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FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIALUERJ

Comunicação ereligiosidades

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Ano 11, nº 21, 2º semestre de 2004

CATALOGAÇÃO NA FONTEUERJ/Rede Sirius/PROTAT

L832 Logos: comunicação e universidade. - Vol. 1, n. 1 (1990) - . -Rio de Janeiro: UERJ, Faculdade de ComunicaçãoSocial, 1990 -

SemestralISSN 0104-99331. Comunicação - Periódicos. 2. Teoria da informação -

Periódicos. 3. Comunicação e cultura - Periódicos. 4. Sociologia- Periódicos. I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.Faculdade de Comunicação Social.

CDU 007

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4 LOGOS 21: Comunicação e religiosidades

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIROCENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADESFACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

ReitorNIVAL NUNES DE ALMEIDAVice-reitorRONALDO MARTINS LAURIASub-reitora de GraduaçãoRAQUEL MARQUES VILLARDISub-reitora de Pós-Graduação e PesquisaALBANITA VIANA DE OLIVEIRASub-reitora de Extensão e CulturaMARIA GEORGINA MUNIZ WASHINGTONDiretor do Centro de Educação e HumanidadesMARICÉLIA BISPO PEREIRAFaculdade de Comunicação SocialDiretor: JOÃO PEDRO DIAS VIEIRAVice-diretor: HUGO RODOLFO LOVISOLOChefe do Departamento de JornalismoRICARDO DE HOLLANDAChefe do Departamento de Relações PúblicasDENISE DA COSTA OLIVEIRA SIQUEIRAChefe do Departamento de Teoria da ComunicaçãoMÁRCIO SOUZA GONÇALVES

LOGOS - Ano 11, n. 21, 2º semestre de 2004Logos: Comunicação & Universidade (ISSN 0104-9933) é umapublicação acadêmica semestral da Faculdade de Comunicação Socialda UERJ e de seu Programa de Pós-Graduação em Comunicação(PPGC) que reúne artigos inéditos de pesquisadores nacionais einternacionais, enfocando o universo interdisciplinar da comunicação emsuas múltiplas formas, objetos, teorias e metodologias. A revista destacaa cada número uma temática central, foco dos artigos principais, mastambém abre espaço para trabalhos de pesquisa dos campos das ciênciashumanas e sociais considerados relevantes pelos Conselhos Editorial eCientífico. Os artigos recebidos são avaliados por membros dos conselhos

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e selecionados para publicação. Pequenos ajustes podem ser feitos duranteo processo de edição e revisão dos textos aceitos. Maiores modificaçõesserão solicitadas aos autores. Não serão aceitos artigos fora do formato etamanho indicados nas orientações editoriais e que não venhamacompanhados pelos resumos em português, inglês e espanhol.

Editores: Prof. Dr. João Luís de Araújo Maia e Profa. Dra. Denise daCosta Oliveira SiqueiraConselhos Editorial e Científico: Ricardo Ferreira Freitas (Presidentedo Conselho Editorial), Luiz Felipe Baêta Neves (Presidente do ConselhoCientífico), Danielle Rocha Pitta (UFPE), Fátima Quintas (FundaçãoGilberto Freyre), Henri Pierre Jeudi (CNRS-França), Héris Arnt (UERJ),Ismar de Oliveira Soares (USP), Luis Custódio da Silva (UFPB), MárcioSouza Gonçalves (UERJ), Michel Maffesoli (Paris V - Sorbonne), Nellyde Camargo (USP), Nízia Villaça (UFRJ), Patrick Tacussel (Universitéde Montpellier), Patrick Wattier (Université de Strassbourg), PauloPinheiro (UniRio), Robert Shields (Carleton University/Canadá), RonaldoHelal (UERJ) e Alessandra Aldé (UERJ).Editoração: Laboratório de Editoração Eletrônica (LED/FCS/UERJ)Diagramação: Fabiana Antonini e Rita AlcantaraCapa: Adriana MeloInformática: Franklin LoureiroRevisão: João Maia (FCS/UERJ); Luciana Lorensone e Marcelo F.Rodrigues (Comuns/UERJ).

Endereço para correspondência:Universidade do Estado do Rio de JaneiroFaculdade de Comunicação SocialPPGC - Mestrado em ComunicaçãoRevista LogosA/C Profa. Dra. Denise da Costa Oliveira Siqueira e Prof. Dr. João MaiaRua São Francisco Xavier, 524/10º andar, sala 10129, Bloco FMaracanã - Rio de Janeiro - RJ - Brasil. CEP: 20550-013Tel.fax: (21) 2587-7829. E-mail: [email protected]

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6 LOGOS 21: Comunicação e religiosidades

SumárSumárSumárSumárSumárioioioioio

ApresentaçãoApresentaçãoApresentaçãoApresentaçãoApresentaçãoComunicação e religiosidadesErick Felinto 07

ArtigosArtigosArtigosArtigosArtigos

Mídia e religiãoA tecnoreligião e o sujeito pneumáticono imaginário da cibercultura 12Erick Felinto

Por “inspiración sensible” - estratégias jesuíticasde conversão 31Eliane Cristina Deckman Fleck

A comunicabilidade antropofágicado Santo Daimes na Terra do Sol 55Fernanda Carlos Borges

A cena enunciativa e o ethos dos pregadoresno discurso das igrejas eletrônicas 70Karla Regina Macena Pereira Patriota

As encenações do “televangelismo” comoforma de entrenimento 88Marco Souza

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Conexões transdisciplinaresConexões transdisciplinaresConexões transdisciplinaresConexões transdisciplinaresConexões transdisciplinares

Internet, imprensa e as eleições de 2002:pautando notícias em tempo real 107Alessandra Aldé e Juliano Borges

A juventude como valor contemporâneo:Forever young 133Ieda Tucherman

Subjetividade e alteridade: os pentecostais negrosno Brasil e nos Estados Unidos 150Marcia Contins

Mídia e religião: a “nova era” nomercado editorial 174Fátima Regina Gomes Tavares e Joelma do Patrocínio Duarte

Mídia, religião e política: a evangelizaçãoda campanha presidencial 185Alexandre Brasil Fonseca

ResenhaResenhaResenhaResenhaResenha

Diferentes possibilidades da crueldade 208Sônia Pedrosa

Orientação editorial Orientação editorial Orientação editorial Orientação editorial Orientação editorial 216

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No alvorecer do século 21, a religião e os fenômenosreligiosos continuam sendo um território quase desco-nhecido em nosso mapa dos estudos de comunicação.Mesmo em outros campos onde a religião já conquistouum espaço tradicional, como a sociologia e a an-tropologia, a situação não é muito melhor. Os estudosque abordam o tema ainda ocupam, de maneira geral,uma posição de certa marginalidade. A universidade eo domínio do pensamento teórico apresentam umcomportamento quase que atávico em relação aos temasreligiosos. Não é incomum que tais temas sejamencarados com desconfiança, e o pesquisador que a elesse dedica visto como alguém que secretamente professaalgum dos credos objetos de seus estudos.

Esse temor em relação à reflexão sobre os fenômenosreligiosos tem sua origem nos processos que, durante amodernidade, consagraram a separação definitiva entreciência e superstição, entre o saber e a crença, entre oestado e a religião. A universidade e todas as outrasinstituições culturais de produção do conhecimento sesecularizaram, deixando para trás o sombrio mundo daespeculação metafísica e dos credos populares. Contudo,esse processo de transição não ocorreu sem traumas epercalços. A religião, os mitos, o imaginário não desa-

Apresentação

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pareceram simplesmente do horizonte do conhecimentoracional, mas antes parecem ter se “escondido”temporariamente nos interstícios da razão.

Com o declínio do projeto moderno, esses interstíciose brechas do saber secular se esgarçaram, permitindo queas potências culturais da imaginação eclodissemnovamente com força total. É nesse sentido que podemosentender um aspecto fundamental das obras de muitospensadores contemporâneos que alertam para a impor-tância vital do imaginário e das pulsões religiosas em nossotempo. Gaston Bachelard, Gilbert Durand e MichelMaffesoli foram alguns dos principais arautos desseprocesso de revalorização do imaginário e da religião. ÉMaffesoli, por exemplo, quem adverte que mesmo emmeio aos discursos de matriz iluminista, os mitos e aimaginação começam a eclodir com força total; “para alémdos vários dogmatismos que começam a perder o fôlego, a importânciado imaginário é agora reconhecida, e muitos trabalhos mostraramcomo ele estruturava a socialidade básica” (1984: 65).

Se a tese de Durand estiver correta, e os regimes doimaginário de fato precederem a estruturação dopensamento racional, então não deve surpreender queos mitos se encontrem em todos os domínios da vidasocial. Ainda mais em uma época na qual o tribunalcontra o projeto da razão já foi constituído com tantaveemência por pensadores como Nietzsche e Foucault.

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Talvez seja esse declínio da racionalidade modernaque explique, pelo menos em parte, o número cadavez maior de estudiosos que percebem a necessidadede levar a sério os fenômenos de natureza religiosa.Não precisamos fazer muito esforço para definir umabibliografia básica, que vai de Derrida (2000, 2002)a Eco (2001), passando por Vattimo (1998, 2004),Girard (1999) e Latour (2002).

Não tenho dúvidas de que em nossa área de estudos,a comunicação, os temas religiosos irão merecer atençãocada vez maior dos pesquisadores. Isso não apenasdevido ao fato de que diversas religiões e seitas têmproliferado em nossa pós-modernidade fazendo uso dosmeios de comunicação de massa, mas também porquenossos discursos sobre os aparatos comunicacionais –televisão, rádio, internet, entre outros – sempre estiverammarcados por significativos vetores de irracionalidade.O estudo da forma como tais tecnologias têm sidorecebidas no seio da cultura revela um peculiar“imaginário tecnológico” que associa os aparatoscomunicacionais a fenômenos de natureza metafísica.Como entender, por exemplo, as variadas metáforas deorigem religiosa que hoje impregnam os discursos sobreas novas tecnologias digitais (o ciberespaço como “novaJerusalém Celestial”, o internauta como “anjo virtual”,o hipertexto como “texto sagrado”)?

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No âmbito da Pós-graduação em Comunicação So-cial da UERJ, essas curiosas realidades culturais têmconstituído um dos mais interessantes objetos de estudosdo grupo Comunicação e Tecnocultura: meios e imaginários tecno-lógicos. Os estudos de comunicação já estabeleceram umasólida tradição de análise das representações culturais deidéias como identidade ou beleza nos meios de comuni-cação. Contudo, poucos são os estudos que buscam inves-tigar os modos como a cultura representa e imagina ospróprios aparatos de comunicação. E nessa investigaçãodo nosso “imaginário tecnológico”, os elementos denatureza religiosa certamente ocuparão lugar de destaque.

Nosso encontro com o problema religioso parece hojeser um fato inescapável. A comunicação, como disciplinaque estuda o campo das relações culturais tecnologica-mente mediadas, não pode, de modo algum, subtrair-se aesse encontro. O retorno do religioso e do sagrado, quero queiramos, quer não, parece um dado definitivo. Nessacena onde o imaginário lentamente ocupa todas as posi-ções que antes cabiam à razão, nossa tarefa deve ser a demanter um olhar atento e crítico – de modo a não permitirque o domínio absoluto da razão seja agora substituídopor um absolutismo da imaginação. Nos estudos contidosneste volume, esperamos que o leitor encontre uma con-tribuição, ainda que modesta, a esse importante propósito.

Erick Felinto

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Artigos Artigos Artigos Artigos Artigos

Mídia e religião

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A tecnoreligião e o sujeito pneumático no imaginário da cibercultura

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A tecnoreligião e o sujeitoA tecnoreligião e o sujeitoA tecnoreligião e o sujeitoA tecnoreligião e o sujeitoA tecnoreligião e o sujeitopneumático no imagináriopneumático no imagináriopneumático no imagináriopneumático no imagináriopneumático no imaginário

da ciberculturada ciberculturada ciberculturada ciberculturada ciberculturaErick Felinto*

RESUMOEste trabalho oferece uma análise inicial de uma das metáforas maiscorrentes do discurso contemporâneo sobre a cibercultura: a imagemdo anjo do ciberespaço. Ao comparar o cibernauta com um anjoque navega pelo empíreo do ciberespaço, autores como Lévy eBenedikt contribuem para uma mistificação do potencial “espiritual”das novas tecnologias, deslocando assim o problema da materialidadetécnica para uma espécie de afirmação do sublime tecnológico.Palavras-chave: ciberespaço, anjo, imaginário tecnológico,cibercultura

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“Yet I am the necessary Angel of the earth,since, in my sight, you see the earth again, clearedof its stiff and stubborn, man-locked set, and, in

my hearing, you hear its tragic drone”(Wallace Stevens, Angel Surrounded by Paysans, 496)

“Ein jeder Engel ist schrecklich”(Rainer Maria Rilke, Duineser Elegien, 443)

“A los intelectuales ciberculturales que nodesisten del pensamiento crítico”

(Andoni Alonso e Iñaki Arzoz, da dedicatóriade La Nueva Ciudad de Dios)

A história da racionalidade ocidental é marcadapor seu embate, furioso e constante, contra o mito e aimaginação, tidos como produtos de uma irracionali-dade desvairada. A razão, o progresso e a ciência afir-maram, sob o influxo das poderosas forças damodernização, sua superioridade sobre essas ex-pressões de uma infância da humanidade. Superadasas fantasias irresponsáveis do imaginário mítico, aciência e a tecnologia viriam, assim, decretar a vitóriafinal da razão no apogeu da modernidade. Mas ahistória tomou um rumo inesperado e, como bemadverte Michel Maffesoli, o misterioso passou a seratuante “justamente naquilo que parece querer excluí-lo! Sejanas práticas da vida cotidiana ou nos arcanos do processo deconhecimento, tal o retorno do recalcado, o fictício perfura oreal, tornando-o singularmente mais atraente” (1984: 65).

O misterioso, o mítico e o imaginário retornaram,portanto, no seio dos domínios onde precisamente

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não poderiam ou deveriam penetrar: nos discursossobre a ciência e a tecnologia. Como um fantasmaque insiste em voltar e revelar uma fala que foireprimida (Cf. Hetherington, 2001), como umrevenant espantoso, o mito deságua incessantementenas represas da tecnociência contemporânea.Fantasma que, de fato, seduz ao mesmo tempo emque assusta. No cerne de narrativas contemporâneasque defendem a supremacia da ciência e o poder semlimites da tecnologia, o imaginário vem constituiruma fala parasitária corroendo a razão e promovendoo mistério e o mítico. Difícil não se surpreenderdiante dessa inesperada aliança. Ela não é fantasiade uns poucos sonhadores apaixonados por cenáriospré-modernos, mas proposta de cientistas e scholarsnas mais diversas áreas do conhecimento. Em obrasque vão da crítica literária à física, passando pelafilosofia e pela biologia, o imaginário mítico seexprime com um vigor inesperado. O que dizer, pois,de um livro como The physics of immortality (1995),do respeitado físico Frank J. Tippler, onde se propõeestabelecer profundas relações entre a cosmologiamoderna e as tradicionais visões religiosas sobre adivindade e a ressurreição dos mortos? Ou do libelodo igualmente respeitado hebraísta Richard EliottFriedman, The disappearance of God (1995), no qualse sugere uma nova forma de religião universal, mistoparadoxal de ciência, misticismo e nietzscheanismo?A lista pode continuar, passando pelo espantosopanfleto de Harold Bloom, Omens of millennium(1996), em que a experiência estética e a críticaliterária se transformam no fundamento para a

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proposição de um gnosticismo renovado que,segundo Bloom, já estaria mesmo na base das grandestradições religiosas norte-americanas; ou então ocurioso La structure absolue (1965), do filósofoRaymond Abellio, ex-aluno dos célebres semináriosde Alexandre Kojève, agora convertido em gnóstico,proponente de uma filosofia onde a fenomenologiade Husserl se encontra com a mística judaica e comas tradições religiosas da Índia.

No campo do discurso científico, essa integração doracional e do mítico – grande sonho de todo romantismo– foi denunciada com rigor e clareza pela epistemólogaDominique Terré-Fornacciari. O fenômeno daaproximação, entre ciência e mística, ali definido comoas “núpcias de Apolo e Dioniso”, é descrito como apenetração de vetores de irracionalidade, envolvendodimensões retóricas, teóricas e políticas (1991: 12). Essaparadoxal aliança entre razão e imaginação é responsávelpela produção de libelos em favor da sacralização daciência ou da “cientifização” do sagrado, como no casodos populares livros de Fritjoff Capra. E, se já quisermosnos limitar ao horizonte específico da cibercultura, o“ensaio-ficção” de Andoni Alonso e Iñaki Arzoz, Lanueva ciudad de Dios, registra e critica o surgimento deum impulso e de um discurso tecno-herméticos naliteratura cibercultural contemporânea (2002). Deforma mais tradicional e comprometida com o discursoacadêmico, Erik Davis também mapeia, em seu Techgnosis(1998), o vasto conjunto das imagens e metáforasreligiosas que assolam as atuais ciberutopias.

Neste trabalho, segundo a concisão aqui exigida,pretendo limitar-me a somente alguns aspectos do

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complexo e intrigante fenômeno da tecnoreligião. Emespecial, dedico-me à análise do que sugiro nomearcomo o sujeito pneumático do imaginário cibercultural.O termo, que sem dúvida irá soar divertido aos nossosouvidos, tem origem gnóstica, e sua escolha não éinfundada. Nos primeiros tempos da difusão docristianismo nas regiões orientais do vasto ImpérioRomano, irá florescer um conjunto de seitas sincréticascombinando idéias cristãs, neoplatonismo e as religiõesde mistérios pagãs. Esse conjunto de seitas é designadogenericamente como gnosticismo, já que todas sebaseavam fundamentalmente na idéia da posse de umconhecimento secreto (gnosis) como forma de salvaçãoespiritual. O gnosticismo foi largamente estudado porfilósofos e historiadores da religião como um dosfenômenos mais intrigantes do mundo antigo (e, quiçá,também, sob certos aspectos, do moderno)1. Osgnósticos tinham horror à matéria e criam a necessidadeda superação do corpo físico, no qual a verdadeiraessência do homem estaria aprisionada – uma idéia quelembra o clássico calembour platônico entre as palavrassoma (corpo) e sema (prisão). Essa superação dos limitescorporais poderia ser realizada por uma categoria espe-cial de sujeitos, no interior das práticas religiosas dognosticismo. Como explica Guillermo Fraile:

Os gnósticos tinham a pretensãoaristocrática de elevar-se por cima do vulgo.Dividiam os homens em materiais (choicum),psíquicos ou animais e pneumáticos ou espirituais.Os últimos participam de uma natureza deordem superior, à qual corresponde umconhecimento mais elevado que o da fé

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(gnosis, pistis sophia), inacessível ao comum doshomens e reservado a uma minoriaprivilegiada” (1960: 92).

A aproximação entre gnose, tecnociência ecibercultura também foi sugerida, anteriormente, porestudiosos das mais diversas linhagens intelectuais,como o sociólogo Hermínio Martins ou o já mencionadocrítico cultural Erik Davis. Para este último, a tecnognosepode ser definida como a “história secreta dos impulsosmísticos que continuam a impulsionar e sustentar a obsessão domundo ocidental com a tecnologia, e especialmente com suastecnolologias de comunicação” (1998: 2). Para o primeiro,certas tendências do pensamento cibercultural (porexemplo, o projeto tecnofeminista deo ciborgue deDonna Haraway) retomam “o sonho gnóstico detranscender a diáspora dos seres” (1996: 191).

Nesse sentido, torna-se possível falar em uma“religião da tecnologia”, como faz o historiadorDavid Noble (1999), mas, de maneira ainda maisexpressiva, em uma tecnoreligiosidade própria daimaginação da cibercultura. Um culto com seuspróprios sacerdotes, doutrinas e objetos de adoração.Figura central desse culto religioso é a representaçãode uma forma de subjetividade liberta dos limitesdo corpo, em última instância, um self quase divinoe de natureza espiritual (pneuma) análoga à dosdetentores da pistis sophia gnóstica. Na literaturacibercultural, essa subjetividade aparecefreqüentemente traduzida com a metáfora do anjo.É assim que Nicole Stenger, por exemplo, imagina onavegante do ciberespaço: “todos nós nos tornaremosanjos, e pela eternidade! Anjos altamente instáveis,

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hermafroditas, inesquecíveis em termos de uma memóriacomputadorizada” (1992: 52). O ciberespaço é, então,caracterizado como território sagrado (Stengers,1992: 54), novo Éden (Benedikt, 1992: 13) ou NovaJerusalém Celestial (Wertheim, 1999: 18 e ss.) ondevagam livremente os “corpos angélicos” dosinternautas conectados em rede:

Meu corpo angélico no mundo virtualexprime minha contribuição para a inteligênciacoletiva, ou minha postura singular em relaçãoao saber comum. Ora, esse corpo angéliconão atinge jamais a extensão completa domundo virtual que o contém e que é como oAnjo do coletivo (Lévy, 1998: 93).

A passagem é certamente tão hermética quantoas metáforas que emprega: tanto no sentido de serintrincada, obscura (ou em última instânciaincompreensível), como no sentido de ser tributáriade uma gnose nos mesmos moldes daquela tributáriado lendário Hermes Trismegisto, inventor deinumeráveis tecnologias espirituais e materiais.

Um dos traços mais comuns do uso de metáforascomo a do anjo é sua imprecisão. Essa indefiniçãonão é uma qualidade acidental, mas revela, na verdade,uma prática retórica típica de certos discursosciberculturais – e também dos discursos esotéricosou religiosos. Na descrição de realidades numinosas,pode-se atuar apenas por aproximação tateante eanalogias vagas. O objeto a ser apresentado semprese subtrai aos poderes, necessariamente limitados, dalinguagem humana. John Perry Barlow, por exemplo,utiliza a figura do anjo para definir qualquer entidade

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informacional (Cf. Zaleski, 1997: 39), metáfora quede fato não parece esclarecer grandemente o conceito,mas que possui sem dúvida grande força poética esugere os grandes poderes da informação2.

Na antiga cultura hebraica, a figura do anjo apareciacomo uma espécie de enviado ou mesmo como umaspecto visível da divindade. Na verdade, a palavrahebraica málach, derivada da raiz laach, “delegar”,“enviar”, significava simplesmente “mensageiro”.3Friedman nota que muitas narrativas bíblicas quemencionam a ação de anjos confundem momentos emque o anjo fala por Deus com momentos onde o próprioDeus parece se manifestar diretamente. Essa confusãose desfaz, segundo Friedman, se aceitarmos a idéia deque os anjos não são criaturas independentes de Deus,mas são antes “concebidas como expressões da presençade Deus” (1995: 12)4. Também nossos anjos ciberes-paciais podem ser encarados como uma forma de apre-sentação do divino, ou pelo menos como expressõesde um desejo de divinização. A subjetividade pneu-mática não se contenta em cumprir o papel demensageira da grande divindade informacional, elaalmeja tornar-se um análogo do divino. Eis o sonho dePierre Lévy: “por que não tentar constituir intelectuais coletivoscapazes de atingir a liberdade divina?” (1998: 100).

A figura mítica da subjetividade pneumáticacarrega consigo uma série de mitos ancilares, todosde algum modo conectados à idéia da superação doslimites impostos pelo corpo e da divinização dainteligência em rede. Um dos mais interessantes é oque se pode definir como mito da comunicação to-tal. Anjos incorpóreos vagando pelo ciberespaço não

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encontram barreira alguma para estabelecer conexões ecomunicar-se. Quando nos comunicamos através docomputador, imagina Stewart Brand, nos relacionamos“como anjos (...) como essas inteligências incorporais de grandeintimidade” (apud Dery, 1996: 56). A intimidade possibili-tada por essa forma de comunicação angelical se apresen-ta, de fato, como absoluta. Ela implica o desaparecimentodas próprias fronteiras do ego, no sentido de resultar emuma entidade próxima do que Lévy denomina“inteligência coletiva”. Nesse sentido, o mito põe emjogo também a própria noção de mediação, já que o idealda comunicação total envolve o desaparecimento domeio. Imediatez, instantaneidade, intimidade: eis aspalavras de ordem da mitologia da comunicação total.Aquilo que é imediato é de natureza espiritual. Sem omeio, sem a dureza da matéria, os anjos ciberespaciaispasseiam livremente pelos virtualmente infinitos domíniosda rede. Se compartilharmos da tese de Bolter e Grusin,nossa cultura tecnológica sofre do fascínio pelo tema daimediação. E, mais que nunca, graças às novastecnologias digitais, a hipermediação equivale àimediação. Desejamos desfazermo-nos de nossos meiosno ato mesmo de multiplicá-los incessantemente: “a lógicada imediação dita que o próprio meio deve desaparecer e deixar-nos em presença da coisa representada” (2002: 9).

Mas será que o mito da comunicação total ainda podeser visto como uma real expressão do desejo comunica-cional? Comunicação implica alteridade, a relação coma diferença e a manutenção de certa distância. As fanta-sias da comunicação angelical conduzem ao desapareci-mento das identidades definidas e, em última instância,à própria noção de singularidade. Como nos antigos gran-

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des sonhos de unidade mística, a inteligência coletivapode apenas dissipar toda alteridade num mar absolutode indiferença. Os místicos descreveram essa experiênciado desaparecimento de si e da vivência do uno: nocheoscura del alma, em San Juan de la Cruz, Übernichts, emÂngelus Silesius. E não existe linguagem apropriada paradescrevê-la, pois é incomunicável. A unidade absolutanão permite o discurso; pelo contrário, abole-o, já queno todo não existe a necessidade (ou possibilidade) dedizer coisa alguma. O anjo, mediador entre Deus e ohomem, também nasce desse desejo de imediação, poisnão possui identidade própria, pois pode ser entendidocomo manifestação da própria divindade: mídia imediata.Ele certamente transmite algo, mas trata-se de um algoimperativo, que pouco dá margem à resposta ou ao diá-logo. O anjo é expressão de uma voz absoluta, e, nessesentido, ele anula a possibilidade da comunicação paraimpor uma palavra total, única, final. A ilusão da comu-nicação total presente na tecnocultura contemporânea étambém denunciada por Lucien Sfez em outros termos:

Em um universo onde tudo comunica,sem que se saiba a origem da emissão, semque se possa determinar quem fala, seja omundo técnico ou nós mesmos, nesseuniverso sem hierarquias, exceto asemaranhadas, no qual a base é o cimo, acomunicação morre por excesso decomunicação e se acaba numa interminávelagonia de espirais. É a isso que nomeiocomo “tautismo”, neologismo que contraiautismo e tautologia, embora evocando atotalidade, o totalitarismo (1988: 32-33).

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Outro mito-apêndice do imaginário do anjociberespacial é a fantasia da mobilidade total. Imersoem um mundo sem fronteiras, sem limites, o“ciberanjo” desfruta da mais absoluta liberdade demovimentos. Como subjetividade pneumática, podedeslocar-se ou estender-se à vontade; pode atémesmo almejar a ubiqüidade. Na verdade, não setrata apenas de mobilidade, senão da possibilidadede modelar o ‘espaço’ circundante. Como assinalaMargaret Morse, no imaginário do ciberespaço e dasubjetividade digital, reside uma resposta aocomando: “Dê-me um outro mundo!” (1998: 183). Ecom um sentido evidente de assombro, Morse narrasua primeira experiência de realidade virtual como adescoberta de um espaço responsivo. O espaço digi-tal responde aos comandos do anjo, seu mover-se éum modelar daquilo que o cerca. Como descreveMarcos Novak, “o ciberespaço é um habitat para aimaginação” (1992: 225). É o céu etéreo e fluídicopróprio à morada dos anjos.

A mitologia angelical, que de formas diversas estevedesde sempre presente nas mais variadas tradiçõesreligiosas, parece fortalecer-se em épocas de crise aguda.Essa, pelo menos, é a tese de Harold Bloom, que encaraa figura angelical como um sinal do milênio (Omens ofmillennium), como algo que se manifesta nos horizontesdo sonho, da morte e da crise. Neste agudo momentode grandes transformações e agonias culturais, amitologia dos anjos ressurge com força total, ainda quemuitas vezes de forma corrompida pela cultura popu-lar. Para Bloom, a figura autêntica do anjo não podeser reduzida à imagem do simples guardião propalada

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pela cultura massiva; ele deve ser, antes, o portador demensagens proféticas e profundas visões (1996: 42).Nesse sentido, a metáfora do anjo ciberespacial talvezpudesse ser encarada como uma expressão (digital)desse autêntico significado (um significado gnóstico,como destaca Bloom) do símbolo angelical. Ele aponta,no âmbito das fantasias “tecnoreligiosas”, para oaspecto visionário atribuído a tecnologias como a dociberespaço (Lieb, 1998: 65). Mas mesmo nesse sentido,o novo anjo acaba sendo apenas um êmulo bastardodo original. Ele é mais sintoma, aspecto de um processode mistificação ou fetichização do tecnológico do quemensageiro profético que revela a essência dotecnológico. Não é revelação, é mera informação.

A “visão” trazida pela figura da subjetividadepneumática do ciberespaço, pelo “corpo angélico” ouinteligência plural de Lévy, parece traduzir um profundoanseio da cultura contemporânea por uma forma deespaço mental coletivo, expresso, por exemplo, nocrescente interesse por fenômenos paranormais eficções que lidam com tais temas. Como afirma Mar-garet Wertheim, “um dos grandes apelos do ciberespaço é o deoferecer uma arena coletiva imaterial não após a morte, mas noaqui e agora da terra” (1999: 234). Mas a pretensão finaldas imagens que freqüentemente povoam os entusiastasdiscursos sobre o ciberespaço aponta para expectativasde transcendência do aqui e agora, de superação docorpo e dos limites espaço-temporais por ele imposto.Essa expectativa fundamenta-se, assim, nos princípiosde desmaterialização corpórea e extensão da cons-ciência (chegando mesmo, como vimos, ao rompimentodas fronteiras da consciência individual). De fato, a

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maior parte dos cibermitos, senão todos eles, parecemarticular-se em torno do tradicional par corpo/espíritoou substância extensa e substância pensante, naterminologia cartesiana. A um horror da materialidadetipicamente gnóstico, soma-se o desejo da expansãoinfinita ou do rompimento dos limites – a “prazerosaconfusão de fronteiras”, como define Donna Haraway(2000: 42). Esse imaginário impede pensar o importanteimpacto material das tecnologias no ambiente culturale nos processos de acoplagem entre organismo emáquina, impacto explorado por teorias como a dasmaterialidades da comunicação (Cf. Gumbrecht &Pfeiffer, 1994). A tecnologia é imaginada como algoprogressivamente invisível, imaterial e espiritual, emlugar de ser pensada na sua concretude num ambientede sujeitos igualmente materiais. Tal imaginárioenfraquece, assim, qualquer perspectiva que “reconheçae celebre a finitude humana como uma condição do ser humano,e que entenda a vida humana como embebida em um mundomaterial de grande complexidade, do qual dependemoscontinuamente para nossa sobrevivência” (Hayles, 1999: 5).

Na retórica peculiar desses discursos “ciberutópicos”,o sujeito alegremente se despoja do corpo para vivenciara fantasia de um poder sem limites. Análogo do divino,ele constrói e reconstrói mundos a seu bel prazer. Deque outro modo entender o acento extraordinariamentegnóstico das palavras de William Covino?

Entro na Net teclando o exato código re-querido por meu software de transmissão, ematerializo as partes desse imenso corpo ciber-espacial através de códigos adicionais. Assim,ao teclar ‘ukanaix.cc.ukans.edu’ para acesso ao

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domínio hipertextual da Internet conhecidocomo ‘World Wide Web’, eu imito o poderinvocatório do adepto medieval, trazendo à luzo mundo virtual (apud Lieb, 1998: 69)

Demiurgo tecnológico, o sujeito pneumático talvezconstitua uma das mais paradoxais conseqüências dodeclínio da interioridade na cultura contemporânea.Reação radical ao enfraquecimento ou fragmentaçãoda subjetividade, que deseja desesperadamente reterpelo menos uma fantasia de agência. Nesse sentido,como sugere Francisco Rüdiger, “o discurso da liberdadeidentitária na internet e da multiplicidade dos ‘eus’ na redepode em realidade constituir expressão disfarçada de um desejode individualidade ainda mais poderoso e solipsista.” (2002:esp. 112-134) Numa perspectiva bastante sombria, osujeito coletivo das redes seria assim um eu absoluto,que deseja constituir-se em oposição mesmo àsexpressões da alteridade. Esse sujeito muitas vezeslimita-se a ratificar o mesmo, no sentido em que, comoconclui um estudo de etnografia da internet citadopor Rüdiger, “os internautas, em sua maioria, não conseguemabrir-se ao outro” (Rüdiger, 2002: 127). Quando lidospor meio de um rigoroso processo de desmitologização,certos discursos do imaginário cibercultural expressam,desse modo, um lado menos evidente (mas, quiçá,mais autêntico) das práticas de “socialização” virtual:as fantasias de poder de um sujeito adestrado nasvivências tradicionais do mundo capitalista.

A gnose se constituía numa religiosidade elitista,prática iniciática reservada a uns poucos privilegiados,os homens pneumáticos. Os sonhos da “ciberutopia”também apontam freqüentemente para um impulso de

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exclusão. A aptidão tecnológica, o acesso aos instru-mentos informáticos, a familiaridade com o mundo datécnica e a capacidade de visualizar o futuro constituemos traços necessários de uma nova casta de sujeitopneumáticos. A tecnoreligião constitui, assim, o reinoperigoso onde, segundo David Noble, “a empresatecnológica é desviada das finalidades humanas e mundanasque deveriam guiar seu extraordinário potencial para tornar-seuma forma de irracionalismo totalitarista.” (1999: 6) Nessecontexto, a figura do sujeito pneumático é uma fanta-sia que devemos combater impiedosamente. O ima-ginário, a metáfora, a analogia podem tanto constituirinstrumentos de compreensão e liberação como prisõesnas quais nos acomodamos em permanecer no mundodos devaneios egocêntricos. Como diz Margaret Wer-theim, “como um subconjunto da imaginação científica, aciberimaginação está se tornando uma poderosa força namodelagem de nosso mundo, e faríamos bem se nos mantivéssemosresolutamente atentos ao seu funcionamento” (1999: 257).

O estudo disso que poderíamos definir como um“imaginário tecnológico” deve constituir o primeiropasso na elaboração de uma visão mais perspectivadada tecnologia em nosso mundo de espantosas e rápidastransformações. Como lembra Lucien Sfez, “as metáforasnão são nada sem os contextos políticos e metafísicos que elasdefendem. Tampouco esqueçamos que elas não passam deinstrumentos, desmesuradamente glorificados pelos efeitos damoda” (1988: 26). A crítica da metáfora do anjo ciber-espacial e do sujeito incorporal revelam a face gnósticado que chamei do modelo de subjetividade pneumática.Essa subjetividade, na forma como é imaginada pelasfantasias ciberculturais, não representa necessariamente

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um processo de libertação identitária ou um exercíciode criatividade ilimitada por parte dos indivíduos.Como adverte Anne Balsamo, a eliminação daslimitações corporais “não implica que as pessoas irão exercera ‘liberdade de ser’ qualquer outro tipo de corpo que não aqueledo qual elas já desfrutam ou aquele que desejam.” (2002: 496)A subjetividade pneumática é menos expressão de umaestética do ser livremente do que manifestação de umquerer dirigido a determinado objetivo. Um querer que,em última instância, é ânsia de totalidade e domínio.

O anjo do imaginário cibercultural é, portanto, umanjo caído desejoso de criar seu próprio mundo para assimpoder contornar as recusas que este lhe impõe.Diferentemente do Angelus novus da alegoria de Benjaminnas Teses sobre o conceito de história, o anjo ciberespacial nãodeseja redimir as ruínas do passado ou recuperar a históriados vencidos. Ele só consegue ter a visão de um futuroutópico, dominado pelos mitos do fim da história e pelaidéia de um novo paraíso virtual, onde nossa grande tarefanão será mais adorar a divindade, mas criá-la5.

Abordando o tema da metáfora angélica na ciber-cultura, Reinhold Esterbauer disseca as semelhançase diferenças entre os anjos da tradição religiosa(pensados com base nas teses da Summa theologica deAquino) e suas novas versões digitais. Dentre as dife-renças, talvez a mais importante seja o esvaziamentodo anjo, que deixa de ser portador de uma mensagemsignificante para tornar-se mero transmissor de infor-mação. “Com os novos meios, chegamos ao ponto em que (...)os conteúdos se volatilizam e ‘anjos vazios’ entram em atividadecomo mensageiros que não encontram receptores nem para a suainformação, muito menos ouvintes para seu discurso.” (2001:

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150) São anjos solipsistas, imersos em si mesmos eincapazes de enfrentar a alteridade. São, enfim, ossujeitos ideais de uma religião em que a criatura torna-se a divindade do criador.

Notas1A lista é extensa. Entre os maiores estudiosos da antigagnose contam-se Elaine Pagels e Hans Jonas. Sobre oimpacto da gnose na cultura do Ocidente, em suas dimensõessociais, políticas ou epistemológicas, podemos citar as obrasde Eric Voegelin, Giacomo Marramao e Hans Blumenberg.2 Um cibernauta assim aproxima hermetismo, figuras angélicase cibercultura: “As ciências ocultas visavam cooperar com asforças angélicas, de modo a promover o conhecimento. Osanjos das ciências ocultas eram os cavaleiros doRosicrucianismo, ao passo que os anjos do ciberespaço sãoos magos da informática. A estória de Christian Rosenkreutz,a cidade de Cristianópolis e o tema do ciberespaço estão,portanto, intimamente ligados”. Mihalache, Adrian,“Cyberspace as utopia”, disponível em http://www.spark-online.com/january01/discourse/mihalache.html.3 Cf. o léxico hebreu-caldaico de Gesenius: Gesenius’ He-brew and Chaldee Lexicon. Baker Books: Grand Rapids, 1993.4 É curioso notar como Harold Bloom, cujas reflexões sobreos seres angelicais serão descritas adiante em detalhe,corrobora essa perspectiva: “Eu notei que, freqüentemente,eles [os anjos] são substitutos do redator [bíblico] para ousadasaparições do próprio Deus diante de homens” (1996: 45).5 Cf. a declaração de Arthur C. Clarck: “A história chegará aum fim...Pode ser que nosso papel no planeta não seja adorara Deus – mas criá-lo” (apud Dery, 1996: 30).

Referências bibliografias:ABELLIO, Raymond. La structure absolue: essai dephénoménologie génétique. Paris: Gallimard, 1984.

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BALSAMO, Anne. “The Virtual Body in Cyberspace.” In: Bell,David & Kennedy, Barbara. The Cybercultures Reader. Lon-don: Routledge, 2002.

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BENEDIKT, Michael. Cyberspace: first steps. Cambridge: TheMIT Press, 1992.

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FRAILE, Gullermo. Historia de la filosofia II. Madrid: Edito-rial Catolica, 1960.

FRIEDMAN, Richad Elliot. The disappearance of God. Bos-ton: Little, Brown & Company, 1995.

GUMBRECHT, Hans Ulrich & PFEIFFER, Karl Ludwig (orgs.).Materialities of communication. Stanford: Stanford Univer-sity Press, 1994.

HETHERINGTON, Kevin. “Phantasmagoria/Phantasm Agora:materialities, spatialities and ghosts.” I:n Space and culture11/12. Ottawa: Carleton University, Dezembro de 2001.

HARAWAY, Donna. “Manifesto ciborgue.” In: Tadeu da Silva,Tomaz (org.). Antropologia do ciborgue. Belo Horizonte:Autêntica, 2000.

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NOBLE, David. The religion of technology: the divinity ofman and the spirit of invention. New York: Penguin, 1999.

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RÜDIGER, Francisco. Elementos para uma crítica dacibercultura. São Paulo: Hacker, 2002.

