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FACULDADE DE SÃO BENTO CURSO DE FILOSOFIA GUSTAVO TRINDADE DOS SANTOS A BEATITUDE OU O AMOR DIVINO E O PODER SOBRE OS AFETOS NA ÉTICA SPINOZANA São Paulo SP 2016

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FACULDADE DE SÃO BENTO

CURSO DE FILOSOFIA

GUSTAVO TRINDADE DOS SANTOS

A BEATITUDE OU O AMOR DIVINO E O PODER SOBRE OS AFETOS NA ÉTICA

SPINOZANA

São Paulo – SP

2016

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GUSTAVO TRINDADE DOS SANTOS

A BEATITUDE OU O AMOR DIVINO E O PODER SOBRE OS AFETOS NA ÉTICA

SPINOZANA

Trabalho de conclusão apresentado ao curso de

de Filosofia da Faculdade de São Bento, para

obtenção do título de Licenciatura.

Orientador: Prof. Dr. Franklin Leopoldo e

Silva.

São Paulo - SP

2016

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GUSTAVO TRINDADE DOS SANTOS

A BEATITUDE OU O AMOR DIVINO E O PODER SOBRE OS AFETOS NA ÉTICA

SPINOZANA

Trabalho de conclusão apresentado ao curso de

de Filosofia da Faculdade de São Bento, para

obtenção do título de Licenciatura.

Trabalho de conclusão de curso apresentado e aprovado pela banca examinadora em

____/____/____

Membros da Banca Examinadora

____________________________________

Prof. Dr. Djalma Medeiros

____________________________________

Prof. Dr. José Carlos Bruni

____________________________________

Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva (orientador)

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A Deus, pelo dom da minha essência e existência neste mundo.

A meus pais, Antonio e Maria, que não cessam de colocar-me em suas orações diárias.

A São Domingos de Gusmão, que audaciosamente inovou, quando instituiu no seio da vida

religiosa consagrada, “o estudo para pregação do Evangelho e salvação das almas”, como um

dos pilares do carisma de sua Ordem.

À Ordem dos Pregadores, em especial, aos confrades do Brasil, que acreditaram no meu

potencial para realizar este trabalho.

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Agradecimentos

O trabalho de I.E. (iniciação científica) que utilizei como trabalho de conclusão de curso foi

possível graças ao apoio da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São

Paulo), pela solicitude da Faculdade de São Bento, na pessoa do Diretor Acadêmico,

Professor Doutor Dom Carlos Eduardo Uchôa Fagundes Júnior, OSB, pelo respaldo

institucional do Regente de Estudos da Ordem dos Pregadores no Brasil, Frei Márcio

Alexandre Couto, OP, pelo anterior e pelo atual Mestre do Estudantado dos Dominicanos no

Brasil, respectivamente, Frei André Luís Tavares, OP, e Frei André Luiz Boccato de Almeida,

OP, e por toda generosa atenção e orientação do Professor Doutor Franklin Leopoldo e Silva.

Destaco aqui também, o fundamental auxílio do mestrando Guilherme Diniz da Silva, que

dirimiu muitas dúvidas acerca dos primeiros passos de como realizar uma I.E., bem como de

Guilherme da Franca Batista, no empréstimo oportuno de seus livros sobre Spinoza. A todos

eles, o meu muito obrigado.

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Spinoza

Gosto de ver-te, grave e solitário,

Sob o fumo de esquálida candeia,

Nas mãos a ferramenta de operário,

E na cabeça a coruscante ideia.

E enquanto o pensamento delineia

Uma filosofia, o pão diário

A tua mão a labutar granjeia

E achas na independência o teu salário.

Soem cá fora agitações e lutas,

Sibile o bafo aspérrimo do inverno,

Tu trabalhas, tu pensas, e executas

Sóbrio, tranquilo, desvelado e terno,

A lei comum, e morres, e transmutas

O suado labor no prêmio eterno.

[Obra “Ocidentais” (1880), de Machado de Assis.]

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Resumo

SANTOS, G. T. A Beatitude ou o Amor Divino e o poder sobre os afetos na ética spinozana.

2016. 31 fls. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) – Curso de Filosofia, Faculdade

de São Bento, São Paulo, 2016.

Para Spinoza, através do terceiro gênero do conhecimento ou da “ciência intuitiva”, é possível

conhecer as causas e a essências de todas as coisas, inclusive da imanência de Deus, mediante

o intelecto, como graus de potência. Nós, indivíduos, vivemos numa variação contínua de

potência, ora melhores ora piores, ora felizes ora infelizes, pois em todo e qualquer encontro

afetamos e somos afetados. As paixões se devem às ideias inadequadas, confusas, que os

nossos corpos possuem como causa inadequada de seus afetos, pelo desconhecer da natureza

dos corpos e suas relações. Pelo fato da Beatitude perpassar toda a última parte do livro

ÉTICA, e o papel dessa “satisfação do ânimo” é fundamental para o aumento da potência

humana e com efeito, menor padecer pelos afetos que são maus, qual o mecanismo que

devemos utilizar para evitar ou diminuir as paixões? Somente o amor divino, a virtude que é a

própria beatitude pode nos colocar em busca daquilo que possui maior realidade, a verdade

eterna.

Palavras-chave: Gêneros de conhecimento, Afetos, Imanência, Deus, Beatitude.

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Abstract

SANTOS, G. T. The Beatitude or the Divine Love and the power about the affects on ethics

spinozana. 2016. 31 f. Research work (Graduation) – Philosophy Course, Faculty of St.

Benedict, São Paulo, 2016.

For Spinoza, through the third kind of knowledge or "intuitive science", it is possible to know

the causes and the essence of all things, including the immanence of God through the intellect,

as degrees of power. We, individuals, live in a power continuously variable, sometimes better

sometimes worse, sometimes happy sometimes unfortunate because in each and every

meeting we affect and are affected. Passions are due to inadequate, confused ideas that our

bodies have as inadequate because of their affections, by ignoring the nature of the bodies and

their relationships. Given that the Beatitude permeates the whole last part of the book

ETHICS, and the role of this "satisfaction of mind" is essential for the increase of human

power and effect, less suffering the affects that are bad, which the mechanism that we use to

avoid or decrease the passions? Only divine love, virtue that is beatitude itself, can put us in

search of that which has the greatest reality, the eternal truth.

Keywords: Degree of knowledge, Affections, Immanence, God, Beatitude .

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SUMÁRIO

Introdução ................................................................................................................................. 9

1. PRIMEIRO E SEGUNDO GÊNERO DE CONHECIMENTO ..................................... 11

1.1. O conhecimento imaginativo e o racional ......................................................................... 11

1.2. Distinção entre Deus e o homem ....................................................................................... 15

1.3. O amor de Deus como um afeto ........................................................................................ 18

2. IDEIAS ADEQUADAS E INADEQUADAS .................................................................... 19

2.1. Os afetos “ativos” ou ações ............................................................................................... 20

2.2. Os afetos “passivos” ou paixões ........................................................................................ 20

2.3. O controle dos afetos ......................................................................................................... 21

3. A BEATITUDE OU O TERCEIRO GÊNERO DE CONHECIMENTO ..................... 23

3.1. Os afetos na afecção .......................................................................................................... 23

3.2. A potência da mente ou do espírito ................................................................................... 24

3.3. Duração da mente .............................................................................................................. 25

3.4. Deus como fonte das ideias adequadas ............................................................................. 26

Conclusão ................................................................................. Erro! Indicador não definido.

