EXERCÍCIO ETNOGRÁFICO: uma rua comercial em Goiânia · No início dos anos de 1930, com a...

14
4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016 EXERCÍCIO ETNOGRÁFICO: uma rua comercial em Goiânia OLIVEIRA, ADRIANA M. V. de (1); GODINHO, DANIELE S. de S. (2) 1. Universidade Federal de Goiás. Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Projeto e Cidade [email protected] 2. Universidade Federal de Goiás. Acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Projeto e Cidade [email protected] RESUMO O povoado de Campinas em Goiás originou-se no século XIX, posicionando-se como rota comercial no Estado. No início dos anos de 1930, com a construção da nova capital Goiânia, o pequeno município transformou-se em sede provisória do governo estadual e apoio ao processo de implantação da nascente cidade. Com o passar dos anos e o crescimento de Goiânia, Campinas incorporou-se à cidade como um de seus bairros. A integração a Goiânia imprimiu muitas mudanças ao pequeno núcleo de Campinas. Muitas edificações, exemplares da arquitetura vernácula goiana, foram destruídas para dar lugar a estabelecimentos comerciais, conectados ao abastecimento da capital, além daqueles já existentes. Na atual Avenida 24 de Outubro, uma das primeiras ruas do bairro, concentrava-se grande parte desse comércio, mantendo-se até os dias de hoje. Atualmente, o comércio espalha-se por quase todo o bairro, mas essa avenida ainda se destaca como referência para o comércio varejista e na prestação de serviços. Afora o comércio formal, existem inúmeros ambulantes que se alocam em suas calçadas, gerando uma paisagem complexa e diversa que merece atenção. A metodologia escolhida para desbravar a Avenida 24 de Outubro foi a etnografia de rua, com base nos estudos antropológicos de Ana Luisa da Rocha e Cornélia Eckert (2013), nos quais as autoras descrevem práticas e saberes de grupos sociais por meio de técnicas como a observação e conversação in loco. O conceito principal é o de vivenciar e experimentar a cidade a partir das análises de suas transformações espaciais. Para as autoras, descrever a cidade sob esse ponto de vista permite conhecê-la como local de interações sociais e trajetórias de grupos ou indivíduos cujas rotinas podem estar vinculadas às suas tradições culturais. A etnografia da e na Avenida 24 de Outubro permitiu vivê-la, a partir da adoção de um olhar sensível sobre todos os seus aspectos lojas, vendedores, consumidores (ou não), mercadorias, transeuntes, ambulantes, pedintes, entre outros. Realizou-se um "diário de bordo" com os relatos daquilo que foi observado e capturado, assim como se efetuaram registros fotográficos das situações vividas e espreitadas na rua. Ao vivenciar o lugar e seu quotidiano, observou-se o movimento dos usuários, assim como a transformação que eles involuntariamente geram na paisagem urbana. Este artigo coloca-se como um meio de avaliação desse exercício etnográfico, utilizando-se especialmente as fotografias. Palavras-chave: etnografia de rua; comércio; Avenida 24 de Outubro; Goiânia.

Transcript of EXERCÍCIO ETNOGRÁFICO: uma rua comercial em Goiânia · No início dos anos de 1930, com a...

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

EXERCÍCIO ETNOGRÁFICO: uma rua comercial em Goiânia

OLIVEIRA, ADRIANA M. V. de (1); GODINHO, DANIELE S. de S. (2)

1. Universidade Federal de Goiás.

Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Projeto e Cidade [email protected]

2. Universidade Federal de Goiás.

Acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Projeto e Cidade [email protected]

RESUMO

O povoado de Campinas em Goiás originou-se no século XIX, posicionando-se como rota comercial no Estado. No início dos anos de 1930, com a construção da nova capital Goiânia, o pequeno município transformou-se em sede provisória do governo estadual e apoio ao processo de implantação da nascente cidade. Com o passar dos anos e o crescimento de Goiânia, Campinas incorporou-se à cidade como um de seus bairros. A integração a Goiânia imprimiu muitas mudanças ao pequeno núcleo de Campinas. Muitas edificações, exemplares da arquitetura vernácula goiana, foram destruídas para dar lugar a estabelecimentos comerciais, conectados ao abastecimento da capital, além daqueles já existentes. Na atual Avenida 24 de Outubro, uma das primeiras ruas do bairro, concentrava-se grande parte desse comércio, mantendo-se até os dias de hoje. Atualmente, o comércio espalha-se por quase todo o bairro, mas essa avenida ainda se destaca como referência para o comércio varejista e na prestação de serviços. Afora o comércio formal, existem inúmeros ambulantes que se alocam em suas calçadas, gerando uma paisagem complexa e diversa que merece atenção.

