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UNIVERSIDADE DE LISBOAFACULDADE DE PSICOLOGIA E DE CINCIAS DA EDUCAO
DISCURSOS SOBRE A ESPECIFICIDADE DO ENSINO ARTSTICO: A
SUA REPRESENTAO HISTRICA NOS SCULOS XIX E XX
CARLOS ALBERTO FASCA FERNANDES GOMES
DISSERTAO DE MESTRADO EM CINCIAS DA EDUCAO (REA DE HISTRIA DA EDUCAO)
ORIENTADOR: PROF. DOUTOR ANTNIO SAMPAIO DA NVOA
LISBOA, SETEMBRO DE 2002
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J OUVI SUSTENTAR A SEGUINTE THESE:
O ARTISTA TEM DE SER PROFUNDAMENTE ESTPIDO.
VIANA DA MOTA, 1917
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AGRADECIMENTOS
A realizao da presente dissertao de mestrado no teria sido possvel sem a existn-
cia de diversos contributos pessoais e institucionais. Entre estes quero em primeiro lugar des-
tacar o do Professor Doutor Antnio Sampaio da Nvoa pelo apoio e esprito crtico sempre
demonstrado, ao mesmo tempo que me deu a liberdade necessria concepo e ao desenvol-
vimento do projecto de investigao que culmina na defesa da dissertao de mestrado agora
apresentada.
Por outro lado, devo tambm um muito especial agradecimento a todo o pessoal da sec-
o de arquivo do Instituto Histrico da Educao, sem o qual o projecto de investigao pro-
posto nunca teria sido possvel de concretizar no seu todo. Da mesma forma, agradeo ao Ar-
quivo Histrico da Secretaria Geral do Ministrio da Educao, ao Conselho Executivo da
Escola Bsica dos 2. e 3. ciclos de Francisco Arruda, e ao Conselho Executivo da Escola de
Msica do Conservatrio Nacional, pelo facto de me terem possibilitado a consulta da docu-
mentao de carcter histrico existente nos seus arquivos.
Tambm minha colega de mestrado, Dr. Teresa Figueiredo, o meu obrigado pelo seu
contributo prestado em relao ao arquivo histrico da Escola Preparatria Francisco Arruda.
Ao Dr. Arquimedes da Silva Santos e ao professor Lus Filipe Pires pelas entrevistas
concedidas no mbito da realizao deste trabalho, e pelo facto de me autorizarem a refern-
cia explcita aos seus nomes.
Por fim, a todos aqueles outros que, de uma forma ou de outra, tornaram possvel a con-
cluso deste trabalho e que, com as sugestes mais diversas, contriburam para o seu contedo
e forma.
A todos, o meu mais sincero agradecimento.
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NDICE GERAL
ndice Geral............................................................................................................................................... i
ndice de Ilustraes ..............................................................................................................................vii
Resumo ................................................................................................................................................... ix
Abstract.................................................................................................................................................... x
Abreviaturas............................................................................................................................................xi
Introduo ................................................................................................................................................ 1
Apresentao da ideia..........................................................................................................................3
Justificao ........................................................................................................................................13
Motivao pessoal.........................................................................................................................14
Justificao face realidade ..........................................................................................................21
Dfice de estudos nesta rea .........................................................................................................25
Aspectos metodolgicos ....................................................................................................................29
1. Quadro conceptual ............................................................................................................................. 33
1.1. A funo social da formao ministrada no Conservatrio: Mudanas e continuidades ao
longo dos sculos XIX e XX .....................................................................................................37
1.1.1. Da antiguidade clssica fundao do Conservatrio Nacional de Msica e de
Declamao de Paris ...........................................................................................................39
1.1.2. O ensino da msica em Portugal at ao surgimento do Conservatrio Real de Lisboa......46
1.1.3. Sobre a funo social da formao ministrada no Conservatrio de Lisboa entre
meados do sculo XIX e o incio da segunda metade do sculo XX..................................53
1.1.4. Uma crise de identidade: Entre uma formao burguesa e a preparao de futuros
profissionais ........................................................................................................................74
1.2. Operacionalizao do conceito de especificidade em torno de trs eixos de anlise
emergentes a partir de uma perspectivao centrada no aluno ..................................................79
1.3. Mobilizao dos conceitos psicolgicos utilizados nas argumentaes analisadas.................101
1.3.1. A concepo naturalista das aptides e a gnese de uma ideologia..................................105
1.3.2. Diferentes perspectivaes conceptuais sobre a aptido musical .....................................110
1.4. Apresentao da pergunta de partida para a investigao histrica efectuada.........................117
2. O regime de experincia pedaggica no Conservatrio Nacional ................................................... 125
2.1. A reforma do Conservatrio Nacional de 1930 face s suas anteriores reformas de 1911
e 1919.......................................................................................................................................127
2.2. As diversas propostas de reforma apresentadas durante a vigncia do estado novo e suas
motivaes ...............................................................................................................................135
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- ii -
2.2.1. O caso do Conservatrio de Msica do Porto e a proposta de reforma apresentada
em 1933.............................................................................................................................138
2.2.2. As propostas de reforma do Conservatrio Nacional entre 1936 e 1966..........................143
2.3. O regime de experincia pedaggica no Conservatrio Nacional (de 1971 a 1974) ...............153
2.3.1. Os seus antecedentes.........................................................................................................159
2.3.2. As propostas de reforma apresentadas no mbito desta mesma experincia
pedaggica ........................................................................................................................164
2.3.3. Os discursos em torno da especificidade do ensino artstico enquanto processos
de resistncia mudana ...................................................................................................171
3. O Conservatrio ao longo dos sculos XIX e XX ........................................................................... 175
3.1. A organizao didctico-pedaggica do Conservatrio...........................................................177
3.1.1. Ano lectivo de 1840-1841.................................................................................................180
3.1.2. Ano lectivo de 1855-1856.................................................................................................187
3.1.3. Ano lectivo de 1870-1871.................................................................................................191
3.1.4. Ano lectivo de 1885-1886.................................................................................................197
3.1.5. Ano lectivo de 1900-1901.................................................................................................201
3.1.6. Ano lectivo de 1915-1916.................................................................................................207
Conservatrio de Lisboa .........................................................................................................207
Escola da Arte de Representar ................................................................................................214
3.1.7. Ano lectivo de 1930-1931.................................................................................................217
Seco de Msica....................................................................................................................218
Seco de Teatro.....................................................................................................................223
3.1.8. Ano lectivo de 1945-1946.................................................................................................225
Seco de Msica....................................................................................................................225
Seco de Teatro.....................................................................................................................229
3.1.9. Ano lectivo de 1960-1961.................................................................................................231
Seco de Msica....................................................................................................................231
Seco de Teatro.....................................................................................................................237
3.2. Anlise das prticas em torno de trs eixos emergentes de uma perspectivao centrada
no aluno do conceito de especificidade ...............................................................................243
3.2.1. O eixo da vocao/talento.................................................................................................250
3.2.2. O eixo da precocidade.......................................................................................................258
3.2.3. O eixo das prticas curriculares ........................................................................................269
Concluses ........................................................................................................................................... 275
Apndices............................................................................................................................................. 281
Apndice I Protocolo da entrevista realizada a Arquimedes da Silva Santos...............................283
Apndice II Protocolo da entrevista realizada a Filipe Pires ........................................................295
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Apndice III Quadros analticos gerais relativos ao ano lectivo de 1840-1841 ...........................313
Alunos matriculados por idade e sexo ....................................................................................313
Alunos matriculados por termo...............................................................................................314
Apndice IV Quadros analticos gerais relativos ao ano lectivo de 1855-1856 ...........................317
Alunos matriculados por idade e sexo ....................................................................................317
Alunos matriculados e aprovados ...........................................................................................321
Apndice V Quadros analticos gerais relativos ao ano lectivo de 1870-1871.............................323
Alunos com frequncia por idade e sexo ................................................................................323
Alunos com frequncia aprovados..........................................................................................327
Correlaes relativas a alunos com frequncia.......................................................................328
Alunos sem frequncia por idade e sexo.................................................................................329
Alunos sem frequncia aprovados ..........................................................................................330
Correlaes relativas a alunos sem frequncia .......................................................................330
Apndice VI Quadros analticos gerais relativos ao ano lectivo de 1885-1886 ...........................331
Alunos com frequncia por idade e sexo ................................................................................331
Alunos com frequncia aprovados..........................................................................................334
Correlaes relativas a alunos com frequncia.......................................................................336
Alunos sem frequncia por idade e sexo.................................................................................336
Alunos sem frequncia aprovados ..........................................................................................338
Correlaes relativas a alunos sem frequncia .......................................................................338
Apndice VII Quadros analticos gerais relativos ao ano lectivo de 1900-1901..........................341
Alunos com frequncia por idade e sexo ................................................................................341
Alunos com frequncia aprovados..........................................................................................344
Correlaes relativas a alunos com frequncia.......................................................................345
Alunos sem frequncia por idade e sexo.................................................................................346
Alunos sem frequncia aprovados ..........................................................................................347
Correlaes relativas a alunos sem frequncia .......................................................................348