Bibliografia .............................................................................................................................. 29

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Introdução

A presente monografia versa sobre a noção spinozana do amor para com Deus,

referido à mente e provido do terceiro gênero de conhecimento na V parte do livro Ética,

intitulado A potência do Intelecto ou A Liberdade Humana. A questão que buscamos

desenvolver diz respeito à impossibilidade de controlar nosso poder de ser afetado pelas

afecções passivas e as ideias inadequadas mesmo mediante o uso do intelecto.

Deleuze questiona que, enquanto existirmos na duração, será inútil esperar que

tenhamos apenas alegrias ativas do terceiro gênero, ou apenas afecções ativas em geral.

teremos sempre paixões e tristezas com nossas alegrias passivas. Nosso conhecimento passará

sempre pelas noções comuns e o máximo a que podemos nos esforçar será para termos

proporcionalmente mais paixões alegres do que tristezas, mais alegrias ativas do segundo

gênero do que paixões, e o maior número possível de alegrias do terceiro gênero. Tudo é

questão de proporção nos sentimentos que preenchem nosso poder de ser afetado: trata-se de

fazer com que as ideias inadequadas e as paixões ocupem apenas a menor parte de nós

mesmos.

Ao compreendermos as essências, chegaremos à beatitude, condição do homem em

harmonia com a natureza . Este terceiro gênero de conhecimento, dito também como “amor

divino”, está referido às ações da mente a qual considera a si próprio e possui a ideia de Deus

como causa. Assim, Deus, ama a si mesmo e concomitantemente os homens, e estes amam

Deus com amor intelectual da mente, com relação à essência e à existência, gozando do que

Spinoza chama de satisfação do ânimo. Nada existe na natureza que seja contrário a este amor

intelectual, pois é oriundo da natureza da mente e por meio da natureza de Deus, ela própria é

considerada como uma verdade eterna, fato esse que para Spinoza, o conhecer mediado pelo

segundo e terceiro gênero de conhecimento possibilita padecer ou sofrer menos pelos afetos

que são contrários ou maus à nossa natureza.

Inicialmente, partimos do que é comum na formação do conceito claro e distinto dos

afetos no corpo, de qual forma utilizando a razão podemos conhecer as causas, ponto

fundamental para compreender as coisas como graus de potências e, assim, mudar da ordem

da composição das relações para a ordem das essências, mediante a ciência intuitiva, visando

à beatitude. Buscamos o porquê da impossibilidade de controlar nosso poder de ser afetado

pelas afecções passivas e as ideias inadequadas mesmo mediante o uso do intelecto. Assim,

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podemos observar três etapas de modo ascensional no interior da obra que parte do primeiro e

do segundo gênero de conhecimento, passa pelas paixões e ações, até obter Deus como fonte

maior das ideias.

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1. PRIMEIRO E SEGUNDO GÊNERO DE CONHECIMENTO

“A mente não tem de si própria, nem de seu corpo, nem dos corpos exteriores, um

conhecimento adequado, mas apenas um conhecimento confuso, sempre que percebe

as coisas segundo a ordem comum da natureza, isto é, sempre que está

exteriormente determinada, pelo encontro fortuito com as coisas1”.

SPINOZA

1.1. O conhecimento imaginativo e o racional

A filosofia spinozana perpassa todo um caminho na busca de obter ideias adequadas

de tudo aquilo que venha de encontro a nós, mediado pelas afecções, bem como distingui-las

das ideias inadequadas. Na sua célebre e inacabada obra Tratado da Reforma da Inteligência,

obra propedêutica às demais do referido autor, possui a meta de encontrar um bem superior a

todos os demais, que não fosse afetado por nada externo e lhe garantisse sempre uma

felicidade plena2, à revelia daquilo que os homens possuem como bens comuns, a saber, a

riqueza, as honras e o prazer dos sentidos, sobretudo do prazer oriundo da volúpia, ao qual

nosso ânimo se entrega e fica impedido de pensar em qualquer outra coisa.

Após uma análise da corrupção que os bens comuns causam, seja na conservação do

nosso ser, seja como ruína dos que os possuem, Spinoza mira sua empreitada na busca de um

novo propósito de vida contra os males humanos, pois é cônscio desta problemática: “toda a

felicidade ou infelicidade reside numa só coisa, a saber, na qualidade do objeto ao qual nos

prendemos pelo amor3”, pois quando a mente se ocupa do amor das coisas infinitas e eternas,

ela se afasta daqueles bens comuns, não obstante, reconheça desde então, que, embora veja

com clareza em seu espírito (mens), isso de nada isenta ou o livra das perturbações,

arrependimentos e tristezas.

1 E, II, 29, esc.

2 “Depois que a experiência me ensinou que tudo o que acontece na vida ordinária é vão e fútil, e vi que tudo que

era para mim objeto ou causa de medo não tinha em si nada de bom nem de mau, a não ser na medida em que

nos comove o ânimo, decidi, finalmente, indagar se existia algo que fosse um bem verdadeiro, capaz de

comunicar-se, e que, rejeitados todos os outros, fosse o único a afetar a alma (animus); algo que, uma vez

descoberto e adquirido, me desse para sempre o gozo de contínua e suprema felicidade”. (Spinoza, Tratado da

Correção do Intelecto, 1966, p. 85). 3 TCI, § 9.

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O ousado labor de nosso autor refere-se a procurar meios que o conduza à perfeição

almejada, ao “bem verdadeiro”, para fruir da natureza superior4 que é causa de uma ordem

eterna e segundo leis imutáveis da natureza. Com a finalidade de “corrigir o nosso intelecto”,

estabelece algumas regras de vida (como, por exemplo, falar ao alcance do povo de modo que

seja de fácil compreensão, gozar dos prazeres sensíveis só o suficiente à manutenção salutar,

utilizar os bens temporais, como o dinheiro, não com um fim em si senão como meio para

objetivar a reforma proposta) a fim de se chegar aos quatro modos de percepção como

método: o primeiro modo é uma percepção que temos mediante o ouvir dizer; o segundo

modo adquirimos quando obtemos uma experiência vaga, de algo novo que não é determinada

pela inteligência; o terceiro modo é dito da percepção de que uma essência se conclui da outra

(ou seja, no movimento do efeito para a causa); e, por último, o quarto modo onde há uma

percepção da coisa pela sua essência ou pelo conhecimento de sua causa próxima (ou seja, no

movimento da causa para o efeito, que é o modo pelo qual se compreende a essência das

coisas de forma adequada, sem imprecisão).

Este último modo é utilizado em demasia para o conhecimento de nossa natureza

bem como o conhecimento da natureza das coisas, pois alinha alguns elementos necessários

para atingir o fim proposto inicialmente: Conhecer exatamente a nossa natureza, que

queremos levar à perfeição, e a das coisas, para que possamos compará-las e diferenciá-las,

significa a compreensão do que podem e não podem admitir (pati); para confrontá-las com a

natureza e a força do homem, para chegar ao seu máximo de perfeição.

Assim, a partir das ideias fundamentais de sua metafísica e limitando-se ao seu

pensamento e o conteúdo de sua consciência, encontrará a realidade almejada após classificar

em três tipos distintos os gêneros de conhecimento precedidos pelos quatro modos de

percepção5, não obstante, estejam ligados entre si. É na segunda parte da Ética que se deduz

da natureza da alma humana as leis naturais utilizada como base para compreensão das

afecções6 e paixões

7 nos dois primeiros gêneros de conhecimento, respectivamente, o

conhecimento imaginativo e o conhecimento racional.

