Exus e Pombas-Giras - O Masculino e o Feminino Nos Pontos de Umbanda

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    Exus e Pombas-Giras: o masculino e o feminino nospontos cantados da umbanda1Adriano Roberto Afonso do Nascimento - Doutorando no Programa de Ps-graduao emPsicologia da Universidade Federal do Esprito Santo.

    Ldio de Souza - Professor doutor do Programa de Ps-graduao em Psicologia da UniversidadeFederal do Esprito Santo.

    Zeidi Arajo Trindade - Professora doutora do Programa de Ps-graduao em Psicologia daUniversidade Federal do Esprito Santo.

    http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-73722001000200015&lng=en&nrm=iso&tlng=pt

    RESUMOO presente trabalho tem como objetivo a caracterizao dos Exus e Pombas-Giras, atravs dospontos cantados da Umbanda, considerando aspectos que remetem a uma configurao maisampla de componentes do imaginrio social brasileiro. Foram submetidas Anlise de Contedo221 letras de pontos de Exu e Pomba-Gira. Os pontos de Exu contm maior freqncia demenes relacionadas descrio de poder e funes atribudas a essa entidade (31,6% dasrespostas) e sua identificao e saudao (22,4%). Os pontos de Pomba-Gira apresentam maisfreqentemente a descrio de poder/funes atribudas (30,23% das respostas) e acaracterizao da entidade (30,23%). Os resultados possibilitam relacionar as caractersticas dasentidades aos papis socialmente esperados de homens e mulheres. Exu representado pelaliberdade, fora e, principalmente, pelo trabalho. Pomba-Gira representada atravs de atributos

    considerados tpicos do sexo feminino, como beleza e sensualidade, e tambm pelo trabalho. Osdados remetem a uma anlise que procura a articulao entre fatores raciais e de classe socialpresentes na sociedade brasileira e as caractersticas definidoras das entidades, identificadas nospontos.Palavras-chaves: umbanda, esteretipo, gnero.

    INTRODUOExu, identificado comumente com um ser matreiro e amoral para os padres ocidentais, sofreu

    modificaes importantes desde a sua vinda da frica, com os escravos, at a sua apropriaopela Umbanda. Essa entidade ocupa uma funo mpar entre as demais divindades cultuadas peloCandombl, possivelmente o culto que ainda mantm a representao de Exu mais prxima daoriginria. Nessa representao ele quem tem o papel/poder de servir como elo de comunicaoentre os demais orixs e desses com os homens. Sua funo o prprio estabelecimento emanuteno da ordem do mundo espiritual. Alm disso, desempenha tarefas especficasdeterminadas pelos orixs, servindo como uma espcie de mensageiro/instrumento (Bastide,1978; Verger, 1999; Prandi, 2001).

    Sua identificao histrica com o diabo cristo se estabeleceu, portanto, no devido a suascaractersticas funcionais, mas sim a aspectos relativos a sua aparncia. A rejeio do culto aosorixs e as perseguies empreendidas pelos senhores brancos criaramnos escravos a

    necessidade de encontrarem entidades crists que os representassem. Como Exu uma divindade

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    do fogo, qual eram atribudos chifres, membro viril e sexualidade sem freios, assemelhando-se representao do diabo cristo, a entidade escolhida foi o demnio (Bastide, 1978).

    Na Umbanda, a figura de Exu vai ser construda num amlgama de suas funes no Candombl e

    sua percepo como demnio cristo.

    Em princpio existem quatro gneros de espritos que compem o panteoumbandista; podemos agrup-los em duas categorias: a) espritos de luz: caboclos,pretos-velhos e crianas - eles formam o que certos umbandistas chamam de'tringulo da Umbanda'; b) espritos das trevas - os exus (Ortiz, 1991, p. 71).

