Exclusão e Inscrição...

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Exclusão e Inscrição Psíquica: da escuta psicanalítica no social

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Exclusão e Inscrição Psíquica: da escuta psicanalítica no social

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Capa:Foto de Martino Dornelles Piccinini

Produção Gráfica e Impressão:Evangraf - (51) 3336.2466

© Sigmund Freud Associação Psicanalítica - 2012

Os textos contidos neste livro são de responsabilidade das autoras. É proibida a reprodução total ou parcial da obra sem a prévia autorização da

Sigmund Freud Associação Psicanalítica.

www.sig.org.brRua Marquês do Herval, 375,

Moinhos de Vento – Porto Alegre, RS(51) [email protected]

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

E96 Exclusão e Inscrição Psíquica: da escuta psicanalítica no social /

organizadoras: Bárbara de Souza Conte e Silvana Henzel. – Porto Alegre : Evangraf, 2012. 88 p.

ISBN 978-85-7727-446-8

1. Psicanálise - pesquisa. 2. Clínica psicanalítica. 3. Escuta ética e fala. 4. Inclusão/exclusão 5. Violência. 6. Sujeito. I. Conte, Bárbara de Souza II. Henzel, Silvana.

CDU 150.194

(Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo – CRB 10/1507)

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Bárbara de Souza Conte e Silvana HenzelORGANIZADORAS

Exclusão e Inscrição Psíquica: da escuta psicanalítica no social

Porto Alegre, 2012

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Agradecimentos

Em primeiro lugar, ao presidente da Sigmund Freud Associa-ção Psicanalítica, gestão 2010-2012, Almerindo Boff, que, além do apoio dado ao Projeto, foi o idealizador deste livro, de forma singu-larmente entusiasmada. E pelo fato de ter confiado a mim, ao me fazer o convite, a tarefa de alavancar a organização do mesmo.

À Bárbara de Souza Conte na qualidade de coordenadora do Projeto Sig Intervenções Psicanalíticas e Diretora de Ensino da Sig, por ter acreditado na idéia do livro.

Agradecimentos especiais aos autores dos trabalhos aqui con-tidos. São eles: Almerindo, Bárbara, Cláudia, Cristina, Daniela B., Lucas, Luciana, Karine, Rafaela, Simone, Alexei, Daniela F., Lie-ge e Ana Lúcia.

Ao Martino Piccinini pelas maravilhosas fotografias que ilus-traram o material de divulgação e recobrem a capa desta obra de forma tão representativa.

Aos demais colegas da Diretoria, gestão 2010-2012 , Enei-da Cardoso Braga na qualidade de Diretora Científica, Fernanda Dornelles Hoff, Diretora da Clínica, Luciana Maccari Lara, Dire-tora de Divulgação, pelo apoio à realização do mesmo.

A todas as instituições parceiras que confiaram e possibilita-ram o desenvolvimento de tantos trabalhos com tanta profundi-dade.

Agradecimentos especiais também a todas as pessoas que vêm contando suas histórias e confiando à Psicanálise o desejo de um destino melhor.

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Aos familiares de todos aqui envolvidos, que de algum modo também oferecem seu apoio e sua compreensão diante da neces-sária demanda de estudo, empenho e dedicação.

E um agradecimento a cada um que dedicará seu valioso tem-po à leitura destes escritos que têm apenas a pretensão de registrar um trabalho tão rico como é este Projeto desenvolvido dentro da Sig!

Silvana Henzel

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Apresentação

Este livro apresenta o projeto SIG Intervenções Psicanalíticas que vem sendo realizado por integrantes da SIG - Sigmund Freud Associação Psicanalítica, de Porto Alegre, e que tem como obje-tivo traçar o lugar dos psicanalistas nos grupos, a partir do estu-do de conceitos como pertencimento, pertinência e identificação. Entendemos que a atuação dos psicanalistas é uma possibilidade de prática no âmbito social, na medida em que a Psicanálise opera sobre a permanente tensão entre indivíduo e coletividade. Assim, o projeto realiza um trabalho de ampliação da escuta psicanalítica para outros espaços, além dos consultórios. Cria um território, a partir da fala dos membros do grupo, que legitima o fazer de cada um frente ao outro. Expõe ao outro a vivência da experiência e delimita/amplia as possibilidades de criação e invenção.

Tendo em vista a singularidade dos sujeitos e seus contextos, o projeto oferece uma possibilidade de reflexão e de troca entre os membros dos grupos que buscam a SIG como recurso de mu-dança para as condições que se produzem nas instituições. Por meio da escuta própria da Psicanálise e pela oportunidade de re-flexão os grupos vivenciam mudança, em um cenário que oferece autonomia, mantendo a referência do sujeito no seu processo de resolução dos problemas abordados.

