EXERIMENTAÇÕES PARA O LIVRO DAS COBRAS GRAVADAS...
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EXERIMENTAÇÕES PARA O LIVRO DAS COBRAS GRAVADAS
EXPERIMENTATION FOR THE BOOK OF THE SNAKES ENGRAVED
Adriana Aparecida Mendonça / PUC-Goiás
RESUMO Este artigo é um recorte da minha pesquisa de doutorado em Arte e Cultura Visual, intitulado Impressões: experimentações com gravura em livros de artista e fanzines, finalizada em 2018. Aqui, trato do meu processo de criação do Livro das Cobras Gravadas, nele desenvolvi uma poética ligada a narrativas sobre cobras, que escutei desde criança, associadas ao meu fascínio pela imagem de uma menina com uma cobra enrolada no pescoço, encontrada por mim na internet. Para desenvolvimento do livro experimentei técnicas de gravura como serigrafia, estêncil, carimbos, impressões em metal e fotocópias, resultando assim, em diferentes roupagens que uma única imagem pode adquirir de acordo com as técnicas de impressão empregadas. PALAVRAS-CHAVE Livro de artista, experimentação, gravura, narrativa, cobras ABSTRACT This article is a cut from my doctoral research in Art and Visual Culture, titled Impressions: Experiments with Engraving in Artist's Books and Fanzines, completed in 2018. Here I speak of my process of creating the Book of the Snakes Engraved, in which I developed a poetic tale related to stories about snakes, which I listened to since I was a child, associated with my fascination with the image of a girl with a snake wrapped around my neck, found by me on the internet. For the development of the book I have tried engraving techniques such as serigraphy, stencil, stamps, metal prints and photocopies, resulting in different garments that a single image can acquire according to the printing techniques employed. KEYWORDS Artist's book, Experimentation, Engraving, Narrative, Snakes
MENDONÇA, Adriana Aparecida. Experimentações para o livro das cobras gravadas, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2025-2042.
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Oxumarê transforma-se em cobra para escapar de Xangô
(...) Oxumarê ficou desesperado e tentou fugir, Mas todas as saídas estavam trancadas Xangô tentava tomar Oxumarê nos braços e Oxumarê escapava, correndo de um canto para outro. Não vendo como se livrar, Oxumarê pediu ajuda a Olorum e Olorum ouviu sua súplica. No momento que Xangô imobilizava Oxumarê, Oxumarê foi transformado numa cobra, que Xangô largou com nojo e medo. A cobra deslizou pelo chão em movimentos rápidos e sinuosos. Havia uma pequena fresta entre a porta e o chão da sala e por ali escapou a cobra, Foi por ali que escapou Oxumarê. (...).
Mitologia dos Orixás, Reginaldo Prandi, 2001
As cobras1, com seus mistérios, suas formas aparentemente simples surpreendem:
na forma de um orixá arco-íris2, na mente que se assemelha a um ninho de cobras
de um homem3, numa cobra que come seu próprio rabo, o Oróboro4, em uma igreja
construída sobre uma cobra, no menino que faz da cobra viva seu brinquedo, na
notícia de um roubo de cobras no Jardim zoológico de Goiânia, em um serpentário
que mora do meu lado ou em uma cascavel que ronda minha casa. A cobra é
escândalo por ser tão duvidosa, por sua fama de traiçoeira e por só os especialistas
terem certo quem é quem, venenosas ou não. Seria fácil se todas as cobras do
mundo possuíssem veneno, teríamos respeito por todas, nenhuma criança devoraria
seus corpos em brincadeira. Permaneceríamos intactos diante de uma. Jean
Chevalier (2009) em seu Dicionário de símbolos atribui o fato de as serpentes serem
escandalosas à sua forma simples e assim as define:
A serpente – tanto quanto o homem, mas contrariamente a ele – distingue-se de todas as espécies animais. Se o homem está situado no final de um longo esforço genético, também será precioso situar essa criatura fria, sem patas, sem pelos, sem plumas, no início deste mesmo esforço. Nesse sentido, Homem e Serpente são opostos, complementares, Rivais. Nesse sentido, também, há algo do serpentino homem e, singularmente, na parte de que o seu
MENDONÇA, Adriana Aparecida. Experimentações para o livro das cobras gravadas, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2025-2042.
