EXERCÍCIO ETNOGRÁFICO: uma rua comercial em Goiânia · No início dos anos de 1930, com a...
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4O COLÓQUIO IBERO-AMERICANO PAISAGEM CULTURAL, PATRIMÔNIO E PROJETO Belo Horizonte, de 26 a 28 de setembro de 2016
EXERCÍCIO ETNOGRÁFICO: uma rua comercial em Goiânia
OLIVEIRA, ADRIANA M. V. de (1); GODINHO, DANIELE S. de S. (2)
1. Universidade Federal de Goiás.
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Projeto e Cidade [email protected]
2. Universidade Federal de Goiás.
Acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Projeto e Cidade [email protected]
RESUMO
O povoado de Campinas em Goiás originou-se no século XIX, posicionando-se como rota comercial no Estado. No início dos anos de 1930, com a construção da nova capital Goiânia, o pequeno município transformou-se em sede provisória do governo estadual e apoio ao processo de implantação da nascente cidade. Com o passar dos anos e o crescimento de Goiânia, Campinas incorporou-se à cidade como um de seus bairros. A integração a Goiânia imprimiu muitas mudanças ao pequeno núcleo de Campinas. Muitas edificações, exemplares da arquitetura vernácula goiana, foram destruídas para dar lugar a estabelecimentos comerciais, conectados ao abastecimento da capital, além daqueles já existentes. Na atual Avenida 24 de Outubro, uma das primeiras ruas do bairro, concentrava-se grande parte desse comércio, mantendo-se até os dias de hoje. Atualmente, o comércio espalha-se por quase todo o bairro, mas essa avenida ainda se destaca como referência para o comércio varejista e na prestação de serviços. Afora o comércio formal, existem inúmeros ambulantes que se alocam em suas calçadas, gerando uma paisagem complexa e diversa que merece atenção.
A metodologia escolhida para desbravar a Avenida 24 de Outubro foi a etnografia de rua, com base nos estudos antropológicos de Ana Luisa da Rocha e Cornélia Eckert (2013), nos quais as autoras descrevem práticas e saberes de grupos sociais por meio de técnicas como a observação e conversação in loco. O conceito principal é o de vivenciar e experimentar a cidade a partir das análises de suas transformações espaciais. Para as autoras, descrever a cidade sob esse ponto de vista permite conhecê-la como local de interações sociais e trajetórias de grupos ou indivíduos cujas rotinas podem estar vinculadas às suas tradições culturais.
A etnografia da e na Avenida 24 de Outubro permitiu vivê-la, a partir da adoção de um olhar sensível sobre todos os seus aspectos – lojas, vendedores, consumidores (ou não), mercadorias, transeuntes, ambulantes, pedintes, entre outros. Realizou-se um "diário de bordo" com os relatos daquilo que foi observado e capturado, assim como se efetuaram registros fotográficos das situações vividas e espreitadas na rua. Ao vivenciar o lugar e seu quotidiano, observou-se o movimento dos usuários, assim como a transformação que eles involuntariamente geram na paisagem urbana. Este artigo coloca-se como um meio de avaliação desse exercício etnográfico, utilizando-se especialmente as fotografias.
Palavras-chave: etnografia de rua; comércio; Avenida 24 de Outubro; Goiânia.
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Introdução
O atual Setor Campinas da cidade de Goiânia já foi um povoado de nome Campinas.
“Campininha das Flores”, como era conhecida por seus moradores, teve sua formação
iniciada no século XIX, por volta de 1810, tornando-se freguesia em 1853, e sendo elevada
à vila em 1907, se desligando de Bela Vista e de Bonfim – partes da mesma freguesia –, e
incluindo às suas terras o patrimônio de Barro Preto, atual município de Trindade (Campos,
1985, p.17). A mineração foi o aspecto que deu origem a Campinas. Vários viajantes vinham
de outros lugares à procura de ouro, mas só se encontravam algumas minas de ferro.