Exclusão e Inscrição Psíquica: da escuta psicanalítica no social é o nome de nosso livro, onde estão contemplados os tra-balhos apresentados no Fórum do Projeto SIG Intervenções Psi-canalíticas, em agosto de 2012 que teve este nome. Os temas das

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mesas referem-se às áreas em que desenvolvemos as intervenções. A partir da Educação em contextos de vulnerabilidade, trabalhamos a inclusão/exclusão na perspectiva da identidade(s) e do lugar de dupla inscrição em grupos de professores. O mal-estar na saúde: da violência à diferença, aborda a loucura e o “estrangeiro”, como aquele inquietante, não familiar, o Unheimlich que nos falou Freud. Tomando a fala dos grupos podemos refletir o tema da diferen-ça não só na perspectiva da diversidade, mas também no lugar da (in)diferença que faz com que o outro seja estranho, gerando violência. Violência que advém da identificação dos membros do grupo com a loucura (em um grupo), e violência frente à entrada de novas pessoas em (outro) grupo de voluntários, onde se passa a mesma inquietude: a percepção da invasão. O trauma e as re-composições do sujeito, reflete sobre os trabalhos de reassentamento solidário e a escuta de famílias de refugiados. A temporalidade é o tema marcante nesta abordagem que reúne o tempo real na experiência de inclusão do refugiado em outro país/cultura e o tempo de elaboração do traumático da vivência de se tornar um refugiado/ excluído de si e de sua cultura.

A leitura que se segue é um convite para o leitor pensar sobre o lugar da Psicanálise e suas modalidades de intervenção na con-temporaneidade. A partir do relato de experiências individuais, no âmbito do coletivo social, inscreve-se o Projeto SIG – Interven-ções Psicanalíticas como um espaço de prática e discussão teórico--clínica dos princípios do método psicanalítico – a escuta ética e a fala – e as condições de transferência do trabalho psicanalítico no social.

Boa leitura! Equipe do Projeto

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Sumário

Por uma psicanálise implicada no social Almerindo A. Boff ......................................................................11

Grupo de Escuta: uma experiência com professores Bárbara de Souza Conte e Cláudia Perrone .................................17

Escola e Identidade(s) Cristina Gudolle Herbstrith e Daniela Weber Bratz .....................27

O Encontro com o Dessemelhante: a Escuta do Voluntariado Lucas Krüger e Luciana Lopez Silva ...........................................33

Unheimlich, o Inquietante diante da Loucura Intervenções no Mal-Estar Karine Prestes, Rafaela Degani e Simone Engbrecht ....................39

Pensando as tramas e enlaces da clínica com refugiados Alexei Conte Indursky ................................................................49

Clínica com refugiados: o exílio e suas travessias Alexei Indursky, Daniela Trois Feijó e Liege Didonet ...................59

Entre-Atos: Psicanálise, Arte e Saúde Coletiva Ana Lúcia Mandelli de Marsillac ..............................................67

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Por uma psicanálise implicada no social

Almerindo A. Boff1

Indireção, astúcia do meandro, nisso consiste (...) o fazer jogar a força an-tagonista de Eros, o amor e o amor à vida, contra a pulsão de morte.2

Constitui motivo de grande alegria saudar esta apresentação ao público do trabalho desenvolvido pela Sigmund Freud Associação Psicanalítica no seu projeto Sig – Intervenções Psicanalíticas, uma coletânea de pequenos relatos do que tem ocorrido no que tenho gostado de denominar carinhosamente de “psicanálise no front”.

Para contextualizar nossa saudação, recordemos inicialmente que a clínica psicanalítica, ao longo do século XX, foi, com poucas exceções, uma prática de gabinete, e de gabinete acessível apenas às camadas sociais economicamente privilegiadas. Foi apenas ao final do século passado, e impulsionada predominantemente pela difusão da psicanálise por sua vertente lacaniana, que a influência da mesma passou a ultrapassar de maneira mais direta as frontei-

1 Psiquiatra e Psicanalista. Mestre em Psicologia (UFRGS) e Doutorando em Filosofia (PU-CRS). Professor no Curso de Medicina na UNISC. Membro Pleno e Presidente da Sigmund Freud Associação Psicanalítica.2 Derrida, Jacques. Estados-da-alma da psicanálise. O impossível para além da soberana crueldade. São Paulo: Escuta, 2001. p. 75-6.

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ras do laboratório delimitado em que ocorreu o seu desenvolvi-mento inicial.

Se, por um lado, a presença da influência do ideário psicanalíti-co nas transformações culturais havidas no Ocidente no século XX é tese amplamente aceita, por outro lado chama atenção o fato de que tal influência ocorreu sem protagonismo central do ambiente universitário. Também coube ao movimento psicanalítico lacaniano o incremento do papel deste na difusão da psicanálise a partir da prática aberta ao público dos seminários de Lacan. Trinta anos após a morte de Lacan, podemos observar, especialmente na França e no Brasil, uma presença importante da vertente psicanalítica, especial-mente lacaniana, nas universidades e em sua produção textual.

Se a transmissão da psicanálise no ambiente universitário nos parece vital para ela, não menos importante nos parece ser sua pre-sença nisto que procuro implicar na metáfora “psicanálise no front”. Se o repto de Jacques Derrida, feito aos psicanalistas reunidos em Paris, nos Estados Gerais da Psicanálise, no alvorecer do século, deve ter consequências, é pelo que já ressaltamos na epígrafe aci-ma. Apenas uma psicanálise implicada no social, para utilizar, com abrangência ampliada, a expressão de Natanson3, pode aliar o ato analítico à “força antagonista de Eros” contra as formas cruéis com que a ação da pulsão de morte se deixa vislumbrar no cenário dos graves problemas sociais que assombram o Brasil contemporâneo.