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entendimento tem o menor controle. Um psicanalista (JUNH, 237) diz que a serpente é um vertebrado que encarna a psique inferior, o psiquismo obscuro, o que é raro, incompreensível, misterioso. E, no entanto, não há nada mais comum, nada mais simples do que uma serpente. Mas sem dúvida não há nada mais escandaloso para o espírito em virtude dessa simplicidade. (CHEVALIER, 2009, p.816).
A narrativa do Livro das cobras gravadas começa pelas histórias sobre cobras que
eu ouvia na região onde nasci, uma cidade pequena que se confundia com a zona
rural. Lá elas nos rondavam, o medo também. (Figura 1).
Figura 1 – Adriana Mendonça - Livro das cobras gravadas. Capa: Serigrafia sobre tecido de algodão e colagem com ecdise de cobra cascavel (71 cm x 31 cm x 3cm), 2014 a 2017. Encadernação: Sérgio
Ferreira. Fotografia: Fábio Almeida.
Histórias de cobras
Sempre fui curiosa com relação ao poder desses animais, eu adorava ouvir as
histórias. Desde as mais malucas como aquelas onde cobras roubavam o leite das
mães de bebês recém-nascidos até histórias reais de sucuris que engoliam
bezerros, dentre outros animais, inclui humanos.
As venenosas não comiam gente, mas “ofendiam” com seus venenos. Era comum
saber de mortes provenientes dessa relação mal resolvida entre humanos e cobras.
Olhando para trás, penso que a maioria das histórias tidas como verdadeiras eram
exageros para causar medo às crianças.
Meu pai contava que, nas fazendas, quando nascia um bebê, uma cobra entrava na
casa sorrateiramente, sugava o leite no peito da mãe enquanto dormia. Para que o
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bebê não chorasse, a cobra colocava a ponta do rabo na boca da criança para
enganá-la. Todo dia, ela voltava para roubar o leite destinado ao recém-nascido.
Sempre que um bebê não engordava, suspeitavam da existência dessas cobras nas
redondezas da casa onde estava a mãe e o bebê.
Minha mãe que também tinha respeito pelas cobras, mostrou uma foto para o meu
irmão pequeno e advertiu-lhe sobre os perigos. Caso ele visse uma cobra não
deveria tocar porque não era brinquedo, foi assim que ele entendeu como era a cara
do perigo, e o reconheceu quando se viu de frente para uma cascavel. Eu cresci
achando incrível como uma criança pequena poderia associar aquela imagem da
foto com o animal verdadeiro, mais engraçado é que repeti as lições da minha mãe,
mostrando imagens de cobras para meu filho, pois havia notícias de cobras na
região onde moro. Coincidência ou não, naquela época, ele encontrou um filhote de
cascavel na dispensa da vizinha e não a tocou.
Um colega de trabalho, professor, biólogo e pesquisador na área de herpetologia me
disse que mesmo o veneno de uma cascavel filhote é capaz de matar um boi.
Concluindo, esse medo vai me acompanhar e por causa dessas histórias comecei a
desenvolver o Livro das cobras gravadas.
O atlas das cobras
Pesquisei imagens de crianças com cobras na internet. Vi que é comum, em
noticiários de alguns países asiáticos encontrar fotos de crianças brincando com
jiboias. Essas cobras são constritoras, não envenenam, matam suas pequenas
presas por sufocamento. Com musculatura forte, elas enroscam no corpo do animal,
comprimindo-o até sua morte por asfixia. Em seguida, a presa é engolida inteira que,
dependendo do seu tamanho, pode demorar até seis dias para ser digerido
completamente.
Selecionei várias fotos que encontrei durante a pesquisa na internet, mas uma delas
me intrigou: uma foto antiga de uma menina com uma cobra pendurada no pescoço.
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(Figuras 2 e 3). Para mim, essa menina de olhar penetrante, até aterrorizante se
confunde com uma espécie de “Gioconda” ou “Alice". Busquei a procedência da foto
várias vezes, mas não consegui descobrir de onde ela veio, apenas o endereço da
postagem.
