Exemplo Empresa Pqna Sustet Social Economica e Ambiental

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Sustentabilidade social, econômica e ambiental de pequenos negócios: o caso da Cooperostra – Cananéia – SP Paula Chamy. PROCAM/NUPAUB-USP; [email protected] Wanda T.P.V. Maldonado. Fundação Florestal/SMA; NUPAUB/USP; [email protected] Palavras –chave: gestão ambiental participativa, cooperativismo, extrativismo. Introdução: Os desequilíbrios ambientais oriundos da incompatibilidade entre o acelerado crescimento das sociedades humanas e a esgotabilidade dos recursos naturais trazem desafios ao conhecimento dos sistemas ecológicos, dos quais dependem a manutenção dos recursos e a perspectiva de desenvolvimento econômico. A inadequação do uso dos recursos naturais e suas conseqüências, muitas vezes imprevisíveis quanto aos efeitos, têm custos ecológicos e econômicos que são, em uma sociedade marcada por desigualdade, sofridos desigualmente. O reconhecimento da interdependência entre sistemas naturais e econômicos requer um equacionamento entre economia e ecologia, o que depende de reformulações no sistema de valores da sociedade e das políticas públicas direcionadas a um desenvolvimento que se pretende sustentável. O atendimento de demandas sócio-econômicas, muitas vezes em conflito com a proteção do ambiente, compromete a eficácia de instrumentos de planejamento e gestão ambiental. Definir instrumentos econômicos dirigidos à diminuição das desigualdades sociais compatibilizando-os ao conhecimento que comunidades locais possuem sobre seus territórios é imprescindível para que políticas públicas voltadas a sustentabilidade tenham sucesso. Seguindo esse entendimento, o trabalho proposto, alicerçando-se em aspectos qualitativos, visa refletir sobre a formação da cadeia produtiva e viabilidade de exploração comercial da ostra Crassostrea brasiliana, que culminaram na formação da Cooperativa dos Produtores de Ostras de Cananéia (Cooperostra)

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  • Sustentabilidade social, econmica e ambiental depequenos negcios: o caso da Cooperostra Canania SP

    Paula Chamy. PROCAM/NUPAUB-USP; [email protected]

    Wanda T.P.V. Maldonado. Fundao Florestal/SMA;

    NUPAUB/USP; [email protected]

    Palavras chave: gesto ambiental participativa, cooperativismo, extrativismo.

    Introduo:Os desequilbrios ambientais oriundos da incompatibilidade entre o acelerado

    crescimento das sociedades humanas e a esgotabilidade dos recursos naturais

    trazem desafios ao conhecimento dos sistemas ecolgicos, dos quais dependem a

    manuteno dos recursos e a perspectiva de desenvolvimento econmico. A

    inadequao do uso dos recursos naturais e suas conseqncias, muitas vezes

    imprevisveis quanto aos efeitos, tm custos ecolgicos e econmicos que so,

    em uma sociedade marcada por desigualdade, sofridos desigualmente.

    O reconhecimento da interdependncia entre sistemas naturais e econmicos

    requer um equacionamento entre economia e ecologia, o que depende de

    reformulaes no sistema de valores da sociedade e das polticas pblicas

    direcionadas a um desenvolvimento que se pretende sustentvel. O atendimento

    de demandas scio-econmicas, muitas vezes em conflito com a proteo do

    ambiente, compromete a eficcia de instrumentos de planejamento e gesto

    ambiental.

    Definir instrumentos econmicos dirigidos diminuio das desigualdades sociais

    compatibilizando-os ao conhecimento que comunidades locais possuem sobre

    seus territrios imprescindvel para que polticas pblicas voltadas a

    sustentabilidade tenham sucesso.

    Seguindo esse entendimento, o trabalho proposto, alicerando-se em aspectos

    qualitativos, visa refletir sobre a formao da cadeia produtiva e viabilidade de

    explorao comercial da ostra Crassostrea brasiliana, que culminaram na

    formao da Cooperativa dos Produtores de Ostras de Canania (Cooperostra)

  • em 1998 e da Reserva Extrativista do Mandira, unidade de conservao marinha

    assentada em Domnio de Mata Atlntica em 2002, relacionando os aspectos

    histricos, atores e arranjos institucionais que influenciaram no ordenamento da

    explorao da ostra do mangue.

    A anlise da viabilidade econmica da cooperativa e dos instrumentos econmicos

    voltados para apoiar pequenos produtores (dentre os quais se inserem

    pescadores artesanais1), bem como a identificao de prticas de gesto

    integrada, participao da comunidade local na elaborao, implantao e

    redefinies dos seus espaos e atividades tradicionais, esto inseridos nos

    nossos objetivos.

    Atributos scio-ambientais

    Localizado sobre um fundo continental de serras e elevaes montanhosas

    (Wakamatsu, 1973), o municpio de Canania sofre as influncias constantes das

    guas do rio Ribeira de Iguape que mantm comunicao direta com o sistema

    estuarino-lagunar. Abrigado das aes dos ventos e ondas ocenicas pelas

    barreiras naturais das ilhas Comprida, de Canania e do Cardoso, o esturio conta

    tambm com o escudo protetor dos manguezais existentes em suas margens, que

    lhe fornece o aporte de altas concentraes de matria orgnica e beneficiam a

    produo de plncton, alimento de grande importncia para a fauna aqutica.

    Canania apresenta, tambm, importantes marcos na histria nacional, como os

    primeiros ncleos de minerao do ouro, sendo uma das primeiras vilas fundadas

    no Brasil. Canania apresenta ainda vestgios de ocupao pr-cabralina,

    representados pelos sambaquis, amontoados de conchas que comprovam a

    ocupao humana na faixa litornea ocorrida pelo menos a 6.500 anos antes do

    presente.