A população da Campininha residia nas redondezas da Paróquia Nossa Senhora da
Conceição (atual Basílica de Campinas). Nesse período o povoado já contava com
migrantes de outras partes do país (Ortencio, 2011, p. 131). Relata Ortencio (2011, p. 16),
que “a família que mais povoou e desenvolveu Campinas foi sem dúvida a Rodrigues e
Morais. Eram os maiores fazendeiros e proprietários urbanos [...]”. Mas o que deu impulso
ao crescimento do pequeno povoado foi a vinda dos padres redentoristas da Alemanha (isso
pelo fato de o local conter terra fértil, bom clima etc.) em 1895, com a intenção de
administrar o Santuário de Trindade em Barro Preto. Eles exerceram uma forte influência
cultural no local desde a sua chegada.
Em 1931, Pedro Ludovico Teixeira foi nomeado interventor em Goiás e, em meio a disputas
políticas, desejoso em marcar seu nome na história, decidiu transferir a capital do Estado,
que era na cidade de Goiás, para outro local. A ideia era a de construir uma nova cidade
que se inserisse nas metas nacionais da Marcha para o Oeste, inaugurando a modernidade
em terras goianas. Para tal, Teixeira instituiu uma comissão de escolha do local para a nova
capital, que seleciona a região de Campinas.
Assim, o interventor Pedro Ludovico assinou o Decreto 3.359, de maio de 1933,
desapropriando terras particulares e definindo o domínio da zona urbana da nova capital
goiana nas imediações de Campinas. Segundo Manso (2001, p. 80), "em 1932, Campinas
contava com 14.300 habitantes, com uma malha urbana definida e com um pequeno centro
comercial".
No mesmo ano, contratou-se o arquiteto Attílio Corrêa Lima para a execução do plano da
nova cidade. Na sequência, iniciam-se as obras de implantação da capital nascente e, em
1935, o governador mudou-se para Campinas, assegurando o processo de transferência,
antes mesmo da conclusão das obras (Oliveira, 2011, p. 201). Alguns anos depois, em
março de 1937, o governador assinou o decreto de transferência definitiva da capital para a
então cidade denominada Goiânia (Figura 1).
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Figura 1 - Foto aérea que mostra a ligação de Campinas a Goiânia – 1937
Fonte: Acervo SEPLAM
Enquanto Goiânia estava se consolidando como uma nova cidade, Campinas tornava-se um
de seus bairros e já se destacava como centro comercial. Assinala a reportagem “Riqueza
no Comércio” do jornal Diário da Manhã (31 ago. 1998): “Desde o começo da construção da
capital goiana no início dos anos 30, os comerciantes fizeram da velha Campininha das
Flores o seu local preferido [...]. Campinas era o maior centro comercial e assim
permaneceu por décadas”.
Com o surgimento de Goiânia, o Setor Campinas se tornou, de certa forma, a área central
da cidade, apresentando uma grande diversidade de comércio e serviços (Vaz, 2002, p.72).
O bairro já existente era considerado o centro da cidade nascente, pois era lá que a
população do município e seu entorno era atendida, como nos informa Campos (1985, p.
54):
Ocorreu que nos primórdios de Goiânia as empresas de comércio atacadista, grandes armazéns, pequenas indústrias de transformação, frigoríficos estabeleceram-se preferencialmente no bairro de Campinas [...]. Aberta a Avenida Amazonas, hoje Anhanguera, ao longo dela, instalaram-se casas especializadas e artigos de couro [...], produtos e implementos agrícolas [...] cujos ramos vêm se diversificando de maneira sempre surpreendente, dando ao bairro aspecto tipicamente comercial.
Campinas
Goiânia
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Na década de 1950, Goiânia passou por uma mudança no seu arranjo comercial e de
serviços, decorrente, dentre outros fatores, de seu processo de expansão urbana e do
rápido crescimento de sua população. Houve uma descentralização comercial e de serviços
do Setor Campinas para o propriamente dito Setor Central (Vaz, 2002, p.28).
Pode-se considerar que, por um período de tempo curto, o Setor Campinas foi o “centro” de
Goiânia, fato esse que enaltece a sua importância no processo de construção de Goiânia.
Nos dias de hoje, Campinas atende a uma grande parcela da sociedade goianiense e
também às regiões lindeiras, o que caracteriza o comércio como um sucinto popular. O
comércio demorou um longo tempo para se formar. Sobre a formação dos sucintos
populares, Villaça (1998, p. 307) assinala: “Um sucinto tradicional leva décadas para se
constituir e seu impacto se produz lentamente, sendo absorvido lentamente pela vizinhança,
que aos poucos também se transforma”. Ainda segundo o referido autor, essa “adaptação”
por parte da população no sucinto não ocorre com o shopping center, no qual a vizinhança
não tem tempo para se adaptar, já que sua criação é rápida e geralmente se localiza nas
áreas nobres das cidades grandes.
