Expectativas e Sentimentos de Gestantes Solteiras em...

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ISSN 1413-389X Trends in Psychology / Temas em Psicologia – 2015, Vol. 23, nº 2, 399-411 DOI: 10.9788/TP2015.2-12 Expectativas e Sentimentos de Gestantes Solteiras em Relação aos seus Bebês Aline Grill Gomes 1 Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA) Angela Helena Marin Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil Cesar Augusto Piccinini Rita de Cássia Sobreira Lopes Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil Resumo A gestação é uma experiência complexa para a mulher e vários fatores podem facilitar ou dicultar o transcorrer deste processo. A literatura aponta que o apoio paterno durante a gravidez, pode contribuir para o desenvolvimento psíquico da criança, bem como para a qualidade da relação mãe-bebê. Nesse sentido é plausível pensar que a ausência do apoio paterno pode eventualmente trazer diculdades para este momento de transição. Assim sendo, o objetivo deste estudo foi investigar os sentimentos e as expectativas das gestantes solteiras em relação aos seus bebês. Participaram nove gestantes primíparas, com idades entre 19 e 28 anos, que estavam no último trimestre de gestação e não apresentavam proble- mas de saúde. Todas eram solteiras e assumiram a responsabilidade de ter um lho sem a presença do pai biológico ou de outro companheiro que o substituísse. Elas foram entrevistadas individualmente e as suas respostas foram examinadas através de análise de conteúdo qualitativa. Os resultados indicaram que assumir sozinha a responsabilidade por um lho trouxe algum grau de sofrimento para as gestantes e que essa vivência permeou as suas expectativas e sentimentos em relação ao bebê, tanto acerca do sexo, do nome, das características físicas e psicológicas, da sua saúde e da interação mãe-bebê. Palavras-chave: Gestação, mães solteiras, relação mãe-bebê. Single Mother’s Expectations and Feelings Regarding their Babies Abstract Pregnancy is a complex experience for the woman and several factors may facilitate or harm the course of this process. The literature suggests that parental support during pregnancy is crucial in psychological development of the child as well as the quality of the mother-infant relationship. In this sense it is plausible to think that the lack of parental support may eventually result in difculties for this transitional moment. Thus, the aim of this study was to investigate the feelings and expectations of unmarried pregnant women in relation to their babies. Attended nine primiparae aged 19 to 28 years, 1 Endereço para correspondência: Av. Unisinos, 950 – Centro 2, sala E01-109. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil. CEP: 93.022-000. E-mail: [email protected], [email protected] e [email protected] Agência de nanciamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientíco e Tecnológico (CNPq).

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ISSN 1413-389X Trends in Psychology / Temas em Psicologia – 2015, Vol. 23, nº 2, 399-411 DOI: 10.9788/TP2015.2-12

Expectativas e Sentimentos de Gestantes Solteiras em Relação aos seus Bebês

Aline Grill Gomes1

Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre (SPPA)Angela Helena Marin

Centro de Ciências da Saúde da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil

Cesar Augusto PiccininiRita de Cássia Sobreira Lopes

Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

ResumoA gestação é uma experiência complexa para a mulher e vários fatores podem facilitar ou difi cultar o transcorrer deste processo. A literatura aponta que o apoio paterno durante a gravidez, pode contribuir para o desenvolvimento psíquico da criança, bem como para a qualidade da relação mãe-bebê. Nesse sentido é plausível pensar que a ausência do apoio paterno pode eventualmente trazer difi culdades para este momento de transição. Assim sendo, o objetivo deste estudo foi investigar os sentimentos e as expectativas das gestantes solteiras em relação aos seus bebês. Participaram nove gestantes primíparas, com idades entre 19 e 28 anos, que estavam no último trimestre de gestação e não apresentavam proble-mas de saúde. Todas eram solteiras e assumiram a responsabilidade de ter um fi lho sem a presença do pai biológico ou de outro companheiro que o substituísse. Elas foram entrevistadas individualmente e as suas respostas foram examinadas através de análise de conteúdo qualitativa. Os resultados indicaram que assumir sozinha a responsabilidade por um fi lho trouxe algum grau de sofrimento para as gestantes e que essa vivência permeou as suas expectativas e sentimentos em relação ao bebê, tanto acerca do sexo, do nome, das características físicas e psicológicas, da sua saúde e da interação mãe-bebê.

Palavras-chave: Gestação, mães solteiras, relação mãe-bebê.

Single Mother’s Expectations and Feelings Regarding their Babies

AbstractPregnancy is a complex experience for the woman and several factors may facilitate or harm the course of this process. The literature suggests that parental support during pregnancy is crucial in psychological development of the child as well as the quality of the mother-infant relationship. In this sense it is plausible to think that the lack of parental support may eventually result in diffi culties for this transitional moment. Thus, the aim of this study was to investigate the feelings and expectations of unmarried pregnant women in relation to their babies. Attended nine primiparae aged 19 to 28 years,

1 Endereço para correspondência: Av. Unisinos, 950 – Centro 2, sala E01-109. Bairro Cristo Rei. São Leopoldo, Rio Grande do Sul, Brasil. CEP: 93.022-000. E-mail: [email protected], [email protected] e [email protected]

Agência de fi nanciamento: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi co e Tecnológico (CNPq).