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Erick Felinto é coordenador da Pós-Graduação emComunicação Social da UERJ, onde integra ainda

a linha de pesquisas “Novas Tecnologias e Cultura”

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Por “inspiración sensible”Por “inspiración sensible”Por “inspiración sensible”Por “inspiración sensible”Por “inspiración sensible”- estratégias jesuíticas de- estratégias jesuíticas de- estratégias jesuíticas de- estratégias jesuíticas de- estratégias jesuíticas de

conversãoconversãoconversãoconversãoconversãoEliane Cristina Deckman Fleck*

RESUMOAs estratégias de conversão empregadas pelos missionários jesuítasrefletem a difusão do imaginário cristão nas reduções da ProvínciaJesuítica do Paraguai no século 17. A documentação jesuíticarefere o ardor carismático de que se revestiam as manifestações dereligiosidade nas reduções, tomando-as como indícios da adesãoaos valores cristãos e como demonstração pública da assimilaçãoda “civilização dos afetos e da conduta”.Palavras-chave: Jesuíta, conversão, sensibilidade religiosa

ABSTRACTThe converting strategy used by the Jesuit missionaries reflects the diffusionof the Christian imaginary in the settlements of the Jesuitical Provinceof Paraguay in the 17th century. The Jesuitical documentation refers thecharismatic forwardness of the manifestations of religiosity in thesettlements, understanding them as indications of the adhesion to theChristian values and as public demonstration of the assimilation of the“civilization of the affections and conducts”.Keywords: Jesuit, conversion, religious sensibility

RESUMENLas estrategias de conversión empleadas por los misioneros Jesuitas reflejanla difusión del imaginario cristiano en las reducciones de la ProvinciaJesuítica del Paraguay en el siglo 17. La documentación jesuítica refiere elardor carismático de que si recubrían las manifestaciones de religiosidad enlas reducciones, tomando-las como indicios de la adhesión a los valorescristianos y como demostración pública de la asimilación de la “civilizaciónde los afectos y de la conducta”.Palabras clave: Jesuita, conversión, sensibilidad religiosa

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Por “inspiración sensible” - estratégias jesuíticas de conversão

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“Para tirar-lhes os pecados públicos e pô-lossob policiamento.”

Em 1601, o Superior Geral da Companhia de Jesusdecidiu reunir as regiões do Rio da Prata, Tucumã eChile, numa Província independente, com o nome de“Paraguay”. O 1º Concílio do Rio da Prata, realizadoem Assunção, em 1603, tem, neste contexto, umaimportância fundamental por estabelecer as metas aserem alcançadas pelos missionários, as orientaçõese os meios a serem empregados para “la enseñanza dela doctrina a los indios y la reforma de costumbres delos españoles” (MATEOS, 1969, p.321).

As determinações resultantes deste Concíliotornaram-se, portanto, um referencial determinante parao trabalho missionário, refletindo-se nas duas Instruçõesdo padre Diego de Torres Bollo (1609 e 1610) 1 aosmissionários que atuavam junto aos Guaranis noParaguai. Estas duas Instruções renovam as metasestabelecidas em 1603 e reforçam determinadasorientações quanto à metodologia a ser empregada pelosmissionários, enfatizando a necessidade de “tirar-lhes ospecados públicos e pô-los sob policiamento”, bem comode afastar os feiticeiros, por serem muito perniciosos eincitarem os índios a permanecerem em suas superstições(Apud RABUSKE, 1978, p. 25). Estes aspectos ficamevidenciados neste registro que expõe os objetivos daação missionária jesuítica e as estratégias empregadas:

De semejante modo les habló el Padre:Que había venido de España a estas remotastierras, abandonando todo, unicamente paraarrancarlos de las tinieblas de la gentilidad yconduzirlos a la admirable luz del Evangelio.

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Esto sólo era el deseo de su corazón y paralograr este fin, no ahorraría trabajo ninguno hastaque saliesen de la miserable esclavitud deldemonio, nuestro cruel enemigo comun. Porlo tanto, que lo escuchasen con docilidad, y quehiciesen todo que les iba a enseñar. Entonces,en lugar de marcharse al fuego del infierno, porsus muchos pecados, irían a los premios eternos(LEONHARDT, 1927, p. 34).

Demônios e feiticeirosOs feiticeiros eram o alvo preferencial da ação

catequética dos Jesuítas, como fica evidenciado narecomendação de que “repreendam nisso os culpadosnos demais vícios públicos corrijam-nos e os castiguema seu tempo com amor e inteireza, especialmente osfeiticeiros […]”(Apud RABUSKE, 1978, p. 27).

Sob a ótica dos missionários, o demônio insistiaem prejudicar o trabalho de conversão através dosincidentes promovidos por magos e feiticeiros, istoporque “[…] o demônio procura remedar em todas aspartes o culto divino com ficções e embustes […]achou o demônio fraudes com que entronizar a seusministros, os magos e feiticeiros, a fim de que sejam apeste e ruína das almas” (MONTOYA, 1985, p. 104).

À presença ameaçadora dos demônios foi, noentanto, atribuída uma justificativa e, principalmente,uma função moral, como se observa nos registros feitossobre os castigos que sobrevinham aos que roubavam,cometiam adultério ou deixavam de freqüentar a missa.O registro que transcrevemos informa ainda sobre aprática do exorcismo.

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Num domingo, estando todos a ouvir o sermãoe a missa, somente esse índio ficou em sua granja.Começaram então ali os demônios a dar vozescomo de vaca, bramidos como de touro e mu-gidos como de bois, bem como imitar as cabras.Espantado, o pobre índio se recolheu a sua cho-ça, sem se atrever a sair de lá, por tomado demedo. Vindo gente à tarde, o índio lhes contoua respeito de sua aflição e, andando eles poraquelas plantações, viram várias pegadas de ani-mais e uma delas de formato tão pequeno, queparecia ser de uma criança recém-nascida. Opior, contudo foi que (os demônios) deixaramtoda aquela plantação amarelecida e como seum fogo a tivesse chamuscado no domingoseguinte aconteceu o mesmo. […]. Só não setratou de confessar-se aquele índio mal habi-tuado. Pediram-me remédio e, depois da missa,eu fui até aquele posto […]. Revesti-me de so-brepeliz e tomei na mão a água benta e, emnome de Jesus Cristo […] mandei-lhe (ao de-mônio) que fosse embora daqueles lugares eque em povo algum fizesse dano. Pus num copofechado um pedaço da sotaina de Santo Inácioe nunca mais voltou o demônio. Levei comigoao povoado aquele índio, que fez uma boaconfissão e, de lá em diante, foi cristão bastanteexemplar (MONTOYA, 1985, p.102-103).

Em outra ocasião, Montoya relata que presenciou aadmoestação de cinco demônios a um jovem adoentado:

Estando ele num aposento pegado ao meu[…] e sendo já perto das onze da noite, viu

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que, por um ângulo ou cantinho da parede,entravam cinco demônios ferozíssimos -[…]. A cabeça de um deles era de porco, ado outro de vaca e do mesmo estilo asdos demais. Tinham os pés de vacas, decabras e pássaros enormes. Estavam comas unhas compridas, as pernas finíssimas e,despedindo de seus olhos raios como defogo (MONTOYA, 1985, p. 80).

O assédio do demônio era associado àreincidência nas antigas práticas rituais, como nesteregistro em que se informa também sobre o castigodivino que se abateu sobre os transgressores:

Unos cincuenta cristianos se habían ido amuy apartadas montañas para recolectaryerba. En el camino encontraron unaenorme peña, un poco semejante a la figurade un hombre, llamado por los bárbarosaña ciba, es decir frente del demonio. Aeste monstruo de piedra ofrecen los infielesdones, para conseguir un feliz viaje […]Pagaron muy caro su impiedad. Seenfermaron todos estos supersticiosos, ysolos ellos muriéndose algunos y quedandolos demás tan estropeados, que para un viajede veinticuatro dias echaron meses enteros(D. H. A., 1924, p. 693).

Neste sentido, vale observar que as imagensdos feiticeiros mais freqüentes nos registros são asque os identificam com demônios e realçam suaaparência monstruosa2, como nesta referência aofeiticeiro Zaguacari:

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Naquela redução […] havia um índio vivo,que em sua existência e na disformidade deseu corpo, muito se parecia ao diabo.Chamava-se ele Zaguacari, que pretendesignificar o mesmo que “formosinho”.Pouco, no entanto, lhe convinha este apelido,porque ele era de estatura muito baixa e tinhaa cabeça apegada aos ombros e, para viraro rosto para trás, impunha-se-lhe girar todoo corpo. Os dedos de suas mãos e pésimitavam não pouco os dos pássaros, poiseram torcidos para baixo. Só se viam ascanelas em suas pernas, sendo que tanto nospés como nas mãos ele possuía pouca ounenhuma força (MONTOYA, 1985, p. 146).

Predicando por “inspiración sensible”Segundo os missionários, eram os demônios que

levavam os indígenas a cometer pecado, reforçandoa necessidade de – mediante os sermões – torná-los“unos buenos luchadores en los combates contra losenemigos invisibles” para que possam “defendersecontra las tentaciones de parte de las malas pasiones,por medio del escudo de la fe y del santo temor deDios” (MAEDER, 1984, p. 128 – 129).

Os sermões empregavam largamente os relatosedificantes e introduziam os indígenas nos mistériosda fé, atendendo a recomendação feita pelo Pe. Diegode Torres Bollo de que “[…] Sejam os sermões tais quese lhes declare algum mistério, artigo ou mandamento,repetindo-o muitas vezes e usando de comparações eexemplos” (Apud RABUSKE, 1978, p. 26). Em razão

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disso, eram considerados meios privilegiados e eficazespara a conversão religiosa e para o comportamento vir-tuoso. A “boca do pregador” era identificada à “bocade Deus”, sendo instrumento com que a graça semanifestava e transformava os homens.

Em uma sociedade ágrafa como a Guarani, fo-ram largamente empregadas imagens cristãs como ado céu e do inferno, colaborando para uma percepçãofacilitadora dos elementos básicos do Cristianismo,bem como para implementar uma estruturaperceptiva marcada por uma predisposição àmaterialização da sensibilidade religiosa.

As visões e os sonhos dos indígenas registrados pelosmissionários jesuítas estão evidentemente associadosaos sermões, aos conselhos e às advertências feitas aostransgressores ou vacilantes, bem como às encenaçõesteatrais que, constituindo-se em verdadeiros espetáculosde exaltação religiosa, predispunham os indígenas aexternar publicamente suas culpas, arrependimento elouvor a Deus “para poner terror a otros” ou parademonstrar o “cambio de sus sentimientos”.

Os missionários se valeram amplamente daimaginação, para atingir estados almejados deemoção religiosa, inculcando medo e horror, atravésdas alegorias celestiais.

“[…] muito conveniente era fazer-sealguma boa demonstração pública, paraconfusão dos sacerdotes desses ídolos edesengano dos povos […]. Reunida todagente na igreja, fez-se-lhe um sermão, emque se tratou do verdadeiro Deus, daadoração que lhe é devida da parte das

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criaturas, e dos enganos do demônio […]das mentiras e ardis dos magos. […]. Tiradoesse estorvo, aquela gente começou a freqüentarcom assiduidade a igreja, e os cristãos a confissão(MONTOYA, 1985, p. 108- 109).

A permanente luta entre o bem e o mal se manifestano discurso missionário jesuítico, opondo o céu aoinferno e os anjos ao demônio, como se pode observarnestas passagens extraídas da Ânua de 1637-39:

Cierto indio cayó gravemente enfermo. Ya se le acercabael último momento, cuando quedó un poco dormido. Soñóque fue llevado al borde de un terrible precipicio, donde vioun joven que los detuvo y les dijo: Sin duda ya te quemaríasen este fuego, si Dios no hubiera tenido lástima de ti(MAEDER, 1984, p. 99).

Así permitió que los demonios molestasen alenfermo, llevándolo en aparencia a los fuegos eternos.Al instante aparecieron dos ángeles para sacarlo delas garras del demonio (MAEDER, 1984, p. 122).

Há ainda um outro registro que evidencia que os sonhosfaziam parte de um processo de exame de consciência epurificação espiritual pela confissão dos pecados.

Una india de muy mala vida, estaba tan obstinadaque huía de la confesión. Dios tuvo misericordia de ella,sin que ella diera ocasión para ello. Vio ella, comodespués contó, a un hermoso niño, que la conducía pormedio de unos precipicios hasta un pozo muy profundoy terrible, de donde salían tristes gemidos y horriblesaullidos. Vio allí unos monstruos negros, que revoloteabanpor unas espesas nieblas y el fuego que estabachisporroteando en los abismos. Entonces dijo el niño ala india: Allí te echarán abajo, si no te arrepentes de

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tus pecados tan sucios, y no te confiesas. Desapareció elniño y la india se despertó. Al amanecer se apresuró air a la iglesia, contó lo que había visto, y con gran dolorde su alma se confesó de sus pecados (MAEDER,1984, p. 96).

A visão do inferno presente no sonho dessaindígena é descrita com colorações tão vivas que otemor produzido nela deve ter ocasionado não sósua confissão, mas a internalização da permanenteameaça de experimentá-lo concretamente.

As Cartas Ânuas nos permitem ainda avaliar oimpacto dos sonhos e das visões sobre as condutasdos índios reduzidos:

Obstinadamente siguió aquel joven en su malavida, haciendo con sangre fría las más grandesbarbaridades. La misericordia de Dios, empero, habíaresuelto sacudir aquel corazón endurecido. Estabauna vez durmiendo, cuando se vio puesto, por mediode unos demonios, delante del tribunal del EternoJuez. Siguió el sumario y se pronunció la sentencia.Sintióse el joven azotado barbaramente por losdemonios, y cuando despertó, le atormentó el dolor entodo su cuerpo que no pudo levantarse. El gransufrimiento le hizo volver a buen juicio y arrepentirsede veras. Llamó el Padre e hizo una larga y buenaconfesión. Sanó en alma y cuerpo, y persevera en elbuen camino (MAEDER, 1984, p. 34).

Há, também, o registro de uma indígena quedebilitada por complicações decorrentes de umparto, desfalece e sonha. O missionário nãodescuidou de valorizar a “morte aparente” e afanática conversão que se seguiu:

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En su mocedad esta india despues de averlemuerto dos hijuelos ahogo al ultimo trance de la vidade un reveçado parto, dispuso sus cosas como quienen fin conocía era llegada su hora y delante de muchosque la asistían perdió los sentidos y quedó como muertapor tal la juzgaron los circunstantes por grandeespacio de tiempo aunque ella no sabe o queverdaderamente en esto pasó, mas de que en estetiempo y sin parecerle se avia apartado de dondeestaba, se halló en un lugar eminente de donde lasubieron por unas gradas y en lo alto de ellas estavauna casa toda fabricada de oro y queriendo entrarpor la puerta descubrió desde ella gran muchedumbrede gente y un altar y unos Padres con el traje de laCompañía y a sus dos ijuelos difuntos que asistíansirviendo a los dos lados los cuales acusaron la madreque no sabía las oraciones y que assi no deviafranquearsele la entrada (…) en la qual se volvió aNuestro Señor invocando su favor y repitiendomuchas vezes: Madre de Dios, Madre de Dios en suaiuda con lo qual se cobró del arrobamiento yparacismo y en breve sanó de su achaque, quedandotan aficionada a las cosas divinas que agora viejacomo es va de un pueblo a outro por asistir a losmisterios de la misa donde saben que se celebran(MAEDER, 1990, p. 34 – 35).

A crença nas aparições das almas do Purgatórioque vinham pedir aos vivos missas e orações para areparação de erros por elas cometidos, fica expressanas passagens abaixo:

Aviendose una mujer ya defunta aparecido asu marido le mando fuese al Pe a pedirle de su

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parte una misa hiçolo el hombre: prometiose la elPe mas olvidado quando estaba en el altar ofreciolapor otra intención, reparando a la noche en sudescuydo le salteo algun recelo no fuese el alma dela difunta a darle el recuerdo al ponto le tocaron ala puerta y entendio claramente que aquella almale pedia su socorro dixole la misa y no volvio más.Otra vez estando solicito por la salvacion de unpenitente suyo defunto se le mostro, durmiendo elPe, con rostro risueño y preguntando de su estadoen la vida le dixo si no fuera bueno no me vierascon esta alegria (D. H. A., 1924, p. 259).

Batismo e ConfissãoSignificativas para a análise da construção dessa

peculiar sensibilidade religiosa são estas passagensextraídas das Cartas Anuas, referente ao período de1610-1613, fase inicial da implantação do modeloreducional, e que registram o medo dos indígenas demorrerem infiéis e de irem para o inferno em razão disso.

Han tenido ordinariamente sermones dedoctrina xpana. […] El medio que tomoDios nro. Sr. para que estos entrasen en fer-vor en pedir el baptismo fue, queacabandoles de predicar un día en que se lestrató de los bienes grandes del baptismo, selevanto un niño de doçe a treçe años yhincado de rodillas y puestas las manos pidiopor amor de Dios le baptizasen, diciendotemia mucho morirse infiel e irse al infierno,y asi queria ser hijo de Dios por el bautismoe irse al cielo, y haviendole dado el si, daba

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saltos de placer y gozo, diçiendo a todosque el pe. le queria haçer hijo de Dios. (ApudPASTELLS, 1912, p. 164)

É conveniente ressaltar que, na avaliação dosmissionários, o temor da morte sem a confissão esem a absolvição dos pecados e a perene ameaça doinferno levava os indígenas a procederem de acordocom suas recomendações. Isto pode se observadonas passagens da Ânua de 1637-1639:

Hubo uno que se adelantó tanto en su temeridadque ni siquiera respetaba el Sacramento de la Confesión.Pero no impunemente había provocado a Dios. Seenfermó gravemente. […] Sus parientes temían que seles iba a morir y al mismo tiempo que se condenaseeternamente, ya que se hizo el desentendido a todos suscaritativos consejos. […] Así murió impenitente y fuesepultado en el infierno, para servir de horribleescarmiento a los indios de la reducción. […] por justojuicio de Dios fue privado en la hora de la muerte de losconsuelos de la religión (MAEDER, 1990, p. 91).

Nos relatos que referem a administração dosacramento do batismo a moribundos, encontramosuma vinculação com a garantia da salvação:

[…] estando dando gracias vino su hijo a llamarmea gran priesa, que su madre se queria baptizar. fui yvi en ella eficasia de los medios divinos hallandola tantrocada que me espante. pidiome la baptizasse einstruyda en los misterios de nra santa fe yarepentiendose de sus peccados recebido el baptismomurio (D. H. A., 1924, p. 77).

Caminando cinco o seis leguas de aquí en buscade un enfermo, acaso tope en el camino sin ir yo a

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buscarle ni saber del un muchacho ya grande que estabaen una chozuela, y a al cavo de su vida, instruile en losmisterios de la fe que nunca avia oydo, bautize el yluego se fue al çielo (D. H. A., 1924, p. 289).

O apego à confissão também nos remete àabsorção de sua eficácia mecânica pelos indígenas,como revela este trecho da Carta Ânua de 1637-39:

Es una excepción entre tanta gente, que alguienno quiera saber nada de confesión pues, los más sonmuy aficcionados a ella, y no soportan la dilacióncuando, por ejemplo, el confesor no acude pronto,retenido por un asunto importante que en aquelinstante le ocupa. Temen la muerte imprevista y urgenpara que sean oídos en confesión luego, aunque aveces no tienen nada de importancia que confesar, olo hayan confesado ya tantas veces, haciendo esto,para ganar más gracias sacramentales(MAEDER, 1984, p. 96).

A observação do padre Zurbano de que osindígenas se confessavam “para ganar más graciassacramentales” e que “son muy aficcionados” àconfissão, não o impediu de afirmar que “muyinclinados son los indios a hacer malas confesiones,lo que se comprende tomando en cuenta su rudezae incapacidad para profundizar sus conocimientosreligiosos” (MAEDER, 1984, p. 34).

Em relação ainda às “buenas confesiones” e às“malas confesiones”, cabe observar que se constituíramem preocupação recorrente dos missionários, comopode ser observado na Ânua de 1668:

Fue preguntado en el tribunal de la penitenciacierta mujer, si no tenía otros pecados más. Había

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sucedido esto ya tres veces, negándo ella los pecados, yrecibiendo tres veces la absolvición invalidamente, aunqueestaba gravemente enferma, y próxima a morir.Felizmente recobró ella el ánimo para confesarse bien,y declaró que la causa de su malestar eran sus malasconfesiones, viéndose ella perseguida de noche por unperro de terrible aspecto, lo cual le había perturbadomás todavía. Después de haberse confesado, comoconvenía, murió (LEONHARDT, 1927, p. 20).

Deve-se observar que, na mesma Carta, sãomencionadas repetidas confissões e as razõesapontadas pelos indígenas para tal prática. Sentimentosde “vergüenza” e “humillación” são expressõesconstantes dos registros, indicando a interiorizaçãode responsabilidade moral não identificada com acultura e a ética guaranis. É provável que ahumilhação sentida, ao se confessarem com váriosconfessores, os levasse a realmente abandonar ascondutas indesejáveis, evitando, com isso, repetir asituação de constrangimento. Tendo-se em conta, noentanto, que o que os movia à confissão era a promessada absolvição dos pecados, garantindo as bênçãosdivinas e os livrando dos infortúnios.

Decorridos alguns anos, o padre Juan Ferrufinodeixa entrever em suas observações, na Ânua de1647-49, que a tarefa da conversão não estavaconcluída e que as adversidades continuavam tendouma função “educativa”, devendo-se, por isso,manter as mesmas estratégias de conversão:

Así como se ve en la naturaleza que la siembra searraiga más por el cierzo, y el arbol por el huracán.Así las cosas grandes se solidifican más por la adversidad.

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[…] Esperamos, empero, que se convertirán por mediode nuestra solicitud y en consecuencia del remordimientode su conciencia. Procuramos ganar su voluntad confavores, aunque nos hayan hecho tanto mal […](LEONHARDT, 1927, p. 155)

A necessidade de constantemente fazê-los sentir“el remordimiento de su conciencia”, além de indicara freqüência com que ocorriam desvios de condutaou transgressões, atestam o senso de oportunidade(ou como preferem os missionários, por “inspiracionsensible”) dos jesuítas, que se utilizam dos sermõespara instá-los ao “bom comportamento” 3:

Otro hombre perverso por largo tiempo supo ocultarel veneno de sus pecados que le consumía, y parecíairremediablemente perdido, ya que sacrilegamente recibíalos sacramentos. Un día vía como predicaba uno de losPadres Misioneros contra el crimen de la hipocresía y deocultar pecados en la confesión (pues, como por inspiraciónse le había ocurrido predicar sobre esta materia). Causólea aquel infeliz tanto dolor que le costó contenerse parano con alaridos manifestarse como el hombre mas perdidodel mundo. Luego despues del sermón se puso a llenartres hoyas de papel con las listas de sus pecados, entretorrentes de lágrimas. Echóse a los pies del confesor y leentregó el papel entre muchos sollozos y bañado delágrimas, desmayándose casi de dolor y arrependimiento.Libróle el confesor de la carga de su conciencia y desdeaquel tiempo vivió con mucha edificación(LEONHARDT, 1927, p. 77).

Os registros feitos pelos missionários parecemindicar, realmente, uma alteração significativa nasatitudes dos indígenas:

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Ay tan grande frecuencia de sacramentos, en especialde la penitencia que comúnmente no pueden los padresdar oídos a tantos. Con el de el altar tienen tan grande fey devoción, que se previenen mucho antes para recivirle. Ya este temor es el provecho que sacan de la divina mesa,que campea en sus costumbres y se han visto en materia dehonestidad muchos y muy illustres exemplos […] Y sialguna vez por la malícia del demonio han caido se hanimpuesto de su voluntad muchas penitencias muy graves ydados extraordinarias muestras de dolor que todos sonbuenos indicios de las veras con que se han dedicado alSeñor estos nuevos cristianos. […] Cada día se juntantodos a rezar de comunidad el rosario, oir misa, dezir laletania de la Virgen y resplandecen entre todos con lainocencia devida, por lo qual hazen grande instancia paraser admitidos (Maeder, 1990, p. 125).

A moderação das emoções, a normatização de açõese a eliminação de comportamentos inconvenientesficam evidenciadas nas referências à observância doscódigos de postura corporal, tais como os de curvar-sediante do santo em sinal de respeito, baixar a cabeçacomo forma de aceitar uma ordem, caminhar de umadeterminada forma em procissão e ocupar um lugarespecífico dentro da igreja, durante a missa.

Transgressões e PenitênciasEsta “civilização das condutas” 4 dos indígenas será

acompanhada de manifestações de fervor e de devoção,demonstrados no “chorar copioso”, durante a assistênciaàs missas e na prática de penitências e de autoflagelação.

Vale lembrar a insistente recomendação de queos indígenas assistissem às missas, já que, para os

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missionários, a “adesão corporal” a estas cerimôniasevidenciava uma “adesão espiritual”6. Em razãodisso, os indígenas ausentes à missa e omissos naobservância dos rituais de exteriorização da fé, erampunidos com castigos físicos ou divinos.7

Essa percepção transparece claramente nesteregistro que integra a Ânua de 1637 – 1639 e que,além de qualificar como justos os castigos divinos,define o que era considerado transgressão: “Elcastigo era muy justo, porque ya eran cristianos, yno obstante querían vivir a manera de los gentiles,vagando por los campos, olvidando o despreciandolas prácticas religiosas” (MAEDER, 1984, p. 90).

A Ânua referente aos anos de 1641 a 1643 informasobre como eram identificados os transgressores ecomo se procedia para determinar as penitências.

Los domingos y fiestas se celebran con todasolemnidad, misa cantada y sermón, y antes doctrina atodo el pueblo, y por la tarde volviéndose a juntar danlos fiscales cuenta de los que han faltado en la semana amisa y a doctrina y se les da una suave penitencia queellos reciben con extraña sujeción y rendimiento […]A uno se le dio una penitencia a su parecer pequeña, yasí reclamó con sollozos, Padre más, esto es poco […] (D.G. R., 1996, p. 77 – 79)

O padre Francisco Lupercio de Zurbano registraa disciplina e os excessos de devoção religiosa deum índio que se impôs a autoflagelação:

Sucedió que cierto joven, molestado por la tentación,se echó en un hormiguero. Ya bastante maltratado poresto, se revolvó entre punzantes ortigas. Enfermose poresto, y fué refrenado en sus penitencias por nuestros

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Padres. Contestó él: No importa. Prefiero morir an-tes que pecar. […] Señales son estas que ya estáprofundamente arraigado en su corazón el santo temory amor de Dios (MAEDER, 1984, p. 129).

A Carta Ânua de 1637-1639 refere-se aoarrependimento de um jovem após cometer pecadoe a forma como procurou expiá-lo:

Cierto joven havía caído imprevistamente en unpecado carnal. Le dolió tanto, que comenzó a tratarcruelmente su cuerpo con diferentes clases de asperidades,no dejando ni la cara sin su especial suplício. Asípreparado, se acercó al tribunal de la penitencia,profundamente conmovido por el dolor y arrepentimiento(MAEDER, 1984, p. 102 – 103).

A Ânua de 1668 refere-se à prática daautoflagelação, destacando o rigor e o entusiasmocom que os indígenas a executavam:

En su gran compasión con la Sagrada Pasión deCristo nuestro Señor, toman ellos con entusiasmosangrientas disciplinas; y en la Semana Santa sucedióque, acompañando alguno en la procesión la grande Cruz,amarrado a ella con una larga soga, enlazada en susmanos, se hizo disciplinar con azotes de puas, hasta que,ya al entrar otra vez en el templo, lo descubrió uno de losPadres, y lo prohibió, haciendo curar las heridas delpenitente (LEONHARDT, 1927, p. 16).

A internalização da noção de pecado e deculpabilidade chegava a extremos, como neste registroextraído da Conquista espiritual, referindo-se à práticada flagelação e do exorcismo:

Havia meses que estava doente um moçode vida muito correta […].

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Viu o moço diante de si um etíopedesnudo, o qual levava numa sacola algunsossos de defunto […] assim o demônio foi-se aproximando dele […]. Pediu o enfermoque me chamassem. Entretanto, vendo-se eleatormentado de tal forma pelo hóspede,solicitou a seu pai que com força o açoitasse,pois com isto sairia dele aquela besta. O amorpaterno fê-lo rejeitar semelhante ação, mas amãe, julgando bom o remédio, agarrou umascordas e começou a flagelar o filho. Aomesmo tempo pedia-lhe este que ela batessecom energia, e ao demônio ordenava quesaísse. Por fim, depois de várias demandas erespostas, saiu, deixando moído o pobrerapaz (MONTOYA, 1985, p. 161).

Mais surpreendente, na opinião dos missionários,é o fato de os indígenas manterem “la saludablepenitencia”, “no obstante la escasez de víveres”:

Algunos permanecieron constantes en el pueblo yen las prácticas religiosas, no obstante la escasez devíveres […] Estos indios arrastaron pobremente suvida, extenuados hasta el extremo por un ayunoforzado. Sin embargo no dejaron sus acostumbradaspenitencias corporales y sus sangrientas disciplinas(MAEDER, 1984, p 102- 103).

A Ânua de 1663-1666 reforçará a prática dapenitência, associando-a à purificação e às bênçãosdivinas que dela decorreriam:

La saludable penitencia, que se hace deantemano, previene la satisfacción que nosqueda por hacer. Pues, ya estaba la peste asolando

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los pueblos circunvecinos, y no se atrevió a atacarprecisamente este pueblo, defendido por la penitencia, y sedetuvo como espantada de su vista. La tierra, empero,humedecida por la sangre derramada por los azotes, quea su vez surcaban los cuerpos, comenzó a producir unariquísima cosecha, mucho más grande que la de las otrasreducciones, castigadas por la sequía, así que este pueblopudo generosamente socorrer a los hambrientos de otraparte (LEONHARDT, 1927, p. 103).

Apesar de registrarem como exageradas asmanifestações de penitência a que os índios sesubmetiam, os missionários não escondem suasatisfação em relação a elas, na medida em que eraminterpretadas como internalização da noção depecado e de responsabilidade moral.

Considerações FinaisO discurso missionário nos revela não somente o

universo simbólico jesuítico, como também sua difusãonas reduções jesuítico-guaranis. Sonhos, visões,batismos, confissões, curas milagrosas e ressurreiçõessão referidos pelos missionários para ressaltar aintensidade do fervor religioso dos indígenas.

Os relatos remetem à tensão emocional, a atmosferatrágica e o ardor carismático que envolviam as missas,procissões, penitências e demais disciplinas queantecediam feriados religiosos ou calamidades anunciadascomo as pestes “que Dios les envía por castigo de susculpas”. Os sacramentos administrados aos fiéis e aosrecém-convertidos revertiam em intercessões divinasbenéficas ou, simplesmente, produziam o consolo eapaziguamento das consciências dos indígenas.

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A assistência às missas, a participação nasprocissões e festas religiosas e as penitências eautoflagelações são tomadas como indícios da adesãoaos valores cristãos e como demonstração pública dainteriorização e assimilação da “civilização dos afetose da conduta” pretendida pelos missionários.

A análise que fizemos dos registros que integramas Cartas Ânuas apontam, no entanto, para acompreensão das reduções jesuítico-guaranis comoespaço de acomodação de sensibilidades, desfazendoa percepção da sujeição absoluta dos indígenas aosvalores cristãos e às condutas ocidentais. Acreditamosque nesse processo de conversão dos Guaranis – eque implicou o “viver em redução” –, os missionáriosdefiniram estratégias e manejaram símbolos e valores;os resultados, no entanto, estiveram condicionadosàs motivações e às aspirações dos indígenas.

As manifestações de piedade e de devoção devemser, em razão disso, percebidas como “ressignificação”de práticas e representações tradicionais guaranis,através das quais os indígenas buscaram oatendimento de sua espiritualidade e a expressão desua sensibilidade. Em razão disso, podemos concordarcom Melià, para quem o êxito das reduções jesuítico-guaranis não se dá “a pesar de lo que eran losGuaraníes, sino precisamente por lo que eran estosGuaraníes” (MELIÀ, 1986, p. 209).

Notas1 As considerações feitas sobre as Instruções do Pe. Diego deTorres Bollo, que orientaram a implantação do modeloreducional na região abrangida pela Província Jesuítica doParaguai, não pretenderam esgotar a análise dos registros

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acerca da prática missionária jesuítica junto aos Guaranis. Asexpressões de sensibilidade religiosa serão retomadas nocontexto das reduções jesuítico-guaranis, a partir dasmanifestações de piedade e de devoção, bem como dasrepresentações perceptíveis no discurso jesuítico. As CartasÂnuas da Província Jesuítica do Paraguai serão, em razão disso,o corpus privilegiado para a análise que nos propusemos afazer e para revelar a “construção” de uma sensibilidadereligiosa própria das reduções jesuítico-guaranis.2 Estas descrições nos remetem aos pregadores medievaisque temperavam seus sermões com histórias aterrorizantesdas repetidas aparições do Diabo para tentar os fracos elevar os pecadores renitentes, como também aos palcosmedievais, onde criaturas grotescas com chifres e caudaencenavam num ambiente recendendo a enxofre. Cabeobservar que “el indígena conformará su propia imagen deldemonio cristiano”, difundida pelos missionários jesuítasem seus sermões. Essa descrição revela que “tiene eldemonio la facultad de mostrarse visiblemente”, “fuera dela típica del ser diabólico”, aparecendo “con ocasionalesfiguras antropomórficas o zoomórficas” (MARTINI, 1990,p. 336 – 337).3 O simbolismo mais significativo da culpabilidade estáassociado ao tribunal “transposto metaforicamente para oforo interior”, tornando-se “aquilo a que chamamos aconsciência moral”, “ela própria uma consciência graduadade culpabilidade” (DELUMEAU, 1989, p. 264). Havia, ainda,a profunda “conexão entre acusação e consolação”, namedida em que “Deus ameaça e protege”; “o deus que dáproteção é o deus moral: ele corrige a desordem aparenteda distribuição dos destinos, ligando o sofrimento à maldadee a felicidade à justiça. Graças a esta lei da retribuição, odeus que ameaça e o deus que protege são um só e mesmodeus, e esse deus é o deus moral” (Idem, p. 444).4 Os sentidos são tomados como elementos a dificultar asalvação da alma, logo, seu controle possui a função explícitade robustecer o espírito. O intelecto, em um ato de vontade,deveria subjugá-los, ordenando os afetos e restringindo osprazeres considerados inferiores. Para Loyola, a noção da purezada alma ligava-se, necessariamente, à manutenção da “purezacorpórea”, através do “disciplinamento dos sentidos”.5 Loyola definia a autoflagelação como “castigar la carne, essaber, dándole dolor sensible, el cual se da trayendo cilicioso sogas o barras de hierro sobre las carnes, flagelándose o

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Eliane Cristina Deckman Fleck

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llagándose” (LOYOLA, 1977, p. 26). Os motivos elencadospor Loyola para que fossem feitas penitências eram três:para satisfazer os pecados passados, para que os sentidosobedecessem à razão e para buscar uma graça ou dom quea pessoa desejava. Ao desviante é apresentada a penitência,sacramento por excelência de purificação, uma vez que visaa reparar os danos que o pecado causaria à alma.6 É válido lembrar “a crença no poder expiatório da missa,considerada a mais sublime oração nos diversos níveisculturais da época moderna. […] Antes mesmo da Reforma,a missa constitui o rito central do Cristianismo na Europa.Muito divulgada é a crença em seu poder expiador, reparadore na sua eficácia para aplacar a ira divina e alcançar apacificação no plano social, a elevação espiritual e,notadamente, a salvação da alma.” (CAMPOS, 1996, p. 66).7 Cabe aqui retomar o décimo artigo da 1ª Instrução do Pe.Diego de Torres Bollo, de 1609, que recomenda quesomente os fiéis assistam à missa. Neste caso, a puniçãodos fiéis omissos ou ausentes se devia ao fato depotencialmente estarem retornando ao seu “antigo cos-tume”, o que poderia comprometer, não só “a fortaleza da

fé” de muitos, mas também a conversão futura de outros.

Fontes documentais impressasDocumentos de Geohistória Regional. Cartas Ânuas de laProvíncia Jesuítica Del Paraguay (1641-43). Introducción delDr. Ernesto J. A. Maeder. Resistência, Chaco: Instituto deInvestigaciones Geohistóricas, 1996.

Documentos para la historia Argentina. Cartas Ânuas de laProvincia del Paraguay, Chile y Tucumán de da Provincia dela Compañia de Jesús – 1615-1637. Tomo XX. Buenos Aires:Talleres Casa Jacobo Preuser, 1929.

MAEDER, Ernesto J. A. (org.) Cartas Ânuas de La Provinciadel Paraguay, 1637 - 1639. Buenos Aires: Fundación para laEducación, la Ciencia y la Cultura(Fecic), 1984.

–——. Cartas Ânuas de la Província del Paraguay, 1632-1634.Buenos Aires: Academia Nacional de la Historia, 1990.

Manuscritos da Coleção de Angelis. Jesuítas e Bandeirantesno Guairá (1549 - 1640). Tomo I. Rio de Janeiro: BibliotecaNacional, 1951.

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MATEOS, F. El Primer Concílio del Rio de la Plata en Asunción(1603). Madrid: Missionalia Hispánica, n. 78, set./dez. 1969,p. 257 – 359.

MONTOYA, Antonio Ruiz de. Conquista Espiritual. PortoAlegre: Martins Livreiro, 1985.

PASTELLS, R. P. Pablo, S. J. Historia de La Compañia deJesús en la Provincia del Paraguay. Tomo I. Madrid: LibreríaGeneral de Victoriano Suárez, 1912.

RABUSKE, Arthur S.J. A Carta magna das reduções jesuíticasguaranis. São Leopoldo: Estudos Leopoldenses, v. 14, n.47, 1978, p. 21 -39.

Referências bibliográficasCAMPOS, Adalgisa Arantes. Irmandades mineiras e missas.Belo Horizonte: Vária História, n. 16, set. 1996, p. 66 – 76.

DELUMEAU, Jean. História do medo no ocidente (1300-1800). São Paulo: Cia. das Letras, 1989.

LOYOLA, Ignacio. Ejercicios espirituales. Asunción: Centrode Espiritualidad Santos Mártires, 1977

MARTINI, Monica P. Imagem del diablo en las reduccionesguaranies. Buenos Aires: Revista Investigaciones y Ensayos,n. 40, 1990, p. 175 – 227.

MELIÀ, Bartomeu. EI guaraní conquistado y reducido.Ensaios de Etnohistoria. Prólogo de Demétrio Núñez Gómez.Asunción: Biblioteca de Estudios Antropológicos de laUniversidad Católica, 1986.

* Eliane Cristina Deckmann Fleck é doutora em Históriapela PUC/RS, de Porto Alegre, RS e professora da

graduação e da pós-graduação em História da Unisinos,São Leopoldo, RS. Desenvolve investigações vinculadas

às linhas de pesquisa Populações Indígenas e MissõesReligiosas na América Latina e Idéias e Movimentos

Sociais na América Latina.

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Fernanda Carlos Borges

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A comunicabilidadeA comunicabilidadeA comunicabilidadeA comunicabilidadeA comunicabilidadeantropofágica do Santoantropofágica do Santoantropofágica do Santoantropofágica do Santoantropofágica do SantoDaime na TDaime na TDaime na TDaime na TDaime na Terrerrerrerrerra do Sola do Sola do Sola do Sola do Sol

Fernanda Carlos Borges*

RESUMONa Cultura Messiânica criticada por Oswald de Andrade, acomunicação é apoiada na persuasão, é exclusiva. Diferente desta,a comunicação na Cultura Antropófaga se apoiaria na alteridade,sendo inclusiva. A religião Santo Daime agrega pessoas atravésdo efeito de uma bebida indígena, ahuasca, incluindo diversasmitologias, diferenciando-se das religiões exclusivas e persuasivas.Palavras-chave: Antropofagia, persuasão, alteridade

ABSTRACTIn the Messianic Culture criticized by Oswald de Andrade, the religiouscommunication is dependent on persuasion, it’s excluding and exclusive. Inthe antropophagic culture, the communication depends on alterity, it’sincluding. The Santo Daime religion brins people together through theeffect of an indian drink, ahuasca. Several mytologies are included in theprocess of drinking, which differes from the excluding and persuasive religions.Keywords: antropofagy, persuasion, alterity.

RESUMENEn la cultura Mesiánica criticada por Oswald de Andrade, la comunicaciónes apoyada en la persuasión, es exclusiva. Diferente de esta, la comunicaciónen la cultura antropófaga se apoiaria en la alteridade, siendo inclusiva. Lareligión del Santo Daime agrega las personas através del efecto de unabebida indígena, ahuasca, incluyendo diversas mitologías, difereciandose delas religiones exclusivas y persuasivas.Palabras clave: Antropofagia, persuasion, alteridad

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Ao que Oswald de Andrade chamou culturamessiânica corresponde um modo de comunicaçãoapoiado na persuasão. Esta pressupõe a existênciade uma verdade oculta e estável a ser descoberta etransmitida, a fim de corrigir a vida. A culturamessiânica acaba por desenvolver um movimentocom base na expansão e na exclusão.

