Exílio - Do Iraque à Israel

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WebMosaica REVISTA DO INSTITUTO CULTURAL JUDAICO MARC CHAGALL v.6 n.1 (jan-jun) 2014 Exílio: do Iraque a Israel Exile: from Iraq to Israel NANCY ROZENCHAN Professora colaboradora do Programa de Estudos Judaicos da Universidade de São Paulo, na área de Literatura Hebraica e Judaica e de Cultura Judaica. RESUMO por mais de 2.500 anos judeus habitaram o Iraque, antiga Babilônia, onde desenvolveram uma importante cultura. No século XX, diversos escritores judeus destacaram-se na literatura árabe local. Esta pertença à cultura do país foi interrompida após a criação do Estado de Israel, quando os 120 mil judeus que viviam no antigo país foram expulsos, sendo que a maioria deles se assentou no país recém-nascido. O abismo surgido com a passagem de uma cultura à outra foi considerado pelos escritores como a passagem a um novo exílio. Somente após algumas décadas, uns poucos autores começaram a escrever em hebraico, mas ainda se passaria um longo período até que a sua escrita passasse a ser incluída no cânon literário do país. Por meio da obra de alguns autores israelenses de origem iraquiana [Sami Michael, Shimon Ballas e Eli Amir] será exposta a condição de “exílio” tal como se mostra em seus escritos. PALAVRAS-CHAVE exílio, imigrantes judeu-árabes em Israel, literatura do exílio, literatura hebraica, autores nascidos no Iraque. ABSTRACT For over 2500 years Jews lived in Iraq, ancient Babylon, where they developed an important culture. In the 20 th century, several Jewish writers stood out in the local Arabic literature. This belonging to the country’s culture was cut out after the creation of the State of Israel, when the 120,000 Jews who lived in the old country were expelled, and the majority of them settled in the newborn country. The gap that emerged with the passage from one culture to another was considered by the writers as the gateway to a new exile. Only after several decades, some authors began writing in Hebrew, but only after a long period their books came to be included in the literary canon of the country. The condition of “exile” will be exposed through the books of some Israeli authors of Iraqi origin [Sami Michael, Shimon Ballas and Eli Amir]. KEYWORDS Exile, Jewish-Arab immigrants in Israel; Exile Literature, Hebrew literature; Authors born in Iraq. Se há povo que tem uma longa hiStória de exílio, eSte é o povo judeu. Seus membros espalharam-se por muitas terras, em algumas das quais se instalaram inicialmente como exilados, e, em muitas outras, compondo a diáspora. A mais antiga comunidade judaica exilada foi a que viveu no Iraque, local da antiga Babilônia, até o início da década de 1950. Em 722 aEC, as tribos do norte de Israel foram derrotadas pelos assírios e um número considerável de judeus foi levado para o que é hoje conhe- cido como Iraque, onde se mesclaram à população. A maior comunidade judaica foi criada naquele país em 586 aEC, quando os babilônios conquistaram as tribos do sul de Israel e escravizaram os judeus conduzindo-os para lá. Segundo o relato bíblico, eles puderam posteriormente retornar à terra dos antepassados, mas a maioria não o fez. Nos séculos seguintes, a região tornou-se mais hospitaleira para os judeus e foi o lar de muitos estudiosos proeminentes. A obra mais importante produzida ali foi o Talmude Babilônico, redigido entre os anos 500 e 700 dEC. Tendo vivido tão longamente ali, preservando a cultura judaica em meio a uma po- pulação de diversas línguas e culturas até que o árabe e religião muçulmana passassem a predominar, é indispensável expor alguns dados para se entender o que significou este relacionamento e por que ele foi aqui selecionado para tratar de exílio. O exílio a ser abordado não é aquele registrado nos textos bíblicos e pelo qual se lamentou o povo he-

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  • WebMosaica revista do instituto cultural judaico marc chagall v.6 n.1 (jan-jun) 2014

    Exlio: do Iraque a IsraelExile: from Iraq to Israel

    nancy rozenchanProfessora colaboradora do Programa de Estudos Judaicos da Universidade de So Paulo, na rea de Literatura Hebraica e Judaica e de Cultura Judaica.

    resumo por mais de 2.500 anos judeus habitaram o Iraque, antiga Babilnia, onde desenvolveram uma importante cultura. No sculo XX, diversos escritores judeus destacaram-se na literatura rabe local. Esta pertena cultura do pas foi interrompida aps a criao do Estado de Israel, quando os 120 mil judeus que viviam no antigo pas foram expulsos, sendo que a maioria deles se assentou no pas recm-nascido. O abismo surgido com a passagem de uma cultura outra foi considerado pelos escritores como a passagem a um novo exlio. Somente aps algumas dcadas, uns poucos autores comearam a escrever em hebraico, mas ainda se passaria um longo perodo at que a sua escrita passasse a ser includa no cnon literrio do pas. Por meio da obra de alguns autores israelenses de origem iraquiana [Sami Michael, Shimon Ballas e Eli Amir] ser exposta a condio de exlio tal como se mostra em seus escritos.

    palavras-chave exlio, imigrantes judeu-rabes em Israel, literatura do exlio, literatura hebraica, autores nascidos no Iraque.

    abstract For over 2500 years Jews lived in Iraq, ancient Babylon, where they developed an important culture. In the 20th century, several Jewish writers stood out in the local Arabic literature. This belonging to the countrys culture was cut out after the creation of the State of Israel, when the 120,000 Jews who lived in the old country were expelled, and the majority of them settled in the newborn country. The gap that emerged with the passage from one culture to another was considered by the writers as the gateway to a new exile. Only after several decades, some authors began writing in Hebrew, but only after a long period their books came to be included in the literary canon of the country. The condition of exile will be exposed through the books of some Israeli authors of Iraqi origin [Sami Michael, Shimon Ballas and Eli Amir].

    keywords Exile, Jewish-Arab immigrants in Israel; Exile Literature, Hebrew literature; Authors born in Iraq.