    Bancos naturais da ostra do mangue (Crassostrea brasiliana) acompanham a

    regio costeira desde a poro norte de Canania at o canal de Ararapira,

    1 Por pesca artesanal entendemos a atividade para obteno de pescado (peixes, crustceos, moluscos eoutros recursos oriundos do meio aqutico) realizada em pequena escala com destinao mercantil. Sendoassim, nesse trabalho os coletores de ostras encontram-se inseridos na categoria de pescadores artesanais.

  • localizado ao sul do municpio, distribuindo-se pelas gamboas e canais do

    esturio. A ostra do mangue um dos principais recursos naturais explorados por

    populaes locais em Canania, constituindo para muitas famlias, a principal

    fonte de renda.

    No entanto, desde 1950 pesquisas (Besnard,1950), j atentavam para a reduo

    dos estoques deste molusco cuja degradao em razo do corte das razes do

    mangue e coleta no seletiva foi agravada aps a dcada de 1970. Outros fatores

    que podem ser apontados para explicar o aumento da extrao de ostra do

    mangue so: competitividade promovida por moradores de outras regies,

    desestruturao do modo de produo caiara (quadro 1), aumento da demanda

    de ostra no mercado paulista, dependncia de intermedirios para inserir o

    produto no mercado e obteno de preos baixos.

    Os ncleos populacionais de pescadores artesanais de Canania so formados

    principalmente por populao caiara, presente na rea h muitas geraes.

    Tradicionalmente esta populao se dedica a atividades ligadas explorao de

    recursos naturais, dentro de um sistema de complementaridade econmica

    baseado nos ciclos naturais, oferta do recurso e demanda de mercado. Com a

    desestruturao de seu modo de vida em razo das restries oriundas da

    legislao ambiental e especulao imobiliria, estes ncleos populacionais

    sofreram um processo de empobrecimento e passaram a viver basicamente da

    produo do pescado.

    Quadro 1

    Em linhas gerais, caiara a denominao dada aos indivduos naturais do litoral

    dos estados de So Paulo, Paran e Rio de Janeiro.

    Diegues (2001) define por populaes caiaras aquelas constitudas pela

    miscigenao de indgenas, colonizadores europeus e, em menor grau, negros

    africanos que viveram por longo tempo em locais relativamente isolados de Mata

    Atlntica subsistindo atravs do extrativismo vegetal e animal, agricultura familiar e

    artesanato.

  • No que se refere s condies de sade, poucas comunidades possuem centros

    de sade. Quanto educao, a baixa escolaridade dos pescadores artesanais

    devido dificuldade de acesso escola a regra. As escolas existentes nessas

    comunidades atendem aos estudantes do ensino fundamental e em apenas duas

    delas existem escolas de ensino mdio e mesmo com o aumento da explorao

    da ostra do mangue aps a dcada de 1970, no se verificaram melhorias nas

    condies de vida da populao local envolvida com a extrao, situao

    agravada pela expropriao do controle social e do processo produtivo das

    comunidades extratoras por intermedirios.

    A explorao da ostra do mangue Crassostrea brasiliana realizada com

    finalidade comercial h cerca de trinta anos no municpio de Canania, sendo este

    um dos principais recursos naturais explorados pelas comunidades tradicionais de

    Canania, tanto para venda, como para o consumo.

    At meados da dcada de 1980 o sistema de produo da ostra do mangue em

    Canania era comum em todas as comunidades caiaras do municpio, baseando-

    se no trabalho familiar, remunerao ditada pelo intermedirio (atravessador) e

    nenhum contato direto do produtor com o mercado.

    A comercializao da produo de ostras era quase totalmente clandestina, uma

    vez que no atendia as exigncias sanitrias e fiscais previstas em lei. A baixa

    renda obtida pelas famlias, muitas vezes as obrigava prtica da sobre

    explorao dos bancos naturais para a obteno de uma renda mnima para a

    sobrevivncia.

    Dados da produo de ostras do mangue em Canania na dcada de 70

    (Campolim & Machado, 1997) mostram que a produtividade mdia mensal

    correspondia a 25 toneladas ou 30.000 dzias contra 76.220 dzias de ostras ao

    ms em 1998, o que revela uma variao superior a 100% na produo mdia

    mensal em cerca de 20 anos. Levantamento do mercado consumidor demonstrou

    que a dzia de ostras adquirida pelo atravessador junto aos produtores por

    menos de R$1,00, chegava a ser vendida por mais de R$ 15,00 nos restaurantes

    da capital paulista e litoral paulista.

  • Na tentativa de encontrar alternativas de uso sustentado dos espaos e recursos

    naturais foi realizado inicialmente pelo Estado de So Paulo um Programa de

    Gerenciamento Costeiro, concludo pela Secretaria do Meio Ambiente (SMA) em

    1989. O trabalho apontou os pontos crticos da conservao na regio e as

    potencialidades para seu uso, salientando a importncia de implantao de

    unidades extrativistas sob controle da populao local, bem como do ordenamento

    da explorao de recursos costeiros.

    A concluso do Programa de Gerenciamento da SMA coincidiu com as iniciativas

    do Centro Nacional de Desenvolvimento Sustentvel de Populaes Tradicionais

    (CNPT), rgo ligado ao IBAMA. Com o intuito de verificar a possibilidade de

    implantao de Reservas Extrativistas em regies de Mata Atlntica, o CNPT

    firmou parceria com a Secretaria do Meio Ambiente de So Paulo, Instituto de

    Pesca e Ncleo de Apoio a Pesquisa sobre Populaes Humanas em reas

    midas do Brasil da Universidade de So Paulo (NUPAUB), iniciando-se em 1994

    estudos de viabilidade scio-ambiental em Canania.

    Dentre os ecossistemas indicados para utilizao pelas comunidades tradicionais,

    encontra-se o manguezal, particularmente aqueles existentes na poro

    continental de Canania. Inicialmente uma rea de aproximadamente 1.200

    hectares contgua ao Bairro Mandira e utilizada comunitariamente por seus

    moradores foi indicada pela SMA/SP como rea piloto.