    A ordem de apresentao tambm se constitui em ordem de valor. Pode-se, atravs dos atributosde cada entidade, relacion-las, de forma geral, s seguintes imagens: ndio idealizadoromanticamente, negro escravo e ainda submisso, criana branca e homem da classe baixa, cujafalta de valores de nobreza o tornam propcio s funes do labor. Alm desses quatro gruposprincipais, tambm podem ser encontrados baianos, boiadeiros, marinheiros, ciganos e mdicos,entre outros (Negro 1996).Deve-se observar que a posio subalterna de algumas entidades compensada por um fatorfundamental para a sua valorizao: so justamente essas que do consultas e, porconseqncia, exercem contato e influncia mais prximos aos fiis do que aquelas que seencontram em mais alta posio na hierarquia espiritual (Birman, 1985). No caso dos exus essaproximidade deve ser entendida, sobretudo, como afinidade, uma vez que eles so as entidadesmais prximas do homem comum, com suas aflies e incertezas (Trindade, 1981; Negro,1996).Essa afinidade pode ser reafirmada pelas caractersticas da possesso na Umbanda. Segundodefinio de Magnani (1986), a possesso a

    ... forma de contato com o sobrenatural atravs da incorporao de entidadesespirituais nos iniciados que, momentaneamente despojados de suas caractersticas

    individuais, passam a agir sob a influncia daquelas entidades; em alguns contextoso mesmo que transe (p. 60).

    Na Umbanda, onde o transe se encontra entre as representaes individual e mtica (como noCandombl), atualizando personagens que se encontram presentes no cotidiano e na memriapopular (Magnani, 1986; Birman, 1991), as entidades se encontram mais prximas do mundo doshomens, uma vez que j viveram e possuem, assim, histria objetivada em locais, funesdesempenhadas e caractersticas pessoais. Aquelas entidades que no possuem uma vidaobjetivamente localizada constituem o que podemos chamar de categorias vazias, papis sempersonagens. Essas personagens podem, assim, ser construdas pelo prprio mdium, utilizando asua prpria histria para gerar categorias com sentido (Ortiz, 1991).Esse fato faz com que seja possvel o estudo de determinadas relaes sociais que considere a

    anlise da dinmica que se estabelece no interior da prtica umbandista, atravs da prpriainterao entre suas entidades, por exemplo, nos pontos cantados. Segundo Prandi (1996),

    Nas religies afro-brasileiras, todo cerimonial cantado ao som dos atabaques, equase todo tambm danando. As cantigas de candombl e os pontos-cantados daumbanda so instrumentos de identidade das entidades (p. 144).

    Considerando que as cantigas se constituem em instrumentos que atualizam a identidade dasentidades a partir de elementos e personagens do cotidiano, o presente trabalho tem comoobjetivo a caracterizao dos Exus e Pombas-Giras, atravs dos pontos cantados da Umbanda,destacando os aspectos que possibilitam uma articulao com componentes do imaginrio socialbrasileiro.

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    MTODOForam analisadas 221 letras de pontos de Exu e Pomba-Gira recolhidos em livros e discos que sepropem a colet-los e divulg-los, encontrados em lojas de produtos religiosos. As letras foramsubmetidas Anlise de Contedo (Bardin, 1994 e Vala, 1986) e agrupadas em categorias. Trs

    subdivises foram previamente consideradas, quais sejam: a) pontos de Exu, b) pontos dePomba-Gira e C) pontos de relao, onde so citadas as duas entidades.

    RESULTADOSAs categoriasa) Descritivos de poder/funes atribudas: pontos que fazem referncia s funes dasentidades, bem como aos poderes que possuem. Ex: Meia noite a mar vazou/ Lua veio anunciar/Eu j vou vencer demanda/ Sarav, Calunguinha do mar.b) Caracterizao (indumentria, imagem): pontos que relatam a aparncia fsica das entidadese/ou mencionam vesturio e acessrios/instrumentos que as caracterizam. Ex: Olha que meninalinda/ Olha que menina bela/ Pomba-Gira Menina/ Me chamando da janela.c) Identificao/saudao: pontos que contm apenas o nome da entidade e/ou uma saudao a