    Se h povo que tem uma longa hiStria de exlio, eSte o povo judeu.

    Seus membros espalharam-se por muitas terras, em algumas das quais se instalaram

    inicialmente como exilados, e, em muitas outras, compondo a dispora. A mais antiga

    comunidade judaica exilada foi a que viveu no Iraque, local da antiga Babilnia, at o

    incio da dcada de 1950. Em 722 aEC, as tribos do norte de Israel foram derrotadas

    pelos assrios e um nmero considervel de judeus foi levado para o que hoje conhe-

    cido como Iraque, onde se mesclaram populao. A maior comunidade judaica foi

    criada naquele pas em 586 aEC, quando os babilnios conquistaram as tribos do sul

    de Israel e escravizaram os judeus conduzindo-os para l. Segundo o relato bblico, eles

    puderam posteriormente retornar terra dos antepassados, mas a maioria no o fez.

    Nos sculos seguintes, a regio tornou-se mais hospitaleira para os judeus e foi o lar de

    muitos estudiosos proeminentes. A obra mais importante produzida ali foi o Talmude

    Babilnico, redigido entre os anos 500 e 700 dEC.

    Tendo vivido to longamente ali, preservando a cultura judaica em meio a uma po-

    pulao de diversas lnguas e culturas at que o rabe e religio muulmana passassem a

    predominar, indispensvel expor alguns dados para se entender o que significou este

    relacionamento e por que ele foi aqui selecionado para tratar de exlio. O exlio a ser

    abordado no aquele registrado nos textos bblicos e pelo qual se lamentou o povo he-

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    breu, como consta em Salmos 137,5 Se eu me es-

    quecer de ti, Jerusalm, esquea-se a minha mo di-

    reita da sua destreza. Trata-se do sentimento que

    atingiu a populao judaica local que, ante as amea-

    as do governo iraquiano, transferiu-se quase inte-

    gralmente para Israel, entre 1950 e 1952, na opera-

    o que ficou conhecida como Esdras e Neemias,1

    e que se tornou tema importante dos diversos escri-

    tores nativos do Iraque que escreveram em hebraico.

    Graas a obras de diversos autores, o assunto

    da presena e atuao dos judeus no Iraque no s-

    culo XX e, em especial, o que se seguiu a isto aps

    a imigrao a Israel, uma questo que, mesmo

    depois de mais de 60 anos desta imigrao, cada

    vez desperta maior interesse de pesquisa e anlise,

    incluindo as concepes recentes referentes a colo-

    nialismo, ps-sionismo e ps-modernismo, confor-

    me desenvolvidos por historiados, analistas pol-

    ticos e socilogos.

    Segundo Reuven Snir (2005),2 no perodo mo-

    derno no houve lugar no mundo muulmano e/

    ou rabe onde os judeus estivessem to abertos

    participao na moderna cultura rabe de forma

    mais ampla do que no Iraque. A fundao em 1864

    da escola da rede francesa judaica Alliance Israeli-

    te Universelle em Bagd, onde a educao era pre-

    dominantemente secular, teve um importante pa-

    pel na modernizao da comunidade local que

    gradualmente tornou-se mais aberta para o mundo

    exterior, em proporo maior do que a vivida pe-

    las populaes crist e muulmana.

    Desde o incio do sculo XX, a partir do desejo

    de integrar-se na sociedade ampla como rabes da

    f judaica, os judeus iraquianos, que cumpriam

    papel preponderante no comrcio, artesanato e no

    funcionalismo pblico, tiveram grande motivao

    para mostrar sua atividade extensa na sociedade

    local; era como se a lngua rabe e sua cultura es-

    crita corressem em suas veias. Mais de uma vez o

    estilo rabe fluente dos judeus foi considerada su-

    perior mdia dos seus pares no-judeus. Mesmo

    quando a educao rabe passou a ser mesclada

    com o ensino da religio muulmana, os judeus

    no se viram tolhidos no desejo de aprender a ln-

    gua e sua cultura. Em 18 de julho de 1921, um ms

    antes de sua coroao como o rei do Iraque, Amir

    Faysal (1883-1933) declarou perante os lderes da

    comunidade judaica que no h distino entre

    muulmanos, cristos e judeus (FAYSAL apud

    SNIR, 2005). Pioneiros da modernizao e ociden-

    talizao, eles foram igualmente participantes do

    movimento rabe nacional.

    Judeus no Iraque passaram a escrever no rabe

    literrio segundo a norma culta fusha na primeira

    dcada do sculo XX, principalmente no jornalis-

    mo, ramo que se desenvolveu como resultado tan-

    to da liberalizao no Imprio Otomano como da

    secularizao e da educao moderna.

    Em 1908 a comunidade recebeu a igualdade

    formal dos direitos e da liberdade de religio. Du-

    rante o reinado de Faysal I, quando o governo foi

    exercido pelos britnicos, os direitos dos judeus

    foram garantidos.

    De acordo com o anurio sobre a populao

    de Bagd daquela poca, os nmeros da populao

    da cidade eram os seguintes: rabes, turcos e outros

    muulmanos, exceto persas e curdos: 101.400; per-

    sas, 800; curdos 8.000; judeus, 80.000; cristos,

    12.000.3 No censo de 1920, havia 87.488 judeus no

    Iraque. Judeus tinham assentos no parlamento, re-

    presentantes nos diversos setores de cmaras de

    comrcio, o direito de conduzir os sistemas de en-

    sino religioso independentes. Em 1922, o Imprio

    Britnico recebeu o mandato sobre o Iraque e co-

    meou a transform-lo em Estado-nao moderno.