Figura 2 – Menina com cobra, fotografia antiga (sem data). Disponível em: <https://br.pinterest.com/pin/249668373063765907/>
Figura 3 – Adriana Mendonça - Livro das cobras gravadas. Páginas internas, estêncil e colagem com fotocópias (71 cm x 31 cm), 2014 a 2017. Fotografia: Simone Simões.
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Aquela imagem me capturou, passei toda pesquisa do Livro das cobras gravadas
experimentando possibilidades de impressão para ela: salvei o arquivo da foto e fiz
impressões a laser em preto e branco e colorida, dessa imagem, fiz fotocópias
ampliadas. Depois da imagem ampliada, fiz um estêncil (molde vazado onde a tinta
atravessa a matriz). Desenhei a menina numa lâmina de cobre, matriz de metal,
usando técnica de ponta seca (uso de instrumento cortante para desenhar no metal),
gravei partes da imagem usando técnica de água-forte (uso de corrosão com
produtos químicos para obter a gravação) e água-tinta (uso de pulverização com
breu em pó e produtos químicos para obter a gravação). Do resultado das
impressões a partir das matrizes de cobre, ampliei novamente a imagem e vi outras
possibilidades para a serigrafia (uso de uma tela revelada com produtos químicos,
resultando na imagem impermeável). Foi um vai e vem de experimentações com
diferentes técnicas de reprodução da imagem.
Esse processo me remeteu aos painéis do Atlas Mnemosyne (1929), onde o
historiador da arte Aby Warburg, nos primeiros passos para uma história visual da
arte, desenvolveu uma técnica onde “diversas imagens em um mesmo suporte
facilitava a comparação, com a vantagem de poder rearranjar ou remover imagens.
Depois que as imagens eram colocadas nos painéis, eles eram fotografados,
formando 3 séries de aproximadamente 60 painéis.” (CADÔR, 2016, p.135). (Figura
4).
Embora Aby Warburg, através do Atlas Mnemosyne, tenha investigado sobre
problemas relativos à história da arte, e buscasse contrapor uma história da arte
estetizante, voltada ao academicismo, herdada de Vassari, (DIDI-HUBERMAN,
2013), seu trabalho permeou toda pesquisa, na construção de um repertório
imagético para minha produção artística do Livro das cobras gravadas. Interessou-
me observar, a partir de Warburg, a possibilidade de colocar lado a lado imagens do
mundo todo, de tempos e espaços diferentes, assim, me aproximei desse
pensamento por sua proposta de não hierarquização das imagens e da não
linearidade na apresentação destas, pois assim imagens de espaços e tempos
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diferentes dialogam, se comparam e se atritam. Imagens que se colocadas lado a
lado expõem a diversidade, mas acima de tudo, me mostraram representações de
comportamentos semelhantes, nas expressões das crianças, no interesse e
encantamento por cobras, na interação entre crianças e animais, e na ludicidade
encontrada nessas fotos.
Figura 4 - Atlas Mnemosyne, 1924. Disponível em: <https://i.pinimg.com/originals/1f/a8/51/1fa8511fc5acd7c30790375e96dfae5c.jg>
Durante a construção do Livro das cobras gravadas, agenciei imagens de diferentes
tempos e procedências, embora eu tenha escolhido o formato de encadernação,
este permite ser desencadernado e exposto página por página em forma parecida a
um painel do Atlas Mnemosyne.
Adaptei as imagens vindas desse processo para fazer carimbos e adesivos, uma
empreitada em busca de diálogos de uma mesma imagem e diferentes técnicas.
Pude concluir que a imagem da menina com sua cobra mudava completamente
quando impressa em diferentes técnicas, se transformava a cada deslocamento, e
por causa disso ainda estou obcecada por essa imagem, que se assemelha a um
fantasma que está sempre voltando para ser refeito pelo meu olhar. Didi-Huberman
(2013, p.31), fala dos deslocamentos dos pontos de vista feitos por Warburg que faz
dele um “fantasma”, onde este o apresenta como um “fogo-fátuo”, ou o “atravessa
paredes da história da arte”. Assim, a menina (Figura 2) aparece e reaparece sobre
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diferentes pontos, fantasmagórica, deixa leves sombras, quase impossíveis de se
definir, como, por exemplo, piscar os olhos sobre um papel branco e ver cores
complementares de uma mancha de cores olhada fixamente por quarenta segundos
anteriormente. (PEDROSA, 2009).
