os controladores, dentro deste entendimento, seriam os responsáveis para que

a companhia cumpra sua função a serviço do Estado e da comunidade. A

participação dos acionistas nas assembléias garante, de acordo Pietro Pierlingieri,

“não só os fins societários propriamente ditos, como também dos empregados, do

meio ambiente, da qualidade de produção, dos interesses, em suma, da sociedade

civil.”307

Deste modo, o art. 116 da lei das Sociedades Anônimas reconheceu que o

exercício de uma atividade empresarial envolve interesses internos e externos,

voltados de um lado para os interesses dos acionistas e, de outro, para os

interesses da coletividade. Fábio Konder Comparato admite que não há

dificuldade alguma em reconhecer deveres negativos ao empresário, derivados

do princípio da “neminem laedere”308.

Em contrapartida admite o autor grande dificuldade em apontar quais seriam os

direitos positivos do empresário, não indo além dos relativos à produção de lucro e

geração de empregos. Frise-se, todavia, que a concepção funcionalizada da

empresa demanda em alguns outros deveres que vão além daqueles que podem

ser gerados por sua atividade regular. O comportamento empresarial cria

expectativa no mercado de uma atuação honesta, transparente e correta. A título

de exemplo, pode-se citar o respeito que a atividade empresarial deve ter em

relação aos consumidores, ofertando produtos com a qualidade esperada e de

acordo com os padrões de confiança e boa-fé.

A atividade empresarial também comporta padrões objetivos de conduta nas

relações com o meio-ambiente. Independentemente de seu porte, a empresa que

306 PIERLINGIERI, P. Il diritto dei contratti fra persona e mercato. Napoli: EdizioniScientifiche Italiane, 2003, p. 233.

307 PIERLINGIERI, P. Il diritto dei contratti fra persona e mercato. Napoli: EdizioniScientifiche Italiane, 2003, p. 485.

308 COMPARATO, F. K. Estado, Empresa e Função Social. In: Revista dos Tribunais, SãoPaulo: RT n. 732, ano 85, out. 1996, p. 44.

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desrespeita as regras do direito ambiental será responsabilizada justamente por

ofender um direito fundamental à dignidade da pessoa humana.

A constatação da função social dos bens de produção é fato que proporciona a

atual visão dinâmica do direito de propriedade e justifica a função social da

empresa.309 Considere-se que a função social coordena a atividade empresarial

para comportamentos positivos e negativos, dentro da função promocional que se

impõe através da solidariedade constitucional310.

Portanto, ao admitir a propriedade dos bens de produção como elemento que

permite a concretização dos valores existenciais da pessoa, também a empresa

possui como elemento estrutural de seu conceito a função social.

A propriedade privada é um dos princípios que coordenam a ordem econômica,

previstos no art. 170, inciso II, da Constituição de 1988. Este princípio não opera

efeitos de forma isolada, subordinando seu exercício aos ditames da justiça social

e da dignidade da pessoa humana. É de se ressaltar, sob este aspecto, a

observação de José Afonso da Silva:

O regime da propriedade denota a natureza do sistema econômico. Sereconhece o direito de propriedade privada, se ela é um princípio daordem econômica, disso decorre, só por si, que se adotou um sistemaeconômico fundado na iniciativa privada. A constituição o diz (art. 170).Os conservadores da constituinte, contudo, insistiram para que apropriedade privada figurasse como um dos princípios da ordemeconômica, sem perceber que, com isso, estavam relativizando oconceito de propriedade, porque submetendo-o aos ditames da justiçasocial, de sorte que se pode dizer que ela só é legítima enquanto cumprauma função dirigida à justiça social311.

Desta forma o Estado, através de uma política social corretiva, pode equilibrar

imperfeições da “lex mercatoria” e, com uso da concepção solidarística, determinar

o que efetivamente se produz e o que a sociedade é efetivamente capaz de

309 GRAU, E. R.. A ordem econômica na Constituição de 1988. 10. ed. São Paulo:Malheiros, 2005, p. 237

310 De acordo com Francisco Cardozo Oliveira: “A função social, neste sentido, é elementofinalístico que obriga o conceito de propriedade a assimilar os valores da realidade em queexercidos os poderes proprietários”. (OLIVEIRA, F.C. Hermenêutica e Tutela da Posse e daPropriedade. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 245).

311 SILVA, J. A da. Curso de direito constitucional positivo. 5.ed. São Paulo:RT, 1989, p.679.

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produzir para uma justa distribuição da riqueza312. Mas sua atuação deve ser

direcionada para assegurar igualmente a liberdade de atuação do empresário.

A função social altera a estrutura da propriedade em toda a complexidade de

seu regime, sendo conjugada na atuação empresarial de modo a atender

interesses diversos, tais como aqueles ligados aos empregados da unidade

produtiva e também aos consumidores.

Assim, quando a Constituição afirma a função social da propriedade também

indica, embora sem precisão terminológica, a funcionalização da empresa. Como

regime proprietário que é, a empresa possui em sua estrutura conceitual a

preocupação com o viés solidarístico que caracteriza o projeto constitucional,

devendo ser entendida como elemento de propulsão de um desenvolvimento

econômico humanitário.