A metodologia escolhida para desbravar a Avenida 24 de Outubro foi a etnografia de rua, com base nos estudos antropológicos de Ana Luisa da Rocha e Cornélia Eckert (2013), nos quais as autoras descrevem práticas e saberes de grupos sociais por meio de técnicas como a observação e conversação in loco. O conceito principal é o de vivenciar e experimentar a cidade a partir das análises de suas transformações espaciais. Para as autoras, descrever a cidade sob esse ponto de vista permite conhecê-la como local de interações sociais e trajetórias de grupos ou indivíduos cujas rotinas podem estar vinculadas às suas tradições culturais.

A etnografia da e na Avenida 24 de Outubro permitiu vivê-la, a partir da adoção de um olhar sensível sobre todos os seus aspectos – lojas, vendedores, consumidores (ou não), mercadorias, transeuntes, ambulantes, pedintes, entre outros. Realizou-se um "diário de bordo" com os relatos daquilo que foi observado e capturado, assim como se efetuaram registros fotográficos das situações vividas e espreitadas na rua. Ao vivenciar o lugar e seu quotidiano, observou-se o movimento dos usuários, assim como a transformação que eles involuntariamente geram na paisagem urbana. Este artigo coloca-se como um meio de avaliação desse exercício etnográfico, utilizando-se especialmente as fotografias.

Palavras-chave: etnografia de rua; comércio; Avenida 24 de Outubro; Goiânia.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Introdução

O atual Setor Campinas da cidade de Goiânia já foi um povoado de nome Campinas.

“Campininha das Flores”, como era conhecida por seus moradores, teve sua formação

iniciada no século XIX, por volta de 1810, tornando-se freguesia em 1853, e sendo elevada

à vila em 1907, se desligando de Bela Vista e de Bonfim – partes da mesma freguesia –, e

incluindo às suas terras o patrimônio de Barro Preto, atual município de Trindade (Campos,

1985, p.17). A mineração foi o aspecto que deu origem a Campinas. Vários viajantes vinham

de outros lugares à procura de ouro, mas só se encontravam algumas minas de ferro.

A população da Campininha residia nas redondezas da Paróquia Nossa Senhora da

Conceição (atual Basílica de Campinas). Nesse período o povoado já contava com

migrantes de outras partes do país (Ortencio, 2011, p. 131). Relata Ortencio (2011, p. 16),

que “a família que mais povoou e desenvolveu Campinas foi sem dúvida a Rodrigues e

Morais. Eram os maiores fazendeiros e proprietários urbanos [...]”. Mas o que deu impulso

ao crescimento do pequeno povoado foi a vinda dos padres redentoristas da Alemanha (isso

pelo fato de o local conter terra fértil, bom clima etc.) em 1895, com a intenção de

administrar o Santuário de Trindade em Barro Preto. Eles exerceram uma forte influência

cultural no local desde a sua chegada.

Em 1931, Pedro Ludovico Teixeira foi nomeado interventor em Goiás e, em meio a disputas

políticas, desejoso em marcar seu nome na história, decidiu transferir a capital do Estado,

que era na cidade de Goiás, para outro local. A ideia era a de construir uma nova cidade

que se inserisse nas metas nacionais da Marcha para o Oeste, inaugurando a modernidade

em terras goianas. Para tal, Teixeira instituiu uma comissão de escolha do local para a nova

capital, que seleciona a região de Campinas.

Assim, o interventor Pedro Ludovico assinou o Decreto 3.359, de maio de 1933,

desapropriando terras particulares e definindo o domínio da zona urbana da nova capital

goiana nas imediações de Campinas. Segundo Manso (2001, p. 80), "em 1932, Campinas

contava com 14.300 habitantes, com uma malha urbana definida e com um pequeno centro

comercial".