Refletir sobre esses deslocamentos propostos por Warburg, me fez reordenar meu
raciocínio sobre as apresentações das imagens. No Livro das cobras gravadas
busquei interpretar esses deslocamentos, onde o fantasma Warburg é “algo ou
alguém que volta sempre, sobrevive a tudo, reaparece de tempos em tempos,
enuncia uma verdade quanto à origem. É algo ou alguém que não conseguimos
esquecer. Mas que não podemos reconhecer com clareza.” (DIDI-HUBERMAN,
2013, p.27).
A imagem fotográfica da menina me causou receio pelo seu mistério, penso que
principalmente por aparentar uma foto antiga, que me parecia um pouco
fantasmagórica. Quando realizada em serigrafia a sensação de estar vendo uma
alma na foto revelada na tela desapareceu na impressão.
Juntamente com as imagens da menina vieram outras imagens que a menina puxou
do universo virtual e me ofereceu para que eu pudesse brincar sem ser “ofendida”
pelas cobras peçonhentas. Aquela cobra da menina não era tão perigosa para a
menina, apenas a menina me oferecia perigo. Então, encontrei fotos de cobras com
seus venenos “perigosos”. Esse livro foi o livro mais “obsessivo” da pesquisa, essa
obsessão se ampliou nas composições realizadas pelo conjunto de repetição de
uma mesma imagem.
Quando usei o carimbo da menina repetidas vezes, o conjunto me deu outro
sentimento, diferente da imagem carimbada isoladamente. Vi que uma mesma
imagem quando repetida várias vezes, lado a lado, recria outras narrativas. Me
pareceu um exército de meninas com suas cobras, que são armas inofensivas. Um
batalhão carimbado. (Figura 5).
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Figura 5 – Adriana Mendonça - Livro das cobras gravadas. Páginas internas, estêncil, carimbo, monotipia, adesivos a partir de imagens do processo, 2014 a 2017. Fotografia: Fábio Almeida.
Outra mudança de comportamento acontece quando a imagem é ampliada na
máquina fotocopiadora, quando é impressa a partir da foto e depois ampliada em
fotocópia. Ela muda suas dimensões e reforça seu mistério, se reposiciona diante de
mim. (Figura 3)
O serpentário
Chega dessa pele, é hora de trocar/Por baixo ainda é serpente e devora a cauda/Pra recomeçar.
Serpente, Pitty
É comum desenharmos cobras nas minhas aulas de ilustração científica, isso se
deve pelo fato de que no prédio ao lado das salas de aulas, fica o departamento que
abriga um serpentário. Durante essas aulas, os alunos do curso de Biologia da PUC-
Goiás, enquanto desenham, vão me oferecendo histórias que envolvem cobras,
além de seus conhecimentos científicos sobre esses animais.
O desenho na ilustração científica, procura representar com máximo de
detalhamento características dos “objetos biológicos”, para isso estudamos sobre
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elementos fundamentais do desenho e a cobra é o melhor exemplo para falar de
movimento, onde um ponto se desloca em linhas e sólidos são repetições de planos
circulares, formando cilindros. As formas, cores e texturas que desenham suas peles
são diversas e sedutoras. Encontrei semelhança dessa percepção à descrição de
Jean Chevalier (2009):
Viajando pelo sul da Rep. Dos Camarões, observamos que pigmeus, na sua linguagem de caça, representam a serpente com uma linha no chão. Alguns grafismos da época paleolítica certamente têm a mesma significação. Podemos dizer que eles restauraram a serpente à sua expressão primeira. Ela não passa de uma linha, mas uma linha viva; uma abstração, mas como diz André Viril, uma abstração encarnada. A linha não tem começo nem fim; é só movimentar-se para tornar-se suscetível a todas as representações, a todas as metamorfoses. Da linha só enxergamos a sua parte, presente, manifesta. Mas sabemos que ela continua, de um lado e de outro, pelo invisível infinito. O mesmo acontece com a serpente. (CHEVALIER, 2009, p.816).