O controle entre liberdade individual e fins sociais deve ser feito através do

Direito. É o judiciário que pode determinar os contornos precisos para a

concretização da função social da empresa313, concebendo a liberdade econômica

como meio de garantir a participação de todos no processo de crescimento do

país314 e o devido respeito aos valores existenciais do homem.

312 Para Pietro Pierlingieri a questão crucial da democracia econômica é a justiça fiscal.“tuttavia il livello di precisione redistributiva si realizza prioritariamente com i sistemi tributariproporzionali o progressivi che colpiscono direttamente il reddito, mentre ogni sistema di imposte‘indirette’, che colpiscono il consumo, attenua la progressicità del sistema tributário: l’imposizione èuguale independentemente dalla fascia di reddito di appartenenza del consumatore”. Também aevasão fiscal é lembrada pelo autor como “ il maggior peccato sociale, um atto di egoísmo e deirresponsabilità.” Assim, através de uma política tributária séria e comprometida com os finssociais, o Estado pode redistribuir a riqueza e reduzir as desigualdades. (PIERLINGIERI, P. Ildiritto dei contratti fra persona e mercato. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 2003, p. 252-253)

313 Há de se ressaltar aqui o julgamento histórico pelo STF da ADIN nº 2591 no qual restoureconhecida a aplicação do Código de Defesa do Consumidor às instituições Financeiras.(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADIN 2591/DF. Relator Ministro Carlos Velloso, julgado em07 jun. 2006, publicado no Diário de Justiça em 29 set. 2006. Disponível em < www.stf.gov.br>.Acesso em: 21 dez 2006.

314 PIERLINGIERI, P. Il diritto dei contratti fra persona e mercato. Napoli: EdizioniScientifiche Italiane, 2003, p. 257.

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4.2.2 Empresa e Contrato: Instrumento para o Desenvolvimento da Atividade

Empresarial

Ao conceber a importância do contrato como “mecanismo funcional e

instrumental da empresa”315 percebe-se uma influência direta deste último para a

funcionalização da atividade empresarial. Fernando Neto Boiteux considera que a

função social da empresa deriva do contrato por que:

Todas as sociedades nascem como contratos, ainda que as anônimassejam tratadas, a partir de sua constituição, como instituições. Como onovo Código Civil prevê a função social do contrato (art. 421) essa funçãose estende, naturalmente, ao contrato de sociedade, e deve serentendida como incidindo sobre a própria causa do negócio.316

A ligação com a função social do contrato se mantém mesmo com a ficção da

pessoa jurídica o que, faz com que a função social direcione o exercício da

atividade empresarial317. A vinculação de um interesse público à atividade

empresária surge como síntese e equilíbrio dos valores das pessoas, titulares de

igual status personae.318

Além da concepção ligada à constituição da empresa através do contrato,

também há que se considerar que as operações econômicas319 são a base das

relações contratuais, uma vez que todas elas tem por objeto a transferência de

riquezas.

A empresa utiliza o contrato de formas variadas, muitas vezes de forma mista

ou atípica, dificultando seu encaixe em modelos pré-determinados. Também é

comum o empresário se valer de uma combinação de contratos a fim de atingir a

315 ROPPO, E. O contrato. Coimbra: Livraria Almedina, 1988, p. 67.

316 BOITEUX, F. N. A função social da empresa e o Novo Código Civil. In: Revista de DireitoMercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Ano 125. São Paulo: Malheiros, p. 55, jan/março2002, p. 55.

317 BOITEUX, F. N. A função social da empresa e o Novo Código Civil. In: Revista de DireitoMercantil, Industrial, Econômico e Financeiro. Ano 125. São Paulo: Malheiros, p. 55, jan/março2002, p. 55.

318 PIERLINGIERI, P. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio deJaneiro: Renovar, 2002, p. 285.

319 ROPPO, Op cit., p.13.

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finalidade econômica perseguida.320 Toda esta gama de negócios traduz a

complexidade da relação contratual, que nem por isto justifica sua desvinculação

com a solidariedade constitucional.

A grande competitividade do mercado também faz com que as empresas

busquem formar parcerias por meio de uma série de contratos. Esse fenômeno de

interligação de contratos possui nomenclaturas variadas. No direito português é

chamado de “contratos coligados” e na Espanha por “contratos conexos”. No

direito anglo saxão recebem o nome de “networks” contratuais ou “linked

contracts”. Ainda que cada país receba a situação com algumas diferenças

doutrinárias, cabe resguardar o seu aspecto essencial: contratos estruturalmente

diferenciados, todavia, unidos por um nexo funcional-econômico que implica em

conseqüências jurídicas.321

A rede de contratos que se forma através da atividade empresária é

claramente perceptível na atualidade, uma vez que esta se vale de contratações

diversas para a formação de parcerias de distribuição e fornecimento322. Também

o crescimento demasiado de algumas empresas acarreta a descentralização de

parte de suas atividades produtivas para outras empresas menores. Esta

conjunção de contratos possui um objetivo comum: a promoção e o

desenvolvimento da atividade empresarial. Sem estes contratos a empresa não

consegue operacionalizar no mercado e até mesmo, em alguns casos, manter sua

existência no plano fático.