Apndice VIII Quadros analticos gerais relativos ao ano lectivo de 1915-1916.........................349
Conservatrio de Lisboa .............................................................................................................349
Alunos com frequncia por idade e sexo ................................................................................349
Matrculas encerradas de alunos com frequncia ...................................................................353
Correlaes relativas a alunos com frequncia.......................................................................354
Alunos sem frequncia por idade e sexo.................................................................................355
Alunos sem frequncia aprovados ..........................................................................................357
Correlaes relativas a alunos sem frequncia .......................................................................358
Escola da Arte de Representar ....................................................................................................358
Alunos por idade e sexo..........................................................................................................358
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Alunos com matrcula encerrada ............................................................................................360
Correlaes relativas a alunos.................................................................................................360
Apndice IX Quadros analticos gerais relativos ao ano lectivo de 1930-1931 ...........................361
Seco de Msica........................................................................................................................361
Alunos com frequncia por idade e sexo ................................................................................361
Matrculas encerradas de alunos com frequncia ...................................................................368
Correlaes relativas a alunos com frequncia.......................................................................369
Alunos sem frequncia por idade e sexo.................................................................................370
Matrculas encerradas de alunos sem frequncia....................................................................374
Correlaes relativas a alunos sem frequncia .......................................................................375
Seco de Teatro .........................................................................................................................376
Alunos por idade e sexo..........................................................................................................376
Alunos que encerraram matrcula ...........................................................................................378
Correlaes relativas a alunos.................................................................................................378
Apndice X Quadros analticos gerais relativos ao ano lectivo de 1945-1946.............................379
Seco de Msica........................................................................................................................379
Alunos com frequncia por idade e sexo ................................................................................379
Matrculas encerradas de alunos com frequncia ...................................................................385
Correlaes relativas a alunos com frequncia.......................................................................386
Alunos sem frequncia por idade e sexo.................................................................................387
Matrculas encerradas de alunos sem frequncia....................................................................391
Correlaes relativas a alunos sem frequncia .......................................................................392
Seco de Teatro .........................................................................................................................392
Alunos por idade e sexo..........................................................................................................392
Alunos aprovados ...................................................................................................................396
Correlaes relativas a alunos.................................................................................................397
Apndice XI Quadros analticos gerais relativos ao ano lectivo de 1960-1961 ...........................399
Seco de Msica........................................................................................................................399
Alunos com frequncia por idade e sexo ................................................................................399
Alunos com frequncia aprovados..........................................................................................408
Correlaes relativas a alunos com frequncia.......................................................................409
Alunos sem frequncia por idade e sexo.................................................................................410
Matrculas encerradas de alunos sem frequncia....................................................................415
Correlaes relativas a alunos sem frequncia .......................................................................416
Seco de Teatro .........................................................................................................................416
Alunos por idade e sexo..........................................................................................................416
Apndice XII Referncias legislativas, regulamentares e outros actos diversos ..........................419
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- v -
Bibliografia .......................................................................................................................................... 489
Bibliografia Geral ............................................................................................................................491
Bibliografia Especfica ....................................................................................................................491
Documentao de Arquivo ..............................................................................................................497
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NDICE DE ILUSTRAES
Ilustrao 1 Dissertaes relacionadas com a temtica abordada neste trabalho.............................. 26
Ilustrao 2 Profisses dos pais dos alunos que efectuaram matrcula no Conservatrio Real
de Lisboa, durante o ano lectivo de 1885-1886, como alunos com frequncia............................. 60
Ilustrao 3 Amostragem cclica, por perodos de quinze anos, do nmero total de alunos
matriculados entre os anos lectivos de 1840-1841 e 1960-1961................................................... 63
Ilustrao 4 Amostragem cclica, por perodos de quinze anos, da distribuio relativa por
sexos do nmero total de alunos matriculados entre os anos lectivos de 1840-1841 e 1960-
1961............................................................................................................................................... 64
Ilustrao 5 Propinas pagas pelos alunos do Conservatrio de Lisboa segundo as reformas de
1888, 1898 e 1901. ........................................................................................................................ 65
Ilustrao 6 Propinas pagas pelos alunos do Conservatrio de Lisboa segundo as reformas de
1911, 1919 e 1930. ........................................................................................................................ 69
Ilustrao 7 Diminuio da frequncia escolar da seco de msica do Conservatrio
Nacional... ..................................................................................................................................... 71
Ilustrao 8 Matrculas efectuadas na disciplina de piano ao longo dos sculos XIX e XX. ........... 75
Ilustrao 9 Caracterizao do paradigma tradicional e do paradigma emergente subjacentes
aos discursos relativos formao artstica na rea da msica. .................................................... 92
Ilustrao 10 Correlaes mdias encontradas entre os respectivos Quocientes de Inteligncia
(Fonte: Skrzypczak, 1996). ......................................................................................................... 106
Ilustrao 11 Mdias do Quociente de Inteligncia encontrado para as diversas categorias
socioprofissionais (Fonte: Skrzypczak, 1996). ........................................................................... 107
Ilustrao 12 Ano preparatrio comum a todos os cursos de msica segundo o projecto de
estatuto do ensino da msica e arte cnica.............................................................................. 147
Ilustrao 13 Curso de piano segundo o projecto de estatuto do ensino da msica e arte
cnica...... .................................................................................................................................. 148
Ilustrao 14 Total de matrculas efectuadas na seco do Conservatrio Nacional da Escola
Preparatrio Francisco Arruda (Fonte: EPFA, n. 39; & EPFA, n. 40)..................................... 158
Ilustrao 15 Exemplo de horrios relativos ao 1. ano do ciclo preparatrio (Cursos A e B) da
Academia de Msica de Santa Ceclia (Fonte: AAVV, 1971b).................................................. 162
Ilustrao 16 Cursos gerais e complementares de msica para o ano lectivo de 1973-1974
segundo os planos de estudos aprovados em 8 de Julho de 1973. .............................................. 168
Ilustrao 17 Nmero total de matrculas efectuadas em cada um dos termos das escolas do
Conservatrio Real de Lisboa durante o ano lectivo de 1840-1841............................................ 182
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Ilustrao 18 Comparao entre o nmero total de matrculas constantes dos mapas
estatsticos publicados em Dirio do Governo, e o nmero de matrculas referenciado pela
documentao arquivada no Conservatrio de Lisboa, relativamente realizao de
exames sem frequncia. .............................................................................................................. 191
Ilustrao 19 Comparao do nmero de alunos inscritos por seco na aula de piano do
Conservatrio de Lisboa nos anos lectivos de 1870-1871 e de 1885-1886. ............................... 200
Ilustrao 20 Limites etrios estabelecidos para a primeira matrcula no Conservatrio de
Lisboa pelas reformas de 1890 a 1930. ....................................................................................... 261
Ilustrao 21 Idades mdias de primeira matrcula dos alunos, com e sem frequncia, do
Conservatrio de Lisboa. ............................................................................................................ 262
Ilustrao 22 Correlaes entre as idades e as classificaes obtidas nos exames de piano
realizados no ano lectivo de 1931-1932...................................................................................... 267
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- ix -
RESUMO
Tendo como ponto de partida para a presente dissertao de mestrado o projecto de re-
forma do ensino artstico de 1971, aqui minha inteno verificar qual a representao efecti-
va do discurso de especificidade na realidade histrica existente ao nvel do ensino voca-
cional artstico ao longo dos sculos XIX e XX, e at que ponto as questes ideolgicas en-
formam o discurso produzido pelos diversos actores neste envolvidos. Inserindo a abordagem
efectuada numa perspectiva de construo social, irei procurar elucidar os mecanismos hist-
ricos que sustentam a emergncia deste mesmo conceito, o qual determina, segundo algumas
das perspectivas hoje defendidas, a impossibilidade de integrao de uma formao que vise a
preparao de msicos e de bailarinos profissionais nos esquemas gerais de ensino, contra-
riando desta forma um dos aspectos primordiais das propostas apresentadas com o projecto de
reforma de 1971. Contudo, no se podendo menosprezar os mecanismos de resistncia mu-
dana como sendo um dos factores responsveis por esta mesma rejeio, ainda minha in-
teno tentar aqui compreender como que este conceito de especificidade se encontra
construdo nas estruturas ideolgicas existentes na actualidade e em que medida este corres-
ponde a um efectivo corte conceptual relativamente s prticas at a existentes.
De facto, correspondendo este conceito de especificidade re-emergncia de diversos
mitos em torno de supostas caractersticas excepcionais deste tipo de formaes, estes vo ser
mobilizados num discurso de resistncia mudana quando as propostas apresentadas com o
projecto de reforma do ensino artstico de 1971 pem em causa os equilbrios de poder at
ento estabelecidos. Assim, apesar de se ter verificado a este nvel uma progressiva sublima-
o das ideias de vocao e de talento, de no existir uma efectiva precocidade na gene-
ralidade das aprendizagens efectuadas, e de as prticas pedaggicas se terem modificado de
uma forma bastante significativa ao longo dos sculos XIX e XX, vamos na actualidade en-
contrar o ressurgimento da ideia de que este tipo de formaes se destina somente aos indiv-
duos que sejam detentores de uma vocao ou de um talento artstico raro, que tenham
iniciado a sua formao numa idade precoce, e que estejam sujeitos a contextos especiais de
aprendizagem, nomeadamente ao nvel dos instrumentos musicais, onde se defende a existn-
cia de aulas individualizadas. E, o mais paradoxal no meio de isto tudo, que mesmo na ac-
tualidade algumas destas especificidades so na realidade inexistentes como seja, a ine-
xistncia generalizada de uma opo precoce por uma formao artstica na rea da msica ,
o que em parte poder explicar o ressurgimento dos discursos que defendem que a formao
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- x -
de msicos amadores substancialmente diferenciada da formao de msicos profissio-
nais, procurando desta forma defender o carcter de excepcionalidade desta ltima.