    Descendentes de escravos vivendo por geraes da agricultura de pequena

    escala, pesca artesanal, fruticultura, extrativismo vegetal, artesanato, criao de

    animais de pequeno porte e fabricao de farinha de mandioca, os moradores do

    bairro rural Mandira possuem a lgica do sistema caiara de produo utilizando

    toda a rea comunitariamente com atividades complementares na terra e no mar,

    tpicas dessa cultura.

    A mobilizao dos moradores do bairro para reduzir as ameaas ambientais

    geradas pela degradao do mangue, aumentar a produo e a qualidade do

    produto com a melhoria das condies dos pescadores artesanais fizeram com

    que a comunidade participasse ativamente na defesa seus espaos e recursos

    naturais em parceria com os rgos elencados (Sales & Moreira, 1996).

  • Levantamento junto aos demais extratores do municpio apontou o interesse dos

    mesmos na participao em uma cooperativa e projetos a ela vinculados, o que

    propiciou o aumento da abrangncia da iniciativa para todo o municpio de

    Canania. Reunies peridicas entre a equipe do projeto e os extratores foram

    realizadas ao longo de dois anos com o objetivo de otimizar a organizao social

    comunitria para que ento fossem iniciados trabalhos experimentais de sistema

    de manejo de ostras.

    A mobilizao comunitria resultou no Programa de Ordenamento da Explorao

    da Ostra do Mangue da Fundao e Instituto Florestal e culminou na criao de

    uma cooperativa para o beneficiamento e comercializao do produto em 1997

    (Cooperativa dos Produtores de Ostras de Canania), no reconhecimento oficial

    da comunidade do Mandira como "quilombola", que garante constitucionalmente o

    acesso ao territrio ocupado por seus ancestrais em 2002 e no estabelecimento

    da Reserva Extrativista Marinha do Mandira (decreto federal de 13/12/2002).

    Tcnicos da Fundao Florestal, em conjunto com os moradores do Mandira,

    elaboraram projeto para obteno de financiamento junto ao PD/A, do Ministrio

    do Meio Ambiente/PPG7.

    Recursos financeiros do Ministrio do Meio Ambiente Projetos de Execuo

    Descentralizada (PED), da Shell do Brasil S.A. (que recebeu o Prmio Eco 99, da

    Cmara Americana de Comrcio de So Paulo, na categoria Preservao

    Ambiental) e convnio firmado entre a Fundao Florestal e a Cetesb

    possibilitaram a intensificao do processo de capacitao dos cooperados,

    estruturao da Reserva com a aquisio de embarcao, equipamentos e

    doao de material para a construo da sede da Associao dos Moradores da

    Reserva Extrativista do Mandira e Estao Depuradora de Moluscos de Canania.

    Neste perodo iniciaram-se os estudos para a definio da metodologia do Plano

    de Negcios e foram concludas as atividades ligadas ao estudo de mercado da

    ostra. Tambm foram realizadas as pesquisas para definio da capacidade

    mxima de extrao da ostra nos manguezais do Esturio de Canania.

    O ano de 2000 marca o incio efetivo da comercializao de ostras pela

    Cooperostra com formao de uma equipe de vendas para a comercializao do

  • produto no litoral paulista. Essa comercializao considerou a estrutura de

    distribuio disponvel seguindo uma estratgia para consolidar inicialmente este

    mercado para posteriormente introduzir o produto na capital paulista e evitar a

    dependncia exclusiva das regies litorneas caracterizadas pela sazonalidade.

    Em 2002 o projeto cooperativista foi indicado como finalista ao Premio Iniciativa

    Equatorial 2002 da Organizao das Naes Unidas tendo seus representantes

    participado da Cpula Mundial para o Desenvolvimento Sustentvel (Rio + 10) na

    frica do Sul.

    Estudos realizados desde ento (Sales & Maldonado, 2000), mostram que as

    iniciativas adotadas at o momento no que se refere conservao ambiental e

    melhoria das condies de vida da populao participante da cooperativa, foram

    positivas, o que pode revelar-se um sistema de manejo adotado socialmente de

    modo eficaz tambm no que se refere conservao da natureza.

    Natureza e Economia: novas perspectivas de desenvolvimento

    A adoo de abordagens tericas alternativas economia neoclssica tem sido

    consolidada nos ltimos anos. Embora encontremos preocupaes relacionadas

    escassez dos recursos naturais entre economistas como John Stuart Mill e Harold

    Hotelling, os instrumentos analticos dessa economia tm sido incapazes de

    explicarem as influencias da natureza, a lgica da ao coletiva e a importncia

    das instituies e organizaes na dinmica do mercado.

    Em linhas muito genricas, segundo a teoria da escolha da economia neoclssica,

    de posse das informaes sobre o mercado, os homens promovem escolhas

    racionais quanto ao uso de recursos escassos para obteno dos melhores

    resultados para satisfao das suas necessidades. Esse entendimento alicerado

    em uma racionalidade geral dirigida para obteno individual de maiores

    quantidades de bens e servios, no consegue explicar, porm, o comportamento

    dos indivduos regidos pela coordenao e cooperao humanas sendo refutado

    por muitos autores.

  • Para Douglass C. North a teoria econmica neoclssica negligencia a existncia

    de instituies, ou seja, as regras formais e informais da sociedade para regular e

    limitar o conjunto de escolhas dos indivduos (North, 1981, 1990). Segundo North

    (1990), instituies so as regras que guiam as relaes humanas, diminuindo as

    incertezas do convvio social. Quando indivduos que possuem alguma identidade

    comum se agregam para alcanar certos objetivos seguindo as regras vigentes na

    sociedade onde esto inseridos, surgem as organizaes. Assim, instituies e

    organizaes interagem e determinam os rumos da sociedade.