    ela. Ex: Pinga Fogo l na encruza/ Pinga-Fogo l na serra/ Abre a porta, minha gente/ Pinga-Fogot na terra.d) Relao hierrquica: pontos onde h meno a outras entidades associadas a Exu, excetoPomba-Gira, e vice-versa, com alguma relao diferencial de poder e/ou hierarquia. Tambmforam considerados os pontos que explicitam a posio hierrquica que a entidade ocupa. Ex: Exufoi batizado/ E recebeu a sua cruz/ Na falange de Dom Miguel/ Kamilo nos defende, nos conduz.e) Personalidade: nessa categoria foram includos pontos em que h referncia a traos depersonalidade/carter das entidades. Ex: A encruza estremeceu/ Uma gargalhada soou alm/Salve Exu, que batizado/ Exu do fogo no ataca ningum/ O Exu bom, no ataca ningum.f) Proteo: pontos que relatam o aspecto protetor das entidades queles a quem estorelacionados. Ex: Seu Sete-Pedras, livra o caminho que passo/ Seu Sete Pedras, livra o caminhoque eu passo/ Quando ando com Sete-Pedras/ Meus caminhos no tm embarao.g) Morada: pontos em que h referncia existncia de uma morada especfica das entidades.No foram consideradas referncias s ruas, encruzilhadas e cemitrios, locais caractersticos depermanncia de quase todos os Exus e Pombas-Giras, exceto quando os pontos utilizam o verbomorar ou seus derivados. Ex: Pomba-Gira, a, a/ Pomba-Gira de Macei/ Aonde mora Pomba-Gira/ Ela mora no Macei.h) Advertncia: pontos que se propem advertir sobre os poderes das entidades, sem fazerreferncia especfica a esses poderes. Ex:Ao ver Exu na encruza/ Com ele no se meta/ ali queele trabalha/ O reino de Capa-Preta.Pontos de ExuOs pontos de Exu analisados (80,77% do total) apontam maior ocorrncia de menes a aspectosrelacionados descrio do poder e s funes atribudas a essa entidade (31,6%). Nessacategoria so identificados como principais funes/poderes dos Exus: trabalhar, vencerdemandas, vigiar, levar mensagens, despachar Eb, segurar a gira, defender, conduzir, fazer

    magia e levar o mal para o fundo do mar. Como segunda categoria com maior freqncia(22,4%), encontramos os pontos relativos a sua identificao e saudao. A terceira categoriamais freqente (15,3%) aquela que se refere ao que chamamos de relaes hierrquicas entreos Exus ou entre esses e outras divindades (Santo Antnio, Ogum, Dom Miguel). Aqui tambmforam includos os pontos onde so encontradas referncias a relaes de parentesco (outros Exusou Lcifer) ou filiao a linhas de Quimbanda ou Umbanda, desde que estivessem explcitas, emambos os casos, condies desiguais de fora (Quadro 1).

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    Pontos de Pomba-GiraAs duas categorias com maior freqncia de respostas (30,23% cada) so aquelas que dizemrespeito s descries de poder/funes e caracterizao da entidade. Como funes/poderesatribudos encontramos: trabalhar, comandar a madrugada, vencer demandas, carregar mandingapara o fundo do mar, cortar o embarao, vigiar. Quanto imagem e indumentria: moa, linda,menina bela, muito formosa, farrapos de chita, linda saia com sete guizos, figa de ouro,"sandalinha de pau", saia rodada, manto de veludo rebordado todo em ouro. Os instrumentosrelacionados Pomba-Gira nos pontos analisados so: tesoura, garfo de prata, ponteiro de ao. Aterceira categoria com maior nmero de menes (9,30%) foi a de identificao (Quadro 1).Pontos de RelaoDevido pequena quantidade desses pontos (07) no nos pareceu relevante submet-los atratamento quantitativo. Uma primeira anlise qualitativa pode, entretanto, nos indicar algumascaractersticas da relao entre as entidades. A figura de Pomba-Gira pode ser identificada comocompanheira, mulher (no esposa) dos Exus, desempenhando, quando em sua presena, ospapis esperados da figura feminina no contexto do modelo tradicional das relaes de gnero.Ex: Exu fez uma casa/ Com sete portas/ Com sete janelas/ Exu no precisa de casa/ Pomba-Gira quem vai morar nela.DISCUSSOOs dados relacionados s entidades Exu e Pomba-Gira, descritos acima, sugerem inicialmente aimportncia da anlise das representaes relativas ao feminino e ao masculino em nossa

    sociedade.