No mesmo ano, contratou-se o arquiteto Attílio Corrêa Lima para a execução do plano da

nova cidade. Na sequência, iniciam-se as obras de implantação da capital nascente e, em

1935, o governador mudou-se para Campinas, assegurando o processo de transferência,

antes mesmo da conclusão das obras (Oliveira, 2011, p. 201). Alguns anos depois, em

março de 1937, o governador assinou o decreto de transferência definitiva da capital para a

então cidade denominada Goiânia (Figura 1).

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Figura 1 - Foto aérea que mostra a ligação de Campinas a Goiânia – 1937

Fonte: Acervo SEPLAM

Enquanto Goiânia estava se consolidando como uma nova cidade, Campinas tornava-se um

de seus bairros e já se destacava como centro comercial. Assinala a reportagem “Riqueza

no Comércio” do jornal Diário da Manhã (31 ago. 1998): “Desde o começo da construção da

capital goiana no início dos anos 30, os comerciantes fizeram da velha Campininha das

Flores o seu local preferido [...]. Campinas era o maior centro comercial e assim

permaneceu por décadas”.

Com o surgimento de Goiânia, o Setor Campinas se tornou, de certa forma, a área central

da cidade, apresentando uma grande diversidade de comércio e serviços (Vaz, 2002, p.72).

O bairro já existente era considerado o centro da cidade nascente, pois era lá que a

população do município e seu entorno era atendida, como nos informa Campos (1985, p.

54):

Ocorreu que nos primórdios de Goiânia as empresas de comércio atacadista, grandes armazéns, pequenas indústrias de transformação, frigoríficos estabeleceram-se preferencialmente no bairro de Campinas [...]. Aberta a Avenida Amazonas, hoje Anhanguera, ao longo dela, instalaram-se casas especializadas e artigos de couro [...], produtos e implementos agrícolas [...] cujos ramos vêm se diversificando de maneira sempre surpreendente, dando ao bairro aspecto tipicamente comercial.

Campinas

Goiânia

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Na década de 1950, Goiânia passou por uma mudança no seu arranjo comercial e de

serviços, decorrente, dentre outros fatores, de seu processo de expansão urbana e do

rápido crescimento de sua população. Houve uma descentralização comercial e de serviços

do Setor Campinas para o propriamente dito Setor Central (Vaz, 2002, p.28).

Pode-se considerar que, por um período de tempo curto, o Setor Campinas foi o “centro” de

Goiânia, fato esse que enaltece a sua importância no processo de construção de Goiânia.

Nos dias de hoje, Campinas atende a uma grande parcela da sociedade goianiense e

também às regiões lindeiras, o que caracteriza o comércio como um sucinto popular. O

comércio demorou um longo tempo para se formar. Sobre a formação dos sucintos

populares, Villaça (1998, p. 307) assinala: “Um sucinto tradicional leva décadas para se

constituir e seu impacto se produz lentamente, sendo absorvido lentamente pela vizinhança,

que aos poucos também se transforma”. Ainda segundo o referido autor, essa “adaptação”

por parte da população no sucinto não ocorre com o shopping center, no qual a vizinhança

não tem tempo para se adaptar, já que sua criação é rápida e geralmente se localiza nas

áreas nobres das cidades grandes.

No ano de 2002, conforme dados levantados pelo Seplam, Campinas contava com 4.789

estabelecimentos, sendo 3.336 de comércio (69,6%) e 875 de serviços (18,27%). Esse setor

torna-se um sucinto popular de grande relevância, pelo fato de atender a uma população

com menor poder de compras, pois possui o segundo lugar como polo comercial, ficando

atrás somente do centro de Goiânia. "Mais de 70% da arrecadação do Estado com o

comércio vem de Campinas", ressalta a presidente da Associação dos Empresários de

Campinas (Assecamp), Margareth Maria Sarmento, em entrevista concedida ao jornal O

Popular (12 dez. 2010). Ela destaca que Campinas tem ruas destinadas ao comércio de

todo tipo de produtos: confecção, secos e molhados, aviamentos, joias, roupas para festas,

máquinas, couros, material de pesca e mais uma infinidade de mercadorias. "Essa é uma

particularidade de Campinas. Ajuda o cliente a encontrar rapidamente o que precisa",

assinala Margareth. Esse volume tem sido mantido ao longo dos anos. Em continuidade, a

reportagem do jornal O Popular (12 dez. 2010) registra que entidades congregadas de

empresários no Setor Campinas estimam um número de cem mil pessoas passando

diariamente pelo bairro na época do Natal.