    Amartya Sen (2000) critica a viso reducionista da economia por privilegiar a pura

    maximizao de lucros em detrimento da complexidade das estruturas

    motivacionais que regem o comportamento dos indivduos. O enfoque da

    disciplina econmica sobre os resultados de renda e riqueza subestima, segundo

    o autor, o papel integral do mecanismo de mercado para expandir as liberdades

    reais das pessoas que englobam a liberdade de participao ativa na vida social,

    poltica e econmica.

    Contrapondo-se a tendncia econmica dominante que assume, implcita ou

    explicitamente a homogeneidade do espao (Higgins & Savoie, 1997), a

    integrao entre sistemas econmicos e ecolgicos reconhece a diversidade dos

    territrios e de recursos neles contidos. Clima, doenas epidmicas, poluio,

    padres comportamentais, diferenas geogrficas so alguns exemplos das

    heterogeneidades ambientais e sociais que influenciam nas escolhas e decises

    dos indivduos (e a tambm se inclui a destinao da renda). Some-se a estes

    fatores, o desequilbrio na repartio dos riscos e prejuzos em razo do sobreuso

    na utilizao de energia e recursos naturais e perceberemos a estreita relao

    entre economia e natureza.

    A lgica da teoria neoclssica impede ainda, que se compreendam instituies de

    direito e manejo local vinculadas a sistemas de crenas e religio (como ocorre

    com os caiaras) ou estruturas de interao humana como cooperativas formadas

    por pessoas de baixa renda, que, despossudas de bens materiais viabilizam sua

    existncia atravs de relaes de confiana e solidariedade.

  • Os modelos explicativos das teorias econmicas neoclssicas no consideram os

    mercados como construes sociais dependentes dos ambientes institucionais em

    que se inserem (Abramovay, 2001) e deste modo, a existncia de arranjos

    produtivos locais como produtos de uma conjuno histrica de fatores sociais,

    culturais e econmicos no considerada (Sachs, 2002).

    Sob este enfoque perdem o sentido anlises estritamente econmicas a respeito

    tanto da formao dos mercados como do desenvolvimento. Para Amartya Sen o

    desenvolvimento requer a remoo das privaes da liberdade, muitas delas

    vinculadas pobreza econmica que vitimiza um grande nmero de pessoas no

    mundo. Este entendimento tambm compartilhado por Veiga (2000) para quem

    o desenvolvimento implica na ampliao da possibilidade de escolha e expanso

    das potencialidades humanas. Tais potencialidades s so ampliadas quando se

    tem acesso a servios de sade, educao, moradia, emprego remunerado,

    igualdade entre os sexos, garantia de direitos polticos e civis.

    Nas ltimas dcadas do sculo XX uma outra varivel somada a avaliao do

    processo de desenvolvimento: a questo da sustentabilidade, que um conceito

    normativo. Desde seu surgimento em 1974 na Conferncia de Cocoyoc, muito se

    tem debatido sobre o que vem a ser o desenvolvimento sustentvel. No sendo

    nosso intuito promover tal discusso, adotamos para os objetivos deste trabalho, a

    definio de desenvolvimento sustentvel amplamente difundida pelo Relatrio

    Brundtland, ou seja, aquele que satisfaz s necessidades da gerao presente,

    sem comprometer a capacidade das geraes futuras de satisfazer as suas, o que

    implica em decises ticas aliceradas na justia social transgeracional (Sachs,

    2002).

    As implicaes do conceito de desenvolvimento sustentvel na economia so

    muitos. Alm de incluir a possibilidade de uma gerao futura utilizar na mesma

    proporo um recurso usado pela populao atual, o desenvolvimento econmico

    sustentvel segue as diretrizes da equidade social e engloba polticas de combate

    pobreza e diminuio de desigualdades.

    Durante as dcadas de 1960 e 1970, o movimento ambientalista americano

    adotou de certo modo, o pensamento das teorias econmicas neoclssicas

  • advogando que a razo dos avanos da destruio ambiental residia no

    oportunismo, egosmo e prticas competitivas na explorao dos recursos naturais

    levando ao esgotamento dos mesmos. Essa corrente, popularizada por Hardin, foi

    amplamente aceita e preconizava que os recursos comuns deveriam ser

    privatizados ou controlados pelo Estado, uma vez que "como seres racionais",

    cada indivduo "procura maximizar seus ganhos.....perseguindo seus prprios

    interesses" (Hardin, 1968:1244).

    O modelo de Hardin ganhou eco na construo de outros modelos como o "dilema

    do prisioneiro" e a "lgica da ao coletiva". Ambos indicam a impossibilidade de

    cooperao entre seres racionais, ou seja, os interesses egosticos dos indivduos

    racionais os levam a no atuarem para alcanar interesses comuns a menos que

    haja incentivos ou sistemas de coero.

    Para contrapor-se "tragdia" e teoria dos jogos de no-cooperao, muitas

    correntes surgiram. Os chamados "novos institucionalistas" como Elinor Ostrom e

    seus colaboradores, aliceram suas anlises principalmente em estudos empricos

    sobre os recursos de uso comum (common pool resources) e o direito de acesso

    aos mesmos para refutar as idias de Hardin e seus seguidores. As anlises

    dessa escola baseiam-se em trs variveis: os atributos existentes na comunidade

    objeto de estudo, os atributos do mundo fsico onde ela se insere e as regras

    pelas quais so estabelecidas as interaes humanas, ou seja, as "regras do jogo"

    (North, 1990).

    As trs variveis conjuntamente influenciam nas aes dos indivduos provocando

    resultados que so avaliados posteriormente, o que colabora para o entendimento

    dos aspectos culturais, institucionais e ambientais que regem o comportamento

    humano e afetam a economia de mercado. Estes estudos tm documentado

    experincias bem sucedidas na gesto de bens comuns (Berkes, Feeny, McCay &

    Achaeson, 1989; Berkes & Folke, 1998), mostrando que grupos locais possuem

    regras, incentivos e penalidades para explorao dos recursos que garantem a

    continuidade da sua existncia e comprovam que o conhecimento prtico

    adquirido das interaes cotidianas com o ambiente natural pode ser incorporado

    para a formulao de polticas ambientais mais eficazes.