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who were in the last trimester of pregnancy and had no health problems. All were single and taken responsibility for a child without the presence of the biological father or another partner to replace him. They were interviewed individually and their answers were examined using qualitative content analysis. The results indicated that assume all responsibility for a child brought some degree of distress for pregnant women, and resonances that experience permeated their expectations and feelings about the baby as much concerning sex, the name of the physical and psychological characteristics, their health and mother-infant interaction.

Keywords: Pregnancy, single mothers, mother-baby relationship.

Las Expectativas y los Sentimientos de las Mujeres Solteras Embarazadas en Relación a sus Bebés

ResumenEl embarazo es una experiencia compleja para la mujer y varios factores que pueden facilitar o difi -cultar el curso de este proceso. La literatura sugiere que el apoyo de los padres durante el embarazo es fundamental para el desarrollo psíquico del niño, así como la calidad de la relación madre-hijo. En este sentido, es plausible pensar que la falta de apoyo paterno puede llegar a causar difi cultades en este tiem-po de transición. Por tanto, el objetivo de este estudio fue investigar los sentimientos y expectativas de las mujeres solteras embarazadas en relación a sus bebés. Participaron nueve primíparas 19-28 año, el último trimestre del embarazo y sin problemas de salud. Todas eran solteras y asumió la responsabilidad de criar a su hijo sin la presencia del padre biológico u otra pareja. Ellos fueron entrevistados individual-mente y sus respuestas fueron analizadas mediante análisis de contenido cualitativo. Los resultados indi-caron que sea el único responsable de un niño trajo cierto grado de dolor para las mujeres embarazadas, y las resonancias que la experiencia impregnaron sus expectativas y sentimientos acerca del bebé tanto en el sexo, el nombre de las características físicas y psicológicas, su salud y la interacción madre-hijo.

Palabras clave: El embarazo, las madres solteras, la relación madre-bebé.

A gravidez é um período no qual ocorrem mudanças em diversos âmbitos da vida da mulher e representa uma experiência emocional bastante intensa (Brazelton & Cramer, 1990/1992; Klaus & Kennel, 1992), pois é um ser vivendo dentro de outro (Raphael-Leff, 1997). Nesse sentido, embora já construindo seu próprio aparato bio-lógico e psíquico, o bebê está completamente dependente da mãe (Solis-Ponton, 2004; Szejer, 1999).

Assim como a puberdade e a menopausa, a gestação é considerada uma crise normativa do ciclo vital, uma vez que as inerentes transfor-mações, tanto relacionais como intrapsíquicas, incitam a revivência de confl itos psicológicos primitivos e podem, inclusive, redimensionar o psiquismo da mulher (Raphael-Leff, 1997; Stern, 1997). Costuma-se dizer que é uma ida sem volta, isto é, uma vez mãe, torna-se im-

possível desvencilhar-se deste papel (Szejer & Stewart, 1997). Sabe-se que as vivências deste momento são sentidas e enfrentadas conforme as características individuais de cada mulher (So-lis-Ponton & Lebovici, 2004).

Além dessas questões pessoais, a gestante se depara com as expectativas e sentimentos que tem acerca do seu bebê, o que complexiza ainda mais todo o processo gravídico. As expectativas da mãe quanto ao bebê originam-se de seu pró-prio mundo interno, de suas relações passadas e suas necessidades conscientes e inconscientes relacionadas àquele bebê (Brazelton & Cramer, 1990/1992; Cramer & Palácio-Espasa, 1993; Le-bovici, 1987; Maldonado, 1997; Raphael-Leff, 1997; Soulé, 1987; Stern, 1992, 1997; Szejer & Stewart, 1997). Introduz-se uma dialética entre o bebê interno e o bebê enquanto objeto exter-no, ou seja, entre o bebê que a mãe foi ou que

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acredita ter sido e o seu bebê propriamente dito. Essa linha de delimitação, que em alguns casos pode ser tênue, testemunha o trabalho psíqui-co efetuado pela mãe, que se inicia na gravidez com uma reativação do objeto interno (metáfora de seu passado, de sua infância) para o gradu-al reconhecimento do bebê enquanto alteridade, tendo uma rede de identifi cações subjetivas en-volvidas (Golse & Bydlowski, 2002), as quais geram complexos sentimentos e expectativas. Tais expectativas se constituem sobre o bebê imaginário que cada mãe constrói e envolvem, principalmente, o sexo e o nome do bebê, a maneira como ele se movimenta no útero e as características psicológicas que lhes são atribuí-das (Szejer & Stewart, 1997). O confronto deste bebê imaginário com o bebê real ocorre sempre, mesmo em situações em que não há intercorrên-cias. Diante desta dimensão tão profunda que a maternidade alcança, vários fatores podem tanto facilitar como difi cultar o transcorrer deste pro-cesso. Entre estes fatores é plausível pensar que a ausência do apoio paterno durante a gestação pode eventualmente trazer difi culdades para este momento de transição.

A refl exão acerca da infl uência da função paterna no desenvolvimento infantil e do quanto à ausência do pai afeta a relação da mãe com a criança, tem ganhado destaque entre alguns au-tores (Ferrari, 2001; Ramires, 1997). O apoio pa-terno durante a gravidez e nos primeiros meses de vida do bebê é decisivo no desenvolvimento psíquico da criança, bem como na qualidade da interação mãe-bebê. Brazelton (1981/1988), por exemplo, fez referência ao papel do pai como fonte de ajuda à mãe, destacando que a pre-sença do pai e o reconhecimento de que o bebê também é fruto do seu desejo, auxiliam a mãe a compartilhar a responsabilidade da criação da criança. Isso tende a minimizar os sentimentos maternos de ansiedade e a incapacidade frente a esse novo papel.