Um dos primeiros desafios com que nos defrontamos na im-plantação deste projeto foi o da escuta psicanalítica de uma famí-lia de refugiados. O que saliento aqui, nesta apresentação inicial, é o quadro de violência de alcance internacional que tem como resultado a produção do refugiado. Produção em massa, globali-zada, alvo da atenção do Alto Comissariado das Nações Unidas

3 Natanson, M. Il fait moins noir quand quelqu’un parle. Éducation et psychanalyse aujourd’hui. Dijón: CRDP de Bourgogne, 2002. p. 56.

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para Refugiados. Violência que nos convoca à reflexão, da mesma maneira que convocou Freud à resposta, em sua correspondência com Einstein, a respeito da indagação “Por que a guerra?”, em 1932, nos primórdios da catastrófica Segunda Guerra Mundial. Citemos novamente a convocação de Derrida:

“Por toda parte onde uma questão do sofrer ‘por’ sofrer, do fazer ou deixar fazer o mal ‘pelo’ mal, por toda parte, em suma, onde a questão do mal radical, ou de um mal pior que o mal radical, não estaria mais abandonada à religião ou à metafísica, nenhum outro saber estaria disposto a se interessar por algo como a crueldade – salvo o que se chama psicaná-lise. (Op. cit., p. 6-9). [...] O mundo, o processo de globalização do mundo, tal qual vai, com todas suas consequências – políticas, sociais, econômicas, jurí-dicas, tecnocientíficas etc. – sem dúvida resiste, hoje, à psicanálise.[Porém, a psicanálise], acho eu, ainda não empreendeu e, portanto, ainda menos conseguiu pensar, penetrar e mudar os axiomas da ética, do ju-rídico e da política, notadamente nos lugares sísmi-cos onde tremula o fantasma teológico da soberania e onde se produzem os mais traumáticos aconteci-mentos geopolíticos, digamos ainda, confusamente, os mais cruéis destes tempos. (Id., p. 16-18) [...] Haverá quanto ao político, ao geopolítico, ao jurí-dico, à ética, consequências, ao menos lições a tirar da hipótese de uma irredutível pulsão de morte que parece inseparável disso que se chama obscuramente ‘crueldade’, em suas formas arcaicas ou modernas?” (Ib., p. 46)

No rastro de Freud e depois do repto de Derrida, não mais nos cabe pensar que a ética entre as nações no capitalismo tardio globalizado, com toda gama das suas consequências, não é objeto legítimo da reflexão psicanalítica.

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Outro grupo de trabalho ocupou-se da escuta de um grupo de residentes em serviço de Residência Integrada em Saúde. Po-demos pensar que atravessamos a fronteira ao encontro de outro tipo de refugiado. Trata-se daquele que está refugiado naquilo que convencionou-se chamar de transtorno mental. O espírito da re-forma psiquiátrica brasileira chega aos equipamentos públicos de atenção à saúde, a Unidade Básica de Saúde, a equipe da Estratégia de Saúde da Família, o Centro de Atenção Psicossocial, o Hospi-tal Geral em seus leitos psiquiátricos, a unidade especializada de internação psiquiátrica. Evidentemente, não pode o psicanalista ausentar-se desta fronteira onde se joga o futuro de significativa parcela da população brasileira de adultos, adolescentes e crianças.

A sociedade brasileira progressivamente percebe com mais clareza que não mais se justifica ocupar o papel de meramente queixar-se da incapacidade dos órgãos governamentais e do tra-balho dos profissionais da política para equacionar os gravíssimos problemas que o cotidiano coloca para todos, independentemente de sua classe sócio-econômica. O número de trabalhadores vo-luntários no campo da ação social é crescente e sua capacitação torna-se um desafio cada vez mais importante. O projeto Sig – Intervenções Psicanalíticas também cumpre seu papel de agente de transformação social ao disponibilizar a escuta psicanalítica aos voluntários que labutam nos projetos de atenção a populações de crianças e adolescentes em situação de risco.

Além dos serviços de atenção à saúde, a escola pública de ensino fundamental e médio constitui zona privilegiada de apre-sentação dos sintomas sociais, expressos no comportamento dos alunos, dos pais e dos professores. A relação conflituosa entre estes agentes da educação a todos preocupa, exigindo máxima lucidez na sua delicada condução. A presença da escuta psicanalítica neste cenário também é tema deste livro.

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É possível colocar toda esta multiplicidade de situações sob o rótulo do projeto sempre ambicioso da prevenção primária em saú-de mental. A qual encontra seu veículo na atividade primordial da humanidade: a criação de crianças. Atividade que jamais poderá ser simples mas que torna-se especialmente difícil e arriscada no cená-rio de uma sociedade com alta frequência de filhos de mães adoles-centes. De alguma maneira ligado a isso, mas não apenas ligado a isso, está o crescente número de crianças criadas não só na ausên-cia do pai biológico no lar como também na ausência do nome do pai biológico no registro civil, onde consta apenas o nome da mãe. Alguns números ilustrativos, publicados em julho último no jornal Zero Hora (Porto Alegre, 01/07/12): em 2010, sessenta e cinco por cento (dois terços) dos nascidos vivos no Rio Grande do Sul eram filhos de mães que se declararam solteiras; há uma estimativa de que cerca de um terço (1/3) dos filhos não sejam reconhecidos como tal pelo pai biológico; em uma unidade da Fase, em Porto Alegre, den-tre os visitantes aos adolescentes internados os homens constituem cerca de 10% do total de visitantes; nesta mesma unidade, 62% dos adolescentes não têm o pai presente em sua vidas.