320 LORENZETTI. R. L. Tratado de los contratos: parte general. Santa Fé: Rubinzal Culzoni,2004, p. 234.

321 LEONARDO, R. X. Redes contratuais no mercado habitacional. São Paulo: RT, 2003, p.129.

322 A topologia das empresas é explicada por Milton Santos: “As grandes empresas organizamsuas atividades criando circuitos espaciais de produção. Para funcionar, elas devem regular seusprocessos produtivos – hoje dispersos no território -, sua circulação, sua contabilidade, etc. Issosignifica, de um lado, a existência de imperativos microeconômicos, internos à firma, capazes devincular, por exemplo, áreas de cultivo e lugares de elaboração dos seus produtos e dasembalagens necessárias, e, de outro, a existência de imperativos macroeconômicos, como suaparticipação mais ou menos explícita na fixação de tarifas de serviços e insumos. Essesimperativos supõem a permanente negociação da empresa com o poder público e com outrasempresas, para definir seu comportamento político e os setores e lugares que lhe interessam. Édesse modo que se definem e redefinem as localizações, as topologias de empresas”. (SANTOS,M. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p.153).

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A condução de uma atividade empresarial na atualidade envolve custos

elevados e apresenta alguns riscos que devem ser calculados previamente, ainda

que possam ser de difícil determinação, tais como os prejuízos causados aos

consumidores por produtos defeituosos ou ainda os riscos de degradação

ambiental. Os custos de manutenção da atividade através dos gastos com

empregados também acabam por motivar o empresário a realizar o outsourcing,

que desloca a titularidade laboral para outras empresas323.

Nestas redes contratuais324 há uma interligação de negócios voltados à

viabilidade da atividade econômica, o que faz com que o evento em um de eles

acabe repercutindo em outros. De fato, a visão de uma relação obrigacional

complexa e dinâmica faz com que as redes contratuais passem a ganhar maior

atenção da doutrina, como bem ressalta Claudia Lima Marques:

A contribuição desses estudos, como frisamos anteriormente, foi grande,pois, observando as relações “não-contratuais”, as projeções de troca dosempresários e sua organização em networks, baseadas mais naconfiança, solidariedade e cooperação no que em vínculos contratuaisexpressos, desenvolveram a noção de um contrato aberto, de umarelação contínua, duradoura, ao mesmo tempo em que modificável pelosusos e costumes ali desenvolvidos e pelas atuais necessidades daspartes325.

Observe-se que a compreensão dessas redes contratuais não foge da

dimensão da teoria contratual nos moldes já definidos por esta pesquisa. Não se

trata aqui de um novo sistema, mas sim, de contratos que são interligados e que

se submetem aos mesmos princípios estruturais da teoria contratual em especial a

função social e a boa-fé objetiva326.

323 ITURRASPE, J. M. Contratos conexos: grupos y redes de contratos. Santa Fé: RubinzalCulzoni, p. 33.

324 LEONARDO, R. X. Redes contratuais no mercado habitacional. São Paulo: RT, 2003, p.133.

325 MARQUES, C. L. Contratos no código de defesa do consumidor. São Paulo: RT,2002,.p. 969.

326 Ainda quando é considerada a empresa estrangeira, este raciocínio se impõe. Afuncionalização da atividade empresarial prescinde de uma análise que compreenda o devidorespeito aos objetivos constitucionais, de forma independente da origem do capital que determina a“nacionalidade” da atividade empresarial. Utilizando neste raciocínio o pensamento de MiltonSantos: “É também possível algumas empresas estrangeiras participarem de lógicas nacionais,quando se beneficiam dessa participação no mercado interno. Mas as diferenças entre empresas

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Partindo dessa premissa, constata-se que também estas redes devem cumprir

com os ditames da justiça social, de onde se impõe o pensamento de que a

solidariedade constitucional se reflete para o campo destes contratos, trazendo a

preocupação com o devido equilíbrio entre estes contratos e a satisfação dos

interesses coletivos.

Não se trata aqui de negar a liberdade de contratação empresária, mas de

compreender a função social da empresa como uma forma de harmonizar

interesses de empresários e consumidores, a fim de evitar que as

responsabilidades laborais, ambientais e consumeristas acabem por recair em

pequenas empresas que não possuem capital para fazer frente ao pagamento das

respectivas indenizações.327

Deste modo, a rede de contratos que forma a atividade empresarial vincula a

empresa “líder” com os deveres decorrentes de cada contrato que celebra, ainda

que intermediados por empresas de menor porte, mas que a ela se ligam em

parcerias vinculadas ao desempenho da atividade produtiva.