Este modo de compreender o agir pressupõe quea ação inteligente deve ser antecedida por umconhecimento que a justifique. Henry Atlan (ATLAN.1992) sugere que o conhecimento prévio tem por basenão uma verdade estável transcendente à variabilidadedo mundo, como queria o messianismo, mas amemória. Esta é ligada ao já vivido, portanto, àexperiência e ao passado. Sugere, então, que a memóriadesenvolva parâmetros e estabilidade, mas não podesozinha resolver o momento, desde que o momentoesteja envolvido com a emergência de novidade

“a auto-organização inconsciente (...)deve ser considerada como o fenômenoprimordial nos mecanismos do querer,voltados para o futuro, ao passo que amemória deve ser situada no centro dosfenômenos da consciência (...) a consciênciadiz respeito, antes da mais nada, ao passado”.(ATLAN, 1992, pg.118)

Assim, podemos compreender Oswald quando diz“contra a memória fonte de costume. A experiência pessoalrenovada” (ANDRADE. 1995, p.51). A posição faza síntese entre a memória e o querer, pois na posiçãoestão os parâmetros da direção, orientação econformação, sem os quais nenhuma ação é possível.

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Para Oswald de Andrade, é a posição indígenaantropófaga no Brasil, aquela capaz de nos ligar aofuturo e ao passado simultaneamente.

A religiosidade da cultura messiânica, ao contrário,dissolve as posições no transcendente, cultivando a idéiade um homem ideal e universal, o que justifica o fatode o protestantismo ter favorecido a transformação e odesenvolvimento provocados pelo capitalismo.

“Eis-nos perante”o gênio doprotestantismo ascético”: o caráter racional(consciente, metódico, sóbrio, desperto,vigilante, calmo, tranquilo, constante eincansável) da ação instrumental agoratransvalorada, interpretada em sua eficáciacomo sinal em si de que a bênção de deusestá bem ali, no trabalho diurno eintramundano de crescente domínio técnicodo mundo natural, ação racional comrelação a fins que entretanto agora vale porsi mesma, já que transfiguradasemanticamente no registro do dever, daobediência, da conformidade a ummandamento exarado pelo deus todo-poderoso e todo-transcendente”.(PIERUCCI. 2003, p.205)

Essa religiosidade está apoiada na eliminação damagia e na concepção de um percurso lineardeterminado pela luta final entre o bem e o mal, ondeo bem corresponde a parâmetros fixos e estáveis, quedevem conduzir o agir, ameaçado constantementepela instabilidade e confusão provocadas pelo mal domundo transitório.

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“As religiões dualistas (...) postulam umdeus que é independente, poderoso e bom,mas cujo poder é limitado por outroprincípio, força ou vazio. O dualismo dozoroastrismo, ou do maniqueismo, é franco;o do judaísmo e cristianismo é muito maisdisfarçado, mas existe(...) O princípio domal, embora possa não ter origem, nemcomeço, tem um fim, e no fim todas asesperanças, tanto para o cosmos como parao pequeno cosmos, que é o homem, serãorealizadas”. (RUSSEL. 1991, p.86)

O mal, no messianismo, deve ser combatido eeliminado. Diferente desta, a alteridade é a característicada comunicação na cultura antropófaga. Esta nãoentende a comunicação como o processo através doqual uma verdade é transmitida, a fim de combater amentira ou a ignorância. O que corresponderia,respectivamente, à compreensão do mal como oposiçãoao bem ou como insuficiência do bem. Na alteridadeantropófaga o inimigo é o outro ao qual se deve resistire assimilar, pois o antropófago “compreende a vida comodevoração e a simboliza no rito antropofágico, que é comunhão.”(ANDRADE. 1995, p.159) Este movimento, capaz detransformar o adverso em favorável corresponde àmagia, é inclusivo.

Oswald acreditava que mantivemos, no Brasil, oespírito antropófago e, por isso, as diferentes culturase mitologias presentes entre nós podem serassimiladas e transformadas através da posiçãoantropófaga do tupi-guarani. Esta posição envolveuma retomada do matriarcado e um retorno à

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natureza, onde a tecnologia desenvolvida pelopatriarcado messiânico poderá substituir o trabalhoescravo, dissolvendo a exploração de um mundodividido entre senhor e escravo, natureza e cultura,bem e mal, entre outras divisões.

A cultura antropófaga está, antes de tudo, apoiadana percepção e assimilação do diferente e, assim, “aalteridade é no Brasil um dos sinais remanescentes da culturamatriarcal.” (ANDRADE. 1995, p.157) Algodiferente aconteceria na cultura patriarcal e seu idealde civilidade, pois “na civilidade há qualquer coisa decoercitivo – ela pode exprimir-se em mandamentos e sentenças”(ANDRADE. 1995, p.157).

Oswald assimilou a critica de Nietzsche ao idealde homem da cultura messiânica,

“preso na rede da civilização alexandrina, queconhece como ideal o homem teórico, equipado com osmáximos poderes do conhecimento, trabalhando a serviçoda ciência, cujo protótipo e ancestral é Sócrates (...) Éem um sentido quase apavorante que aqui, por longotempo, o homem culto só foi encontrado sob a forma dohomem erudito.” (NIETZSCHE. 1996, p.40)

Contra o homem teórico, Oswald chama a atençãopara o homem brasileiro, entendido como o HomemCordial, pois para o

“homem cordial, a vida em sociedade é umaverdadeira libertação do pavor que ele sente em viverconsigo mesmo, em apoiar-se em si próprio em todasas circunstancias da existência. Sua maneira deexpansão para com os outros reduz o indivíduo cadavez mais à sua parcela social, periférica, que no homembrasileiro – como bom americano – tende a ser o

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que mais importa. Ela é antes um viver nos outros.”(ANDRADE. 1995, p.158)

Apesar de criticar as religiões messiânicas, Oswaldchama a atenção para o que ele chama de experiênciaórfica. Sua abordagem, que propõe uma consciênciaimersa na natureza, não implica em, necessariamente,abrir mão da experiência da fé e da magia. Diz ele:

“mesmo tendo da igreja a pior idéia,nunca deixei de manter em mim umprofundo sentimento religioso, de que nuncatentei me libertar. A isso chamo eu hojesentimento órfico. Penso que é uma dimensãodo homem. Que dele ninguém foge e quenão se conhece tribo indígena ou povocivilizado que não pague esse tributo aomundo subterrâneo em que o homemmergulha.” (ANDRADE. 1995, p. 56)

No Brasil religioso, o movimento Santo Daimeparece corresponder a alguns aspectos do movimentoantropófago proposto por Oswald de Andrade, como:não é apoiado na pregação e na persuasão, mas noefeito de uma bebida herdada dos índios – a ahuasca– o ritual envolve uma beberagem herdada dos índiosque incorpora as diversas mitologias brasileiras; temna natureza a força espiritual; foi fundada sob adeterminação da Grande Mãe, a Rainha da Floresta;envolve movimentos de vida comunitária com ênfasena preservação das matas que ocupa.

Oswald de Andrade repudiou a filosofia, normase prescrições morais das instituições religiosas,especialmente a cristã, na qual foi criado. Noentanto, para ele

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“Deus existia e acabou-se! Existiam eagiam também os santos, Santos para tudo.Nas trovoadas, Santa Bárbara e São Jerônimo,esse terrível asceta da Idade Média. SantaLuzia para o mal dos olhos, Santa Claracontra a meteorologia, etc. Quando umabarata surgia no soalho, gritava-se por SãoBento. São, Bento protegia contra as feras.Todo esse dicionário do totemismo órficopresidiu e explicou o mundo ante meus olhosinfante.” (ANDRADE. 1995, p.46)

Também diz: “o paganismo de certas festas religiosasenlevou longamente minha infância. (...) era tudo umasérie ininterrupta de músicas e cantos que deslumbravamos olhos num renovado espetáculo popular”.(ANDRADE. 1995, p.28) Este imaginário todo é vivona mitologia do Santo Daime, onde a Lua, Cristo, o Sol,o Vento, Maria, as Estrelas e os Santos convivem lado alado, assimilando tradições da pajelança, do cristianismo,do candomblé e ainda outras, como podemos ver nestetrecho de um dos tantos cantos que animam seus rituais

Jesus Cristo está no CéuEstá na terra e está no mar

A princesa JanaínaEla veio pra me ensinar.

O Santo Daime nasceu de uma visão que MestreIrineu, um seringueiro analfabeto, teve dentro dafloresta, depois de beber ahuasca (ALVARENGA.1992). Ele viu a imagem de uma deusa: a Rainha daFloresta, que identificou como a Virgem da Conceição.A sabedoria ritual foi passada na forma de cantos,hinos, que norteiam os encontros sob o efeito da bebida.

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É uma experiência bastante apoiada na sensaçãocorporal, como diz este canto

Estou nos teus pésEstou na tua cabeça

Estou nos teus braçosEstou na tua mão esquerda

Eu mexo no teu estômagoMexo no teu coração

Mexi na copa do mundoAonde está eu irmão

Então, é uma religião nascida de uma Grande MãeNatureza que, através de um preparado de plantas,acolhe os homens na sua sabedoria:

Eu venho da florestaCom o meu canto de amor

Eu canto é com alegriaA Minha Mãe que me mandou

O movimento que começou com Mestre Irineucontinua com Padrinho Sebastião (ALVARENGA.1992). Ele inicia um movimento de fundação de umacomunidade que hoje é uma cidade na floresta chamadaCéu do Mapiá. Esta cidade se destaca pela qualidade devida, em comparação com as outras comunidades locais.Padrinho Sebastião levou o Santo Daime para outrasregiões. Hoje, existe alguma igreja desta doutrina empraticamente todas as capitais brasileiras e muitas outrasno exterior. Uma das características destes núcleos é apreocupação em agrupar-se comunitariamente em áreasde mata, pois compreendem a natureza como dotada depoder espiritual e digna de veneração.

Sol, lua, estrelaA terra, o vento e o mar

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É a Luz do FirmamentoÉ só quem eu devo amar

Oswald não vê nesta relação espiritual entrehomem e natureza um estado de cosnciênciaprimitiva, como propôs Freud, este bastanteenvolvido com o processo de desmagificação davida, como podemos ver:

“Há correspondência entre as fases dedesenvolvimento da visão humana do universoe as fases do desenvolvimento libidinal doindivíduo. À fase animista corresponderia ànarcisista, tanto cronologicamente quanto emseu conteúdo; à fase religiosa corresponderiaa fase de escolha de objeto, cuja característicaé a ligação da criança com os pais; enquantoque a fase científica encontraria umacontrapartida exata na fase em que o indivíduoalcança a maturidade, renuncia ao princípio doprazer, ajusta-se à realidade e volta-se para omundo externo em busca do objeto de seusdesejos” (FREUD. 1914, p.113)

Para Oswald, a consciência mágica envolve umcaminho norteado na comunicabilidade, não nailusão narcísica, e seria uma das características doretorno ao matriarcado tecnológico. Oswald, nacontramão freudiana, nos leva de volta às sociedadesmatricêntricas, onde “o espírito recusa-se a conceber oespírito sem corpo. Antropomorfismo. Necessidade de vacinaantropofágica. Para o equilíbrio contra as religiões domeridiano. E as inquisições exteriores.” (ANDRADE.1996, p.48). Parece que nos rituais do Santo Daimea espiritualidade está explicitamente ao corpo, pois

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A comunicabilidade antropofágica do Santo Daime na Terra do Sol

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nele tudo acontece através da beberagem de umpreparado de plantas herdado dos índios.

À Grande Mãe, é pedido:Oh! Mãe Celestial

Que me dê a salvaçãoE me bote em bom lugar.

Gambini (GAMBINI. 1999) diz que o arquétipoda Grande Mãe está ligado ao espaço, e a mãe concedeao filho o sentido de um lugar no mundo. Por isso,trata da importância de elaborarmos nossa mãebrasileira ancestral: a Mãe Índia. Mãe, porque o paifoi um europeu português, pois nas caravelas primeirasnão viajavam mulheres. Para Gambini, a recuperaçãodos valores desta Mãe nos ajudaria a nos localizarmosno Brasil, como brasileiros. O seguinte canto concorda:

A minha mãe foi quem me deuNeste mundo este lugarPeço força e dou força

E não saio do meu lugarPor algum motivo que desconheço, a ahuasca

favorece o desenvolvimento da consciência corporal deposição, tratada entre eles como Firmeza. O processopode vir acompanhado de emoções fortes, lembranças,catarses emocionais, reações como vômito e diarréia,intuições de sabedoria e entendimento, que são sucedidospor uma sensação de bem-estar. Muitas vezes descritacomo “caí em mim”, o efeito da bebida não desfaz osentido de posição, ao contrário, evidencia-o.

O sentido de posição lembra o que disse GilbertoFelisberto Vasconcellos:

“Vivemos em tempo e espaço alheios. Ocontorno da natureza nos escapa inteiramente.

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(...) O governo põe a culpa em São Pedro, quenão deixa chover, assim como se responsabilizaequivocadamente o Sol como causa da seca, enão a devastação das florestas (...) Nosso índiotinha verdadeira adoração pelo Sol, enquantoos brasileiros idiotizados continuam a caluniá-lo.” (VASCONCELLOS. 2002, p.43)

Oswald de Andrade já reparou que somos “filhos doSol, Mãe dos viventes. Encontrados e amados ferozmente,com toda a hipocrisia da saudade, pelos imigrados, pelostraficados e pelos touristes” (ANDRADE. 1995,p.47).Vasconcellos também repara que

“Evidentemente não basta ir à praia e curtiro astro rei. O lance é compreendê-lo comodoador cósmico de energia, sem a qual nãohá vida na terra. (...) A razão primeira, comodiz o samba popular, é o Sol. (...) Se o sol é oimenso reator energético, então a terra do solpassa a ser o locus por excelência da energiaarmazenada. De onde se conclui que o Brasil,o continente dos trópicos, é o lugar da energiaverde.” (VASCONCELLOS. 2002, p.22)

Pode parecer estranho aproximar, como estamosfazendo, o pensamento marxista da escola debiomassa e um movimento religioso. Mas os estamosligando através de Oswald de Andrade, cujas idéiassão bastante influenciadas, ao mesmo tempo, pelomarxismo e pela aceitação da magia contra o ideáriocapitalista. Então, lembramos que o sol também tempresença importante no Santo Daime. Num doshinos, por exemplo, é tratado desta forma:

Se não existisse o sol

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O que era da terraO sol é quem me dá luz

E ilumina toda terraO sol é um bom guia

Para quem quer aprenderOuvindo o que ele dizTodos podem vencer

A visão de mundo desenvolvida por Oswald deAndrade também nos lembra Edgar Morin, quando estediz que “não é possível escapar a esta idéia incrível: é desintegrando-se que o cosmo se organiza” (MORIN. 1997, p. 48). É umaidéia muito parecida com a da existência como devoração,oscilando entre a estabilidade e a instabilidade, cujasíntese é feita continuamente na relação e nacomunicação. Um outro canto do Santo Daime diz:

Eu balanço, eu balanço,Eu balanço tudo enquanto háEu chamo o solChamo a luaE chamo a estrelaPara todos vir me acompanharEu balanço, eu balançoEu balanço tudo enquanto háEu Chamo o ventoChamo a terraE chamo o marPara todos vir me acompanharEu balanço, eu balançoEu balanço tudo enquanto háChamo o cipóChamo a folhaE chamo a água

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Para unir e vir me amostrarEu balanço, eu balançoEu balanço tudo enquanto háTenho prazerTenho forçaE tenho tudoPorque Deus eterno é quem me dá.

Essa visão de mundo, que encontramos emOswald e no ritual do Santo Daime, leva-nos de voltaa Vasconcellos e a uma questão paralela: o Brasil esua natureza tropical, num contexto em que,

“O que está em pauta hoje no mundo éa incontestável ruína de um paradigmacivilizatório, dentro do qual irrompe oespectro do apocalipse ecológico, com oefeito estufa e a chuva ácida. Diante dessarealidade objetiva da biosfera, emerge nocenário contemporâneo a necessidade de umnovo sistema energético, assentado nasenergias renováveis, vegetais e limpas doponto de vista ambiental (...) o norte é ricoem dinheiro mas pobre em energia,enquanto o sul é pobre em dinheiro emilionário em energia.”(VASCONCELLOS. 2002, p.17)

Vasconcellos espanta-se com a dificuldade de osintelectuais brasileiros perceberem a situação do Brasildiante da crise energética da civilização, apoiada nocarvão mineral e no petróleo. Propõe “uma forma deenergia limpa (não traz poluição), renovável, pacífica, criadorade empregos, descentralizadora de renda, de poder e depopulação.” (VASCONCELLOS. 2002, p.11) Trata-se

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de um problema de percepção, deslocada de um corpoalienado do ambiente. Então, não será de desprezarum movimento popular religioso voltado para anatureza brasileira, nascida entre moradores da floresta,com as características que estamos mostrando aqui.

Há, ainda, um outro aspecto antropófago quepercebemos numa das estórias contadas no SantoDaime: Padrinho Sebastião teria travado uma luta deforças com o Diabo e este, sentindo-se fraco, pedeacolhimento ao movimento, pede que o tolerem e oajudem a salvar-se, em troca disso, ele lhes garantedefesa e proteção. Essa estória equivale ao processode transformação do tabu em totem, “do valor oposto aovalor favorável” (ANDRADE. 1995, p.101). Parece queesta posição faz com que uma das tônicas domovimento seja o alerta contra “falar mal um do outro,querendo caluniar”. A fofoca também foi tratada porOswald de Andrade, quando entendeu que”chegamos aoaviltamento. A baixa antropofagia aglomerada dos pecados docatecismo – a inveja, a usura, a calúnia, o assassinato. Pestedos chamados povos cultos e cristianizados, é contra ela queestamos agindo. Antropófagos”. (ANDRADE. 1995, p.51)

O processo de comunicação envolvido nas idéias deOswald de Andrade, sugere um Brasil capaz dedesenvolver um modo de vida com base na alteridade ena comunicação, capaz de rejeitar a persuasão embenefício da democracia, parecido com o que aconteceno movimento popular envolvido no Santo Daime, tantoquanto no pensamento científico e acadêmico da escolada biomassa. Oswald, há muito observou que

“Temos a base dupla e presente – afloresta e a escola. A raça crédula e dualista, a

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Fernanda Carlos Borges

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geometria, a álgebra e a química logo depoisda mamadeira e do chá de erva-doce. Ummisto de “dorme nenê que o bicho vempegá” e equações. Uma visão que bata noscilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas,nas usinas produtoras, nas questões cambiais,sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil”. (ANDRADE. 1995, p. 44)

Referências bibliográficasALVARENGA, AP. O guia da floresta. Rio de janeiro: Record, 1992.

ANDRADE, O. Um homem sem profissão – sob as ordensde mamãe. São Paulo: Globo, Secretaria do Estado daCultura, 1990.

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RUSSELL, J B. O diabo. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991.

VASCONCELLOS. G F. Biomassa: a eterna energia do futuro.São Paulo: Editora Senac SP, 2002.

* Fernanda Carlos Borges é doutoranda emComunicação e Semiótica pela PUC-SP, professora de

Folclore e Ética na Arte na Faap – SP, graduada emFilosofia pela PUC-RS, e mestre em Sociologia e Filosofia

da Motricidade Humana, Unesp-Rio Claro.

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A cena enunciativa e o ethos dos pregadores no discurso das igrejas eletrônicas

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A cena enunciativa e o ethosA cena enunciativa e o ethosA cena enunciativa e o ethosA cena enunciativa e o ethosA cena enunciativa e o ethosdos pregadores no discursodos pregadores no discursodos pregadores no discursodos pregadores no discursodos pregadores no discurso

das igrejas eletrônicasdas igrejas eletrônicasdas igrejas eletrônicasdas igrejas eletrônicasdas igrejas eletrônicasKarla Regina Macena Pereira Patriota*

RESUMONeste trabalho, debruçamos-nos sobre alguns programasreligiosos que transmitem sermões pela TV, procurando analisarcomo seus discursos legitimam-se a partir do entendimento deque o lugar de onde são proferidos e a forma como as falas sãoencenadas, tornam-se determinantes para sua eficácia.Trabalhamos com os postulados da Análise do Discurso Francesa(AD) de cena enunciativa e ethos a partir da obra de Maingueneau.Palavras-chave: Discurso religioso, mídia, cena enunciativa e ethos.

ABSTRACTIn the present work we took a look on some religious programs that broadcasttheir speech, we try to analise the way that their speech are legitimated due tothe understanding that the place are given and the way they are actingbecomes determinant to their eficacy. We work with the enuciative scene ofthe french Speech Analisys and ethos from Maigueneau work.Keywords religious discourse, mídia, enunciative scene; ethos

RESUMENEn este trabajo, analizamos unos programas religiosos que emiten discursostravés de la TV, intentando percibir como estos discursos desde el lugardonde son emitidos por la escena de los hablas, se legitiman. Estos sonelementos que son determinantes en su eficacia. Ha sido trabajados lospostulados del Análisis de Discurso Frances (AD) de la escena enunciativay ethos, desde la teoria de Maingueneau.Palabras clave: discurso religioso, medios de comunicación, encenaenunciativa, ethos.

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Nos últimos vinte anos, assistimos a proliferação deinúmeras formas de produção e uso da televisão na esferareligiosa. Atualmente, no Brasil, diversos programasreligiosos são veiculados diariamente em canais abertose em TVs por assinatura. Segundo a Revista da TV1, épossível assistir, em apenas uma semana, a mais de 82horas de missas, cultos, pregações e exorcismos. Como amaioria dos programas é transmitida dos templos e seconfiguram no formato de sermões, convencionou-sechamar as denominações que realizam transmissões destetipo de “igrejas eletrônicas”.

No presente trabalho, faremos uma reflexão sobrealguns destes programas que transmitem os sermõesdas igrejas eletrônicas, procurando analisar como odiscurso religioso, veiculado nos meios decomunicação de massa, em especial na televisão,legitima-se a partir do entendimento de que o lugarde onde é proferido e a forma como a fala é encenada,são determinantes para sua eficácia. Dessa forma,estaremos aqui trabalhando com os postulados daAnálise do Discurso de linha francesa (AD) com osconceitos de cena enunciativa e ethos.

Maingueneau (1993) refere-se à cena enunciativacomo a formação discursiva que constrói lugares deenunciação por meio de um funcionamento por hete-rogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva2.O conceito de cenografia discursiva segundo o autor,diz respeito à situação de enunciação. É exatamente nestasituação de expressão que se instituem o enunciador/co-enunciador, o espaço (topografia) e o tempo (crono-grafia). Tais instituições são compreendidas a partir daenunciação como formação de sentidos que leva em

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conta o relacional existente entre o indivíduo e a língua– suas escolhas materializadas através de determinadasmarcas lingüísticas – que podem ser configuradas noprocesso de interação, nas coerções genéricas e nasvariadas perspectivas de constituição da própriaheterogeneidade discursiva.

Assim, a cena enunciativa faz referência à cenasocial como a organização social do discurso, ocontexto social, lugares institucionais e seus ritos, acomunidade dos que produzem, dos que promovema circulação e dos que se reúnem em nome de certodiscurso e nele se reconhecem. Dessa forma, o dizersó tem sentido se for pertencente à esfera do social,e não da simples ação individual de cada um dosparceiros das múltiplas interações.

No caso do nosso estudo, o enunciado religiosopresente no gênero sermão, associa-se a uma formaçãodiscursiva e a um quadro de referências ideológicasdeterminado numa conjuntura social. É desse lugar so-cial que as igrejas que utilizam os meios de comunicaçãode massa tornam-se sujeito por meio de seus pregadores.Elas reproduzem o cotidiano interpretando a Bíblia egarantindo, através dessa interpretação, certos sentidos.

Neste trabalho, a ênfase é justamente na cenaenunciativa dos sermões pregados nos templosreligiosos e transmitidos pela televisão. Paradesenvolvê-lo, utilizamos um corpus constituído por seisprogramas religiosos veiculados nos meses de dezembrode 2003 e janeiro de 2004, em seis emissoras diferentes.Durante esse período os programas foram gravados,assistidos e analisados. Abaixo a relação dos programasque constituem o corpus:

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Tabela com os programas que compõem o cor-pus de análise

PROGRAMA/EMISSORA IGREJAShow da Fé Igreja InternacionalRede Bandeirantes da Graça de DeusDespertar da Fé Igreja UniversalRede Record do Reino de DeusCelebração da Família Igreja ApostólicaRede Gospel Renascer em CristoSanto Culto em seu Lar Igreja UniversalRede Mulher do Reino de DeusEstá Escrito Igreja AdventistaRede TV! do Sétimo DiaSanta Missa Igreja CatólicaRede Globo Apostólica Romana

Apesar de pertencerem a diferentes igrejas, osprogramas selecionados apresentam alguns aspectossemelhantes entre si, não apenas na linguagem, mastambém na própria formatação da produção. Mesmoque não seja difícil identificar o mau uso das estratégiasmidiáticas e baixa qualidade técnica em algunsprogramas, os pregadores conseguem interagir e colherresultados significativos com suas pregações eletrônicas.Todavia, quase sempre os programas são transmitidosem horários de pouca audiência, entre 4h e 8h – por serum período mais barato para locação nas emissoras.

Ao iniciar a nossa análise, é válido aqui esclarecerque a cena enunciativa do sermão, seja ele proferidoapenas no templo ou também nos mass media, éorganizada com objetivo de alcançar um efeito, e o

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locutor, que é o pregador, recorre a certas manobrasda linguagem decifrando os mecanismos do implícitopara que os fiéis possam compreender o que estápor trás das palavras. Ou seja, os que falam o discursoreligioso estão constantemente atualizando estediscurso que é do outro, o discurso de Deus.

Dessa forma, vemos a manifestação não só doposicionamento do locutor-pregador, como porta-voz de Deus, mas também uma compreensãoresponsiva e aceita da interpretação das palavrasdivinas no contexto social em que vivem os fiéis dasigrejas eletrônicas.

Assim, quando estabelecemos a análise de algunsprogramas veiculados na TV, nos deparamos com essacompreensão responsiva dos textos através de umaencenação peculiar. Este fato é respaldado pelo queafirma Maingueneau (1998:85), quando diz que um“texto não é conjunto de signos inertes, mas o rastrodeixado por um discurso em que a fala é encenada”.

Nos enunciados das igrejas eletrônicas, assim comonas igrejas que não se utilizam os veículos midiáticos,os conteúdos das pregações são apresentados a partirda leitura do texto bíblico. Os pregadores-locutores,preparando-se para instruir os fiéis sobre as revelaçõesde Deus no texto sagrado, pedem que os ouvintes outelespectadores abram as suas bíblias no texto dereferência da mensagem, criando necessariamente aocasião que antecede e “encena” o sermão.

É pertinente aqui apresentarmos um pouco destecontexto de encenação do discurso religioso nos massmedia. Afinal, na maioria das igrejas eletrônicas,costumeiramente um(a) pregador(a) desloca-se até o al-

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tar, posiciona-se no púlpito de onde pode ser visto(a)por todos que estão presentes dentro do templo e começaa proferir o seu sermão. Este discurso, dirigidoinicialmente aos fiéis que se encontram na sede da igreja,é retransmitido em cadeia nacional pelo rádio e/ou pelatelevisão, simultaneamente, atingindo ouvintes etelespectadores em diversas localidades do país.

Quando analisamos esta cena enunciativa,verificamos não só a atualização do discurso por partedo locutor-pregador que apresenta o discurso divinosob a sua interpretação. Percebemos, igualmente, umatripla interpelação (Maingueneau, 1998), onde,dependendo do ponto de vista que assumamos,poderemos visualizar três cenas de enunciação:

· a cena de enunciação é a de um discursoreligioso (tipo de discurso);

· a cena de enunciação é a de um discursoreligioso que utiliza o texto bíblico a partir deuma interpretação contextualizada para osouvintes da mensagem proferida – um sermão(gênero de discurso);

· a cena da enunciação é a de um(a)pregador(a), ministro(a) da igreja, pre-viamente designado(a), que de um púlpitofala aos seus ouvintes no templo ou nosveículos de comunicação (um sermãoespecífico acontecendo em um tempo elugar determinados).

Os ouvintes, nos casos analisados, encontram-sesimultaneamente envolvidos nessas três cenas relatadas.Estes ouvintes são interpelados, ao mesmo tempo, comofiéis da referida igreja, como ouvintes e telespectadores

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que anseiam ouvir sobre as Escrituras Sagradas e comointerlocutores e membros (cena construída a partir dosouvintes no templo). Nessa perspectiva, Maingueneau(1998) fala em cena “englobante”:

“A cena englobante é a que correspondeao tipo de discurso. Quando recebemos umfolheto na rua, devemos ser capazes dedeterminar a que tipo de discurso pertence:religioso, político, publicitário etc., ou seja,qual é a cena englobante na qual é precisoque nos situemos para interpretá-lo, emnome de que o referido panfleto interpelao leitor, em função de qual finalidade elefoi organizado”. (Maingueneau, 1998:86).

Na nossa análise, os discursos das igrejas eletrô-nicas caracterizam-se por uma enunciação religiosae implicam em pregadores que se dirigem aos fiéis.Nesse sentido, percebemos, de fato, uma caracte-rização mínima, entretanto, não apresenta comopeculiaridade o caráter atemporal, “pois é ela quemdefine a situação dos parceiros e um certo quadroespaço-temporal”. (Maingueneau, 1998:86).

Não se pode simplesmente dizer que a cena deenunciação de um enunciado religioso é a cena“englobante” religiosa. Obviamente, tal definição seapresentaria incompleta e insuficiente. Afinal, umenunciador que prega a respeito de determinadostextos bíblicos, dentro de uma denominaçãoespecífica, não está tratando ou abordando o religiosoem geral, até mesmo porque tal campo é infinitamentediversificado, mas sim com um gênero de discursoespecífico ou particular. Isso ocorre tão somente

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porque cada gênero de discurso estabelece o seupróprio papel. Nos casos em análise, o “ministro reli-gioso” dirige-se, em primeira instância, aos “membros”da sua igreja presentes no templo. Assim, podemosvislumbrar o que é chamado de quadro cênico. Oquadro cênico é que definirá “o espaço estável no in-terior do qual o enunciado adquire sentido – o espaçodo tipo e do gênero do discurso”. (Maingueneau, op.cit., p.87). Dessa forma, os fiéis das igrejas eletrônicassó poderão entender e assimilar seu discurso com estequadro cênico na mente.

Quando se trata de constituir o quadro cênico dodiscurso religioso em questão, é imprescindívelesclarecer que o “dizer é algo completamente dife-rente de uma simples transmissão de informação”(Maingueneau, 1996, p.94). Quando encena a inter-pretação da palavra de Deus contida na Bíblia, assubjetividades interpretativas dos pregadores mi-diáticos afloram, ficando claro que a própria imagemda igreja institucional é reiterada em função do queé encenado no púlpito. O discurso veiculado na tele-visão concretiza-se como uma rede complexa designificações, na qual o efeito é ressaltar as posiçõesideológicas da denominação. Dessa forma, ospregadores interpretam a Bíblia de forma a dialo-garem com o cotidiano, empenhando-se “constan-temente em posicionar-se através do que dizem, aafirmar-se afirmando, negociando sua própriaemergência no discurso (...), antecipando as reaçõesdo outro (...)” (Maingueneau, op. cit., p. 21).

Contudo, é com uma cenografia que se confrontaos ouvintes das igrejas eletrônicas e não diretamente

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com um quadro cênico. Maingueneau (1998) afirmaque a cenografia acarreta o deslocamento do quadrocênico para um segundo plano. O autor chega àconclusão que todo e qualquer discurso, por suaprópria manifestação e materialização, intencionaconvencer, ao instituir a cena de enunciação, quepoderá torná-lo legítimo e aceitável.

Por outro lado, o tom discursivo assumido depen-derá, portanto, dos objetivos pretendidos pelo locutorna cena enunciativa. Na enunciação do sermão, o ethosdos sujeitos (os pregadores) determina a compreensãoda realidade, implicando a reprodução e a reiteraçãodo jogo de imagens que as igrejas eletrônicas constroemem favor de certas convicções e crenças.

Quanto ao conceito de ethos, Maingueneau(1987) considera a existência da representação docaráter jovial, severo, simpático e da corporalidade(conjunto de traços físicos) do enunciador que emiteo discurso. Esta emissão estará articulada àsantecipações daquilo que o co-enunciador constróino processo de interação com o enunciador. Para oautor, concepção, caráter e corporalidade sãototalmente inseparáveis, articulam-se e apoiam-sesobre estereótipos padronizados na coletividadeonde é produzida a enunciação.

Vemos isso no jogo de cena de grande parte dospregadores midiáticos que, em determinadosmomentos da pregação, choram, riem, gritam, cantamou falam línguas estranhas3 e levam seus ouvintes aomesmo padrão de comportamento. Sendo assim, osdizeres são mobilizados num quadro enunciativopropício e peculiar à coletividade da igreja, pois,

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enquanto “reproduz” e “interpreta” a fala de Deus,as igrejas eletrônicas se representam e se mantémcomo instituições de privilégio, detentoras dalegitimação dos porta-vozes de uma verdadeinquestionável. Daí se instaura a constituição de umnão-eu que se torna eu na medida em que o pregador“acolhe” o que é dito pelo outro (que é Deus) para areal legitimação do seu discurso.

No gênero sermão, o modo de presença dospregadores e dos fiéis instaura relação dialógico-interacional, com a finalidade de perpetuar um mododiscursivo de falar sobre Deus e as verdades divinas.Assim, o sermão é a marca que dá a palavra aospregadores das igrejas eletrônicas, cuja cenografia éimposta de forma imediata quando os fiéis são atingidose aceitam o lugar que lhes é consignado nesta cenografia:

“Com efeito, tomar a palavra significa, emgraus variados, assumir um risco; a cenografianão é simplesmente um quadro, um cenário,como se o discurso aparecesseinesperadamente no interior de um espaço jáconstruído e independente dele: é a enunciaçãoque, ao se desenvolver, esforça-se paraconstruir progressivamente o seu própriodispositivo de fala” (Maingueneau 1998:87).

Maingueneau (1998) defende que, dessa forma, acenografia implica necessariamente em um processode enlaçamento paradoxal. Este enlaçamentoparadoxal consiste na suposição gerada pela fala dolocutor em determinada situação de enunciação. Emoutras palavras, a enunciação presente na situaçãoreal vai sendo validada e legitimada gradativamente

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através da própria enunciação. Assim, segundo oautor, “a cenografia é ao mesmo tempo a fonte dodiscurso e aquilo que ele engendra” (op. cit., p.87).

Nessa perspectiva, os pregadores das igrejaseletrônicas constroem paulatinamente a encenação dosermão, que constitui um gênero de discurso pecu-liar, expressando em suas falas um conteúdo semânticoque atende aos objetivos e ao interesses da instituiçãoreligiosa no que diz respeito a sua ideologia. Assim, acenografia apresentada legitima os enunciados, queacabam por sua vez, legitimando a própria cenografiae estabelecendo que ela nasce onde nasce a fala.

Na dinâmica interacional, ao nascer junto com afala, a cenografia é necessariamente aquela que éexigida para enunciar como convém, pois ela só semanifestará verdadeiramente se puder controlar o seudesenvolvimento, mantendo um real distanciamentoem relação ao co-enunciador.

Nos sermões das igrejas eletrônicas, a cenografiaobedece a uma estrutura padronizada que mantéma imagem da instituição na sua relação com o di-vino, a partir do tom profético das falas doslocutores-pregadores que comumente anunciam asrevelações, as promessas e a vontade de Deus.

Ao assumirem este papel profético, os pregadoresnão só revelam as bênçãos, as provisões e a porçãode Deus, mas também se colocam na cena enunciativaassumindo um ethos pertinente ao discurso. Agindodessa maneira, os profetas fazem a ligação entre osdois reinos (espiritual e material). Portanto, o fato dosprofetas pregadores estarem situados no reino mate-rial, não restringe sua ação a ele, pois o profeta, como

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mediador de Deus, encontra-se também na dimensãoespiritual, tornando-se autorizado a dizer: “Euprofetizo na tua vida” “Eu sei qual é a promessa (oua vontade) de Deus para você”, “Eu conheço a medidade Deus (que é abundante) para tua vida” e assim pordiante. Em outras palavras, os pregadores aovivenciarem o estatuto de profetas, agem no mundodos homens direcionados por uma orientaçãoespiritual do próprio Deus.

O sermão acaba por transformar-se em umaestratégia comunicacional na qual são destacadasverdades bíblicas e revelações divinas sob a ótica docotidiano, na atualização das mensagens pregadas, naponte com o dia-a-dia das pessoas e no viés da própriacena enunciativa relatada da Bíblia. Desta forma, épossível enxergar o objetivo dos enunciadores dereiterar abordagens práticas para uma vida segundo aabundância de Deus e da Teologia da Prosperidade4.

Nesse contexto, é importante que retornemos àspeculiaridades do conceito de ethos. Como osenunciados são produtos de uma enunciação queimplica em uma cena, e como toda fala procede de umenunciador real, encarnado – mesmo quando escrito, enão falado – a fala obrigatoriamente é sustentada poruma voz, que segundo Maingueneau (1988:95) é: “avoz de um sujeito situado para além do texto”.

No discurso das igrejas eletrônicas, o ethos semanifesta de igual forma na própria enunciação, tãosomente porque, os sermões proferidos “encarnam” asparticularidades que normalmente são assimiladas aocomportamento dos fiéis religiosos das denominações.Poderíamos esmiuçar esta lógica a partir das atitudes

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desencadeadas pela fala dos locutores-pregadoresmidiáticos. Com um discurso bastante direto, elesenunciam as diretrizes a partir das interpretações deum texto fonte – a Bíblia – não deixando margens parainterpretações contrárias. Por isto, é comum, no iníciodos sermões, o anúncio de que se trata de uma revelaçãodada por Deus ou pelo Espírito Santo, além do chamadopara a leitura do texto bíblico.

Com a legitimação paralela da utilização do textobíblico, vemos as enunciações, as falas e as palavrasvirem de pessoas que, através destas palavras,transparecem e demonstram as qualificações religio-sas e espirituais imprescindíveis para evocarem emseus discursos os desígnios e propósitos de Deus.

Segundo Barthes (1996), a característica essencialdo ethos “são os traços de caráter” que o locutor deveevidenciar ao seu auditório (pouco importa que ele seja,ou não, sincero), a intenção é a de causar uma boa im-pressão: “são os ares que assume ao se apresentar”, ouseja, segundo o autor, o locutor/orador ao enunciar asua fala diz paralelamente “eu sou isto, ou não sou aquilo”.Assim, observamos em nossa análise, estes locutores-pregadores interpretarem o texto fonte, decodificando asua linguagem, ao mesmo tempo em que encarnam emsi, o ideal proposto em seus enunciados, provocandonos ouvintes a plena adesão as suas palavras. Produz-seneste processo, através da enunciação, um “imbri-camento” entre os enunciados e o mundo representado:os enunciadores pelo modo que enunciam, atestam alegitimidade do que dizem conferindo, em si mesmos,autoridade à suas falas pelo simples e contundente fatode encarná-las em suas vidas. O maior exemplo disso

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está na perspectiva da abundância material vista na vidada maioria dos líderes das igrejas eletrônicas.5

Percebemos que o ethos dos locutores institucionaisdas denominações que utilizam a mídia acaba sendomontado e constituído a partir de certas noções,atitudes, comportamentos e estilo de vida de quemfaz parte da liderança da denominação. Como se oslocutores-pregadores pudessem simplesmente dizer:“olhem para mim, vejam que a minha vida encarna oque eu prego”, mesmo que, literalmente, não digamisso. A respeito do ethos comenta Ducrot (1984:201):

“Não se trata de afirmações elogiosas queo orador pode fazer sobre sua própria pessoano conteúdo de seu discurso, afirmações que,contrariamente, podem chocar o ouvinte, masda aparência que lhe conferem o ritmo, a en-tonação, calorosa ou severa, a escolha das pa-lavras, dos argumentos (...) É na qualidade defonte da enunciação que ele sê revestido de de-terminadas características que, por ação reflexa,tornam essa enunciação aceitável ou não”.

Para a enunciação se tornar aceitável, per-cebemos, na análise dos programas, que os pregadorescolocam-se como referenciais quando falam de simesmos. O papel que eles passam a desempenharestá longe de ser o de pessoas passivas diante dasdificuldades. Assim, apresentam-se como dotados defé, vontade própria e livre arbítrio, para buscarem ealcançarem o carisma, a vitória e a prosperidade deDeus. Estes pregadores se moveram em direção aopoder de Deus e agora se colocam como referenciaisde sucesso e modelos a serem seguidos.