Há algo da ideia de “primitivo” comumente ligado as cobras, penso que está
associado a sua forma aparente simples pelo senso comum e que vista pelos
especialistas são animais extremamente complexos em todas as suas
características, como pelo comportamento, pela diversidade de espécies no mundo
todo, pela anatomia, pela composição dos venenos, pelos desenhos e padrões
geométricos de suas peles. Uma peculiaridade de alguns animais, especialmente os
répteis, que impressiona os pesquisadores e a mim também, é a ecdise, dentre eles
estão as cobras que mudam de pele algumas vezes por ano para se desenvolver e
crescer. Em processo de renovação, a pele vai soltando, dando lugar à nova
camada que já foi formada. A pele, muitas vezes, sai por inteiro, só que pelo avesso,
começando pela cabeça. (Figura 6).
Observando o processo de ecdise constatei que a cobra, sendo matriz, reproduz
novas matrizes que são as peles, numa espécie de libertação e crescimento e que
nessa lógica qualquer ser orgânico será matriz capaz de reproduzir-se.
Especialmente animais que se libertam e se transformam com a ecdise, que além
dos répteis, são cigarras, grilos, besouros, borboletas e louva deuses, etc., que
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deixarem suas marcas pelo seu percurso de vida, liberam matrizes em forma de
cópias ou reproduções como se fosse um molde de suas formas.
Figuras 6 - Serpentes, John Stidworthv. Ilustração científica que mostra o processo de ecdise em serpentes, 2011. Disponível em: <http://noroestebiologico.blogspot.com.br/2011/05/troca-de-pele-das-
serpentes.html>.
Por isso, depois de observar o processo de ecdise, escolhi algumas dessas peles
descartadas pelas cobras para colar nas páginas do Livro das Cobras Gravadas.
(Figura 7).
Figura 7 – Adriana Mendonça - Livro das cobras gravadas. Páginas internas, escrita com lápis 6B e colagem com ecdise de cobra, 2014 a 2017. Fotografia: Fábio Almeida.
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Pensar como um ninho de cobras
Didi-Huberman (2013) Busca nas figuras enigmáticas das cobras para explicar o
pensamento de Warburg, que considero como um relato do movimento anacrônico
das camadas do tempo.
(...) Warburg falava de seu estilo como sendo uma “sopa de enigmas” [Aalsupenstil]: imaginemos uma massa de corpos serpenteantes, reptilianos, em algum lugar entre as perigosas circunvoluções do Laocoonte – que observam Warburg durante a vida inteira, não menos que as serpentes postas na boca pelos índios que ele também estudou – e a massa informe, sem pé nem cabeça, de um pensamento sempre avesso a “cortar”, isto é, a definir para si mesmo um começo e um fim. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.25).
Seguindo o raciocínio de Didi-Huberman (2013), Warburg cria uma rede viva em seu
pensamento onde a referência a escultura de mármore (Figura 8) que representa
Laocoonte lutando contra serpentes, é uma escultura em movimento, embora seja
de um material duro (mármore). Ele compara as percepções de Warburg sobre a
escultura ao ritual das serpentes em mishongnovi (Figura 9):
Percebe-se que a proximidade entre o humano e o animal constitui um tema essencial do Laocoonte, bem como do ritual indígena estudado por Warburg: nos dois casos, o homem enfrenta o animal como um perigo mortal por excelência. Também nos dois casos, o homem incorpora ou se reveste do animal, fazendo de sua própria morte – ou melhor, do instrumento dela – uma espécie de segunda pele: na estátua helênica, as serpentes mostram-se quase como uma “sobremusculatura” dos três personagens, ou suas vísceras por uma espécie de invenção fantasmática do dentro e do fora. No ritual da serpente, o animal é apresentado como uma coisa com que o homem se enfeita e cuja substância se torna capaz – ainda que artificialmente de absorver. (DIDI-HUBERMAN, 2013, p.195/196).