ABSTRACT
Having as starting point for the present master dissertation the project of reform of the
artistic teaching of 1971, is here my intention to verify which is the real representation of the
specificity speech historically existent at the level of the artistic vocational teaching along
the nineteenth and twentieth centuries, and to what extent the ideological aspects give form to
the speech produced by the several actors involved in this process. Inserting this approach in a
perspective of social construction, I will try to elucidate the historical mechanisms that sustain
the emergency of this concept, which determines, according to some of the perspectives now
a days presented, the impossibility of integration of a formation that seeks the preparation of
professional musicians and dancers in the general outlines of teaching, thwarting this way one
of the primordial aspects of the proposals presented with the project of reform of 1971. How-
ever, as we couldn't belittle the resistance mechanisms to the change as being one of the re-
sponsible factors for this rejection, it is also my intention to try to understand how this speci-
ficity concept is built into the existent ideological structures and if it corresponds to an ef-
fective conceptual cut relatively to the practices existent previously to its emergence.
Corresponding this specificity concept to the re-emergency of several myths about
supposed exceptional characteristics of this type of formations, these myths will be mobilised
in a resistance speech to the change when the proposals presented with the project of reform
of the artistic teaching of 1971 put in cause the balances of power established until then. Thus,
in spite of a progressive sublimation of the gift and talent ideas, of not existing an effec-
tive precocity in the generality of the learning, and of the pedagogic practices having been
modified in a quite significant way along the nineteenth and twentieth centuries, we are going
to find the resurgence of the idea that this type of formations is only suitable to the individuals
that possess a rare gift or talent, that they must begin its formation in a precocious age
and be subjected to special contexts of learning, namely at the level of the musical instru-
ments, where should exists provision for private tuition. And, the most paradoxical in the
middle of this all, is that today some of these specificity are in fact non-existent as it is,
the generalised non-existence of a precocious option for an artistic formation in the area of
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- xi -
music , which partly can explain the resurgence of the speeches that defend the amateur
musicians formation as being substantially different from the professional musicians for-
mation, seeking to maintain the professional musicians formations as being something
apart.
ABREVIATURAS
AHSGME Arquivo Histrico da Secretaria Geral do Ministrio da Educao
CN Conservatrio Nacional
DG Dirio do Governo, Dirio de Lisboa, e/ou Dirio da Repblica
EPFA Escola Preparatria de Francisco Arruda
IHE Instituto Histrico da Educao
cx. Caixa
fi Frequncia absoluta da varivel observada
fri Frequncia relativa da varivel observada
m. Mao
n.i. No indica
lv. Livro
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- 1 -
INTRODUO
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- 3 -
APRESENTAO DA IDEIA
Com a dissertao de mestrado agora apresentada, minha inteno analisar os funda-
mentos sobre os quais assenta a construo da ideia de especificidade hoje presente ao nvel
das escolas vocacionais de ensino artstico e a qual se torna patente, de uma forma inequvoca,
em alguns dos discursos efectuados pelos actores directamente envolvidos nesta modalidade
de ensino a partir de 1971. Uma das primeiras referncias explcitas em torno da ideia de que
o ensino artstico, visando a formao de futuros profissionais, deve ser efectuado em moldes
que de alguma forma apelam noo de especificidade deste tipo de formaes, consiste
numa das ideias veiculadas durante o colquio sobre o projecto do ensino artstico, realizado
nos dias 21 e 22 de Abril de 1971 na Fundao Calouste Gulbenkian, quando num dos temas
propostos discusso, se pergunta em que tipo de escola (...) deve ser ministrado o ensino
artstico (especializadas, comuns, outras), ao que Jos-Augusto Frana responde: especiali-
zadas, naturalmente, se de ensino artstico especificamente se tratar (os tais liceus artsticos1,
ou cursos superiores a definir); comuns, se se tratar do ensino formativo (...) integrado num
ensino geral. (Frana, 1971). Com estas palavras, Jos-Augusto Frana traa uma linha con-
ceptual que pretende estabelecer uma diviso bem ntida entre um ensino que visa a formao
de artistas podemos mesmo dizer, de profissionais das artes , e um outro tipo de formao
artstica que visa uma formao geral de todos os indivduos. Tal diviso conceptual entre
uma educao artstica genrica, destinada a todos, e uma educao artstica especializa-
da, destinada somente queles que so portadores de determinadas qualidades julgadas in-
1 O posicionamento do Conservatrio Nacional expresso atravs de uma comunicao conjunta
apresentada a este mesmo colquio por alguns dos seus professores (Cfr. Vasconcelos, 1971) , vai
atribuir aos liceus artsticos um papel referente educao artstica genrica, sendo que a educa-
o artstica especializada, visando a formao de msicos profissionais, dever ficar a cargo dos
Conservatrios e Academias de Msica existentes no pas. Este posicionamento, sendo divergente
do aqui expresso por Jos-Augusto Frana (1971), ficar-se- a dever a diferentes interesses por
parte destes intervenientes: que, no caso de Jos-Augusto Frana, o liceu artstico surge como
uma forma de prestigio acrescido para o ensino das belas-artes, enquanto que, no caso dos profes-
sores do Conservatrio Nacional, este mesmo liceu artstico surge como sendo um eventual pre-
nuncio em relao extino do Conservatrio Nacional. H, pois, nestas duas perspectivas aqui a-
presentadas, uma percepo estratgica do discurso realizado, o qual reflecte interesses particulares
de cada um destes dois intervenientes.
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- 4 -
dispensveis ao prosseguimento de uma carreira profissional ao nvel das artes , caracters-
tica de grande parte dos discursos presentes no debate realizado em torno deste projecto de
reforma do ensino artstico.
Esta ideia de especificidade, aqui retractada, ao nvel do tipo de instituies onde o
ensino artstico, que vise a formao dos profissionais das artes, deve ser ministrado, sustenta-
se numa concepo arcaica que concebe o artista como sendo portador de um conjunto de
talentos especiais e raros, crena esta que se encontra expressa j na primeira metade do s-
culo XX e que tem, na actualidade, reflexo na defesa efectuada em torno de uma formao
musical de amadores distinta de uma formao musical de profissionais (Cfr. Folhadela
et al., 1998; & Silva, 2000). A ttulo exemplificativo, podemos referir que num discurso pro-
ferido em 1935 por Oliveira Salazar, este justifica a sua presena ...numa festa que devia ser
exclusivamente de literatos e artistas ao dizer que muitos duvidaro maliciosamente de
que nestes tempos de crise se convertam to facilmente em Mecenas os ministros das Finan-
as; contudo, estando ele naquela situao a assumir um estatuto de protector privilegiado,
...fazia-o lembrar aos espritos de primeira ordem do actual momento portugus que, por
terem recebido maior parte na distribuio dos dons divinos, eram guia e exemplo dos de-
mais. (, 1992: 409). Esta concepo do talento artstico enquanto fruto de um dom ema-
nado de Deus, ou, numa perspectiva laica deste mesmo conceito, da prpria natureza, encon-
tra-se fundada em noes que pressupem a sua excepcionalidade. De facto, no parecer da
seco de msica do Conservatrio Nacional ao projecto de reforma do sistema escolar apre-
sentado em Janeiro de 1971, chega mesmo a ser afirmado que, ao nvel da formao dos futu-
ros profissionais da msica, h a necessidade imperiosa de ...que o aluno (...) seja dotado de
um quociente de inteligncia acima do mdio, mais uma srie de condies psicolgicas e
aptides fisiolgicas que, segundo as estatsticas, se encontram raramente reunidas no mesmo
indivduo (AAVV, 1971c: 6), afirmao esta que vem ao encontro da ideia de que the num-
ber of musically gifted, or even talented, children in any area is statistically insignificant.
(AAVV, 1978: 48). Esta perspectiva de especificidade, ou mesmo de excepcionalidade do
ensino vocacional artstico, encontra-se nas ltimas dcadas enraizada num discurso promovi-
do pelos actores implicados directamente neste tipo de formaes, nomeadamente ao nvel do
ensino da msica e da dana, podendo esta concepo ser reconhecida quer ao nvel da legis-
lao que regulamenta este subsistema de ensino2, quer mesmo ao nvel do discurso produzi-
2 Refiro-me ao Decreto-Lei n. 310/83, de 1 de Julho, e ao Decreto-Lei n. 344/90, de 2 de Novem-
bro.
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do por parte das escolas, em que se reafirma esta ideia de especificidade, ao se dizer, por
exemplo, que o presente Regulamento Interno (...) ter principalmente por objecto aquelas
matrias e situaes que decorrem da especificidade do ensino vocacional de Msica
(AAVV, 2000: 1).