A maternidade na adolescência resulta frequentemente na criação da criança pela avó materna, também frequentemente chamada pela criança, com precisão, de mãe. Muito frequente e demasiadamente em nossa sociedade, portanto, a geração bioló-gica de um filho não se associa à ocupação dos lugares destinados às funções materna ou paterna, aos papéis de mãe e de pai. De maneira crescente, a mãe e o pai sociais das crianças não são seus pais biológicos. E também frequentemente demais tais papéis vêm sendo delegados aos profissionais designados pelo Estado para o exercício destas funções. Para o psicanalista, onde há uma criança, há um casal inconsciente a plasmar um novo sujeito. E é o encontro deste casal que abre ao psicanalista a oportunidade de

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trabalhar em prol de um mundo melhor ao acompanhar a gesta-ção deste sujeito sob o primado da ética da psicanálise.

Giorgio Agamben4 traz, do direito romano arcaico até nós, a figura do Homo Sacer e sua “vida nua”, sua vida descartável, sua vida “matável”. Condenado pelo povo por algum delito, seu corpo está vedado ao uso nos rituais sacrificiais, pois lhe falta dignidade para tal. Ao mesmo tempo, seu assassinato não será legalmente pu-nido, seu assassino não será processado judicialmente.5 A figura do Homo Sacer não está inscrita na legislação brasileira. Sua existência parece sequer inscrita na consciência da nossa sociedade. Por isso ele vaga entre nós como espectro invisível. Talvez ele só consiga se tornar visível tarde demais, quando poderemos dar-lhe o nome de assassino. Ele foi um menino. É hora de olharmos nossos meninos e meninas, filhos e filhas do Homo Sacer. Talvez até consigamos lhes oferecer a chance de elaboração psíquica de uma nova filiação.

É neste quadro que a Sigmund Freud Associação Psicanalíti-ca engaja seus esforços através do projeto Sig – Intervenções Psi-canalíticas. Quadro onde a palavra ética busca seu maior sentido, seja no cenário das relações internacionais entre os povos e nações, seja no cenário da política global ou local, seja no cenário da pri-vilegiada relação entre adultos e crianças. Se a escuta psicanalítica se oferece nas fronteiras mesmas do exercício da psicanálise, é por nossa convicção de que a ética da psicanálise tem contribuição inestimável a oferecer para a construção de um mundo onde a palavra ética possa seguir agregando valor e sentido à vida.

Desejo, portanto, ao leitor, uma interessante e inspiradora lei-tura, que sirva também de estímulo à implicação necessária no trabalho dirigido à transformação da sociedade brasileira.

4 Agamben, G. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. p. 74;89.5 Pereira, G. de L. A pátria dos sem pátria: direitos humanos e alteridade. Porto Alegre: Editora UniRitter, 2011. p. 64-5.

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17Grupo de Escuta: uma experiência com professores

Grupo de Escuta: uma experiência com professores

Bárbara de Souza Conte6

Cláudia Perrone7

Este trabalho apresenta-se como uma forma de pensar o que entendemos por grupo de escuta em uma experiência com um grupo de professores. Utilizamos algumas questões que foram aparecendo no desenvolver do trabalho com o grupo para pensar a especificidade da escuta e da transferência.

Situando a procura: Inclusão / Exclusão

Fomos procurados por profissionais de uma escola para dis-cutir o atendimento de crianças atendidas em nossa clínica da Sigmund Freud Associação Psicanalítica com diagnóstico de au-tismo e psicose. Ampliamos o pedido e passamos a participar de um grupo de professores e supervisores da Secretaria Municipal de Educação tendo como tema de fundo a inclusão / exclusão. Inclusão / exclusão de quem? Partimos da hipótese de que tanto o grupo de professores como as crianças atendidas apresentavam

6 Psicanalista. Membro Pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica. Coordenadora do Pro-jeto SIG Intervenções Psicanalíticas. 7 Psicanalista. Membro Pleno da Sigmund Freud Associação Psicanalítica.

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18 Grupo de Escuta: uma experiência com professores

questões que se aproximavam: o que e quem eram incluídos e/ou excluídos?

Compreendemos com os educadores que o conceito de dife-rença nos discursos que falam de escola exclusiva reduz diferença à diversidade. No caso específico do discurso jurídico, a diferença pressupõe algo negativo que o sujeito porta e que necessita ser corrigido/normalizado. Nessa linha de argumentação, a diferença passa necessariamente a ocupar o lugar do desvio, do não dese-jado, do incomum. A escola pode olhar para esta diferença com o propósito de apagá-la. Segundo Lopes e Dal’Igna, (...) tratar a diferença não significa anular a diferença, mas redimensioná-la (...) pensar a diferença dentro de um campo político, no qual as experiências culturais e comunitárias e práticas sociais são coloca-das como integrantes da produção dessas diferenças (2007, p.20).