Além disso, a fi gura paterna tem papel importante na construção da relação da mãe com seu bebê (Stern, 1997) e no desenvolvi-mento de sua função materna (Brazelton & Cramer, 1990/1992). Nesse sentido, Winnicott (1965/1971) já preconizava as ideias de que, se

a mãe se sentir amada como mulher pelo pai da criança, ela tende a cumprir mais adequadamen-te as tarefas de ser mãe. Como disse Bowlby (1989), ser mãe não é um papel fácil de exercer, tendo em vista a quantidade de tempo e a com-plexa dedicação que os fi lhos demandam. Para o autor, cuidar e promover a constituição psíquica de uma criança não é tarefa para uma só pessoa, e a assistência de um companheiro pode torná--la mais leve e prazerosa. A função materna e a introdução da função paterna permitem sus-tentar a dupla inserção do bebê enquanto pro-duto e enquanto alteridade e é justamente esta tensão entre ausência e presença, entre dentro e fora, que permite ao bebê aceder ao processo de subjetivação (Zornig, 2010). Assim, é plau-sível pensar que ser mãe solteira pode exigir, eventualmente, recursos psíquicos adaptativos (Camacho et al., 2006; McLanahan & Booth, 1989), pois esta nem sempre conta com a estru-tura necessária para o exercício mais tranquilo da maternidade.

Nesse sentido, a solidão e o medo tendem a ser temas frequentes nas histórias sobre a gesta-ção em mães solteiras, bem como o sentimen-to de vergonha e de segredo, fazendo com que muitas delas relatem a concepção não desejada como um evento traumático em suas vidas (Elli-son, 2003). Em um contexto como esse, pode ocorrer uma possível decepção e algum nível de ressentimento em relação ao pai da criança, a sobrecarga com as tarefas de cuidado desta, maior vulnerabilidade a ter difi culdades econô-micas e de inserir-se no mercado de trabalho (Clarke-Stewart, Vandell, McCartney, Owen, & Booth, 2000; Lipman, Boyle, Dooley, & Offord, 2002). Tais aspectos podem levar ao sofrimen-to psíquico(Hope, Power, & Rodgers, 1999), ao aumento de depressão (Cairney, Boyle, Offord, & Racine, 2003) e até a um maior isolamento social. O isolamento pode, inclusive, reforçar uma relação simbiótica entre a mãe solteira e o seu bebê, destinando a ele funções que, original-mente, seriam atribuídas ao pai. Dessa forma, ela pode esperar que a criança tenha atitudes de cuidado e apoio para com ela e possa atender as suas demandas emocionais (Peris & Emery, 2005). Esse modelo de relação foi defi nido por

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Duryea (2008) como parentifi cação, isto é, atri-buição da função parental à criança.

Por outro lado, há autores que criticam a ênfase nos aspectos negativos vinculados a ma-ternidade solitária como podendo levar a difi cul-dades para a criança e sua relação com a mãe, sublinhando a subjetividade de cada situação (Mannis, 1999; Nair & Murray, 2005). Portanto, pode-se pensar que o estabelecimento da relação mãe-bebê depende das características psíquicas individuais da mãe e da criança e não somente do contexto no qual vivem.

É importante salientar que nos dias atuais, constata-se um número cada vez maior de famí-lias uniparentais, que tem, na maioria dos casos, a mãe como progenitor responsável. Isso está ocorrendo em função tanto dos elevados índices de divórcio quanto da opção de muitas mulheres por terem um fi lho enquanto solteiras, ou seja, da desvinculação entre parentalidade e conju-galidade. Conforme dados do censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatísti-ca (IBGE, 2011; www.ibge.gov.br) nos últimos anos houve um expressivo crescimento no nú-mero de famílias sob responsabilidade da mulher (atingindo 17,4%), o que indica uma importante mudança quanto às confi gurações familiares da sociedade brasileira.

Apesar desta nova realidade, é possível pen-sar que ser mãe solteira pode implicar uma so-brecarga de tarefas, em especial na gestação e nos primeiros anos de vida da criança, em que o apoio, em especial o paterno, se faz bastante relevante (Dessen & Braz, 2000). Assim sendo, o objetivo do presente estudo foi investigar os sentimentos e as expectativas das gestantes sol-teiras em relação aos seus bebês.

Método

ParticipantesParticiparam deste estudo nove gestantes

primíparas, no último trimestre de gestação, sem problemas de saúde, com idades entre 19 e 28 anos (M=23 anos; DP=3,1). Todas eram soltei-ras e tiveram uma relação amorosa com o pai da criança antes de engravidar, ou seja, a gravidez não foi ocasional, mas também não foi planeja-

da, e elas acabaram por assumir o bebê sem a participação do pai biológico ou de outro compa-nheiro que o substituísse. As participantes eram de níveis socioeconômicos variados e residiam na região metropolitana de Porto Alegre. Em termos de escolaridade, uma gestante tinha en-sino fundamental incompleto, duas ensino mé-dio incompleto, cinco ensino médio completo e, uma ensino superior incompleto. Essa variação na escolaridade estava relacionada à diversidade de status ocupacional das gestantes, segundo a escala de Holligshead (1975), alternando entre profi ssões de “baixo status” (sete das mães esta-vam em profi ssões classifi cadas de 1 a 4) a “alto status” (duas das mães em profi ssões classifi ca-das de 7 a 9).