  • Trs conjuntos de variveis para analisar as inter-relaes entre homem, natureza

    e economia tambm so apontados pela abordagem da antropologia econmica:

    as condies ecolgicas e geogrficas de onde se extrai os meios materiais de

    existncia; os meios materiais e intelectuais utilizados para atuar sobre a natureza

    (foras produtivas) e as relaes sociais de produo que determinam a forma

    social de acesso e controle dos recursos (Godelier, 1981).

    Outra abordagem que busca refutar a teoria de Hardin e modelos dela derivados

    a do capital social, ou seja, as instituies que permitem a ao coletiva para

    obteno de benefcios comuns. O dispositivo do capital social possibilita analisar

    as aes dos indivduos sem que estas sejam concebidas como resultado de

    comportamentos puramente egostas e o destaque que tem recebido nas agncias

    internacionais de desenvolvimento a partir da dcada de 1990 demonstra sua

    importncia nas anlises das relaes entre ambiente e sociedade (Abramovay,

    2000).

    Ao reconhecer a existncia de aspectos como confiana e reciprocidade nas

    relaes humanas, a noo de capital social admite o papel fundamental que as

    relaes sociais produzem no direcionamento das polticas pblicas voltadas para

    promoo do desenvolvimento. A noo de capital social permite ainda que se

    compreenda o real significado da liberdade de mercado, ou seja, inexistindo uma

    sociedade civil com poder no h como se formar mercados livres j que estes

    ficam sujeitos a manipulao de grupos dominantes que mantm as estruturas do

    poder.

    Modos de vida de populaes protocapitalistas por muito tempo consideradas

    como obstculo ao desenvolvimento, passam a ter importncia nas decises

    polticas. Mas isso no significa que o capital social s pode existir em sociedades

    que tem tradies histricas seculares como indica o estudo de Putman (1996) ao

    comparar o desenvolvimento do norte da Itlia com a estagnao do sul do pas.

    Exemplo disso o nmero de organizaes unidas sobre princpios de

    solidariedade, igualdade e associao que chega atualmente, segundo dados do

    socilogo Ricardo Petrella, a meio milho em todo o mundo (Carmen & Sobrado,

    2002).

  • Neste sentido, a definio de capital social dada por Bourdieu esclarecedora

    porque reconhece a importncia da identidade dos grupos e de suas relaes

    materiais e simblicas: "capital social o conjunto de recursos atuais ou potenciais

    que esto ligados posse de uma rede durvel de relaes mais ou menos

    institucionalizadas de interconhecimento e de inter-reconhecimento ou, em outros

    termos, a vinculao a um grupo, como um conjunto de agentes que, no somente

    so dotados de propriedades comuns, mas tambm so unidos por ligaes

    permanentes e teis. Essas relaes so irredutveis a relaes objetivas de

    proximidade no espao fsico (geogrfico) ou no espao econmico e social

    porque so fundadas em trocas inseparavelmente materiais e simblicas cuja

    instaurao e perpetuao supem o reconhecimento dessa proximidade"

    (Bourdieu apud Matos, 2002).

    Assim, pode-se afirmar que a capacidade de reorganizao dos modos de vida

    das populaes que exploram comunitariamente recursos naturais e promovem o

    uso sustentvel dos mesmos depende fundamentalmente do capital social

    existente. Isso explica porque diante das ameaas externas aos sistemas

    comunitrios de propriedade e apropriao dos recursos, comunidades se

    desestruturam ou se reorganizam a partir da promoo de novas formas de

    coeso do grupo.

    Para populaes que possuem essa rede de interao social sustentada em

    relaes de confiana que fortalecem e so fortalecidas pelo ambiente institucional

    em que se inserem, as ameaas passam a ser elementos de afirmao dos

    direitos comunitrios, o que leva, em determinadas situaes, ao reconhecimento

    jurdico destes arranjos tradicionais pelo prprio Estado.

    Tal fenmeno pode ser verificado no caso da criao das reservas extrativistas

    que tem reconhecido o direito do usufruto por parte das populaes que habitamhistoricamente os espaos naturais. Diante deste quadro, pode-se afirmar que o

    capital social, ou seja, as normas e redes de relaes estabelecidas em

    comunidades engajadas, afetam as polticas governamentais, constituindo-se um

    instrumento fundamental para expressar suas demandas, criar novas

    oportunidades de desenvolvimento e enfrentamento da pobreza.

  • Participao comunitria na pesca artesanal

    A organizao dos pescadores artesanais em cada regio do Brasil depende das

    condies existentes em cada localidade. No somente variam as espcies de

    peixes existentes e as formas de captura de uma regio para outra, como tambm

    so distintos os mercados e as unidades de produo.

    Em linhas gerais, as organizaes na pesca artesanal possuem carter

    comunitrio e familiar. Pescadores artesanais costumam pertencer a grupos

    minoritrios resultantes de processos de miscigenao, com tradies culturais

    especficas (Zavala, 1993), ligados por laos de parentesco e compadrio, o que

    favorece relaes de confiana entre seus membros. A idia de reciprocidade

    tambm est presente nestes grupos e explica o mecanismo de cooperao entre

    seus membros (Begossi, 1996), ainda mais se considerarmos a imprevisibilidade

    inerente aos recursos marinhos mveis (como o caso dos peixes), oscilao e

    complexidade do ecossistema marinho.

    A atividade pesqueira seja artesanal ou industrial, interage com o ambiente fsico e

    por ele condicionada. Essa estreita relao reflete-se em diferentes nveis da

    atividade como sazonalidade do pescado, tecnologia utilizada conforme o territrio

    e recurso, organizao da pesca que pode necessitar de um ou mais pescadores.

    Outro aspecto a ser considerado a alta perecibilidade do pescado que contrasta

    com a longa cadeia de intermediao que o produto percorre at o consumidor

    final (Cardoso, 2001).