Neste mesmo caminho, compreendemos com Agamben (2007) que uma exceção marca o que é incluído como ordena-mento e o que é excluído dele que adquire sentido. A exceção abre o espaço em que a fixação de certo ordenamento e de certo terri-tório se torna possível pela primeira vez. Marca o que está dentro e fora e, mais tarde, torna-se regra, faz o nexo entre localização e ordenamento. (Agamben, 2007, p.27).

Assim, a psicanálise tem algo em comum com a pedagogia e a filosofia. Cria um campo de saber onde a diferença não gere exclu-são no sentido do desvio, mas sim o de estar além de, fora de, uma espécie de transgressão necessária que dá origem a um saber novo.

A experiência da fala e da escuta

Para situar a experiência realizada durante os anos de 2010 e 2011 neste grupo de profissionais da educação, tomamos de Benja-min a noção de experiência e em Freud o juízo e a escuta/abstinência.

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19Grupo de Escuta: uma experiência com professores

Nos textos de 1930, Benjamin sustenta que há um fracasso na noção de experiência Erfahrung no que diz respeito à arte de contar, ou seja, a construção através da narrativa da experiência (portanto, do vivido em um passado) oriunda de uma organização social comunitária, de um grupo. Com o advento da higienização das políticas da saúde, da guerra, do culto a si mesmo, e da so-ciedade do espetáculo (características do capitalismo moderno), podemos pensar que a experiência vivida adquire outro conceito, o de Erlebnis, ou seja, a experiência do indivíduo solitário, não histórica, com a falência das grandes narrativas, que aponta para um esfacelamento social. (Benjamim, 1930/1994, p.9)

O acesso à fala, movido pela oferta da palavra com a possi-bilidade de uma associação livre coletivizada, é a proposta de um grupo de escuta, onde a experiência vivida é narrada e comparti-lhada, buscando a não reprodução do igual, ou do que poderíamos chamar de discurso da instituição, mas sim uma experiência com-partilhada que busca gerar uma nova resposta discursiva, capaz de reintroduzir a subjetividade ou a singularidade do sujeito que resiste às formas de simbolização.

Este ato visa abrir a possibilidade, na borda de uma palavra, de uma forma de criação que singularize. Nesse sentido, promove um agir na direção de uma abertura para o mundo, de uma invenção, um efeito de saber. E esta intervenção trabalha no sentido de fazer surgir a partir do não dito e do não sabido uma experiência fecunda. A falta, o fracasso e o sofrimento são para a psicanálise uma respos-ta particular do sujeito com a qual desenvolvemos nosso trabalho.

Para um educador é demandado substituir com a plenitude de seus conhecimentos o vazio da ignorância do aluno; em nosso grupo, a demanda está dada pela falta que marca a incompletude, as dificuldades e o limite do saber. Freud indicou que educando como quiser, sempre restará algo que não poderá ser preenchido.

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20 Grupo de Escuta: uma experiência com professores

Há trabalho de impossível, pois o falante não se mostra total-mente governável, nem totalmente educável, nem totalmente psi-canalisável. Mas exatamente nesse ponto impossível, que a relação entre as disciplinas e a abertura da experiência vivida coletivizada revela-se fecunda.

Se introduzirmos a experiência como uma história produzida a partir de um grupo, no caso dos professores e nós, psicanalistas, então temos que destacar o lugar da escuta e do juízo. A escuta é entendida a partir de Freud como sendo a renúncia relativa à sa-tisfação de um desejo, propondo-a como derivada da experiência de castração (do analista), momento ímpar das vivências psicosse-xuais que implicam na tentativa de abandono do prazer narcísico. Entendemos, assim, o fazer do psicanalista como abstinente, mas seu fazer como não desvinculado enquanto sujeito ético que tem na sua prática o respeito ao outro. A ética da psicanálise sendo proposta como a ética do desejo, mas também da construção so-cial (Conte & Hausen, 2009). Marcamos a abstinência como um modo de ser na cultura, diferente da neutralidade, mal entendida no sentido de um sujeito apolítico.

O juízo, a partir do trabalho da Negativa de Freud, situa a questão do não como a base das referências que servem para pro-duzir representações de dentro e fora e de si mesmo e do outro e que posteriormente possibilita a escolha (juízo de condenação). Com Lacan, se coloca que ao falar o sujeito é também falado. E nesse sentido é possível diferenciar o que se institucionaliza como saber (do outro, ou da instituição) daquilo que diz respeito ao sujeito da experiência (subjetividade) (Costa, 2011, p.242). Desta forma, buscamos em um grupo de escuta a produção de um discurso oriundo deste grupo singular, onde algo da fala do analista pode operar para a criação de uma experiência coletiva narrada.

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21Grupo de Escuta: uma experiência com professores

Passamos a participar, na forma de grupo de escuta, do grupo da SMED8, com aproximadamente 22 pessoas com formação em educação precoce para lidar com crianças de 0 a 5anos e 8 meses que recebem um atendimento especial com vistas a ingresso na es-cola regular. Crianças que apresentam paralisia cerebral, autismo, psicose, deficiência mental, física, auditiva e visual.