    Para a pesquisadora Esther Meir-Gliztenstein,

    a cooperao entre os britnicos e a comunidade

    judaica do Iraque, que foi o meio pelo qual mui-

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    tos judeus obtiveram ganhos socioeconmicos e

    aprimoraram o seu status na sociedade do pas, foi

    uma das causas que solaparam a posio dos ju-

    deus ali medida que o sentimento anti-britnico

    se intensificou com o crescimento do nacionalis-

    mo rabe. (MEIR-GLITZENSTEIN, 2004 apud

    BEN-OR, 2011, p. 14).

    Contrastando com a densidade da atuao cul-

    tural dos judeus no Iraque, a imagem de coopera-

    o cultural e tolerncia religiosa que emergiu em

    Bagd naquela poca foi produto de um perodo

    de tempo muito limitado, de um espao muito

    confinado e de uma histria singular.

    Em 1924 comeou a ser publicado o peridico

    al-Misbah [O castial] mantido e editado princi-

    palmente por judeus, cujo propsito inicial foi

    contribuir para a cultura rabe muulmana ira-

    quiana, sem cumprir uma agenda judaica. Outros

    peridicos se seguiram. Os judeus iraquianos ti-

    nham comeado a produzir obras que eram rabes

    em essncia e em expresso.

    O carter da literatura que escreveram foi secu-

    lar. Escreveram em diversos gneros, mas sua con-

    tribuio mais marcante literatura iraquiana foi

    o conto curto. Se h algum aspecto judaico relacio-

    nado a ela, apenas a origem tnica e religiosa dos

    autores. Alm do uso da elevada norma fusha da

    linguagem, nos dilogos foi utilizada a linguagem

    verncula popular. Os autores tinham conscincia

    das tcnicas do conto europeu moderno, principal-

    mente porque vrias das tradues para o rabe de

    literatura europeia eram feitas por judeus. Os prin-

    cipais nomes da poca foram Salim Ishaq [1877-

    1949], Fata Israil [pseudnimo significando Juven-

    tude de Israel], Murad Mikhail [1906-1986], Anwar

    Shaul [1904-1984], Ezra Haddad [1909-1972], Sal-

    man Shina [1898-1978], Shalom Darwish [1913-

    1998(?)] e Yaqub Bilbul [1920-2003]. Entretanto, os

    judeus iraquianos passaram a ser marginalizados

    das atividades literrias quando, sob influncia dos

    conflitos na Palestina, desencadearam-se eventos e

    atitudes visando a excluir os judeus do Iraque da

    posio que ocupavam at ento.

    At que comeassem a ocorrer aes anti-judai-

    cas nas dcadas de 1930 e 1940, quando muitos

    passaram a ser despojados de suas posies e a ser

    demitidos do trabalho, h quem considere que os

    judeus iraquianos viam-se como rabes de f judai-

    ca e no uma raa ou nacionalidade separada. A

    insatisfao iraquiana com o domnio ingls se

    somou propaganda antissemita e antissionista

    promovidas pelo Mufti de Jerusalm, Haj Amin

    al-Husseini, refugiado no Iraque, que teve conhe-

    cida vinculao com o regime nazista. O pogrom

    de Bagd em 1941, conhecido como Farhud [de-

    sapropriao violenta], quando mais de 150 judeus

    foram mortos, considerado o incio do fim da

    mais antiga comunidade judaica fora de Israel. An-

    te esta situao que se agravou paulatinamente, jo-

    vens encontraram abrigo ideolgico e de atuao

    em grupos clandestinos comunistas ou sionistas.

    Nestas mesmas dcadas de 1930 e 1940, judeus

    que pertenciam a movimentos comunistas come-

    aram a se sentir tolhidos em suas atividades. Co-

    mo resultado da escalada do conflito no Oriente

    Mdio, a identificao religiosa e nacional foi tur-

    vada e as distines anteriores feitas por naciona-

    listas rabes entre a religio judaica e sionismo po-

    ltico gradualmente desapareceram. A definio de

    arabismo se tornou cada vez mais estreita e excluiu

    os judeus que se tornaram alvos de antissionismo

    e antissemitismo. Enquanto os que se voltaram ao

    Sionismo lutaram pelo estabelecimento de um Es-

    tado judaico independente, os comunistas lutaram

    contra o regime corrupto e por direitos iguais pa-

    ra todas as minorias.

    Foi neste perodo que se ampliou a atuao do

    movimento sionista no Iraque, visando a uma vin-

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    culao maior com os postulados que o guiavam,

    quais sejam a educao sionista e o estudo do he-

    braico, a autodefesa e a imigrao a Israel. Estes

    postulados tiveram, segundo alguns dos pesquisa-

    dores, uma penetrao mais difcil no Iraque do

    que em outros pases, uma vez que at ento os ju-

    deus locais no sentiam necessidade de expressar

    os seus anseios judaicos segundo estes princpios

    e, como mencionado, estavam bastante vinculados

    cultura rabe local. Alm disto, no tinham in-

    teresse em se dedicar agricultura, ponto bsico na

    arregimentao de novas imigraes para a Palesti-

    na, e nem nos ideais socialistas do labor manual.

    Aps o plano de partilha da Palestina da ONU,

    a ecloso da Guerra da Independncia, e o estabe-

    lecimento do Estado de Israel em 1948, intensifi-

    cou-se no Iraque a perseguio aos judeus. Em 1948,

    o Iraque foi colocado sob lei marcial, e as penali-

    dades para a difuso e prtica do Sionismo foram

    aumentadas. Tribunais marciais foram usados para

    intimidar os judeus ricos, muitos outros foram de-

    mitidos do servio pblico, foram fixadas quotas

    nas universidades, empresas de judeus foram boi-

    cotadas, o que levou ao aumento da movimenta-

    o de fuga para Israel. Como resultado da deciso

    do governo iraquiano, de que os judeus podiam

    deixar o pas desde que desistissem de sua cidada-

    nia e de suas propriedades, a quase totalidade des-

    ta populao dirigiu-se a Israel. Foram 120 mil os

    que se transferiram ao novo pas.

