Exercício espiritual

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Exercício espiritual 1 Silviano Santiago Escritos da Inglaterra, coletânea de ensaios críticos de Ana Cristina Cesar, é à primeira vista o caderno de viagem de uma mestranda em Teoria da tradução. O livro se coloca, pois, sob o signo de uma dupla experiência: a da viagem ao estrangeiro e a da universidade europeia. Atando as duas formas de experiência à questão da tradução literária. Ou seja: o desejo de apropriar para si (e para a sua língua materna) o que é de início alheio e estranho e que, por isso mesmo, atiça a nossa curiosidade e o nosso saber. Ana Cristina dirá: atiça a nossa paixão. Só que o acesso a essa “terra incógnita” (expressão latina que os cartógrafos de antigamente usavam para classificar as regiões a serem descobertas), o acesso a essa paixão-pelo-outro se dá aqui pelo pórtico da universidade, daí a busca concomitante por parte do tradutor de uma técnica de desbravamento e de colonização. Não tenhamos dúvida: a tradução pode ser uma das portas de vai-e-vem que abrem as literaturas nacionais para os valores universais. A técnica, no caso de Ana Cristina, serve para iluminar o topo da experi6encia múltipla do tradutor, a fim de que a incorporação do outro seja feita com estilo (no sentido existencial e artístico da expressão). Com estilo: de maneira charmosa, alinhada, conveniente, sem perder o rebolado. Com estilo: segundo os rigores de um verdadeiro aprendizado em 1 Publicado no Jornal do Brasil, em 17 de dezembro de 1988.

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Exerccio espiritual[footnoteRef:1] [1: Publicado no Jornal do Brasil, em 17 de dezembro de 1988.]