O grupo apresentava, entre tantas questões, a de como tratar com os pais com condutas e hábitos tão diferentes – desviados do padrão – de conduzir a criança. Aparecem situações de abuso e intimidação dos familiares e as questões relativas à como intervir nestes casos. Ex. “eu criei 8 filhos todos dormindo juntos e ago-ra o que foi para a escola está dando problema”, referindo-se à tentativa da escola de manter privada a sexualidade dos pais, que assistiam filmes pornôs com os filhos.

O tema discutido era o olhar diferente para o sujeito diferen-te. O grupo dos professores também é um grupo diferente, pois trabalha de forma distinta de outros professores. São professores e/ou supervisores, mas têm um trabalho diferenciado em função das crianças que atendem. Assim como as crianças, são diferentes dentro do grupo amplo de professores que pertencem. A ques-tão era “abrir o grupo” para um novo olhar, ou quem sabe à fala, da mesma forma como entre as crianças e seus pais e os pais e a escola.

A experiência vivida no grupo é de pertencimento – quem sou/ o que tenho -, mas isso não é suficiente para que seus mem-bros sejam incluídos. Pensamos que, para estar incluído, é neces-sária a re-apresentação, a representação. Representação que, nes-te caso, faz uma marca de diferença, portanto, de pertencimento.

8 Este grupo busca construir princípios fundamentais de cidadania às crianças com deficiência e transtorno a fim de integrá-las nas escolas de educação infantil e minimizar os atrasos instrumen-tais dessa clientela.

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22 Grupo de Escuta: uma experiência com professores

Estar incluído, não para tornar igual, mas para marcar o que está dentro e o que está fora, condição primeira para a capacidade de julgar a ação.

Dupla inscrição

Em março de 2011, iniciou o ano com mudanças e novos integrantes do grupo. No espaço do grupo, começam a apresen-tar trabalhos sobre a educação precoce com crianças autistas e da pedagogia inicial. O tema passa a ser a transição da criança do atendimento da pedagogia inicial para a escola normal. Na época, havia dados de que das 55.000 crianças da rede municipal, 3000 crianças apresentavam algum tipo de deficiência.

A fala do grupo era o da dupla inscrição, ou seja, no momento de transição havia a inscrição no atendimento na pedagogia inicial e na escola regular para onde iriam. Como “deixar” a criança na mão de outras professoras? A quem recorreria a família, que até então tem um olhar direto sobre seu filho (a)? A dupla inscrição também era o tema do próprio grupo enquanto professores e su-pervisores = atendimento especializado lidando com as angústias específicas destes atendimentos.

Freud fala da dupla inscrição quando nos diz que um conteú-do que está no inconsciente pode ser retranscrito, em outro tempo, e estar na consciência/no ego. O exemplo do sonho é clássico. Os conteúdos (latentes) que o formam são inconscientes, mas o trabalho do sonho os deforma, alteram esses conteúdos e os trans-formam no texto do sonho (manifesto). No entanto, este trabalho nos informa sobre a existência do conflito e da resistência que impede que o conteúdo ou o acontecimento apareça em sua forma “bruta”. Também não é à toa que chamamos o sonho de “outra cena”, ou seja, o acontecimento transformado em uma “outra cena”

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que contém elementos do acontecimento/ conteúdo inconsciente em outra qualidade, em outro tempo. Assim chamamos os sonhos, os sintomas e a transferência, de produções do inconsciente.

O que se passa a produzir no grupo caminha por essa via: narrativa de situações subjetivas, que se mostram em um texto manifesto como expressão de um conflito que gera resistência e se traduz na transferência.

Nos grupos, aparecia como material o desejo de reconhe-cimento da dupla inscrição de serem professores, mas fazerem atendimentos e supervisão. Nossa participação aparece como re-sistência frente ao que fica excluído, ou seja, o que é o limite do alcançável, o que fica fora, não educável, não analisável. Crianças que fariam a passagem e outras que não. Aparecia como exem-plo, o tempo de adaptação das crianças e o questionamento de se as medidas utilizadas, quando da dispensa das crianças da aula por “mau” comportamento, faziam com que elas acabassem não voltando à escola e perdendo todo o trabalho da pedagogia ini-cial. Poderíamos pensar que as “medidas utilizadas” não incluíam a criança. Ao contrário, volta a aparecer a exclusão e o abandono.

Aparece a interrogação são as crianças que não são de nin-guém ou são os professores? Colocar o olho em quem ou no que: no todo ou no específico (na exceção ou na regra). Dar conta de tudo o que é visto na escola regular, lugar para onde vão as crian-ças? Destacavam a importância de outros olhares (o que também indicava a ambivalência frente a nossa participação) e o se colo-car junto, manifestando-se na resistência frente a nossa presença o conflito da perda da criança na passagem para a outra escola. Perda que marca outro tempo, nem sempre com perspectivas de sucesso.

No último encontro, foi “avaliado” nosso papel no grupo: par-te do grupo nos percebeu como “de dentro” e podendo contribuir

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para que eles se escutassem em suas dificuldades e outra parte nos viu como “de fora”, questionando nossa participação no espaço que diziam ser específico do grupo de professores.