A rede de contratos também deve atender às expectativas geradas por todos

àqueles que interagem nesta rede. Os consumidores, destinatários finais do

produto ou do serviço, devem ter seus interesses atendidos e protegidos,

especialmente porque muitas vezes participam sem ter consciência exata da

cadeia de fornecedores que se forma para a produção. A função social autoriza

esta proteção assim como a comunicação de eventuais vícios que podem conduzir

à nulidade ou anulação do negócio328.

nacionais e estrangeiras paralelamente se reduz, desse ponto de vista, quando grandes empresasnacionais se tornam também multinacionais, sendo levadas a adotar lógicas globais dentro e forado território brasileiro”. (SANTOS, M. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 7ª ed.Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 258).

327 ITURRASPE, J. M. Contratos conexos: grupos y redes de contratos. Santa Fé: RubinzalCulzoni, p. 34.

328 Rodrigo Xavier Leonardo traz um exemplo elucidativo: “suponhamos que um consumidordeseje adquirir um imóvel para residência, sem deter, contudo, numerário suficiente para onegócio. Determinada construtora comunica a possibilidade de financiamento junto a umainstituição financeira que estaria ofertando crédito para compra daqueles apartamentos. (...)Passado alguns meses da aquisição, o consumidor percebeu a existência de gravíssimos einsanáveis vícios redibitórios que impediriam a regular utilização do imóvel. (...) Entendemos que,em razão da rede de contratos estabelecida entre o consumidor, a instituição financeira e aconstrutora, a eficácia do poder de redibir o contrato de compra e venda seria comunicável aocontrato de financiamento, possibilitando ao consumidor o desfazimento de ambos pela mesma

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Todas as empresas que formam a rede de contratos se encontram vinculadas

entre si por meio da função social, o que na prática se traduz em respeito aos

interesses externos que possam ser afetados por suas operações. A boa-fé

objetiva, informada pela função social, faz com que destas relações se extraiam

deveres laterais para a justa proteção dos terceiros que a estas operações se

vinculam.

Em resumo, a função social evita que estas redes se constituam em barreiras

de proteção aos interesses lucrativos puros em prejuízo dos interesses de

consumidores. A rede de colaboração empresária329, deste modo, é também

solidária, para o fim de se traduzir em uma gestão econômica responsável e

consciente de seu imenso potencial para a realização do bem comum.

Há que se considerar, ainda, que a função social do contrato se liga

diretamente ao princípio da conservação da empresa, uma vez que a regularidade

dos contratos de fornecimento, distribuição e todos os demais que se relacionam

com o processo de produção são firmados para manter as operações da empresa

no mercado.

Então, ao considerar o instrumento contratual como forma de condução da

atividade empresarial contemporânea, faz-se necessário admitir que a função

social da empresa deve ser considerada também em seu aspecto intrínseco e

extrínseco330.

A transparência nas relações entre empresários, a boa-fé no trato dos negócios

e a regularidade de suas relações contratuais são condições que se vinculam ao

seu perfil intrínseco. Extrinsecamente, a função social da empresa por meio do

contrato possui como fim a coletividade, preocupando-se com os efeitos de suas

contratações na comunidade. A responsabilidade do empresário frente aos

consumidores é um exemplo que se encaixa nesta forma extrínseca, que

demonstra que o interesse da empresa envolve muito mais que a mera obtenção

de lucro para os sócios e acionistas.

causa, em razão de uma para-eficácia entre esses contratos. (LEONARDO, R. X. Redescontratuais no mercado habitacional. São Paulo: RT, 2003, p. 196).

329 ITURRASPE, J. M. Contratos conexos: grupos y redes de contratos. Santa Fé: RubinzalCulzoni, p. 145.

330 NALIN, P. R. R. Do Contrato: conceito pós moderno em busca de sua formulação naperspectiva civil constitucional. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2006, p. 224

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4.3 A FUNCIONALIZAÇÃO DA EMPRESA NA PERSPECTIVA DO

CONTRATO E DA PROPRIEDADE

Com as análises anteriores buscou-se demonstrar que o Direito estatal

contemporâneo não pode ser substituído por um direito de mercado ou, um direito

das empresas331, absolutamente livre e descompromissado com os objetivos

constitucionais. É mediante a conjugação do proveito com a equidade, da utilidade

com a justiça332 que o contrato e a propriedade impulsionam a atividade

empresarial para a obtenção de um desenvolvimento econômico genuíno e

verdadeiro.

A função social da empresa não pode ser vista apenas como cláusula geral por

que serviria apenas como um horizonte hermenêutico, de cunho interpretativo a

ser utilizado pelos juízes nos casos concretos:

Considerada do ponto de vista da técnica legislativa, a cláusula geralconstitui, portanto, uma disposição normativa que utiliza, no seuenunciado, uma linguagem de tessitura intencionalmente “aberta”, “fluida”ou “vaga”, caracterizando-se pela ampla extensão do seu camposemântico, a qual é dirigida ao juiz de modo a conferir-lhe um mandato(ou competência) para que, à vista dos casos concretos, crie,complemente ou desenvolva normas jurídicas, mediante o reenvio paraelementos cuja concretização pode estar forma do sistema; esteselementos, contudo, fundamentarão a decisão, motivo pelo qual,reiterados no tempo os fundamentos da decisão, será viabilizada aressistematização destes elementos originariamente extra-sistemáticosno interior do ordenamento jurídico.333

A empresa possui a função social como elemento inerente ao seu conceito,

ligado intrinsecamente à sua própria construção, considerando a propriedade dos

bens de produção. Sua vinculação aos interesses sociais surge também do

contrato, especialmente quando considerada a base estrutural de desenvolvimento

da atividade empresarial contemporânea.