Na busca de uma definio do que pode ser entendido como especificidade do ensino
vocacional artstico, este mesmo Regulamento Interno procura, ao nvel da msica, enquadrar
este conceito de especificidade atravs da apresentao de um conjunto de catorze alneas
em que se afirmam as diferenas desta modalidade de ensino por oposio a um ensino gen-
rico ministrado na generalidade das escolas bsicas e secundrias, sendo que na ltima destas
alneas mesmo referido que a admisso a esta modalidade de ensino vocacional requer ap-
tides partida, a serem sujeitas a exame de entrada cujo resultado pode condicionar o acesso
ao estabelecimento de ensino. (AAVV, 2000: 2). No entanto, de uma forma paradoxal, estes
testes de admisso viso essencialmente a verificao das aprendizagens j efectuadas3, e no
uma verdadeira comprovao de aptides musicais especficas, uma vez que estes no se en-
3 A perspectiva por mim utilizada em torno dos conceitos de aptido e de aprendizagem de
substrato psicolgico, sendo que o conceito de aptido refere-se ao potencial para a realizao de
uma determinada aprendizagem, potencial esse que em si imutvel em funo da efectivao
desta mesma aprendizagem. O conceito de aptido refere-se, pois, ao que inato ao ser huma-
no, e, como tal, imutvel por aco das aprendizagens por este realizadas. Convm realar o facto
de que muitas das referncias ao conceito de aptido encontradas nos discursos relativos ao ensi-
no artstico por mim analisados, nomeadamente ao nvel dos processos de verificao dessa mesma
aptido, enquadram-se no conceito psicolgico de aprendizagem, nomeadamente atravs da uti-
lizao de processos que visam fundamentalmente a verificao de um conjunto de aprendizagens
j realizadas e no de aptides. De facto, s se pode considerar que um teste efectivamente de
aptido se o seu resultado for imune realizao de uma qualquer aprendizagem. Na verdade,
tal teste impossvel de construir no seu estado puro, sendo que todos os testes, quer sejam de ap-
tido, quer sejam de aprendizagem, medem simultaneamente aprendizagens e aptides. Dai as
dificuldades que surgem na operacionalizao destes dois conceitos em alguns dos discursos en-
contrados sobre o ensino artstico, dado que o discurso sobre a aptido revela fundamentalmente
uma construo ideolgica de um modelo explicativo da realidade sobre a categoria do que se ser
artista. Assim, a sua operacionalizao acaba por se realizar fundamentalmente em termos das a-
prendizagens previamente efectuadas, criando, com esse facto, uma dicotomia entre um discurso de
legitimao de uma determinada categoria de explicao do real e a prtica efectiva desse mesmo
discurso.
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quadram numa perspectiva psicomtrica anloga utilizada pelos testes de inteligncia, a qual
pressupe que a medida assim obtida deve ser derivada fundamentalmente de traos inatos
(Cfr. Rodrigues, 1997; & Gordon, 1998). A ser verdade esta crtica, ela acaba por retirar sen-
tido prpria definio de educao vocacional artstica avanada no Decreto-Lei n. 344/90,
de 2 de Novembro, nomeadamente quando este afirma que esta ...consiste numa formao
especializada, destinada a indivduos com comprovadas aptides ou talentos em alguma rea
artstica especfica (Decreto-Lei n. 344/90, de 2 de Novembro: art. 11.) concebida de uma
forma paralela a uma formao artstica genrica destinada ...a todos os cidados, indepen-
dentemente das suas aptides ou talentos especficos em alguma rea, sendo considerada parte
integrante indispensvel da educao geral (Decreto-Lei n. 344/90, de 2 de Novembro: art.
7.) , pois a construo de um subsistema paralelo ao ensino bsico e secundrio visando
uma formao artstica de carcter vocacional, encontra-se fundada numa perspectiva que
concebe o futuro artista como sendo possuidor de um conjunto de aptides especiais, as quais
devem ser, desde muito cedo, amplamente nutridas. De facto, os processos de seleco utili-
zados por estas escolas de ensino vocacional de msica, ao nvel da admisso de novos alu-
nos, limitam-se a proceder verificao das aprendizagens j realizadas pelos candidatos pre-
sentes a estes, no efectuando uma escolha com base numa medio efectiva de um qualquer
tipo de aptido artstica, pelo que o discurso que aponta no sentido do ensino vocacional ar-
tstico requer[er] aptides partida, a serem sujeitas a exame de entrada (AAVV, 2000: 2),
mais no do que uma afirmao de carcter ideolgico, a qual, na prtica, se tende a traduzir
em algo que efectivamente se distncia desse mesmo discurso.
A este propsito, de referir que, segundo Gordon (1998), a dicotomia entre aqueles
que defendem que as aptides artsticas so de carcter inato e aqueles que defendem que as
aptides artsticas so fundamentalmente fruto de um ambiente propcio ao seu desenvolvi-
mento, teve, ao nvel da formao musical, mais impacto do que qualquer outra questo rela-
cionada com o ensino artstico. No entanto, as evidncias hoje acumuladas apontam para o
facto de no nos ser mais possvel conceber qualquer forma de aptido, ou de inteligncia,
como sendo o produto exclusivo de factores inatos ou adquiridos, apesar de continuar acesa a
disputa sobre se mesmo assim existe uma maior influncia dos primeiros ou dos segundos,
disputa esta que por vezes se tem tornado muito acesa devido a questes de ordem poltica e
ideolgica (Cfr. Gordon, 1998; Skrzypczak, 1996; Gage et al., 1979; & Sprinthall et al.,
1998). De facto, cada vez mais existem evidncias de que os factores ambientais desempe-
nham um papel fundamental no desenvolvimento de determinadas aptides bsicas em deter-
minados perodos crticos do desenvolvimento da criana, processo este que no exclusivo
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das aptides musicais ou de qualquer outra aptido artstica em geral, mas que comum a
tudo aquilo que somos e fazemos. Este tipo de evidncias levou a que nas ltimas duas dca-
das, como resultado dos estudos efectuados ao nvel da psicologia da msica, tivesse surgido
o conceito de aptido musical desenvolvimental (Cfr. Gordon, 1998), o qual pretende assimi-
lar a ideia de que sendo a aptido musical o reflexo de um potencial inato, esta influenciada,
em grande medida, por factores ambientais a que uma criana se encontra exposta durante os
primeiros anos de vida.
Recentemente, as escolas vocacionais de msica pretenderam demonstrar a sua especi-
ficidade defendendo que deveria ser previsto no seu currculo, desde muito cedo, uma via de
formao destinada a amadores e uma outra via de formao destinada a profissionais,
vias estas que reflectiriam o tipo de populao discente que frequenta este tipo escolas (Cfr.
Folhadela et al., 1998). Com isto, pretendiam ter encontrado a soluo para parte dos proble-
mas deste subsistema de ensino, retomando assim um discurso herdado da teoria dos dons e
o qual foi interpretado, por parte da tutela, como sendo a soluo para o facto de o regime
integrado/articulado4 previsto pelo Decreto-Lei n. 310/83, de 1 de Julho, como regra ,
nunca ter funcionado de uma forma generalizada nas escolas de ensino vocacional de msica,
uma vez que a frequncia destas escolas neste regime de matrcula pressupe uma opo a ser
efectuada por volta dos 9 ou 10 anos de idade, sada do 4. ano de escolaridade, algo que
muito raramente acontece. De facto, os discursos em torno da precocidade com que suposta-
mente se deve optar por uma carreira profissional ao nvel da msica no deixam de apresen-
tar alguns aspectos paradoxais quando confrontados com outras afirmaes paralelas a estes,
aspectos que talvez mais no sejam do que um reflexo de uma concepo de carcter mais
ideolgico e discursivo que defende a precocidade como desejvel sem que esta seja a reali-
dade efectivamente existente no terreno , havendo, de facto, uma negociao entre uma
oferta e uma procura deste tipo de formao:
Baseados em frequentes exemplos a que o dia-a-dia da (...) [seco de msica do Conservatrio
Nacional] nos habituou, insistimos na necessidade de um regime de precedncias [no depen-
4 O ensino artstico em regime integrado/articulado consiste no efectuar de uma formao artstica,
de carcter vocacional, nas reas da msica e da dana, a par com a frequncia do ensino bsico e
secundrio. Refira-se que no ano lectivo de 1996-1997, s 12,1% dos alunos matriculados, a nvel
nacional, em escolas pblicas e em escolas particulares e cooperativas se encontram a frequentar o
ensino vocacional de msica neste regime (Cfr. AAVV, 1997).
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dente de esquemas etrios rigidamente definidos em funo da integrao desta mesma forma-
o musical nos esquemas gerais de ensino] susceptvel de reajustamentos aps perodos relati-
vamente curtos.
Se acaso o regime actual a que se chegou justamente por se ter reconhecido a legitimidade de
numerosas pretenses da populao discente que na prtica no se ajustava aos esquemas teri-
cos viesse de futuro a tornar-se mais rgido, e se nos Conservatrios viesse a no se ministrar
o ensino em quase todos os seus graus, multiplicar-se-iam forosamente situaes prejudiciais e
absurdas [para os alunos].
(Vasconcelos, 1971: 140-1)
Contudo, relativamente nica escola pblica de dana 5 existente no pas, a Escola de Dana
do Conservatrio Nacional, tal questo no se coloca dado que, na actualidade, todos os alu-
nos a frequentam em regime integrado, algo que no ensino vocacional de msica, ao nvel da
rede pblica, s acontece parcialmente numa nica escola o Conservatrio de Msica de
Calouste de Gulbenkian, em Braga , mas sem que este regime de matrcula represente a tota-
lidade dos alunos a inscritos. Tais factos podero indiciar estratgias de aceitao/recusa dife-
renciadas relativamente a todo este processo de reforma do ensino artstico iniciado em
1971 e concretizado, no plano jurdico, pelo Decreto-Lei n. 310/83, de 1 de Julho , levadas
a cabo pelas diferentes escolas que emergem desta reforma do Conservatrio Nacional e es-
colas afins.