A segmentação do mercado, uma característica do setor, é apontada como um dos fatores

que atraem a população para aquele que é considerado um dos maiores centros comerciais

do país. O Setor Campinas é dividido por ruas onde as lojas se aglutinam por tipologias,

com uma enorme diversidade de produtos. As avenidas Senador Jaime, Pouso Alto, Alberto

Miguel e São Paulo possuem duzentas lojas especializadas em eletrodomésticos e móveis

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

usados. Essa afirmação do presidente da associação destaca a importância desse setor

como um sucinto popular.

Além de todas as avenidas citadas acima, existem outras, especializadas em tecidos,

couros, roupas, armarinhos, vestidos de noiva etc.. Isso concorre para o processo de

coesão (Corrêa, 2001, p.131), caracterizado pela aglutinação de comércio com mesmas

funções, o que propicia para o consumidor uma maior comodidade na hora das compras, e

facilidade de negociação. Como exemplo dessa coesão no Setor Campinas, pode-se citar a

avenida São Paulo, que é especializada no ramo de tecidos. Essas são apenas algumas

das concentrações. Existem outras com mais ou menos intensidade (Figura 2).

Figura 2 - Avenida São Paulo – rua especializada no ramo de tecidos.

Fonte: Google Street View, 2016.

A Avenida 24 de Outubro dispõe de um comércio diversificado e conta com um fluxo enorme

de pessoas (transeuntes, consumidores, ambulantes etc.) e de veículos. O grande aumento

da circulação de automóveis, transeuntes e de lojas comerciais descaracterizou em parte os

aspectos cotidianos que sempre foram característicos no local. Por fazer parte do núcleo

urbano pioneiro de Goiânia, essa mesma avenida teve seu traçado considerado um bem

patrimonial protegido pelo Tombamento Federal (Portaria Federal n.º 507/2003). De acordo

com o presidente da Associação da Indústria e Comércio de Confecções de Campinas, em

entrevista realizada pelo jornal Diário da Manhã (5 dez. 2004), a Avenida 24 de Outubro “é o

maior shopping horizontal da América Latina”, com um total de quinhentas lojas em 1,6 km

de extensão.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Exercício etnográfico: Avenida 24 de Outubro

Segundo Ana Luiza da Rocha e Cornélia Eckert (2013, p.14), a etnografia de rua consiste no

desenvolvimento da observação sistemática de uma rua ou mais ruas de um bairro e da

descrição de seus cenários, buscando os significados sobre o viver o dia a dia na cidade.

Para tanto, o observador deve estar atento aos personagens que estão presentes na rotina

das ruas, nos imprevistos, nas situações de tensão e conflito. Dessa maneira, para as

autoras, o exercício de etnografia na rua permite ao etnógrafo reconhecer e interpretar não

só os habitantes, mas também a si mesmo, no contexto de diálogo com quem é observado

(a quem as autoras referenciam como o Outro).

Rocha e Eckert (2013, p.23) afirmam que, nesse sentido, para a prática de uma etnografia

de rua com vistas a bons resultados, o pesquisador precisa aprender a pertencer a esse

ambiente como se este fosse sua morada, lugar de intimidade e acomodação afetiva. Uma

etnografia de rua propõe ao antropólogo o desafio de ”experienciar” e viver a ambiência das

cidades, cujos caminhos, ruídos, cheiros e cores a percorrer sugerem direções e sentidos,

guiados pelo próprio movimento dos pedestres e que podem conduzir a certos lugares,

cenários e paisagens.

Dessa maneira, o observador adentra o mundo do observado e procura identificar hábitos e

práticas cotidianas no local de estudo. Para Michel de Certeau (1984, p.40), essas seriam as

“maneiras de fazer” que constituem as mil práticas pelas quais usuários se (re)apropriam do

espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural. O autor afirma que se

esboçam três funcionamentos distintos das relações entre práticas espaciais e significantes:

o crível, o memorável e o primitivo. Designam, respectivamente, aquilo que “autoriza” as

apropriações espaciais, aquilo que ali se repete de uma memória silenciosa e fechada, e

aquilo que aí se acha estruturado e não cessa de ser marcado por uma outra origem.