331 ITURRASPE, J. M. Contratos conexos: grupos y redes de contratos. Santa Fé: RubinzalCulzoni,.p. 133.

332 ITURRASPE, J. M. Contratos... p. 135.

333 MARTINS-COSTA, J. A boa-fé no direito privado. São Paulo: Editora Revista dosTribunais, 2000, p. 303.

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A formação de redes de colaboração empresárias compreende objetivos

econômicos que devem ser conjugados com os interesses sociais sob os quais se

estrutura o mercado. Através de sua formação contratual, tais redes de empresas

possuem em sua estruturação a função social, que produz efeitos entre os

empresários e também para com os terceiros que sofrem os efeitos destas

contratações.

A funcionalização da empresa através do contrato e da propriedade é condição

de realização do homem existencial, através do equilíbrio entre o interesse

individual e o coletivo. Fábio Konder Comparato assevera que a função social da

empresa pode apresentar riscos:

A tese da função social da empresa apresenta hoje o sério risco de servircomo mero disfarce retórico para o abandono, pelo Estado, de todapolítica social, em homenagem a estabilidade monetária e ao equilíbriodas finanças públicas. Quando a Constituição define como objetivofundamental da nossa República “construir uma sociedade livre, justa esolidária” (art. 3º, I), quando ela declara que a ordem social tem porobjetivo a realização do bem estar social e da justiça social, ela não estácertamente autorizando uma demissão do Estado, como órgãoencarregado de guiar e dirigir a nação em busca de tais finalidades.334

A funcionalização das situações subjetivas patrimoniais, em especial a

empresa, não pode ser deste modo interpretada. Ao confirmar que a empresa

possui em sua definição o elemento da função social, não se quer afirmar que o

Estado está na verdade afastado desta mesma preocupação. A solidariedade

constitucional impõe uma forma justa de distribuição da riqueza, mas não aniquila

a autonomia privada ou transfere para a atividade empresarial a satisfação de

todas as necessidades sociais.

A concepção da autonomia privada como direito fundamental resguarda o

campo da liberdade econômica responsável e protege a empresa dos excessos

que lhe podem vir a ser transferidos através da atuação estatal. Por esta

concepção, há meios para os particulares exigirem do Estado uma regulação

equilibrada o que se consegue através da institucionalização do mercado pelo

Direito. A função social da empresa não pode ser entendida como um limite

externo à atividade, muito menos como algo negativo a impedir o

desenvolvimento. Sua concepção funcionalizada também autoriza a promoção de

334 COMPARATO, F. K. Estado, empresa e função social. In: Revista dos Tribunais, p. 38-46,n. 732, out. 1996.

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incentivos fiscais, auxilia o processo de obtenção de crédito em condições

favorecidas e uma série de outras políticas favoráveis ao empresário.

Assim, não há que se considerar a funcionalização da empresa como um risco,

antes de tudo, deve ser vista como um instrumento de auxílio ao desenvolvimento.

Sob um viés solidarístico, a liberdade econômica e de concorrência devem ser

concebidas como “meios para a realização da justiça social e o pleno

desenvolvimento da pessoa”.335

A função social da empresa, portanto, caracteriza um regime de cooperação de

toda a sociedade a fim de garantir maior efetividade ao princípio da dignidade da

pessoa humana. Não se trata de diminuição ou transferência de

responsabilidades, mas apenas da necessária humanização do mercado através

da prevalência dos valores constitucionais.

Diante deste quadro o Estado de um lado deve garantir a exploração da

atividade empresarial e de outro se dedicar ao controle dos efeitos nocivos desta

exploração. Para Francisco Cardozo Oliveira:

As políticas econômicas desenvolvidas pelo Estado, para além deviabilizarem a atividade empresarial, buscam combater os efeitos sociaisnocivos do processo de expansão e de acumulação do capital, entre eleso do aumento do desemprego e da pobreza, e do esgotamento derecursos naturais, quase sempre mediante inversão de recursos públicosem infra-estrutura, necessária para a renovação do processo deprodução de riqueza.336

A responsabilidade social do Estado é a razão de ser de sua existência e,

portanto, caberá a este sempre demandar o máximo esforço para que os

princípios constitucionais da justiça social e da busca de uma vida digna

continuem sendo os objetivos principais pelos quais se pautam todos os institutos

jurídicos, sejam estes de caráter público ou privado. De acordo com Eros Roberto

335 PIERLINGIERI, P. Il diritto dei contratti fra persona e mercato. Napoli: EdizioniScientifiche Italiane, 2003, p. 257.

336 OLIVEIRA, F. C. Uma nova racionalidade ativa empresarial. In: GEVAERD, J.; TONIN, M.M. Direito empresarial e cidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2004, p. 116.