Relativamente perspectiva daqueles que defendem a diviso do ensino vocacional de
msica numa via amadora e numa via profissional, tal inteno derivada de um equ-
voco, o qual, desenvolvendo-se na cultura europeia entre os sculos XVII e XIX (Cfr.
AAVV, 1993a), associa na actualidade um carcter perjurativo ao termo amador, ao consi-
der-lo como sendo algum menos capaz do que um profissional. Apesar desta concepo
ter j sido combatida por msicos de renome (Cfr. Bosseur et al., 1990), ela continua a perdu-
rar em alguns meios musicais e consiste numa viso muito diferente daquilo que no incio se
considerava ser um msico amador. Sintomtico desta diferente noo de msico amador
aquela que vamos encontrar na Inglaterra do sculo XVI, onde era prtica cultural vigente a
participao musical efectiva de todos os presentes num qualquer acontecimento social. O
gnero musical ento mais praticado era o madrigal de origem italiana, repertrio que, sendo
5 Para alm desta, existem em Portugal continental mais duas escolas do ensino particular e coopera-
tivo que ministram cursos nesta mesma rea de formao artstica: a Academia de Dana Contem-
pornea de Setbal, e a Escola de Dana Ginasiano.
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hoje encarado como fruto de uma tradio musical erudita de raiz europeia, data mais no
era do que um repertrio destinado a uma prtica de carcter amador (Cfr. Aris, 1988; &
AAVV, 1993c): que este repertrio era executado por msicos no profissionais, i.e., indi-
vduos que, apesar de praticarem msica com um alto grau de proficincia, no utilizavam a
msica como seu principal meio de sustento. Podemos mesmo falar de uma tendncia surgida
na cultura ocidental, entre os finais da renascena e a actualidade, na qual se assistiu a uma
alterao progressiva das prticas sociais nas quais a msica tem lugar. Assim, nos possvel
falar de uma alterao ocorrida entre uma prtica musical de carcter participativo como
aquela que descrita por Thomas Morley (Cfr. Aris, 1988; & AAVV, 1993c) para uma
prtica caracterizada por uma atitude mais passiva face interpretao musical como aquela
que ocorre actualmente nas nossas salas de concerto , atitude esta que surge, em grande par-
te, sob a influncia do aparecimento, e do desenvolvimento, dos teatros de pera italianos ao
longo dos sculos XVII e XVIII. Por outro lado, ao nvel da insero da prtica musical na
vida em sociedade, e a forma como esta insero social da msica, e das artes em geral, afecta
todo o seu ensino, no ser despropositado falar sobre as diferenas musicais existentes entre
as liturgias catlica e protestante, e a forma como estas diferenas afectam a realidade hoje
observada nos pases em que cada uma destas religies professada6 (Cfr. Jorgensen, 1997; &
AAVV, 1993a).
Desta forma, com a presente dissertao de mestrado pretendo averiguar qual a repre-
sentao efectiva do discurso relativo ideia de especificidade tal como ele emerge na
sequncia do projecto de reforma do ensino artstico de 1971 na realidade histrica existente
ao nvel do ensino vocacional artstico ao longo dos sculos XIX e XX, e at que ponto as
questes ideolgicas enformam o discurso produzido pelos diversos actores neste envolvidos.
Neste mbito, irei procurar elucidar os mecanismos histricos que vo sustentar a construo
deste mesmo conceito de especificidade, o qual, sendo portador de um carcter sobrenatural
e mtico, determina, segundo alguns dos seus actores, a impossibilidade de integrao de uma
6 As alteraes introduzidas pelos protestantes ao nvel da liturgia vo levar substituio da capel-
la, constituda por alguns elementos do clero especializados na execuo musical vocal e/ou ins-
trumental, por uma execuo musical efectuada por todos os participantes caracterstica das litur-
gias protestantes, o que d origem ao surgimento dos corais e, mais tarde, nas comunidades afro-
americanas, dos espirituais hoje cantados nessas mesmas liturgias. Esta ser uma das razes que
levar a que, desde bastante cedo, a educao musical passe a ser uma parte importante da educa-
o ministrada nos pases protestantes (Cfr. AAVV, 1993a).
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formao que vise a formao de artistas profissionais nos esquemas gerais de ensino7. Par-
tindo de uma anlise que pretende compreender o que pode ser enquadrado neste conceito de
especificidade, minha inteno observar os discursos emergentes do processo de discus-
so pblica do projecto de reforma do ensino artstico de 1971, tentando compreender a forma
como este conceito construdo nas estruturas ideolgicas presentes nos seus actores, e em
que medida este corresponde a um efectivo corte conceptual relativamente s prticas at a
existentes. De facto, iremos verificar que, sendo este projecto de reforma do ensino artstico a
continuao de uma tendncia geral encontrada em outros pases europeus (Cfr. Ribeiro,
1972), este visa antes do mais o dar resposta a um novo desafio decorrente do aumento da
escolaridade obrigatria, sem que com isso seja de imediato posto em causa o carcter excep-
cional das aptides artsticas. Contudo, os discursos em torno da especificidade deste tipo
7 Para alm da explicao avanada, ao nvel do quadro conceptual em torno de dois paradigmas o
paradigma tradicional e o paradigma emergente (Cfr. Captulo 1.2.) , com os quais pretendo elu-
cidar alguns aspectos do corte conceptual efectuado, ao nvel do ensino artstico, a partir do pro-
jecto de reforma de 1971, h que referir uma outra dialctica que pretende evidenciar uma diviso
entre um ensino artstico onde o talento brota atravs do estudo da tcnica o que, por si s, im-
plica num processo de escolarizao , e um ensino artstico onde se valoriza a liberdade e o indi-
vidualismo do gnio com uma consequente desvalorizao da aprendizagem da tcnica o que
implica a desvalorizao das aprendizagens escolares enquanto processo de formao artstica. Es-
tando estas duas perspectivas radicadas naquilo que designo, ao nvel do quadro conceptual apre-
sentado, de paradigma tradicional, a ideia [de origem romntica] de que a arte uma esfera em
que participa a obra singular (Dahlhaus, 1991: 14) que ir ser provavelmente responsvel, ao nvel
do processo didctico-pedaggico, pelas crticas efectuadas por Alexandre Rey Colao (1914), Rui
Coelho (1917), e Viana da Mota (1917), ao ensino musical que data ministrado no Conservat-
rio de Lisboa, dizendo que um dos mais nocivos [problemas] a desproporo entre o numero dos
discpulos e o dos professores (Mota, 1917: 116), o que vai ainda encontrar eco na afirmao pro-
ferida por Madalena Perdigo (1981), de que ...nalgumas reas e disciplinas [o ensino artstico]
exige praticamente um professor por aluno (...), sendo noutras aconselhvel a proporo de 1 para
5. (Perdigo, 1981: 292). Contudo, ao nvel das perspectivas didctico-pedaggicas mais recentes
perspectivas estas que incluo dentro do paradigma emergente , tal ideia de especificidade do
ensino artstico, ao nvel da aprendizagem de instrumentos musicais, questionada pelas aborda-
gens que pretendem centrar estas mesmas aprendizagens nas prticas instrumentais de conjunto, e
no tanto em aulas individuais de instrumento, uma vez que s devem ser dadas lies particulares
a alunos mais adiantados que tambm participem num pequeno conjunto ou num conjunto de maio-
res dimenses, dentro ou fora da escola. (Gordon, 2000a: 361).
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de formaes, e as diversas prticas existentes, no so de todo coincidentes entre si, algo que
visvel na divergncia existente entre as crenas em torno da precocidade com que se deve
iniciar uma formao nas reas da msica e da dana e as prticas efectivamente existentes
neste domnio ao longo dos sculos XIX e XX.
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JUSTIFICAO
No mbito desta introduo, minha inteno apresentar as razes que me levaram a
optar pela temtica desta dissertao de mestrado em concreto, enquadrando neste sentido
critrios que vo desde uma justificao mais lata, no sentido das minhas motivaes pessoais
que tm determinado que desde h alguns anos para c tenha investido num percurso acad-
mico pouco vulgar em Portugal para algum com uma formao inicial idntica minha 8,
assim como razes de carcter mais especfico, quer pessoais quer de interesse e de pertinn-
cia cientfica, que me levaram a efectuar este trabalho em concreto9. Aproveitarei ainda para
referir qual o estado de produo do conhecimento cientfico na rea da Histria da Educao
ao nvel do ensino vocacional artstico10, assim como ao nvel da psicologia da msica dado
o carcter de alguns dos argumentos utilizados em torno deste conceito de especificidade,
os quais remetem para uma dimenso psicolgica das aptides humanas , tendo por base
essencialmente o conhecimento gerado no nosso pas, ou por autores portugueses, ao nvel da
produo acadmica de dissertaes. Por ltimo, quero referir que, uma das razes que me
levam a fazer uma apresentao exaustiva destas minhas motivaes pessoais, prende-se com
o facto de querer deixar bem explcito qual o meu grau de comprometimento com a temtica
aqui abordada, estabelecendo assim o substracto subjectivo sobre o qual a minha anlise, pre-
tensamente objectiva, efectuada. Contudo, caber em ltima instncia ao leitor julgar at
que ponto esse mesmo grau de objectivao foi por mim alcanado.