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Nessa hora, é importante considerar que o percursodiscursivo dos sermões é apresentado em suaconstituição, a partir das posições discursivas adotadaspelas denominações em suas estruturas doutrinária eargumentativa (Teologia da Prosperidade, ConfissãoPositiva, Batalha Espiritual, entrega de dízimos eofertas, entre outros), com ênfases mais leves e maissutis no discurso da Igreja Católica Romana, embora,gradativamente, os pregadores católicos estejamreproduzindo o discurso religioso evangélico, inclu-sive com referência aos dízimos6.

Do ponto de vista semântico, a enunciação dossermões dos pregadores midiáticos remete os fiéis adiscursos que estão em circulação no meio evangéliconeopentecostal7 que luta contra a crise – para eles,resultado da ação do diabo que tenta atrapalhar os planosde Deus, causando sofrimento ao gênero humano – etraduz, por conseguinte, um quadro socioideológico deconfrontação ou de aceitação das idéias. Assim, vemosna auto-evocação da autoridade profética e espiritual dosministros das igrejas eletrônicas, a indução da aceitaçãoaos postulados religiosos da denominação apresentadana propagação da luta travada como uma batalhaespiritual, acarretando, em seguida, à não-aceitação deuma vida de dor, sofrimento e derrota.

Nesta condição, os locutores-pregadores declarama vitória dos servos de Deus, negando a aceitaçãoda desgraça, da pobreza, da miséria, porquerepreendem o inimigo (diabo) e alegam que os fiéisreceberão de volta o que ele roubou, inclusive a saúde(se for um caso de enfermidade). Desse modo, oslocutores-pregadores manifestam, além da percepção

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dos fiéis, os seus próprios pontos de vista, reiterandoo subentendido de que eles são portadores deautoridades divinas, concedidas não só pela igrejainstituição, mas também de forma sobrenatural porDeus. Os discursos são concebidos de maneira queos postulados das igrejas sejam respaldados eincutidos no dia-a-dia dos fiéis que encontram, nouniverso em que estão inseridas, as presenças decorpos enunciados semelhantes aos apresentados nodiscurso da denominação. Ver-se então, ospregadores-enunciadores, cujos corpos participam dacenografia, encarnarem o “ideal” de vida, obtidoquando atrelado à adesão aos postulados doutrináriosda denominação religiosa em questão.

A partir disso, esses postulados, pregados exaus-tivamente nos sermões midiáticos, podem penetrar noimaginário dessa cenografia constituída e experimentara adesão de se inscrever fisicamente neste contexto,passando a vivenciar de modo palpável tal cenografia.

Notas1 Informações extraídas da revista eletrônica com base nosdados do Instituto de Estudos da Religião (Iser), no site:http://www2.uol.com.br/revista_da_tv.htm#08, consultado em12.12.03.2 A tese da heterogeneidade discursiva foi instituída na 3ªfase da Análise do Discurso, com Authier-Revuz. Na décadade 80, mais precisamente em 1982 e 1984, a autora lançoudois artigos que abordavam o tema da heterogeneidade. Emtais artigos, ela sustenta que a homogeneidade do discurso éuma ilusão, apresentando a tese que o discurso é, na verdade,atravessado por “outros” discursos que denunciam necessa-riamente a presença de diversas vozes em uma só voz.3 Existem duas classificações para o “falar línguas estranhas”a saber: Xenoglassia -falar em língua estrangeira sem o prévioconhecimento da mesma (como no livro de Atos dos Após-

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A cena enunciativa e o ethos dos pregadores no discurso das igrejas eletrônicas

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tolos – At 2:7-8) e glossolalia - falar em língua desconhecida,ou seja, a língua dos anjos - que é desconhecida dos homens.4 Surgida nos Estados Unidos, a Teologia da Prosperidade échamada Health and Wealth Gospel, trata-se de umacorrente cujo discurso valoriza a prosperidade e reabilitaeticamente o dinheiro e os ganhos materiais. (Prandi, 1997).5 A maior parte dos líderes religiosos que utilizam massmedia desfrutam de prestígio, fama e condições financeirasbastante satisfatórias.6 A doutrina do dízimo consiste na devolução a Deus de 10%dos ganhos provenientes dos rendimentos profissionais. Anecessidade de entrega dos dízimos, segundo texto veiculadopela Igreja Católica no site http://www.catedraldecaxias.org.br/dizimo.php, consultado em 05.01.04, se faz porque: “O Dízimoé um compromisso com a sua igreja e com o próximo, umaresposta de consciência de sua família e um ato de amor, departilha e de justiça com Deus e com a Igreja. Não deve serconsiderado como uma esmola que a família dá contra avontade, nem como um pagamento, uma taxa ou imposto.Também não é uma troca de favores, nem comércio e ,muitomenos, uma compra de sacramentos”.7 Conforme Ricardo Mariano, em seu artigo “O futuro não seráprotestante”, o “Neopentecostalismo”, como estratégia“proselitista”, pouco exige dos adeptos. A exceção maisevidente fica por conta dos incessantes pedidos de dízimos eofertas. Em troca, promete a solução para todos os problemas,o fim do sofrimento, a panacéia. Seu sucesso fundamenta-seextensamente no milagre, na magia, na experiência estática,no transe, no pietismo ou na manipulação da emoçãotransbordante e desbragada, todas práticas desprezadas ereprimidas pelas igrejas católica e protestante históricas.Propiciam, em suma, magia e catarse para as massas.

Referências bibliográficasAUTHIER-REVUZ, J. “Heterogeneidade Mostrada eHeterogeneidade Constitutiva: elementos para umaabordagem do outro no discurso”. Paris. In: DRLAV 26, 1982

BARTHES, R. .“L´ancienne rhétorique”. In: Communications,nº 16, 1996.

DUCROT, O. Le dire et le dit. Paris: Éditions de Minuit, 1984.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em análise do discurso.2ª ed. Trad. de Freda Indursky. Campinas: Pontes, 1993.

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Karla Regina Macena Pereira Patriota é doutoranda emSociologia e mestre em Comunicação pela UFPE.

Professora do Curso de Comunicação Social daUniversidade Salgado de Oliveira (Universo) e da

Faculdade Pernambucana (Fape).

MAINGUENEAU, D. “O Cenário da Enunciação: acenografia.” In: O contexto da obra literária. Trad. de MarinaAppenzeller; Rev. Eduardo Brandão. São Paulo: MartinsFontes, 1995.

MAINGUENEAU, D. “O Discurso Citado.” In: Elementos dalingüística para o texto literário. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. 2ªed. Trad. de Cecília P. de Souza-e-Silva e Décio Rocha. SãoPaulo: Cortez, 2002.

MARIANO, R. Neopentecostalismo: os pentecostais estãomudando. São Paulo: dissertação de mestrado em

Sociologia, FFLCH-USP, (1995).

PRANDI. Um Sopro do Espírito: a renovação conservadorado catolicismo carismático. São Paulo: Editora daUniversidade de São Paulo (Fapesp), 1997.

RIVERA, P. Tradição, transmissão e emoção religiosa. SãoPaulo: Olho D’água 2001.

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As encenações do “televangelismo” como forma de entretenimento

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As encenações doAs encenações doAs encenações doAs encenações doAs encenações do“tele“tele“tele“tele“televangelismo” comovangelismo” comovangelismo” comovangelismo” comovangelismo” como

forma de entretenimentoforma de entretenimentoforma de entretenimentoforma de entretenimentoforma de entretenimentoMarco Souza*

RESUMOEste artigo é uma tentativa de analisar o fenômeno do“televangelismo” pelo viés dos estudos de recepção, através deuma nova perspectiva que propõe a possibilidade dos programasreligiosos da televisão serem assistidos por telespectadores que oassistem como uma forma de entretenimento.Palavras-chave: Comunicação, Religião, Televisão.

ABSTRACTThis article is an effort to study the “televangelism” trough the point ofview of the reception researchs, in a new perspective that proposes thepossibility of watching religious TV shows as a form of entertainment.Keywords: Communication, Religion, Television.

RESUMENEste artículo es una tentativa de analizar el “televangelismo” pelo bies delos estudios de recepción, por medio de una nueva perspectiva la cual indicala possibilidad de lo programa religioso de TV ser una forma deentretenimiento para los telespectadores.Palabras clave: Comunicación, Religión, Televisión.

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“Se Jesus estivesse vivo, estaria usando aTV para evangelizar.”

Padre Eduardo Dougherty

“De fato, era o entretenimento e não a religião,como queria Marx, o ópio do povo.”

Neal Gabler

Desde o começo da sua história, em 1923, a televisãofoi pensada como um invento tecnológico que poderiaservir como um modelo inovador de envio e recepçãode sinais elétricos ou como um simples meio detransmissão que compartilhava as mesmas funções dotelefone e do telégrafo. Nos seus primórdios, ninguémsabia, realmente, qual a extensão dos seus usos, mas,mesmo assim, a TV não demorou a se transformar emuma espécie de epicentro cultural a partir da segundametade do século 20. Afinal, a televisão foi,progressivamente, reorganizando e reestruturando osoutros meios de comunicação de acordo com ascaracterísticas próprias da sua lógica audiovisual.

O rádio, muito embora tenha perdido centralidade,ganhou penetrabilidade e flexibilidade, adaptando assuas modalidades e os seus temas ao ritmofragmentado e acelerado da TV. Os jornais e as revistas,na mesma medida em que se mantiveram atentos paraas informações veiculadas pela televisão, também seespecializaram na variedade e na concisão de seusconteúdos, em consonância com os diferentessegmentos e interesses do seu público-leitor. Osfilmes1, de um modo geral, foram obrigados a atenderaos ditames da linguagem televisiva, já que o destino

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do produto fílmico atual (feito para o cinema, vídeo,DVD e até para internet) é ser absorvido e transmitidopela grade de programação das TVs abertas ou porassinatura2. A própria internet (uma mídia posteriorao meio catódico) está imbuída de muitascaracterísticas televisivas como a mediação de uma tela,a percepção visual, a necessidade de uma transmissãoveloz, a fragmentação de conteúdos, entre outros.

Portanto, é por causa desses níveis de influência e deacessibilidade a todo tipo de público, da sua habilidadede veicular toda forma de conteúdo e das suas variáveisde organização e de fruição, que a televisão passou a serum meio privilegiado na articulação social e cultural dosindivíduos. Só que, de maneira ambígua, ela se divide,ao mesmo tempo, entre o seu lado de instituiçãointegradora com responsabilidades e deveres sociais e oseu outro lado (que, provavelmente, é o lado maispreponderante) de entidade comercial direcionada pelolucro e pela rentabilidade máximos.

Algo vital para um mundo moderno, no qual aprodução televisiva é também uma mercadoria valiosae os fluxos de circulação dessa produção, controladospor instituições e empresas ligadas aos mais diversossetores produtivos, por meio de uma intrincada redeque agrupa, em um mesmo fenômeno, atividades que,na origem, são diferentes (esportes, notícias, arte,educação, lazer, turismo, showbiz, e assim por diante).Mas que se articulam enquanto mercadoriasdestinadas ao consumo específico que é caracterizadopelos princípios básicos de um grande e difuso espaçoconhecido como entretenimento. Uma instância que,atualmente, possibilita transformar tudo, literalmente,

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em mercadoria para consumo, das mais ordinárias ebaratas experiências até as pretensiosamente maisexclusivas, sofisticadas e caras. É assim que oentretenimento engloba o mundo, e a televisão, emcerto sentido, é o seu modo preponderante decomunicação. Principalmente porque:

Nenhum veículo gerou imagens comoa televisão. Abominando o ar vazio, obrigadaa nos manter estimulados para que nãomudássemos de canal ou, pior,desligássemos o aparelho, a televisãoconverteu tudo que aparecia na tela ementretenimento, que era a sua forma naturalde discurso. “Não importa o que elamostre, ou de que ponto de vista”, escreveuPostman3, falando sobre a televisão, “asuposição açambarcante é que ela está alipara nos divertir e dar prazer”.Transformada no meio primordialmediante o qual as pessoas se apropriavamdo mundo, a televisão disseminou umaepistemologia na qual toda e qualquerinformação, não obstante a fonte, eraforçada a se transformar ementretenimento: a era da tipografia cedendolugar à era da televisão e mudando nossaforma de pensar. (GABLER, 2000: 57-58)

Através dessa passagem que vai da Sociedade doespetáculo, de Guy Debord (1997) para essa Sociedadedo entretenimento, de Neal Gabler, é possível percebercomo prevalecem, cada vez mais, uma cultura naqual a maior parte dos estímulos simbólicos vem da

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mídia e uma sociedade cujo essencial de suasestruturas reside sobre a lógica mercantil dainformação e da comunicação. Por isso, como princi-pal meio comunicacional da modernidade, a televisãose mostra, em demasia, como se fosse uma espécie deimersão que permeia a vida humana através do simplesato de apertar um botão. Ligar a TV transformou-seem uma ação tão corriqueira quanto o gesto de giraruma torneira de água, acionar uma lâmpada, falar emum celular ou acessar a internet. São tecnologias docotidiano incorporadas, totalmente, nos hábitos dodia-a-dia, e que servem como indícios precisos decomo a televisão ostenta um lugar central na históriadas sociedades contemporâneas e na história da relaçãodestas com os indivíduos.

De tal forma que ela foi, progressivamente,assumindo a posição de um objeto de estudo teóricoque, atualmente, possui um status referencial nasanálises acadêmicas através de um amplo espectro quenão se limita a examinar apenas os processos televisivosde produção e de consumo, mas, igualmente, ascapacidades culturais e as possibilidades de percepçãoque determinam a recepção e o consumo das imagenscatódicas. Afinal, a TV não funciona de maneira isoladado social, pois, apesar de ter regras próprias de produçãoe uma autonomia nos seus modelos de difusão, atelevisão depende, claramente, de diferenciadas formasde expressão presentes no uso cultural praticado evivenciado pelos telespectadores.

Os valores sociais e culturais convertem-se, comisso, nas dimensões mais importantes projetadas pelaprogramação televisiva. Tanto que nos estudos sobre a

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comunicação de massa, as perspectivas sociológicas eempíricas tiveram sempre uma grande presença nareflexão sobre a televisão. Mas, através disso, é cabívelobservar que as grandes perguntas e interrogações feitas,desde a década de 50 do século passado até o séculoatual, sobre esse meio, ainda não foram resolvidas.Assim, o interesse científico e metodológico que a TVsempre provocou, evidencia-se na quantidade deestudos e experimentos realizados, como também nadiversidade de técnicas e modelos de análises utilizados.

Tal situação gerou uma produção de conhecimentoque, em sua maior parte, não conseguiu fugir da marcaque as origens técnicas dessa mídia deixaram por meiode um determinismo tecnológico que logo foi articuladoaos condicionamentos políticos, econômicos e culturaisda sociedade. Esses condicionamentos tornaram-sepalavras-chaves, não apenas da história da televisão,mas também da sua investigação, e, portanto, dasmúltiplas teorias e dos inúmeros paradigmas elaboradospara sua compreensão.

Com isso, reconhecer os eixos que direcionam eservem de referência aos estudos da televisão significaperceber como eles se atêm, freqüentemente, aos seusefeitos, a sua qualidade de instituição socializadora ea sua condição de veículo de informações variadas.Nesse sentido, indicando uma linha que ressalta comoo funcionamento da televisão, com sua linguagem, seusgêneros e seus formatos, obedece a estruturascomunicativas, culturais, intertextuais e socializadasque acabam pontuando os aspectos determinantespara as análises acadêmicas dos programas e dosconteúdos televisivos em relação aos espectadores.

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Com o transcorrer do tempo, entretanto, a figura doespectador revelou-se como uma espécie de ponto cen-tral, passando a definir o enfoque da maioria das análisesque examinam a produção de sentido na interação dopúblico com a televisão. É uma divisão das pesquisasem comunicação que foi denominada de estudos derecepção. Só que, ao contrário de utilizar o conceito derecepção como um modelo de passividade queclassificaria o receptor como um receptáculo dosconteúdos televisivos, esses estudos ressaltam, de fato,a recepção como uma atividade própria que envolve ascaracterísticas particulares do receptor e, igualmente, asua capacidade de interferir, ativamente, nos propósitosintencionais colocados pela TV em sua programação.

Por isso, a fruição polifônica que caracteriza todoo processo de recepção das imagens televisuais, deixalacunas abertas para o preenchimento individual decada telespectador. Assim, essa apropriação dossignos televisivos é, antes de tudo múltipla,incompleta, cabendo a cada um, com seu repertórioanterior de histórias e de significados pessoais ecoletivos, preencher as lacunas de percepção atravésde formas extremamente singulares. Portanto, antesde ser categorizada como um modelo massificador ediluidor de intenções e referências, a televisão, pormeio dos estudos de recepção, é entendida como umprocesso de produção ao qual pode-se imprimir,constantemente, diferentes propósitos e reações. Odesenvolvimento das análises da audiência televisivaacompanhou uma progressão que vem:

Desde a época de sua implantação so-cial em grande escala no início da década

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de 1950. (...) De maneira significativa noinício, eram os indivíduos que pertenciamàs categorias sociais desfavorecidas que maisassistiam à televisão. Quando suas horas deaudiência começaram a atingir o ápice, elaaumentou nas categorias sociais privilegiadas.Com a década de 1960, a televisãofinalmente conseguiu penetrar em todos osmeios sociais, até mesmo no lar dessesprivilegiados mais próximos da culturaescrita e inicialmente hostis à invasão de seutempo de lazer pela televisão. Isso nãosignifica, todavia, que a experiência individualde assistir à televisão seja a mesma paratodos: as estatísticas sobre o fato de que umaparelho de televisão esteja ligado em umacasa não nos informam sobre a experiênciaefetiva das pessoas diante da telinha. Alémdisto, o acesso aos canais suplementaresdistribuídos via cabo e o uso dovideocassete e do DVD, possibilidadestípicas das décadas de 1980 e 1990, abremnovos mercados e ao mesmo tempo novasperspectivas para o consumo televisivo.(BRETON; PROULX, 2001: 45-46)

Insiste-se, com isso, na importância de um sujeito-receptor ativo e também produtor e participante de umprocesso de construção dos significados dos conteúdostelevisivos. Pela extensão de toda essa interação entrerecepção e comunicação televisiva, existe, atualmente,um número expressivo de pesquisas “comunicacionais”que se dedicam a estudar os variados aspectos da

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relação TV e espectador. No domínio dessaspesquisas, um tipo de análise que ocupa umaquantidade destacada de trabalhos publicados é umfenômeno caracterizado pela utilização daspossibilidades do meio televisivo por parte dediferentes segmentos da esfera religiosa e que éconhecido como “televangelismo”. Algo que resultadas variações sociais sofridas por um campo religiosorepresentado por poucos modelos de religião e que,por causa disso, apresentava, até aproximadamentea metade do século 20, a inexistência de um lequemais diversificado de opções religiosas.

Devido ao fato dessa espécie de primeiro estágiodo campo religioso estar alicerçado na tradição socialou familiar, havia, então, uma pequena possibilidadede transferência de um indivíduo para outro gruporeligioso. Entretanto, com o aprofundamento de umprocesso irreversível de consumo e da conseqüentedistensão de todos os elementos consideradosestáveis: normas, crenças, valores, atitudessocialmente aceitáveis, ocorreu, conseqüentemente,o surgimento de um pluralismo capaz de aumentar asoportunidades de escolha e de adesão do indivíduo.O que provocou, dessa maneira, a passagem de umcampo religioso fundamentado por uma espécie demonopólio de crença para uma nova forma de religião,uma religião marcada pelos ditames e pelas demandasdo mercado capitalista de consumo e de satisfação.

Desse modo, as organizações religiosas,obviamente, foram direcionadas para os caminhosdessa nova situação de mercado, e, assim, optarampor adequar as características de seus discursos

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religiosos às características de um produto quenecessita ser assistido e consumido. Para tanto, tendoque ser ajustado às necessidades de uma grandemassa de público, o que permite, então, atender aosdiversos anseios dos diferentes segmentos quecompõem esse público. Assim, a transmissão dessenovo tipo de discurso religioso, massivo econsumível, recai, obviamente, na abrangênciaintrínseca a TV, que acaba gerando uma produçãoem série de programas “televangélicos”. Sendocabível constatar que,

Programas transmitidos pela televisão,que não são poucos, utilizam verdadeirosrecursos cinematográficos, com perfeitosefeitos especiais, realizados, na maioria dasvezes, nos estúdios de gravação da própriaorganização religiosa. Além de todo oaparato técnico, é também interessante adiversidade de opções que os fiéis têm aseu dispor no que diz respeito àprogramação religiosa ofertada pelatelevisão. Há programas para todos osgostos e todas as faixas etárias (deprogramas de auditório a clipes), os quaispodem ser encontrados nos mais diversoshorários e em vários canais de televisão.Tudo isso realizado por especialistas que sãoapresentados, sem nenhuma cerimônia nosprogramas religiosos, como é o caso deassessores de marketing que dão entrevistasnas quais comentam o sucesso dedeterminada programação. (...) A religião

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tem, cada vez mais, participado da intensainvasão cotidiana do espaço privado aolevar, através dos meios de comunicação demassa, as missas, os cultos e as suas músicaspara dentro das casas das pessoas.(BORZUK, 2000: 11-12)

Através dessa repetição de fórmulas televisivas,corriqueiras e consagradas, as mais difundidasmanifestações religiosas da contemporaneidade4 estão,irremediavelmente, sendo mediadas pela TV por meiodessa “estandartização” de mensagens e também dasformas utilizadas para veiculá-las. Algo que étotalmente passível de verificação ao se assistir aaeróbica do Senhor, do padre Marcelo, a retóricamilagrosa de R.R. Soares ou a programas como a Missado Santuário do Terço Bizantino, o Show da Fé, aRealidade Atual, a Escola Bíblica na TV, o Santo Cultoem seu Lar, o Encontro com Cristo, a Raboni e Você,entre outros. São todos exemplos de “televangelismo”que correspondem, claramente, a um modelo televisivode expressão que só funciona de acordo comprocedimentos característicos da produção de TV.

A partir disso, as pesquisas de comunicação quepropõem um estudo desses programas assumem,constantemente, uma posição que analisa a organizaçãode um “televangelismo” exteriorizado por um discursoreligioso, oferecendo um conforto milagroso dirigidoaos frustrados, desajustados, doentes, impotentes,fracassados, viciados, pobres, miseráveis, infelizes.Dessa maneira, a medicina, ciência, economia, política,sociedade e a cultura são desacreditadas para responderaos grandes problemas da vida humana, cabendo a

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religião o poder da solução e do bem-estar para umaexistência religiosa que carrega em si a plenitude dafelicidade financeira, da aparência bem-sucedida e doânimo contínuo necessários para o convívio midiáticodo mundo contemporâneo. A comercialização dascriações espirituais por meio dessa associação entremídia e religião obedece, então, a uma lógica de mercadono qual o consumo religioso implica em expungir algoque possa ter efeito no plano do imediato, enquantoque o plano do divino perde a sua importância efetiva.

Em termos de estudos de recepção, esse desenvol-vimento de certas tendências por parte do “tele-vangelismo” é entendido, entretanto, de acordo comuma visão clássica que predispõe uma relação básicade poder, já que a figura do telespectador é aindarelacionada com um estado de passividade evidente.Algo que acontece porque a ligação estabelecida ésempre estruturada a partir da prevalência do discurso“televangelista” sobre o indivíduo, ficando exposto aosdiferentes programas religiosos de TV.

Assim, o telespectador sofre, necessariamente, osefeitos intencionais pretendidos por esse tipo deprograma, efeitos que estariam restritos, unicamente, apossibilidades religiosas. Uma situação que, em si, negaa recepção televisiva como um processo dependente,em larga escala, de como cada indivíduo da audiênciafaz, em alguma medida, uma seleção singular doselementos que compõem o conteúdo da programaçãode TV. Com isso, o indivíduo telespectador reage,freqüentemente, a partir de componentes particularesque podem desvirtuar, completamente, as intençõesoriginais propostas por qualquer programa de televisão.

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Afinal, é óbvio que existem, de maneira firmementeinstitucionalizada, os horários de ligar a TV para assistira determinados programas. Mas, contudo, existem,igualmente, os determinados horários, em que milhõesde pessoas estão preparadas para assistir a televisão,independente de uma oferta específica da programação.É nesses dois aspectos que entra, com exatidão, a lógicavigente do entretenimento. Pois, ao se percorrer as idase vindas dos pólos da cadeia “comunicacional” percebe-se que o conteúdo televisivo está sujeito a múltiplasvariáveis, então, a intenção almejada pelo produtotransmitido pode não vir a ser a mesma captada erecolhida pelo telespectador através de percursosextremamente pessoais de impressão de significados.

Portanto, a atuação televisual do espectador tambémfunciona como um ato de criação com uma espécie deintuito transformador que atende a valores estéticos epadrões éticos distintos. Sobretudo porque nos processoscaracterísticos da comunicação, a criatividade é uma for-ma fundamental de recepção, mesmo na produção indus-trializada de bens culturais e no seu consumo por largasfaixas da população. Por isso, nem todo telespectadorque se dispõe a assistir um programa “televangélico” estáprecisamente direcionado por alguma motivação religiosaou disponível a atender a um chamado religioso, podendotambém estar interessado em encontrar, simplesmente,algum tipo de entretenimento presente em qualquermodelo de produção televisiva.

Por meio dessas instâncias diversas e dessespatamares diversificados, é indispensável compreendercomo a existência da mídia depende, propriamente, dafigura do telespectador receptor que é:

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Bem mais do que um “recebor deimagens”, às quais se esforça, conforme odomínio que tenha do código, pordecodificar ou decifrar. Um receptorcostuma “reconhecer mensagens”, no sentidode que as submete, para fins de interpretação,ao crivo referente aos valores sociais quedefenda, ao grau de instrução escolar quepossua, à experiência de vida que tenha e àlógica de raciocínio que habitualmente adote.Pelo recurso ao código, que em algum graude domínio tem em comum com o emissor,ele decodifica a mensagem; pelo exercíciode seu repertório, ele a reconhece. Pelanegociação mediadora, ele a dota de sentido.(POLISTCHUK; TRINTA, 2003: 150)

Um sentido que, habitualmente, está relacionadocom a possibilidade do entretenimento. Porque ostelespectadores, de fato, podem estar interessados emalgum tipo de informação, mas, na grande maioria dasvezes, estão procurando, nos frames da programaçãotelevisiva, por um estado de ambivalência que oscoloque em um vaivém apto aos levar do tédio àfascinação e da fascinação ao tédio. Ao assistir TV, esseagrupamento de espectadores procura, nos raioscatódicos, por um interesse específico representado porprogramas que tragam distração, relaxamento, satisfação,encantamento, animação, excitação, enfim, é uma buscapor momentos de entretenimento que, obviamente,podem diluir qualquer sensação desagradável advindado zapping por instantes tediosos que são suportadosaté a chegada do esperado e sagrado êxtase do diver-

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As encenações do “televangelismo” como forma de entretenimento

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timento. É a materialização de um desejo de alcançaruma posição de recostamento em frente ao espaçoretangular da tela de televisão para, com isso, ser entretidocom uma vazão fragmentada de imagens e sons. Nessasituação fica-se disposto a se identificar com as coisasmais bobas e inusitadas somente para satisfazer a essanecessidade crucial por algum tipo de diversão imediata,por algum tipo de recepção capaz de extrair o mínimo decontentamento televisivo.

Portanto, por um nível tão amplo de público queconsegue dar uma audiência de milhares de pessoas5para canais especializados em assuntos tão inusitados(leilões de gado, proclamações no congresso, teleshopping,procedimentos jurídicos, entre outros), as encenaçõesdo “televangelismo” com, por exemplo, seus testemu-nhos de sofrimento e de redenção (representando níveismelodramáticos), seus exorcismos freqüentes de um de-mônio figurante de TV (representando níveis espeta-culares), seus pregadores teatralizados (representandoníveis dramáticos), é possível discernir a existência deum número considerável de telespectadores que encon-tram o mais puro entretenimento nessa forma específicade televisão. Algo que revela como a capacidade de re-cepção do público diante da TV funciona através de umprocesso de comunicação tão intrincadamente complexo,conseguindo transformar até mesmo o que normalmentese espera que sejam os rendimentos únicos expressospor um formato televisivo voltado para o campo religioso.

Nesse sentido, até o programa de televisão maisrestrito em intenções está estruturado em princípios“comunicacionais” que podem ter efeitos inesperadosna medida em que o telespectador confere significados

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Marco Souza

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baseados na satisfação de suas próprias intençõestelevisivas. Portanto, é preciso reconhecer a imensavariedade de utilização e de gratificação que possibilitaàs pessoas fazer um uso, completamente, persona-lizado de qualquer produto midiático.

Notas1 Os filmes feitos para cinema são editados, hoje em dia,com os momentos específicos que serão usados para ocorte para os intervalos comerciais da TV.2 Valendo mencionar a influência que a linguagem televisivaimprime em outras formas de expressão como, por exemplo,a literatura, a música, as artes plásticas ou o teatro.3 POSTMAN, Neil. Amusing ourselves to death: public dis-course in theaAge of showbussiness. New York: VikingPress, 1984.4 Mesmo no controlado mundo mulçumano, começam asurgir programas televisivos em redes árabes voltados paraesse tipo de difusão. Sendo possível constatar que essaspráticas contêm utilizações muito esparsas no budismo eno judaísmo.5 Sendo que um único ponto na medição de audiência doIbope equivale a 49.000 telespectadores.

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As encenações do “televangelismo” como forma de entretenimento

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DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Trad. OtíliaCevasco. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

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GABLER, Neal. Vida, o filme. Trad. José Marins. São Paulo:Companhia das Letras, 2000.

HARTMAN, Atílio Ignácio. Religiosidade e mídia eletrônica:a mediação sociocultural religiosa e a produção de sentidona recepção da televisão. 2000. São Paulo. ECA-USP(doutorado em Ciências da Comunicação), 352f.

MACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo:Editora Senac, 2000.

MARTÍN-BARBERO, Jesús; REY, Germán. Los ejercicios delver: hegemonia audiovisual y ficción televisiva. Barcelona:Gedisa, 1999.

MARTINHO, Luis Moura Sá. Mídia e poder simbólico: um ensaiosobre a comunicação e o campo religioso. São Paulo: Paulus, 2003.

MORLEY, David. Televisión, audiencias y estudios culturales.Buenos Aires: Amorrorty Editores, 1996.

PRANDI, Reginaldo. Um sopro do espírito: a renovaçãoconservadora do catolicismo. São Paulo: Edusp, 1997.

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Marco Souza é jornalista e doutorando doPrograma de Estudos Pós-graduados em Comunicação

e Semiótica da PUC-SP.

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LOGOS

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Conexões transdisciplinares

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Internet, imprensa e as eleições de 2002: pautando notícias em tempo real

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Alessandra Aldé e Juliano Borges

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Internet, imprensa e asInternet, imprensa e asInternet, imprensa e asInternet, imprensa e asInternet, imprensa e aseleições de 2002: pautandoeleições de 2002: pautandoeleições de 2002: pautandoeleições de 2002: pautandoeleições de 2002: pautando

notícias em tempo realnotícias em tempo realnotícias em tempo realnotícias em tempo realnotícias em tempo real11111

Alessandra Aldé* eJuliano Borges**

RESUMOO artigo aborda as relações entre as campanhas eleitorais e a internet,a partir da análise da cobertura dada pelos jornais à agenda políticaoriginada pelos sites dos candidatos a presidente, em 2002.Analisamos as versões impressa e digital de O Globo e Jornal doBrasil, mostrando como a internet foi usada estrategicamente peloscandidatos para provocar notícias em tempo real que acabaramamplificadas pela mídia, reforçando ataques que, de outra forma,não teriam tido tanta visibilidade.Palavras-chave: Internet e eleições, jornais digitais, jornalismoeleitoral.

ABSTRACTThis research paper broaches the relations between the electoral campaignsof the main presidential candidates to the 2002 Brazilian elections andthe Internet, by analyzing the coverage of political agenda originated bythe campaign official websites on the digital and paper versions of thenational daily newspapers Jornal do Brasil and O Globo.Keywords: Internet and elections, digital news media, electoral journalism.

RESUMENEse texto investiga las relaciones entre campañas electorales y internet,analisando la cobertura de los periódicos a la agenda politica originada enlos sitios de los candidatos brasileños a presidente, en las elecciones del2002. Estudiamos las versiones impresa e digital de los diarios O Globo yJornal do Brasil, demonstrando como la web fue usada estrategicamentepor los candidatos para provocar noticias entonces amplificadas por losmedios, dando más visibilidad a los ataques entre ellos.Palabras clave: internet y elecciones, periódicos digitales, periodismo electoral.

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Internet, imprensa e as eleições de 2002: pautando notícias em tempo real

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Eleições e novas tecnologias da comunicaçãoAs novas tecnologias de informação e co-

municação estão transformando sociedades, gover-nos e sistemas políticos no mundo contemporâneo2.Dentro do âmbito mais geral dos estudos de mídiae política, a motivação para esta pesquisa foi in-vestigar o impacto das novas tecnologias, parti-cularmente a internet, nos processos eleitorais.Trata-se de um campo de pesquisa pioneiro e rele-vante, dentro do qual nos interessa, particular-mente, a interação entre a nova mídia e os meiosde comunicação de massa tradicionais. Os jorna-listas, atores influentes na produção do noticiário,e conseqüentemente da cultura política3, recorremcrescentemente à internet como fonte de infor-mação, o que torna a rede um novo campo de dis-puta política. Candidatos, partidos, governos e mo-vimentos sociais podem se empenhar na produção,via internet, de informação noticiável procurandoconquistar a atenção da “grande mídia”, capaz deampliar a repercussão de seus discursos. Alcan-çando, principalmente, através da informação maisqualificada, porém custosa e de acesso mais difícil– jornais, internet, canais a cabo – uma elite cogni-tiva, vista por sua vez como especialmente habili-tada para emitir opiniões sobre a política, justamentepor seu acesso especializado. Opiniões que serãobuscadas, principalmente, no período eleitoral, úni-co momento político em que toda a sociedade real-mente se sente mobilizada a se justificar pelas suasescolhas, procurando explicações convincentespara votar neste ou naquele candidato.

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A partir da base de dados coletada e organizada noâmbito do Doxa (Laboratório de Pesquisa em Comu-nicação Política e Opinião Pública), do Iuperj, analisamossistematicamente as peças jornalísticas, impressas edigitais, cujos títulos e resumos faziam referência aossites dos quatro principais candidatos presidenciais de2002, buscando avaliar a capacidade relativa de suascampanhas de influenciarem a cobertura jornalística apartir de seus sites oficiais. A presente comunicação trazos primeiros resultados desta pesquisa que pretendemosdesdobrar com estudos do conteúdo dos próprios sites ecom a análise de sua recepção entre usuários espe-cializados (jornalistas, militantes) e não-especializados.

Embora o jornalismo digital já existisse,por ocasião das eleições de 1998, esta foi aprimeira campanha em que a internetdesempenhou um papel político relevante,sendo usada estrategicamente peloscandidatos para provocar notícias em temporeal que acabaram amplificadas pela mídia,reforçando ataques que, de outra forma, nãoteriam tido tanta visibilidade.

Este fenômeno foi conseqüência, em parte, do altograu de competitividade desta eleição. Desde o começodaquele ano, as pesquisas de opinião mostravam quequatro, dos seis candidatos concorrentes, tinhampossibilidade real de chegar ao segundo turno. Umaconjuntura bem diferente da que cercou as eleições de94 e 98, vencidas por Fernando Henrique Cardoso, semgrande surpresa, já no primeiro turno. O quadro deindefinição das eleições de 2002 elevou o tom dadisputa a níveis que não eram vistos no Brasil desde as

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eleições de 1989, quando a polarização ideológica e omomento político do país – a primeira eleição parapresidente da República depois de 21 anos de ditaduramilitar – contribuíram para o acirramento da competição.

Em 2002, o resultado de oito anos de uma políticaeconômica ortodoxa havia garantido o controle dainflação, à custa de índices de crescimento irrisórios. Oaumento do desemprego tornou-se um dos focos daagenda pública, contribuindo para a queda dapopularidade do governo. Dos quatro candidatos viáveis,três se apresentavam como alternativas de oposição.Desse modo, se na campanha de 1998 o tema damudança foi tratado como um fator de instabilidade,associado aos riscos e ameaças que poderia trazer aopaís, na eleição de 2002 o desejo de mudança foiidentificado como a principal orientação dos eleitores e,portanto, do discurso político. Todos os candidatos,mesmo o que representava a situação, propuseram, aomenos retoricamente, uma perspectiva transformadora.As campanhas concorrentes, desse modo, empenharam-se em qualificar a mudança, transferindo a disputa políticapara a relativa capacidade ou coerência dos diferentescandidatos para realizá-la. A competição, assim, foi maispersonalista, com ataques freqüentes entre candidatos.

Outra mudança, em relação às duas eleiçõesanteriores, foi o papel dos meios de comunicação queconferiram à disputa uma visibilidade excepcional. Amaioria dos analistas concorda que esta eleição foi a que,nos anos recentes, mais mobilizou a cobertura jornalística;os agentes de notícias, no entanto, não mostraram, comoem ocasiões anteriores, preferência explícita por nenhumdos candidatos4.

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Apesar do Jornal do Brasil e O Globo estarem en-tre os primeiros jornais brasileiros com versões nainternet – lançadas em 1995 e 1996, respectivamente– esta foi a primeira eleição na qual a coberturaeleitoral, por meios digitais, tornou-se politicamentesignificativa. O papel desempenhado pela coberturaon-line no processo eleitoral pode também seratribuído à maturidade e sofisticação dos meios decomunicação digital no Brasil, assim como à difusãoe penetração crescente da internet entre os brasileiros.Os jornais digitais mostraram autonomia em relaçãoàs suas versões impressas. Os candidatos, por sua vez,souberam aproveitar essa tendência usando seus sitesde campanha como um instrumento eficiente paraprovocar notícias nos jornais on-line. Em suas homepages de campanha, Lula, José Serra, Ciro Gomes eGarotinho dispuseram todo tipo de informação,fazendo da rede uma importante referência não apenaspara eleitores, mas também para a imprensa.

Candidatos diferentes, um só discurso:a mudança

Luiz Inácio Lula da Silva, o candidato do PT,concorria pela quarta vez, depois de mais de vinteanos de oposição constante. Graças a uma estratégiade comunicação altamente profissionalizada, queincluiu a contratação do conhecido publicitárioDuda Mendonça (responsável por mais de dez anosde campanhas de Paulo Maluf), sua estratégia decomunicação eleitoral conseguiu superar algunsfatores históricos de rejeição – tais como a falta deeducação formal e de experiência administrativa – que

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sempre impediram seu projeto de chegar à Presidência.Sua vitória em outubro foi, portanto, coerente com ocontexto político, uma vez que Lula sempre fora umcandidato identificado com a mudança.

José Serra, candidato da situação pelo PSDB, haviaocupado, durante o governo de Fernando Henrique,dois ministérios, o da Saúde e o do Planejamento. Noentanto, sua estratégia de campanha – coordenada poroutro importante publicitário, Nizan Guanaes – preferiuenfatizar as diferenças em relação ao seu antecessor, elevou sua propaganda a abraçar o tema da mudança,através do slogan “mudança com segurança”, em lugarde ressaltar as realizações do governo federal duranteos dois mandatos anteriores. Durante as seis semanasde propaganda eleitoral gratuita, por exemplo, opresidente Fernando Henrique apareceu em apenas umprograma de Serra. Para alguns analistas, esse foi o maiorerro estratégico de Serra, já que os eleitores dificilmenteperceberiam o candidato da situação como a alternativamais indicada para promover mudanças significativas.Como afirma Almeida, o discurso de Serra estava forade seu lugar de fala5. A situação de Serra era análoga,neste sentido, ao discurso de Lula, em 1994, nomomento em que adotou a estratégia de apresentar-secomo melhor que Fernando Henrique para continuar oPlano Real, uma vez que lhe daria perfil mais social.

Outros dois candidatos desafiavam a esperança deLula de vencer logo no primeiro turno, ambosconcorrendo em partidos de oposição e criticando asituação. Ciro Gomes, do PPS, parecia ser uma candi-datura promissora e competitiva. Sem muita coberturapor parte dos meios de comunicação nos primeiros

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meses de 2002, a candidatura de Ciro se fortaleceudepois do primeiro programa de seu partido na televisão,em 13 de junho. Daí por diante, as intenções de votoem Ciro cresceram significativamente, e algumasprojeções divulgadas pela imprensa mostravam até queele teria chances de vencer Lula num eventual segundoturno. Sua estrutura de campanha, no entanto, foi menosprofissional do que a de Serra e de Lula, e não estavapreparada para responder à pressão dos meios decomunicação e de seus adversários6. Ciro manteve altavisibilidade nos jornais por várias semanas, mas avalência da maioria das matérias mudou de pre-dominantemente positiva para francamente negativa.O noticiário, em geral, deixou de enfatizar a ascensãonas pesquisas de intenção de voto e as perspectivas deapoios e alianças, para divulgar os vários pequenosescândalos e associações negativas que, abastecidospelos seus adversários, ganharam grande espaço namaioria dos jornais, tanto impressos, quanto digitais.