A amostra foi selecionada, com base nos critérios descritos acima, dentre os participantes de um estudo maior intitulado Estudo Longitu-dinal de Porto Alegre: Da Gestação à Escola - ELPA (Piccinini, Tudge, Lopes, & Sperb, 1998), que teve por objetivo investigar tanto os aspec-tos subjetivos e comportamentais das interações iniciais pai-mãe-bebê, assim como o impacto de fatores iniciais do desenvolvimento nas inte-rações familiares, no comportamento social de crianças pré-escolares e na transição para a es-cola de ensino fundamental. Este estudo iniciou acompanhando 81 gestantes primíparas que não apresentavam intercorrências clínicas, nem com elas mesmas ou com o bebê e envolveu várias fases de coletas de dados desde a gestação até os sete anos das crianças. O convite inicial para participar do estudo ocorreu quando a gestante fazia pré-natal em hospitais da rede pública da cidade de Porto Alegre (51,2%), nas unidades sanitárias de saúde do mesmo município (7,3%), através de anúncio em veículos de comunicação (26,8%) e por indicação (14,6%). Para fi ns do presente estudo, foram incluídos todos os casos de gestantes solteiras que participavam do ELPA e foram considerados apenas os dados derivados dos instrumentos aplicados na gestação.

Delineamento, Procedimentos e Instrumentos

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, com delineamento exploratório e transversal, cujo ob-

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jetivo foi investigar os sentimentos e as expecta-tivas das gestantes solteiras em relação aos seus bebês. Seguindo as fases de coleta de dados do ELPA, no terceiro trimestre de gestação, após o contato inicial com a gestante, explicava-se o objetivo do estudo e realizava-se a Entrevista de Contato Inicial (Grupo de Interação Social, Desenvolvimento e Psicopatologia [GIDEP], 1998a), que investigava se a gestante atendia aos critérios de inclusão no estudo, com desta-que para sua idade gestacional e seu estado de saúde. Uma vez passada esta etapa, a gestante era visitada em sua residência, quando assinava o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e respondia a Entrevista de Dados Demográfi -cos (GIDEP, 1998b), usada para obter informa-ções demográfi cas adicionais, tais como idade, escolaridade, estado civil, ocupação, religião e grupo étnico. Além disto, ela era solicitada a responder à Entrevista sobre a Gestação e as Expectativas da Gestante (GIDEP, 1998c). Esta entrevista estruturada era composta de oito con-juntos de questões relacionadas tanto ao bebê como à maternidade e investigava, por exemplo, as percepções da gestante em relação ao plane-jamento da gravidez, sua aceitação, seu estado de humor predominante, suas percepções e fan-tasias sobre o bebê e a maternidade, e a relação com o pai do bebê e demais membros de sua família. Para fi ns do presente estudo foram con-sideradas apenas as questões relacionadas aos sentimentos e expectativas sobre o bebê. Cada tópico investigado era apresentado inicialmente à gestante em forma de uma questão ampla (Ex.: Eu gostaria que tu me falasses sobre o teu bebê; e Como tu imaginas que vai ser o bebê quando nascer?). Caso a resposta da gestante não fos-se muito explícita, eram usadas outras questões que ajudavam a esclarecer os tópicos investiga-dos (Ex.: O que tu já sabes sobre o bebê? Tu já sabes o sexo do bebê? Como tu te sentiste quando soube que era menino/menina? O que tu gostarias que fosse? Por quê? Tu já pensaste num nome para o bebê? Quem escolheu? Al-gum motivo para a escolha do nome? Tu sentes o bebê se mexer? Desde quando? Como é que foi? Tu costumas tocar a barriga ou falar com o bebê? Que características físicas tu imaginas

que o bebê vai ter? Como tu imaginas que vai ser o temperamento, o jeito dele? Por quê? Com quem tu achas que o bebê vai ser parecido? Por quê? Quais são suas preocupações em relação à saúde do bebê?).

Resultados

A análise de conteúdo qualitativa (Bardin, 1977; Laville & Dionne, 1999) foi utilizada para investigar os sentimentos e as expectativas das gestantes solteiras em relação aos seus bebês. Para fi ns de análise foi utilizada uma estrutura de categorias temáticas derivadas de Piccinini, Gomes, Moreira e Lopes (2004), cuja elaboração original se deu com base na literatura (Raphael--Leff, 1997; Stainton, 1985; Szejer & Stewart, 1997) e nas respostas das gestantes à entrevista do ELPA utilizada. No presente estudo foram consideradas seis categorias envolvendo os sen-timentos e expectativas maternas quanto: (a) ao sexo do bebê; (b) ao nome do bebê; (c) às carac-terísticas físicas2 do bebê; (d) às características psicológicas do bebê; (e) à interação mãe-bebê; (f) à saúde do bebê.

Dois dos autores deste estudo classifi caram separadamente os relatos das mães em cada ca-tegoria e, em casos de discordância, recorreu-se a um terceiro avaliador. Eles também decidiram conjuntamente quais os relatos que melhor ilus-travam cada categoria em relação tanto às parti-cularidades como as semelhanças entre os casos. A seguir apresenta-se cada uma das categorias temáticas, ilustrando-as com verbalizações das próprias mães.