Para concluir sobre o espaço transferencial

A ideia de um grupo que trabalhou na linha da inclusão-ex-clusão produziu um efeito transferencial muito peculiar. A inclu-são-exclusão imputada pelo Outro se torna uma posição subjetiva que equivale a uma oferta de identificação e a obturação da pos-sibilidade de inscrição. Poderíamos dizer: pertence (se apresenta), mas não inclui (não se representa). Cria-se, então, uma “relação de par”, no sentido que o parceiro faz o sintoma. E o “par” concen-tra o impossível de suportar: as crianças-professoras, professoras--supervisoras, professoras-psicanalistas, psicanálise-pedagogia, e segue, fazendo o par e excluindo um terceiro.

Assim também poderíamos pensar a clínica e a política em sua relação com as políticas públicas. Muitas vezes, essa relação tem sido apresentada como tranquila, próxima, progressista em si mesma. Novamente chegamos ao impossível porque há um fato irredutível: a política se alimenta do anseio de governar, da normatização. A clínica se interessa na insistência do que aparece como não governo, o inconsciente. Esse ponto de tensão é susten-tado. Em tempos biopolíticos, o diferente torna-se um problema administrativo de gestão, nada que não possa ser abordado por uma técnica de referência no qual o mundo das “exceções” possa ser classificado e normatizado. A produção do aluno excluído é produzida uma vez que se produz uma política de inclusão. A clínica toma o sentido de crise e somente nesse sentido há um enlace entre clínica e política, tomando esta última no sentido que Badiou (1994) lhe confere: a política consiste em designar certas pos-

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25Grupo de Escuta: uma experiência com professores

sibilidades que não se limitam ao que já existe. A política, portanto, é lugar de invenção. Nesse ponto, clínica e política se entrelaçam e se tornam na sua relação de “extimidade” de íntima exterioridade, imprescindíveis. Nesse sentido, a intervenção não tem cessado de produzir questões e criações.

Referências

Agamben, G. (2007). Homo Sacer – o poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora UFMG.Badiou, A. (1994). Para uma nova teoria do sujeito – Conferências Bra-sileiras. Rio de Janeiro: Editora Relume Dumará.Benjamin, W. (1994). Obras Escolhidas 1. Magia e Técnica, Arte e Po-lítica. São Paulo: Editora Brasiliense. (original de 1930).Conte, B. & Hausen, D. (2009).Escuta: quando a abstinência se consti-tui. Revista do CEP de PA.Costa, A. (2011). Sobre o saber na pesquisa e intervenção no campo so-cial. In Heloisa Caldas & Sônia Altoé (Orgs.), Psicanálise, universidade e sociedade. Rio de Janeiro: Editora Cia de Freud / FAPERJ. Lopes, M.C, & Dal’Igna, M.C. (2007). In/exclusão nas tramas da esco-la. Canoas: Editora ULBRA.

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27Escola e Identidade(s)

Escola e Identidade(s)

Cristina Gudolle Herbstrith9

Daniela Weber Bratz10

Não é incomum, atualmente, abrir as páginas dos jornais e se depa-rar com reportagens sobre professores reivindicando aumento aos seus baixos salários, ou sobre professores agredidos verbal e até fisicamente por alunos ou mesmo por pais de alunos. Essa realidade denuncia a urgência de um olhar atento àquilo que se apresenta no social.

Foi frente a um cenário como esse que, há aproximadamente um ano, o Projeto SIG Intervenções Psicanalíticas foi solicitado a oferecer um espaço de escuta e reflexão aos professores de uma Escola Pública de Porto Alegre. Logo percebemos que estaría-mos nos deparando com dificuldades, pois justamente estávamos querendo proporcionar a um conjunto de pessoas a possibilidade de troca e escuta, sendo que esta estava sendo a limitação: pode-rem se escutar e de fato se constituírem como um grupo. Foram muitas as tentativas de estabelecer uma data e um horário para tal. Desistências, esquecimentos e enganos se passaram. Nós, em contrapartida, acreditando na importância do espaço e tolerando essas adversidades.

9 Psicóloga, psicanalista em formação SIG, participante do Projeto SIG Intervenções Psicanalí-ticas10 Psicóloga, psicanalista em formação SIG, participante do Projeto SIG Intervenções Psica-nalíticas

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Foi no início deste ano que uma nova proposta surgiu por parte da Escola: a ideia de agregar ao grupo a diretoria que tam-bém atua como professores. Inicialmente, foi pensado em se esta-belecer um espaço apenas aos professores, para que esses pudes-sem se sentir mais à vontade, apontar questões também do todo do funcionamento da instituição. Contudo, ouvindo a solicitação, optamos por deixar o grupo aberto e quem tivesse interesse pode-ria participar. Assim, percebemos que, a partir dessa mudança, se abriu a chance de escutar a Escola como um todo e ficou notória a possibilidade dos integrantes realmente usufruírem da proposta do grupo.

Foi com a ampliação do grupo que se pôde observar o quan-to as diferenças estavam sendo intoleráveis dentro da instituição. Como não se tem um grupo coeso e que se perceba com valor, qualquer diferença ameaça os integrantes. Neste sentido, alguns temas, como o da identidade e as diferentes formas de pensar, co-meçaram a circular com mais veemência. Há um rechaço mútuo quanto às diferenças geracionais entre professores e alunos, onde não há interesse em aprender aquilo que vem do outro que é de uma geração diferente. Ademais, há uma divisão entre professores antigos e novos na profissão e na Escola.