O quarto candidato estudado, Anthony Garotinho,tinha, como grande vitrine, suas realizações à frentedo governo do Estado do Rio de Janeiro, que deixoupara concorrer à Presidência. Explorando umdiscurso demagógico e, não raro, religioso, foi muitobem votado em seu estado natal e surpreendeu amaioria dos analistas políticos ao chegar em terceirolugar na corrida presidencial.

Internet como ferramenta de campanhaEm termos de estratégias de comunicação, as

eleições de 2002 trouxeram esta novidade, o usodinâmico da internet como instrumento de

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campanha, um recurso para fortalecer e divulgar aagenda de cada candidato dando visibilidade aosdiscursos políticos e garantindo um espaço paraataques de todo tipo nos sites oficiais dos políticos.

Embora a internet já tivesse sido usada na eleiçãode 1998, o clima de vitória antecipada, transmitido pelogoverno àquela campanha, fez com que o meio fosseum mero acessório nas estratégias de comunicação doscandidatos, usada principalmente como uma referênciapara eleitores especialmente interessados, onde teriamacesso à informação, material de campanha, programasde governo e a agenda dos candidatos.

Em 2002, por outro lado, o crescimento da impor-tância da internet como meio de comunicação, associadoà sua maior difusão pelo país, crescente a cada ano,motivou os candidatos a utilizarem-na de forma maisativa. Cabe ressaltar que o intercâmbio de informaçõesentre os diferentes meios vem se tornando umacaracterística marcante da comunicação eleitoral no Brasil.Os jornais e noticiários, televisivos e digitais, secomunicam intensamente entre si, reproduzindo notíciase citações. E uma das fontes mais acessíveis, mobilizadapor repórteres mesmo nos locais mais remotos do país, éa internet, na qual uma grande variedade de informaçõessobre cada ator político pode ser alcançada e acom-panhada pelos meios de comunicação.

Os assessores de comunicação política, por suavez, estão constantemente empenhados em produzirnotícias positivas sobre os candidatos para quemtrabalham. Trata-se, geralmente, de profissionaistreinados, oriundos do sistema comercial de comu-nicação, cujas regras conhecem bem, e que jogam com

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a necessidade da mídia de ter novidades – históriasinteressantes, boas imagens, notícias dramáticas, cri-ses, escândalos e acusações. Nesse contexto, a redetorna-se um lugar perfeito para a publicação deinformações segundo o ponto de vista de cada ator,na esperança de cooptar o interesse jornalístico.

Além de sua importância como fonte de infor-mação para os agentes das notícias, a internet foi usadatambém como um importante meio de comunicaçãodireta, para acesso de um eleitorado qualificado, comalta renda e alto índice de escolaridade, visto comoum grupo de formadores de opinião, não muitodiferente dos que Lazarsfeld percebeu em seu estudosobre o fluxo de comunicação em duas etapas7. Trata-se, no entanto, de uma elite cognitiva que é vista comoespecialmente qualificada justamente devido a seuacesso especializado aos meios de comunicação demassa, como destaque para os jornais impressos,canais de televisão e cabo e internet. À diferença dapesquisa clássica americana, portanto, os formadoresde opinião no Brasil contemporâneo são tanto maisvalorizados quanto maior e mais variado for seu acessoa fontes de informação tidas como mais exclusivas8.

Num contexto de alta competição, a garantia deespaço favorável nos meios de comunicação torna-seainda mais importante para o candidato. Nesse sentido,a internet foi usada de forma criativa pelos estrategistasde campanha com um meio de estabelecer uma agendade notícias e de expandir os limites da informaçãopublicada na rede para outros veículos, especialmenteos meios noticiosos, fossem impressos ou digitais. Aspáginas dos candidatos na internet fizeram uso, assim,

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de recursos como a publicação de jingles de ataque,acusações e críticas a outros candidatos, além derepercutir notícias de outros veículos, impressos oudigitais. Os meios de comunicação, por sua vez,recorreram significativamente às páginas de candidatoscomo fonte de informação. Encontramos exemplos emque jornais chegaram a reproduzir fac-símiles dos sites,dando visibilidade a materiais, elogiosos ou acusatórios,que tiveram origem em home pages de campanha.

Antes mesmo do período eleitoral, informações desites políticos já vinham sendo utilizadas pelosprodutores de notícias. No dia 5 de maio, por exemplo,o jornal O Globo publicou uma pesquisa promovida pelosite do PPS sobre a atriz Patrícia Pillar, casada comCiro Gomes. Durante os primeiros meses de 2002,Patrícia se recuperava de um câncer no seio, e CiroGomes diminuiu o ritmo de campanha para acom-panhar de perto sua recuperação, o que valeu aocandidato algumas notícias positivas. De acordo como jornal, o site afirmava que 53% dos pesquisadosaprovavam a participação da atriz na campanha de Ciro.A matéria afirmava que, embora os líderes do PPSfossem contra a exposição da atriz, o PTB – partidoque apoiou Ciro, junto com o PDT, na Frente Trabalhista– aprovava sua presença. Como foi percebido, os sitesofereciam informações que, se consideradas relevantes,passavam a ser amplificadas pela mídia.

Sites na internet e visibilidade de ataquesna imprensa

O melhor exemplo a este respeito foi o uso de pro-paganda negativa na internet, que foi significativo. Os

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sites oficiais de Serra e de Ciro protagonizaram umacampanha de difamação mútua que não teve o mesmolugar no horário eleitoral gratuito no rádio e natelevisão, devido às regras restritas de funcionamentoe à fiscalização legal, com o risco de uma intervençãodireta da Justiça Eleitoral9.

Entre os quatro principais candidatos à Presidência,Serra foi o que mais apostou nesses recursos, utilizandoa internet com uma ferramenta ativa e estratégica decampanha. Seu site era bastante completo, suprindo ointernauta com toda a informação possível sobre suacampanha, incluindo o acompanhamento de suas ativi-dades através de notícias, em tempo real, constantemen-te atualizadas durante o dia. A campanha de Lula, damesma forma, montou uma página bastante profissio-nal, que também permitiu ao eleitor comprar produtosde campanha, tais como camisetas, bonés e relógios,além de fazer doações à campanha via internet. Já CiroGomes e Garotinho tiveram páginas menos sofisticadas,mas igualmente dinâmicas. Todos os candidatos explora-ram as potencialidades da internet como um importanteinstrumento para suas estratégias de comunicação.

Serra, contudo, foi o que obteve o melhor resultado,segundo sua estratégia de campanha marcadamenteagressiva. Na verdade, a campanha negativa docandidato do governo não se restringiu à internet,lançando mão de ataques bem fortes também no rádioe na televisão, concentrados principalmente nasinserções curtas, de 30 e 60 segundos, distribuídas aolongo da programação. Pelo seu formato e linguagem,os chamados “spots” são espaços especialmentecômodos para o ataque a adversários, uma vez que é

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difícil para o espectador identificar o autor dos ataques,diminuindo o ônus, portanto, de ser visto como umcandidato destrutivo, estigma extremamente negativopara o eleitor brasileiro10. Assim, os ataques a CiroGomes na televisão pareciam apócrifos e, mesmoretirados do ar pela justiça eleitoral, contribuíram paraa desconstrução da imagem do candidato do PPS. Orádio, por sua vez, também é um veículo que permitemaior agressividade, embora ainda não tenha sido objetode estudo direto e sistemático.

A candidatura de José Serra aparecia em terceirolugar nas pesquisas de intenção de voto por volta domês de julho. À sua frente estavam Lula, que manteveo favoritismo durante todo o período eleitoral, e Ciro,que se beneficiou da propaganda partidária gratuitado PPS, exibida em 13 de junho no rádio e na TV.Mesmo antes do início do horário reservado à pro-paganda eleitoral na televisão, veiculada de 20 deagosto até às vésperas da eleição, Serra assumiu umapostura ofensiva partindo para o ataque dacandidatura de Ciro Gomes. A estratégia era, desdeo princípio, desqualificar o adversário. Várias táticasforam empregadas ao longo da campanha, e osataques aumentaram ainda mais quando Ciro passoua responder no mesmo tom de Serra.

Uma das táticas foi associar a imagem de Ciro à doex-presidente Fernando Collor de Melo, personagempolítico malvisto pela população e, principalmente,pela imprensa. Em 11 de julho, O Globo on-line deuespaço para as acusações de Serra contra Ciro, queera comparado a Collor, citando ainda as declaraçõesde Garotinho, que acusava Ciro de propor o confisco

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da poupança, por meio do prolongamento da dívidapública. Às 12 horas e 24 minutos do mesmo dia,outro ataque eleitoral foi publicado; embora tivessedeclarado que não comentaria as acusações, Cirorespondeu a Serra, chamando-o de desonesto ecomparando-o, por sua vez, a Collor de Melo.

O embate virtual continuou alimentando as notícias,tanto nos jornais tradicionais quanto nas versões on-line.Todos os movimentos dos sites, especialmente suasreações à cobertura negativa da mídia, iam sendoacompanhados pelo noticiário. Em 16 de julho, O Globopublicou que Ciro comparava Serra a um nazista em seusite, e que Serra, por sua vez, chamava Ciro de “candidatodo insulto”, comparando-o, uma vez mais, a Collor. Em17 de julho, o JB publicou, na sua versão impressa, que ahome page de Ciro estava retirando do ar o texto quecomparava as táticas de Serra a métodos nazistas. O jornaltambém informava a publicação, no site de Serra, de umtexto criticando o marketing de insulto de Ciro. No mesmodia, O Globo publicou a seguinte manchete: “Site doPSDB diz que Ciro tem o DNA de Collor”. O conteúdoda reportagem trazia a descrição de uma entrevista derádio em que Serra criticava Ciro.

Podemos inferir o efeito de amplificação que suapublicação na imprensa dava às acusações mútuas doscandidatos nos sites; se, antes, apenas uma minoriaextremamente interessada teria a iniciativa de,espontaneamente, buscar os sites eleitorais doscandidatos na internet, é razoável supor a multi-plicação de curiosos, uma vez que o conteúdo daspáginas de campanha ganhava espaço na impressa.Jornalistas, professores, estudantes, funcionários de

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vários tipos de empresas públicas e privadas têmacesso à internet. Muitos destes já preferem acessardiretamente as notícias, atualizando-se sobre seusassuntos de interesse enquanto trabalham nocomputador. Outros acompanham apenas os casosmais chamativos, aqueles que deixam o espaçorestrito do noticiário e passam a fazer parte daconversa na rua, das alusões nos programas não-jornalísticos e debates nas mesas-redondas e talkshows. Escândalos e altercações políticas tendem ase destacar para este tipo de usuário.

Mas os jornais também davam destaque a pautasmais substantivas, como em 23 de julho, uma dasinformações reportadas pelo O Globo era a de queCiro tinha proposto em seu site a adoção do sistemaparlamentar no Brasil. A abordagem da matériacriticava a posição do candidato, mas a presença dostemas levantados pelos candidatos na internet mostraa capacidade de amplificação por parte da mídia.

Em 25 de julho, no auge da escalada de Ciro naspesquisas de intenção de voto, 13 pontos à frente deSerra, o JB publicou notícias de todos os quatrocandidatos. Sobre Serra, fomos informados de quequestionava o desempenho de Ciro no governo doCeará, refutando a versão positiva publicada por seuoponente; outro trecho comentava o site de Lula,dizendo que ele propunha recursos criativos decampanha, tais como a impressão de cartazes e adesivoscaseiros a partir de materiais da internet. O site de Ciro,por sua vez, acusava o PSDB de apoiar Collor, apesarde seu próprio partido, o PPS, continuar coligado aoex-presidente em Alagoas. Neste momento, a imprensa

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já tinha incorporado, de maneira geral, o estereótipoconstruído por Serra sobre Ciro Gomes, e passou aenquadrar as notícias de acordo com esta perspectiva.A hostilidade declarada com a qual Ciro Gomesrespondeu aos ataques foi explorada por Serra, quepassou a caracterizar seu oponente como um homemagressivo e violento, sem controle emocional suficientepara se tornar presidente de uma nação.

Algumas semanas depois, outro episódio de destaquena cobertura jornalística das eleições também foi iniciadono site de Serra, onde se originou a contestação dealgumas afirmações de Ciro. Falando sobre educação,num debate televisivo em 6 de agosto, Ciro afirmara tersempre estudado em escola pública. Serra descobriu epublicou que ele, na verdade, também tinha freqüentadoescolas particulares no seu estado de origem, o Ceará.No mesmo debate, Ciro também disse que, quando haviasido ministro da Fazenda (durante o governo ItamarFranco), o salário mínimo era equivalente a 100 dólares;Serra, mais uma vez, o acusou de mentir, considerandoque, com a taxa de câmbio vigente na época, o mínimonão valeria mais do que 82 dólares. Serra aproveitou osdeslizes para marcar a imagem de Ciro como umcandidato mentiroso, desonesto e falso.

Em 15 de agosto, O Globo on-line noticiou que osite de Serra tinha retirado um jingle contra Ciro. Anotícia, entretanto, publicava toda a letra de “O Ciromente demais”, uma paródia de “Você é doida demais”,melodia muito popular e reconhecível. O jingle foidisponibilizado por pouco mais que 24 horas, masganhou sobrevida com sua publicação pela imprensa.Outro texto de propaganda foi retirado neste mesmo

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dia do site de Serra, e o fato foi uma vez mais reportadopela mídia: uma lista das supostas mentiras de Ciro,intitulada “Ciro disse, mas não é verdade”.

A campanha de Serra foi bem sucedida em mostrarseu oponente como um candidato mentiroso, umhomem desequilibrado, violento e desonesto. Essasimagens foram basicamente originadas pelo site deSerra na internet e espalhadas daí para o resto daimprensa. Se acompanharmos a taxa de aparição deCiro Gomes nos principais jornais brasileiros e acompararmos às pesquisas de opinião, é fácilperceber que ele se beneficiou, num primeiromomento, da propaganda de seu partido transmitidana televisão, o que garantiu a ele tanto o interessedo eleitor como cobertura da mídia. Então, com avisibilidade em alta, mas com a maior parte denotícias negativas, ele começou a cair, uma tendênciaque se tornou irreversível com o mau uso que fez deseu curto tempo de propaganda eleitoral gratuita natelevisão, incluindo programas e inserções.

Não só os sites oficiais de candidatos foram pararnas páginas dos jornais. Uma das principais caracte-rísticas da internet, sua permeabilidade a discursosplurais, foi muito claramente exemplificada pelaproliferação de sites semi-oficias e populares11. Issopôde beneficiar ou não candidaturas, dependendo dasua coesão relativa e base de sustentação. A desorga-nização da campanha de Ciro mostra-se claramente noexemplo do 12 de setembro, quando O Globo publicouuma extensa reportagem, ilustrada por fac-símiles dosite do PPS, cujas manchetes “deturpavam”, segundoo jornal, a entrevista concedida por Ciro ao jornal um

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dia antes – um convite que tinha sido estendido a todosos candidatos: o diário deu destaque a entrevistas exclu-sivas com cada um. A campanha oficial de Ciro Gomesna internet, por outro lado, reproduzia, integralmente, aentrevista e a versão publicada um dia antes em O Globo.O entrevistado do dia foi Garotinho, mas Ciro motivouuma nota que preferiria não ter ganhado: “Ciro mostramachismo em entrevista para O Globo”.

A agressividade a todo custo de Serra, no entanto,não passava incólume pela cobertura da mídia, o quecontribuiu para reforçar a imagem de “dragão damaldade” atribuída por Ciro ao adversário. Em 29de agosto, O Globo informava que o site de Serra opromovera a um empate técnico com Ciro no segundolugar, o que não era compatível com os números depesquisas de intenção de voto daquele momento, emque Ciro ainda aparecia em segundo lugar, e que ocandidato do PSDB reivindicava o “direito de re-sponder” às agressões de Ciro na televisão. Outramanchete era mais negativa: “Site de Serra mente”.

Mesmo antes do segundo turno, também Lula jáestava sob os ataques das notícias de Serra na internet.O candidato dos trabalhadores fora poupado, atéentão, por causa de seu favoritismo evidente; naverdade, o maior embate era pelo segundo lugar, quesignificaria a possibilidade de enfrentar Lula –contando com seus fatores históricos de rejeição juntoao eleitorado brasileiro – num confronto de um paraum. Ambos os candidatos almejavam construir umaposição moderada e centrada que funcionasse comouma alternativa ao temível radicalismo do Partidodos Trabalhadores. O próprio Lula, entretanto, tinha

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mudado seu discurso na direção de um modelo maisliberal no que diz respeito à economia; o que vimos, nosegundo turno, foi uma disputa mais personalista, naqual uma imagem política, construída genericamente,era mais persuasiva do que programas de economia.

No discurso de Serra e de parte da mídia, noentanto, Lula e a mudança ainda podiam ser associadosa sustos econômicos. Em 21 de setembro, por exemplo,O Globo reproduziu uma nota publicada pelo site deSerra associando a “ameaça” da vitória de Lula aoaumento do dólar, dizendo que o “dólar tinha caídoum pouco porque Lula tinha diminuído sua liderança”.

Mas Lula fez um grande esforço para se manterfora dos ataques, acima das disputas. Quanto à suaestratégia de campanha, chegou a ganhar na mídia oapelido de “Lulinha paz e amor”, pelo seu humorleve e baixa agressividade durante a disputa eleitoral.Seu site seguiu a mesma orientação, evitando ataquese disputas com outros candidatos. Desde então,quando comentado pela mídia, sempre trabalhou comuma visibilidade avaliada positivamente; os jornaisreportavam esforços criativos de campanha, entre-vistas com personalidades públicas e outras agen-das para o candidato. Os ataques de Serra durante osegundo turno foram recebidos com uma atitude desuperioridade, muito diferente das reações irritadasde Ciro. Estrategicamente determinado a evitarconflitos, Lula insistiu na construção da sua própriaimagem e numa agenda positiva, e não alimentou ademanda da mídia por escândalos.

Ciro Gomes, por sua vez, mostrou uma estratégiade comunicação pobre e pouco profissional durante

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todo o período. Sua dificuldade em lidar com aimprensa foi reconhecida pelo próprio candidato aofim da disputa eleitoral. Ele era direto e tinha poucapaciência com jornalistas e eleitores. Ele fezbrincadeiras que se projetaram além das suasexpectativas. Um dos episódios emblemáticos,amplificados pela mídia e pela falta de habilidade docandidato para comunicação, aconteceu no fim deagosto, quando ele respondeu, com irritação, a umjornalista que o inquiriu sobre Patrícia Pillar e seu papelna campanha, uma vez que Ciro recebera críticas porsuperexpor a imagem de sua mulher como estratégiade marketing. Ciro, respondeu irritado que o seu papelna campanha era dormir com ele, e a declaração infelizse fez tema de muitos comentários por parte de seusadversários e da imprensa, que deu voz aos protestosfeministas. A falta de uma comunicação estratégicana campanha de Ciro contribuiu novamente para darvisibilidade ao assunto, uma vez que as desculpas ejustificações do episódio, tanto nos espaçosconcedidos pela mídia como em seu programaeleitoral, estenderam muito mais do que o que erasaudável para a campanha a discussão em torno dopreconceito contra as mulheres, logo elas que, poracaso, emergiam nesta eleição como alvo preferencialde boa parte da propaganda eleitoral12.

Garotinho, apesar da propalada falta de recursos,sendo um ex-locutor de rádio, um profissional dacomunicação, fez um uso marginal, porém eficientede estratégias de mídia. Embora seu principal recursofosse a mídia tradicional, principalmente o rádio, seusprogramas de televisão foram bem avaliados pelos

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espectadores e seu site foi eficiente no esforço detrazer o candidato para os debates principais. Suahabilidade em lançar factóides, explorando ascaracterísticas da nova mídia, pôde amplificar suavisibilidade como candidato. Em agosto, apesar dapequena taxa de intenções de voto que acumulava,ele foi o candidato citado mais vezes no JB on-line.No O Globo on-line, chegou em segundo no númerode aparições, depois de Lula, além de acumular umamaioria de matérias positivas (66%).

Neste esforço para projetar-se na mídia com umaagenda favorável, a cobertura política on-line ofereceuma estrutura de decisão mais flexível, na qual osatores políticos de menor expressão podem ser bemsucedidos em dar visibilidade a pequenos eventos decampanha e escândalos. O acompanhamento dos fatosem tempo real condiciona uma cobertura contínua,em que os leitores participam do desenrolar dareportagem, com a sugestão de pauta ou boato, a buscadas variadas versões, as repercussões e conseqüências.Ao contrário dos leitores do jornal impresso, querecebem no dia seguinte o resultado final de umprocesso de agendamento, seleção, comparação,análise e edição, os internautas testemunham ovaivém da produção da notícia; se for escandalosa ounovelesca, com desmentidos e repercussões a cadamomento, mais chances de mantê-lo ligado ao boletimeletrônico, o plantão do último segundo – todascategorias tão valorizadas no universo do tempo real.

Trata-se de marcas distintivas da mídia digital,que contribuíram para certas inovações de campanha,e para um uso mais ágil e agressivo da internet. Assim,

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as versões on-line dos jornais publicaram notícias eataques ignorados pela mídia tradicional, com suaslimitações de espaço e controle editorial mais severo.Comparando ambas as versões, vemos muitos casosem que as notícias reverberam ataques doscandidatos de forma muito mais significativa nosjornais on-line do que na mídia tradicional.

Algumas manchetes publicadas na versão digital deO Globo ilustram essa tendência, tal como em 13 desetembro “Ciro continua a atacar Serra através daInternet” e “Ciro e Serra voltam a se atacar nos seus sitesde Internet”, 12 de setembro “No seu site, Garotinhoacusa o PT da crise em Bangu I” e “Site de Serra alimentacontrovérsia sobre empregos com Lula”, 19 de setembro“Matérias do site de Ciro tenta relacionar Serra com JaderBarbalho”. Em outra série de matérias publicadas on-line, Ciro tentou explorar uma afirmação não confirmadapelo coordenador de campanha de Serra, José Aníbal,deputado do Estado de São Paulo, que teria feito piadadepreciando os nordestinos. O PSDB, visto como umpartido cuja força política situa-se principalmente emSão Paulo, teria a perder com a divulgação do preconceitocontra o nordeste, que poderia acarretar efeitos eleitoraisnegativos para a campanha nacional de Serra. Originadano site de Ciro, a história acabou sendo publicada nasversões impressa e digital dos jornais, apesar de nuncater sido confirmada.

Essa tendência pode ser atribuída a uma dasprincipais características do jornalismo digital, queé a publicabilidade, que molda o nível e dinâmica deaparição de cada candidato13. O custo de publicarnotícias na mídia digital sendo quase nulo, e

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associado à necessidade de estar o mais atualizadopossível, dá fluidez e um certo grau de fortuidade aovolume de notícias publicadas nos jornais de internetque analisamos. Notícias são publicadas de acordocom o retorno jornalístico que elas conseguem garantirao jornal, por explorarem um determinado evento decampanha. Um fato polêmico que rende significa mais(ou maiores) notícias em tempo real sobre ele. O típicoprocedimento jornalístico de checagem das fontes éequivalente, em notícias de tempo real, a mais notícias,publicadas independentemente e, normalmente, jáinformadas sobre as matérias prévias. Terceiros sãoouvidos um de cada vez, e passam, na verdade, a reagiràs notícias já publicadas. Isso reforça as idéias derepercussão e reverberação.

A exploração desta publicabilidade permite queos candidatos aumentem o tom dos ataques e dasprovocações, distanciando-se do mito brasileiro domarketing eleitoral cordial, caracterizado porcampanhas menos agressivas. O sucesso relativodessa estratégia pode ampliar a relevância pública dojornalismo digital, cujo acesso é ainda restrito,conquistando espaço na imprensa e mesmo em outrosmeios de comunicação como o rádio e a televisão.

ConclusãoA campanha presidencial de 2002 foi o primeiro

evento eleitoral em que a internet ganhou espaçocomo uma mídia estrategicamente relevante. Ela seconverteu em um instrumento de incremento derecursos de marketing político – ampliando opúblico-alvo e reduzindo custos de campanha – e,

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ao mesmo tempo, permitindo que candidatosevitassem o confronto direto com a justiça eleitoral,outro importante elemento das disputas eleitoraismais rigorosa no acompanhamento de outras mídias,como o rádio e a televisão. Os sites dos candidatospublicaram paródias, jingles negativos e históriasdifamatórias contra seus adversários, gerando algunsdos estereótipos e associações que transcorreramdurante todo o período eleitoral.

O uso estratégico da publicabilidade pelos sitespessoais dos candidatos, com a inclusão e mesmo acriação de fatos noticiáveis, teve impacto direto nacobertura da disputa eleitoral pelos dois jornais on-line estudados. Eles responderam à demanda decobertura em tempo real dos eventos de campanha,ampliando, assim, a campanha negativa movida peloscandidatos, sobretudo José Serra e Ciro Gomes, quese engajaram em uma verdadeira batalha pelo segundolugar, que valeria a oportunidade de enfrentar Lulano segundo turno. As versões impressas de O Globoe Jornal do Brasil, por outro lado, apesar das limitaçõesespaciais, também publicaram o conteúdo dos sites,como acusações e associações políticas negativaslançadas pelos candidatos.

O já tradicional horário eleitoral gratuito, objeto demuitos estudos, sem dúvida foi crucial nos resultadoseleitorais. A propaganda dos candidatos na TVclaramente influencia todas as campanhas, e suarelevância aparece tanto nas curvas das pesquisas depreferência de voto como em estudos qualitativos14. Noentanto, um clima anterior de opinião15 é construído coma contribuição de formadores de opinião, militantes,

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meios de informação, pesquisas de opinião e mesmo deprogramas de entretenimento como as telenovelas e talkshows. A internet exerceu também sua influência nadisposição do eleitorado em escolher seu candidato. CiroGomes, por exemplo, pagou o preço da campanha con-tra sua candidatura que aconteceu, tanto por meio despots no rádio e na TV, como em denúncias menos per-ceptíveis nos sites de seus adversários. O acompanha-mento dinâmico dos ataques, sempre publicados erapidamente retirados das páginas, amplificou pequenoseventos de campanha, aumentando a tensão para Ciro,sua equipe e militantes, que responderam às provocações,favorecendo a estratégia de José Serra.

A pluralização dos emissores, uma das característicasmais festejadas da internet, foi percebida na coberturaon-line, que se abriu para outros tipos de materialinformativo, de diferentes fontes, tais como outros sites,entrevistas de rádio, palestras e releases de candidatose, excepcionalmente, eleitores. Esta recente visibilidadede novas fontes sem dúvida contribui para a idéia deque a rede é um meio mais democrático que os meiosde massa tradicionais.

No caso particular das eleições presidenciaisbrasileiras de 2002, o contexto de competiçãopermitiu que os candidatos tirassem proveito dessaabertura, para o benefício dos que tiveram estratégiasde campanha mais profissionais. Por outro lado, essapublicabilidade tornou a disputa em si mais agressiva,promovendo ataques e reverberando matérias que,em outra época, nem sequer chegariam a público.

Observamos, assim, um novo grau de uso estra-tégico da internet para provocar notícias em tempo

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real, que acabaram amplificadas pela mídia impressa,fortalecendo ataques que, de outro modo, nãoganhariam espaço ou repercussão. Os meios decomunicação digitais, por outro lado, concederamamplo espaço para esses ataques, originados naprópria internet. Isso porque os jornais eletrônicosprecisam responder à demanda de uma coberturajornalística dinâmica e têm menos restrições deespaço para publicação de notícias que elesconsideram atraentes para seus leitores.

Notas1 Versões anteriores deste trabalho foram apresentadas na MesaRedonda “Mídia e Política”, VII BRASA, PUC-Rio, junho de 2004,e na ABCP, PUC-Rio, julho de 2004. Pesquisa baseada nos dadose na metodologia desenvolvida pelo Doxa (Laboratório dePesquisa em Comunicação Política e Opinião Pública), grupo depesquisa do Iuperj coordenado pelo Professor Marcus Figuei-redo. Para maiores informações, acesse http://doxa.iuperj.br4 Ver, por exemplo, Eisenberg, José e Cepik, Marco (orgs.),Internet e política, teoria e prática da democracia eletrônica,Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002.5 Ver Aldé, Alessandra. A construção da política: democracia,cidadania e meios de comunicação de massa. Rio de Janeiro,Editora FGV, 2004.6 Rubim, Antônio Albino C. “Visibilidades e estratégias naseleições de 2002: política, mídia e cultura” e Aldé, Alessandra.“As eleições presidenciais de 2002 nos jornais”, in: Rubim(org.), Eleições presidenciais em 2002 no Brasil, São Paulo:Hacker Editores, 2004.7 Almeida, Jorge. “Serra e a mudança: um discurso fora dolugar da fala”, in: Rubim, 2004.8 Ver Faria, Patrícia. “Lula e Ciro em 2002: pela profissionalizaçãodas campanhas eleitorais”, monografia de graduação emComunicação Social, UERJ, 2003.9 B. Berelson, P. Lazarsfeld and W. McPhee, Voting: a studyof opinion formation in a presidential campaign. Chicago:University of Chicago Press, 1954.10 Aldé, 2004, cap. 5.

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11 Para os próximos pleitos, a Justiça Eleitoral já prevê afiscalização da propaganda eleitoral também nos sitesoficiais dos candidatos, o que deve interferir na dinâmica daprodução de notícias negativas.12 Palmeira, Sahada. “A gramática comercial do meio. Osspots da campanha de Cássio Taniguchi à Prefeitura deCuritiba, 1996”. Orientador: Afonso de Albuquerque.Dissertação (mestrado) - UFF.13 Muitos outros sites, a favor e contra candidatos, forampublicados, e muitos deles foram citados pelos jornais, tantoem nível federal como estadual.14 Ver Dumans, Manuela. “A política das donas-de-casa: acampanha de Roseana em 2002”. Revista Contemporâneaonline, UERJ, 2004.15 Borges, Juliano. “Jornalismo na Internet e as eleiçõespresidenciais de 2002”, artigo não publicado, Iuperj, 2004.16 Figueiredo, Marcus e Aldé, Alessandra. “Intenção de Votoe Propaganda Política: Efeitos e gramáticas da propagandaeleitoral”. Comunicação apresentada na XXVII ANPOCS,Caxambu (MG), Outubro, 2003.17 Noelle-Neuman, Elizabeth. “Pesquisa eleitoral e clima de opinião”,Opinião Pública, CESOP/Unicamp, Ano I, vol. 1, n. 1, 1993.

*Alessandra Aldé é doutora em Ciência Política,professora do Departamento de Teoria da Comunicação/

Faculdade de Comunicação Social (UERJ),pesquisadora associada do Doxa.

**Juliano Borges é doutorando emCiência Política, IUPERJ.

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Ieda Tucherman

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A juventude como valorA juventude como valorA juventude como valorA juventude como valorA juventude como valorcontemporâneo:contemporâneo:contemporâneo:contemporâneo:contemporâneo:ForeForeForeForeForever youngver youngver youngver youngver young

Ieda Tucherman*

RESUMOO texto propõe uma reflexão crítica sobre o exacerbado valor dajuventude na cultura contemporânea o que se complementa comuma interdição ao envelhecimento e uma imaginária erradicaçãoda morte. Selecionamos dois anteriores momentos na históriaonde a juventude foi valorizada, a Grécia Arcaica e a Contraculturae buscamos mostrar uma certa continuidade entre estemovimento dos anos 60 e a nossa atualidade, que associa aoideal de juventude a técnica como interventora e a lógica daartificialização da vida.Palavras-chave: contemporânea, juventude, mídia, artificialização.

ABSTRACTForever Young the text considers a critical reflection on the improved valueof youth in the culture contemporary that is complemented with aninterdiction to the aging and an imaginary eradication of the death. Weselect two previous moments in history where youth was valued, ArchaicGreece and the Contraculture mouvement and we search to show a certaincontinuity enters this movement of the 60’s and our present time, thatassociates with the ideal of youth the technique as interventor and thelogic of the artificialization of the life.Keywords: contemporary, youth, media, artificialization

RESUMENEl texto propone una reflexión critica sobre el valor de que fue investida lajuventud en la cultura de la nuestra actualidad así que la interdicción de lafatalidad de la muerte. Seleccionamos dos momentos anteriores en la historia enlos cuales la juventud recibió una atención primordial: la Grecia Arcaica y laContracultura (los anos 60) y intentamos mostrar una cierta continuidadentre estos movimientos de los 60 y nuestra actualidad, que asocia a la juventudel entusiasmo con el desarrollo tecnológico y la artificialization de la vida.Palabras clave: actualidad, juventud, media, artificialización

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A juventude como valor contemporâneo: Forever young

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Apresentação e genealogia:O objetivo desta comunicação é provocar, no

sentido etimológico de invocar para, uma reflexãocrítica da nossa atualidade a partir deste sintoma1: aexacerbada valorização da juventude que tem comoconseqüências inúmeros investimentos “tecno-científicos”, objetivando uma interdição do enve-lhecimento e, pelo menos imaginariamente, a erra-dicação ou o afastamento da morte.

Por vício da admiração pelo ensaio e sob a influênciados textos de Michel Foucault, uma pequena genealogiasempre se faz interessante, uma vez que esta tem acaracterística de “conjurar as solenidades da origem” e,por derivação, “desnaturalizar o presente”. Ao mesmotempo, e no mesmo movimento, a genealogia mostra-nos que certas experiências têm sua primeira expressãonum tempo longínqüo, a qual tendemos a desprezar.

Sendo assim, escolhemos na história doismomentos onde o pensamento “inventou” a figurada juventude, atribuindo a ela um conjunto devalores. Momentos distantes no tempo que a questãoa ser proposta permite-nos aproximar.

A bela morteO primeiro momento aponta para a nossa origem

mais remota, a Grécia, berço do que ficou conhecidocomo Ocidente, um continente cultural e um modoparticular de civilização. No belíssimo texto dohelenista Jean-Pierre Vernant, que tem o título de Abela morte ou o cadáver ultrajado4, fala-nos desta relaçãoe de sua conseqüência, que já aparece na epígrafe:“Ele morre jovem, aquele a quem os deuses amam.”

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Ieda Tucherman

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(Ménandre).5 Na Ilíada, tanto Heitor quanto Aquilessão colocados diante da mesma escolha: ou a glóriaimperecível do guerreiro, mas a vida breve; ou umalonga vida em seu lar (chez-soi), mas a ausência detoda glória. Heitor o expressa:

“Não, eu não compreendo morrer sem luta nem sem glória,nem sem qualquer alto feito cuja narrativa chegue aos homensno futuro.” 6··

A razão desta exploração heróica, comentada porVernant, mas também identificada por outroshelenistas consagrados como Pierre Vidal-Nacquet,Paul Veyne e Dodds, não tem relação com cálculosou qualquer caráter utilitário, nem mesmo comnenhum desejo de prestígio social: ela é de naturezatranscendental, ou seja, tem a ver com a condiçãohumana que os deuses fizeram não apenas aos mortais,mas submetidos, como toda criatura aqui de baixo,depois do apogeu da juventude, ao declínio das forçase à decrepitude da idade. Portanto, este heroísmo seenraíza na vontade de escapar ao envelhecimento e àmorte, ainda que ambos sejam inevitáveis: ultrapassa-se a morte acolhendo-a em lugar de sofrê-la.

Vernant esclarece-nos, lembrando que, numacultura como a da Grécia arcaica, onde cada umexiste em função do outro e de seu olhar, a verdadeiramorte é o silêncio, o esquecimento, a obscuraindignidade, a ausência de reputação.

“Existir, ao contrário, é – estejamosmortos ou vivos – encontrar-sereconhecido, estimado, honrado; ésobretudo ser glorificado : ser objeto de umapalavra de louvor, de uma narrativa que re-

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late, sob a forma de um gesto sem cessarretomado e repetido, um destino admiradopor todos .Neste sentido, pela glória que elesoube adquirir devotando sua vida aocombate, o herói inscreve na memória coletivado grupo sua realidade de sujeito individual,exprimindo-se numa biografia que a morte,porque se realiza, torna inalterável”.7

Ora direis, mas o que é que isto tem a ver com aidéia de juventude na atualidade? Por que este recuotão extenso? Em quê, exatamente, ele colabora paraa nossa atual reflexão?

Tentarei responder de maneira convincente aindaque muito sintética: o contrário significaria longaspáginas e muitos minutos. Atendo-me, portanto, ao maisconveniente, começo por considerar que os gregospraticavam um tipo de moral assimétrica e livre,centrada no louvor e na crítica, normativa e singular enão, como acontecerá posteriormente, prescritiva ecoletiva.8Isto significa que os indivíduos aderiam a elavoluntariamente e segundo sua capacidade. A medida,se assim podemos chamá-la, era a política, como formade relação com a polis: para poder governar é precisoprimeiro governar as paixões, o que significa não negá-las, mas expor-se a elas, experimentá-las, numa tensãoconstante onde a hybris (excesso, desmesura) não deveconseguir nos derrotar. Em contraste, organizando-sesob outra lógica, o mundo judaico-cristão, prega umamoral simétrica e não livre, normativa e prescritiva,baseada na culpa, no pecado e na expiação.

Portanto, quando Foucault elabora a sua estéticada existência e formula a pergunta (nos anos 80) “Por

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que um abat-jour e uma casa podem ser uma obra de arte e umavida não?” 9, ele aceita o convite nietzscheano e vaibuscar na Grécia um momento de fundação disto quefoi, como nos descreve ele, uma estética, uma erótica euma dietética cuja assimetria e intensidade teriam sidoabafadas nos enunciados. “Todos são iguais diante de Deus”ou do “Somos todos irmãos neste Vale de Lágrimas”.10

A estética da existênciaO que tinha levado Foucault a elaborar esta

estética da existência, ele mesmo o explica de maneirainequívoca no lindo prefácio de O uso dos prazeres,foi o pensar a subjetividade como uma linha dodiagrama que é atravessado pelas relações de saber-poder que até então era seu foco quase absoluto;integrando a linha da subjetividade neste diagrama,ele percebe que ela atua fazendo dobras “plis”,produzindo novas formas de existência possíveis naatualidade, que é de onde qualquer pensador sedebruça e para onde dirige suas respostas.

Assim, mostrando o que havia antes e atrás daexperiência cristã, ele desnaturaliza os argumentos dasimetria, uma de suas importantes críticas ao marxismo,e faz emergir, como probabilidade conceitual, novasformas na história como no presente.

Parece ser conseqüente propor uma estreitarelação entre os efeitos do acontecimento de maiode 196811, entendendo esse acontecimento como oque esgarça o tecido da história, empurrando-a parasuas margens, interrompendo seu fluxo de repetiçõese as indagações as quais Foucault se dedicou, queresultaram na sua consulta aos gregos e na elaboração

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da sua estética da existência. Foi certamente entãoque ganharam visibilidade os “novos sujeitos dahistória”: estudantes, operários, prisioneiros,mulheres, gays, jovens com outros discursos e projetos,cuja compreensão demandava uma urgente atenção.

Em outro texto da mesma época, What is enlighten-ment? 12, na versão do curso sobre O que é o iluminismo?,que ministrou nos Estados Unidos nos anos 8013, Fou-cault menciona, além dos gregos, aos quais se dedicarádepois, dois outros momentos exemplares em queencontra este movimento de “construir-se como umaobra de arte”: o primeiro concerne ao Nascimento doindivíduo no Renascimento Italiano, de JacobBruckhard e o outro ao Baudelaire de Paris: capitaldo século XIX, de Walter Benjamin.

Neste último exemplo, dois traços ficam abso-lutamente evidentes: não apenas um retorno dadissimetria singular como padrão, já que o dandy(personagem aí destacado) só pode ser a figura de umaínfima minoria, como o princípio de artificializaçãoda natureza: o dandy é um flâneur que se mistura coma multidão e não se confunde com ela, é o artista quebusca “a eternidade na efemeridade” e é alguém que“vive e dorme como se estivesse diante de um espe-lho”. A vida como obra de arte, assim como a própriaobra, é feita mais de reflexão, exercício, ironia e con-tenção do que de inspiração e catarse.