No ano de 2002, conforme dados levantados pelo Seplam, Campinas contava com 4.789
estabelecimentos, sendo 3.336 de comércio (69,6%) e 875 de serviços (18,27%). Esse setor
torna-se um sucinto popular de grande relevância, pelo fato de atender a uma população
com menor poder de compras, pois possui o segundo lugar como polo comercial, ficando
atrás somente do centro de Goiânia. "Mais de 70% da arrecadação do Estado com o
comércio vem de Campinas", ressalta a presidente da Associação dos Empresários de
Campinas (Assecamp), Margareth Maria Sarmento, em entrevista concedida ao jornal O
Popular (12 dez. 2010). Ela destaca que Campinas tem ruas destinadas ao comércio de
todo tipo de produtos: confecção, secos e molhados, aviamentos, joias, roupas para festas,
máquinas, couros, material de pesca e mais uma infinidade de mercadorias. "Essa é uma
particularidade de Campinas. Ajuda o cliente a encontrar rapidamente o que precisa",
assinala Margareth. Esse volume tem sido mantido ao longo dos anos. Em continuidade, a
reportagem do jornal O Popular (12 dez. 2010) registra que entidades congregadas de
empresários no Setor Campinas estimam um número de cem mil pessoas passando
diariamente pelo bairro na época do Natal.
A segmentação do mercado, uma característica do setor, é apontada como um dos fatores
que atraem a população para aquele que é considerado um dos maiores centros comerciais
do país. O Setor Campinas é dividido por ruas onde as lojas se aglutinam por tipologias,
com uma enorme diversidade de produtos. As avenidas Senador Jaime, Pouso Alto, Alberto
Miguel e São Paulo possuem duzentas lojas especializadas em eletrodomésticos e móveis
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usados. Essa afirmação do presidente da associação destaca a importância desse setor
como um sucinto popular.
Além de todas as avenidas citadas acima, existem outras, especializadas em tecidos,
couros, roupas, armarinhos, vestidos de noiva etc.. Isso concorre para o processo de
coesão (Corrêa, 2001, p.131), caracterizado pela aglutinação de comércio com mesmas
funções, o que propicia para o consumidor uma maior comodidade na hora das compras, e
facilidade de negociação. Como exemplo dessa coesão no Setor Campinas, pode-se citar a
avenida São Paulo, que é especializada no ramo de tecidos. Essas são apenas algumas
das concentrações. Existem outras com mais ou menos intensidade (Figura 2).
Figura 2 - Avenida São Paulo – rua especializada no ramo de tecidos.
Fonte: Google Street View, 2016.
A Avenida 24 de Outubro dispõe de um comércio diversificado e conta com um fluxo enorme
de pessoas (transeuntes, consumidores, ambulantes etc.) e de veículos. O grande aumento
da circulação de automóveis, transeuntes e de lojas comerciais descaracterizou em parte os
aspectos cotidianos que sempre foram característicos no local. Por fazer parte do núcleo
urbano pioneiro de Goiânia, essa mesma avenida teve seu traçado considerado um bem
patrimonial protegido pelo Tombamento Federal (Portaria Federal n.º 507/2003). De acordo
com o presidente da Associação da Indústria e Comércio de Confecções de Campinas, em
entrevista realizada pelo jornal Diário da Manhã (5 dez. 2004), a Avenida 24 de Outubro “é o
maior shopping horizontal da América Latina”, com um total de quinhentas lojas em 1,6 km
de extensão.
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Exercício etnográfico: Avenida 24 de Outubro
Segundo Ana Luiza da Rocha e Cornélia Eckert (2013, p.14), a etnografia de rua consiste no
desenvolvimento da observação sistemática de uma rua ou mais ruas de um bairro e da
descrição de seus cenários, buscando os significados sobre o viver o dia a dia na cidade.