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    Para entendermos a forma como se processam as relaes entre o masculino e feminino no Brasil, fundamental que consideremos a tradio patriarcal historicamente dominante nos sistemassocial, econmico e cultural. Segundo Parker (1991), a diferenciao entre homens e mulherespoderia, sob determinado aspecto, ser considerada, na sociedade brasileira, como formada por

    plos atividade-passividade, dominncia-submisso, fora-fragilidade. Essa polarizao no se d,entretanto, de forma absoluta, devendo ser consideradas posies intermedirias marcadas pelapresena de papis como o da prostituta. Contudo, esses papis, valorizados negativamente,funcionam mais como um fator de referncia a ser considerado para ser evitado, do que como umlugar com importncia estrutural para o funcionamento do prprio sistema. Os valores sociaisrelacionados ao feminino referem-se tradicionalmente virgindade, submisso e procriao,enquanto os masculinos relacionam-se fora, autoridade e realizao sexual.Os dados coletados nos revelam a presena desses valores. Exu caracterizado principalmentepelas suas funes. Fundem-se na sua caracterizao o homem da noite e o trabalhador, papishistoricamente associados ao masculino. O trabalho de Exu, entretanto, o que podemosdesignar como braal; aqui se apresenta a primeira caracterstica de classe. A sua identificaocom a noite apresenta aspectos que tambm podem ser considerados indicadores de classe. Oslugares que freqenta comumente no so os destinados s camadas mais privilegiadas; seu local

    a rua, onde acontecem tradicionalmente as manifestaes do povo. Tambm o lugar atribudos desordens, ao permissvel e ao potencialmente perigoso (DaMatta, 1991).H vrios Exus para diversas funes/interesses. Sua atuao se refere s esferas da sade,financeira, afetiva (motivos pelos quais mais so procurados) e sexual. Os Exus e Pombas-Girasso definidos principalmente pelo seu carter sexual, relacionado sua amoralidade, e, podemosdizer, provavelmente, aos lugares que freqentam.Pomba-Gira desempenha, por sua vez, funes, segundo os dados, muito semelhantes s dosExus. Tambm uma mulher da rua e do trabalho. Entretanto, o lugar da rua no aqueleesperado socialmente para a mulher, segundo a tradio patriarcal, podendo promover a suaidentificao com as caractersticas atribudas prostituta. Montero (1985) tambm identificousemelhanas entre as caractersticas atribudas Pomba-Gira e o esteretipo da prostituta, emoposio aos esteretipos da jovem virgem associado s caboclas, da me a Iemanj e da mepreta s pretas-velhas. Apesar das semelhanas porventura encontradas, no constatamosreferncias explcitas Pomba-Gira como prostituta nos pontos analisados. Sua identificao comessa figura, como dito, est baseada sobretudo nos lugares que freqenta. Aqui, deve-se recordarque a categoria por ns definida como Morada no inclui os lugares onde as entidades transitam.Associao de Exus e Pombas-Giras com ruas e cemitrios so quase uma constante nos pontosanalisados, o que no quer dizer que habitem nesses locais, e sim que mais provavelmente nelepermaneam por afinidade ou pelas caractersticas dos trabalhos que realizam ali. Ex: Existe umExu mulher/ Que no trabalha toa/ Quando passa pela encruza/ Maria Quitria no vacila/ Elano faz coisa boa.Sobre a relao entre as Pombas-Giras e a prostituio, nos diz Meyer:

    Como mulher, sua associao ao Mal, sua demonizao passa pela imemorialmarca infamante da feminilidade: a luxria. Encarnada noutro antigo esteretipo: a

    prostituta. Uma 'mulher da vida', com 'sete maridos', bem marcada, me parece,pelo tempo em que se constitua a Umbanda no espao urbano: vrios dos seuspontos cantados que ouvi, remetem a um espao escuso da cidade, que j foisinnimo de devassido e 'mulher perdida': a Pomba-Gira de cabar (1993, p.104-105).