Silviano Santiago

Escritos da Inglaterra, coletnea de ensaios crticos de Ana Cristina Cesar, primeira vista o caderno de viagem de uma mestranda em Teoria da traduo. O livro se coloca, pois, sob o signo de uma dupla experincia: a da viagem ao estrangeiro e a da universidade europeia. Atando as duas formas de experincia questo da traduo literria. Ou seja: o desejo de apropriar para si (e para a sua lngua materna) o que de incio alheio e estranho e que, por isso mesmo, atia a nossa curiosidade e o nosso saber. Ana Cristina dir: atia a nossa paixo. S que o acesso a essa terra incgnita (expresso latina que os cartgrafos de antigamente usavam para classificar as regies a serem descobertas), o acesso a essa paixo-pelo-outro se d aqui pelo prtico da universidade, da a busca concomitante por parte do tradutor de uma tcnica de desbravamento e de colonizao.No tenhamos dvida: a traduo pode ser uma das portas de vai-e-vem que abrem as literaturas nacionais para os valores universais.A tcnica, no caso de Ana Cristina, serve para iluminar o topo da experi6encia mltipla do tradutor, a fim de que a incorporao do outro seja feita com estilo (no sentido existencial e artstico da expresso). Com estilo: de maneira charmosa, alinhada, conveniente, sem perder o rebolado. Com estilo: segundo os rigores de um verdadeiro aprendizado em linguagem. A tcnica uma forma de etiqueta leiga to eficiente para se chegar perfeio quanto a reza no plano espiritual.Alis, paixo e tcnica o subttulo que Ana Cristina encontra para o trabalho mais substancioso dessa coletnea: a tese de mestrado que defendeu na Universidade de Essex e que se compe da traduo para o portugus do conto Bliss, de Katherine Mansfield, acompanhada de 80 notas de p de pginas que aclaram as decises feitas pela tradutora. Diz a citada tese em epgrafe tomada de emprstimo autora do conto: Tenho paixo pela tcnica. Tenho paixo por transformar o que estou fazendo em algo completo se que me entendem. Acredito que da tcnica que nasce o verdadeiro estilo.Clarice Lispector se impe aqui para evitar equvocos acadmicos: o vazio tem valor e a semelhana do pleno. A tcnica, para Ana Cristina, no tem a definio que lhe do os new critics anglo-saxes mencionados na sua bibliografia. Para eles apenas uma espcie de treino retrico com fins de apurao e eficcia meramente artsticas, o indispensvel artesanato que reveste de qualidade o produto fabricado. A tcnica, para Ana Cristina, tambm artesanato, mas ao mesmo tempo como adiantamos atrs forma palpvel e humana de exerccio espiritual, de reza. forma de ascese leiga pela qual o verdadeiro artistas chega ao todo se que me entendem. A tradutora, aqui, poeta: ela busca um estilo (no duplo sentido) para ele.A experincia da traduo, expressa sob a forma de anotaes de trabalho, de dirio de viagem por terras alheias, no deixa de ser uma forma de escrita crtica plural, que se manifesta com metodologia estilstica aqui, retrica ali, hermenutica acol, e assim por diante. certamente por essa razo (e no por outras invocadas pela autora) que o texto crtico que recobre o trabalho da traduo tenha de vir sob a forma fragmentada e descontnua das notas de p de pgina. Ana Cristina, com o olhar clnico que lhe habitual, tinha descoberto a razo do mtodo no romancista e tradutor russo Nabokov. Diz este: Desejo que as tradues tenham muitas notas de p de pgina, notas que subam como arranha-cus, at o topo da pgina, deixando entrever a tnue sugesto de uma linha de texto entre o comentrio e a eternidade.Forma digressiva, aparentemente subalterna, comentrio produo alheia, o texto crtico da traduo no deixa de ser um dos pilares na constituio do estilo literrio moderno no Ocidente. No por coincidncia que grandes artistas foram grandes tradutores: de Charles Baudelaire e Ezra Pound, de Mallarm a Manuel Bandeira. Uma comparao talvez aclare melhor o que estamos querendo dizer. As retricas davam a imitatio (imitao) dos clssicos como os sucessores degraus de que se deveria valer o iniciante para atingir o cimo do Parnaso. Ao rejeitar as retricas e as suas regras, o escritor moderno passou a se valer da reflexo sobre a traduo (construindo os arranha-cus de que fala Nabokov) para se chegar ao mesmo fim. O efeito de uma traduo (na sua integralidade) semelhante a uma arte potica para uso prprio e exclusivo. Por ela o artista constitui uma genealogia que ao mesmo tempo explica e justifica a nova escrita artstica que dela ele depreendeu.Nesse sentido, difcil e, diria mesmo, intil discutir a justeza ou a pertinncia da maioria dos achados de Ana Cristina e que se encontram justificados nas notas de p de pgina. O trabalho do tradutor aqui deve ser encarado como a maneira que a tradutora Ana Cristina encontrou para ir chegando pouco a pouco ao estilo pleno do poeta Ana Cristina. A tradutora no se envergonha mas o poeta se orgulha de confessar na nota nmero 6: A soluo leva a um tom mais nobre. essa nobreza de estilo (conseguida graa aplicao diligente no conhecimento de si no outro) que Ana Cristina procura o tempo todo.Em determinada passagem do conto a experincia de xtase (bliss, em ingls) vivenciada pela personagem encontra o seu smbolo numa pereira florida que entrevista da janela. No original ingls, claro, lemos: pear tree. Ana Cristina no julga bastante nobre para o seu texto a palavra pereira, embora em portugus seja a traduo literal daquela. Anota ela: A palavra pereira no servia; era um srio obstculo, uma palavra macia demais, que leva a associaes incorretas e transmitia um som desagradvel. A tradutora (ou melhor: o poeta) no tem dvida: decidi optar pela generalizao e usei a palavra rvore (uma palavra proparoxtona, forte e bonita por natureza). Soluo justa? soluo pertinente? a pergunta no faz sentido.O professor Timothy Webb, que examinou a tese de Ana Cristina, no compreendeu o que estava em jogo no trabalho de traduo do poeta, e encarou-o como o de uma mestranda aplicada. Foi categrico no seu julgamento: Comentrio extremamente interessante a respeito da traduo da palavra pear tree. Contudo, no me convenceu. O significado especfico dessa rvore fundamental para a histria o leitor precisa ficar consciente disso.Em lugar, portanto, de mapear as possveis solues para os ns do texto, em lugar de mostrar as oscilaes de pertinncia entre uma soluo e outra, Ana Cristina prefere sempre justificar a soluo dada, ainda que esta finalmente no esteja sendo justificada pois guarda uma densidade semntica inteiramente subjetiva que se subtrai explicao. Ana Cristina reconhece com grande classe, isto , com estilo: possvel que minha escolha imponha uma determinada interpretao do texto. Acerta na mosca.