Voltaremos a isto, mas apenas para não perdermosa ocasião de apontar, não haverá um caráter de absoluta“artificialização” no conjunto dos nossos atuais valoresestéticos? A magreza, juventude, corpos trabalhadosde músculos definidos, não são absolutamente

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vinculados a esta intervenção “artificializante”? Nãovivemos em um momento de extrema dedicação a umaestética que é também uma erótica e uma dietética? 14

Sabemos que a história só se repete como farsa,tal como nos ensinaram Nietzsche e Benjamin; poreste mesmo motivo, nossa aposta é que nesta vigíliaque se impõe e considerando a “artificialização”necessária, participam das duas experiências: a daGrécia arcaica e a da nossa atualidade.

Onde somos radicalmente outros é no uso quefazemos das biotecnologias e das exteriorizações:cirurgias plásticas, medicina ortomolecular, reposiçõeshormonais, complementos nutritivos, liftings químicosou a laser, botox, lipoescultura, e outros tais queparecem fazer uma hibridação da nossa subjetividadeestetizante e o universo das técnicas disponíveis.

Ah! Nossos modelos certamente não serão os heróismitológicos nem a eternidade da sua fama; talvez sejamos artistas e sobretudo os manequins (os novos corposbelos) com a “eternidade de sua efêmera perfeição”.De outra forma, também os atletas ocupam este espaço“olímpico”: produzem as performances maissurpreendentes. Mas apenas uma enorme inocênciaseria capaz de desconhecer o quanto o esporte é umlaboratório, além de ser o espetáculo da presença doscorpos escolhidos, treinados e “inventados”.

Há ainda um segundo argumento que justifica estenosso retorno à Grécia: trata-se da relação com a morte.Vimos que para os gregos a estetização consistia em, jáque a morte seria comum a todos e os conduziria aoanonimato e ao esquecimento, escolhê-la e não sofrê-la, alterando, dessa forma, a natureza da sua presença.

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No caso de nós mesmos, ou seja, da nossa atua-lidade, o que parece se desvelar é um pacto imagináriocom o afastamento da morte e/ou sua erradicação.Até porque tudo se passa, e não é pouco, assim: “Tudoindica que fizemos um longo percurso da Grécia mãe e de seusmitos encantadores até nossos sofisticadíssimos laboratóriosde genética, informática e biomecânica. Que talvez possa15aser expresso com a passagem de um Decifra-me ou te devoro aum Cria-me porque tecnicamente és Deus.”

A “artificialização” é hoje a presença da técnicae suas múltiplas misturas em nossas vidas. Mas étambém, como menciona Jean-Jacques Courtine16,um “puritanismo ostentatório” nesta cultura docorpo, condição sine qua non para a premissa destajuventude como paradigma não apenas estético, mastambém morfológico e ético.

Afinal, ser aparentemente jovem quando se émesmo jovem é, digamos assim, natural. O desafioe a promessa são a de ser aparentemente jovem,quando não mais o seríamos se deixássemos a natu-reza seguir o seu curso. Aliás, o que se promove émais do que a aparência jovem: são os atributos dajuventude que se deseja eternizar.

Os anos 60: a contraculturaO segundo momento do nosso recuo em busca da

fonte imaginária do valor da juventude, dando umimenso salto na história da Grécia, nos conduz até estenosso mais imediato passado, que não mais nos define,mas do qual ainda portamos certas características quecontrastam com as nossas tendências. Falamos doperíodo que representou, em certa medida, o clímax e

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a crise da Modernidade, os anos 60, onde vemos surgirtanto a contracultura quanto os “novos sujeitos dahistória”, assim nomeados por Foucault e aos quais jános referimos neste texto.

Entre estes, identificados por ele como prisioneiros,loucos, gays, entre outros, aparecem também estudantese, num sentido mais aberto, jovens, inaugurando o quealguns nomearam como uma crise geracional queinstaurava uma distância de mundos entre o universodos pais e dos filhos, dos professores e dos alunos.

Se há um momento em que a civilização viveu umevento jovem, os anos 60 foram a sua estréia: de umlado, acontecimentos como os de maio de 68, em Paris,que começou com uma revolta estudantil e abalou aestrutura do governo do general De Gaule, de outro, oboom do rock and roll, associando ao som explosivoum conjunto de novas visibilidades (corpos emmovimento, erotizados e frenéticos, vestidos de formadesidentificada com qualquer origem de classe, ligadosao princípio do espetáculo, inventando festas-showscomo Woodstock, além das comunidades hippies comonovas formas de sociabilidade17, princípios diferentesde alimentação e mergulhando no uso das drogas).

Neste conjunto, um sintoma sobressai, expressopela nova tradução que a palavra “freak” vai adquirir.Assim, se anteriormente freak designava uma pessoaque portasse malformações ou deformações, nosanos 60, toda a contracultura começa a reconhecer-se como freak. Eis a nova definição:

“Freaks (...) são membros visíveis desubculturas jovens de classe média, o queinclui uma realidade subcultural em perfeita

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descontinuidade com a realidadeconvencional. Freaks são contra-ambientesque asseveram o direito ao total controlesobre sua aparência física oucomportamento externo a total irrelevânciada cultura e da norma informais daquelesque operam dentro da realidadeconvencional... (...) Freak designa um tipoque abarca o hippie (1965) e novassubculturas de esquerda (1967)..”18

Retirando o peso erudito da definição, o queverificamos é uma total mudança na aplicação do termofreak, que agora designa toda a forma de ser contrárioao establishment. De onde decorre a expressão,constante no cinema, nas histórias em quadrinhos e namúsica jovem, freak out!, que podemos traduzir por“pirar” ou “viajar” numa alusão evidente às drogas, sexoe violência (e/ou intensidade).

Este genérico “devir freak”, como este investimentocorporal da contracultura, aparentemente e talvezoriginariamente tão investido de subjetivação,corresponderá a uma conseqüente e ardilosa respostado capital e do establishment: corpos jovens são rentáveise vendáveis e a reapropriação destes trazia duasexcepcionais vantagens, já que, incorporando-os comoprodutos, anula-se a crítica que eles representaram, e, deoutro lado, redimensionava-se a juventude comocategoria e como público para o consumo.

Como disse mais tarde Cazuza:“Nossos heróis morreram de overdose”.“Nossos inimigos estão no poder”.

Cazuza, Ideologia

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Forever YoungNossa atualidade de terceiro milênio alinhou-se

a esta forma de consumo “como se pegasse caronanuma cauda de cometa”. Se examinarmos as revistasinformativas de maior circulação no país, Veja, Istoé, Época, e não estamos falando das chamadas“revistas femininas” ou de moda, é impressionante,nos chamados Cadernos Comportamento, afreqüência de matérias vinculadas direta ouindiretamente à questão da juventude ou à resistênciaao envelhecimento.

Escolhemos, muito aleatoriamente, um destespublicado na revista Isto é de 18 de agosto de 2004,que, associando ao título do livro Os tempos hipermodernosde Gilles Lipovteski, a ser lançado naquela semana emSão Paulo, publica numa “janela” da matéria o seguintetexto com o título de Hipervaidade:

“Na sociedade hipermoderna a aparênciaé cada vez mais valorizada. Não basta sercompetente, é preciso ter um rosto poucomarcado pelo tempo. Por isso a cada dia aindústria farmacêutica lança no mercadoprodutos que rejuvenescem a curto prazo. Ostops de linha são os cosmocêuticos: remédiosque agem nas camadas profundas da pele etêm efeitos cientificamente comprovados (oque nem sempre acontece com os cosméticos)no combate a rugas e manchas. Além dessesprodutos vendidos em farmácias, há osprocedimentos realizados por dermatologistas,como o famoso Botox (toxina botulínica) emedicamentos que preenchem rugas

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profundas. “Há ainda os tratamentos a laserque rejuvenescem a pele em poucas horas, semdeixar cicatriz”, diz a dermatologista MônicaAribi Fiszbaum de São Paulo. Os preçosvariam. Mas sem dúvida não cabem numbolso que não seja também hipermoderno”.

A revista Veja não fica atrás. Era tão certo que láacharíamos o material ilustrativo que nem nospreocupamos em fazer uma consulta on-line,cruzando palavras-chave e esperando o resultado.Bastou abrir o último número, de 1 de setembro de2004 (entregue aos assinantes dia 28 de agosto) eencontrar dois pequenos tesouros. Na seção Beleza,uma matéria intitulada: Espeta, amassa..., tinha oseguinte (e delicioso) parágrafo:

“Se, por acaso, você cruzar com algumabonitona com hematomazinhos espalhadospelas coxas e barriga esteja certo, foi a MariaAmélia que fez. As marcas roxas são resultadode sua técnica mais elaborada: aintradermoterapia, que consiste na aplicação deinjeções de polifenóis de alcachofra, substitutonatural o proibido Lipostabil, na região intra-muscular músculo salta e forma a barrigatanquinho.” “Modelo nenhuma faz ginástica.Sou eu que faço o shape, tudo na hand.”diz.“Não tem modelo, não tem atriz, não temfamoso que tenha corpo maravilhoso do nada.Dizer que só corre na praia e toma muita águaé balela. A maioria toma injeção no abdomem.”

A segunda matéria, do Caderno Comportamento,assinada por Ariel Kostman,é ainda mais ilustrativa.

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O título é Creme, depilação e perfume, e o lead éPara conquistar as meninas, garotos adolescentesincorporam os rituais de beleza femininos. Aíencontramos uma “janela” deliciosa: Antes de ficarcareca e é impossível resistir a transcrever um pedaço:

“Pais calvos, filhos sob ameaça. Adolescentes quevivem com esta espada da hereditariedade sobre a cabeçasabiam que , mais cedo ou mais tarde, a cabeleira seesvairia no travesseiro e no chuveiro. Pelo menos foi assimaté recentemente. Hoje, muitos deles se rebelaram con-tra o destino e estão apelando para o único tratamentoaté agora que resolve, ainda que com resultados discutíveis:o transplante capilar. Ao primeiro sinal de entradas ,ou rareamento no cocuruto, meninos de 15, 16 anos,começam a submeter-se ao processo (...)”.

Esta será, certamente, uma das tarefas dagenética: decifrar o gene que provoca a calvície e ....correr para modificá-lo.

Nestes enunciados aparentemente banais queapresentamos, vemos segmentos do que parece ser umatarefa de civilização: descolar a aparência da idadecronológica. Mas há o outro e complementarmovimento: a difusão de um conjunto de hábitos aserem adquiridos, tais como exercício físico regular,alimentação controlada e comedida, e outros correlatosque fizeram Michel Serres, numa entrevista a BrunoLatour19,dizer que, quando começou a estudar,aprendeu que os homens eram mamíferos e carnívoros;como poderia um carnívoro evitar o consumo da carnee encontrar seu amor pela salada como se fosse deoutra espécie? Teríamos mudado de espécie ouestaríamos querendo fazê-lo?

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O que vemos nestes dois movimentos, ainda denatureza “simples”, é um projeto novo na civilizaçãoocidental: a artificialização da vida ou, sendo maisrigorosos, o esboroamento das fronteiras entre natural eartificial, que se dá tanto na cosmética quanto, e aí vamospara um campo mais complexo, no conjunto vida, talcomo a vemos agora. Próteses injetáveis e conectáveis,hormônios sintéticos, suplementos vitamínicos, cirurgiasde rejuvenescimento – mas também transplantes deórgãos e associações inimagináveis de carne e metal –tratamentos ortomoleculares e tantos outros que nospermitem inverter o bordão capitalista: no lugar de“tempo é dinheiro”, “dinheiro compra tempo”.

Ainda nos defrontamos com outro sub-reptício esubliminar resultado da associação das biotecnologiascom as tecnologias de informação que possibilitaram oflorescimento da engenharia genética com as promessasconcretas e imaginárias que ela engendrou: decifrar ogenoma, a “linguagem com que Deus criou a vida”, fala daerradicação da morte, da possível intervenção nos genesque nos fazem sofrer, adoecer, envelhecer e morrer.Inventa um novo paradigma, onde o mais importanteparece ser a antecipação do futuro sobre o presente.Não mais “a bela morte ou o cadáver ultrajado”, mas a não-morte e uma vida preservada.

Parece que ganhamos o direito, e mesmo a obrigação,de não aceitar o corpo que temos e escolher (com limites,é claro) que corpo gostaríamos de ter. Os implantes desilicone aumentando peitos e nádegas são uma dasmanifestações desta necessidade de “mudar a natureza”.E, se antes já se realizavam algumas cirurgias plásticas,estas eram feitas no sigilo, na calada da noite, quase nunca

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assumidas. Hoje, ao contrário, são espécies de símbolode status econômico e cultural, já que o corpo contem-porâneo não é mais “objeto de desejo, mas de design”.20

Este corpo design tem por qualidades desejáveis,além de uma aparência especial, força, agilidade,velocidade, capacidade de performance, plasticidade eleveza. Traduzindo: juventude. Como se tivéssemos acerteza de acharmos hoje nos laboratórios o cálice doSanto Graal ou a fonte alquímica da Eterna Juventude.

“Le vrai est ce qu’il peut. Le faux est ce qu’il veut.Madame de Duras

Notas1 Empregamos a idéia de sintoma no sentido em queNietzsche dizia que todo filósofo seria um semiólogo e ummédico, interpretando os sintomas de uma civilização.2 Parece-nos lógico considerar que as biotecnologias,especialmente a Engenharia Genética, apontam para estehorizonte; decifrando “a linguagem com que Deus criou avida”, tal como os diretores do Projeto Genoma apresentaramseus primeiros resultados, seríamos redimidos pela ciênciados castigos do pecado original, principalmente o deexistirmos no tempo, ou seja, o de sermos-para-a-morte,conforme o enunciado heideggeriano.3 Vale lembrar que o Oriente para a Grécia era a Ásia Menore talvez possamos ler a Ilíada como o poema que inventaesta luta /diferença entre Oriente e Ocidente.4 Vernant, Jean-Pierre, ´La belle mort ou le cadaver outragé´,In: L’individu, la mort, l’histoire,: soi-même et l’autre enGrèce Ancienne, Paris, Gallimard, 19895 Vernant, opus cit. p.56 Vernant, opus cit, p.77 Vernant, opus cit., p.53.8 O helenista que primeiro destacou esta questão foi Doddsem Os gregos e o irracional; este foi, no entanto, um dospontos de partida de Michel Foucault para a elaboração dosvolumes II e III da História da sexualidade, a saber, O usodos prazeres e O cuidado de si, e o próprio Foucault omenciona num dos pés de página de O uso dos prazeres.9 Foucault, Michel, Une esthétique de l’existence, In: Ditset écrits, vol. IV, p.732.

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FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, a genealogia e a história”.In: Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979, p.15.

10 Lembremos as ácidas críticas de Nietzsche à moral dorebanho, que é certamente partilhada por Foucault. Naanálise que este faz da figura do pastor no universo grego edepois no mundo cristão e finalmente no Estado Modernoin Omnes et Singulatim, In: Dits et écrits, voI.V, p.134-16111 Assim conceituado por Deleuze,Gilles. Controle e devir,capítulo Político de Conversações, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992.12 Foucault, in Dits et écrits, vol. IV, p. 562.13 Foucault também deu um curso Qu’est-ce que lesLumières? no Collège de France. Ambos têm como pontode partida, uma entrevista dada por Kant, mas os cursos nãosão idênticos. A versão americana leva mais longe a questãoda estética da existência.14 A confusão entre estes pontos parece provocar surpresase comentários divertidos: um psicanalista amigo contou,rindo, que hoje uma sobremesa provoca mais “culpa” ereprimenda do que qualquer adultério.15 Tucherman, Ieda, Breve história do corpo e de seusmonstros, Lisboa, Veja, 1999, p.19316 Courtine, Jean-Jacques, Os Stakanovistas do narcisismo:body-building e puritanismo ostentatório na culturaamericana do corpo, in Políticas do corpo, org. DeniseBernuzzi de Sant’Anna, São Paulo, Estação Liberdade, 199517 Vale lembrar a entrada em cena da pílula anticoncepcional, queliberou a sexualidade da reprodução e do contrato de casamento.18 Foss, Freak culture in Fiedler, Freaks: myths and imagesof secret self . New York, Anchot, 1993.19 Serres, Michel, Éclaircissements. Interview à Bruno Latour,Paris, Flammarion, 1992.20 Esta expressão é utilizada pelo artista australiano Stelarc,in Arte e sociedade no século XXI, org. Diana Domingues,São Paulo: Ed.Unesp. p.55.

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____________. Omnes et Singulatim. In: Dits et écrits. Vol.IV, Paris: Gallimard, 1984, p.134.

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Tucherman, Ieda. Breve história do corpo e de seusmonstros. Lisboa: Ed. Veja, 1999.

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VERNANT, Jean-Pierre. La belle mort ou le cadavre outragé.In: L’individu, la mort et l’histoire: soi-même et l’autre enGrèce Ancienne. Paris: Gallimard, 1989.

Revistas:Revistas:Revistas:Revistas:Revistas:Revista Isto é, número 1819, 18 de agosto de 2004, SãoPaulo, Ed. Três

Revista Veja , ano 37, número 35, 1 de setembro de 2004,São Paulo, Ed, Abril.

* Ieda Tucherman é doutora em comunicaçãocom pós-doutorado no IRCAM, Centro Georges

Pompidou, Paris e Professora do Programa de Pós-graduação da Escola de Comunicação da UFRJ.

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Subjetividade e alteridade: os pentecostais negros no Brasil e nos Estados Unidos

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Subjetividade e alteridade: Subjetividade e alteridade: Subjetividade e alteridade: Subjetividade e alteridade: Subjetividade e alteridade: os pentecostais negros noos pentecostais negros noos pentecostais negros noos pentecostais negros noos pentecostais negros no

Brasil e nos Estados UnidosBrasil e nos Estados UnidosBrasil e nos Estados UnidosBrasil e nos Estados UnidosBrasil e nos Estados UnidosMarcia Contins*

RESUMOO objetivo deste artigo é explorar as dimensões étnica e religiosaexpressas nos discursos dos pentecostais negros no Brasil e nosEstados Unidos, focalizando determinadas situações e experiênciassociais. Visa, assim, a comparar as formas pelas quais cada umdesses grupos articula, a partir do código religioso, a experiência daauto-identificação enquanto pentecostais e enquanto negrosfundada no eixo de seus posicionamentos em relação àquelesconcebidos como seus “outros”: os batistas no contexto norteamericano; e as religiões afro-brasileiras no contexto brasileiro.Palavras-chave: religião e etnicidade; populações afro-brasileiras;pentecostalismo e umbanda

ABSTRACTThe purpose of this paper is to explore ethnic and religious dimensions inthe discourse of Black Pentecostals in Brazil and Unites States, focusingon specific social situations and experiences. Its aim is to compare theforms by which these groups, based on a religious code, articulate their selfidentifications as Pentecostals and as blacks as opposed to those peoplethey conceive as their “others”: the Baptists in the American context; andthe Afro-Brazilian religions members in the Brazilian context.Keywords: religion and ethnicity; afro-brazilian religions; pentecostalismand umbanda.

RESUMENEl objeto de este artículo es explorar las dimensiones étnicas y religiosas deldiscurso de los pentecostales negros en Brasil y en los Estados Unidos, mirandosituaciones y experiencias sociales específicas. Su propósito es comparar lasformas por las que esos grupos, basados en un código religioso, articulan susauto-identificaciones como pentecostales y como negros y opuestos a aquellos aquien reconocen como “otros”: sean los Batistas en Norte América; sean losmiembros de las religiones afro-brasileñas en el contexto de Brasil.Palabras clave: religión y etnicidad religiones; religiones afro-brasileñas;pentecoslismo y umbanda.

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Neste texto elaboro algumas considerações a partirdo trabalho de campo que realizei no estado da Virginia,Estados Unidos, junto a um grupo de negros pentecostaisauto-identificados como Bible Way (Caminho da Bíblia)e com negros e brancos pentecostais no Rio de Janeiroque resultou na minha tese de doutorado (Contins 1995).No caso brasileiro, as denominações pentecostaisselecionadas foram: Igreja de Nova Vida, Assembléiade Deus e Igreja Metodista Renovada, situadas na cidadedo Rio de Janeiro. Nesta pesquisa, comparei os modos como sãopercebidos esses cultos no Brasil e nos Estados Unidos,focalizando situações e experiências sociais e religiosasque servirão como ponto de partida para refletir sobre aquestão das relações entre brancos e negros no Brasil enos Estados Unidos. Explorei a dimensão étnica e religiosaexpressa no discurso dos pentecostais através dostestemunhos dos fiéis, dos sermões de seus pastores ede entrevistas que realizei a respeito das conversões aopentecostalismo com pastores e membros das igrejaspesquisadas, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos.

Num trabalho anterior, intitulado NarrativasPentecostais: estudo antropológico de grupos negros nos EstadosUnidos (Contins 1993), desenvolvo a análise do casoamericano, tomando um grupo de negros Bible Wayque se afirmam enquanto negros e pentecostais. Estasidentidades estão sempre sendo afirmadas “dialo-gicamente” pelas diferenças que estabelecem entre elespróprios e os vários cultos religiosos que são conside-rados seus opositores em potencial (como os Batistas,no caso dos Bible Ways); e pelas diferenças étnicas eraciais (no caso entre brancos e negros). No entanto,

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ao se diferenciarem étnica e religiosamente dos outrosgrupos, os pentecostais criam uma identidade que épermanentemente ameaçada por esse outro do qualdesejam se diferenciar. É principalmente durante oprocesso de conversão que essas diferenças vão surgir.

No caso do Brasil, é quase impossível a delimitaçãode uma religião como pertencente a um só grupo étnicoou racial. No entanto, no caso dos grupos pentecostaisno Rio de Janeiro, com os quais tive contato, existe umaforte concentração de negros e mulatos freqüentandoesses cultos, como pastores ou como fiéis. As religiõesque se opõem aos pentecostais, no caso do Brasil, estãoprincipalmente entre as chamadas “Religiões Afro-brasileiras” e muitos dos pastores e fiéis negros dessasigrejas pentecostais pertenceram originalmente àsreligiões afro-brasileiras (Contins 2002). Assim, mesmoque não existam predominantemente cultos somente denegros ou só de brancos, a questão da cor ligada à religiãocontinua sendo relevante. A criação de uma identidadede pentecostal e de negro também está presente nocontexto das igrejas no Rio de Janeiro. Essas identidadesestão sempre sendo afirmadas “dialogicamente” pelasdiferenças em relação às outras religiões, e principalmenteaos cultos afro-brasileiros.

Tornando-se Bible WayA idéia de um estudo comparativo foi sugerida a partir

da experiência etnográfica em que realizei no período de1985-89, quando residi em Charlottesville, estado daVirginia, Estados Unidos. Durante esse tempo, inicieium trabalho com um segmento da população negra dosul dos Estados Unidos ou, mais especificamente, com

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um grupo religioso que se autodenomina Bible Way, linhapentecostal de negros que se encontra espalhada tambémpor outros estados norte-americanos.

No sul dos Estados Unidos, uma grande parcela depentecostais negros pertence à classe média, podendo-se encontrá-los, também, a exemplo do que ocorre noBrasil, nas camadas mais pobres da população.

A partir do século XIX, diversificou-se o universoreligioso nos Estados Unidos e várias denominaçõesreligiosas foram criadas, manifestando umadiversidade que era também étnica. Com a imigraçãoeuropéia, esse processo intensificou-se e gruposreligiosos minoritários passaram a influenciar váriossegmentos populacionais. Se, na formação religiosados Estados Unidos, o protestantismo era mais oumenos homogêneo, ele foi progressivamentefragmentando-se junto a uma divisão cultural e so-cial do país entre os estados do Sul e do Norte, entrebrancos e negros, entre liberais e conservadores.Mesmo com a diversidade religiosa, propiciada pelaliberdade de culto, havia uma idéia de “fé nacional”,que perpassava todas as crenças (Hudson 1981).

As igrejas pentecostais nos Estados Unidos cres-ceram a partir do movimento Holiness. Os pentecostaisse distinguiam dos batistas, que já estavam bastanteconsolidados nesta época, pela fé na cura, além daênfase no batismo pelo Espírito Santo (Holy Ghost).O batismo pelo Espírito Santo manifesta-se através dodom de “falar em línguas” não conhecidas (Hudson1981:347). O pentecostalismo moderno foi primei-ramente conhecido “Later Rain Movement”, nome quese originou da Bíblia (former rain or latter rain em Joel

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2:23). O movimento pentecostal mais importante surgiuem 1906, a partir de grupos estudantis. Em conseqüên-cia, nasceu o maior grupo pentecostal negro dosEstados Unidos, Church of God in Christ (Igreja deDeus em Cristo). Outros grupos também foram criados,principalmente no sudeste do país, as chamadas Assem-bly of God (Assembléias de Deus). Estes se diferen-ciavam dos primeiros grupos pentecostais porquetinham como norma a santificação como um processogradual do estado de graça instantâneo (Hudson1981:348). Começando com seis mil adeptos, os segui-dores das Assembléias de Deus aumentaram para qua-renta e um mil, em 1926, 300 mil, em 1950, e 500 mil,em 1960, (Hudson 1981:348). Nesta mesma época,esses religiosos enviaram missionários para várias partesdo mundo, inclusive para o Brasil, com muito sucesso.

Outros autores, no entanto, afirmam que até 1950o mapa da religião nos Estados Unidos não incluíanada chamado Pentecostalismo, somente apare-cendo às margens de grupos religiosos protestantesdominantes (com os Episcopais, Presbiterianos, en-tre outros) ou entre as populações mais pobres econo-micamente (Marty 1976). Pentecostalismo, até então,era simplesmente uma denominação, do ponto devista de parte das camadas baixas, para o Funda-mentalismo. Os pentecostais daquela época (antesde 1958/59) eram de camadas baixas e tornavam-seadeptos deste culto no sentido de protesto contra asinjustiças e exclusividades sociais, ao mesmo tempoganhavam status religioso, redefinindo o quadro reli-gioso e social (Marty 1976: 106). Só a partir da décadade 60, o pentecostalismo vai ter um lugar na per-

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cepção da cultura americana como um todo. Paraisso, algumas antigas igrejas do movimento pente-costal realizaram compromissos e acomodações comrelação à sociedade (é quando os grupos realizamreuniões em hotéis e motéis) e são mais acreditadose ganham respeitabilidade. A partir de então, a mídiatambém é incorporada na campanha de conversãode outros fiéis. Nesta mesma época, alguns gruposdenominados “carismáticos” apoiarão os pente-costais, pois consideram que eles também partilhamda mesma experiência pentecostal. Assim, a partirdos anos 60, a experiência ou ‘força’ pentecostal vaise espalhar para o interior do Luteranismo, doMetodismo, do Presbiterianismo e mais tarde (1967)do Catolicismo (Marty 1976:107).

Muitos dos negros americanos pertencem àscongregações onde predominam brancos, porém, amaioria congrega-se em igrejas compostas exclusi-vamente por negros. Os negros americanos, primei-ramente, ligaram-se às igrejas Metodistas, para entãose espalharem pelas várias igrejas de denominaçãopentecostal. Entre essas denominações, estão as se-guintes igrejas: Church of God in Christ, ChristSanctfied Holy Church, Church of Living God,House of the Lord, Bible Way Churches, entre outras.

A Igreja Bible Way Church of our Lord JesusChrist World Wide nasceu, segundo a história rela-tada no Official directory rules and regulation (1962),durante a Conferência Ministerial Nacional dosPentecostais, entre 25 e 29 de setembro de 1957. Amaioria desses grupos religiosos foi criada na décadade 1960, onde juntos possuíam 750 mil adeptos. Esses

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movimentos religiosos coincidiram com os movimentospolíticos e sociais que, a partir das décadas de 50 e 60,reivindicavam os direitos civis dos negros americanos.

O grupo por mim estudado pertence a gruposreligiosos que têm como especificidade o fato depertencerem a um culto pentecostal de negros. De certaforma, podemos dizer que este grupo religioso possuiuma “narrativa étnica”. Os membros desta comunidadecriam e recriam uma “cultura religiosa”, onde váriosaspectos dessa cultura são “inventados”: uma linguagemcomum, uma maneira de se vestir, uma moral, umrelacionamento muito intenso entre seus membros, umavalorização muito grande do aspecto econômico indi-vidual e do grupo religioso, entre outros.

A congregação dos Bible Ways tem a maioria desuas igrejas no Estado da Virginia (Centro e Norte)e em Washington, D.C.. Centralizei meus estudos emuma determinada igreja na Virginia e, por meio deseus membros, participei de eventos religiosos emoutras igrejas que pertencem à mesma congregação.

A Bible Way Church of Galilee fica situada numapequena vila no município de Fluvanna, estado da Vir-ginia. Os crentes que se autodenominam Bible Way,consideram-se pentecostais e cristãos que ‘nasceram denovo’ (born again Christians). A igreja de Fluvanna éuma pequena igreja rural, mas seus membros nãopertencem somente a esta área. A maioria deles vem dacidade mais próxima, Charlottesville. Esta igreja possuipoucos membros, embora a comunidade Bible Way sejabastante numerosa, abrangendo áreas que vão do norteda Virginia (Washington, D.C.) até a cidade de NovaYork. Essas igrejas, todas elas de negros, mantêm um

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intenso relacionamento religioso cultural e econômico.As conferências setoriais e nacionais são realizadasanualmente e existe um controle bem centralizado daigreja matriz em Washington, D.C., com relação às outraspequenas igrejas. Assim, sempre ocorrem visitas de ummembro de uma igreja a outra, participando do serviçocomo convidado especial, e assim por diante. Visiteivárias igrejas Bible Way na Virginia e em Washington,onde havia membros de outras igrejas presentes. Aspequenas igrejas são quase em sua maioria formadas porgrupos familiares, com algumas pessoas da comunidade.

A igreja localiza-se num prédio alugado pelopróprio pastor e ele mesmo é responsável pela suamanutenção. No entanto, as igrejas ajudam-sefinanceiramente, principalmente no início, duranteo tempo de sua instalação. A Bible Way Church ofGalilee situa-se no antigo prédio que pertencia aosCorreios dessa vila em Fluvanna. Os outros prédiosdessa vila são também bastante antigos e decadentes.

Esta imagem de ‘decadência’ é transmitidaprincipalmente porque, segundo os crentes, a cidadefoi atingida, em 1884, por uma grande enchente. Essapequena vila, que foi no passado cogitada comopossível capital do estado da Virginia, possui tambémoutros centros religiosos: uma igreja católica, umaepiscopal e uma batista.

O pastor Timothy e sua esposa Roberta podem sersocialmente descritos como pertencentes à classe médiaafro-americana. Ele é um pintor de paredes e possuiseu próprio negócio e ela tem um emprego público.Outros membros da igreja podem ser consideradostambém de classe média e os demais vêm das camadas

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mais baixas da população afrodescendente do país. Essaigreja possui um número irregular de membros (entre20 e 25), mas somente 15 freqüentam regularmente osserviços. É interessante colocar que existe grandemobilidade entre essas igrejas, onde as relações pessoaisdesempenham um papel muito forte. Pessoas quefreqüentam uma igreja Bible Way podem passar afreqüentar outra. Outro fato bastante comum é atransferência de uma igreja para outro local, já que sãoprédios alugados por um determinado tempo. Destaforma, uma mesma congregação pode mudar delocalidade várias vezes, dependendo das condiçõeseconômicas dos pastores e dos fiéis, e mesmo dasrelações que estes mantém com a população dalocalidade onde a igreja fica situada.

Num típico ‘serviço’ de domingo, existem váriossegmentos dos quais o pastor, bem como os outrosmembros da igreja, participam. Com qualquernúmero de participantes eles iniciam o ‘serviço’, quetem regras próprias para cada parte do ritual. Noentanto, comparando com outras igrejas protestantes,os Bible Ways tem por característica estenderem-seindefinidamente em seus sermões, nos testemunhose também nas canções e orações. Sem me aterdemasiadamente a cada uma dessas sessões, éimportante colocar neste trabalho que é através dapalavra, bem como dos gestos corporais e da música,que os pentecostais negros se comunicam. O ‘domda palavra’ é fundamental, mas ele aparece na ênfaseque se dá aos movimentos do corpo e à música.

As regras durante o ‘serviço’ podem ser alteradasse um dos membros ‘receber’ o Espírito Santo. Eles

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podem então ‘falar em línguas’, e assim o ritmo do‘serviço’ pode mudar completamente. Desse modo,é usual o ‘serviço’ se prolongar por várias horasseguidas, porque eles estão se ‘divertindo muito’. Decerta forma, o ‘serviço’ de domingo de uma igrejaBible Way me lembrou muito as sessões de umbandae candomblé no Brasil. Como os ‘serviços’ dos BibleWays, as sessões de um terreiro de umbanda sãotambém muito longas, podendo durar toda uma noitee terminar só pela manhã. O assunto que os leva aprosseguir com o ‘serviço’ é sempre o de falar sobrea necessidade de ‘ser salvo’ e de ‘nascer de novo’.

De modo geral, o sermão é mais formal, enquantoos testemunhos são realizados de maneira mais infor-mal entre os crentes e os não-crentes. No caso dos BibleWays, porém, tanto os testemunhos quanto os sermõesse dão informalmente. O sermão pode durar mais deuma hora, principalmente quando o assunto é algumacontecimento relacionado às pessoas da igreja. O pas-tor sempre estabelece relações, durante o serviço, en-tre a história de Cristo e o cotidiano dos crentes. Temascomo assassinatos de pessoas, problemas de drogas,assuntos internacionais, estão diretamente ligados àcondição social dos negros. O problema das drogas entreos negros, crime, prostituição e gravidez de jovensnegras são assuntos sempre discutidos durante ostestemunhos e sermões. As relações raciais entre negrose brancos nos Estados Unidos é sempre assunto dossermões, principalmente os relacionados ao cotidianodos fiéis. As pessoas sempre ouvem falar ou já passarampor alguma dessas situações. Todas são contadas combastante dramaticidade, mas, ao mesmo tempo, com

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ironia. O objetivo de colocá-las tão próximas doscrentes é a conversão. Converter-se no pentecostalismoé uma atitude diária e interminável. A conversão segueo crente durante toda a sua vida.

O estilo narrativo dos Bible Ways não era‘complicado’ somente em relação às tarefas com aigreja. De maneira geral, a vida deles parecia bastante‘complicada’. Não se parecia em nada com apraticidade do estilo protestante branco. Tudo eramuito discutido e falado entre eles e, às vezes, eu tinhaa sensação de que eles brigavam entre si, mas percebiaque era só uma maneira de se relacionarem. A minhacondição de pesquisadora estrangeira foi bastante útilpara perceber este ponto. Uma outra pesquisadora jáhavia entrevistado o pastor e visitado a igreja, mas euobtive, de maneira geral, mais acesso ao grupo, namedida em que a primeira antropóloga era americanae branca. Eu era considerada branca, mas estrangeira,da América do Sul. Era como se eu estivesse um poucofora do jogo racial que há entre negros e brancosnaquela sociedade. Acredito que minha presença foibem aceita, mesmo entre as outras igrejas Bible Way.Fui muitas vezes chamada de ‘irmã’ por eles, e seruma ‘irmã’ significa ser aceita como parte da igreja,mesmo sendo em outros momentos consideradacatólica. A minha relação com os Bible Ways não erasó de aceitação; muitas vezes, eles cobravam de mima conversão ao pentecostalismo. Mas essa cobrançanão era feita explicitamente, na medida em que aconversão ao pentecostalismo depende, basicamente,do movimento interior, pessoal, daquele que quer seconverter. Depende de um encontro do ‘não-salvo’

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com Deus, de uma conversa com Deus. A seguir, voutratar do ‘tornar-se pentecostal no Brasil’.

Tornando-se Pentecostal no BrasilAs primeiras igrejas pentecostais que apareceram

no Brasil foram a Congregação Cristã do Brasil, 1910,em São Paulo, e a Assembléia de Deus, 1911, emBelém do Pará (Rolim 1985). Em seguida, inúmerasoutras denominações vão surgir, como o EvangelhoQuadrangular, na década de 40, o Brasil Para Cristo,1955, a Igreja Nova Vida, 1960 no Rio de Janeiro emuitas outras mais recentemente, como a Igreja Uni-versal do Reino de Deus. Os cultos que pesquisei noRio de Janeiro foram: Assembléia de Deus, Igreja deNova Vida e Metodista Renovada. Esta últimadenominação citada faz parte das chamadas IgrejasHistóricas, no entanto a Igreja Metodista Renovada,junto aos presbiterianos e congregacionalistas, vierama adotar, recentemente, o estilo dos cultospentecostais, porém exercem vigilante controle dospastores e fiéis, para evitar ‘excessos’. Estão maispreocupados com aspectos doutrinários sobre oEspírito Santo e com o legalismo religioso.

Os fundadores da Assembléia de Deus foram doissuecos, Daniel Berg e Gunnar Vingren. Tinham sidobatistas antes de se tornarem pentecostais nosEstados Unidos. Filiados à Assembléia de Deusamericana vieram para Belém (Pará) como missionários,guiados por uma ‘inspiração’. Entraram aos poucos,começaram a falar de suas experiência religiosas,fizeram vigílias, cânticos e leituras referentes a‘Pentecostes’. Assim apareceu, segundo Rolim (1985),

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a ‘glossolália’ e houve a cisão. O ‘poder do EspíritoSanto’ criou uma forte discussão, que passou das casaspara dentro da igreja. Os missionários foram expulsose com eles seguiram muitos crentes da Igreja Batista.

Para este autor, a Assembléia de Deus e a Congre-gação Cristã do Brasil implantaram no Brasil a ‘ex-periência pentecostal’ dos grupos brancos americanosque não era a original, e que estava marcada pela nítidaseparação entre o social e o político. Neste sentido, opentecostalismo que veio para o Brasil não é a dos gru-pos de negros pentecostais, mas o de brancos, e a propos-ta deste autor é a de que o grupo que foi atingido noBrasil é o das camadas mais baixas da população: “Es-sas faixas pobres, com escassas possibilidades de melho-ria de vida e com praticamente nenhuma participaçãonos cultos oficiais, encontraram nas celebrações desteramo pentecostal, momentos de espontaneidade eliberdade religiosa” (Rolim 1985: 42). As característicasdos cultos realizados pela Igreja da Assembléia de Deussão: participação (não demonstram medo de falar empúblico, o fazem com muito entusiasmo); proselitismo;testemunhos; glossolalia (‘falar em línguas estranhas’);oração espontânea; oração coletiva e cânticos.

A outra igreja que faz parte da pesquisa é a Igrejade Nova Vida. Ela é uma das mais recentes, emborajá tenha completado 30 anos. Seu fundador foi o bispoRobert McAlister. Segundo Rolim, a igreja está maisdirigida às classes média e média-alta da sociedadebrasileira, mas, no entanto, ela também pode serencontrada em bairro de camadas baixas. Além daglossolália, outros aspectos desses cultos são: oBatismo nas águas e a santa ceia (para a Nova Vida);

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o Batismo no e pelo Espírito Santo; a manifestaçãoespontânea do Espírito Santo e o Batismo nas Águas.

A Igreja Metodista Renovada pertence histo-ricamente às chamadas Igrejas Protestantes Históricas.É com a ‘renovação’ que as características pente-costais se manifestam.

As igrejas pentecostais mais tradicionais no Brasil,como a Assembléia de Deus, a Congregação Cristã eoutras, estão sendo consideradas também como“históricas”. Já as mais novas, criadas principalmentea partir da década de 80, não entram nesta categoria.A grande distinção está na postura que assumem diantedo mundo, as primeiras muito mais comunais etradicionais. A salvação tem um caráter coletivo e anarrativa bíblica é encarada com maior rigor nasescolas dominicais. As novas igrejas “neopente-costais”1, no entanto, são marcadas pelo individua-lismo, pelas curas e pela salvação individual.

Nas igrejas mais novas, como a Universal do Reinode Deus e Igreja da Graça, os ‘exus’ e ‘pombajiras’(entidades da umbanda) têm um papel essencial nacomposição desses cultos. São ‘entidades’ que aparecemdurante o culto de exorcismo e que são essenciais paraa realização dos cultos pentecostais. Sem os umban-distas esses novos pentecostais não existiriam, não seconcretizaria a ‘verdade’ do grupo. São eles que dialogamcom os pentecostais, mais que os outros pentecostaisou que as igrejas protestantes históricas. É através destaoposição entre ‘exus’ e ‘pombajiras’ e o ‘Espírito Santo’que esses cultos se realizam. Os chamados ‘pentecostaishistóricos’ também trabalham com essas oposições, masde um outro modo: os demônios aparecem, são exorci-

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zados, mas geralmente no final do ‘serviço’, e nãonecessariamente referem-se diretamente a ‘exus’ ououtras ‘entidades’ da umbanda. As demonstrações depoder do ‘Espírito Santo contra o demônio’ estão semprepresentes nos cultos pentecostais e têm um espaçoprivilegiado nas novas igrejas. As mais novas resgatamesse confronto direto entre o bem e o mal. A diferençaentre as igrejas históricas e as igrejas “neopentecostais”está no fato de que para as últimas convivem demaneira bastante tensa o bem, e o mal e o nome do‘demônio’, por exemplo, é tão falado quanto o de Jesus.