Deverá o etnógrafo saber, então, apreender a cidade por meio das trajetórias, identificar e

registrar essas práticas, não apenas pelo traçado do deslocamento, mas pela recomposição

dos traços culturais deixados pelos citadinos. É por intermédio da etnografia de rua que o

pesquisador passa a observar a cidade como objeto temporal e produtor de trocas, um lugar

composto por muitos caminhos e percursos sobrepostos numa trama de ações cotidianas e

de fazeres urbanos.

As paisagens que integram o território devem ser, portanto, percorridas pelo pesquisador.

Este deverá reconhecer os trajetos, seguir os itinerários dos habitantes, interrogar e

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

vivenciar o espaço urbano, buscando ao mesmo tempo estabelecer contato com os grupos

sociais observados.

De acordo com Rocha e Eckert (2013, p.24), o contato com os habitantes expressa o desejo

de múltiplas trocas. Nessa interação, o pesquisador não depende apenas do domínio da

língua do outro para compreender o que é falado, mas da atenção aos tons e insinuações,

dos silêncios e detalhes. Sem dúvida, o contato nasce desse processo de estar na rua

quotidianamente, onde o espaço vivido e praticado passa a ser percebido como lugar, uma

vez que estabelece relações com os habitantes e a partir disso adquire atribuições e

qualidades.

Certeau (1984, p.189) diz que os lugares são histórias fragmentadas e isoladas em si, dos

passados roubados, tempos empilhados que podem se desdobrar, mas que estão ali como

histórias à espera e permanecem como enigmas. Por conseguinte, a leitura, ou nesse caso

a etnografia, abrange o espaço produzido pela prática do lugar constituído por um sistema

de signos.

Ao longo do exercício etnográfico, para Rocha e Eckert (2013, p.32), a caminhada vai sendo

enriquecida em sua densidade temporal na medida em que o pesquisador consegue

observar, nas suas diversas idas e vindas, os aspectos de permanência e mudança que

caracterizam e dão forma estética a esse território urbano. Assim, o pesquisador constrói o

seu conhecimento da vida urbana pela imagem que ele registra dos indivíduos e grupos

sociais por ele investigados.

Na etnografia, contato e proximidade são fundamentais. Para isso é preciso que o etnógrafo

percorra a pé o trecho urbano a ser estudado, observando todos os detalhes. Sobre isso,

Certeau (1984, p.177) afirma que o ato de caminhar está para o sistema urbano assim como

a enunciação está para a língua ou para os enunciados proferidos. Isso seria, para o autor,

uma realização espacial do lugar, assim como o ato de palavra é uma realização sonora da

língua. O ato de caminhar encontra, portanto, uma definição como espaço de enunciação.

Sendo assim, foi escolhida para o exercício de etnografia de rua a Avenida 24 de Outubro

(Figura 3). A escolha se deu principalmente em função da importância da avenida para o

Setor Campinas e da multiplicidade de usos que nela se encontra.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Figura 3 - Indicação da Avenida 24 de Outubro e ponto inicial e final do trajeto – 2016.

Fonte: Google Earth, 2016. Desenho: Daniele Severino, 2016.

A caminhada se iniciou no cruzamento da Avenida 24 de Outubro com a Avenida Perimetral

(onde se localiza o campo de futebol do time do bairro), tendo como destino final a

tradicional Praça Joaquim Lúcio (local onde se concentram alguns dos edifícios tradicionais

do bairro). Esse percurso abrangeu nove quadras, com aproximadamente 1,1 quilômetro de

extensão. Já num primeiro momento, foi perceptível o alto barulho produzido pelos carros,

ônibus, motocicletas e carros de som. Transeuntes percorrem a avenida em todo e qualquer

momento. O fluxo de pessoas é intenso.

Nas duas primeiras quadras, o comércio, em sua grande maioria, é composto de lojas de

colchões e móveis e acessórios para bebês. Na sequência, caminhando nas próximas duas

quadras, reconhecem-se uma igreja, algumas óticas, perfumarias, lojas de sapatos e

roupas, chocolataria, local para empréstimo de dinheiro, perfumaria, enxovais, farmácias.

