Ezra

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Ezra (trecho do conto publicado na revista Arte e Letra: Estórias # M)

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Trecho do conto Ezra, publicado na revista Arte e Letra: Estórias # M.

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Ezra (trecho do conto publicado na revista Arte e Letra: Estórias # M)

(...) aperto com força o cabo da faca e sigo em frente. a poucos passos da entrada da galeria, porém, uma algazarra me chama a atenção. uma voz estridente vibra numa caixa de som em mau funciona-mento. outras vozes fazem coro ao fundo. homens e mulheres também berrando, um desespero. paro para tentar entender o que estão dizendo, não consigo. resolvo, então, me levar pela intensi-dade dos gritos e chego a uma porta apertada, que se estende num tipo diferente de igreja. a voz da caixa de som é de um sujeito corpulento, de terno laranja, que se agita de um lado para o outro, pingando suor. com uma mão, segura uma bíblia de capa preta e, com a outra, um microfo-ne de fio que enfia na garganta. está de costas para um tablado, com uma imensa cruz de madeira ao fundo, e os dizeres Jesus Cristo é o Senhor escrito na parede. ao seu lado, dois assistentes, um gordo e um magrelo, vestidos de blusa de mangas, encharca-das no peito, e calça social, cuidam de uma mulher que parece ter dificuldade de ficar de pé e de uma velha em cadeira de rodas. uma plateia, de fileiras de cadeiras brancas de plástico, está ocu-pada, em grande parte, também por velhas. todos repetem o que o sujeito de terno laranja grita. Aleluia!, todos berram Aleluia! Em nome de Jesus, todos berram Em nome de Jesus! Amém!, Amém! o salão é comprido, mas estreito, e não tem janelas. dois ventila-dores lerdos, presos em paredes opostas, não têm qualquer função a não ser bater o ar concentrado e morno. a quentura é tanta que, mesmo da entrada, dá para sentir a massa cozinhando que enche o lugar. algumas velhas se abanam com leques de papel; uma me-nina seca a cabeça de um bebê com uma fralda. de repente, a mulher com dificuldades de ficar de pé cai no chão e começa a se debater. Sai demônio!, berra o sujeito de terno laranja no microfone. todos se levantam num pulo e, numa gritaria sem tamanho, batem palmas e emendam um coro: Sai!, Sai!, Sai! as veias do pescoço do sujeito de terno laranja estão inchadas, a cara vermelha, parece que queima de dentro para fora. grita, pula de um lado para o outro, sacode a bíblia. o assistente magrelo ergue a mulher, que continua tremendo. Aleluia!, Aleluia! o sujeito, então, larga o microfone e diz que vai tirar o demônio dela. com as duas mãos, agarra a bíblia e dá um porrada na testa da mulher. o assistente magrelo a solta e ela desaba de novo chão, só que agora sem tremedeira. fica desacordada por um tempo, nin-guém dá um pio. até que, devagar, vai despertando, pede ajuda ao

assistente para se levantar, cambaleia, ainda um pouco tonta, e, do nada, dá um pulo e sai correndo de um lado para o outro. Aleluia!, a plateia explode em aplausos, gritos. Aleluia!, as pessoas erguem as mãos para cima, se abraçam. a mulher que antes tinha dificuldade de ficar de pé continua correndo, Aleluia! começa uma cantoria. Jesus isso, Jesus aquilo, um tipo de ciranda, meio lamen-to. o assistente gordo empurra a cadeira de rodas para o centro. agora parece ser a vez da velha. então o sujeito de terno laranja me descobre parada na porta. to-da a plateia para de cantar e olha para trás. ele pega o microfone. me chama de irmã, fala algumas coisas: blábláblá Jesus, e me con-vida a entrar. o assistente magrelo caminha até a mim e me ofere-ce a mão. Aleluia!, todos berram Aleluia! caminho contra a massa cozinhando e chego até ele. tem um cheiro forte, químico. sorri, eu fico na mesma. a plateia o-lha a cena e, de alguma forma, sinto que a minha presença não faz parte do roteiro. o bebê começa a chorar. erguendo a bíblia, o su-jeito de terno laranja pergunta se acredito em Jesus. não respon-do. ele insiste, e pergunta se tenho vontade de negar tudo em no-me do Senhor. não respondo. ele, então, pergunta do que tenho vontade. tenho vontade matar, respondo. o sujeito dá um pulo para trás, como se tivesse lhe apontado uma arma. Demônio!, a plateia grita. Satanás! a algazarra recomeça. todos voltam a ficar de pé, desembestando no coro: Sai! Sai! Sai! o sujeito de terno laranja faz um gesto com a mão, os acalma. volta a falar no microfone e, para a satisfação de todos, diz que vai tirar o demônio de mim. pede que eu suba no tablado. eu subo. abre a bíblia, lê alguma coi-sa: blábláblá no Vale das Sombras, depois a ergue mais alto, com as pontas dos dedos. pede que a plateia o ajude a salvar a minha alma. que todos ergam as mãos e gritem Sangue de Jesus tem po-der!, três vezes. o suor escorre pelo seu pescoço, seu corpo treme. a plateia sua e treme com ele. Sangue de Jesus tem poder!, a pri-meira. Sangue de Jesus tem poder!, a segunda. Sangue de... puxo a faca do bolso e enfio no meio da cabeça dele. (...)