Sentimentos e Expectativas em Relação ao Sexo do Bebê

Essa categoria se refere aos sentimentos e expectativas com relação a ter um menino ou uma menina e o quanto isto teria implicações

2 Esta categoria não está presente no artigo de Piccinini et al. (2004), mas neste estudo foi incluída devido às verbalizações das participantes sobre este tema conterem aspectos relevantes no contexto da relação entre as gestantes solteiras e seus bebês.

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para o relacionamento da díade. As gestantes manifestaram um desejo defi nido de que o fi lho fosse de determinado sexo: “É que eu sempre tive vontade e dizia que eu queria ter uma fi lha menina. Menina enfeita mais, arruma, vê um vestidinho e já compra . . . eu fi quei super con-tente que é uma menina” (G43).

No que diz respeito às implicações quanto ao sexo para os sentimentos da gestante e sua re-lação com o bebê, as mães referiram que depois de saberem do sexo bebê este se tornou mais personalizado para elas, o que facilitou a relação entre eles: “Ah, depois que a gente sabe o quê é, é bem melhor. Antes fi cava falando ‘nenê’, não sabe se é guri ou se é guria, agora já me refi ro a ela, né?” (G8). Também foram relatados senti-mentos de aceitação da gravidez e do bebê pelo fato dele ser menina ou menino:

Foi abençoado por Deus! Desde que eu sou-be que era o meu gurizinho eu sou a mulher mais feliz do mundo. Dei graças a Deus que eu não fi z a besteira de tirar, porque eu ia tá me sentindo a última se eu soubesse que foi o meu fi lhinho que eu tivesse tirado. (G6) Para as gestantes, o sexo do bebê pareceu

que poderia lhes assegurar um determinado lu-gar na família: “Aí quando ela disse que era um gurizinho, daí eu disse: pô lá na minha família só tem mulher, um gurizinho não ia fazer mal, né? [risos]. Vai ser bom!” (G2); e na relação com elas: “Eu fi quei super feliz de pensar que é uma menininha, porque talvez seja mais compa-nheira” (G3). Por outro lado, o sexo do bebê foi percebido como um risco de repetição de com-portamentos da mãe considerados por ela como negativos:

Eu tinha medo de ter uma fi lha mulher por-que eu pensava que se ela se apaixonar e acontecer o mesmo que aconteceu comigo, como é que eu vou fazer? Eu fi cava pensan-do “ah, eu só sei falar de mágoa, de coisa ruim de relacionamento amoroso”, a mu-

3 A letra e o número entre parênteses identifi cam a participante que forneceu o relato. Os relatos foram, eventualmente, editados para reduzir sua extensão, mas sem que isto comprometesse seu conteúdo.

lher sempre tem uma expectativa, sonha, já o homem não sonha tanto. (G1)

Sentimentos e Expectativas em Relação ao Nome do Bebê

Essa categoria diz respeito aos sentimentos e expectativas em relação ao nome do bebê. Foram manifestados diversos aspectos que en-volveram a escolha e o signifi cado do nome do bebê para a relação mãe-bebê. Dentre estes, as gestantes destacaram algumas características do nome, como o fato de o acharem bonito: “Não tem um motivo especial, eu achava Pedro4 um nome bonito, eu gostava” (G1). Outro motivo da escolha do nome do bebê foi o signifi cado atribuído a ele, como uma homenagem a alguém especial:

Lauro. Porque eu acho bonito, e Heitor por ser o nome do meu pai. Botei porque eu gos-to muito do meu pai, o meu pai sempre foi bom pra mim né, nunca me condenou por eu tá grávida. Então eu resolvi homenagear ele. (G9) Ou por remeter a algo: “É o nome do

anjinho do meu signo” (G2). Além disso, o nome foi escolhido por envolver uma expecta-tiva relacionada às características psicológicas que as gestantes esperavam que seus fi lhos ti-vessem: “É um nome forte, parece nome de pessoa decidida” (G6).

Sentimentos e Expectativas em Relação às Características Físicas

Essa categoria diz respeito aos sentimentos e às expectativas quanto às características físi-cas imaginadas para o bebê. As gestantes desta-caram impressões de que o bebê seria parecido com elas mesmas. As gestantes destacaram im-pressões de que o bebê seria parecido consigo mesma: “Eu imagino ela bem pequeninha . . . é que quando eu nasci eu era uma coisinha, um ratinho” (G3); ou com o pai: “Eu imagino ela parecida com ele [pai do bebê], não comigo. Ele é moreno, mais alto que eu, moreno claro, as-

4 Os nomes próprios mencionados são fi ctícios a fi m de preservar a identidade dos participantes.

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sim, cabelo preto, olhos castanhos. Eu imagino que ele vai ser assim” (G8).

Por outro lado, elas expressaram seus de-sejos sobre com quem gostariam que o bebê se parecesse. Houve relatos demonstrando o desejo que fosse parecido com elas: “A gente tem aque-la imagem, eu queria que ele fosse de olhos cla-ros que nem eu, que puxasse parecido comigo, né?” (G2). Já sobre o bebê ser parecido com o pai, as gestantes relataram o desejo tanto de que isso acontecesse: “Eu quero muito que ela tenha o olho claro, porque ele tem o olho bem claro, verde, então o meu sonho é que ela tenha olho claro” (G3); quanto de que ele não tivesse quais-quer semelhanças com o pai: “Tudo que eu não queria é que ele fosse assim, redondinho igual-zinho ao do pai. Fiquei até triste quando eu vi [na eco]” (G1).