4 “O supremo bem ou a natureza superior é compreender a unidade e a totalidade das coisas, ou seja, o

conhecimento da união da mente com a Natureza inteira”. (Spinoza, Tratado da Reforma da Inteligência, p.

90). 5 TRI, § 19 e 20.

6 Por afecções (affectio) se designa aquilo em que uma coisa particular ou um modo é “afetado”, ou seja,

“modificado”, “alterado” no sentido de “transformado”. Neste sentido ela possui uma dimensão passiva. (...) De

fato, contudo, o termo caracteriza quase sempre em Spinoza, o corpo humano. As “afecções do corpo humano”

são as “imagens das coisas”: nosso corpo, constantemente submetido à ação das outras coisas, reflete-as, com

efeito, em certa medida. (RAMOND, Vocabulário de Spinoza, 2010, p. 16). 7 Os “afetos”, conhecidos também como “paixões”, é definido por Spinoza essencialmente como “a ideia de uma

afecção do corpo” (E, IV, 8 dem.; V, 4, cor.) de modo que os “afetos” dos homens reproduzem, na ordem do

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Uma afecção em determinado corpo é fruto advindo de sua própria natureza e da

natureza dos corpos exteriores. A alma é responsável por perceber essas afecções que se lhe

estão representadas, sem conseguir reproduzi-las objetivamente e, consequentemente, de

conhecer as referidas afecções adequadamente, pois as ideias, que em nossa alma

correspondem às afecções do nosso corpo, são ideias parciais, confusas e inadequadas, porque

nossas ideias são parte de um todo, isto é, um modo finito do pensamento infinito ou ainda

parte do entendimento infinito que é Deus8. Assim, temos um grande número de percepções e

formamos ideias gerais que se originam dos objetos singulares9 que se apresentam aos nossos

sentidos de uma maneira truncada, confusa e sem ordem para o entendimento e, por esta

razão, são conhecimentos que foram “experienciados erraticamente10

”.

“Ou seja, por se formarem, simultaneamente, no corpo humano, ao mesmo tempo,

tantas imagens, por exemplo, de homens, que elas superam a capacidade de

imaginar (...) para que a mente não possa imaginar as pequenas diferenças entre as

coisas singulares (como, por exemplo, a cor, o tamanho, etc., de cada um), nem o

seu número exato, mas apenas aquele algo em que todos, enquanto o corpo é por

eles afetado, estão em concordância, pois foi por esse algo que o corpo, por

intermédio de cada indivíduo, foi mais vezes afetado11

”.

Dito isto, Spinoza conclui que a mente humana só se representa de forma confusa,

obnubilada, sem o ordenamento no intelecto. Os dois primeiros modos de percepção oriundos

do “Tratado da correção do intelecto” são abundantemente utilizados. Sempre que a mente

humana tiver a percepção segundo a ordem comum da natureza12

, ordinária, ela não terá de si

mesma, nem do seu corpo, nem dos corpos que virão afetá-la, portanto, corpos exteriores, um

conhecimento adequado. Da ordem das paixões surge, assim, o conhecimento denominado do

“primeiro gênero, opinião ou imaginação”.

pensamento, as “afecções” do corpo humano. E, assim como toda “afecção” de nosso corpo aumenta ou reduz

sua potencia de agir, também, paralelamente, o afeto correspondente aumentará ou diminuirá nossa “potência de

pensar” (E, III e esc.). Os afetos são, pois, os nomes das constantes flutuações, para mais ou para menos, de

nossa potência. (RAMOND, Vocabulário de Spinoza, 2010, p. 17-18). 8 “Por Deus compreendo um ente absolutamente infinito, isto é, uma substância que consiste de infinitos

atributos, cada um dos quais exprime uma essência eterna e infinita”. Explicação: “Digo absolutamente infinito e

não infinito em seu gênero, pois podemos negar infinitos atributos àquilo que é infinito apenas em seu gênero,

mas pertence à essência do que é absolutamente infinito tudo aquilo que exprime uma essência e não envolve

qualquer negação”. (E, I, def. 6). 9 “Por coisas singulares compreendo aquelas coisas que são finitas e que têm uma existência determinada. E se

vários indivíduos contribuem para uma única ação, de maneira tal que sejam todos, em conjunto, a causa de um

único efeito, considero-os todos, sob este aspecto, como uma única coisa singular”. (E, II, def. 7). 10

E, II, 40 esc., 2. 11

E, II, 40 esc., 1. 12

E, II, 29 cor.

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“Nas ideias inadequadas ou imaginativas, somos passivos: as imagens se formam em

nós em decorrência da ação das coisas exteriores a nós. Nossa atividade se reduz a

associar imagens que nos parecem diferentes, para com elas formarmos ideias

imaginativas gerais ou universais sobrea realidade e sobre nós próprios. As ideias

imaginativas ou inadequadas não são falsas em si mesmas, pois correspondem ao

modo como realmente as coisas exteriores nos afetam: são parciais e confusas

porque se formam em nós sem que conheçamos as causas verdadeiras que as

produziram. Assim o erro é simplesmente ignorância. E o falso, ausência do

verdadeiro13

”.

O segundo gênero de conhecimento, racional e adequado, é dito da ordem da

composição das relações, tendo como objetivo a relação das coisas entre si, porque é um

conhecimento que parte dos efeitos14

para as causas15

, “necessariamente verdadeiro16

”. Assim,

almejando distinguir e separar no homem aquilo que é do intelecto daquilo que é imaginação,

o polidor de lentes já de início começa afastando duas modalidades de conhecimento

imaginativo, que formam nossas opiniões e crenças populares, comuns, que são o

conhecimento por ouvir dizer e o conhecimento por experiência vaga, amplamente utilizados

no primeiro gênero de conhecimento.

No segundo gênero de conhecimento, Spinoza diz repousar as noções comuns, tendo

em vista que a razão busca desvelar as relações compostas entre duas ou mais coisas e assim

levar em consideração o que é verdadeiramente comum entre as envolvidas. Tendo assim,

algo considerado universal, é que se pode explicar “a maneira como as coisas são produzidas

e se deduzem umas das outras, segundo suas relações de composição efetivas, no

encadeamento das causas e de suas interações17

”, base para a comprovação do que é

verdadeiro na parte e no todo, fruto do entendimento humano, capaz de conhecer

adequadamente18

.

E não é por menos. Sabendo que a mente humana é a própria ideia ou também o

conhecimento do corpo humano, ideia esta existente em Deus é que, mediado pelas afecções e

13

CHAUÍ, Espinosa: uma filosofia da liberdade, 1995, p. 39. 14

“Que é conhecer pela causa? É conhecer a origem necessária de alguma coisa conhecendo a maneira como é

produzida por outra. É conhecer a gênese de uma coisa determinada. Esse conhecimento nos é dado por uma

operação de nosso intelecto que produz a definição real ou a ideia verdadeira do objeto conhecido, dando-nos a

razão ou causa necessária de sua essência e de sua existência [...]. A teoria espinosana da definição real ou da

ideia verdadeira como conhecimento da gênese de seu objeto afasta uma tradição filosófica que viera desde

Aristóteles, que consistia em definir alguma coisa descrevendo suas propriedades e, por meio destas, a inseria

numa espécie e num gênero”. (Ibid., p.40). 15

TCI, §19. 16

E, II, 41, dem. 17

RIZK, Compreender Spinoza, 2006, p. 81. 18

“Quem, com efeito, sabe distinguir entre o verdadeiro e o falso é porque deve ter uma ideia adequada do

verdadeiro e do falso, isto é, é porque deve conhecer o verdadeiro e o falso por meio do segundo e do terceiro

gênero de conhecimento”. (E, II, 42 dem.).