8 O meu percurso acadmico, ao nvel da msica, foi concludo em Setembro de 1992 com um Ba-
charelato em Composio, realizado na Escola Superior de Msica de Lisboa.9 Esta dissertao de mestrado , em certa medida, uma continuao da dimenso histrica de anlise
j presente na minha memria final do Curso de Estudos Superiores Especializados em Direco
Pedaggica e Administrao Escolar, concludo em Maio de 2000, na Escola Superior de Educao
Jean Piaget (Cfr. Gomes, 2000).10 Uma das teses de mestrado aqui consideradas (Cfr. Caspurro, 1992) foi realizada na Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra como sendo uma dissertao de mestrado em Cincias Musi-
cais. Contudo, Jorge Ramos do (1996) inclui-a como pertencendo ao rol das teses em Histria da
Educao produzidas entre 1986 e 1995 nas universidades portuguesas, uma vez que esta aborda a
histria institucional do Conservatrio de Msica do Porto, desde as suas origens at sua integra-
o no estado ocorrida por fora do Decreto-Lei n. 519/72, de 14 de Dezembro.
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MOTIVAO PESSOAL
As razes que fundamentam a minha motivao pessoal remontam a meados dos anos
oitenta quando eu era ainda aluno do Instituto Gregoriano de Lisboa. Apesar de data as mi-
nhas preocupaes no se situarem propriamente no campo educativo, vivi a implementao
da reforma do ensino vocacional artstico efectuada pelo Decreto-Lei n. 310/83, de 1 de Ju-
lho, a qual parecia-me pretender reformar uma realidade que no era a realidade efectiva e
observvel na escola vocacional de msica em que eu estudava. Uma das primeiras e mais
evidentes incongruncias foram as alteraes ocorridas em duas disciplinas cujos programas
estavam previstos para serem realizados em seis anos refiro-me s disciplinas de Educao
Musical e de Instrumento e que, de uma ano para o outro, passaram a ser leccionados em
oito anos. O que me levou a considerar este facto ainda mais absurdo que uma destas disci-
plinas, a de Educao Musical, tinha sido por mim realizada em cinco anos com uma acumu-
lao a meio do ano lectivo, do primeiro para o seu segundo ano. Era de facto algo que, para
mim e naquelas circunstncias, parecia ser um completo despropsito sem uma verdadeira
razo de ser que pudesse considerar vlida, i.e., que fosse fundamentada em razes de carcter
didctico-pedaggico.
Mas as incongruncias no ficavam s por aqui. A nova reforma que estava a ser im-
plantada pressupunha que os alunos fizessem uma opo pela frequncia do ensino vocacional
de msica sada do 4. ano de escolaridade, dizendo que nos ensinos da msica e da dana
h uma educao artstica e um adestramento fsico especficos, que tm de se iniciar muito
cedo, na maior parte dos casos at aos 10 anos de idade, constituindo assim uma opo voca-
cional precoce em relao generalidade das escolhas profissionais (Decreto-Lei n. 310/83,
de 1 de Julho: prembulo), quando na realidade os alunos que frequentavam o ensino voca-
cional de msica no Instituto Gregoriano de Lisboa11 eram, na sua generalidade, bastante mais
velhos do que aquilo que seria pressuposto por este enunciado de especificidade constante
do prembulo deste mesmo decreto-lei. Na realidade, alunos havia que, entrando com dezas-
seis, dezoito, ou mesmo mais, anos de idade, se vieram a tornar em msicos conhecidos da
nossa praa ou mesmo em professores da Escola Superior de Msica de Lisboa ou da actual
licenciatura em msica da Universidade de vora, desmentindo assim, pelo menos de uma
11 No momento em que escrevo estas palavras, uma das alunas aqui referidas, tendo entrado para o
Instituto Gregoriano de Lisboa com 15 anos de idade, encontra-se a realizar um doutoramento em
msica, rea de piano, na Universidade de Aveiro.
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forma aparente, a veracidade desta suposta necessidade de opo precoce pelo ensino voca-
cional de msica.
Por outro lado, cedo comearam a surgir vozes descontentes com a reforma operada por
este decreto-lei. Contudo, estas situavam-se mais ao nvel de ...questes de ndole pessoal e
no [em] justificaes de carcter cientfico, pedaggico ou mesmo ideolgico. (Gomes,
2000: 2). Podemos considerar que estas vozes utilizavam questes argumentativas que reivin-
dicavam uma especificidade do ensino vocacional de msica, questionando a razo de ser das
Escolas Superiores de Msica de Lisboa e do Porto criadas pelo Decreto-Lei n. 310/83, de
1 de Julho , mas cujos argumentos utilizados careciam de uma efectiva sustentabilidade e os
quais eram em grande parte derivados de uma manipulao intencional com o fim de denegrir
estas mesmas escolas superiores de msica. Nesta ordem de ideias situa-se a crtica efectuada
por diversas vezes de que as escolas superiores de msica estariam a admitir alunos deficien-
temente preparados ao nvel da sua formao musical prvia (Cfr. Peixinho, 1996), assim co-
mo a afirmao de que paradoxalmente, (...) [a formao ministrada nas escolas vocacionais
de msica] no constitui precedncia obrigatria para a prossecuo de estudos musicais de
nvel superior. (AAVV, 2000: 2). No entanto, num estudo por mim efectuado relativamente
situao existente j no final dos anos noventa (Cfr. Gomes, 2000), no me foi possvel con-
firmar esta suposta desarticulao existente entre os nveis superior e no superior do ensino
vocacional de msica, antes pelo contrrio, nomeadamente se atendermos a todo o discurso
legislativo produzido na sequncia da reforma do ensino vocacional artstico de 1983 e com
esta relacionado.
Concludo o Curso Superior do Bacharelato em Composio pela Escola Superior de
Msica de Lisboa, fui leccionar para uma escola vocacional de msica, inserida na rede parti-
cular e cooperativa, nos arredores de Lisboa, da qual me tornei Director Pedaggico no ano
lectivo de 1993-1994. No exerccio destas funes, tive a oportunidade de contactar, de uma
forma mais directa, com as diversas problemticas educativas que envolviam esta modalidade
de ensino, problemticas estas que desde cedo me pareceram requerer uma abordagem sria
dos problemas de ndole pedaggica que as afectavam e no uma abordagem com base em
meros preconceitos , ao contrrio do que era efectuado por outros colegas, os quais tendiam
a analisar o ensino artstico luz de concepes ultrapassadas do ponto de vista cientfico e
contra as quais no bastava evocar cegamente uma suposta especificidade do ensino voca-
cional da msica, especificidade esta que ningum tendia a definir de uma forma concreta e
operacional, mas antes que era referida como uma ideia algo difusa relacionada com as no-
es de talento e de vocao.
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Uma das questes que, no exerccio destas funes, me despertou mais a ateno foi a
lgica por detrs da argumentao de alguns professores no caso concreto, de piano ,
quanto necessidade de criao de iniciaes musicais a serem estabelecidas numa fase pr-
via ao primeiro ano oficialmente previsto para o ensino vocacional de msica. Esta lgica era
um prolongamento do que entretanto se tinha passado, entre 1985 e 1990, na Escola de Msi-
ca do Conservatrio Nacional, em Lisboa, e no Conservatrio de Msica do Porto, que, no
aceitando a equiparao dos novos oitavos graus de instrumento aos antigos sextos anos dos
respectivos cursos gerais12, acabaram por de facto os equiparar, no caso dos instrumentos que
tinham curso superior previsto na reforma de 1930 (Decreto n. 18881, de 25 de Setembro de
193013), ao antigo nono ano, i.e., ao terceiro ano dos respectivos cursos superiores14. Assim,
para evitar uma compresso de um programa de nove para oito anos, professores houve que
quiseram que as iniciaes musicais, ao nvel do seu instrumento, fossem uma forma de au-
mentar a escolaridade efectiva destes, de maneira a igualar ao novo curso complementar o que
estava anteriormente previsto para o respectivo curso superior. No entanto, para alm de igno-
rarem as perspectivaes psicolgicas sobre os estdios de desenvolvimento da criana, estes
pressupostos partiam de um princpio que consistia numa negao da aceitao das escolas
superiores de msica recentemente criadas, ao considerar o oitavo grau do curso complemen-
tar agora equivalente a um 12. ano de escolaridade como formao terminal capacitante
para o exerccio de uma actividade profissional ao nvel da msica. Tal atitude encontra justi-
ficao numa tentativa de auto-afirmao contra aquilo que consideravam ser um rebaixa-
mento do estatuto socioprofissional dos conservatrios de msica, que diziam ter ocorrido
com a reforma de 1983, ao retirar a estes a possibilidade de ministrarem cursos superiores, os
quais passavam a ser leccionados exclusivamente nas escolas superiores de msica entretanto
12 Conforme o que foi inicialmente previsto, na sequncia da reforma operada pelo Decreto-Lei n.
310/83, de 1 de Julho, pelos Despachos n. 42/SEAM/84, publicado na II. Srie do Dirio da Re-
pblica de 4 de Maio, n. 72/SEAM/84, publicado na II. Srie do Dirio da Repblica de 26 de
Novembro, e n. 78/SEAM/85, publicado na II. Srie do Dirio da Repblica de 9 de Outubro.13 Relativamente ao Conservatrio de Msica do Porto, esta mesma reforma foi-lhe aplicada atravs
do Decreto n. 18995, de 1 de Novembro de 1930.14 Os Decretos n.s 18881, de 25 de Setembro de 1930, e 18995, de 1 de Novembro de 1930, previam
cursos superiores em trs instrumentos (piano, violino e violoncelo), e, ainda, em canto e em com-
posio.