Sentimentos e Expectativas em Relação às Características Psicológicas

Essa categoria se refere aos sentimentos e expectativas em relação às características psico-lógicas imaginadas para o bebê. As impressões foram baseadas tanto no comportamento do bebê naquele momento: “Às vezes eu fi co muito tempo de pé, ele fi ca chutando, chutando, chutando. Pelo jeito, acho que ele vai ser bem brabo, sabe, assim, bem brabinho” (G1); quanto no seu pró-prio comportamento, considerando este como capaz de infl uenciar o estado psíquico do bebê: “Eu acho que ele vai ser uma criança calma, porque a minha gestação inteira, eu procurei ao máximo fi car tranquila, não me incomodar, não me estressar com as coisas” (G6).

As gestantes também manifestaram im-pressões de que o bebê tivesse características psicológicas semelhantes às de suas famílias de origem: “Vai ser brabinho assim. Aqui em casa, tem bastante gente braba também, então não tem jeito, acho que o jeito dele é puxar os brabi-nho da família” (G1); ou a ela própria e ao pai: “Não vai ser muito bom de gênio porque eu sou muito irritada, muito gritona, muito mandona e ele [o pai] também é assim” (G7).

As mães ainda ressaltaram o desejo de o bebê apresentar uma determinada característica

psicológica: “Espero que seja uma criança bem calminha, que não seja muito agitada e que não dê muito trabalho” (G4). Também apareceu o descontentamento caso o bebê fosse parecido com o pai: “Eu não queria, mas eu não posso fazer nada se ele vai ser parecido com o pai, irritadinho” (G1).

Sentimentos e Expectativas em Relação à Interação Mãe-Bebê

Essa categoria compreende o modo como ocorre a interação mãe-bebê ainda na gestação, e os sentimentos e expectativas das gestantes en-volvidos nesta relação. As gestantes referiram que a sua interação com o fi lho ocorria através de conversas que elas tinham com ele:

Então eu fi co conversando: “A mãe fez isso, isso, isso para o teu pai, mas independente de a gente voltar ou não a mãe gosta muito de ti, a mãe te quis e por isso que tu tá aqui!” Eu converso muita coisa, muita coisa, às vezes eu vou dormir cinco horas da manhã de tanto falar! (G7) Da percepção dos movimentos fetais e do

toque na barriga: No começo é estranho, tu sente uma coisa muito boa por dentro, uma coisa diferente, uma harmonia diferente, mas é estranho. Não dá para negar que é estranho tu sentir que tem uma coisinha mexendo assim dentro da tua barriga. Mas é bom, é muito bom. (G3) “Eu acho tri bom, fi co mexendo nos pés dele enquanto ele faz isso. Eu começo a pegar nos pés e fazer cócegas” (G6); e da ecogra-fi a: “Foi legal. Chorei, me emocionei por-que é diferente. Uma coisa é tu saber que tu tá grávida, a outra é tu ver o bebê” (G6).

Sentimentos e Expectativas quanto à Saúde do Bebê

Nessa categoria foram incluídos os senti-mentos e as expectativas das gestantes com rela-ção à saúde do bebê. Elas referiram preocupações quanto ao desenvolvimento saudável do bebê:

Eu fi quei pensando: será que vai nascer bem? Vai nascer normal? Minha preocupa-

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ção é essa. Eu fi z uma ecografi a e a dou-tora disse que tava tudo bem, só que não dava para ver detalhadamente os dedinhos, a orelhinha. Esse que é o meu medo. (G2) Outras já demonstraram maior tranquilida-

de em razão de estarem cuidando da sua saúde: “Eu acho que ela vai nascer bem saudável, por-que eu como muita fruta, verdura, nunca mais fumei” (G8).

Discussão

O presente estudo teve como objetivo in-vestigar os sentimentos e as expectativas das gestantes solteiras em relação aos seus bebês. Os resultados revelaram que tais gestantes ma-nifestaram uma preferência defi nida por um dos sexos, mesmo sendo primíparas, o que não cor-robora as ideias apresentadas por alguns autores (Villeneuve, Laroche, Lippman, & Marrache, 1988; Wu & Eichmann, 1988). Eles referem que, em geral, as mães primíparas não costu-mam ter ou expressar uma predileção sobre o sexo do bebê, justamente por ainda não terem fi lhos. No caso das gestantes solteiras, é plausí-vel pensar que por estarem em uma posição mais vulnerável psiquicamente, podem ver no sexo do bebê uma possibilidade de reasseguramento da aceitação da gravidez por parte da sua famí-lia, como se este pudesse facilitar na instauração de um lugar de valor para ela e para o bebê e, com isso, reforçar a rede de apoio, que está falha pela ausência do pai. Além disso, a preferência por um dos sexos também pode estar relaciona-da às identifi cações intrapsíquicas estabelecidas ao longo da vida da gestante, seja ela solteira ou casada (Golse, 2002; Golse & Bydlowski, 2002; Lebovici, 1987; Stern, 1992, 1997).