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pelas ideias das afecções, nos é possível o conhecimento da existência e do que é o próprio

corpo humano, e daquilo que ele é existente em ato19

.

“Se, com efeito, o corpo não fosse o objeto da mente humana, as ideias das afecções

do corpo não existiriam em Deus, enquanto, ele constitui nossa mente, mas enquanto

constitui a mente de outra coisa, isto é, as ideias das afecções do corpo não

existiriam em nossa mente. Entretanto, temos as ideias das afecções do corpo. Logo,

o objeto da ideia que constitui a mente humana é o corpo, e o corpo existe em ato20

”.

“Ninguém, entretanto, poderá compreender essa união adequadamente, ou seja,

distintamente, se não conhecer, antes, adequadamente, a natureza do nosso corpo.

(...) Pois, de qualquer coisa existe necessariamente a ideia de Deus, ideia da qual

Deus é a causa, da mesma maneira que é causa da ideia do corpo humano21

”.

Dito isto, Spinoza decide, por enquanto, não entrar na questão acerca da natureza do

corpo humano, ponto nevrálgico que difere a mente humana das demais. E em quê ela é

superior? Ele afirma que, em geral, a mente humana é superior, em comparação com outra.

Aquele que pode perceber simultaneamente um número maior de coisas, isto é, de agir

simultaneamente sobre determinado número de coisas ou de padecer simultaneamente de um

número maior de coisas, e ter mais ações próprias, não dependendo de outros corpos para

agir, tanto mais possuirá capacidade de compreender distintamente.

1.2. Distinção entre Deus e o homem

Para o Apóstolo da Razão, Deus está presente em tudo o que existe e nada pode ser

concebido para além dele, o que significa que nenhuma coisa possa existir por si e em si22

.

Toda substância é substância por causa da inteligibilidade de sua essência e existência e, por

causar-se a si mesmo, causa a existência e a essência de tudo o que existe no universo. Tanto

a essência e a existência da substância possuem identificação com a força infinita ou à sua

potência, e essa identificação entre elas é chamada de eternidade: é um tempo sem começo e

não tem fim, ou seja, é ausência de tempo. Essa única substância que congrega em si mesma é

Deus.

19

E, II, 19, dem.; E, II, 22. 20

E, II, 13, dem. 21

E, II, 13, esc. 22

E, I, 15p.

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16

Portanto, só há duas maneiras de ser e de existir: a da substância e seus atributos e a

dos efeitos da substância, ou seja, a existência em outro e por outro. À substância em si e seus

atributos, Spinoza chama de “Natureza Naturante”, ou seja, a substância divina com seus

infinitos atributos (infinitos) como causa de si e causa imanente de todas as coisas; já aquilo

que é em outro e por outro, denominados modos da substância, recebe o nome de “Natureza

Naturada”, ou seja, os modos infinitos e finitos imanentes

à substância divina, produzidos pela atividade dos atributos, que constituem o mundo em que

vivemos. Estas duas, em unidade, formam como causa imanente a unidade eterna e infinita

que é o próprio Deus. Ele se exprime através dos seus diversos e infinitos atributos e, de toda

essa infinidade de atributos. Para nós homens e em nossa condição, é possível o conhecimento

adequado e verídico de apenas dois modos, a saber, o Pensamento e a Extensão.

“A atividade da potência do atributo Pensamento produz um modo infinito, o

Intelecto de Deus, e este produz todas as modificações ou modos finitos do

Pensamento, isto é, as ideias ou mentes ou almas. A atividade da potência do

atributo Extensão produz um modo infinito, o Universo Material, isto é, proporções

de movimento e de repouso que dão origem a todos os modos finitos da Extensão, os

corpos23

”.

A natureza divina é a substância da qual todos os atributos infinitos existentes ou não

existentes derivam necessariamente24

, pois para tudo aquilo que existe ou não existe deve-se

indicar a causa originária pela qual ela tenha ou não a existência, levando em consideração se

a razão ou causa pertence à própria natureza da coisa (interior) ou está fora dela (exterior) 25

.

“Como (...) a natureza divina tem, absolutamente, infinitos atributos, cada um dos

quais também exprime uma essência infinita em seu gênero, de sua necessidade

devem se seguir necessariamente, portanto, infinitas coisas, de infinitas maneiras

(isto é, tudo o que pode ser abrangido sob um intelecto divino)26

”.

Devido à necessidade27

da natureza divina, nada existe na natureza das coisas que

seja contingente28

, pois tudo está delimitado ou determinado a ser ou existir de uma maneira

23

CHAUÍ, Espinosa: uma filosofia da liberdade, 1995, p. 50. 24

E, I, 11p. 25

E, I, 15, esc. 26

E, I, 16, dem. 27

“Uma coisa é dita necessária em razão de sua essência ou em razão de sua causa. Com efeito, a existência de

uma coisa segue-se necessariamente de sua própria essência e definição ou da existência de uma causa eficiente.

Além disso, é por uma dessas razões que se diz que uma coisa é impossível: ou porque sua essência ou definição

envolve contradição ou porque não existe qualquer causa exterior que seja determinada a produzir tal coisa”.

(E, I, 33, esc.). 28

“Com efeito, uma coisa sobre a qual não sabemos que a sua essência envolve contradição ou, então, sobre a

qual sabemos muito bem que a sua essência não envolve nenhuma contradição, mas sobre cuja existência,

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delimitada29

, sendo impossível que algo opere por si, numa espécie de “livre-arbítrio”, isto é,

ter uma liberdade concebida sem determinação causal da vontade. Nem mesmo a teoria do

conatus30

, ou seja, uma duração ilimitada, uma força interna positiva para existir e conservar-

se na existência pode possibilitar essa liberdade, mesmo tendo em vista certa sofisticação para

a questão do monismo31

e a individuação das coisas.

“Para Spinoza, as coisas individuais na natureza não podem ser individuadas uma

das outras por uma diferença de substância, porque há somente uma única

substância. Ao invés disso, os indivíduos surgem somente como aproximações

finitas da substância: especificamente, como naturezas finitas que, dentro do atributo

da extensão, são distinguidas umas das outras pela tendência que suas ‘proporções

fixas de movimento e repouso’ essenciais têm em persistir (e, dentro do atributo do

pensamento, pela tendência das ideias desses indivíduos extensos em persistir) 32

”.

No tocante ao que é humano ou do homem, composto por um corpo33

e por uma

mente, concomitantemente, em sua essência, a ideia de um corpo que existe em ato, somos

formados por todo tipo de ideias, sejam elas adequadas ou inadequadas. Pela existência dos

nossos corpos, estamos diretamente mais propensos à atividade da imaginação, tendo em vista

que esta atividade é propriedade não da alma, mas do corpo. Num contínuo afetar e ser

afetado por outros corpos, de inúmeras maneiras, ao corpo é possibilitado criar imagens de si

pela imagem que os demais corpos possuem do nosso corpo.