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criadas15.
de referir que, no perodo que medeia o incio do regime de experincia pedaggica
de 1971 e a aprovao do Decreto-Lei n. 310/83, de 1 de Julho, os docentes da seco de
msica do Conservatrio Nacional encaram como sendo natural a reconverso desta seco
numa instituio de ensino superior, assumindo, desta forma, uma posio idntica h j de-
fendida por Jos Viana da Mota em 1917, ao dizer referindo-se ao nmero excessivo de
alunos a cargo de cada professor que se o Conservatorio fosse o que deve ser, uma escola
superior, e se se supprimissem as aulas elementares (instituindo ento rigorosos exames de
admisso), j se limitaria consideravelmente o numero de discipulos. (Mota, 1917: 116). De
facto, num ofcio enviado pela Comisso Directiva da Escola de Msica do Conservatrio
Nacional (ex-seco de msica deste mesmo Conservatrio) ao Director-Geral do Ensino Su-
perior, expressamente referida esta associao ao ser dito que, no estando ainda oficiali-
zada a nova estrutura da Escola Superior de Msica de Lisboa (Conservatrio Nacional), a-
presentamos a estrutura provisria adoptada com base na experincia pedaggica iniciada
nesta Escola no ano lectivo de 1971-1972. (Ofcio de 24 de Junho de 1976, in CN, Docu-
mentao diversa). Contudo, o Decreto-Lei n. 310/83, de 1 de Julho, ao optar por uma lgica
de racionalidade administrativa, vai acabar por reconverter a seco de msica do Conservat-
rio Nacional, e escolas afins, em escolas de ensino bsico e secundrio, optando por criar de
raiz as Escolas Superiores de Msica de Lisboa e do Porto, as quais vo ser mais tarde inte-
gradas nos Institutos Politcnicos destas duas cidades. Este facto estar provavelmente na
base das atitudes tomadas por parte dos docentes destas escolas, os quais, no tendo efectua-
do, no seu percurso formativo, qualquer espcie de formao pedaggica, acabam por utilizar
argumentos que apelam a uma suposta especificidade do ensino artstico com o intuito de
sustentar um discurso que defende fundamentalmente os seus interesses pessoais, mas o qual
15 Esta leitura apresentada pelos docentes que, leccionando nos conservatrios de msica antes da
reforma de 1983, no transitaram para as escolas superiores de msica criadas como resultado da
reconverso do Conservatrio Nacional e escolas congneres. Na realidade, o argumento aqui apre-
sentado no totalmente verdadeiro, uma vez que os antigos Conservatrios foram juridicamente
extintos, sendo criado, em sua substituio, escolas superiores artsticas, nas reas da msica, tea-
tro, cinema e dana, e escolas bsicas e secundrias, nas reas da msica e da dana, pelo que as-
sistimos a uma manipulao argumentativa, de carcter intencional, visando a defesa de um con-
junto de interesses de carcter corporativo e no a um debate de ideias totalmente isento de pers-
pectivas centradas em interesses individuais estranhos aos argumentos utilizados.
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se apresenta como uma necessidade imperativa derivada de factores de ordem pedaggica
especficos de um ensino artstico que visa a formao dos futuros profissionais das artes.
Entrei para a Escola de Msica do Conservatrio Nacional, como docente da disciplina
de Anlise e Tcnicas de Composio, no incio do ano lectivo de 1996-1997, deparando-me
quase desde logo com um conjunto de situaes, nomeadamente ao nvel da atitude reactiva
primria e amorfa da generalidade do seu corpo docente, que no considerava serem muito
normais em algum que criticava de uma forma muito forte o status quo vigente. Isto levou a
que desde logo me envolvesse em projectos que, visando uma eventual mudana, fossem ra-
cionalmente sustentados e que procurassem enquadrar o conhecimento cientfico entretanto
acumulado ao nvel das Cincias da Educao. Um dos campos desde logo por mim explora-
dos foi o da psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem musical, pois era-me inconce-
bvel aplicar os mesmos programas e metodologias utilizadas anteriormente numa populao
escolar jovem e adulta, numa populao escolar que se pretendia que fosse constituda por
crianas e jovens em idade de frequncia do ensino bsico e secundrio. Contudo, isto no era
o que se tinha efectivamente passado como resultado do processo de resistncia implemen-
tao da reforma de 1983 ao nvel do ensino vocacional da msica talvez porque tal proce-
dimento se enquadrava num dos mitos fundadores existentes ao nvel deste tipo de formao,
i.e., no mito da precocidade , em que simplesmente as escolas vocacionais de msica ti-
nham aplicado os mesmos programas, pensados para um determinado contexto etrio, numa
populao cada vez mais nova, algo de que resultava o insucesso escolar e que acabava por
servir de fundamentao queles que advogavam a diviso, desde cedo, do ensino vocacional
de msica numa via de amadores e numa outra via de profissionais, pois este conceito de
especificidade servia de justificao para que poucos tivessem sucesso ao nvel desta mo-
dalidade educativa, uma vez que a fasquia era colocada a um nvel bastante elevado.
Esta minha atitude diferente face s questes com implicaes didcticas e pedaggicas
ao nvel do ensino vocacional de msica, tem-me colocado numa posio divergente em rela-
o a muitos dos docentes destas escolas, levando-me a procurar novas perspectivas ao nvel
das Cincias da Educao e da Psicologia, algo que, tirando raras excepes, no o que tem
acontecido em Portugal. A este propsito, refira-se o que, h j quase um sculo, Viana da
Mota (1917) escreveu:
At appario de Schumann, Liszt, Wagner, os msicos eram de todos os artistas os menos
instruidos. Chopin nunca lia, nem mesmo talvez os livros da sua amiga George Sand (...); de
Haydn diz-se que quando conversava com alguem nem parecia artista; Beethoven passou a eda-
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de viril n'um admiravel esforo de estudo para resarcir-se da deficiencia da instruo que rece-
bera na mocidade, e recuperar o tempo dessa forma perdido; e ainda nos nossos dias Bruckner, o
notavel sinfonista austriaco, no tinha o menor interesse pelas outras artes, sendo levado quasi
fra uma unica vez a um museu, uma outra a vr o Othello n'um theatro (a tragedia, no a ope-
ra).
Ha infelizmente ainda bastante gente que no comprehende a profunda relao que existe entre
a musica e as outras faces do nosso espirito, e quando uma creana mostra aptido excepcional
para a musica julgam sufficiente dar-lhe uma educao exclusivamente musical, descurando to-
dos os outros conhecimentos: quem se destina a ser musico, no precisa saber outra cousa. J
ouvi sustentar a seguinte these: O artista tem que ser profundamente estupido.
(Mota, 1917: 118)
De facto, Viana da Mota (1917) faz-nos sentir como se ele se estivesse a referir realidade
dos nossos dias. Basta olhar para os currculos dos actuais cursos ministrados pelas escolas
superiores de msica para observarmos uma concepo do msico muito prxima do que
aqui descrito16, e por Viana da Mota criticado, concepo esta na qual eu no me consigo re-
ver apesar de a encontrar expressa em muitas das atitudes e nos discursos dos actores do nos-
so meio artstico portugus.
Desta forma, a opo efectuada pela temtica da presente dissertao de mestrado, rela-
ciona-se com o facto de que, se por um lado, o ensino artstico ainda uma rea pouco estu-
dada e que tem sido tradicionalmente hostil a uma abordagem cientfica, no me possvel
conceber que se continue a persistir em atitudes e solues que, para alm de no serem en-
quadrveis numa sustentao fruto de uma reflexo intelectual sria sobre as problemticas
existentes, so em grande medida adoptadas em funo de interesses corporativos totalmente
alheios s necessidades dos alunos. Reflectindo uma preocupao idntica, Hargreaves (1986)
refere mesmo que some musicians, along with other artists, have been hostile to the scientific
study of their activities on the grounds that any attempt to analyse the complex phenomena
involved will necessarily trivialise and/or misrepresent them. (Hargreaves, 1986: 6). Numa
16 Apesar da perspectiva aqui apresentada no deixar de ser de carcter pessoal, se atendermos ao
plano de estudos do 2. ciclo da licenciatura bietpica em msica, variante de instrumento, da Es-
cola Superior de Msica de Lisboa, constatamos que esta apresenta, como currculo a ser realizado
durante um nico ano lectivo, as disciplinas de instrumento, de msica de cmara, de projecto ins-
trumental, e de seminrio (Cfr. Portaria n. 833/2000, de 22 de Setembro), o que constitui, mesmo a
um nvel meramente musical, uma concepo curricular bastante limitada.
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linha de pensamento semelhante a esta, e referindo-se atitude pedagogicamente conservado-
ra que caracterstica dos professores do ensino vocacional de msica17, Pereira (1991) diz
mesmo que
essa atitude to extremada parece ser baseada em trs aspectos fundamentais: (a) rejeio do
mrito de outro professor; (b) dedicao fantica a uma ideia ou mtodos abstractos, que pode-
riam ser mudados desde que testados, experimentalmente, e (c) uma ideia fixa, do professor, que
se algum aluno no consegue produzir atravs do seu mtodo porque, obviamente, no tem
talento musical18. (Madsen & Madsen, 1978).