    A pesca artesanal tem, ainda, caractersticas econmicas prprias de sociedades

    protocapitalistas, regidas por um conjunto de regras informais e especficas do

    grupo, permeadas por valores de dependncia, reciprocidade e leis de respeito

    que no seguem a lgica dominante como a produo em alta escala para o

    mercado.

    Em regra a produo artesanal destina-se ao mercado interno. Como os custos da

    operao por unidade so mais altos para o pequeno produtor do que para a

    produo em larga escala, existe uma inferioridade dos pescadores artesanais na

    concorrncia junto ao mercado que controlado pela pesca industrial.

  • Problemas com o armazenamento e fornecimento regular de quantidades

    determinadas de pescado tambm dificultam a assinatura de contratos com

    cadeias de distribuio que propiciam condies mais vantajosas para o produtor.

    Cabe ressaltar, no entanto, que a pesca artesanal muitas vezes abastece a pesca

    industrial fornecendo o pescado em uma relao que ao mesmo tempo de

    complementaridade e subordinao (Diegues, 1983).

    A histria brasileira apresenta episdios de mobilizao social dos pescadores ao

    longo do tempo, como na ocasio da abolio dos escravos no sculo XIX, mas

    como organizao consolidada, pode-se admitir como marco a criao das

    Colnias de Pescadores em 1920. Porm, essa iniciativa no partiu dos

    pescadores, mas do Estado nacional, mais precisamente da Marinha que

    objetivava estabelecer formas de controle sobre a categoria.

    A Pastoral da Pesca teve importante papel na organizao dos pescadores na

    dcada de 1970, mas somente na dcada seguinte, com a promulgao da

    Constituio Federal, que as Colnias de Pescadores passam a ser regidas pelas

    mesmas regras dos sindicatos urbanos, ou seja, sem interferncia do poder

    publico (Cardoso, 2001).

    Cabe ressaltar, porm, que a trajetria das colnias nas diferentes partes do pas

    no homognea. Muitas delas no conseguem promover a participao efetiva

    de seus filiados. Em alguns locais a representao legal dos pescadores encontra-

    se dividida entre colnias sindicatos e associaes de pescadores. Esta

    desarticulao fragmenta a legitimidade da representao dos pescadores e a

    visibilidade da categoria, o que dificulta a obteno de crditos, estabelecimento

    de parcerias e demais benefcios.

    Quanto s cooperativas de pesca, as iniciativas mais conhecidas so a

    Cooperativa Mista de Pesca Nipo-Brasileira e a Cooperativa de Pesca Atlntica de

    Santos, ambas fundadas na dcada de 1950 e localizadas no municpio de

    Santos. Trata-se de organizaes formadas no por profissionais da pesca

    artesanal, mas por pequenos armadores japoneses e seus descendentes que

    receberam grande aporte de incentivos fiscais na dcada de 1970 (Diegues,

    1983).

  • As dificuldades existentes no setor no so exclusividade nacional. Estudo

    realizado na Pvoa do Varzim em Portugal aponta a vulnerabilidade dos

    pescadores artesanais diante das intempries da natureza e agiotagem desde a

    Idade Mdia (Filgueiras, 1980). As ameaas oriundas da insero da lgica do

    capital e a concorrncia por ela promovida com captura intensiva e introduo de

    artes novas (como os arrastes), fizeram com que fosse sancionado um estatuto

    com a finalidade de promover estudo e defesa dos interesses econmicos

    comuns, promoo de ensino profissional, organizao de uma caixa de socorros

    e de uma cooperativa (Filgueiras, 1980:23), dada importncia do setor na

    estabilidade social do pas.

    Legalizada a constituio da cooperativa, a empresa foi liquidada e pescadores

    artesanais migraram em massa para o Brasil, o que, segundo o autor, deve-se ao

    fato dos pescadores no conseguirem se vincular a regras no efmeras e ao

    "individualismo" dos mesmos.

    Por outro lado, pases como Canad e Japo possuem tradio cooperativista na

    pesca para abastecimento de equipamentos necessrios para as atividades

    profissionais, como redes, barcos e combustvel; construo de infra-estrutura

    pesqueira como frigorficos e fbricas de gelo; industrializao e comercializao

    de produtos da pesca.

    O xito do cooperativismo canadense tornou-o modelo mundial para a pesca,

    levando a criao de um centro de estudos deste tipo de organizao aps

    Moyses Coady (1882-1959) juntamente com aldees pescadores de Antigonish ter

    formado uma cooperativa de pesca em 1930: a Unio Martima de Pescadores

    (Pinho, s/d). J no Japo em determinados territrios, o direito de pesca, que tem

    razes feudais, concedido a uma cooperativa que representa os pescadores da

    regio. A importncia da pesca artesanal tal que existe no pas um banco federal

    cooperativo para atend-la.

    Quais so ento, as condies que levam ao sucesso ou insucesso dessas

    iniciativas?

    Historicamente, o sistema creditcio brasileiro dirige-se aos grandes

    empreendimentos, garantidos pelo grande capital. Financiamentos de crdito

  • oriundos de bancos pblicos burocratizam o acesso para pequenos e mdios

    empreendimentos optando por atividades mais rentveis que seguem a lgica dos

    ganhos de curto prazo.

    No caso da pesca artesanal, geralmente o capital para investimentos reduzido.

    Os crditos so escassos porque as agncias de fomento requerem avais ou

    sistemas de garantia que pescadores artesanais no possuem. Outros problemas

    existentes na pesca artesanal podem ser apontados, como o alto custo do

    equipamento de pesca, manuteno e reposio destes equipamentos,

    aprovisionamento das embarcaes, aquisio de combustvel, controle de

    qualidade, capacidade de estocagem, prontido para atendimento da demanda de

    mercado e baixa escolaridade dos pescadores.