Para tanto, o observador deve estar atento aos personagens que estão presentes na rotina
das ruas, nos imprevistos, nas situações de tensão e conflito. Dessa maneira, para as
autoras, o exercício de etnografia na rua permite ao etnógrafo reconhecer e interpretar não
só os habitantes, mas também a si mesmo, no contexto de diálogo com quem é observado
(a quem as autoras referenciam como o Outro).
Rocha e Eckert (2013, p.23) afirmam que, nesse sentido, para a prática de uma etnografia
de rua com vistas a bons resultados, o pesquisador precisa aprender a pertencer a esse
ambiente como se este fosse sua morada, lugar de intimidade e acomodação afetiva. Uma
etnografia de rua propõe ao antropólogo o desafio de ”experienciar” e viver a ambiência das
cidades, cujos caminhos, ruídos, cheiros e cores a percorrer sugerem direções e sentidos,
guiados pelo próprio movimento dos pedestres e que podem conduzir a certos lugares,
cenários e paisagens.
Dessa maneira, o observador adentra o mundo do observado e procura identificar hábitos e
práticas cotidianas no local de estudo. Para Michel de Certeau (1984, p.40), essas seriam as
“maneiras de fazer” que constituem as mil práticas pelas quais usuários se (re)apropriam do
espaço organizado pelas técnicas da produção sociocultural. O autor afirma que se
esboçam três funcionamentos distintos das relações entre práticas espaciais e significantes:
o crível, o memorável e o primitivo. Designam, respectivamente, aquilo que “autoriza” as
apropriações espaciais, aquilo que ali se repete de uma memória silenciosa e fechada, e
aquilo que aí se acha estruturado e não cessa de ser marcado por uma outra origem.
Deverá o etnógrafo saber, então, apreender a cidade por meio das trajetórias, identificar e
registrar essas práticas, não apenas pelo traçado do deslocamento, mas pela recomposição
dos traços culturais deixados pelos citadinos. É por intermédio da etnografia de rua que o
pesquisador passa a observar a cidade como objeto temporal e produtor de trocas, um lugar
composto por muitos caminhos e percursos sobrepostos numa trama de ações cotidianas e
de fazeres urbanos.
As paisagens que integram o território devem ser, portanto, percorridas pelo pesquisador.
Este deverá reconhecer os trajetos, seguir os itinerários dos habitantes, interrogar e
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vivenciar o espaço urbano, buscando ao mesmo tempo estabelecer contato com os grupos
sociais observados.
De acordo com Rocha e Eckert (2013, p.24), o contato com os habitantes expressa o desejo
de múltiplas trocas. Nessa interação, o pesquisador não depende apenas do domínio da
língua do outro para compreender o que é falado, mas da atenção aos tons e insinuações,
dos silêncios e detalhes. Sem dúvida, o contato nasce desse processo de estar na rua
quotidianamente, onde o espaço vivido e praticado passa a ser percebido como lugar, uma
vez que estabelece relações com os habitantes e a partir disso adquire atribuições e
qualidades.
Certeau (1984, p.189) diz que os lugares são histórias fragmentadas e isoladas em si, dos
passados roubados, tempos empilhados que podem se desdobrar, mas que estão ali como
histórias à espera e permanecem como enigmas. Por conseguinte, a leitura, ou nesse caso
a etnografia, abrange o espaço produzido pela prática do lugar constituído por um sistema
de signos.
Ao longo do exercício etnográfico, para Rocha e Eckert (2013, p.32), a caminhada vai sendo
enriquecida em sua densidade temporal na medida em que o pesquisador consegue
observar, nas suas diversas idas e vindas, os aspectos de permanência e mudança que
caracterizam e dão forma estética a esse território urbano. Assim, o pesquisador constrói o
seu conhecimento da vida urbana pela imagem que ele registra dos indivíduos e grupos
sociais por ele investigados.
Na etnografia, contato e proximidade são fundamentais. Para isso é preciso que o etnógrafo
percorra a pé o trecho urbano a ser estudado, observando todos os detalhes. Sobre isso,
Certeau (1984, p.177) afirma que o ato de caminhar está para o sistema urbano assim como
a enunciação está para a língua ou para os enunciados proferidos. Isso seria, para o autor,
uma realização espacial do lugar, assim como o ato de palavra é uma realização sonora da
língua. O ato de caminhar encontra, portanto, uma definição como espaço de enunciação.