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Figura 8 - Laocoonte e seus filhos, c. 50 d.C., mármore. Roma: Museu do Vaticano. Disponível em: <http://www.campanicultural.com.br/2013/08/o-grupo-de-laocoonte-com-os-seus-
filhos.html>
Figura 9 - Anônimo norte-americano, Índio hopi durante o ritual da serpente, 1924. Foto: Instituto Warburg.
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No Livro das cobras gravadas busco essa ideia de enfrentamento do perigo, embora
as imagens de crianças com cobras não representem luta de vida ou morte. Mesmo
aterrorizantes, geralmente as imagens de crianças com cobras não venenosas,
diferentes das cobras de Laocoonte que representem outra coisa mais próxima de
uma luta letal, dando a impressão de uma violenta força vinda das cobras e não de
um ataque venenoso que vai causar morte lenta.
O perigo me seduziu pelo mistério representado pelas imagens de representações
de cobras que pesquisei. Apareceram lacunas, “espaços de serpenteantes” no meu
raciocínio que me remeteram as vestimentas, sendo a cobra uma parte da criança
ou que a revestisse o corpo como a própria morte. Como ameaça, causou-me a
sensação de que a qualquer momento teria que lutar por aquelas crianças que
estavam brincando com as cobras. Olhando para as imagens e me sentindo parte
delas, embriagada por tudo que as cobras representam, esperei delas um ataque
momentâneo que não deixaria sobreviventes e eu como Laocoonte lutando pelos
filhos deveria lutar por aquelas crianças. Nesse estado de quase hipnose, vi as
crianças com um pensamento serpenteante, duvidoso, orgânico. Uma mistura de
percepções do mundo que não é estático, mas movimento.
Sobre as cobras impressas
No Livro das cobras gravadas juntei várias imagens e mudas de peles. A capa é
abraçada por uma muda de pele de Crotalos durissus (nome científico de um tipo
cobra cascavel), a paleta de cores do livro fica entre tons terrosos, preto e dourado
que são cores encontradas nas ecdises que tive acesso no serpentário da PUC-
Goiás. (Figura 7).
Pelo formato da cabeça da cobra que aparece com a menina da foto, e por não
parecer venenosa, me fez pensar que esta e outras cobras que aparecem em fotos
com crianças se aproximam com a forma da jiboia, também encontrada no Brasil.
Embora, essa espécie não seja venenosa, é o terror dos fazendeiros que criam
galinhas, pois elas costumam se alimentar dos pintinhos.
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Para representar a menina com a cobra, primeiramente, utilizei a técnica de estêncil,
sobrepondo as cores preta e dourada. Depois de imprimir com as matrizes, estas
fizeram parte do conjunto de páginas. (Figura 10).
Figura 10 – Adriana Mendonça - Livro das cobras gravadas. Páginas internas, estêncil: impressão e matriz, 2014 a 2017. Fotografia: Fábio Almeida.
Colagens de imagens de diferentes espécies de cobras encontradas no Brasil foram
ampliadas em xerox, depois recortadas e coladas nas páginas, e, as vezes
misturadas à outras impressões. Das colagens com as cobras de xerox desenvolvi
gravuras com matrizes de plástico em técnica de ponta seca. Com grafite escrevi
alguns pequenos textos (Figura 7), frases e histórias sobre cobras:
“Será uma jiboia inofensiva?”
“7 Cobras marrom em um armário na Austrália
Criança encantada com ovos de cobra guarda perigo dentro de casa
... a cobra é a linha ou um cilindro em movimento
Ovo de cobra marrom”
“Tragédia amorosa
Dois machos disputam fêmea na estrada. Um caminhão atropela e mata os três.”
“Vorazes! Duas crianças matam cobras com os dentes. Verdade! Aconteceu no Jardim Guanabara.”
“Pedro
Pedro encontrou
uma cascavel filhote.
Ela dormia,
Enroladinha, tranquilamente.”
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“Engolida
Uma sucuri engoliu uma criança
No pantanal”
“Pode sentir a textura
Elas tiram a pele como eu tiro a roupa.”
“A cobra não tem pé, a cobra não tem mão, como a cobra sobe no pezinho de limão?