    Segundo Prandi (1996), a Pomba-Gira "trata dos casos de amor, protege as mulheres que aprocuram, capaz de propiciar qualquer tipo de unio amorosa e sexual" (p. 148). A ela estoassociados os trabalhos de feitiaria, principalmente amorosa, o que nos permite fazer umparalelo com o espao tradicionalmente relacionado mulher, ou seja, o quintal, lugar das ervas edos segredos mgicos e teraputicos (Del Priore, 1993). Suas atividades situam-se nos espaosexteriores casa (a rua e o quintal), o que pode indicar a sua no-pertena ao ncleo familiar,

    uma vez que no se ajusta aos papis tradicionais de esposa, me ou filha.

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    Os dados revelam a entidade como dotada de uma beleza "fsica" e uma vaidade, que bemcorrespondem expectativa em relao ao papel feminino, no qual a mulher deve se conservarsempre bonita, pois esse o seu maior bem, a fim de satisfazer o homem. Conforme nosmostram os pontos de relao, esse o papel da Pomba-Gira, em presena dos Exus. Se

    considerarmos tambm as marcas de raa e classe que esto a eles relacionadas na literatura,seu papel se torna duplamente estereotipado, uma vez que mulher e negra (Montero, 1985; Ortiz,1991).Como pode ser visto, a identificao tradicional de Exu com o diabo cristo no est relacionadasomente a sua aparncia original, africana. Componentes outros se somam a essa aparncia eremetem a uma caracterizao de aes tambm prxima. Talvez o principal desses componentesseja a sexualidade exacerbada. Historicamente, o diabo no ocidente utiliza o sexo dos humanospara tent-los (Nogueira, 2000). H referncias diversas na histria do Brasil sobre a proximidadeentre o diabo e a luxria, as prticas mgicas, a busca da resoluo de problemas cotidianos, porfim, sua proximidade com o prprio homem (Souza, 1989). At mesmo o carter ambguo dasexualidade esteve a ele relacionado, na figura de ncubos e scubos (Mott, 1988). Nesse ponto,h um aspecto particularmente importante: o diabo formou, desde o nosso perodo colonial, umatrade bastante constante com a prostituio e a magia sexual. Segundo Souza,

    No Brasil colonial, dentre os que se ocuparam da magia, talvez a categoria maisestigmatizada com a prostituio tenha sido a das mulheres que vendiam filtros deamor, ensinavam oraes para prender homens, receitavam beberagens elavatrios de ervas. Magia sexual e prostituio pareciam andar sempre juntas(1989, p. 241).

    Companheiro da prostituta, o malandro figura recorrente no imaginrio brasileiro. Suaavaliao, entretanto, tende a ser menos negativa do que a dela. Segundo DaMatta (1997), suacaracterizao est relacionada sua averso pelo trabalho e individualizao da sua figura e deseus costumes. Contudo, inegvel em nosso meio social a valorizao da sua desenvoltura pararesolver problemas e quase sempre levar vantagem, inclusive nas situaes francamente

    adversas.Uma estrutura marcada pela hierarquia, como o caso da Umbanda, certamente deve refletir emsi aspectos da ordem social que a comporta. A relao de dominao-subordinao encontrada noCandombl entre os orixs e Exu (Trindade, 1982) tambm pode ser percebida na Umbanda.Outro fator relevante na identificao do lugar ocupado por Pomba-Gira e Exu na prticaumbandista a considerao das delimitaes provenientes dos conceitos de linha e falange que"... constituem divises que agrupam as entidades de acordo com afinidades intelectuais emorais, origem tnica e, principalmente, segundo o estgio de evoluo espiritual em que seapresentam, no astral" (Magnani, 1986, p. 33). Essas divises implicam uma hierarquia queindica, mais do que uma simples diviso entre o bem e o mal, esse caracterizado como inferiorquele, a necessidade de que "... o simbolismo dos ritos exprima a subordinao do princpioespiritual inferior ao princpio superior" (Ortiz, 1991, p. 141).Essa hierarquia est presente de forma significativa nos dados apresentados acima, nos quais o