“A imagem, por nascer do sistema das afecções corporais, é instantânea e

momentânea, volátil, fugaz e dispersa, não oferecendo a duração contínua da vida do

próprio corpo, mas instantes fragmentados dela. Nascida de encontros corporais na

ordem comum da Natureza, a imagem institui o campo da experiência vivida como

entretanto, por nos escapar a ordem das causas, nada de certo podemos afirmar, essa coisa, repito, não pode nos

parecer nem necessária nem impossível, e por isso dizemos que é ou contingente ou possível”. (E, I, 33, esc.). 29

E, I, 33, dem. 30

“As coisas singulares são modos pelos quais os atributos de Deus exprimem-se de uma maneira definida e

determinada, isto é, são coisas que exprimem de uma maneira definida e determinada a potência de Deus, por

meio da qual ele existe e age. E nenhuma coisa tem em si algo por meio do qual possa ser destruída, ou seja, que

retire a sua existência; pelo contrário, ela se opõe a tudo que possa retirar a sua existência. E esforça-se, assim,

tanto quanto pode e está em si, por perseverar em seu ser” (E, III, 6, dem.). 31

E, I, 14, dem. 32

GARRET, Spinoza, 2011, p.339. 33

“O que é o corpo humano? Um modo finito do atributo Extensão, isto é, um indivíduo extremamente

complexo constituído por uma diversidade e pluralidade de corpúsculos duros, moles e fluidos relacionados entre

si pela harmonia e equilíbrio de suas proporções de movimento e repouso. É uma unidade estruturada: não é um

agregado de partes, mas unidade de conjunto e equilíbrio de ações internas interligadas de órgãos, portanto é um

indivíduo. Sobretudo, é um indivíduo dinâmico, pois o equilíbrio interno é obtido por mudanças internas

contínuas e por relações externas contínuas, formando um sistema de ações e reações centrípeto e centrífugo, de

sorte que, por essência, o corpo é relacional: é constituído por relações internas entre seus órgãos, por relações

externas com outros corpos e por afecções, isto é, pela capacidade de afetar outros corpos e ser por eles afetado

sem se destruir, regenerando-se com eles e os regenerando. O corpo, sistema complexo de movimentos internos

e externos, pressupõe e põe a intercorporeidade como originária”. (CHAUÍ, Ibid., p. 54).

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relação imediata e abstrata com o mundo. Imediata, porque contato direto de nosso

corpo com os outros corpos. Abstrata, porque fragmentada, parcial, mutilada34

”.

Segundo Spinoza, é próprio da ideia imaginativa, ou seja, a consciência imediata que

a alma tem de seu corpo, um esforço anímico em comparar, associar, diferenciar, generalizar

e relacionar abstrações ou fragmentos, numa tentativa de estabelecer conexões entre as

próprias imagens para se compreender no mundo. A abertura da alma para aquilo que é

verdadeiro dar-se-á quando ela se abre para sua própria natureza, para sua potência própria,

para o poder de pensar e se põe em busca do conhecimento adequado.

1.3. O amor de Deus como um afeto

“Por afeto compreendo as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é

aumentada ou diminuída, estimulada ou refreada e, ao mesmo tempo, as ideias

dessas afecções. Explicação: Assim, quando podemos ser a causa adequada de

alguma dessas afecções, por afeto compreendo, então, uma ação; em caso contrário,

uma paixão35

”.

Em Deus, causa de nossas afecções, não existem ideias inadequadas, pois nele estão

contidas todas as mentes, a saber, de todas as coisas singulares, sendo que se segue sempre

um efeito do qual Deus é a causa adequada36

, e por isso, é considerado afetado dessa dada

ideia, não enquanto é coisa pensante, mas como afetado por outro modo de pensar37

. Deus é

causa de uma ideia, enquanto constitui a natureza da mente humana e não só enquanto isto,

mas também ao mesmo tempo, a ideia, que é a mente humana e também a ideia de outra

coisa, ou seja, possui uma percepção inadequada38

. Tendo o conhecimento que existe somente

a substância e os seus modos39

, sendo estes afecções dos atributos40

de Deus, só é possível por

uma operação ou existência de algo finito e determinado que tenha modificado Deus ou

algum atributo seu41

.

34

CHAUÍ, Ibid., p. 61. 35

E, III, def. 3. 36

“Chamo de causa adequada aquela cujo efeito pode ser percebido clara e distintamente por ela mesma” (E, II,

def. 1). 37

E, II, 9, dem. 38

E, II, 11, cor. 39

“Por modo compreendo as afecções de uma substância, ou seja, aquilo que existe em outra coisa, por meio da

qual é também concebido” (E, I, def. 5). 40

“Por atributo compreendo aquilo que, de uma substância, o intelecto percebe como constituindo a sua

essência” (E, I, def. 4). 41

E, I, 28, esc.

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“Os atributos são a estrutura necessária, infinita, eterna e diferenciada de um

universo infinito, necessário, eterno e diferenciado. Os modos infinitos, necessários

e eternos pela causa são as operações autorreguladas e autodeterminadas dessa

estrutura constituída pelos atributos, aquilo pelo que a atividade dos atributos produz

modos finitos42

”.

Esse atributo ligado diretamente a Deus, por fazer parte constituinte de sua própria

essência, da única substância, é o amor divino que diretamente nos afeta, em especial na nossa

relação corpo/alma. O amor divino, por ser efetivamente, “a alegria acompanhada pela ideia

de uma causa exterior” 43

, enquanto afeto em nós, é pura potência de agir que nos estimula em

buscar a compreensão adequada de tudo aquilo que nos cerca. Ao que chamamos, de “afetos

ativos”.

2. IDEIAS ADEQUADAS E INADEQUADAS

“Por ideia compreendo um conceito da mente, que a mente forma porque é uma

coisa pensante. Explicação. Digo conceito e não percepção, porque a palavra

percepção parece indicar que a mente é passiva relativamente ao objeto, enquanto

conceito parece exprimir uma ação da mente44

”.

Segundo Spinoza, o ser humano é constantemente afetado assim como afeta também

os corpos exteriores. Numa variação contínua de potência, ora melhores ora piores, ora felizes

ora infelizes, pois há imagens dos outros corpos em nós, como forma de ideias adequadas ou

inadequadas, não obstante todas elas sejam perfeitas naquele que constitui a essência de nossa

mente, isto é, em Deus45

. Em nossa sociedade não é a razão que domina, mas sim as paixões,

sejam elas quais forem. É possível manuseá-las de modo a obter resultados benéficos e

satisfatórios, ou seja, válidos em termos de eficácia quando provenientes diretamente da

razão46

.

A este propósito importa recordar que, se a imaginação é causa de erro, não é porque

a imagem mental, ou sensível, em si mesma seja falsa, mas porque nos falta um conhecimento

capaz de reduzi-la, ou seja, o conhecimento da verdade pode instruir-me acerca de seu caráter

ilusório, mas nem por isso a ilusão de tal erro cessa.

42

CHAUÍ, A nervura do real, 1999, p.881. 43

E, III, 13, esc. 44

E, II, def. 3. 45

E, II, 34, dem. 46

FERREIRA, A dinâmica da razão na filosofia de Espinosa, 1997, p. 466.

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2.1. Os afetos “ativos” ou ações

“Segundo Spinoza, o bem supremo da mente é o conhecimento, porquanto o bem

próprio da mente deve ser entendido como aquilo pelo que ela ativamente se esforça

por sua própria natureza, a saber, aquilo que ela tende a produzir ou a adquirir à

medida que é genuinamente ativa47

”.

Em nosso corpo, o conatus recebe o nome de apetite. Em nossa alma, o conatus

recebe o nome de desejo. Como corpo e alma não estão dissociados, podemos dizer que as

afecções do corpo são afetos da alma, e como consequência disso nós temos que as afecções

do corpo são imagens que na alma se dão como ideias afetivas ou sentimentos.