(Pereira, 1991: 17)
Assim, penso ser necessrio procurar conhecer e compreender os processos histrico-
sociolgicos que esto na origem da construo da ideia de especificidade aplicada ao ensi-
no artstico e qual o papel que este conceito, e outros com ele relacionados como o conceito
de talento e o conceito de vocao desempenham, ao longo da sua histria, ao nvel das
representaes ideolgicas dos diversos actores intervenientes neste campo educativo em
Portugal, isto at porque uma justificao puramente psicolgica, ou mesmo neurolgica,
deste conceito de especificidade deixou actualmente de ter uma verdadeira razo de ser
(Cfr. Damsio, 2000; Gordon, 1993; Gordon, 1998; Gordon, 2000a; & Gordon, 2000b).
17 Independentemente do contexto cultural e nacional a que me refiro, utilizo a expresso ensino
vocacional de msica para designar toda e qualquer formao musical de carcter profissional ou
profissionalizante, no efectuando uma separao entre uma formao destinada a futuros profis-
sionais, de uma formao destinada a futuros amadores, dado que considero ser a nica diferen-
ciao possvel entre estas duas categorias, aquela que realizada ao nvel das motivaes extrn-
secas no caso dos profissionais , ou intrnsecas no caso dos amadores , que levam
efectivao destas mesmas aprendizagens.18 Esta justificao do talento como sendo funo da realizao de uma aprendizagem de sucesso
centrada num mtodo aleatrio, i.e., no de um dado professor/artista, acaba por ser o resultado de
um processo de auto justificao em anel, entre o se ser artista e o se ter talento, justificao
esta que realizada atravs de duas preposies que so simultaneamente, cada uma delas, causa e
efeito da outra. No deixar de ser sintomtico, e caracterstico, desta forma de encarar o ensino
artstico, a inexistncia prvia de uma definio objectiva dos pr-requisitos necessrios sua fre-
quncia (o que entendido por talento?), mas antes o se optar por um processo em que a justifi-
cao de excluso realizada em funo do eu que opera essa mesma excluso.
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JUSTIFICAO FACE REALIDADE
Considero que uma das principais razes que justificam uma investigao histrica ao
nvel da construo social do conceito de especificidade19, aplicado ao ensino artstico, diz
respeito ao facto de que, se por um lado, a Lei de Bases do Sistema Educativo refere que em
escolas especializadas do ensino bsico podem ser reforadas componentes de ensino artsti-
co (Lei n. 46/86, de 14 de Outubro: art. 8., n. 4) e que, ao nvel do ensino secundrio, po-
dem ser criados estabelecimentos especializados destinados ao ensino e prtica de cursos (...)
de ndole artstica (Lei n. 46/86, de 14 de Outubro: art. 10., n. 7), por outro lado, o Decre-
to-Lei n. 344/90, de 2 de Novembro, vai estabelecer que entende-se por educao artstica
vocacional a que consiste numa formao especializada, destinada a indivduos com compro-
vadas aptides ou talentos em alguma rea artstica especfica (Decreto-Lei n. 344/90, de 2
de Novembro: art. 11.), sendo que, por princpio, esta ...educao vocacional ministrada
em escolas especializadas, pblicas, particulares ou cooperativas (Decreto-Lei n. 344/90, de
2 de Novembro: art. 12., n. 1). Desta forma, estabelece-se, em termos conceptuais, uma dife-
rena entre uma educao artstica genrica destinada ...a todos os cidados, independente-
mente das suas aptides ou talentos especficos nalguma rea, sendo [esta] considerada parte
integrante indispensvel da educao geral (Decreto-Lei n. 344/90, de 2 de Novembro: art.
7.), e uma educao artstica de carcter vocacional fundada numa crena de que existem
aptides artsticas especiais, as quais so assimiladas s ideias de talento e de vocao 20.
19 A ideia de que para o exerccio profissional de uma arte, como a msica, necessrio ser-se porta-
dor de um conjunto de capacidades de carcter excepcional, , em termos histricos, um fenmeno
relativamente recente. De facto, a partir do sculo XVII que comea a surgir uma diferenciao
entre os diversos tipos de prtica musical hoje considerados, nomeadamente de uma prtica dita de
amadora e de uma outra prtica dita de profissional (Cfr. AAVV, 1993a), diferenciao esta
que est em parte ligada ao surgimento das religies protestantes e ascenso da burguesia en-
quanto classe social dominante, e a qual vai ser responsvel por uma progressiva substituio de
uma atitude musical de carcter participativo, como a descrita por Thomas Morley (Cfr. Aris,
1988; & AAVV, 1993c), por uma outra atitude musical de carcter passivo e contemplativo, esta
ltima ligada ao enriquecimento e afirmao social da prpria burguesia.20 Alguns dos conceitos utilizados pelo Decreto-Lei n. 344/90, de 2 de Novembro, podero resultar,
em parte, de um conjunto de confuses terminolgicas ou mesmo de um desconhecimento exacto
do que estes mesmos conceitos significam ou, pelo menos, podem significar. Nesta categoria con-
sidero a referncia efectuada aos alunos excepcionalmente dotados (artigo 6.), expresso esta
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Sintomtico do enraizamento de uma ideia de especificidade, ao nvel do ensino vo-
cacional de msica, o Regulamento Interno da Escola de Msica do Conservatrio Nacional,
o qual dispe sobre a ...especificidade do ensino do Conservatrio (AAVV, 2000: 1) como
sendo o resultado, entre outros, dos seguintes factores:
a) A cada um dos muitos instrumentos corresponder um curso diferente, com caractersticas
prprias;
b) [O] corpo docente ter a necessidade de manter uma actividade regular e intensa de estudo ou
prtica instrumental para [a] preservao e incremento dos recursos tcnico-artsticos reque-
ridos no ensino;
c) [O] ensino ser orientado para uma dimenso prtica e vivencial da msica;
d) Ter um processo de avaliao com relevo para as provas prticas individuais; ser um ensino
vocacional e no obrigatrio, exigindo um grande investimento financeiro da parte de quem
o pratica;
e) As aulas de instrumento/canto serem individuais, em espao individual adequado, no exis-
tindo o conceito de turma;
f) A aprendizagem ser prolongada e requerer um trabalho individual sistemtico ao longo de
vrios anos;
g) Dar relevo a valores estticos;
h) Ter, nas classes tericas e terico-prticas, uma constituio heterognea em termos etrios e
ao nvel do desenvolvimento musical dos alunos;
i) Os encarregados de educao no terem, na sua maioria, conhecimento prtico das exign-
cias deste tipo de ensino;
j) Os alunos permanecerem pouco tempo no espao fsico escolar, por constrangimentos curri-
culares e de espao fsico;
k) Exigir uma motivao suplementar para a participao dos alunos em actividades de apre-
sentao pblica fora do horrio lectivo e necessidade de sensibilizao dos encarregados de
que, sendo sinnima de sobredotado (etimologicamente, sobredotado algum que dotado acima
da mdia), , segundo Silva (1999), sinnimo de dotado, bem-dotado ou talentoso, e qual corres-
ponde, na lngua inglesa, o vocbulo gifted (Cfr. Silva, 1999), vocbulo este que se identifica con-
ceptualmente com a ideia de vocao e/ou de talento aplicada ao ensino especializado artstico
(Cfr. Subnotnik et al., 1995). Colocando de uma forma simplificada o paradoxo que daqui emerge,
torna-se possvel afirmar que, o artigo 11. do Decreto-Lei n. 344/90, de 2 de Novembro, determi-
na que o ensino artstico especializado se destina a alunos sobredotados, i.e., alunos excepcional-
mente dotados, o que torna redundante, e talvez sem sentido, a redaco dada ao seu artigo 6..
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educao para o efeito;
l) [O] espao fsico ter de ser vasto e adequado, uma vez que proliferam as aulas e o estudo in-
dividuais, muitas vezes com instrumentos que no podem ser facilmente mudados de sala;
m) Do ponto de vista da contratao de docentes a escola est[ar] sujeita existncia de uma
oferta diminuta, frequentemente insuficiente para as necessidades reais;
n) Requer[er] aptides partida, a serem sujeitas a exame de entrada cujo resultado pode con-
dicionar o acesso ao estabelecimento de ensino.
Quanto legislao existente, inadequada realidade (...). Paradoxalmente, esta formao b -
sica no constitui precedncia obrigatria para a prossecuo de estudos musicais de nvel supe-
rior.
(AAVV, 2000: 2)
No entanto, estas ditas especificidades carecem, em grande parte, de um carcter de perti-
nncia, de sustentabilidade, e at mesmo de veracidade. A este propsito, de referir que, ao
contrrio da afirmao de que existe, por parte deste docentes, uma ...necessidade de manter
uma actividade regular e intensa de estudo ou prtica instrumental para [a] preservao e in-
cremento dos recursos tcnico-artsticos requeridos no ensino, no sero muitos os docentes
que, na realidade, mantero uma prtica de estudo como a aqui referida, uma vez que um n-
mero bastante significativo destes docentes encontra-se em regime de acumulao com outras
escolas do ensino vocacional de msica. De uma forma geral, considero que, constituindo o
enunciado de especificidades aqui transcrito uma tentativa de justificao de um sentimento
de diferena que estes professores consideram ter em relao generalidade dos restantes