Sendo assim, foi escolhida para o exercício de etnografia de rua a Avenida 24 de Outubro
(Figura 3). A escolha se deu principalmente em função da importância da avenida para o
Setor Campinas e da multiplicidade de usos que nela se encontra.
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Figura 3 - Indicação da Avenida 24 de Outubro e ponto inicial e final do trajeto – 2016.
Fonte: Google Earth, 2016. Desenho: Daniele Severino, 2016.
A caminhada se iniciou no cruzamento da Avenida 24 de Outubro com a Avenida Perimetral
(onde se localiza o campo de futebol do time do bairro), tendo como destino final a
tradicional Praça Joaquim Lúcio (local onde se concentram alguns dos edifícios tradicionais
do bairro). Esse percurso abrangeu nove quadras, com aproximadamente 1,1 quilômetro de
extensão. Já num primeiro momento, foi perceptível o alto barulho produzido pelos carros,
ônibus, motocicletas e carros de som. Transeuntes percorrem a avenida em todo e qualquer
momento. O fluxo de pessoas é intenso.
Nas duas primeiras quadras, o comércio, em sua grande maioria, é composto de lojas de
colchões e móveis e acessórios para bebês. Na sequência, caminhando nas próximas duas
quadras, reconhecem-se uma igreja, algumas óticas, perfumarias, lojas de sapatos e
roupas, chocolataria, local para empréstimo de dinheiro, perfumaria, enxovais, farmácias.
Em seguida, nas próximas duas quadras, lojas de telefonia, um shopping (denominado
Shopping Oriente, de produtos populares), e tradicionais lojas goianas como Novo Mundo
(de eletrodomésticos e móveis) e Fujioka (eletrônicos, fotografia e ótica), Banco Bradesco e
Caixa Econômica Federal, Ricardo Eletro, Marisa, várias sapatarias, lotéricas, farmácias.
Para finalizar, Banco Itaú, loja de utilidades para o lar, Riachuelo, outras lojas da Ricardo
Eletro e do Novo Mundo, Casas Bahia, sapatarias, casas de cosméticos. Muitas dessas
lojas ou bancos se repetem ao longo do caminho. Na proporção que se avolumam e
diversificam-se os estabelecimentos comerciais, o número de transeuntes aumenta.
As fachadas das lojas dão uma característica peculiar à paisagem da avenida. São muitas
cores, informações e tamanhos diferenciados. Cada loja tem o desejo de chamar mais a
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atenção do que a outra, pelo tamanho de sua fachada e pelas informações nesta contidas.
Além disso, toda a parte da fiação elétrica se confunde a elas, para quem observa de longe.
Foi observado que, ao longo de todo o percurso, são pouquíssimas as lojas sem fachadas
com letreiros informativos, preservando, desse modo, alguma característica de como eram
anteriormente (Figura 4).
Figura 4 - Contrastes das fachadas na Avenida 24 de Outubro.
Fonte: Acervo da autora, 2016.
Com relação às lojas, observam-se as formas de atração dos clientes. Os vendedores,
muitas vezes, ficam na porta da loja convidando o cliente para entrar e olhar os produtos.
Alguns deles chegam a sair da loja e vão aos semáforos, com seus microfones em mãos,
conversando com os motoristas que ali estão parados e fazendo propagandas (Figura 5).
Não se sabe se esse recurso é eficiente, mas gera uma sonoridade especial para a rua.
Muitas das lojas valem-se de aparelhagem de som para executar músicas de ritmos
variados, em um volume bem alto, durante todo o dia. Chega a ocorrer certa “disputa”, entre
as lojas, pela execução de músicas em volume mais alto. O repertório é aquele do gosto
popular: sertanejo, forró, sofrência, pop internacional, e por aí vai. Em meio a essa confusão
sonora, ainda é perceptível outro tipo de som que pode ser ouvido além da Avenida 24 de
Outubro, em várias outras ruas do bairro. Esse som vem de caixas de som espalhadas
juntamente aos postes de iluminação elétrica, com músicas e propagandas do comércio no
programa Rádio Campinas (Figura 5). Um hábito interiorano insistentemente revivido no
bairro.