    Israel recebia naqueles anos grandes fluxos imi-

    gratrios, sem dvida uma consistente contribui-

    o para o pas que necessitava urgentemente au-

    mentar a sua populao e, simultaneamente uma

    pesada carga que no pde imediatamente ser as-

    similada devido falta de recursos. Os novos imi-

    grantes foram abrigados no que se chamou de maa-

    barot [hebraico: plural de maabar, moradia tran-

    sitria], campos com conjuntos de moradias mui-

    to precrias compostas de galpes de zinco e tendas

    de lona e com uma infraestrutura no mnimo la-

    mentvel. Em 1949 havia 90 mil judeus abrigados

    em maabarot; no final de 1951 essa populao era

    constituda por 220 mil pessoas, em cerca de 125

    comunidades separadas, localizadas nas periferias

    e distantes dos grandes centros onde se encontra-

    vam os melhores empregos. Judeus provenientes

    do Iraque em nmero de 80 mil foram o principal

    grupo tnico vivendo nestes campos. Os judeus

    iraquianos, pertencentes em sua maioria classe

    mdia e mdia baixa, chegaram a Israel totalmen-

    te desprovidos de recursos. Nos campos havia igual-

    mente sobreviventes da Sho, mas a maioria dos

    moradores provinha de pases rabes e muulma-

    nos. Este sistema de moradia perdurou at 1963.

    De uma situao em que se sentiam e se com-

    portavam como uma parte integral da textura cul-

    tural e social de um pas, ainda que houvesse uma

    linha ntida separando judeus de iraquianos rabes,

    os imigrantes de Bagd passaram a enfrentar nas

    maabarot situaes muito adversas em um ambien-

    te de choque cultural extremo: famlias ou grupos

    familiares foram divididos em campos diversos,

    rompendo antigas estruturas de relacionamento,

    onde o pai ocupava uma posio de autoridade

    patriarcal e a me cuidava dos filhos e afazeres do-

    msticos; desenvolvimento de sentimentos de alie-

    nao e estranhamento ante o judasmo laico ou

    a ortodoxia neo-modernista de grande parte do

    pas e de vizinhos das moradias, provenientes da

    Europa; vida margem da sociedade e falta de von-

    tade de compartilhar os princpios da nao; ne-

    cessidade de adaptar-se nova lngua, o hebraico,

    e aos diversos matizes da cultura preponderante

    no pas fundada nos princpios sionistas estabele-

    cidos pelos pioneiros provenientes da Europa ashque-

    nazita; dificuldade de assumir uma nova identida-

    de com base nestes princpios; menosprezo formal

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    e oficial cultura rabe em geral e cultura rabe/

    judaica iraquiana em particular; recepo humi-

    lhante quando da chegada ao pas, quando foram

    borrifados com desinfetantes para evitar a disse-

    minao de doenas. Sendo o maior grupo imi-

    grante vivendo nas moradias provisrias, e cuja

    presena ali foi a mais prolongada, estas situaes

    foram mais intensamente sentidas pelos judeus ira-

    quianos, e reverberaram com muito mais fora e

    por muito mais tempo entre os mesmos e na so-

    ciedade israelense em geral. Entre os intelectuais

    vindos do Iraque, pesou, acima de tudo, a abolio

    da cultura rabe que lhes era inerente e a substitui-

    o forada da lngua. A lngua da nova sociedade

    era o hebraico enquanto o rabe se tornou a lngua

    do inimigo. A literatura hebraica de autores nas-

    cidos no Iraque o testemunho destes sofrimen-

    tos, do que foi por eles considerado como um no-

    vo exlio, onde, ainda que de alguma forma mais

    protegidos, no encontraram espao para a manu-

    teno da identidade nativa.

    Os nomes dos autores que se destacaram nas

    dcadas de 1920 a 1940 no pas de origem pratica-

    mente desapareceram em Israel ou porque no imi-

    graram ou porque a literatura escrita em rabe so-

    bre temas do Iraque no tinha mais lugar. No no-

    vo pas e na nova lngua so trs os primeiros e

    principais escritores que expuseram e/ou denun-

    ciaram as agruras do exlio e repetidamente usa-

    ram o dilogo subversivo que ocorre entre estes

    textos e a narrativa sionista. Posteriormente, outros

    autores mais jovens, israelenses natos, em geral ori-

    ginrios de famlias que tinham vindo de pases

    rabes e no necessariamente do Iraque, se soma-

    ram queles que no incio trouxeram baila as

    dores da mudana forada da nova identidade. Sa-

    mi Michael [Bagd, 1926- ], Shimon Ballas [Bagd,

    1930- ] e Eli Amir [Bagd, 1937- ], ao comearem

    a escrever em hebraico vrios anos aps a sua che-

    gada a Israel, estabeleceram o modelo daquilo que

    se convencionou denominar de literatura da maa-

    bar, que foi onde no comeo se mostrou a vida

    dos imigrantes. Sami Michael e Shimon Ballas j

    tinham comeado a carreira literria em rabe no

    pas de origem, enquanto a escrita de Eli Amir se

    deu sempre em hebraico.

    Sami Michael tinha sido expulso do Iraque de-

    vido atividade comunista, e se dirigiu a Israel

    antes da emigrao em massa, enquanto Ballas e

    Amir vieram com a principal onda de imigrantes

    iraquianos. Ballas e Amir foram enviados imedia-

    tamente para maabarot com as suas famlias. Mi-

    chael, chegado pouco antes da poca da imigrao

    em massa, viveu inicialmente em Haifa. Com a

    chegada de seus familiares, juntou-se a eles para

    viver em uma maabar. A maabar foi um recurso

    formativo da narrativa destes autores, e funcionou

    tanto como um espao fsico concreto, assim co-

    mo um local simblico ou potico. A experincia

    da moradia em campo transitrio de judeus ira-

    quianos imediatamente aps a imigrao em mas-

    sa um fio comum que une alguns dos textos de

    sua autoria. Ocupou o centro da conscincia de

    cada autor, e ajudou a moldar identidades do per-

    sonagem individual. O campo transitrio pode ser

    considerado simultaneamente um espao de con-

    tato fsico e simblico em que passado, presente e

    futuro colidem conduzindo a um conflito frequen-

    temente no socivel.