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Grau, “a ordem pública e a ordem privada não se sobrepõem, mas sim, caminham

de modo paralelo, muitas vezes entregando-se na condução da vida social.”337

É forçoso reconhecer que muitas vezes a política econômica desenvolvida pelo

Estado cede às pressões efetuadas pelas grandes empresas detentoras do

controle de determinados nichos de mercado338. A globalização também repercute

no sentido de impor a Lex Mercatoria produzida por empresas que dominam o

mercado internacional.

Sob este aspecto importa fazer valer a força da Constituição a fim de não

permitir a permanência de qualquer regramento que não coincida com os

princípios e valores fundamentais e que não compreenda as diversidades

regionais de cada Estado339. O risco de superação da constitucionalização340 pode

ser afastado pela supremacia dos direitos humanos na ordem internacional.

A funcionalização da empresa também compreende um sentido de proteção,

para o fim de preservá-la da voracidade patrimonialista do mercado341, o qual se

deve entender comprometido com a solidariedade social através da análise do art.

170 da Constituição da República.

337 GRAU, E. R. A ordem econômica na constituição de 1988. 10. ed. São Paulo: Malheiros,2005, p. 73.

338 O sistema financeiro que comanda o fluxo econômico da atualidade é regido segundoregras de controle internacionais. De acordo com o pensamento de Milton Santos: “ (...) ascondições políticas, instauradas com a desregulação, facilitam os fluxos de dinheiro além dasfronteiras nacionais e, com eles, impõem normas mundiais aos territórios nacionais. Na realidade,as novas regras do jogo nas finanças não negligenciam as fronteiras nacionais, mas as tornamoutra fonte de lucro, uma vez que são as grandes empresas mundiais que estabelecem os umbraise ganham com as conversões entre sistemas monetários, balanços do comércio exterior, juros,pagamento de royalties e outros instrumentos da macroeconomia. E a concessão a essas políticasglobais não cria senão ilusioriamente o enraizamento dos capitais. A ‘instabilidade territorial’desses capitais só faz aumentar”. (SANTOS, M. O Brasil: território e sociedade no início do séculoXXI. 7ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p. 185).

339 CASTRO, C. A. F.; NALIN, P. R. R. Economia, mercado e dignidade do sujeito. In:TEPEDINO, G. Diálogos de direito civil: construindo a racionalidade contemporânea. Rio deJaneiro: renovar, 2002, p. 116.

340 RAMOS, C. L. S. A constitucionalização do direito privado e a sociedade sem fronteiras. In:FACHIN, L. E (Coord.) Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo.Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 18.

341 CASTRO, C. A. F.; NALIN, P. R. R. Economia, mercado e dignidade do sujeito. In:TEPEDINO, G. Diálogos de direito civil: construindo a racionalidade contemporânea. Rio deJaneiro: renovar, 2002, p. 121.

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112

Resta salientar que é o Estado que detém o dever de garantir o equilíbrio entre

a atividade econômica privada e a satisfação das necessidades sociais, integrando

as relações entre o direito e a economia. A atividade política, legislativa e judicial,

portanto, são instrumentos de garantia e proteção dos valores socialmente

relevantes.

Deste modo, a funcionalização da empresa se traduz em uma postura positiva.

Para Francisco Cardozo Oliveira342 a produção de bens recupera a sua “dimensão

qualitativa”, incentivando a releitura do papel da empresa e do empresário na

sociedade contemporânea. Também se traduz em “forma de superação dos

problemas ligados aos processos decisórios referentes à acumulação de capital e

os efeitos sócio-econômicos negativos que resultam deste processo”.

Na exploração da mão-de-obra, por exemplo, resguarde-se que os

trabalhadores tenham condições efetivas de inclusão social. Como bem aponta

José Affonso Dallegrave Neto343 “o trabalhador não deve ser tratado como

mercadoria, nem estar sujeito às leis de mercado”.

No campo do consumidor, tem-se que a defesa dos seus direitos é condição de

exercício da cidadania.344 A empresa, sob este aspecto, deve resguardar-se de

cuidados para garantir a qualidade esperada dos produtos e serviços que oferta no

mercado e para que os consumidores usufruam de uma efetiva liberdade de

escolha. A internacionalização da proteção ao consumidor também deve estar

condicionada aos deveres de transparência e boa-fé:

Se a proteção do consumidor era tema de direito interno, uma vez que aatuação das pessoas se restringia ao território do país, hoje com aabertura dos mercados a produtos ou serviços estrangeiros, com asfacilidades e o crescimento das telecomunicações, da conexão em redede computadores, do comércio eletrônico, o consumo extrapola asfronteiras nacionais. Houve uma mudança substancial na estrutura domercado, uma globalização também das relações privadas de consumo,

342 OLIVEIRA, F. C. Uma nova racionalidade empresarial. In: GEVAERD, J.; TONIN, M. M.Direito empresarial e cidadania: questões contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2004, p. 122.

343 DALLEGRAVE NETO, J. A. Notas sobre a subordinação e a função social da empresa à luzdo solidarismo social. In: GEVAERD, J.; TONIN, M. M. Direito empresarial e cidadania: questõescontemporâneas. Curitiba: Juruá, 2004, p. 211.