A via é bastante movimentada durante todo o dia. Podemos observar muitos carros de
passeio, ônibus, motocicletas, carros de som etc., que, além de dar muito movimento à
avenida, também geram um barulho muito grande, muitas vezes até ensurdecedor. A
mistura de todos esses sons nos dá uma sensação total de caos.
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Figura 5.
Fonte: Acervo da autora, 2016.
Durante a caminhada foi ainda observado que existe pouca vegetação nas calçadas.
Arvores são raríssimas. Elas se encontram espalhadas e em maior concentração mais ao
final do percurso, nas proximidades com a Praça Coronel Joaquim Lúcio. Portanto, os
transeuntes criam o hábito de andar pela calçada do “lado”, que não tem incidência de sol,
especialmente no período da tarde.
Como consequência desse fator natural, os ambulantes também se aglomeram deste
mesmo “lado” em sua grande maioria. Eles são muitos ao longo da avenida. Concentram-se
não somente na Avenida 24 de Outubro, como também nas ruas perpendiculares a ela.
Vendem uma infinidade de produtos. Foram avistados ambulantes que vendem lanches,
como cafezinho, biscoito ou pão de queijo. Também se veem aqueles que vendem roupas
íntimas e meias. Alguns comercializam as frutas da estação (estes geralmente estão bem
próximos às saídas dos bancos), como melancia, mexerica, abacaxi, entre outras. Outros
vendem óculos escuros e até mesmo roupas (Figura 6), mercadorias essas expostas em
vários manequins colocados na calçada. Água e água de coco também são produtos muito
vendidos, assim como salada de frutas. Muitas vezes é até difícil caminhar pela calçada pelo
tumulto causado por eles, já que esta não possui uma largura considerável.
Os carrinhos ambulantes quase sempre são acompanhados de um guarda-sol. Alguns
colocam a caixa de produtos na garupa da bicicleta e “estacionam” em algum ponto. Outros
carregam a sacola na mão mesmo. Havia um senhor vendendo doces que passava em meio
aos transeuntes falando: “olha o doce!”. Os carrinhos são de diversos modelos. Alguns com
materiais e acabamentos bem simples, outros já mais elaborados, geralmente de pequenas
empresas, como a de água de coco (Figura 6).
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Figura 6.
Fonte: Acervo da autora, 2016.
Foram localizados outros tipos de comércio de rua, como, por exemplo, bancas com
endereço fixo. Geralmente vendem de tudo um pouco: capinhas para celular, controle
remoto, bolsas, sapatos, cintos etc., e outras que são bancas de revistas. A sensação que
temos quando olhamos para essas bancas é de muita informação em um só lugar (Figura
7). Geralmente essas bancas são protegidas por uma lona, na parte superior e nas laterais,
contra o sol e a chuva.
Figura 7.
Fonte: Acervo da autora, 2016.
No trajeto, identificaram-se edificações com altura relativamente baixa, geralmente de dois
ou três pavimentos. No térreo se encontram lojas comerciais, e nos pavimentos superiores
prestadores de serviços, como odontólogos e advogados (Figura 8). Foi identificada uma
porta que dá acesso a uma das únicas edificações de uso residencial que ainda se encontra
na Avenida 24 de Outubro, camuflada em meio a tantas portas de aço. Algumas lojas são
suficientemente compridas, permitindo o acesso a uma das ruas paralelas à avenida, a
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Avenida Alberto Miguel. Desse modo, o transeunte pode adentrar a loja por duas ruas
distintas.
Figura 8.
Fonte: Acervo da autora, 2016.
Muito curiosamente, a câmera fotográfica, na maioria do tempo, causou certa estranheza e
chamou muito a atenção dos transeuntes e ambulantes. Muitos olhavam com olhares
desconfiados, sem entender o porquê da câmera. Alguns acharam que era algo relacionado
à reportagem, outros nem questionaram. Alguns fizeram alerta sobre o risco que esse
acessório envolto ao pescoço poderia causar, caso não houvesse cuidado.
Essas observações são preliminares, mas apontam a potencialidade do estudo. O exercício
tem muito mais a revelar. As observações desdobrar-se-ão em constatações mais acuradas,
especificando interlocuções com os usuários e percepções ao longo dos períodos do dia e
da semana. Esse foi apenas o início de um longo percurso.