    Muito embora polticas nacionais de desenvolvimento tenham nas ltimas dcadas

    se voltado para a criao de programas pblicos de crdito como o Programa

    Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf), esses financiamentos

    dificilmente dirigem-se aos pequenos negcios, ainda mais para os que no

    possuem qualquer tipo de garantia econmica. Elevadas taxas de juros tambm

    contribuem para impedir a expanso da atividade creditcia e financiamento de

    pequenos negcios (Sachs, 2002).

    Nota-se, no entanto, que as possibilidades de financiamentos de pequenos

    negcios voltados pequena produo sofreram avanos quando foi inserida a

    varivel ambiental como condio obrigatria para que acordos multilaterais

    fossem firmados por agncias como BIRD, PPG7 e KFW. Essa obrigatoriedade

    levou, por exemplo, criao pelo Ministrio do Meio Ambiente de projetos como

    o PED (Projeto de Execuo Descentralizada) e PDA (Projetos Demonstrativos)

    que possibilitaram o financiamento produtivo de associaes e cooperativas locais

    como a Cooperostra.

    A criao de cooperativas por pescadores artesanais para resoluo de problemas

    de produo e comercializao do pescado pode revelar-se um veculo mais

    adequado para canalizao de financiamentos e obteno de benefcios. No

    entanto, a organizao dos pescadores artesanais perpassa pela questo de

    reestruturao interna dessa populao, que embora trabalhe no interior do

  • sistema dominante e com ele se relacione, permanece margem do mesmo

    (Sachs, 2002).

    Organizao comunitria e pequenos negcios: o caso da COOPEROSTRA

    As ameaas decorrentes da explorao irracional dos recursos naturais tm

    efeitos perversos na sociedade como um todo. A degradao do ambiente natural

    contribui ainda para a marginalizao scio-econmica de sociedades dele

    dependentes e perpetuao dos problemas scio-ambientais.

    O Brasil possui um mosaico cultural e ambiental distribudo por se territrio, no

    sendo possvel encontrar solues homogneas para equacionar um

    desenvolvimento capaz de respeitar simultaneamente o direito de

    autodeterminao das populaes e uso sustentvel dos recursos naturais.

    O modelo de poltica ambiental adotado, a partir da dcada de 60, no Estado de

    So Paulo tambm seguiu a lgica da "tragdia" atribuindo aos "sistemas de

    propriedade comum" a responsabilidade pela degradao do ambiente natural

    cuja soluo deveria partir do protagonismo do Estado. Restringindo o acesso aos

    recursos e espaos naturais o Estado adotava o tratamento coercitivo/repressivo

    s comunidades rurais localizadas nas reas de interesse para a conservao,

    expulsando-as dos territrios historicamente por elas ocupados.

    Essas medidas promoveram resultados indesejveis como dissoluo de arranjos

    institucionais locais e recrudescimento do processo de excluso e injustia social

    no pas, mostrando-se ineficazes no que se refere conservao e uso racional

    dos recursos. Cabe ressaltar tambm, que estas medidas excludentes geraram

    um contingente de pessoas nos centros urbanos, cujos empregos so mais

    difceis de serem gerados.

    A concepo da Cooperostra surgiu dessa busca por formas alternativas de

    conciliao do uso de recursos naturais e desenvolvimento por parte de uma

    parcela da populao caiara e demonstra a importncia da existncia da

    organizao comunitria local para que seja garantida sua autonomia frente ao

    carter fragmentador e individualista da economia de mercado dominante.

  • A idia bsica da cooperativa seguiu os princpios daquilo que se denomina

    desenvolvimento sustentvel: ateno s caractersticas naturais do recurso e do

    ambiente, com vistas a sua conservao, justia social, ou seja, oportunidade de

    trabalho para as populaes que utilizam os recursos e o ambiente, com

    agregao local de valor ao produto e melhoria das condies de vida dos

    produtores e, por conseqncia, da comunidade, e viabilidade econmica do

    empreendimento, com a colocao de um produto de qualidade no mercado

    consumidor.

    O conhecimento do ambiente natural acumulado pela populao caiara foi

    mobilizado para a definio do manejo dos bancos de ostras a ser realizado pelos

    cooperados, ou seja, as prticas de extrao foram consideradas e produtos

    exticos no foram introduzidos, respeitando-se as interaes ecossistmicas do

    esturio e os saberes tradicionais dessa populao.

    Considerando a preocupao com a conservao do ambiente (que de interesse

    dos pescadores-coletores) e com a garantia de reproduo do recurso natural

    realizou-se estudo sobre o estoque natural da ostra Crassotrea brasiliana ( Pereira

    et al., 2000), a fim de se obter indicadores para a compatibilizao da produo de

    ostras de Canania com os estoques existentes nas reas de manguezal.

    O manejo de bancos naturais de ostras foi iniciado pela atividade de engorda,

    prtica que foi colocada como requisito para o ingresso dos coletores na

    Cooperativa. Essa instituio de manejo mostrou-se uma alternativa eficaz a

    simples extrao porque alm de possibilitar a comercializao durante o perodo

    do defeso, as ostras oriundas das estruturas possuem melhor aparncia,

    adquirindo melhor preo de mercado, mesmo junto aos atravessadores. A

    aceitabilidade dos produtores a este tipo de manejo resultou posteriormente em

    inovaes por eles propostas. Inicialmente as estruturas de engorda eram

    temporrias, fincadas em piquetes de bambu, com tempo de durao de um ciclo;

    atualmente grande a demanda para a instalao de estruturas perenes que so

    fincadas em estruturas de concreto, material oferecido pela Cooperativa aos

    cooperados, a partir de financiamento do PD/A MMA.