344 LOBO, P. L. N. Responsabilidade por vício do produto ou do serviço. Brasília: Jurídica,1996, 17.

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113

que põe à luz as falhas de mercado e os limites da noção de soberaniado consumidor no mercado atual. 345

Um último exemplo pode ser citado a fim de traduzir a função da empresa em

termos práticos. A proteção adequada do meio ambiente e a busca por

alternativas que garantam a continuidade do desenvolvimento social sem o

esgotamento dos recursos naturais é condição sine qua non para a garantia e

efetividade da dignidade da pessoa humana.

Especificamente no caso brasileiro a preocupação com o meio ambiente

cresce de importância tendo em vista a enorme disponibilidade de recursos

naturais. O devido aproveitamento e preservação do meio ambiente poderão fazer

diferença no desenvolvimento econômico do país pela crescente valorização

econômica destes recursos. A formação desta consciência e as atitudes de

preservação são deveres que se impõem a todos aqueles que participam da

atividade produtiva e, em especial, ao Estado e a empresa.

O devido aproveitamento dos recursos naturais reflete o grau de

desenvolvimento de uma sociedade. O Brasil ainda se encontra distante de

qualquer modelo de eficiência neste setor. Para os professores Henri Acselrad,

Selene Herculano e José Augusto de Pádua:

O sentido de cidadania e de direitos, por outro lado, ainda encontra umespaço relativamente pequeno na nossa sociedade, apesar da luta detantos movimentos e pessoas em favor de um país mais justo e decente.O desprezo pelo espaço comum e pelo meio-ambiente se confunde pelodesprezo pelas pessoas e comunidades.346

A função social da empresa, portanto, é fator reflexivo das inovações sociais e

compreende uma série de deveres e também comportamentos positivos que

pregam a defesa dos interesses coletivos. A autonomia privada constitucional

autoriza a funcionalização de todos os institutos jurídicos voltados à produção e

circulação de riquezas. A empresa, sob o viés do contrato e da propriedade,

possui sua função social como fundamento de sua operabilidade no mercado.

345 MARQUES, C. L.. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 310.

346 ACSELRAD, H. et al. Justiça ambiental e cidadania. Rio de Janeiro: Relume Dumará –Fundação Ford, 2004, p. 11.

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114

CONCLUSÃO

A pesquisa demonstra a concepção funcionalizada das situações subjetivas

patrimoniais na realidade contemporânea para construção da função social da

empresa. Partindo das transformações na forma de agir do Estado, demonstra-se

que a propriedade e o contrato sofreram alterações de acordo com os movimentos

políticos e econômicos. Estas modificações repercutiram nos contornos do

elemento base do direito privado, a autonomia privada. Ao sofrer influência direta

da Constituição, por sua vinculação ao princípio da livre iniciativa, há de se

conceber a autonomia privada como vinculada à defesa dos valores atinentes ao

pleno desenvolvimento da pessoa.

Os princípios fundamentais expressos na Constituição são critérios que

orientam todo o regramento infraconstitucional, autorizando uma busca de efetiva

proteção e permanente desenvolvimento da dignidade da pessoa humana em

qualquer esfera do ordenamento jurídico, seja este público ou privado. A anterior

dicotomia, como se demonstrou, apresenta-se hoje bastante relativizada.

Não é somente o Estado que detém o dever de garantir eficácia ao princípio da

dignidade da pessoa humana, esta preocupação traz necessariamente este

pensamento como uma ordem a ser seguida também pela iniciativa privada. A

liberdade de agir, portanto, é assegurada desde que os objetivos perseguidos

estejam de acordo com a dignidade social, que se traduz na busca de uma

igualdade substancial às relações jurídicas da atualidade, a fim de adequar as

desigualdades de cada situação jurídica em patamares que promovam a

solidariedade.

Em outras palavras, a solidariedade constitucional indica a necessária

compreensão da pluralidade das relações sociais. Após, remete à análise das

peculiaridades de cada relação de acordo com sua função sócio-econômica.

Assim, cada liberdade individual será devidamente mensurada para que se

compatibilize com a tutela existencial da pessoa.

De acordo com esse entendimento é forçoso reconhecer que o conteúdo

mínimo existencial do princípio da dignidade da pessoa humana comporta um

conteúdo econômico que não é só imposto ao Estado, mas também a todos os

particulares.

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A liberdade de iniciativa, portanto, é um princípio fundamental da República

Federativa do Brasil (art. 1º, IV, CF/88), mas que terá sua aplicação avaliada de

acordo com as peculiaridades típicas de cada relação jurídica. Em uma concepção

funcionalizada da autonomia privada, por exemplo, a propriedade envolve

liberdade, desde que exercida em consonância com a estrutura da função social.

A liberdade de contratar, por sua vez, é igualmente consagrada através da

Constituição, porém igualmente vinculada à busca da igualdade substancial de

cada contratante.