    O campo transitrio serve de ncleo para o

    primeiro romance que cada um dos trs escritores

    escreveu em hebraico. Foram eles Hamaabar, [O

    campo transitrio], 1964, de Shimon Ballas, Sha-

    vim veShavim Yoter [Todos so iguais mas alguns

    so mais], 1974, de Sami Michael, e Tarnegol Ca-

    parot [Galo expiatrio], 1983, de Eli Amir. Ballas

    comeou a escrita do seu livro ainda em rabe, mas

    depois passou para o hebraico. J de incio, chama

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    a ateno o perodo que se passou desde a chegada

    de cada um dos autores 1950 a 1951 at o lan-

    amento do respectivo livro, assim como o espao

    de praticamente uma dcada entre os romances.

    As obras refletem os aspectos traumticos da imi-

    grao e instalao nos campos como parte essen-

    cial da identidade coletiva dos judeus iraquianos.

    Ao se colocar lado a lado os textos, torna-se poss-

    vel verificar os sentidos e funes mltiplos dos

    campos e qual foi o papel representado na litera-

    tura destes autores imigrantes.

    O que ocorreu com o judasmo iraquiano foi

    um caso nico em que uma comunidade, pratica-

    mente de forma integral, foi deslocada no espao

    e reinstalada de forma diversa, atribulada talvez,

    em Israel. A memria e nostalgia do passado se

    cruzam com a realidade do presente na maabar

    em Israel, e com as expectativas do que o futuro

    iria ou poderia ser, criando uma forte tenso que

    se estender para alm do perodo transitrio. Ca-

    da uma das narrativas contm elementos autobio-

    grficos que apontam para a experincia pessoal e

    sofrimento que modelaram a vida de cada autor.

    A transio de uma lngua para a outra teve um

    peso significativo na natureza desta escrita e no

    modo de representao nas narrativas. Como indi-

    cado por Snir, a tenso prevalecente na transio

    de escrever em rabe para escrever em hebraico a

    transio entre a cultura rabe a uma narrativa que

    v o hebraico como a lngua do movimento sionis-

    ta (SNIR, 2005, p. 313 apud BEN-OR, 2011, p.11).

    A literatura da maabar foi apenas o primei-

    ro captulo oficial na literatura da entrada da te-

    mtica do tratamento restritivo que judeus do Ira-

    que sofreram. As posies dos trs autores mencio-

    nados e, em particular a de Shimon Ballas, foram

    se consolidando em suas outras obras e em mani-

    festaes diversas que os tornaram conhecidos do

    pblico a partir das quais os assuntos vinculados

    quilo que expunham passaram a ser voz corrente.

    Apesar das riquezas de suas obras, os autores, as-

    sim como seu modo de ser, foram marginalizados

    no comeo; eles no pertenciam ao cnone da li-

    teratura e da cultura do pas e no mereceram aten-

    o. Eram, no mximo, considerados como vozes

    tnicas dando expresso a pontos de vista e ques-

    tes relevantes a apenas um setor limitado da so-

    ciedade israelense. Como as razes do nacionalismo

    judaico estavam fincadas na Europa Oriental e a

    orientao global da cultura cannica israelense

    moderna predominantemente ashquenazita pr-

    -ocidental, no de admirar que a cultura rabe

    tivesse sido rejeitada pelos crculos dominantes.

    Refiro-me tanto cultura rabe dos judeus vindos

    do Iraque, como cultura rabe local, dos palesti-

    nos. A respeito deste sentimento assim se manifes-

    tou Ella Shohat (2003), famosa por seus trabalhos

    na rea de estudos culturais e sobre mulheres e ci-

    nema, e por ser uma das vozes mais fortes denun-

    ciando a discriminao: despojados de nossa his-

    tria, fomos forados pela nossa situao sem sa-

    da a reprimir nossa nostalgia coletiva.

    Snir analisa esta questo baseando-se no pensa-

    mento de Edward Said sobre o Orientalismo. O

    centro cultural israelense ashquenazita ocidentali-

    zado imps limites ao legado rabe judaico. Men-

    cionando Said, a sua assertiva de que este centro

    tem uma viso poltica de realidade cuja estrutura

    promoveu a diferena entre o familiar e o estranho

    [o Oriente, os outros]. Segundo G. Piterberg, os

    rabes judeus foram forados a negar a sua mem-

    ria e a sua cultura assim como o judeu exilado

    foi forado a fazer, seguindo o modelo geral da

    negao do exlio,4 a fim de se transformarem e

    se tornarem elegveis a fazer parte da comunidade

    sionista/israelense imaginada (PITERBERG, 1996

    apud SNIR, 2005). Nota-se que o historiador Pi-

    terberg (1996) utiliza o conceito de rabe-judeu,

  • Exlio: do Iraque a Israel nancy rozenchanExile: from Iraq to Israel

    [56]

    WebMosaica revista do instituto cultural judaico marc chagall v.6 n.1 (jan-jun) 2014

    que anteriormente tinha sido usado por naciona-

    listas rabes ao se referirem aos judeus dos diversos

    pases rabes. Shimon Ballas o utiliza usualmente

    assim como o fazem alguns outros estudiosos do

    assunto. Consta que o primeiro a utiliz-lo entre

    os judeus foi o autor Albert Memmi (1975).5 Quan-

    do comeou a ser utilizado referiu-se ao cerca de

    um milho de judeus dos pases rabes, no s do

    Iraque. Eram falantes do rabe, dos dialetos rabes

    e das lnguas rabes judaicas como primeira lngua

    de comunicao, sendo o hebraico reservado s

    questes litrgicas. Nas dcadas mais recentes o

    usam judeus que se identificam como judeus ra-

    bes, um conceito relativamente antissionista, em

    contraste com a categorizao do establishment de

    judeus como ashquenazitas, judeus provenientes

    do centro e leste da Europa, ou mizrachim, este

    ltimo significando orientais. A j citada Ella

    Shochat (1992, p 8; 2003) considera que quando

    se menciona mizrachim fala-se de pessoas que fo-

    ram to oprimidas quanto os rabes, no judeus,

    ou, subentende-se, palestinos que foram oprimidos.