Em seguida, nas próximas duas quadras, lojas de telefonia, um shopping (denominado

Shopping Oriente, de produtos populares), e tradicionais lojas goianas como Novo Mundo

(de eletrodomésticos e móveis) e Fujioka (eletrônicos, fotografia e ótica), Banco Bradesco e

Caixa Econômica Federal, Ricardo Eletro, Marisa, várias sapatarias, lotéricas, farmácias.

Para finalizar, Banco Itaú, loja de utilidades para o lar, Riachuelo, outras lojas da Ricardo

Eletro e do Novo Mundo, Casas Bahia, sapatarias, casas de cosméticos. Muitas dessas

lojas ou bancos se repetem ao longo do caminho. Na proporção que se avolumam e

diversificam-se os estabelecimentos comerciais, o número de transeuntes aumenta.

As fachadas das lojas dão uma característica peculiar à paisagem da avenida. São muitas

cores, informações e tamanhos diferenciados. Cada loja tem o desejo de chamar mais a

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

atenção do que a outra, pelo tamanho de sua fachada e pelas informações nesta contidas.

Além disso, toda a parte da fiação elétrica se confunde a elas, para quem observa de longe.

Foi observado que, ao longo de todo o percurso, são pouquíssimas as lojas sem fachadas

com letreiros informativos, preservando, desse modo, alguma característica de como eram

anteriormente (Figura 4).

Figura 4 - Contrastes das fachadas na Avenida 24 de Outubro.

Fonte: Acervo da autora, 2016.

Com relação às lojas, observam-se as formas de atração dos clientes. Os vendedores,

muitas vezes, ficam na porta da loja convidando o cliente para entrar e olhar os produtos.

Alguns deles chegam a sair da loja e vão aos semáforos, com seus microfones em mãos,

conversando com os motoristas que ali estão parados e fazendo propagandas (Figura 5).

Não se sabe se esse recurso é eficiente, mas gera uma sonoridade especial para a rua.

Muitas das lojas valem-se de aparelhagem de som para executar músicas de ritmos

variados, em um volume bem alto, durante todo o dia. Chega a ocorrer certa “disputa”, entre

as lojas, pela execução de músicas em volume mais alto. O repertório é aquele do gosto

popular: sertanejo, forró, sofrência, pop internacional, e por aí vai. Em meio a essa confusão

sonora, ainda é perceptível outro tipo de som que pode ser ouvido além da Avenida 24 de

Outubro, em várias outras ruas do bairro. Esse som vem de caixas de som espalhadas

juntamente aos postes de iluminação elétrica, com músicas e propagandas do comércio no

programa Rádio Campinas (Figura 5). Um hábito interiorano insistentemente revivido no

bairro.

A via é bastante movimentada durante todo o dia. Podemos observar muitos carros de

passeio, ônibus, motocicletas, carros de som etc., que, além de dar muito movimento à

avenida, também geram um barulho muito grande, muitas vezes até ensurdecedor. A

mistura de todos esses sons nos dá uma sensação total de caos.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Figura 5.

Fonte: Acervo da autora, 2016.

Durante a caminhada foi ainda observado que existe pouca vegetação nas calçadas.

Arvores são raríssimas. Elas se encontram espalhadas e em maior concentração mais ao

final do percurso, nas proximidades com a Praça Coronel Joaquim Lúcio. Portanto, os

transeuntes criam o hábito de andar pela calçada do “lado”, que não tem incidência de sol,

especialmente no período da tarde.

Como consequência desse fator natural, os ambulantes também se aglomeram deste

mesmo “lado” em sua grande maioria. Eles são muitos ao longo da avenida. Concentram-se

não somente na Avenida 24 de Outubro, como também nas ruas perpendiculares a ela.

Vendem uma infinidade de produtos. Foram avistados ambulantes que vendem lanches,

como cafezinho, biscoito ou pão de queijo. Também se veem aqueles que vendem roupas

íntimas e meias. Alguns comercializam as frutas da estação (estes geralmente estão bem

próximos às saídas dos bancos), como melancia, mexerica, abacaxi, entre outras. Outros

vendem óculos escuros e até mesmo roupas (Figura 6), mercadorias essas expostas em

vários manequins colocados na calçada. Água e água de coco também são produtos muito

vendidos, assim como salada de frutas. Muitas vezes é até difícil caminhar pela calçada pelo

tumulto causado por eles, já que esta não possui uma largura considerável.