Todos os afetos estão relacionados aos desejos48

, seja pela alegria ou pela tristeza,

sendo que os desejos são particulares ou discrepantes de um ser para outro, a exemplo da

natureza e da essência. Nossa mente age enquanto concebe ideias adequadas oriundas da

mente, detentora de ideias verdadeiras quando se considera necessariamente a si mesma49

.

Somos ativos quando somos causa adequada daquilo que em nós ocorre, quando alcançamos a

autonomia possível à nossa condição de modos. Nisso, nenhum afeto relacionado à tristeza

pode estar ligado à mente que está tomada por afetos ativos e, necessariamente, age50

. Assim,

Spinoza alicerça o auxílio mútuo entre os homens, seres de infinitos desejos, na amizade, e

constrói os afetos ativos na firmeza e na generosidade.

2.2. Os afetos “passivos” ou paixões51

“Por surgirem de causas externas, as paixões podem impedir que os seres humanos

avaliem onde está seu verdadeiro bem ou sua verdadeira utilidade. Contudo, as

paixões também podem impedir que os seres humanos busquem o que lhes for útil

mesmo quando saibam o que isso é52

”.

As paixões possuem uma dupla significação na literatura spinozana, seja relacionada

ao corpo ou relacionada à mente. Quando relacionada ao corpo, diz respeito à atuação que

47

GARRET, Spinoza, 2011, p. 346. 48

“O desejo é a própria essência do homem, enquanto esta é concebida como determinada, em virtude de uma

dada afecção qualquer de si própria, a agir de alguma maneira”. (E, III, def. dos afetos). 49

E, III, 58, dem. 50

E, III, 59, dem. 51

“O afeto, que se diz pathema (paixão) do ânimo, é uma ideia confusa, pela qual a mente afirma a força de

existir, maior ou menor do que antes, de seu corpo ou de uma parte dele, ideia pelo qual, se presente, a própria

mente é determinada a pensar uma coisa em vez de outra”. (E, III, def. geral dos afetos). 52

GARRET, Spinoza, 2011, p. 344.

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21

este suporta por parte de agentes exteriores. Quando se considera a partir da mente, a paixão

identifica-se com a sensibilidade, com a imaginação e com a aparência, manifestando-se nas

ideias inadequadas e constituindo-se como equivalente afetivo do erro. Isso só finda quando

formamos uma ideia clara e distinta.

“As paixões, diz Espinosa, não são nem vícios nem pecados, nem desordem nem

doença, mas efeitos necessários do fato de sermos uma parte finita da Natureza

circundada por um número ilimitado de outras partes, que, mais poderosas e mais

numerosas do que nós, exercem poder sobre nós. [...] A passividade natural possui

três causas: a necessidade natural do apetite e do desejo de objetos para sua

satisfação; a força das causas externas seja maior do que a nossa; e a vida

imaginária, que nos dirige cegamente ao mundo, esperando encontrar satisfação no

consumo e apropriação das imagens das coisas, dos outros e de nós mesmos”53

.

Enquanto a mente padece ou se entristece, sua potência de agir é refreada, isso

quando envolve a natureza de nosso corpo e a natureza de um corpo exterior, e por termos

ideias inadequadas. Segundo Spinoza, a natureza de cada paixão deve necessariamente ser

explicada de maneira que exprima a natureza do objeto pelo qual fomos afetados. Há uma

gama considerável destes afetos que o autor trata consideravelmente, explicitando-os, sem

listar a totalidade deles por serem tantos quantos são as espécies de objetos54

.

Assim, um afeto “passivo” ou uma paixão deixa de ser paixão, enquanto referido à

mente, quando dela formamos um conceito claro e distinto. Quando as paixões vão sendo

afastadas ou enfraquecidas e, num movimento contrário, os afetos “ativos” ou ações vão se

aproximando, nossa força-conatus aumenta consideravelmente, através da descoberta da

essência de nossa alma e sua virtude, fruto do pensar e conhecer como sendo o mais forte dos

afetos, isto é, o afeto mais alegre.

2.3. O controle dos afetos

“De fato, [...] basta-nos, afirmo, compreender as propriedades comuns dos afetos e

da mente para que possamos determinar qual e quão grande é a potência da mente na

regulação e no refreio dos afetos55

”.

53

CHAUÍ, Espinosa: uma filosofia da liberdade, 1995, p. 65. 54

E, III, 56, esc. 55

E, III, 56, esc.

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22

O famoso “polidor de lentes56

” diz que “todos os afetos estão relacionados ao desejo,

à alegria57

ou à tristeza58

”. Assim, podemos explicar que nossa mente “age” quando ela passa

de uma perfeição menor para uma maior, isto é, quando ela possui afetos de alegria ou de

desejo que são oriundos - assim como também a tristeza59

- por serem o próprio desejo ou

apetite, quando ocorrem de serem aumentados ou diminuídos, estimulados ou refreados por

causas exteriores, sendo que as causas exteriores em questão são suas próprias naturezas ou

determinações necessárias para sua conservação em realizar aquilo que é próprio de cada um,

a saber, a alegria ou a tristeza, são polos ou extremos, não obstante, de alguma forma

participem da perfeição. Na alegria e na tristeza, segundo nosso autor, encerram-se todas as

outras definições de contentamento que são apenas espécies distintas ou de alegria ou de

tristeza. Tudo isso enquanto voltados para a funcionalidade das noções comuns que, de fato,

traçam uma linha tênue entre a razão e a ciência intuitiva.

“A razão apresenta-nos o real a partir de princípios gerais que o organizam, alerta-

nos para a semelhança existente nas coisas. Liga-se profundamente ao corpo, aos

corpos, a partir dos quais opera e se conhece, podendo-se dizer que é em função

deles que acede ao poder que é seu60

”.

Para Spinoza, as noções comuns são o conhecimento racional das relações internas

necessárias entre um todo e suas partes. As noções comuns e as ideias adequadas das

propriedades das coisas nos dão aquilo que as coisas são mediante princípios comuns nas

partes e no todo. Esses princípios comuns nos levam para as coisas, apontando para a

organização delas bem como a inteligibilidade do real, todavia sem haver uma interação,

união ou envolvimento com o objeto percebido.

É pelas noções comuns que se opera o conhecimento da união da mente com o todo

da natureza. Essas noções são comuns aos corpos. Ainda que houvesse um indivíduo que

tivesse as ideias ou que as formasse, elas não seriam menos comuns. E é isso que distingue os

axiomas das noções comuns.

56

Essa é a profissão que garantia o sustento para Spinoza. Após ser excomungado pela religião judaica e

deserdado por sua família, ele trabalhava polindo lentes de lunetas. 57

“A alegria é a passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior. Digo passagem porque a alegria

não é a própria perfeição, pois se o homem já nascesse com a perfeição à qual passa, ele a possuiria sem ter sido

afetado de alegria.” (E, III, def. geral dos afetos). 58

E, III, 59, dem. 59

“A tristeza é a passagem do homem de uma perfeição maior para uma menor. [...] Tampouco podemos dizer

que a tristeza consiste na privação de uma perfeição maior, pois a privação nada é. A tristeza, entretanto, é um

ato que, por isso, não pode ser senão o ato de passar para uma perfeição menor, isto é, o ato pelo qual a potência

de agir do homem é diminuída ou refreada.” (E, III, def. geral dos afetos). 60

FERREIRA, A dinâmica da razão na filosofia de Espinosa, 1997, p. 392.