    Pessoas que propugnam atualmente o uso do

    termo Judeus rabes argumentam que rabe

    um termo mais lingustico e cultural do que tni-

    co, racial ou religioso; que os judeus nos pases ra-

    bes participaram integralmente daquela cultura, e

    que as minorias tnicas que o fizeram so rabes.

    David Rabeeya (2000, pp. 49-50), pesquisador

    originrio do Iraque, considera que judeus ra-

    bes eram culturalmente rabes com compromisso

    religioso para com o judasmo e que tinham orgu-

    lho de sua vinculao com a lngua rabe e seus

    dialetos e mantinham uma ligao emocional pro-

    funda com sua beleza e riqueza. Devido s diversas

    implicaes negativas do termo, h judeus origi-

    nrios do Iraque que preferem o subterfgio de

    denominar-se de judeus babilnios ou judeus

    de Bagd, o que parece lhes conferir um status

    histrico-cultural indelvel. Para o socilogo Yehu-

    da Shenhav (2006) o Sionismo uma prtica ideo-

    lgica com trs categorias simbiticas e simult-

    neas: nacionalidade, religio e etnicidade. Por isso,

    para serem includos no coletivo nacional, os ju-

    deus de pases rabes precisaram ser desarabizados.

    E h, naturalmente, os que abominam o termo.

    Para os poucos escritores de origem iraquiana

    que continuaram a escrever em rabe em Israel, a

    vida no novo pas foi essencialmente um exlio

    cultural. Um deles, Samir Naqqash expressou seus

    sentimentos nas seguintes palavras: Sinto que no

    perteno a parte alguma desde que as minhas ra-

    zes foram arrancadas do solo [no Iraque] (NA-

    QQASH citado em BERG, 2005 apud SNIR, 2005).

    O escritor iraquiano Najem Wali, nascido em

    1956, no-judeu, que vive na Europa, assim se ma-

    nifesta sobre escrita no exlio:

    Ser que ir para o exlio significa necessariamen-te o fim da memria e da imaginao do escritor de escrever sobre o l, e deve o escritor agora escrever apenas sobre o exlio? Eu respondo de forma simples e descarada: NO. Em primeiro lugar, porque uma escrita eficaz ser sobre a pes-soa exilada, mesmo se ele ou ela est vivendo no que pode ser chamado de a ptria, que mais um termo poltico do que criativo. Porque, no final, a ptria do escritor a lngua em que escreve, e sua casa o mundo que ele constri atravs de seu trabalho, assim como a ptria do viajante onde os seus ps podem cair. No h nenhuma relao entre o lugar potente onde eu sento e escrevo e imaginao criativa, que no conhece nenhum lugar especfico ou fronteiras. Para al-gum que acredita no valor da literatura, no o lugar onde ele escreve que importante, mas sim a natureza do trabalho criativo que ele produz. Pois qual o valor da obra que no respira ar

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    puro, que no escrita em liberdade mas sob o poder de um ditador ou de tabus sociais? Ser que esta obra serve a algum? Ser que ela com-pe um documento para a cultura do pas ou para toda a humanidade? (WALI, 2003)

    Dentre os de origem iraquiana que escrevem

    em hebraico em Israel, da gerao dos imigrantes,

    Ballas aquele que com mais frequncia procla-

    mou seu status de duplamente exilado. Era mem-

    bro da sociedade secular judaica no pas de origem,

    um rapaz de classe mdia que vivia no bairro cris-

    to de Bagd. Como muitos outros alunos da es-

    cola da Alliance Isralite Universelle, recebeu sli-

    da instruo em francs, ingls e rabe, em um

    sistema em que quase no havia espao para o he-

    braico. At ser obrigado a partir j tinha preenchi-

    do muitos cadernos com contos e observaes os

    quais ele queimou antes de partir, como se para se

    forar a desenvolver um novo incio. E ele o fez

    em Israel depois de aprender a lngua por conta

    prpria a partir da leitura de jornais. Sua separa-

    o da lngua-me foi empreendida fora. Seu

    primeiro romance em Israel foi originalmente es-

    crito em rabe e intitulado Mudhakkirat Khadima

    [Memrias de uma empregada]; mas antes de pu-

    blic-lo ele decidiu se voltar ao hebraico. Devotou-

    -se leitura da Bblia e da Mishn e depois se con-

    centrou na obra de S. Y. Agnon e outros escritores

    hebraicos. Mudhakkirat Khadima transformou-se

    em Hamaabar, que foi a primeira obra hebraica

    de um imigrante do Iraque.

    O romance retrata a tragdia de imigrantes ju-

    deus-rabes que foram arrancados de suas casas, re-

    duzidos pobreza, e sem contar com recursos sufi-

    cientes. A abordagem de Ballas foi contornar a pri-

    vao material e se concentrar em seu empobreci-

    mento cultural depois que seus valores morais e cul-

    turais mais caros foram rejeitados. Jogados em um

    ambiente hostil que demonstrou desprezo por sua

    cultura original, eles foram rotulados como excep-

    cionais, tornando-se assim vtimas de um processo

    organizado e institucionalizado de adaptao a uma

    cultura em que a lngua, literatura e msica rabes

    foram consideradas inferiores e armas do inimigo.