Os carrinhos ambulantes quase sempre são acompanhados de um guarda-sol. Alguns

colocam a caixa de produtos na garupa da bicicleta e “estacionam” em algum ponto. Outros

carregam a sacola na mão mesmo. Havia um senhor vendendo doces que passava em meio

aos transeuntes falando: “olha o doce!”. Os carrinhos são de diversos modelos. Alguns com

materiais e acabamentos bem simples, outros já mais elaborados, geralmente de pequenas

empresas, como a de água de coco (Figura 6).

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Figura 6.

Fonte: Acervo da autora, 2016.

Foram localizados outros tipos de comércio de rua, como, por exemplo, bancas com

endereço fixo. Geralmente vendem de tudo um pouco: capinhas para celular, controle

remoto, bolsas, sapatos, cintos etc., e outras que são bancas de revistas. A sensação que

temos quando olhamos para essas bancas é de muita informação em um só lugar (Figura

7). Geralmente essas bancas são protegidas por uma lona, na parte superior e nas laterais,

contra o sol e a chuva.

Figura 7.

Fonte: Acervo da autora, 2016.

No trajeto, identificaram-se edificações com altura relativamente baixa, geralmente de dois

ou três pavimentos. No térreo se encontram lojas comerciais, e nos pavimentos superiores

prestadores de serviços, como odontólogos e advogados (Figura 8). Foi identificada uma

porta que dá acesso a uma das únicas edificações de uso residencial que ainda se encontra

na Avenida 24 de Outubro, camuflada em meio a tantas portas de aço. Algumas lojas são

suficientemente compridas, permitindo o acesso a uma das ruas paralelas à avenida, a

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

Avenida Alberto Miguel. Desse modo, o transeunte pode adentrar a loja por duas ruas

distintas.

Figura 8.

Fonte: Acervo da autora, 2016.

Muito curiosamente, a câmera fotográfica, na maioria do tempo, causou certa estranheza e

chamou muito a atenção dos transeuntes e ambulantes. Muitos olhavam com olhares

desconfiados, sem entender o porquê da câmera. Alguns acharam que era algo relacionado

à reportagem, outros nem questionaram. Alguns fizeram alerta sobre o risco que esse

acessório envolto ao pescoço poderia causar, caso não houvesse cuidado.

Essas observações são preliminares, mas apontam a potencialidade do estudo. O exercício

tem muito mais a revelar. As observações desdobrar-se-ão em constatações mais acuradas,

especificando interlocuções com os usuários e percepções ao longo dos períodos do dia e

da semana. Esse foi apenas o início de um longo percurso.

Considerações finais

A etnografia de rua possibilita uma experiência com outra escala de análise do objeto

arquitetônico e urbano, que difere da leitura morfológica da rua, à qual o arquiteto urbanista

está habituado. A análise conseguiu captar não só a estrutura espacial do lugar, mas,

principalmente, a relação entre habitante e espaço construído.

Consequentemente, foram observadas várias relações entre habitante e espaço numa

mesma avenida, o que está diretamente relacionado com a qualidade do ambiente e com o

nível de interação do transeunte com o espaço público.

Os trechos elencados revelam cenários distintos que compõem a paisagem da Avenida 24

de Outubro e atribuem a ela a dinâmica que a difere de outras vias da cidade. O espaço

urbano da via em questão passa, dessa forma, a ser vivido e praticado.

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

A leitura da via, realizada a partir da observação da multiplicidade de usos, das práticas

cotidianas presentes, assim como de sua organização estrutural, permitiu compreender

melhor como os transeuntes utilizam esse espaço, assim como os mecanismos que os

ambulantes utilizaram para se apropriarem do espaço urbano. Podemos observar, como

exemplo dessa apropriação, as coberturas improvisadas das lojas nos trechos de menor

sombreamento, onde a presença dos pedestres é bem menor.

Ao analisar, por exemplo, o fluxo de pessoas ao longo de toda a via, é possível concluir que

o fluxo muito intenso de veículos e ônibus e a pouca arborização não favorecem a utilização

desse espaço pelos pedestres. Contudo, o fluxo permanece e a apropriação efetiva-se.