Relação dos Pentecostais no Brasil com aschamadas Religiões Afro-brasileiras

O mal está basicamente associado, para ospentecostais, ao Candomblé e à Umbanda no Rio deJaneiro. Tudo que deriva desses cultos é ligado à figurado diabo. Uma boa parte dos nossos entrevistados, negrose pentecostais, já havia participado dos cultos afro-brasileiros e hoje colocam que ‘foram salvos do mal pelopoder do Espírito Santo’. Associam os males de suasvidas passadas à prática anterior, e mesmo encontrando-se hoje em dificuldades dizem-se felizes. A afirmação deque as religiões afro-brasileiras são criações do demôniofoi encontrada em todas as narrativas pentecostais quepesquisamos. Eles não admitem nenhum tipo de boaqualidade vinda dessas religiões. Esse fato possibilita àsreligiões afro-brasileiras serem um dos principais alvosdos discursos proselitistas pentecostais. Eles, aoevangelizarem, ressaltam que esta é a principal tarefa docrente, ou seja, levar a ‘palavra’ e exorcizar os principaisdemônios que estão ‘incorporados’ nos umbandistas, e

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assim por diante. Os pentecostais acreditam que aliberdade está na ‘aceitação de Jesus’ e os que não crêemprecisam de ajuda para encontrar a Salvação. É umaobrigação de todo pentecostal a luta pela conversão“daqueles que vivem no mal”. Ao assumirem a “palavrade Deus” assumem também o combate ao demônio, queé representado pelas ‘religiões afro-brasileiras’. Segundoum pastor da Igreja da Graça: “O povo umbandista,candomblecista, é um povo que a Bíblia diz que os braçosde Deus não estão em posição de salvá-los... Não, aquelepovo não está salvo. Se nós os cristãos não orarmos paraque Jesus liberte eles, para eles virem fazer parte dessafamília de vencedores, não de famílias fracassadas, elesvão continuar sem esperanças”. Só o contato com o‘sagrado’, com o Espírito Santo, poderão salvá-los.

A proximidade das práticas religiosas afro-brasileiras em relação à manifestação pelo EspíritoSanto é evidente, por exemplo, nesta frase de ummembro da Igreja Metodista Renovada: “A vinda doEspírito Santo ainda é um mistério para mim. Porquetudo é um mistério. Na hora que eu vejo falando emlínguas, eu fico em dúvida. Não sei se é porque eu estivemuito próximo do Candomblé e do espiritismo... Eutenho a sensação que parece que é igual. Quando oEspírito Santo começa a falar parece que é igual... Nãoconsigo entender”. A relação muito próxima entre asduas manifestações, do Espírito Santo e dos Orixás, ébastante interessante. São dois códigos religiososdistintos, que são acionados para a identificação ou daentidade da umbanda ou do Espírito Santo. A seguirvou analisar o processo de conversão entre os pente-costais negros americanos, os Bible Ways.

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Narrativas e Testemunhos sobre a Conversãopelo Espírito Santo: problema étnico-religioso

O testemunho é um dos caminhos que as pessoasusam para se converter à igreja Bible Way. O processode conversão, para os Bible Ways, está ligado diretamenteàs questões mais gerais da criação de uma subjetividadeétnica e racial. Foi durante uma entrevista com o pastorTimothy e outra com sua esposa Roberta, da igreja BibleWay de Fluvanna, que discutimos esses pontos.

A história de vida do pastor Timothy é narrada,primeiramente, a partir de sua relação com a IgrejaBatista. Essa relação se dá por motivos familiares e,portanto, pelo que eles denominam de ‘tradição’. Opastor Timothy foi batista porque sua família jápertencia a esta religião e era natural que ele a seguisse.No entanto, ser batista não significava realmente serreligioso; significava apenas ‘ter uma religião’, ‘ir àigreja’. Ser batista era uma questão de família, já quenão existia um real envolvimento com esta religião.

O pastor Timothy descreve seu relacionamento coma Igreja Batista como parte da tradição familiar dasfamílias afro-americanas. Não se tirava nada dessatradição: as pessoas freqüentavam a igreja porque fo-ram criadas para freqüentá-la. Para Roberta, esposa dopastor, ser batista é também parte da tradição, é umcostume de sua família e significa apenas um ‘nome’.

Ser batista, para Roberta, faz parte do seu própriocrescimento desde criança. Mas isto não necessa-riamente significa que você seja uma pessoa de igreja.Roberta era levada por sua avó para a escola dominical,mas isso não significava que ela entendesse o que estavaacontecendo lá. O pastor Timothy lembra também que,

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quando era criança costumava freqüentar uma escoladominical batista.

A mulher do pastor fala da importância do batismopara se pertencer a uma religião. Ela descreve suaexperiência de ser batizada na religião batista e decomo o batismo era considerado um grande eventosocial para todas as crianças e suas famílias: “Eu nascina Jamaica, mas fui trazida para os Estados Unidosquando ainda era bem pequena. Mas eu lembro deminha avó levando-me a uma igreja Batista. Lembrode ser batizada e foi um grande evento porque todasas meninas estavam de branco e se arrumavam muito,inclusive iam ao cabeleireiro para depois caírem naágua! A gente não sabia porque íamos ser batizados,somente que aos 12 anos teríamos de nos batizar. Masmuitas crianças não sabem o verdadeiro significadode ser batizado em nome de Jesus. Antes, quando euera pequena, só sabia que tinha que ser batizada aos12 anos, alguma coisa com uma tradição, não sabia osignificado real do batismo”.

É interessante dizer então que, para o pastor esua esposa, a noção do significado do batismo sóvem depois de adulto. A criança não tem condiçõesde perceber o “verdadeiro significado do batismo”.Essa noção só é atingida com a experiência de Deus,que vem com a conversão ao pentecostalismo. Parao pastor Timothy e sua esposa, a Igreja Batista étudo aquilo a que eles se opõem. É pela negaçãodaquela igreja que os Bible Ways se afirmam comocrentes e seres humanos. Os batistas, segundo osBible Ways, não têm nenhuma moral e não sabem“o verdadeiro significado da palavra de Deus”.

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Subjetividade e alteridade: os pentecostais negros no Brasil e nos Estados Unidos

Ano 11, nº 21, 2º semestre de 2004

Considerações finais: a questão da diferençaEm termos comparativos, muitos já exploraram a

questão das ‘relações raciais’ nos contextos norte-americano e brasileiro. No entanto, sugerimos o trata-mento de narrativas pentecostais no Brasil e nosEstados Unidos, não como duas totalidades suposta-mente estáveis, coerentes e preexistentes, mas comouma série de efeitos resultantes dos processos de“invenção” (Wagner 1981) de auto-imagens pessoais ecoletivas por parte de coletividades identificadas como pentecostalismo. Sendo essas coletividades pente-costais de maioria negra nos Estados Unidos, e con-tando com uma boa parte de negros também no Brasil,essa criação de uma auto-imagem também passaria pela‘invenção’ das classificações étnicas.

A antropóloga Karen Blu, em seu The lumbee prob-lem (1980), trabalha as categorias ‘raça’ e ‘entidade’e o modo como esses termos são usados nos EstadosUnidos. Para ela, o termo ‘etnicidade’ ficou mais emmoda a partir dos anos 60 entre os círculos leigos eentre os cientistas sociais, que vêm isto como umaspecto positivo na construção das ‘identidades’pessoais e coletivas dos indivíduos em jogo. Já o termo‘raça’ traz uma conotação onde existe a dominânciahierárquica de uma categoria sobre a outra. Isto querdizer que existe, no esquema racial, uma predominânciada cor branca sobre a cor negra. Em relação aos negros,os brancos são dominantes não somente em termoseconômicos e políticos, mas os atributos físicos tambémproduzem sua superioridade. A partir da mudança doesquema ‘racial’ para o ‘étnico’ o quadro torna-se maiscomplexo. Inicialmente eram os ‘negros’ e os ‘brancos’,

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mas depois outros grupos se tornaram também étnicos.Assim, segundo Blu, as implicações dessa mudança (deraça para etnia) são importantes para a construção deidentidade dos próprios grupos, pois os ‘símbolosnegativos’ tornam-se ‘símbolos positivos’. Os símbolosligados à pele branca não necessariamente tornam-seindesejáveis, mas os símbolos de pele negra passam aser desejáveis também. Ser negro como parte de umaraça é indesejável e considerado inferior, mas comoparte de um grupo étnico é bom, na medida em que fazparte de um grupo coeso, que é visto como ativo eanula as desvantagens de seu status de minoria.

As relações entre etnia e religião reforçam, no casoamericano, os grupos negros. Em seu livro A nation ofbehavers (1976), Martin Marty trabalha justamente comessa relação entre etnicidade, cor e religião. Segundoeste autor, o problema do século XX é o da cor, dasrelações entre “as raças humanas mais escuras e as maisclaras”. Para Marty, a etnicidade tornou-se, nos EstadosUnidos, por volta de 1960, a estrutura e o esqueleto dareligião. Vários fenômenos que não eram consideradosfenômenos religiosos passaram a sê-los a partir de então.Assim, ‘religião étnica’ faz parte de um duplo perten-cimento: por um lado, uma pessoa pode ser pentecostale, por outro, também pertencer a uma religião de negros.O que parece pouco convincente nas formulações deMarty é sua estratégia de encontrar, uma identidadeespecífica intrínseca às religiões. Segundo ele, os negrosde agora procurariam reviver, em suas religiões, mitose ritos de um passado rural em busca de umaautenticidade perdida. Ainda segundo Marty, a igrejaurbana restaurou estilos esquecidos e até repudiados que

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Subjetividade e alteridade: os pentecostais negros no Brasil e nos Estados Unidos

Ano 11, nº 21, 2º semestre de 2004

agora servem como afirmação de negritude. Há, em suasafirmações, a procura do essencialismo, alguma coisaperdida: a ‘imediaticidade da crença’ (‘immediacy ofbelief ’): se nós não podemos viver “os grandes símbolosdo passado”, podemos ter uma segunda naiveté atravésda crítica. Existe uma verdade nas crenças originais quesão revividas mais tarde, através da crítica. Exemplo dissoseria os negros americanos, que vão buscar, em crençasdo passado, afirmações para sua identidade no presente.Assim, para o autor, é válido associar símbolos étnicos àsímbolos religiosos.

De acordo com o que foi sugerido, os símbolos‘religiosos’ e ‘étnicos’ podem ser tratados como partede narrativas que estão sempre sendo renovadas peladiferença. Essa diferença é sempre expulsa pelospróprios crentes para fora de si, de forma a criar umasubjetividade. Esse processo é interminável naprodução desta subjetividade na condição de negros epentecostais. Na medida em que as fronteiras entre oétnico e o religioso são desconstruídas, podemos pensaras estratégias de permanente e interminável conversãoreligiosa por parte dos pentecostais negros como umaestratégia simultânea de conversão étnica. A expulsãodas diferenças para fora de uma subjetividade religiosaocorre também nos limites de uma subjetividade étnica.

No caso dos Bible Ways, existe, em primeiro lugar,uma negação em relação aos batistas que são consi-derados como simplesmente um ‘nome’, uma ‘tradição’.Em seguida, há a negação em termos étnicos e raciais.Os pentecostais se diferenciam das outras religiões,principalmente dos batistas, e se diferenciam tambémporque são negros. A partir das narrativas do pastor e

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de sua esposa, fica caracterizada toda uma trajetória demudança, de procura de uma ‘identidade’ . Essasubjetividade é criada pela expulsão da diferença. Masessa diferença só vai ser encontrada no momento desua essencialidade, na afirmação dos pentecostais comonegros e pentecostais. Logo depois, eles vão procuraroutras diferenças que os façam novamente presença.No caso dos pentecostais negros no Rio de Janeiro, arelação principal faz-se em relação aos umbandistas.Eles se afirmam positivamente a partir da negação decultos afro-brasileiros e da identificação desses cultoscom o mal, com o “demônio”.

Assim, a estrutura narrativa pentecostal não éproduzida a partir de um centro e com uma lógicaespecífica, mas a partir dos intervalos, pela negação.Através dos testemunhos e, portanto, da conversãoao pentecostalismo, que nunca se completa, os crentesestão sempre fazendo e refazendo sua cultura e suacrença. Seguindo o discurso do pastor e de sua esposa,podemos perceber que eles estão sempre expulsando ainstabilidade, a incoerência, a diferença para fora desua subjetividade de negros e pentecostais. Negam,assim, que eles, como pentecostais negros, tambémtenham uma ‘tradição’ (como afirmam que só osbatistas possuem); que também eles sejam um ‘nome’(embora afirmem que só os batistas o sejam). É atravésdeste processo de projetarem a diferença para fora desi mesmos e, desse modo, constituir fronteirasfortemente delimitadas entre pentecostais e batistas,que produzindo uma subjetividade que, por sua vez,jamais estará ao abrigo da heterogeneidade de outrasposições que habitam o próprio discurso do sujeito.

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Essa estratégia de projeção das diferenças para foradas fronteiras de uma subjetividade individual ecoletiva é universal e pode, portanto, ser verificadaem qualquer contexto sociocultural. O que importadestacar em nossa análise é, precisamente, o modopelo qual esse processo se realiza nos dois casos queanalisamos. No primeiro, o ‘outro’ que é projetadopara fora das fronteiras dos pentecostais são os batistascondenados pela ambivalência entre o que professame o modo como agem; no caso dos pentecostais brasi-leiros, seus ‘outros’ são os umbandistas que são iden-tificados ao demônio. Esses ‘outros’ são fundamentaispara a construção positiva e essencial de uma e outraidentidade. São fundamentais na medida em que sãoexpulsos da comunidade social e simbólica dospentecostais enquanto fontes de desordem e in-coerência. No entanto, essas fontes, embora expulsas,residem efetivamente no interior do discurso e da ex-periência pentecostal. Assim, no caso dos pentecostaisbrasileiros, o demônio está cotidianamente presente.E entre os pentecostais americanos a ambigüidadeentre o que é professado e as práticas sociais cotidianasestá igualmente presente. É, precisamente, através doesforço obsessivo para evitar os outros e de mantê-los à distância que essas comunidades asseguram,paradoxalmente, o seu convívio com eles, forta-lecendo assim, sob permanente e insidiosa ameaçade dissolução, suas identidades pessoais e coletivas.

Nota1 Para a discussão sobre neo pentecostalismo ver Patrícia Birman em“Males e malefícios no discurso neo pentecostal”(1977).

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Referências bibliográficasBIRMAN, Patrícia. “Males e malefícios no discursoneopentecostal”. In: O mal à brasileira. Rio de Janeiro:Eduerj, 1997. p. 62-80.

BLU, Karen L. The lumbee problem. The making of anAmerican Indian People. Cambridge univ. press, 1980.

CONTINS, Marcia. Narrativas pentecostais: estudoantropológico de grupos pentecostais negros nos EstadosUnidos. Rio de Janeiro, Ciec, ECO, UFRJ,1993.

____________ Tornando-se pentecostal: um estudocomparativo sobre pentecostais negros no Brasil e nosEstados Unidos. Tese de doutorado. Rio de Janeiro,Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura,ECO. UFRJ, 1995.

______________ “Pentecostalismo e umbanda: identidadeétnica e religião entre pentecostais negros no Rio deJaneiro”. In: Interseções: revista de estudosinterdisciplinares. Rio de Janeiro: UERJ, NAPE, 2002. ano 4,n2. p.83-98, 2002.

HUDSON, Winthrop. Religion in America. New York, C.Scribner’s sons,1981.

MARTY, Martin E. A nation of behavers. Chicago, Univ. ofChicago, 1976.

Official Directory Rules and Regulations of the Bible WayChurch of our Lord Jesus Christ World Wide, Inc.Washington, D.C., 1962.

ROLIM, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil; umainterpretação socioreligiosa. Rio, Ed. Vozes,1985

WAGNER, Roy. The invention of culture. Chicago, Univ. press., 1981.

Marcia Contins é Professora Adjunta de Antropologia doPrograma de Pós-graduação em Ciências Sociais e do

Departamento de Ciências Sociais do Instituto deFilosofia e Ciências Humanas(IFCH) da Universidade do

Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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Religião no contexto midiático

Ano 11, nº 21, 2º semestre de 2004

Mídia e religião: a Mídia e religião: a Mídia e religião: a Mídia e religião: a Mídia e religião: a “nova“nova“nova“nova“novaera” era” era” era” era” no no no no no mercado editorialmercado editorialmercado editorialmercado editorialmercado editorial

Fátima Regina Gomes Tavares* e Joelma do Patrocínio Duarte**

RESUMOO objetivo deste trabalho é analisar a “expansão” do movimentonova era a partir da relação entre o surgimento do mercado editorial“esotérico” e as percepções da mídia impressa, onde, nos anos80, verificou-se uma crescente visibilidade do movimento. Aoque parece, esta crescente visibilidade da nova era abre espaço paraque esta se configure como fenômeno de consumo cultural.Palavras-chave: movimento nova era; mídia; mercado editorial.

ABSTRACTThe aim of this paper is to analyze the “expasion” of the new agemovement by means of the relation between the beginning of the“exoteric” editorial market an the printed press perceptions, where, duringthe 80’s, there was a process of increasing visibility of this movement.What seems is that the increasing visibility of the new age gives room sothat it can configurate itself as a cultural consume phenomenon.Keywords: new age movement, media, editorial market.

RESUMENEn los años 80 hubo un proceso de cresciente visibilidad del movimientonueva era en la media impresa brasileña, caracterizado por la “efeverscencia”del esoterismo en tal periodo. El objetivo de este trabajo es analizar esa“expasion” a partir de la relación entre el surgimento del mercado editorial“esoterico” y las percepiciones de la media impresa como un fenómeno cultural.Palabras clave: movimiento nueva era, media, mercado editorial.

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Fátima Regina Gomes Tavares e Joelma do Patrocínio Duarte

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Na sociedade atual, a ampla circulação e intercâmbioinformacional fornecem um significado próprio à aldeiaglobal. É através da mediação do complexo midiáticoque os bens simbólicos efetivam, em grande medida, asua produção, reprodução e circulação. O que antes erarestrito a uma comunidade, a um grupo cultural, aidentidades fixas e demarcadas, no mundo contem-porâneo é flexibilizado, permitindo o encontro, o compar-tilhamento e o cruzamento de heterogêneos sistemassimbólicos, promovendo um “fluxo de bens culturais glo-balizados” (CONTEPOMI, 1999: 132). Fronteiras detempo e espaço são derrubadas, informações e ideologiaspassam a ser socializadas de forma rápida e barata.

Na contemporaneidade, a narrativa da tradição(característica das religiões institucionais) tem enfrentadoo universo de escolha do consumidor, conformandoprocessos situados num campo de mídia múltipla quetêm impulsionado inúmeras mudanças nas sensibilidadespropriamente religiosas. Nesse contexto de trans-formações mais amplas, encontra-se a religiosidade quecomumente tem sido designada por “nova era”. Comosugere Amaral, as interpretações sobre esse fenômenosituam-se no entrecruzamento de tendências variadas:“a possibilidade de transformar, estilizar, desarranjar ourearranjar elementos de tradições já existentes e fazer desseselementos metáforas que expressem performaticamente umadetermina visão, em destaque em determinado momento, e segundodeterminados objetivos.” (AMARAL,2000: 32)

Inúmeros aspectos da espiritualidade “nova era”têm sido assimilados por um público crescente,movimento esse que decorre, em grande parte, dadisponibilização de recursos midiáticos. Sendo a “nova

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Religião no contexto midiático

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era” um recurso cultural e prático, nossa sugestão é ade que a dimensão midiática do movimento apresenta-se como um fenômeno de consumo cultural, querepercute nos vários segmentos da sociedade hodierna.Assim, considerando que os meios de comunicaçãoveiculam abundante referência à ilimitada variedadede vias de acesso e expressão ao “interior sagrado”dessa “cultura religiosa errante”, podemos considerarque, através dos meios de comunicação, também serealizam a arte e a estética da “nova era”.

Mídia e espiritualidade “nova era”Os meios de comunicação impressos tendem a descre-

ver as práticas do movimento “nova era” como sendode forte apelo consumista. Todavia, como sugere Amaral,o consumo na “nova era” tem um sentido que está alémdo “epifenômeno da mercantilização universal promovida pelalógica do capitalismo e sua capacidade de transformar tudo emmercadoria, mas como um meio de expansão da própria culturamoral e espiritual nova era” (op. cit.124). Para a autora, oconsumo encontra plena afinidade com essa cultura espi-ritual. Dessa forma, sem a mercadoria e sem o consumonão haveria esse “espírito”, não haveria esse sagrado.

O movimento “nova era” tem sido propagado pelamídia para um público mais amplo, tanto de formapositiva “cativando o espírito”, como de forma “negati-va” veiculando-a com um acento de ironia e crítica, comoum “produto” de pouca sofisticação, restrito, superficiale de embalagem comercializada. Essa dubiedade pareceindicar a tensão da mídia com a própria dimensãomidiática do fenômeno. Esse é um processo marcadopor ambigüidades, no qual os meios de comunicação

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impressos parecem assumir uma posição de protagonistasdo “sucesso” e da crítica desse movimento.

A “nova era”, por sua vez, vem adquirindo visibi-lidade social através da mídia. Nessa dinâmica,conhecimentos, práticas, vivências, técnicas têm sidoacessados por um público“leitor” (não adeptos) que, porvezes, acaba incorporando alguns desses referenciais.1

Assim, parece-nos que o movimento “nova era” temse relacionado de forma “confortável” e “aberta” com oespaço midiático porque sua identidade é flexível e circulapela lógica do consumo e da mercadoria, já que essemovimento não possui um arcabouço doutrinário queprecise ser assegurado ou uma tradição a ser mantida.Por outro lado, a “nova era”, ao se expressar através damídia, também se caracteriza como um fenômeno dacultura popular que, segundo Amaral, “pode ser vista nãocomo impedimento à formulação de uma linguagem religiosa, mascomo constitutiva de e consubstancial à nova linguagem religiosaque vem transformando a imaginação do sagrado no mundocontemporâneo” (AMARAL, 2001: 01).

Enfim, a cultura popular, a cultura de consumo ede massa colocam em circulação um campo de ação,de expressão e de diálogo para indivíduos interessadosem significados religiosos, mas com identidadesdíspares, processo que parece apontar para a elaboraçãode uma nova imaginação religiosa, onde o sagrado nãoé algo em si, mas em constante (re) significação.

Anos 80: as relações entre a mídia e aemergência do mercado editorial “esotérico”2

Na década de 80, observa-se o incremento depráticas esotéricas no Rio de Janeiro. Esse fenômeno

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adquire visibilidade a partir da promoção edivulgação de eventos através de rádio, TV, palestras,cursos, workshops, entre outros, dinamizados poradeptos de práticas do universo esotérico e tambémpor pessoas que atuam profissionalmente na área.

O nome de destaque do meio, na época, é o do“esoterista” e empresário do ramo kaanda Ananda.3Em 1986, ele já divulgava os “mistérios ocultos” emum programa diário na rádio Imprensa FM, comduração de duas horas e posteriormente com umprograma semanal na TV Record. O Eremita era umprograma eclético de cultura espiritualista-esotérica quetinha a proposta de integrar Ciência, Filosofia e Religião.O Eremita era, assim, “o andarilho solitário, contador deestórias, no caminho da vida”(D`ANDREA, 1996: 07).

A empreitada representada pelo O Eremita teveduração de três anos, período suficiente para arealização de uma ampla e substancial divulgação dossaberes relacionados ao universo mágico-espiritualdisponível no Rio de Janeiro. Assim, a movimentaçãoem torno do ocultismo torna-se visível e começa aser destacado pelos meios de comunicação.

A divulgação de conhecimentos esotéricosrealizados pelo programa O Eremita e a criação doEsoteric Shopping Center 4 são momentosrepresentativos da efervescência do esoterismo quealcança seu auge no período de 1984 a 1987. A mídianão deixou de captar essa tendência, levando ao grandepúblico diversas informações sobre os assuntos maistratados e os personagens mais significativos.

A partir da década de 80, os temas “esotéricos”alavancaram o mercado editorial nessa direção. A

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mídia buscou noticiar largamente esse incrementode livros esotéricos. Os meios de comunicação nãosó notificaram o fenômeno de vendas da literatura“esotérica” como também o avaliaram, destacandoas estratégias de investimento maciço utilizadaspelas editoras na produção dessa linha.

A editora Francisco Alves, especializada em livrosdidáticos, a partir de 1980, lançou sua coleçãoesotérica Arcanos, com sete títulos no mercado. Essemercado apresentou-se extremamente promissor, fatonoticiado pela mídia impressa em diversas ocasiões.Nessa mesma época, a Rocco, hoje uma importanteeditora, com muitos títulos nessa linha, iniciava suasatividades lançando O livro das mirações, do ex-guerrilheiro Alex Polari e O feiticeiro do Alto Amazonas,do americano Bruce Lamb, ambos tratando datemática do Santo Daime. A editora Record, na época,tinha como líder de vendas Vidas secas, de GracilianoRamos, com 617 mil exemplares vendidos de 1975 a1985, seguido de perto pelo O poder do subconsciente,do americano Josef Murph, com a marca surpreen-dente dos 548 mil exemplares em 25 edições. Esseautor americano ultrapassou significativamente emvendagem grandes nomes da literatura brasileira einternacional, como Tieta do agreste, de Jorge Amado(11 edições e 306 mil exemplares) e Tocaia grande (4edições e 240 exemplares), desbancando nomes depeso da concorrente Nova Fronteira, como UmbertoEco, com O nome da rosa (100 mil exemplares em 22edições), Milan Kundera e Marguerite Yourcenar,também com suas obras consideradas best sellers,tendo vendido 30 mil exemplares cada. Na Nova

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Fronteira, As rofecias de Nostradamus, do francês FontBrune, vendeu, em 1984, 50 mil exemplares.

Esses indicadores ilustram a importância conferidaàs publicações “esotéricas” nessa época, como formade difusão de um “estilo” editorial, consolidando ummercado altamente rentável. A partir dos anos 80,portanto, esse segmento representa um filãoimportante no mercado editorial brasileiro.

A imprensa escrita destacou amplamente o carátercomercial da relação entre editoras e a expansão do vol-ume de publicações de obras que tratam desse segmento.As editoras, percebendo o seu potencial de vendagem,modificaram suas linhas de edição: abandonaram obrassignificativas que representavam o seu “carro-chefe” parase dedicarem exclusivamente a imprimir um único títulocom temática esotérica. Por outro lado, ao noticiar, amídia contribuiu para a crescente procura de livrosesotéricos e, conseqüentemente, para a lucratividadedesse negócio, sucesso que se reflete não só nas livrariasalternativas como também nas não-especializadas, comofoi o caso, por exemplo, da livraria Siciliano.

O interesse do público pelo esoterismo; a per-cepção, por parte das editoras, de que se tratava deum mercado promissor e a divulgação de temas“esotéricos” de uma rede variada (jornais alternativos,cursos, Workshops, propaganda boca a boca),possibilitou que os livros “esotéricos” alcançassemampla vendagem, alguns, inclusive, tornando-se bestseller, embora não sejam assim classificados.

No entanto, quando a vendagem de alguns títulostornou-se muito expressiva, a mídia, reconhecendo oseu sucesso junto ao público, passou a noticiá-los como

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livros que “batem recordes” de vendagem. PauloCoelho, o nosso mais bem sucedido autor, é o melhorexemplo desse fato.

Os lançamentos de O diário de um mago e As brumasde Avalon foram os grandes marcos na consolidaçãodesse segmento editorial, divulgando, assim, essatemática junto ao um público bem amplo. Essaliteratura, “alavancada” por Paulo Coelho e MarionZimmer Bradley, representou um filão de imensaexpressão comercial e sucesso midiático. Sucesso quefoi avaliado pela mídia como fenômeno comercial enão enquanto gênero literário de qualidade.

A divulgação, nessas obras, de mensagens “esotéricas”tem sido feita através de histórias romanceadas queapresentam ao leitor “vivências por diversas crenças,saberes, símbolos e representações de diferentes tradiçõesdo pensamento cristão e pré-cristão. Assim, como enfatizaPereira, “(...) descortina-se um universo mágico-religioso marcadopor uma diversidade temática simbólica: peregrinação religiosa,anjos, alquimia, bruxas, realização de milagres, a descoberta daface feminina de Deus (...)” (PEREIRA, 1998: 02).

Durante a década de 80, a mídia impressa tambémnoticiou livros que tratam de práticas esotéricasespecíficas, como “pirâmides” ou “oráculos”, ava-liando esta ocorrência como algo ligado ao modismodo momento. Os livros que tratam das artes divina-tórias foram, nessa época, noticiados como um pro-duto com grande apelo comercial.

Algumas considerações finaisAo final da década de 80, portanto, o mercado de

livros esotéricos já se encontrava bastante consolidado,

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Religião no contexto midiático

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mas ainda provocava avaliações jocosas e críticasda mídia. A perplexidade da mídia frente à explosãodo esoterismo era bastante acentuada: buscava-se,recorrentemente, as explicações para esse fenômenono “faro” comercial dos editores. A mídia tendeu,assim, a vincular a expansão desse mercado a umalógica consumista.

No entanto, apesar das desconfianças desses setores,observa-se, a partir da década de 80, uma “eferves-cência” do esoterismo nas grandes cidades brasileiras,especialmente no Rio de Janeiro e São Paulo. As práticasmísticas e esotéricas foram encontrando espaço nocotidiano da vida de um número cada vez maior deindivíduos. A mídia impressa captou essa tendência jáno início da década de 80, colocando esse fenômeno“em circulação”, contribuindo, assim, para apopularização desse universo.

Entre avaliações de ceticismo, ironia e simpatia,a mídia destacou a grande movimentação em tornodo esoterismo, enfatizando que a sua popularizaçãoera um fenômeno em ascendência. A visibilidadeadquirida por esse universo foi também auxiliada porsua exposição no espaço midiático, que captou suastendências e colocou-as em circulação, propiciando aconsolidação de um “mercado”. Mercado que, comopudemos observar, em várias ocasiões ela “denun-ciou”, mas que tem se revelado promissor, pois atuanum campo onde se encontra: espiritualidade, lazer,cultura entretenimento e consumo.

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Referências bibliográficasAMARAL, Leila. Carnaval da alma: Comunidade, Essência eSincretismo na Nova Era. Petrópolis: Vozes, 2000.

______________. Sobre a radicalidade do trânsito religioso nacultura popular de consumo. Trabalho apresentado na MR 04“Insurgências no campo religioso”, no Seminário Internacionalde História das Religiões e III Simpósio Nacional da AssociaçãoBrasileira de História das Religiões “Insurgências e Ressurgên-cias no Campo Religioso”, Recife, 20 a 22 de Junho de 2001.

CONTEPOMI, Maria Del Rosário. Nova era e pós-moderni-dade: Valores, crenças e práticas no contexto socioculturalcontemporâneo.

D‘ANDREA, Anthony A. F.. O self perfeito e a nova era:individualismo e reflexividade em religiosidades Pós-tradicionais. Rio de Janeiro: Iuperj, 1996.

DUARTE, Joelma P. Para além do alternativo: um estudo sobrea expansão da cultura nova era através da mídia impressa.(Dissertação de mestrado). Juiz de Fora: PPCIR/UFJF, 2003.

STOUT, Daniel A. e BUDDENBAUM, Judith, (orgs). Religionand culture: studies on the interacion of wordviews. Iowa:Iowa Press, 2000.

Notas1 Algumas correntes religiosas criticam e condenam a mídia decultura popular configurando, assim, uma guerra entreinstituições religiosas e indústrias de entretenimento. Nessaabordagem, considera-se que a mídia intensifica o caráter “su-perficial” da mensagem religiosa, agravando o problema dasecularização vivenciada no interior das Igrejas (JORGENSEN,1994: 282). Por outro lado, Stout e Buddenbaum (2000) minimi-zam a idéia de “guerra de cultura”, haja vista que as instituiçõesreligiosas criam e participam da cultura popular de consumo.2 A análise deste item do artigo encontra-se ancorada numaextensa pesquisa junto às fontes primárias que recobremos jornais da grande imprensa do período, maisespecificamente o Jornal do Brasil, O Globo, a Folha de SãoPaulo e a revista Veja. Cf. Duarte (2003).3 Nome iniciático de José Linhares Filho, que em “afro-sânscrito” significa “nuvem de felicidade”.4 Espaço alternativo criado em 1984 para o encontro, cursoe venda de produtos relacionados às ciências ocultas.

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Religião no contexto midiático

Ano 11, nº 21, 2º semestre de 2004

* Fátima Regina Gomes Tavares é Doutora emAntropologia (IFCS/UFRJ); professora do Programa de

Pós-graduação em Ciência da Religião da UFJF.** Joelma do Patrocínio Duarte é Mestre em Ciência

da Religião (UFJF).

JORGENSEN, Knud. “Modernity, information technology andCristian faith.” In: Sampson, Philip; SAMUEL, Vinay & SUGDEN,Cris (ed.). Faith and modernity. Oxford: Regnum Books. 1994.

PEREIRA, Magda V. dos S., O universo místico-religioso da obrade Paulo Coelho na ótica de seu leitor. Trabalho apresentadono seminário temático STO “Nova Era e o complexoAlternativo”. VIII Jornadas sobre Alternativas Religiosas naAmérica Latina São Paulo, 22-25 de setembro de 1998.

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Mídia, religião e política:Mídia, religião e política:Mídia, religião e política:Mídia, religião e política:Mídia, religião e política:a ea ea ea ea evangelização davangelização davangelização davangelização davangelização da

campanha presidencialcampanha presidencialcampanha presidencialcampanha presidencialcampanha presidencialAlexandre Brasil Fonseca*

RESUMONas eleições gerais de 2002, mereceu destaque na imprensa aevangelização da campanha para presidente do candidato AnthonyGarotinho. Compreendemos seu caso como um interessanteexemplo em que mídia e política se encontraram intermediadaspela religião. Inicialmente, apresentamos um breve perfil dopolítico, para, em seguida, abordarmos sua atuação eleitoral. Emnossa conclusão, salientamos o alcance e a limitação querepresentou assumir-se como “candidato evangélico”.Palavras-chave: Evangélicos e mídia; pentecostalismo; mídia e política.

ABSTRACTMedia, religion and politics: the candidacy of Anthony Garotinho andthe evangelization of the presidential campaign. In the general electionsof 2002 the evangelization of Anthony Garotinho campaign for presidentwas pointed out in the press. His case is understood as an interestingexample where the media and the politcs reach an interection by the meansof religion. Initially we present a brief profile of the politician, and afterthat an approach on his electoral perfomace. In our conclusion, we pointout the campaign’s reach as well as its limits once the politician assumed aposition of an “evangelical candidate”.Keywords: Evangelicals and media; pentecostalism; media and politics.

RESUMENMedios, religión y política: la candidatura de Anthony Garotinho y laevangelización de la campaña presidencial. En las elecciones generales de2002 la evangelización de la campaña para presidente del candidato AnthonyGarotinho mereció prominencia en la prensa. Entendemos su caso comoejemplo interesante donde medios y política si relacionan por intermédio de lareligión. Presentamos inicialmente un breve perfil del político, para despuésacercarnos de su acción electoral. En nuestra conclusión, precisamos el alcancey la limitación que representaron para él asumirse como “candidato evangélico”.Palabras clave: Evangélicos y medios; pentecostalismo; medios y política.

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Mídia, religião e política: a evangelização da campanha presidencial

Ano 11, nº 21, 2º semestre de 2004

Nas eleições gerais de 2002, mereceu destaquena imprensa o desempenho e a atuação docandidato do Partido Socialista Brasileiro (PSB)à Presidência da República, Anthony Garotinho.No início do horário eleitoral gratuito, apresentou-se como estadista e posou ao lado de figurashistóricas como Getúlio Vargas e JuscelinoKubitschek. Durante a campanha, destacou-se porpossuir um discurso mais duro em relação ao sis-tema financeiro, por seu comportamento de“franco-atirador” nos debates e, principalmente,devido a sua filiação religiosa: evangélico.

Fez parte de sua estratégia, evangelizar acampanha. Toda uma estrutura paralela foi criadano interior da comunidade evangélica, possuindo amídia, especialmente o rádio, importância centralnesta construção. Desde 1999, era possívelidentificar articulações em torno de uma possívelcandidatura de Garotinho à Presidência e, nesseprocesso de nacionalização do seu nome para aviabilização da campanha, a veiculação de programasem emissoras de rádio evangélicas.

Neste artigo, abordaremos elementos quecaracterizam a atuação de Garotinho. Compreen-dermos o caso como um interessante exemplo emque mídia e política se encontraram intermediadaspela religião. Inicialmente, apresentamos um breveperfil, para em seguida citarmos sua atuaçãoeleitoral, o uso da mídia e a evangelização da cam-panha. Por fim, em nossa conclusão, salientamos oalcance e a limitação que representou assumir-secomo “candidato evangélico”.

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Garotinho: radialista, político e evangélicoNascido em Campos - cidade de 400 mil habitantes

no norte do Estado do Rio de Janeiro - em 1960,Anthohy William Garotinho Matheus de Oliveira é defamília de classe média baixa. Seu pai, um advogado,faleceu quando Garotinho tinha 15 anos e, nessecontexto, sua mãe sofreu de depressão. Foi criado porseu avô, um pequeno comerciante libanês, com quemmanteve boa relação. Com a perda do pai e a doençada mãe, acabou se tornando um “adolescente rebelde”.Acabou canalizando suas energias para o teatro amadore para a militância estudantil, tendo sido convidado aparticipar, como líder do grêmio da escola, do PartidoComunista (PC). Foi no movimento estudantil, durantea ditadura, que iniciou suas atividades políticas.

Nos estudos chegou a cursar técnico emcontabilidade, mas foi o teatro a primeira paixãolevando-o ao Rádio. As peças escritas e encenadaspor Garotinho, em Campos, caracterizavam-se pelapreocupação social, provavelmente fruto de seuenvolvimento com grupos relacionados ao PartidoComunista na cidade. Com 16 anos, ao falar em umarádio para divulgar uma peça que encenava, foiconvidado a tornar-se locutor da emissora. Suasemelhança com um famoso radialista cariocachamado Garotinho lhe conferiu o mesmo apelido.

Segundo Garotinho, a popularidade de seuprograma foi importante na organização da primeiragreve dos cortadores de cana de Campos, após aabertura política, participando na mobilização. Dessaépoca, lembra-se da importância de sua participaçãono rádio e nos piquetes em frente às usinas: “usei o

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meu programa para denunciar a oligarquia de Campos eorganizar o povo através de sindicatos para quebrar ahegemonia dos usineiros” (Entrevista, 10/04/2002). Osindicato dos trabalhadores rurais acabou de-sempenhando importante papel para o início de suacarreira política, saindo candidato a vereador pelo PT.Mesmo sendo o mais votado, não se elegeu devido aobaixo quociente eleitoral conseguido pelo partido.

Como retaliação, após as eleições, não conseguiuemprego em mais nenhuma emissora na cidade. Paraconseguir um horário e continuar trabalhando emrádio, seria necessário alugar um horário. Para tanto,foi solicitar ao governador recém-eleito Leonel Brizola1

um patrocínio do banco estadual (Banerj). Além deconseguir o patrocínio, Garotinho também decidiutrocar o PT pelo PDT em 1983, por considerar opartido em Campos um “grupinho sectário”.

Nas eleições de 1986, então com 26 anos, foieleito deputado estadual alcançando 36 mil votos.Em 1988, foi lançado como candidato das oposiçõesà prefeitura para derrotar a oligarquia canavieira deCampos e acabou ganhando as eleições. Comoprefeito, manteve, durante todo o seu mandato, umalto índice de popularidade.

Ao terminar seu mandato, assumiu a SecretariaEstadual de Agricultura, cargo em que permaneceuaté 1994, quando foi escolhido para ser candidatoao governo do Estado. O desgaste do brizolismo noEstado era grande, associado agora fortemente porseus opositores ao banditismo e à incompetênciaadministrativa. Sua campanha caracterizou-se peloafastamento da desgastada figura de Brizola e, con-

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tra os prognósticos, acabou chegando ao segundoturno, quando perdeu por pequena margem de votospara o ex-brizolista Marcello Alencar do PSDB.