    Houve literatura de maabar produzida tam-

    bm por autores ashquenazitas, mas que atuaram

    segundo uma linha diversa. Batya Shimony (2008)

    entende o livro de Ballas como uma resposta ao

    primeiro romance hebraico a descrever a maabar,

    Shesh Knafaim leEchad, de Chanokh Bartov (1954).

    Enquanto o romance de Bartov abordava os pro-

    blemas societrios da maabar mas oferecia uma

    resposta que sugere que as dificuldades locais se-

    riam superadas pelos personagens, o romance de

    Ballas nem de longe oferece algum resultado oti-

    mista, mas exatamente o oposto.

    Por trs anos, enquanto escreveu o romance em

    hebraico, ele se proibiu de ler uma palavra sequer

    na antiga lngua. Somente iria retornar a ela quan-

    do passou a lecionar literatura rabe na Universi-

    dade de Haifa. Nas dcadas seguintes publicou co-

    letneas de contos e romances. Entretanto, ele con-

    tinuou sendo um forasteiro na literatura hebraica,

    talvez porque escreva sobre temas que pouco tem

    a ver com judaidade ou mesmo com Israel: a vida

    de um empregado rabe em Bagd, ou um arqui-

    teto palestino, ou um humanista islmico exilado

    em Paris. Os personagens de Ballas so pessoas

    ideolgicas, muito morais, que preferem manter

    uma maior independncia no mbito ou contexto

    em que vivem optando por uma vida marginaliza-

    da. Em entrevista ao autor e tradutor Ammiel Al-

    calay dos anos 1990, ele observou:

    Sou judeu por acaso, no algo especialmente marcante para mim. A ideologia sionista essen-cialmente uma ideologia ashquenazita que se de-

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    senvolveu em uma cultura diferente [...] e que veio obter reconhecimento aqui no Oriente Mdio por meio da alienao e hostilidade para com o meio ambiente [...]. No estou em conflito com o am-biente, vim do ambiente rabe e continuo a man-ter um colquio constante com o ambiente rabe. (BALLAS apud ALCALAY, 1996)

    Os conceitos sobre a antiga cultura no foram

    expressos de forma unnime. Sami Michael no

    deixou dvidas quanto ao seu ponto de vista sobre

    o valor da cultura da qual provinham os judeus-

    -rabes. Em um artigo intitulado A Cultura da

    Escada e da Cultura da Varanda (MICHAEL, 1983),

    ele rejeita qualquer tentativa de argumentar que o

    patrimnio cultural dos judeus rabes est no mes-

    mo nvel que os dos judeus europeus. Um ano mais

    tarde, ele publicou outro artigo (MICHAEL, 1984),

    no qual apresenta o que parece ser seu credo de ser

    um escritor judeu iraquiano em Israel. No Iraque,

    ele pertencia a uma minoria condenada a viver

    em uma conspirao do silncio, mas em Israel

    ele se transformou em um da maioria em cujo

    meio viveu uma minoria oprimida. A transio

    do Iraque para Israel e do rabe para o hebraico,

    diz Michael, uma transio de uma sociedade

    atrasada para uma desenvolvida. Por isso, ele en-

    frentou um problema: como descrever o encanta-

    dor, o belo e atraente na vida do Iraque sem escor-

    regar na nostalgia barata, e

    como transmitir a verdade sobre sua vida sem ferir o orgulho dos seus colegas imigrantes, sem aprofundar o sentimento de inferioridade de um dos lados [dos judeus orientais] e sem incentivar o sentimento de superioridade do outro lado [os judeus ashquenazitas]. (MICHAEL, 1983)

    O interesse desenvolvido nos ltimos anos em

    Israel e tambm fora dele por todos os assuntos

    ligados orientalidade [mizrachiyut] de grande

    parte da populao fez com que os principais es-

    critores oriundos do Iraque adquirissem notorie-

    dade. Ballas recebeu em 2003 a Medalha Presiden-

    cial pelo conjunto da obra literria, fato que, em

    termos concretos, salientou o seu carter de foras-

    teiro, oriental, que no submete o seu passado ao

    mito de uma experincia judaica universal. Fala

    por uma minoria ou pela prpria literatura. Na

    prtica, hoje, ele um romancista e se h algo de

    que ele fale, sobre escrita. Na mesma entrevista

    a Alcalay ele declarou:

    No estou em dilogo com o ponto de vista na-cionalista ou sionista. No mximo estou em di-logo com a prpria linguagem. Por um lado, eu estou tentando afastar, evitar ou neutralizar cone-xes ideolgicas ou associaes dentro da lin-guagem... eu provavelmente estou tentando trazer o meu hebraico cada vez mais perto do rabe. Isto no feito por meio de sintaxe, mas talvez por algum sentimento de estrutura ou forma de abordar as coisas. (BALLAS apud ALKALAY, 1996)

    Ballas considera que quando viveu no pas de

    origem, a questo de uma lngua colonial [francs,

    ingls] no lhe pareceu algo crucial. Assim, foi

    atravs de um livro ingls que ele leu em francs,

    aos quinze anos, [Iron Heel, de Jack London] que

    se aproximou do comunismo. A sua gerao foi

    mais influenciada por tradues de obras inglesas

    ou francesas; quanto s obras rabes originais es-

    critas na primeira metade do sculo XX, segundo

    Ballas elas somente atingiram os leitores anos mais

    tarde. Assim, ele fez parte da gerao que esteve,

    na literatura, preponderantemente voltada cul-

    tura ocidental ao mesmo tempo em que esteve vin-

    culado imprensa publicada em rabe.