É importante lembrar o que Certeau (1984, p.177) descreve como o meio que “autoriza” as

apropriações espaciais, o que se repete nessas práticas e se torna parte de uma memória, e

que está presente na Avenida 24 de Outubro. A ambiência proporcionada pela sombra

gerada pelas edificações autoriza e estimula a presença dos passantes e também o

posicionamento dos ambulantes, reforçando o hábito de “estar” no espaço público das

calçadas, criando, assim, uma espécie de memória e tradição cultural.

Os usuários apropriam-se do espaço e imprimem sua identidade. As “maneiras de fazer”,

como abordado por Certeau (1984, p.40), se dão pela vivência de estar na rua

cotidianamente, cuja prática atribui ao espaço significado e sentido de lugar. Dessa forma, a

etnografia abrange o espaço produzido pela prática do lugar como um sistema, que busca

as significações sobre o viver e o dia a dia da cidade.

A apreensão da dinâmica urbana e sua “experienciação” – caminhos, ruídos e direções a

percorrer – conduziram a certos lugares e paisagens. A vivência das trajetórias dos

comerciantes e transeuntes possibilitou identificar e registrar essas práticas, não apenas no

traçado do deslocamento, mas também no vislumbrar dos seus aspectos culturais. São os

produtos vendidos pelos ambulantes, o som das propagandas e dos microfones, o perfume

das frutas, o odor do suor de quem perambula pela via, o sotaque das falas em percurso,

tudo isso indiciando a vida.

A etnografia permitiu conhecer a rua como “lugar de interação social”, onde trajetórias se

cruzam, grupos e indivíduos compartilham suas rotinas e o espaço é praticado repetidas

vezes.

A partir desses registros fotográficos foi possível construir um conhecimento da vida urbana

desse lugar, por meio da imagem coletada e das edificações comerciais analisadas, bem

como dos alguns transeuntes que por ali passavam. O estudo se desenvolveu como uma

“narrativa”, cuja caminhada de reconhecimento favoreceu a leitura da apropriação espacial

da Avenida 24 de Outubro por habitantes locais. Essa vivência do espaço urbano, pelo

4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016

exercício etnográfico, possibilitou que fossem abrangidos elementos peculiares do lugar em

análise, como esse movimento de ir e vir dos transeuntes, a apropriação do espaço público

pelos ambulantes, as práticas cotidianas e as trocas sociais, logo, sua produção do espaço.

Referências

CAMPOS, Itaney Francisco. Notícias históricas do bairro de Campinas. Goiânia: Prefeitura Municipal, Assessoria Especial de Cultura, 1985.

CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.

CORRÊA, Roberto Lobato. Trajetórias geográficas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

DIÁRIO DA MANHÃ. Riqueza no comércio. Goiânia, 31 ago. 1998. Caderno Bairros, p. 6.

DIÁRIO DA MANHÃ. Trânsito e lazer. Goiânia, 5 dez. 2004. Caderno Bairros, p. 6.

MANSO, Celina Fernandes Almeida. Goiânia: uma concepção urbana, moderna e contemporânea. Um certo olhar. Goiânia: Ed. do Autor, 2001.

O POPULAR. Todo mundo passa pela Campininha. Goiânia, 12 dez. 2010. Vida Urbana, p. 3.

OLIVEIRA, Adriana Mara Vaz de. A percepção da mudança: os registros na cidade de Goiás. História, São Paulo, v. 30, n. 1, p.189-208, jan.-jun. 2011.

ORTENCIO, Bariani. História documentada e atualizada de Campinas. Goiânia: Kelps, 2011.

ROCHA, Ana Luiza Carvalho da; ECKERT, Cornélia (Org.). Etnografia de rua: estudos de antropologia urbana. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 2013.

SEPLAM. Radiografia socioeconômica de Goiânia 2002. Goiânia: Secretaria Municipal de Planejamento da Prefeitura de Goiânia, 2002.

VAZ, Maria Diva Araújo Coelho. Transformação do centro de Goiânia: renovação ou reestruturação? 2002. 269 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) – Instituto de Estudos Socioambientais, Universidade Federal de Goiás, Goiânia, 2003.

VILLAÇA, Flavio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo. Studio Nobel: Fapesp: Lincoln Institute, 1998.

FONTES DAS IMAGENS

Acervo de imagens de Daniele Severino. 2016.

Imagens de satélite da Avenida 24 de outubro. Disponível em: <www.googleearth.com>. Acesso em: jul. 2016.