O contrato e a propriedade são fundamentos do mercado, instrumentos que

permitem a circulação e produção de riquezas na economia capitalista. A

funcionalização destes institutos importa no reconhecimento de uma relação

equilibrada entre liberdades individuais e interesses sociais. O Direito é a garantia

deste equilíbrio.

A autonomia negocial parte do reconhecimento que os agentes emissores da

vontade nem sempre podem ser considerados partes iguais de uma relação

jurídica, o que em contrapartida modificou o próprio eixo interpretativo do negócio

jurídico: a supremacia da vontade.

Os contratos atuais, dentro da visão unificada do direito das obrigações,

também não podem deixar de ser concebidos fora da esfera de irradiação dos

princípios constitucionais fundamentais. Sua interpretação deve seguir os

patamares da boa-fé objetiva, como novo paradigma de segurança.

A propriedade como situação jurídica complexa envolve a pluralidade dos

diversos regimes proprietários. Cada um destes, porém, detém a função social

como elemento estrutural de seu conceito.

A condução da atividade econômica depende, portanto, da plena eficácia dos

direitos fundamentais, traduzindo-se no homem como centro do ordenamento

jurídico. A valorização do ser sobre o ter é um caminho seguro para o

desenvolvimento da sociedade, seja esta de caráter nacional ou mundial. Os

direitos humanos são elevados à categoria de fundamento maior da sociedade

internacional a fim de equilibrar as conseqüências negativas do processo de

globalização

Sob essa perspectiva, a liberdade de iniciativa que consagra a autonomia

privada como um direito fundamental compreende não apenas o contrato e a

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propriedade, mas também a empresa. A funcionalização das situações subjetivas

patrimoniais incrementa o processo de geração de riquezas, incutindo a

preocupação de que o genuíno desenvolvimento só acontece com a correta

distribuição de renda e com a satisfação das mínimas exigências que determinam

o princípio da dignidade da pessoa humana.

O artigo 170 da CF/88 consagra, além dos princípios fundamentais da livre

iniciativa e valor social da iniciativa humana, outros nove princípios constitucionais

da ordem econômica. Toda esta gama de princípios assegura a existência digna,

evidenciando-se aqui novamente a busca do equilíbrio entre propriedade privada,

livre concorrência, direito do consumidor, defesa do meio ambiente, dentre outros.

Desse modo, o pleno desenvolvimento da personalidade se impõe no campo

econômico para a redução das desigualdades e garantia de condições mínimas de

subsistência. Também a dignidade opera no sentido da busca da solidariedade, no

sentido de evitar que o interesse individual venha a causar prejuízos ao progresso

coletivo.

Por esse raciocínio, não há como se negar a função social da empresa. A sua

vinculação aos interesses sociais se dá através da autonomia privada

constitucional, não autorizando qualquer raciocínio contrário. A funcionalização da

empresa decorre do contrato e da propriedade, verdadeiros fundamentos do

mercado.

Sob esse viés, a condução da atividade empresarial transcende a mera

lucratividade para a concepção de uma série de deveres ao empresário, voltados

à preservação adequada dos recursos naturais, o bem estar dos trabalhadores, a

responsabilidade pela qualidade e segurança dos produtos ofertados no

mercado,etc.

Valorize-se a grande importância das normas consumeristas para a

transformação na consciência cultural da sociedade. O consumidor consciente

exige que a empresa adote procedimentos responsáveis e desta forma impulsiona

o mercado para a concretização de sua função social. Como não há meios de

retroceder a consciência popular, por esta razão, a funcionalização da empresa

pode ser vista como uma exigência social.

A funcionalização da empresa compreende ainda a complexidade das redes

contratuais. A formação de pactos voltados à distribuição, produção e

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fornecimento, dentre outros, responsabiliza todos os integrantes dessas

complexas redes interligadas. Em um mercado globalizado, a importância das

redes contratuais se acentua e, por essa razão, não há como se afastar a função

social destas formações. A grande empresa que normalmente comanda esta rede

contratual, mesmo que estrangeira e sem sede no Brasil, não pode deixar de

respeitar os princípios e valores fundamentais do Estado brasileiro.

Por fim, saliente-se que a força econômica não pode ser utilizada como meio

de manutenção das desigualdades sociais. A concentração de capital e a

globalização devem ser redimensionadas para um adequado aproveitamento da

riqueza gerada por grandes grupos econômicos.

A iniciativa privada está comprometida com o progresso coletivo. Tal busca

possui estreita ligação com a efetividade da dignidade humana. Especialmente no

caso dos países da América Latina, a história do desenvolvimento econômico

sempre propiciou o enriquecimento de algumas classes, com grandes prejuízos

para uma maioria da população que viveu sempre em situação de aparente

marginalidade. Não se pode admitir um país como desenvolvido quando mais da

metade de sua população é pobre e sem condições de desenvolvimento de suas

potencialidades.

A funcionalização da autonomia privada se traduz em compromisso com

valores existenciais e sociais. A concepção de que o enriquecimento individual traz

progresso é ultrapassada quando se constata o poder de negociação do Estado

brasileiro no mercado internacional. Perde-se a força do conjunto em detrimento

do fortalecimento de economias de Primeiro Mundo.

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