Dependendo dessa psicodinâmica, o sexo masculino e o feminino podem ter várias repre-sentações e signifi cados para a gestante, uma vez que está ligado também à elaboração da femini-lidade e do complexo edípico (Bydlowski, 2002; Freud, 1924/1969). O masculino, por exemplo, pode representar a compensação da ausência do companheiro, dando a sensação de plenitude ou a perpetuação da frustração já vivida com o pai do bebê. Já o sexo feminino pode tanto oportu-

nizar uma revivência da relação dual com a mãe, permitindo que a gestante se sinta acompanhada, como representar a ameaça de que a fi lha venha a repetir a sua história (Golse, 2002). De qual-quer modo, tanto as gestantes solteiras do pre-sente estudo como as casadas investigadas por Piccinini et al. (2004), referiram que depois de terem conhecimento do sexo bebê este se tornou mais personalizado para elas, o que facilitou a relação da díade.

Sobre os sentimentos e expectativas em re-lação ao nome do bebê, as gestantes destacaram que a escolha se deu em função da preferência e gosto por um nome específi co ou devido às características psicológicas às quais o nome re-metia. Destacou-se a escolha por um nome for-te, o que possivelmente faz pensar no desejo de que os fi lhos sejam crianças capazes de supor-tar a falta do pai e a consequente fragilidade da mãe (Marin, Gomes, Lopes, & Piccinini, 2011; Szejer, 1999). Foi mencionada ainda a escolha do nome pelo signifi cado que este possui para a gestante, como, por exemplo, o nome de um anjo, o que pode estar relacionado à ideia de proteção.

Percebe-se que as gestantes deste estudo manifestaram um desejo de homenagear seu próprio pai, sendo que uma delas explicitou que seria uma forma de agradecimento por não ter se sentido criticada pela condição de mãe solteira. Com isso, pareciam pretender manter seus pais mais próximos da dupla, como uma possibilida-de de referência da fi gura masculina (Wall, José, & Correia, 2002).

Quanto aos sentimentos e expectativas co-muns em relação às características físicas do bebê, foram destacados impressões e desejos de que ele fosse parecido com a própria gestante ou com o pai do bebê. Ser parecido com a mãe pode signifi car a continuidade da linhagem fami-liar materna e de reforçar a relação entre a díade ou também remeter a uma ideia de ser recom-pensada pelo fato de ser a principal responsável pela criança, que assumiu e irá educá-la. Freud (1914/1969) já vinculava o desejo de ter um fi -lho ao desejo narcísico de imortalidade e, nesse sentido, os fi lhos serem parecidos com os pais atende, muitas vezes, essa realização narcísica.

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Além disso, o desejo da gestante de que fosse parecido consigo mesma, pode estar asso-ciado a uma solução para a castração por seu es-tatuto ilusório de completude narcísica (Zornig, 2010), em que nada ou ninguém seja necessário, nem mesmo um pai, o que pode também afas-tar o medo materno de um dia a criança querer procurá-lo. Wall et al. (2002) destacaram o risco de isolamento da criança na família monoparen-tal, por vezes devido ao sofrimento causado por confl itos vividos entre a sua mãe e o seu pai, e apontaram para o quanto isso pode não ser sau-dável para o desenvolvimento da criança.

Já o fato de algumas das gestantes expres-sarem expectativas do bebê ser parecido com o pai, pode estar representando o desejo de apro-ximação e de garantia da paternidade e de uma imagem não promiscua da mãe, especialmente entre as participantes do presente estudo, que re-lataram que tiveram um relacionamento afetivo com o pai do bebê, anterior a gestação. Isso nem sempre é o que ocorre entre as mães solteiras e vale lembrar que os encontros sexuais muitas ve-zes acontecem sem comprometimento afetivo, o que tem sido bastante comum no contexto atual de relacionamentos. Portanto, uma gravidez sem a presença do pai pode levar a julgamentos so-ciais preconceituosos, associados à promiscui-dade, descuido da saúde, e impulsividade, o que pode intensifi car as difi culdades próprias de uma gestação. Por outro lado, pelo menos uma das gestantes também manifestou o desejo de que o bebê não fosse parecido com o pai, o que pos-sivelmente denota seus sentimentos de tristeza, raiva, decepção e ressentimento pela sua ausên-cia. As características físicas do bebê semelhan-tes ao pai podem constantemente remeter a mãe à história de fracasso da relação conjugal.

Particularidades quanto às características psicológicas do bebê também foram relatadas, como, por exemplo, expectativas de que a crian-ça siga tendo um padrão de comportamento percebido na gestação. Também foram manifes-tadas as expectativas de que o seu próprio com-portamento como mãe na gestação infl uenciaria o estado psíquico do bebê. Esses achados cor-roboram o estudo de Piccinini et al. (2004) que

verifi cou as mesmas expectativas em gestantes casadas que também consideraram o compor-tamento intra-útero do bebê como um prelúdio para suas características psicológicas. Além disso, essas gestantes relacionavam o seu esta-do psíquico durante a gravidez como um fator importante para a constituição psíquica do bebê, inclusive, em alguns momentos, cuidando para manterem uma gestação tranquila. Percebe-se, assim, que a maternidade envolve uma situação subjetiva, que acaba não dependendo exclusiva-mente do tipo de confi guração familiar, como ser solteira ou casada, e afi rmações nessa direção podem ser meros preconceitos.