  • A necessidade de depurao da ostra com o objetivo de torn-la um produto

    saudvel para o consumo levou a construo da estao depuradora, grande

    parte edificada em regime de mutiro pelos cooperados, tendo sido viabilizada

    pela obteno de recursos financeiros do projeto PED/MMA/BIRD e Shell do

    Brasil, por intermdio da Fundao Botnica Margaret Mee e da Ong Viso

    Mundial. A depurao da ostra, alm de garantir um produto adequado do ponto

    de vista sanitrio, valoriza o produto perante o mercado, propiciando a agregao

    local de valor. Observam-se assim, aes em vrias fases da cadeia produtiva no

    sentido de diferenciar no s a qualidade fsica dos produtos, mas tambm a

    qualidade ambiental e social da produo.

    A participao dos moradores do Mandira, j organizados em associao para

    reivindicar a criao da Reserva Extrativista, foi de fundamental importncia para

    sensibilizar os demais extratores a ingressarem na Cooperativa. Com

    caractersticas culturais prprias baseadas em relaes pessoais diretas de

    confiana e solidariedade estabelecidas em transaes anteriores, a comunidade

    j possua uma tradio de organizao interna (capital social) que auxiliou na

    agregao de membros de outros bairros ao empreendimento.

    Tendo como uma das premissas bsicas a participao dos extratores no

    processo decisrio, a Cooperativa e seus parceiros vm desenvolvendo aes no

    sentido de fomentar a organizao interna das comunidades e entre as

    comunidades. Optou-se pelo sistema cooperativo por se tratar de um

    empreendimento coletivo e pelas possibilidades que este sistema oferece quanto

    participao de seus membros nas decises, diviso de responsabilidades

    entre os associados e ao retorno social comunidade.

    Embora a produo, processamento e consumo da ostra pela cooperativa estejam

    promovendo uma melhor aferio e distribuio dos ganhos para os produtores, a

    falta de experincia dos extratores quanto a estas formas de organizao

    demandou a realizao de cursos de capacitao (fortalecimento) em

    associativismo e cooperativismo. A perspectiva de auto-gesto de um

    empreendimento sustentvel trouxe a necessidade de capacitao em reas antes

    alheias ao universo dos produtores: administrao, finanas, vendas e porduo.

  • Esses cursos propiciam um processo de formao contnua e tem o intuito de

    democratizar a informao e promover a capacitao de todos para a gesto da

    entidade, uma vez que regularmente ocorrem eleies para alterao do quadro

    de dirigentes.

    Este modelo segue os princpios de gesto preconizados por Godard (1997: 214)

    porque constitui "... o cerne onde se confrontam e se reencontram os objetivos

    associados ao desenvolvimento e ao ordenamento e aqueles voltados para a

    conservao da natureza ou para a preservao da qualidade ambiental". Desta

    forma, no h como excluir do planejamento e administrao aqueles que so os

    mais afetados pela degradao do ambiente natural e seus recursos.

    A insero da Cooperativa no mercado consumidor tem requerido estratgias de

    consolidao do empreendimento, o que tornou imprescindvel a elaborao de

    um plano de negcios que contemplasse a complexidade dos elementos

    envolvidos na extrao, no manejo, na depurao, na embalagem, no transporte e

    na comercializao da produo de ostras.

    A especificidade de um plano de negcios para explorao sustentvel de

    recursos naturais por populaes tradicionais provocou a necessidade de

    elaborao de metodologia particular, com destaque a premissas ligadas

    sustentabilidade cultural, social, tica, ecolgica, poltica, econmica e territorial do

    empreendimento.

    O levantamento do mercado para conhecimento das formas de comercializao,

    dos preos, da concorrncia, das tendncias e do potencial de consumo, foi o

    primeiro passo do plano. A seguir, houve a definio da estratgia de promoo,

    com definio da marca e da logotipia e elaborao de material escrito sobre o

    produto e o projeto. Os aspectos diferenciais do produto apresentado ao mercado

    em relao quele atualmente existente so as caractersticas de produto

    sanitariamente correto originados de uma explorao sustentada do ambiente

    natural. Financiamento do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (FUNBIO)

    possibilitou a elaborao e implantao do Plano de Negcios da Cooperostra.

    Pode-se perceber, portanto, que a trajetria da cooperativa tem sido pensada e

    executada de modo a aglutinar parceiros de vrias instituies, reas de atuao e

  • nveis hierrquicos distintos que se manifestam por meio de financiamentos,

    contribuio tcnica e suporte poltico. Essa adeso de atores a um ncleo de

    princpios e projetos coletivos tem propiciado novas formas de insero nos

    mercados e viabilizado o empreendimento no qual os membros so solidrios e

    igualmente engajados.

    Consideraes finais:

    O desenvolvimento de linhas creditcias, bem como outros instrumentos de base

    econmica que possibilitem a utilizao dos recursos naturais por comunidades

    tradicionais sem desagreg-las ambiental e scio-culturalmente so questes que

    necessitam de maiores atenes.

    Submeter comunidades tradicionais a restries legais no contribui de modo

    eficaz para a conservao ambiental. No trabalho proposto, os coletores de ostras

    adotaram formas de produo baseadas na gesto dos recursos naturais que

    possibilitaram agregao de valor ao produto comercializado pela Cooperativa

    ostra viva - sem comprometimento do modo de vida da populao envolvida.

    Os arranjos institucionais que foram estabelecidos para viabilizar o

    empreendimento da Cooperostra tem tido carter mediador entre o uso econmico

    da ostra de Canania, a proteo dos estoques e manuteno da qualidade

    ambiental do esturio e a manuteno da forma tradicional da coleta no mangue, o

    que tem impedido a desagregao cultural e institucional dos coletores.

    Tais medidas, no entanto, para serem perpetuadas necessitam de avaliaes e

    reajustes peridicos a partir da negociao dos atores. A gesto participativa da

    atividade, enquanto instrumento de administrao dos recursos do mar e das

    diretrizes econmicas do empreendimento, possui maiores chances na obteno

    de um desenvolvimento social e ambiental sustentvel porque promove o

    reconhecimento dos saberes locais, a trajetria histrica da apropriao dos

    territrios marinhos e o direito de autodeterminao por parte das comunidades

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