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23

3. A BEATITUDE OU O TERCEIRO GÊNERO DE CONHECIMENTO

“O primeiro gênero de conhecimento tem como único objeto os encontros entre as

partes, segundo suas determinações extrínsecas. O segundo gênero vai até a

composição das relações características. Mas só o terceiro gênero diz respeito às

essências eternas: conhecimento da essência de Deus e das essências particulares tal

como elas estão em Deus e são concebidas por Deus61

”.

Spinoza buscava melhorar o caráter dos seres humanos através de uma melhor

autocompreensão. Ele era cônscio das limitações de que está cercado o conhecimento pelas

noções comuns ou do segundo gênero de conhecimento. Tanto a objetividade de suas

construções lógicas quanto o rigor no processo de cognoscibilidade não estão isentos de

resultados poucos eficientes e eficazes contra as paixões. Estas não esgotam o conhecer sobre

o todo, reconhecendo assim, que existem limitações no conhecimento pela razão. Isso é

trabalhado na IV parte da Ética, o que não segrega de maneira alguma a relevância da razão

como base para se chegar à virtude primeira. Na V e última parte do livro, Spinoza busca

“qual o grau e a espécie de domínio absoluto que ela [a razão] tem para refrear e regular os

afetos62

”.

O conhecimento intuitivo, inteiramente racional, é, por conseguinte, um

conhecimento completo, absoluto, que procede do conhecimento do atributo para “o

conhecimento adequado da essência das coisas”.

3.1. Os afetos na afecção

Tendo em vista que o precursor da filosofia moderna, René Descartes, por

excelência, trata com afinco este determinado tema, numa obra intitulada “Paixões da alma”,

faz-se necessário distinguir a acepção dos termos. À diferença de Descartes, Spinoza exprime

geralmente o termo “afetos”, diferente de “paixões” (apesar da ambiguidade gerada na parte

III da Ética, na definição geral dos afetos), pois para Spinoza nem todos os afetos63

são

“passivos” e, por isso, merecem ser classificados como “paixões”.

61

DELEUZE, Espinosa e o problema da expressão, 1968, p. 211. 62

E, V, prefácio. 63

“[...] O afeto, como Spinoza precisa em várias passagens, é, portanto, essencialmente ‘a ideia de uma afecção

do corpo’, de modo que os ‘afetos’ dos homens reproduzem, na ordem do pensamento, as ‘afecções’ do corpo

humano”. (Ramond, Vocabulário de Spinoza, p. 18.).

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24

“As afecções do corpo e as ideias das afecções da alma não são representações

cognitivas desinteressadas. Se fossem apenas representações, seriam apenas

experiências dispersas e sem sentido. São modificações da vida do corpo e

significações psíquicas dessa vida corporal, fundadas no interesse vital que, do lado

do corpo, o faz mover-se (afetar e ser afetado por outros corpos) e, do lado da alma,

a faz pensar. Qual o interesse vital? O interesse do corpo e da alma é a existência e

tudo quanto contribua para mantê-la. [...] Os humanos, como os demais seres, são

dotados de conatus, coma peculiaridade de que somente os humanos são conscientes

de possuir o esforço de perseveração na existência. Na verdade, os humanos não

possuem conatus, são conatus64

”.

Existem os afetos “ativos” ou de “alegria” que aumentam a capacidade de ação de

um indivíduo para a autopreservação65

em si do seu ser, isto é, a essência (que faz agir e viver

também, sob a condução da razão66

), apesar de que, as paixões ou afetos, quaisquer que

venhamos obter, possam superar as potências do homem e possuir uma origem exterior à do

homem67

. Referido à mente, o corpo é simultaneamente afetado de uma afecção por meio do

qual a sua potência de agir é aumentada ou diminuída68

. Assim, segundo o Apóstolo da razão,

apenas o conhecimento verdadeiro do bem e do mal não nos permite refrear qualquer afeto.

Entretanto é possível que este conhecimento, enquanto afeto, sendo mais forte que o afeto a

que se queira refrear, possa fazê-lo.

3.2. A potência da mente ou do espírito

“Como, portanto, a potência da mente, [...] é definida exclusivamente pela

inteligência, nós determinaremos os remédios contra os afetos [...] pelo

conhecimento exclusivo da mente, e desse conhecimento deduziremos tudo o que

diz respeito à sua beatitude69

”.

64

CHAUÍ, Espinosa: uma filosofia da liberdade, 1995, p. 63. 65

“À medida que imaginamos que uma coisa é necessária, afirmamos a sua existência; e, inversamente, à

medida que imaginamos que uma coisa não é necessária, negamos a sua existência. Por isso, o afeto

relativamente a uma coisa necessária é, em igualdade de circunstâncias, mais intenso do que o afeto relativo a

uma coisa não necessária”. (Spinoza, Ética, p. 281.) 66

E, IV, 24, dem. 67

“A natureza ou a essência dos afetos não podem ser explicadas exclusivamente por meio de nossa essência ou

natureza. Ela deve ser definida, em vez disso, pela potência, isto é pela natureza das causas exteriores,

consideradas em comparação com a nossa. Disso resulta que há tantas espécies de afetos quantas são as espécies

de objetos pelos quais somos afetados; e que os homens são afetados de diferentes maneiras por um único e

mesmo objeto, e sob essas condições, discrepam em natureza; e, finalmente que um único e mesmo homem é

afetado de diferentes maneiras relativamente a um mesmo objeto e, sob tal condição, ele é volúvel”. (SPINOZA,

Ética, p. 299.). 68

E, IV, 7, dem. 69

E, V, prefácio.

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25

O segundo e o terceiro gênero de conhecimentos estão diretamente associados, tendo

uma maior precisão do construto racional-discursivo, em relação àquilo que nos afeta, de

origem exterior a nós. A ordem em que se organizam os pensamentos e as ideias das coisas na

mente é a mesma em que ocorre a organização das afecções no corpo, ou seja, as imagens das

coisas no corpo. Extirpar a ideia que vem acompanhada aos afetos, significa a supressão da

forma à qual a ideia advém, pois o corpo é objeto da mente, não obstante, sejam únicos e

constituam um mesmo indivíduo, ora concebido sob o atributo do pensamento, ora sob o

atributo da extensão70

. Assim, é possível conhecer um afeto que está sob a nossa égide,

quando dela formamos um conceito claro e distinto.

3.3. Duração da mente

“[...] A condição do homem é essência de conflito: a razão aspira à totalidade eterna,

enquanto as preocupações da existência sensorial persistem somente enquanto

vemos as coisas de maneira temporal e parcial. A mensagem da ética de Espinosa

pode ser posta [...] nossa salvação consiste em ver o mundo sub specie aeternitatis e

conquistar, com isso, liberdade das amarras do tempo71

”.

Nossas ideias existem em Deus na medida em que Ele próprio constitui o espírito

humano. Para nós, é possibilitado participar das ideias adequadas que estão em Deus,

enquanto compartilhamos o intelecto infinito deste, embora a mente seja um modo definido e

determinado do pensar. Disso se segue que, “ela não pode ser causa livre de suas ações72

”,

pois está determinada nos seus “quereres”, ao que nosso autor define como vontade73

, sendo

que estes “quereres” podem afirmar ou negar algo e possuem uma causa que está diretamente

ligada à outra, e assim, sucessivamente, numa concatenação infinita de causas. Quanto mais

volto as minhas concepções para uma adequação, mais ultrapasso minha condição finita em

direção a Deus, pois “o espírito humano possui um conhecimento adequado da essência eterna

e infinita de Deus74

”. Como é possível que o espírito humano tenha acesso àquilo que é o

próprio ser eterno e infinito?