  • Exlio: do Iraque a Israel nancy rozenchanExile: from Iraq to Israel

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    WebMosaica revista do instituto cultural judaico marc chagall v.6 n.1 (jan-jun) 2014

    Em Israel o autor tambm esteve associado ao

    Partido Comunista, mas se desligou do mesmo em

    1961. Ainda assim, suas posies polticas perma-

    neceram inalteradas e ele continuou a escrever so-

    bre questes sociais e culturais. Vrios outros ju-

    deus provenientes do Iraque, autores ou no, foram

    membros importantes do Partido Comunista em

    Israel. Uma tese de doutoramento recente a respei-

    to dos comunistas de Tel Aviv pergunta:

    Quem eram aqueles judeus iraquianos que se tornaram membros do Partido e como eles eram mais predispostos do que outros grupos de judeus no-europeus ao marxismo? A maioria dos ira-quianos recrutados pelo Partido comunista tinham um histrico revolucionrio em seu pas de origem. Os judeus iraquianos compunham 14,5% dos membros do Partido Comunista Iraquiano. Tinham boa formao uma vez que o partido iraquiano atraa principalmente jovens estudantes judeus na comunidade de Bagd. E eles eram seculares. O partido, em Israel, por sua vez, ficou feliz em recrutar os intelectuais judeus iraquianos e eles encontraram abrigo no peridico rabe do parti-do onde publicaram junto com intelectuais pales-tinos. (LOCKER-BILETZKI, 2013, pp. 45-48)

    Para Ballas, levando em conta as temticas de

    seus livros mais recentes, escrever em hebraico no

    algo particularmente significativo. Mesmo sendo

    um escritor hebraico e escrevendo em hebraico, ele

    no se sente afiliado literatura hebraica. O hebrai-

    co apenas uma ferramenta, usada, segundo ele,

    sem o judeucentrismo que caracterizou a litera-tura hebraica. Tambm sinto isto mas muito di-fcil de definir. Sinto que para mim a transio para uma outra lngua crucial, a utilizao de uma lngua como um meio. Ainda assim a lngua

    no apenas uma ferramenta, ela tambm par-te da personalidade. E isto que torna esta tran-sio to difcil: a gente precisa se reconstruir literariamente, se recriar por meio de uma lngua emprestada. (BALLAS apud ALCALAY, 1996)

    Alcalay considera que o hebraico de Ballas, pe-

    la sua estrutura e contedo semnticos, no carre-

    ga toda a bagagem das pessoas que foram formadas

    dentro do contexto da ideologia sionista, motivo

    pelo qual talvez a sua obra no seja bem compreen-

    dida. Ballas interpreta esta questo no campo da

    ideologia como uma viso de mundo de judasmo,

    de Israel, do hebraico, e a identidade total entre o

    hebraico e os judeus, de que ele no compartilha.

    Tudo o que acontece e se pensa no pas muito

    diferente do que ele .

    No estou em conflito com o ambiente, vim do ambiente rabe e continuo a manter o relaciona-mento com ele. Tambm no modifiquei o meu ambiente. Apenas me mudei de um lugar para o outro dentro dele. Todo o projeto de concepo nacionalista, de ideologia sionista, do ponto de vista judaico, das ligaes entre judeus na dis-pora e Israel, tudo isto bem marginal para mim, no parte do meu universo cultural. No meu entender, um escritor deve permanecer fiel a si mesmo e ao seu trabalho e no fazer concesses a fim de ser aceito como parte do consenso pre-valecente. (BALLAS apud ALCALAY, 1996)

    Exilado e no trair as origens. Esta foi a opo.

    Num dos belos pargrafos do seu livro biogrfico

    Beguf Rishon [Em primeira pessoa] Ballas (2009)

    escreve:

    E ento, certa noite, ao voltar tarde da grfica, antes de ir deitar, peguei um livro de Taha Hus-

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    sein, escritor e crtico egpcio, para verificar algo que no me lembro mais o que foi. Mas depois de apagar a luz fui tomado por um turbilho de palavras, de frases e versos em rabe, como uma represa que arrebentou, que afastou o sono at de manh. Foi a vingana do rabe em mim, eu costumava dizer a mim mesmo, o castigo que eu merecia por ter voltado s costas minha queri-da e acalentadora lngua-me. (BALLAS, 2009 apud YAGUIL, 2009)

    notas

    1 Entre 1950 e1952, a Operao Esdras e Neemias resgatou por transporte areo cerca de 120.000 judeus do Iraque, transferindo-os para Israel via Ir e Chipre. Em 1968, apenas 2.000 judeus ainda viviam no Iraque. No momento, provavelmente nenhum judeu mora em Bagd. A operao tem o nome de Esdras e Neemias, os lderes que conduziram o povo judeu do exlio na Babilnia para retornar a Israel, no sculo V aEC, como registrado na Bblia.2 Todas as tradues so de minha autoria [NR].Outros estudiosos de destaque do tema so Iehuda Shenhav, Ammiel Alcalay, Nancy E. Berg, Lital Levy, Esther Meir-Glitzenstein, Nisssim Rejwan, Batya Shimony, Sasson Somekh, Smadar Lavie, Aziza Khazzoom, Orit Bashkin e Ella Shohat, alm dos prprios autores de literatura.3 In The Arab Bulletin n 66, 21/10/1917, apud SNIR, 2006.4 O Sionismo tambm pode ser visto por meio do argumento de que o nacionalismo se refere a um processo dinmico de lembrar e de esquecer conceitos fundamentais de identidades coletivas. Um exemplo clssico no pensamento sionista o desenvolvimento de conceitos como o da negao do exlio baseado na negao de uma memria coletiva.

    5 Em 1975, Albert Memmi escreveu: O termo judeus rabes no , obviamente, bom. Eu o adotei por convenincia Quero apenas destacar que, como nativos desses pases chamados de rabes e bem antes da chegada dos rabes, ns compartilhamos com eles, em grande medida, lnguas, tradies e culturas... Teramos gostado de ser judeus rabes. Se abandonamos a ideia, porque ao longo dos sculos, os rabes muulmanos impediram sistematicamente a sua realizao por seu desprezo e crueldade. Agora tarde demais para ns nos tornarmos judeus rabes. (MEMMI, 1975)

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    Recebido em 09/04/2014Aceito em 10/07/14