Ela vai subindo, vai,vai,vai
Ela vai enrolando, vai, vai, vai
Ela vai enrolando, vai, vai, vai.”
“Não a mate”
“Compromisso com a repetição.”
“Compromisso com a reprodução.”
“Seria a cobra a matriz?”
“Outra tragédia
Katiana pilotando uma motinha
Viu uma cobra e desviou
Não houve tempo
Um caminhão atropelou a moça
A cobra sobreviveu
Katiane não a atropelou com sua motinha.”
O livro está aberto a outras histórias ou frases, como em um diário de informações e
impressões coletadas sobre as cobras. Um diário de dar visibilidade para as cobras
que vieram da memória ou como uma rede ou trama cruzava de sentimentos e
percepções. Nesse diário ou livro de artista, um pensamento que é insinuante como
as cobras me seduz a continuar investigando o mistério causado pelo medo, pelo
desconhecimento, pelos mitos e pelas histórias contadas na infância.
MENDONÇA, Adriana Aparecida. Experimentações para o livro das cobras gravadas, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2025-2042.
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Notas
1 Encontraremos diferentes nomes relativos às cobras como víboras e serpentes. No Brasil é mais comum a palavra cobra, contudo há diferenciações entre animais peçonhentos e não venenosos. 2 Oxumarê na mitologia dos orixás é um deus que representa o arco-íris (PRANDI, 2001). 3 Referência a Aby Warburg (DIDI-HUBERMAN, 2013). 4 Forma uma circunferência que sugere o próprio Deus, a autofecundação, a sexualidade e o infinito. (CHEVALIER, 2009).
Referências
CADÔR, Amir Brito. O livro de artista e a enciclopédia visual. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2016.
CARRIÓN, Ulises. Fazer livros. Tradução de Amir Brito Cadôr. Belo Horizonte: C/ Arte, 2011.
CHEVALIER, Jean. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números). Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
DIDI-HUBERMAN, Georges. A Imagem Sobrevivente - História da Arte e Tempo Dos Fantasmas Segundo Aby Warburg. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2013.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 2010.
MENDONÇA, Adriana Aparecida. Impressões: Experimentações com gravura em livro de artista e fanzines. Goiânia: Faculdade de Artes Visuais, Universidade Federal de Goiás, 2018.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo, Companhia das Letras, 2001.
PEDROSA, Israel. Da cor à cor inexistente. Rio de Janeiro: Senac Nacional, 2009.
Internet
Atlas Mnemosyne, 1924.
Disponível em: <https://i.pinimg.com/originals/1f/a8/51/1fa8511fc5acd7c30790375e96dfae5c.jg>. acesso em: 20/11/2017
Menina com cobra, fotografia antiga (sem data). Disponível em: https://br.pinterest.com/pin/249668373063765907/ acesso em: 15/03/2016
MENDONÇA, Adriana Aparecida. Experimentações para o livro das cobras gravadas, In: ENCONTRO NACIONAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISADORES EM ARTES PLÁSTICAS, 28, Origens, 2019, Cidade de Goiás. Anais [...] Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2019. p. 2025-2042.
2042
Serpentes, John Stidworthv. Ilustração científica que mostra o processo de ecdise em serpentes, 2011. Disponível em: <http://noroestebiologico.blogspot.com.br/2011/05/troca-de-pele-das-serpentes.html>. acesso em: 13/04/2017
Laocoonte e seus filhos, c. 50 d.C., mármore. Roma: Museu do Vaticano.
Disponível em: <http://www.campanicultural.com.br/2013/08/o-grupo-de-laocoonte-com-os-seus-filhos.html> acesso em: 15/02/2018
Adriana Mendonça
Formada em Artes Visuais (Licenciatura e Bacharelado) pela Universidade Federal de Goiás, com mestrado em Patrimônio Cultural (Puc/Goiás - 2005) e Arte e Cultura Visual (UFG – 2008) e doutorado em Arte e Cultura Visual (UFG - 2018). Desenvolve pesquisa na área de gravura, livro de artista e desenho. É professora da Puc/Goiás, Departamento de Artes e desenvolve trabalhos em arte contemporânea e literatura infantil.