70

E, II, 21, esc. 71

SCRUTON, Espinosa, p. 80. 72

E, II, 48, esc. 73

“[...] Por vontade, compreendo a faculdade de afirmar e de negar, e não o desejo. Compreendo, repito, aquela

faculdade pela qual a mente afirma ou nega o que é verdadeiro ou o que é falso, e não o desejo pelo qual a mente

apetece ou rejeita as coisas”. (E, II, 48, esc.); “A vontade e o intelecto são uma só e mesma coisa [...] são as

próprias volições e ideias singulares que são uma só e mesma coisa”. (Ibid, p. 147.) 74

E, II, 47, esc.

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26

3.4. Deus como fonte das ideias adequadas

“A mente não concebe nada sob a perspectiva da eternidade senão à medida que

concebe a essência de seu corpo sob a perspectiva da eternidade, isto é, senão à

medida que é eterna. Por isso, à medida que é eterna, a mente tem o conhecimento

de Deus, o qual é, com certeza, necessariamente adequado. E, portanto, à medida

que é eterna, a mente é capaz de conhecer tudo aquilo que pode se seguir desse dado

conhecimento de Deus, ou seja, é capaz de conhecer as coisas por meio do terceiro

gênero de conhecimento, do qual a mente, à medida que é eterna, é, portanto a causa

adequada ou formal75

”.

A concepção de Deus76

para Spinoza encontra-se nas definições da primeira parte do

livro Ética. A partir desta concepção é que se derivam todos os modos e atributos que em

Deus existem, e por isso, fazem parte Dele. Ou melhor, todas as coisas existem em Deus e por

meio dele são concebidas. A razão pela qual os homens não têm um conhecimento de Deus

da mesma maneira que têm das noções comuns, é porque eles não podem imaginar Deus da

mesma maneira que imaginam os corpos (primeiro gênero de conhecimento).

Os afetos que são contrários à nossa natureza, a saber, os que são maus, nos afetam

de forma mais nociva quando nossa mente é ocupada por poucas causas ou objetos, de modo

que ela não possa exercer aquilo pelo qual ela é exclusivamente constituída, ou seja, para o

pensamento e estar livre para pensar. Disso se segue que, enquanto durar o corpo, sendo este

afetado pelas paixões, a mente estará sujeita a sofrer. Desimpedida desses afetos que são

maus, ela tem o poder de formar ideias claras e distintas e de deduzir umas das outras77

, dada

à compreensão das coisas exteriores sob um aspecto de necessariedade78

.

“Assim, quem tenta regular seus afetos e apetites exclusivamente por amor à

liberdade, se esforçará, tanto quanto puder, por conhecer as virtudes e as suas

causas, e por encher o ânimo do gáudio que nasce do verdadeiro conhecimento delas

e não, absolutamente, por considerar os defeitos dos homens, nem por humilhá-los,

nem por se alegrar com uma falsa aparência de liberdade. Quem observar com

cuidado essas coisas (na verdade, elas não são difíceis) e praticá-las poderá, em

pouco tempo, dirigir a maioria de suas ações sob o comando da razão79

”.

O poder da mente sobre os afetos consiste no próprio conhecimento de Deus e, se

ainda assim não conseguir suprimir as paixões faz com que estas ocupem um menor lugar na

mente. Esse conhecimento e amor para com Deus não podem ser maculados nem afetados por

nada. Quem compreende a si próprio, bem como os seus afetos, apesar de não possuir um

75

E, V, 31, dem. 76

Vide nota 8, p. 13. 77

E, V, 10, dem. 78

E, V, 6, dem. 79

Spinoza, Ética, p. 381.

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27

conhecimento perfeito80

deles, deve buscar construir uma regra de vida virtuosa, confiá-la à

memória e aplicá-la sempre que os afetos ruins venham a aparecer, para que nossa imaginação

e mente estejam livres. Esse conhecimento e amor para com Deus deve ocupar a maior parte

de nós, pois dele é que origina não apenas a existência, mas também a essência, pois Deus é

causa de si mesmo, Deus é causa primeira de tudo e causa eficiente de todas as coisas que

podem ser abrangidas sob um intelecto divino81

.

O polidor de lentes considera que a mente é eterna, porque ela considera todas as

coisas, bem como a essência de seu corpo, sob a perspectiva da eternidade e, voltado para esta

eternidade, pode ter o conhecimento de Deus como sua causa formal ou adequada, o que

possibilita também uma maior consciência de si mesmo. À causa adequada ou formal,

Spinoza chama de terceiro gênero de conhecimento.

“Por tudo isso, compreendemos claramente em que consiste nossa salvação,

beatitude ou liberdade: no amor constante e eterno para com Deus, ou seja, no amor

de Deus para com os homens. Não sem razão, esse amor – ou essa beatitude – é

chamado, nos livros sagrados, de glória. Pois, quer esteja referido a Deus, quer

esteja referido à mente, esse amor pode ser corretamente chamado de satisfação do

ânimo, a qual não distingue, na realidade, da glória82

”.

80

“Esse estado de maior perfeição é a virtude, mas é também o estado afetivo de beatitude. Para Spinoza, a

beatitude, como um estado afetivo da mente, não é mera consequência de caráter virtuoso. Ele identifica os

afetos com as ideias, porque a virtude suprema é a posse continuada de ideias adequadas, e o lado afetivo desse

conhecimento adequado é a beatitude, segue-se que a busca da beatitude é a busca da virtude. Virtude e beatitude

são igualmente valiosas e fundamentais – pois no fim elas se resultam idênticas. A beatitude é a posse efetiva e

eterna da virtude, da qual a alegria é um mero indicador temporal”. (GARRET, Spinoza, 2011, p. 374).

81

E, I, 16, cor. 1, 2 e 3. 82

E, V, 36, esc.

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Conclusão

“A vida ética começa, assim, no interior das paixões, pelo fortalecimento das mais

fortes e enfraquecimento das mais fracas83

”. A potência humana, que pode refrear e regular os

afetos bons ou maus, reside e é constituidora de nosso intelecto, exclusivamente. Padecer

menos dos afetos maus é estar voltado para aquele que ama a si mesmo e aos homens com o

mesmo amor que ama a si mesmo, por serem uma só e mesma coisa. Este amor é fruto da

ideia de sua própria causa e de uma perfeição infinita ao qual Deus é explicado pela mente

humana como causa sui, ao que porta uma verdade necessária e eterna, sendo conhecido

como amor intelectual. Somente este amor divino, esta virtude que é a própria beatitude, pode

ousadamente tentar nos livrar das paixões, enquanto presentificados pela nossa imaginação de

estarmos fixados num corpo, que nos cerceia daquilo que possui maior e mais realidade, a

saber, a verdade eterna. Aliás, esta é a maior busca de Spinoza: “A maior virtude é o

conhecimento máximo e mais elevado que podemos aspirar. Este conhecimento é o

conhecimento de Deus, meta final a ser atingida pelo sábio, da qual decorre a salvação. E,

assim, pelo conceito de virtude, a salvação funde dois aspectos geralmente opostos: o moral –

a salvação é o supremo bem – e o biológico – a salvação é a realização plena da potência

vital. Simultaneamente, substitui um fundamento transcendente para valores por uma

justificação utilitária dos mesmos. A razão prende-se com a utilidade84

”.

83

CHAUÍ, Espinosa: uma filosofia da liberdade, 1995, p. 70. 84

FERREIRA, A dinâmica da razão na filosofia de Espinosa, 1997, p. 417.

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