É durante a campanha que, segundoGarotinho, ocorre o fato mais importantede sua vida. Entre uma viagem e outra, pelointerior do Estado, seu carro sai da pista eele é lançado para fora do veículo. Gra-vemente acidentado, é levado para um hos-pital onde é operado por várias horas. Du-rante a sua recuperação é que acontece suaconversão, como relata em seu livro Virou ocarro, virou a minha vida:

“Às 3 da manhã, no quarto do hospital,recém-operado, pude ver o acidentepassando na minha frente como se fosse umfilme, cada detalhe. (...) Sentia que era algosobrenatural, da parte de Deus. Aquela visãome fez entrar numa crise convulsiva de choro.Chorei várias horas naquela madrugada, maisdo que todas as vezes que chorei em toda aminha vida. E eu sentia algo quente queimandodentro de mim” (p. 34).

Após a derrota, Garotinho precisava reorganizar suavida. Opta por continuar morando no Rio de Janeiro,onde retoma a profissão de radialista. Em 1996, voltoua residir em Campos, onde foi lançado candidato aprefeito. Havia certa resistência a seu nome comocandidato por ele estar afastado da cidade, comoconseqüência do estabelecimento de sua vidaprofissional e política fora da cidade. Mesmo assim, saivitorioso ainda no primeiro turno, com 74% dos votos.

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Nas eleições para governador, em 1998,Garotinho sai novamente candidato tendo oimportante apoio do PT o que acaba lhe garantindoum número de votos na capital que não obteve nopleito anterior. Sua imagem vinculada ao fato de serdo interior, de ter como nome um diminutivo“Garotinho”, associado à sua juventude (eleitogovernador com 38 anos) ao lado do apelido comque é conhecido nas esferas íntimas “Bolinha”,provavelmente contribuíram para sua negação porgrande parte da sociedade carioca, especialmente dasclasses médias e elites.

A atuação política de Garotinho é direcionada paraos mais pobres e miseráveis, reflexo de sua longafiliação ao PDT, e que teria na figura do banguela seutarget preferencial. Garotinho formou-se dentro dobrizolismo respeitando a perspectiva da democraciasocial ou mesmo dentro do escopo populista. Seuprojeto político poderia ser definido pela:

“elaboração de estratégias voltadaspreferencialmente para os excluídos detodos os matizes. A opção pelos pobres eexcluídos em geral. A estética, centrada nafigura expressiva e perturbadora do riso ougrito sem dentes, a boca escancarada dobanguela, que representa o homemdestituído da potência cívica da cidadania edos bens que ela implica. [...] Ser brizolistasignifica ser meio cafona, dessarrumado.Significa estar, premeditadamente, fora dospadrões estéticos supostamente burgueses”(Sento-Sé, 1999, p. 155 e 195).

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Uso da mídia e evangelização em umacampanha eleitoral

Pesquisas apontaram que Garotinho mereceu umpercentual significativo de votos evangélicos,enfrentando uma série de dificuldades operacionaisem sua campanha em um pequeno partido. O uso dorádio foi central em sua estratégia que visava pescarvotos primeiramente no aquário evangélico, paradepois se aventurar diante da disputa de eleitores emmeio ao mar revolto e aberto de uma campanha. Emrelação aos evangélicos, investiu pesadamente naUniversal e na Assembléia de Deus e afirmou-se en-tre os pentecostais, voltando também, sua atençãoaos batistas e tendo garantido a identificação comalguns outros históricos, ao manter viva sua filiaçãoao presbiterianismo. Enfim, ele compôs um blend atéentão inédito para esse setor religioso.

Logo após a vitória para governador, temos a presençana mídia foi intensa. Fora dois programas de rádio, umdiário e outro aos sábados, foi possível, durante um curtoperíodo de tempo, acompanhar o governador “prestandocontas” em um programa de televisão também veiculadonas manhãs de sábado pela TV Record.

Um dos principais locais para a divulgação da idéiada presidência foi o programa de rádio A Paz do Senhor,Governador. O programa era apresentado, diariamente,na Rádio Melodia às 10h50, sendo repetido às 16h epossuía duração média de dez minutos. Totalmentevoltado para os evangélicos, nele eram lidas cartas etrechos da Bíblia, além de conversas com o entãodeputado Francisco Silva sobre as ações do governo.No domingo à noite, Palácio das Laranjeiras, residência

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oficial do governador, eram gravados, de uma vez, ostrechos que seriam transmitidos durante a semana.

Monitoramos 51 programas transmitidos no finalde 1999 e em meados de 2000. Nos últimos quinzedias de dezembro, por exemplo, apareceram em dezprogramas referências à candidatura de Garotinho àPresidência, o que sempre era questionado por ele numambiente de cordialidade e diversão. Silva dizia “tôfalando” quando em alguma carta alguém falava napossibilidade de ele ser presidente. E ele respondiabem humorado algo como: “calma, você tá muito afobado...você vai acabar me complicando2”. Os dois são especialistasno rádio e acabam produzindo um espaço em que, deforma leve e agradável, oferecem entretenimento aopúblico e recolhem milhares de cartas, endereços quesão importantes para as campanhas eleitorais.

O programa era feito a partir da leitura de cartasenviadas a Garotinho, que aproveitava para comentarações e planos do governo ou para convidar os ouvintespara diferentes eventos relacionados à sua administraçãoou relacionados a viagens para pregação patrocinadaspela Associação dos Homens de Negócio do EvangelhoPleno (Adhonep). Com o objetivo de tornar sua rádiouma rede nacional, Silva já havia feito acordo com umempresário de São Paulo e a emissora passou a ter suaprogramação também transmitida lá.

Já no ano de 2000, com maior volume de cartas evários outros acordos com emissoras de diferentesestados (MG, PE, AL, PB, PA, PR, DF, SP e AM)para a retransmissão, temos somente a leitura dosremetentes (cerca de 20 por programa). Leituras daBíblia e orações por temas específicos também são

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feitas. Na imprensa, eles apareceram como parte daestratégia para a candidatura do governador àPresidência, objetivando fazer o seu nome conhecidofora do Rio de Janeiro. Garotinho nega essa versão:

“Os acordos que ele faz é porque ele temo projeto de tornar a Melodia uma redenacional, não é para divulgar o programa.(...) hoje ele só tem [entre deputados] com oSilas Câmara na região norte e com o Máriode Oliveira de Minas [não há mais transmissãoem PE e AL] [...] Acho que é negócio derádio, eu nunca me envolvi com isso. [...] Como deputado Silas Câmara, tenho que fazerum esclarecimento, não há envolvimento doFrancisco Silva. Tanto que eles nãotransmitem a Rede Melodia. Eles sótransmitem o meu programa. As outrasrádios, como a de São Paulo, Paraná, Brasíliae a de Minas, transmitem toda a programaçãomusical, a Rede Melodia. As rádios do pas-tor Samuel Câmara transmitem só oprograma A Paz do Senhor Governador e éuma deferência a mim, como amizade minhacom ele” (Entrevista, 10/04/2002).

Ao analisarmos as cartas que foram lidas nosprogramas que monitoramos, encontramos algumasinteressantes informações: 40% delas foram escritaspor membros da Assembléia de Deus e 20% porbatistas, confirmando a maior adesão dessasdenominações - as maiores do Brasil - à emissora(cf. Fonseca, 2003). No período, foram feitas mençãoa 218 cartas. Destas, 117 foram enviadas de cidades

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do Rio de Janeiro, sendo 34 cartas da capital e 35 daregião da Baixada Fluminense. Apenas cinco dos queescreveram eram fiéis da Igreja Universal.

Se pelo rádio ele atingia, no final de 2000, oitoEstados, com um público potencial de 15 milhões deouvintes/eleitores (JB, 10/12/2000), suas viagenspara pregar também foram recorrentes, tendo elepregado, em seu primeiro ano de governo, em diversasocasiões. Durante os dois meses que acompanhamosseu programa de rádio, ele pregou em nove ocasiões,duas em São Paulo, duas em Minas Gerais, uma emGoiás, uma no Mato Grosso do Sul, uma no Rio deJaneiro e duas no Nordeste (Recife e São Luís).

É fato que sua atividade religiosa teve momentosde mais intensidade, como o final de 1999, emomentos de afastamento, quando esteve decidindoa sua transferência para o PSB (final de 2000). Omês de abril de 2001, foi um período em que eleretomou intensamente sua agenda religiosa,motivada pelo lançamento de seu livro-testemunho.Foi realizado um “culto de consagração” na cidadede Volta Redonda (local onde ocorreu o acidente),uma coletiva de imprensa para os jornais e revistasevangélicos, participação em programas de rádio etelevisão dirigidos por evangélicos, além de pregaçõesnas convenções da Igreja Assembléia de Deus (emSão Paulo) e Batista (no Espírito Santo). O lan-çamento aconteceu no stand da Sociedade Bíblicado Brasil na Bienal Internacional do Livro.

Os líderes políticos não souberam capitalizar atéo momento, de forma tão eficiente quanto Garotinhoe sua equipe, uma ação e presença entre os evangélicos.

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Garotinho tem feito isto motivado pela sua capacidadede comunicação ao lado de uma assessoria que, deforma competente, tem sabido apresentá-lo a estetarget. Tudo teria começado com Benedita da Silvaque, ao vê-lo falar de sua conversão em uma igreja,aconselhou-o a fazer isso mais regularmente, pois suafala era “muito sincera”. Político com paixão pelomicrofone e animado com a possibilidade de contarsua conversão, dedica-se às viagens onde dá o seutestemunho. Eram agendadas, regularmente, ati-vidades em várias igrejas, sendo a preferência de suaequipe as Assembléias de Deus. Os convites tambémsurgem e dessa forma ele foi compondo uma intensaatividade religiosa.

Quanto eleitoreira foi essa atividade? Parece-meque, para Garotinho, isso não representava umaquestão, já que ele mesmo considerava suaadministração como um governo-campanha. Mesmoem suas atividades regulares da administração, eleas compreendia como atividades referentes a umacampanha política, chegando a afirmar que viajavamuito pelas cidades do interior para que o prefeitolocal não ganhasse prestígio sozinho graças a umainauguração feita com recursos do Estado.

Ao comentar se havia um aproveitamento eleitoraldo ex-presidente e tradicional político mineiroTancredo Neves em sua relação com váriasirmandades católicas do Estado, o padre e historiadorJosé Oscar Beozzo afirma: “Eu não vou dizer assim.Tancredo era um homem profundamente religioso. Agora,era um político. Por isso que eu disse que ele entrou em todasas irmandades” (Dines et al., 2001, p. 56). A mesma

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frase, mutatis mutandis, aplica-se à relação queGarotinho estabelece com as igrejas evangélicas.

O segredo de seu êxito talvez esteja exatamentena clareza de seu staff do papel eleitoral dessaatividade, aliado ao prazer que ele tem em fazer isso.Durante a entrevista, comentei o quão irresistívelpara a comunidade evangélica era sua pregação -ponto que trataremos adiante - o que ele no final,uma hora depois, retomou animado: “Você gostou daminha pregação?”. Meio sem entender a pergunta, elelembrou-me de que tinha dito que ele foi “irresistível”na noite anterior. Argumentei que fazia referênciaao quanto ele era atrativo para o público evangélicoe não ao conteúdo ou forma. Um pouco desiludido,disse: “Você tem que me ver pregar, aquela não valeu”.Respondi que já o tinha visto pregar em sua igrejalocal, no culto de aniversário da comunidade. Elerespondeu empolgado: “Aquela foi a minha primeiravez, não valeu. Agora estou pregando muito melhor.”

Suas formulações fundamentadas na idéia de“mudar o homem para mudar o mundo” parecem-meirresistíveis para a comunidade evangélica. Este foi omote das pregações que Garotinho fez por todo o país.A partir de uma “parábola” ele conta que um profes-sor de geografia atarefado com a correção de provas eapós ter sido incomodado por seu pequeno filho, fazum desafio a este na esperança de conseguir um tempomaior de sossego. Ele corta um mapa do mundo,entrega para o menino e pede que ele o monte. Certoda incapacidade do filho para a tarefa surpreende-seao ver que o menino havia executado a tarefa empouco tempo. Como isto teria sido possível? O filho

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responde que de fato não tinha idéia nem de comocomeçar, até o momento em que viu no verso de umadas peças o braço de um homem. Ao observar osversos das outras figuras foi consertando o homem eno final o mundo também estava consertado. A únicaforma de consertar o mundo para ele seria porintermédio da pregação cristã a qual, graças ao novonascimento, formaria novos homens, os quais, então,estariam aptos a tornar o mundo mais justo.

Fora esse apelo por uma maior atividade religiosados fiéis, Garotinho mantém sua associação a uma igrejatradicional e se define como professor da EscolaDominical. O somatório destas características talvezconfira a ele um apoio maior do que o esperado pelamaioria dos analistas que consideram a heterogeneidadeevangélica à qual vem, até o momento, sendo bemcoberta por Garotinho e sua equipe, garantindo umasignificativa receptividade, o que foi demonstrado tantopor sua aceitação entre os evangélicos no Rio de Janeiro- maior do que no conjunto da população - comotambém em seu desempenho nas eleições presidenciais.

Seu desempenho na campanha presidencialchamou a atenção, pois concorreu com poucosrecursos e sem apoio de uma efetiva estruturapartidária. A vitória de sua esposa nas eleições doRio de Janeiro o manteve em sua plataforma políticalocal. No início da gestão, ocorreram diversas cri-ses, as quais redundaram em mais uma mudançapartidária que levou o casal a ingressar no PMDB,ao lado de uma atuação discreta de Garotinho comosecretário de segurança pública. A estratégia adotadapara a campanha presidencial, provavelmente,

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guardava principalmente o desejo de representar umteatro e perceber suas possibilidades. Também haviao cálculo de que, em uma eleição sem polarização ecom quatro candidatos destacados, o diferencialevangélico poderia dar condições para uma chegadaem segundo lugar, para participar de nova disputaem que novos elementos estariam estabelecidos.

Certamente, Garotinho vivencia aquilo que Rich-ard Sennet chamou de “personalização da política”,característica central da prática política numasociedade capitalista. Para Saes, teríamos, nestaprática, uma espécie de “populismo Stricto sensu”, emque “o líder político que, na sociedade capitalista, parte embusca de poder obtém credibilidade e legitimidade junto a umcerto público não pelo conteúdo das suas ações políticas oupelos seus programas políticos e sim pelo tipo de homem queele mostra ser” (Saes, 2001, p. 73).

Evangélico, pai de nove filhos, sendo cincoadotados, marido que se diz apaixonado e que se de-fine como marido romântico, com uma esposapresente, desinibida e participante, são as marcas queGarotinho vem difundindo na mídia. Para ele, nãopassam de suas características pessoais, as quais,somadas a uma propalada capacidade administrativae probidade, formariam o “produto Garotinho”. Sobrea associação de suas práticas ao populismo ele rebate:

“Respondo com a minha história os queme acusam de populista. Quando comecei norádio usei o meu programa para denunciar aoligarquia de Campos e organizar o povoatravés de sindicatos para quebrar a hegemoniados usineiros. [...] Em meu mandato em Cam-

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pos eu criei algo muito mais forte que oorçamento participativo do PT que era oConselho Popular. Em cada bairro da cidadetinha um grupo que discutia em que apopulação queria que o dinheiro público fosseaplicado ali. Em 1989 Campos chegou a ter 5mil conselhos. Me reunia com os Conselhostodo o mês e envolvia muito mais gente doque a proposta do PT. [...] Me chamar depopulista por quê? Agora, uma coisa que nãovou abrir mão, além de ter essa organizaçãoque faz com que haja uma democraciaparticipativa, é de uma linha direta com apopulação” (Entrevista, 10/04/2002).

Definir populismo não é tarefa fácil. Porém, basta-nos, no atual contexto, voltar nossas atenções para asabordagens que sublinham o impedimento de uma efetivaparticipação da população no processo político a partirde uma política de manipulação das massas (Gomes,1996). Sobre isto, Garotinho foi certeiro em sua defesa,assumindo-se como político que busca incentivar aparticipação, contrapondo-se à idéia de manipulação.Interessa-nos, neste momento, indicar que, de um modogeral, a associação de Garotinho a uma política populista- já chamada de “neopopulismo” ou de “discretopopulismo” na imprensa - dificilmente não estaráassociada à sua figura. Tanto pelo discurso e práticascomo também por sua origem dentro do brizolismo e,principalmente, pelo caráter popular que adota em suaprática, estando posto constantemente para ele o fio danavalha entre reproduzir ou não práticas populistas emsuas administrações e em suas campanhas eleitorais.

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ConclusãoEram dois os principais grupos que ansiavam

promover a candidatura de Garotinho. De um lado,aqueles da chamada República de Campos, amigos docírculo íntimo do governador que ocupavam postos-chaves no governo, e, de outro, os evangélicos. As críticasà condução deste projeto partiram de todos os lados,desde o primeiro ano de governo, especialmente daquelesque em algum momento atuaram como aliados.

São comuns as acusações de que Garotinho poriaem perigo a democracia por unir Igreja e Estado. Emsuas formulações, poderíamos identificar mais umaaproximação da religião com a política, prática recorrenteem nossa história, estando ele distante de qualquerestrutura que remeta a uma espécie de teocracia. Paraele, “dá perfeitamente para conciliar o Estado secular, um Estadoque não tenha religião, laico, mas em que cada um, individualmente,tenha a sua fé. Creia em Deus e você possa viver numa sociedadeplural” (Entrevista, 10/04/2002), numa configuração quefoi definida por Demerath (2001) como de um estadosecular ao lado de uma política religiosa.

Por outro lado, ao defender esta divisão, ao contráriodo que prega a Teologia da Libertação, p. ex., ele acabapromovendo separação entre a suas crenças religiosase a política. A fé oferece alguns indicativos, mas suareal contribuição estaria mais direcionada ao indivíduoe a sua salvação: “o cristianismo é uma doutrina de vida,uma doutrina social importante, tem ensinamentos políticosimportantes que podem ser aplicados. Ensinamentos éticos damaior importância e é, sobretudo, uma preparação para umaoutra vida” (Entrevista, 10/04/2002). Compreensão dopapel da religião, completamente fora da prática política,

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e que fica explicitado em sua pregação. Realidade quese aproxima da prática encontrada por Novaes (2001),na qual os pentecostais “religiogizavam” categoriaspolíticas ao mesmo tempo em que as CEBs politizavamcategorias religiosas.

Garotinho corre por fora das estruturas eclesiásticas,não precisando sentir-se responsável pela manutençãoe ampliação das igrejas evangélicas. Assim, enquanto ocorporativismo é um elemento central para osdeputados, ligados a Igreja Universal do Reino de Deus,o qual sempre pôde ser relacionado à participação dospentecostais na política (Freston, 2001), em Garotinhoele não aparece, sendo mais perceptível, em sua ação,a presença de um discurso triunfalista em que, às vezes,ele é apresentado como um escolhido de Deus.

Como pontua Lima (2001), vivemos em umasociedade “media-centered”. Contexto em que a mídiapassa a substituir os partidos políticos, sendo a princi-pal mediadora entre os políticos/candidatos e oseleitores. A mídia passa a ser responsável pelafiscalização do poder público, pela definição das agen-das relevantes, pela crítica das políticas públicas, porta-voz das demandas da população para o governo. Estarna mídia passa a ser o anseio de todos os políticos eesfera privilegiada de ação, a qual, no caso de Garotinho,encontrou na religião importante ponte para lhe garantirconstante presença entre determinado eleitorado.

Político profissional com longa história demilitância política e vários êxitos eleitorais, Garotinhoe seu grupo identificaram em sua conversão umimportante elemento de sua biografia, o qual passou aser constantemente acionado durante sua gestão como

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Mídia, religião e política: a evangelização da campanha presidencial

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governador. Nos três anos em que governou o Rio deJaneiro, seu discurso religioso manteve-se presente emsua presença na mídia e ampliou-se no início de suacampanha presidencial, onde buscou angariar o apoioda maior parcela possível de evangélicos, sendo estauma das estratégias de sua coordenação de campanha.

Sem tradição religiosa, a primeira tarefa foi assegurara veracidade de sua conversão. Para tanto, dedicou-sea viajar regularmente nos finais de semana para contaro seu testemunho. Profissional de rádio, se aproveitoudo meio para se fazer conhecido por intermédio de umarede nacional de emissoras evangélicas que foi montadaa partir do Rio de Janeiro. Dentro desta estratégia,escreveu um livro no qual conta sua experiência deconversão ao lado de alguns causos segundo os quais ofato de ser evangélico o teria influenciado positivamentenas decisões do governo. Em um ano, cerca de 50 milexemplares foram impressos. Nas diversas viagens quefazia para pregar, contava com o apoio e as bênçãos daAdhonep, empresários que pagavam os seus custos eque, certamente, tinham interesses nessa aproximação.

No início de 2002, foram escolhidos contatosnacionais e foi formado o Movimento GarotinhoPresidente. O objetivo seria auxiliar na formação deuma estrutura suprapartidária para a candidatura deGarotinho, não devendo a mesma preocupar-sesomente com a campanha entre os evangélicos, massim no conjunto da sociedade. Não nos foi possívelverificar a extensão e a efetividade dessa proposta,porém parece-nos que, para Garotinho e seu grupo,a comunidade evangélica representou um importanteespaço para a conquista de votos e para a viabilização

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de uma campanha nacional. A organicidade dasigrejas e sua capilaridade social são característicasque favoreceram essa estratégia.

Bom comunicador e bem assessorado teve acessoa diferentes púlpitos em todo o País. Em suaspregações, abordava tópicos incomuns para a maioriados fiéis presentes. A questão da justiça social e acondenação da política econômica adotada eramrecorrentes, além da identificação dos problemasnacionais e a necessidade de enfrentá-los, porém, seusdiscursos também salientavam a importância da igrejae da atividade evangelizadora. Esses elementos davamforma a uma mensagem que parecia ser irresistívelpara boa parte de seus ouvintes da seara evangélica.

Os discursos de Garotinho só foram possíveis nomomento em que a presença da religião, na esferapública, se dá por sua defesa da liberdade individualde consciência, não postulando qualquer tipo deinterferência da visão religiosa de mundo para oconjunto da sociedade. A autonomia das esferas émantida e são exigidas, em diferentes momentos esituações, explicações sobre a existência de misturada religião com a política, do privado com o público.

Na sabatina promovida pela Folha de S. Paulo (15/08/2002), o tema da religião foi um dos destaques naentrevista com Garotinho; porém, este se esquivoude perguntas específicas sobre como vivenciava suacrença, para então argumentar: “Sou candidato apresidente e não a pastor”. Políticos que adotam, comomote de campanha, sua identidade religiosa precisamdedicar-se a questões externas ao conjunto de termose valores intrínsecos à esfera religiosa.

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Mídia, religião e política: a evangelização da campanha presidencial

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Nas eleições de 2002, observarmos uma novainserção dos evangélicos na política, o qual se deu demaneira mais organizada, sendo coberto um leque maisamplo de filiações ideológicas a partir das diferentesdenominações. Nessa diversidade, poderíamos terpresenciado, por intermédio dos evangélicos - nopassado, associados à imagem de conservadores - e daevangelização de uma campanha presidencial comintenso uso da mídia, a eleição de um presidente de umpartido que se define como socialista.

Porém, não seria possível para Garotinho somar o“melhor dos dois mundos”, conseguindo, entre osevangélicos, a margem de votos necessários para oingresso no segundo turno sem com isso aumentar suarejeição entre os fiéis de outras religiões ou de pessoassem religião. Numa candidatura a cargo majoritário, aprática de “religiogizar” o discurso político só serveinternamente à comunidade religiosa, não sendo plausívelassumi-la como bandeira pública. Garotinho tentou fugirdessa caracterização, porém, a estratégia adotada em suacampanha foi colada à questão religiosa. O labelevangélico serviu como impulso para a viabilização desua candidatura ao ser veiculado regularmente na mídiavoltada para os evangélicos, entretanto, também acaboupor representar impedimento para sua expansão nomomento em que a grande imprensa e outras mídiasrepercutiram sua opção religiosa.

Notas1 Nesta união com Leonel Brizola estaria, talvez, a primeirainclinação de Garotinho para os evangélicos. Brizola foi criadopor um pastor metodista, apesar de nunca ter adotado essareligião, assume os valores austeros da ética protestante,

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sendo percebido por Sento-Sé (1999, p. 163) uma “filiaçãomarcadamente cristã no discurso brizolista. Fazer políticanuma perspectiva brizolista é, fundamentalmente, assumircom radicalidade a opção pelos pobres e desvalidos”.2 A justiça proíbe que ocorra campanha antes do período

determinado pela lei eleitoral.

Referências BibliográficasDEMERATH III, Nicholas Jay. Crossing the gods: world reli-gions and worldly politics. New Brunswick: Rutgers Univer-sity Press, 2001.

DINES, Alberto et al. (orgs.). História do poder: 100 anos depolítica no Brasil. Ecos do parlamento. São Paulo: Editora34, vol. 2, 2000.

FONSECA, Alexandre Brasil. Evangélicos e mídia no Brasil.Bragança Paulista: Edusf; São Boaventura; IFAN, 2003.

FRESTON, Paul. Evangelicals and Politics in Asia, Africa andLatin America. Cambridge: CUP, 2001.

GOMES, Angela de Castro. “O populismo e as ciênciassociais: notas sobre a trajetória de um conceito”. In: Tempo,Rio de Janeiro, v. 1, n. 2, 1996, p. 31-58, dez..

LIMA, Venício. Mídia: teoria e política. São Paulo, PerseuAbramo, 2001.

NOVAES, Regina. A divina política: notas sobre as relaçõesdelicadas entre religião e política. Revista da USP, São Paulo,n. 49, 2001, p. 60-81, mar./mai..

SAES, Décio. República do capital: capitalismo e processopolítico no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2001.

SENTO-SÉ, João Trajano. Brizolismo. Rio de Janeiro: FGV &Espaço e Tempo, 1999.

* Alexandre Brasil Fonseca é doutor em Sociologiapela Universidade de São Paulo (USP), professor adjunto

do Departamento de Ciências Sociais e do Programa dePós-graduação em Ciências Sociais da Universidade

Estadual de Londrina (UEL) e autor do livro Evangélicos emídia no Brasil (2003).

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Diferentes possibilidadesDiferentes possibilidadesDiferentes possibilidadesDiferentes possibilidadesDiferentes possibilidadesda crueldadeda crueldadeda crueldadeda crueldadeda crueldade

Sônia Pedrosa*

Organizado pelas professoras da UniversidadeFederal Fluminense (UFF), Ângela Maria Dias e PaulaGlenadel, a partir de um congresso realizado em junhode 2003, e publicado em 2004 pela Atlântica Editora,a coletânea Estéticas da crueldade possibilita ummergulho aprofundado no tema proposto, a crueldade.Elaborada em quatro partes – teorias da crueldade;crueldade, artes e mídia; as narrativas da crueldade;poéticas da crueldade –, a coletânea materializa emlivro (páginas, letras e papel) a virtualidade do tema,transformando em realidade a reflexão sobre questõesda natureza humana e realizando em si o próprio“princípio da crueldade”, invocado pelo filósofoClément Rosset e tantas vezes lembrado pelos autoresno livro. A crueza da realidade, indigesta conformediz Rosset, e o sentido, único ou não, do real sãoimplacavelmente e, em certos momentos, cruelmentedestrinçados ao longo das 270 páginas da obra.

“Tudo o que age é crueldade”. A citação de AntoninArtaud em O teatro e seu duplo é usada em pelo menosdois ensaios do livro. “Do ponto de vista do espírito,crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacável,determinação irreversível, absoluta”, escreve Artaud.Aquilo que age, portanto, o que é enérgico, se confundecom o ser cruel. Assim, agem também, a partir de da

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reflexão inicial que se materializa na escrita e no papel,os criadores – filósofos, cineastas, escritores,dramaturgos, poetas – citados pelos autores dos textos.O Marquês de Sade, Clément Rosset, Artaud, JacquesDerrida, Emmanuel Levinas, Michel Foucault, GeorgesBataille, Rubem Fonseca, Sérgio Sant’anna, NélidaPiñon e até Camões são personagens que povoam aspáginas do livro e são referidos muitas vezes nasdiferentes visões de seus vários autores. Nas áreas daliteratura e do teatro, a primeira opção dos ensaístas dolivro é pelos autores que têm na crueldade a sua matéria-prima, como Rubem Fonseca e Artaud.

Cinema e jornalismo também são examinados à luzda crueldade da realidade. Destaques da segunda partesão: o texto de João Camillo Pena, Marcinho VP (um estudosobre a construção do personagem) – que mostra como ojornalismo pode ser cruel em seu relacionamento com oreal –, o ensaio de João Maia, O cruel: cinema e criatividade,e o trabalho de Ângela Gandier, O Invasor de MarçalAquino: quando os manos e o bacanas cheiram o mesmo pó.

O texto sobre Marcinho VP na mídia revela, naconstrução deste personagem, um misto deespetacularização do crime e de reafirmação do lugarreservado ao bandido, ao marginal, na sociedade – ondeo personagem abordado não tem voz, apesar dos seuspretensos “declaratórios”, como diz João Camilo Pena.E nos dá a exata consciência do julgamento de valor eda condenação simultânea que aplicamos,implacavelmente (cruelmente, portanto), àqueles queestão à margem das leis da sociedade. Mecanismos estesque se refletem nos espaços onde o senso comum setorna imperativo, como é o caso do jornalismo.

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Já os mundos inventados, as “fugas espetacularespara sobreviver de maneira suave” à dolorosa realidadedo real possibilitadas pela magia do cinema sintetizamuma das faces do ensaio de João Maia. Em O cruel:cinema e criatividade, três filmes são analisados à luz detrês diferentes posibilidade de crueldade. No primeirofilme, Encaixotando Helena, é apresentada a crueldadedo amor. Na análise de outro filme, Ódio, comenta-sea uma segunda possibilidade de crueldade, a social, apartir da qual a consciência de violência faz nascer aresistência, “com a invenção criativa de novaspossibilidades de vida”. O terceiro filme analisado,Os cinco sentidos, levanta “a possibilidade cruel da perdade sensibilidades para viver as coisas do mundo”. ParaMaia, se a violência generalizada é uma marca dasculturas das cidades, também o são as soluçõescriativas, os desvios e escamoteações inventados comoforma de resistência.

Ao longo dos 23 ensaios do livro, a crueldadeserá analisada sob os mais diferentes aspectos. Otexto de abertura da obra, de Ângela Maria Dias,opta pelo questionamento da estética que privilegiaa “culturalização bem pensante da miséria e dodesenraizamento”. Através desta, a estetização dapenúria e da privação seria, hoje, moeda correntenos eventos artísiticos-midiáticos. Outro tipo decrueldade, a partir das alteridades, adviria do espaçoglobalizado das influências, onde as tradicionaisconcepções de identidade nacional perderam avigência e sobrevem um esforço histórico para forjarum ideal de ego nacional. Segundo Dias, “avoracidade do olhar estrangeiro diante de nossa

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condição termina por revelar-se radicalmenteinscrita em nossa própria mirada sobre nós”. Ainjunção gerada pela “ninguendade” do TerceiroMundo, torna-nos então, segundo Ângela Dias,“estrangeiros para nós mesmos”.

Tanto o texto sobre a construção do personagemMarcinho VP, quanto O cruel: cinema e criatividade, deJoão Maia, e o trabalho de abertura de Ângela Diasapontam para uma outra forma de crueldade: acrueldade da invisibilidade, do não ver. O personagemMarcinho VP, por exemplo, apesar de representadona mídia, não tem voz, é apenas um bandido. Aameaça da perda de sensibilidade nesse mundo deriscos é o tema de um dos filmes analisados por JoãoMaia (Os cinco sentidos) e a “ninguendade” a que refereÂngela Dias é justamente esse não reconhecimentoda identidade nacional pelo olhar estrangeiro.

A integração de diferentes classes sociais a partirda criminalidade é o tema de O Invasor de Marçal deAquino: quando os manos e os bacanas cheiram o mesmo pó,sobre o romance que, conta a autora, Angela Gandier,virou filme antes de ser romance. Gandier comenta aadaptação do livro de Aquino para o cinema, em filmede Beto Brant, e seus desdobramentos a partir dasdificuldades vivenciadas, como a apresentação dosfatos a partir do ponto de vista de um narrador/personagem sem conhecimentos dos acontecimentosfuturos. Ma o que a história de Aquino problematizamesmo é a questão do crime disseminado em todasas esferas sociais. Da mesmo forma, Angela Gandierressalta que, no filme de Brant, a crítica destacouprincipalmente o encontro inesperado entre

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personagens de classes distintas. “Desrespeitando asregras invadindo privacidades, O Invasor mostra que,no Brasil, ricos e pobres cheiram o mesmo pó, e sebeijam na boca”, anuncia o texto, através da citaçãode uma crítica de cinema.

A aproximação de diferentes classes e a polêmicaque isso ainda gera nas sociedades urbana é encontradatambém no trabalho sobre Marcinho VP, quandocomenta o episódio da sua amizade com o cineastaJoão Moreira Salles e os desdobramentos decorrentes,como a exoneração de Luís Eduardo Soares do cargode coordenador de segurança do governador AnthonyGarotinho. Desconfiando que seu telefone estavagrampeado, Salles, que fornecia ajuda financeira a VPpara que este escrevesse um livro sobre sua vida, ficoucom medo de chantagem e buscou aconselhamentocom Soares. O conselho dado foi o anúncio à imprensada bolsa dada a VP, como forma de evitar polêmicamaior. Do ponto de vista de advogados consultadosnão havia problemas legais no ato. O choque daaproximação de classes, no entanto, quando tratadono reino da senso comum, o jornalismo – que nabusca por atender às demandas dos leitores não temmuito como escapar do discurso hegemônico – ganhacontorno espetaculares. Mobiliza opiniões, agride,repercute, espetaculariza-se, estetiza-se.

O desgate provocado pelo episódio, alardeado etratado à exaustão na imprensa, resulta na saída docoordenador de segurança. “A cobertura glamourizantee demonizante da mídia, impressionantementeredutora em sua estetização do crime, e desquali-ficação fácil das contradições do criminoso, é um triste

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depoimento sobre o estado do jornalismo brasileiro”,diz a certa altura o autor João Camillo Penna. Umafrase do coordenador do movimento Viva Rio, RubemCésar Fernandes, citada por Penna, resume bem o pontocentral de seu trabalho: “A bandidagem movimenta-secom desenvoltura e acinte na sociedade, seja no morroou no asfalto, na planície ou no planalto; chega a serhomenageada nas colunas sociais, mas não tem alegitimidade da pessoa humana”.

Nesse ponto devemos nos remeter a alguns dostextos da primeira parte de Estéticas da crueldade, textosque tratam da violência e do potencial destrutivo daracionalidade sem limites da sociedade moderna, umadistorção do projeto iluminista, como diz Vitor HugoAdler Pereira, em A lei do silêncio da violência. Para ele,“a capacidade de lograr o outro e impor sua vontade,principalmente nas situações em que é evidente suafraqueza, é considerada uma virtude que acompa-nhará o desenvolvimento do espírito burguês”. Adlerconclui que “combater a introjeção pelos oprimidosdas racionalizações para a opressão é tirar da sombraexplicações que podem se transformar emcontradiscursos e ter função liberadora”.

De forma mais enfática, também nesta primeiraparte do livro, Jair Ferreira dos Santos, em Literatura,crueldade e produtivismo, choca com a exposição inegávelda crueldade humana em relação ao animais, nosevidenciando então o caráter humano da crueldade. Oespetáculo de violência e brutalidade no tratamentode frangos que serão abatidos, descrito no texto, servepara mostrar que a crueldade representa um excessodentro da própria cultura. “Nós, os homens, somos

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os senhores absolutos da natureza e nada podeimpedir, se o fim é a nossa manutenção, que sejamoscruéis com as outras espécies”, provoca o autor.Crueldade e produtivismo alcançariam aí, de acordocom o autor uma isenção raramente questionada,representando a primeira um excesso, uma desmedida,“a violência mais alguma coisa, um abuso sem nomeintroduzindo um gozo que todos fingimosdesconhecer”. Por isso, os animais, lembra ele, sãoviolentos, ferozes, mas não cruéis.

Se na terceira parte (As narrativas da crueldade), éprincipalmente a literatura que fornece matéria-primapara a composição dos trabalhos apresentados, naquarta e última parte, a poesia é dominante,constituindo, no entanto, relatos muito mais herméticos,abstratos. Rubem Fonseca, com sua literatura delinguagem crua, a palavra afiada como arma,“antiplatônica por excelência”, como diz Vera Follainde Figueiredo, é a presença inevitável na terceira parte.

Antonin Artaud reaparece através do trabalho deRenato Cordeiro Gomes, Narrativa e paroxismo: serápreciso um pouco de sangue verdadeiro para manifestar acrueldade?, que retoma também o tema da crueldaderepresentada no cinema, com livros que viraramfilmes, como O invasor, de Marçal Aquino, mais umavez, e Cidade de Deus, de Paulo Lins. A discussãogira em torno da evidência de que a crueldadeverdadeira dispensa sangue, e se apóia na citação dotexto clássico de Artaud, Le théatre de la cruauté, demaio de 1933,. Diante do que na época seconsiderava a ameaça do cinema ao teatro, Artaudpropõe “um teatro de ação extrema, que assedie a

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sensibilidade do espectador”, e que constituiria assima aplicação e decisão implacável, a crueldade daquiloque age. Da mesma forma, ao final da leitura deEstéticas da crueldade, algo age sobre nós, pois ficanítida e clara a importância do exercício silenciosoe contido na reflexão que se encaminha para a ação,aquela que possui em si a potencialidade do cruel.

* Sônia Pedrosa, jornalista, é mestranda do Programa dePós-graduação em Comunicação na Faculdade de

Comunicação Social (FCS) da Universidadedo Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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Orientação editorial

Logos: Comunicação & Universidade é uma publicação semestral doPrograma de Pós-Graduação em Comunicação (PPGC) da Faculdadede Comunicação Social da UERJ. A cada número há uma temáticacentral, foco dos artigos principais; trabalhos de pesquisa abordandooutros temas serão aceitos a critério do Conselho Editorial.

1. Orientação Editorial1.1. Os textos serão revisados e poderão sofrer pequenas correções oucortes em função das necessidades editoriais, respeitado o conteúdo.1.2. Os artigos assinados são de exclusiva responsabilidade dos autores.1.3. É permitida a reprodução total ou parcial dos textos da revista,desde que citada a fonte.

2. Procedimentos Metodológicos2.1. Os trabalhos devem ser apresentados impressos em duas vias,acompanhados de disquete ou CD-ROM, gravados em editor detexto Word for Windows 6.0 ou 7.0 (ou compatível para conversão),em espaço duplo, fonte Times New Roman, tamanho 12. Os artigosdevem conter de 12 a 15 páginas (incluindo as referênciasbibliográficas e notas). As resenhas de obras recentes devem conterde três a cinco páginas.2.2. Uma breve referência profissional do autor com até cinco linhasdeve acompanhar o texto.2.3. Os artigos devem ser precedidos por um resumo de no máximocinco linhas, com três palavras-chave e versão em inglês e espanhol.2.4. As citações devem vir entre aspas, sem se destacar do corpo dotexto, devendo acompanhá-las imediatamente as notas bibliográficasentre parênteses. Exemplo: (SOBRENOME DO AUTOR, ano depublicação da obra, página correspondente).2.5. Eventuais notas explicativas devem ser numeradas no corpo dotexto. É desejável que sejam em quantidade reduzida. Devem serorganizadas em seguida à conclusão do trabalho e antes da bibliografia.2.6. Ilustrações, gráficos e tabelas devem ser apresentados em folhaseparada, no original, gravados no mesmo disquete ou CD-ROM,

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como um apêndice ao artigo, com as respectivas legendas e indica-ção de localização apropriada no texto.2.7. As referências bibliográficas, organizadas na última página, nãodeverão exceder dez obras, obedecendo às normas da ABNT. Exemplode referência de livro: (SOBRENOME DO AUTOR, Nome. Título daobra. Cidade: Editora, ano.). Os títulos de artigos de periódicos devemseguir o mesmo padrão, sendo o nome da publicação em itálico.Exemplo: (SOBRENOME DO AUTOR, Nome. Título do artigo.Periódico, Cidade: Editora/Instituição,v.XX, n.XX, p. XX-XX, mês, ano).

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