No que diz respeito às expectativas e sen-timentos acerca da interação mãe-bebê, as ges-tantes referiram que estas ocorriam através das percepções dos movimentos fetais e do toque na barriga, através da visualização do bebê na ecografi a, bem como em conversas com o bebê. Percebeu-se que estas últimas referiam-se à questões relativas à ausência do pai e ao reasse-guramento do amor materno. Tais conversas po-dem também ser entendidas como uma busca da mãe para elaborar a confl itiva vivida com o pai do bebê, além de consolidar a sua relação com a criança. Isso pode trazer ganho para a relação da díade, e por isso contribuir para minimizar as consequências do confl ito entre os pais, e me-lhorar o desenvolvimento emocional da crian-ça (Clarke-Stewart et al., 2000; Finger, Hans, Bernstein, & Cox, 2009).

Por fi m, sobre as expectativas e sentimentos quanto à saúde do bebê apareceram relatos indi-cando preocupações quanto ao desenvolvimento do bebê estar saudável, bem como o sentimento de tranquilidade das gestantes em razão de es-tarem cuidando da sua própria saúde. Uma vez que a gestação é um período de formação do bebê, é esperado que existisse certa preocupação com o desenvolvimento do bebê, o que denota a presença de vínculo da mãe com o bebê. Entre tantas incertezas, o que está ao alcance da mãe para diminuir seu sentimento de impotência é o cuidado que ela pode tomar com sua saúde física e psicológica. Portanto, cuidar-se é algo que a mãe pode controlar, uma postura ativa que ela

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pode decidir assumir, o que, consequentemente, traz tranquilidade acerca do bem-estar do bebê. Esses dados também corroboram os achados de Piccinini et al. (2004) que encontraram estes mesmos sentimentos em relação à saúde do bebê entre gestantes casadas.

Em conjunto, os resultados desse estudo le-vam a pensar que a maternidade por si só implica uma experiência complexa psiquicamente, e que as mães solteiras, por vezes, tendem a vivenciá--la com maiores difi culdades, as quais já se ma-nifestam desde a gestação. Isso porque sentimen-tos de desilusão e ressentimento da mãe podem permear todo o processo de gestação, deixando, muitas vezes, marcas de tristeza, desesperança, insegurança e irritabilidade. Além disso, assumir a responsabilidade por um fi lho sozinha, não é uma situação simples e fácil e pode estar asso-ciada a sofrimento por ser diferente de um ideal social, que também pode fazer parte da subjetivi-dade da própria gestante. Isto é, ver-se e deixar--se ver como sendo uma mãe solteira pode se constituir em uma vivência difícil para a mulher. Ressonâncias dessa vivência permearam as ex-pectativas e sentimentos em relação ao bebê das gestantes do presente estudo e estas abrangeram diversos aspectos investigados como o sexo e o nome do bebê, suas características, sua saúde e a interação mãe-bebê.

Contudo, é importante sublinhar que o fato de ser uma mãe solteira e ter algumas expecta-tivas, sentimentos e vivências mais difíceis não implicam necessariamente em um impacto nega-tivo para a relação dela com o bebê e para a cons-tituição psíquica da criança. Isso eventualmente pode até se tornar um problema na presença de outras questões individuais e/ou sociais, que ve-nham a potencializar a vulnerabilidade psíquica e as difi culdades inerentes à situação.

Nesse sentido, sabe-se que a maternida-de solteira tem sido cada vez mais frequente na sociedade ocidental, tendo em vista o papel que a mulher vem ocupando, caracterizado por uma maior independência e autonomia. Além disso, as confi gurações familiares estão bastan-te diversas, impactando e refl etindo diferentes dinâmicas psíquicas dos membros envolvidos. Percebe-se também uma maior fragilidade quan-

to ao comprometimento das pessoas tanto em relação à conjugalidade como à parentalidade (Jablonski, 2005). A relação de consanguinidade ou de união não é mais sufi ciente para assegurar o exercício da parentalidade e a contemporanei-dade, ao incitar uma ruptura entre conjugalidade e parentalidade, demonstra que esta última deixa de ser o principal objetivo da estrutura familiar.

Uma vez que a atualidade comporta um borramento de referenciais simbólicos estáveis e uma pluralização das leis e de possibilidades de subjetivação, “tornar-se mãe” ou “tornar-se pai” passou a depender em maior grau da história in-dividual e do desejo de cada um dos genitores do que de um modelo de família nuclear tradicional (Julien, 2000; Roudinesco, 2003; Zornig, 2010). Decorrente disso destaca-se a importância de se estudar estas diversas e novas lógicas psíquicas que estão embasando a parentalidade, como, por exemplo, as mães solteiras.

No entanto, ainda são poucas as pesquisas nacionais sobre estes temas, o que sinaliza para a necessidade de que novos estudos sejam reali-zados para entender, por exemplo, como as mães solteiras tendem a lidar com os desafi os desse contexto e que fatores podem ajudar no estabe-lecimento de uma relação mãe-bebê próxima e saudável. Nesse sentido, é importante que equi-pes de saúde estejam atentas a essa situação, tanto na gestação como nos primeiros anos de vida da criança que são os mais importantes para a constituição psíquica do bebê. Isto se faz particularmente necessário em situações de carência econômica, social e afetiva, que podem exacerbar, expressivamente, as difi culdades en-contradas pelas mães solteiras. Espera-se que esse estudo desperte nos psicólogos e demais profi ssionais de saúde interesse pelo assunto para que se dediquem ao relevante trabalho de acompanhar as mães, especialmente as soltei-ras que apresentem alguns riscos com relação à construção da sua maternidade e de sua relação com o fi lho.

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Recebido: 05/08/20131ª revisão: 17/02/2014

Aceite fi nal: 25/08/2014