Considerações finais
A etnografia de rua possibilita uma experiência com outra escala de análise do objeto
arquitetônico e urbano, que difere da leitura morfológica da rua, à qual o arquiteto urbanista
está habituado. A análise conseguiu captar não só a estrutura espacial do lugar, mas,
principalmente, a relação entre habitante e espaço construído.
Consequentemente, foram observadas várias relações entre habitante e espaço numa
mesma avenida, o que está diretamente relacionado com a qualidade do ambiente e com o
nível de interação do transeunte com o espaço público.
Os trechos elencados revelam cenários distintos que compõem a paisagem da Avenida 24
de Outubro e atribuem a ela a dinâmica que a difere de outras vias da cidade. O espaço
urbano da via em questão passa, dessa forma, a ser vivido e praticado.
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A leitura da via, realizada a partir da observação da multiplicidade de usos, das práticas
cotidianas presentes, assim como de sua organização estrutural, permitiu compreender
melhor como os transeuntes utilizam esse espaço, assim como os mecanismos que os
ambulantes utilizaram para se apropriarem do espaço urbano. Podemos observar, como
exemplo dessa apropriação, as coberturas improvisadas das lojas nos trechos de menor
sombreamento, onde a presença dos pedestres é bem menor.
Ao analisar, por exemplo, o fluxo de pessoas ao longo de toda a via, é possível concluir que
o fluxo muito intenso de veículos e ônibus e a pouca arborização não favorecem a utilização
desse espaço pelos pedestres. Contudo, o fluxo permanece e a apropriação efetiva-se.
É importante lembrar o que Certeau (1984, p.177) descreve como o meio que “autoriza” as
apropriações espaciais, o que se repete nessas práticas e se torna parte de uma memória, e
que está presente na Avenida 24 de Outubro. A ambiência proporcionada pela sombra
gerada pelas edificações autoriza e estimula a presença dos passantes e também o
posicionamento dos ambulantes, reforçando o hábito de “estar” no espaço público das
calçadas, criando, assim, uma espécie de memória e tradição cultural.
Os usuários apropriam-se do espaço e imprimem sua identidade. As “maneiras de fazer”,
como abordado por Certeau (1984, p.40), se dão pela vivência de estar na rua
cotidianamente, cuja prática atribui ao espaço significado e sentido de lugar. Dessa forma, a
etnografia abrange o espaço produzido pela prática do lugar como um sistema, que busca
as significações sobre o viver e o dia a dia da cidade.
A apreensão da dinâmica urbana e sua “experienciação” – caminhos, ruídos e direções a
percorrer – conduziram a certos lugares e paisagens. A vivência das trajetórias dos
comerciantes e transeuntes possibilitou identificar e registrar essas práticas, não apenas no
traçado do deslocamento, mas também no vislumbrar dos seus aspectos culturais. São os
produtos vendidos pelos ambulantes, o som das propagandas e dos microfones, o perfume
das frutas, o odor do suor de quem perambula pela via, o sotaque das falas em percurso,
tudo isso indiciando a vida.
A etnografia permitiu conhecer a rua como “lugar de interação social”, onde trajetórias se
cruzam, grupos e indivíduos compartilham suas rotinas e o espaço é praticado repetidas
vezes.
A partir desses registros fotográficos foi possível construir um conhecimento da vida urbana
desse lugar, por meio da imagem coletada e das edificações comerciais analisadas, bem
como dos alguns transeuntes que por ali passavam. O estudo se desenvolveu como uma
“narrativa”, cuja caminhada de reconhecimento favoreceu a leitura da apropriação espacial
da Avenida 24 de Outubro por habitantes locais. Essa vivência do espaço urbano, pelo
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exercício etnográfico, possibilitou que fossem abrangidos elementos peculiares do lugar em
análise, como esse movimento de ir e vir dos transeuntes, a apropriação do espaço público
pelos ambulantes, as práticas cotidianas e as trocas sociais, logo, sua produção do espaço.
Referências
CAMPOS, Itaney Francisco. Notícias históricas do bairro de Campinas. Goiânia: Prefeitura Municipal, Assessoria Especial de Cultura, 1985.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
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FONTES DAS IMAGENS
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