    reconhecimento de diferentes poderes se constitui em um princpio organizador que impede ocaos. Na hierarquia identificada pode-se notar claramente a superioridade dos Exus. A eles estosubordinadas as Pombas-Giras, menos numerosas, fato que se refletiu inclusive na quantidadegeral de pontos coletados.O carter moralmente ambguo das entidades, evidenciado pela costumeira associao entre osExus e a figura do trickster (Augras, 1983; Queiroz, 1991), sugere ser este um aspectorelacionado ao lugar que lhe designado na hierarquia da umbanda. As categorias denominadas"personalidade", "proteo" e "advertncia" referem-se a essa ambigidade. Aqui encontramosExu e Pomba-Gira como seres capazes de fazer tanto o bem quanto o mal, e por isso merecedoresdos maiores cuidados e respeito. A moralidade das aes da entidade vai ser, entretanto,determinada pelo pedido do "consulente", pois esse quem vai fazer a sua oferenda, o seupagamento. Em ltima instncia a responsabilidade moral daquele que faz o pedido. A labilidade

    dessas entidades possibilita a solicitao de determinados favores somente a elas, no a outras

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    consideradas mais evoludas, pois poderia causar negativas ou repreenses. Alm desse fato, apercepo de Exu como algum que j passou por condies adversas, em vida, pode caracteriz-lo como um interlocutor capaz de melhor entender os motivos daquele que pede, sendo, emdeterminado sentido, um igual.

    Dois eixos de submisso podem ser ento considerados como centrais na anlise. O primeiro serelaciona posio da figura feminina, localizada margem pelo sexo e pela condio social. Seusatributos concedem-lhe a aparncia desejada pelo masculino ao mesmo tempo em que suacaracterizao como ser com sexualidade extremada a relega a uma situao em que sua inserona rede social no pode se dar atravs do papel de me/esposa, sendo associada prostituta natrama dos personagens cotidianos. Suas funes estaro relacionadas aos pedidos de cartersexual e afetivo, localizando-a ento, conforme a moral crist, no campo do pecado, ou seja, dastrevas.O segundo eixo diz respeito condio de Exu. Dado como amoral, s pode ser admitido para eleo local das trevas, a noite. ali que pode expressar seu carter sinuoso, escondido do convviodos que trabalham normalmente. Aqui tambm podemos considerar a sua inaptido para o papelde pai/esposo, sendo considerado inadequado para as funes reprodutivas. Deve-se observarque no so encontradas referncias familiares para os Exus e Pombas-Giras, o que comum

    para os Pretos e Pretas-Velhas, geralmente chamados de tio/tia, av/av ou pai/me.A relao que se estabelece com Exu muitas vezes a de compadrio (Verger, 1999), reforando apossibilidade de sua identificao, por parte de quem o consulta, como um igual. medida queadmitimos a entidade como um molde a ser preenchido pelo mdium, podemos tambm admitirque os esteretipos a ela historicamente relacionados encontram nele possibilidade de seatualizarem e por isso sobreviverem. No nos estamos referindo a uma simples incorporao dopapel, mas sim a um mecanismo que permite a construo de um campo de significados queesto de acordo com a prpria percepo do mundo pelo mdium e pelos fiis. Pombas-Giras eExus so representaes de personagens presentes na vida cotidiana, que apresentam tantocaractersticas individuais distintivas quanto traos coletivos de classe, o que proporciona amanuteno do esteretipo. Vistas como a prpria ambivalncia, as caracterizaes no poderiamser diferentes: as entidades que possuem como funo primeira o trabalho, so percebidas comomalandro e prostituta. Como perigosas, necessitam de outras entidades mais elevadas para quesejam controladas e exeram de forma adequada suas funes. Segundo a descrio dasmoradas, so imigrantes que aportam num contexto que os considera inaptos para odesenvolvimento de funes que no estejam relacionadas ao trabalho braal.Exu e Pomba-Gira podem ser, em ltima instncia, alguns dos personagens pertencentes scamadas empobrecidas da sociedade, submetidas a toda sorte de preconceitos raciais, sociais,econmicos e culturais, que acabam por ser assumidos e propagados pela prpria classe.Mscaras que permanecem como modelo e reflexo das prprias contradies do sistema social donosso pas.BIBLIOGRAFIAAugras, M. (1983) O duplo e a metamorfose: A identidade mtica em comunidades Nag.

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