“Os novos não sabem e não estão preparados para a função que assumiram”. “É a velha guarda que toca a Escola, que faz as coisas acontecerem”.

Os mais antigos escolheram ser professores também pelo status que “constituía” tal profissão; os mais novos já são de uma época onde ser professor é algo desafiador, pois a profissão está se reinventando. É um desafio que reflete na prática e a Escola tam-bém precisa se reinventar. Agora uma dicotomia se faz presente ao vivo e a cores. Primeiro foi necessário implementar um setting para depois poder se falar sobre os incômodos.

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29Escola e Identidade(s)

A falta de uma identidade e a dificuldade de construir uma nova gera desconforto nos professores. As questões que se apre-sentam não são acompanhadas na singularidade e profissionalis-mo, o olhar para o sujeito colega não se faz presente. A comunica-ção é travada pelos rótulos, CID’s e “fofocas”.

“Ela é bipolar. Ele tem o CID tal”. “Já chegam à psicóloga da Escola com os diagnósticos prontos, tanto os professores entre eles, como em relação aos alunos e estes em relação aos professo-res”.

Os rótulos os paralisam e fazem com que o diálogo e uma coesão não aconteçam. Por isso, a oportunidade dos professores escutarem-se e de colocarem os assuntos na “roda” está proporcio-nando a constituição deste grupo.

Em 1921, no texto Psicologia de Grupo e Análise do Ego, Freud cita Mc Dougall que enumera algumas condições para o grupo ter um funcionamento elevado, ou seja, para a vida mental coletiva atingir um nível mais alto. A continuidade da existência do grupo é uma das condições. Neste sentido, observamos que, agora, os integrantes possuem encontros sistemáticos que estão acontecendo em dia e horário determinado. Além disso, os mem-bros estão em um processo de conhecimento e reconhecimento dos pares, e, assim, podendo participar ativamente dos encontros. Tal aspecto caracteriza outra condição: a natureza, composição, função e capacidades do grupo, para que possa existir o desen-volvimento de relações emocionais. Outra condição observada é a tradição, costumes e hábitos, que determinam a relação de seus membros uns com os outros. Algumas pessoas do grupo come-çam a indagar sobre as antigas tradições que hoje não estão mais presentes, como a falta dos encontros sociais que costumavam acontecer para integração dos mesmos. Já os novos integrantes comentam sobre a existência de diferentes tradições no grupo, a

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substituição de antigos encontros de integração por outros espa-ços. Parece que o grupo já está criando seus hábitos e costumes; o que parece antigo, se faz presente em outro formato. Situação esta que o grupo ainda não consegue identificar como uma construção atual.

A busca destes profissionais é pela identidade e pelo valor numa atualidade em que as dúvidas e o acesso à informação são obtidos no Google, em que a docência é tida como uma profissão desvalorizada e o seu reconhecimento é irrisório. Henz afirma que “não é que a juventude tenha hoje se tornado menos interessan-te, mas as formas de ação que eram úteis no passado perderam sua efetividade” (2009, p.69). O autor acrescenta que, a todo o momento, os professores precisam escavar novas intervenções e difíceis saídas nas salas de aula.

Com o tempo e os encontros, ficou manifesto que esses pro-fissionais possuem dificuldades em avaliar o seu lugar e papel na Escola, na sala de aula e, principalmente, na sociedade. É neste sentido que a proposta de um espaço de escuta é uma forma de a Escola valorizar seus professores e dos mesmos poderem se olhar como pares e com valor para compartilhar entre si e para trans-mitir para as novas gerações. Henz comenta que o desafio é de “deformar, de abrir espaço na forma/fôrma, de tornar porosa a blindagem a que todos os professores estão submetidos” (2009, p. 69).

Assim, vamos realizando nossas intervenções a partir das in-terversões dos participantes, escutando e podendo pontuar frente às diferenças nos discursos que se apresentam num grupo a priori unido por um interesse comum. O professor deixou de ser um líder instituído e precisa se reinventar, conquistar este espaço e, para isso, ele precisa criar um novo modelo sem que este neces-sariamente seja igual ao da geração anterior. Além disso, para o

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estudante se identificar com o professor, ele precisa olhar para seu mestre como alguém valorizado e reconhecido. Valorização e re-conhecimento que não há dentro do próprio grupo, nos pares de iguais.

Já anunciava Freud que a educação, assim como a psicanáli-se, é da ordem das profissões impossíveis, no sentido daquilo que não se esgota e que é interminável e isso, contudo, não se altera. Porém, nos parece que, quando esse profissional não está no lugar do Saber legitimado, o processo de aprendizagem se torna difícil e distante. É nesse sentido que a psicanálise pode contribuir e apontar a diferença entre o que é obter acesso à informação e a importância da transmissão do conhecimento através de modelos, indispensáveis na formação de um sujeito. A psicanálise prioriza experiências de encontros com semelhantes, evidenciando que isso é o que produz conhecimento, construções e mudanças. A parti-cipação desses sujeitos no grupo possibilita que novas identidades sejam inventadas e que cada membro saia de uma identidade fixa podendo repensar-se. A velha identidade, que por tanto tempo foi estável, hoje está em declínio, fazendo-se necessário formar novas identidades. É um momento de transição; esses professores estão descobrindo e redescobrindo seu valor.

“Quando o secretário sugeriu para as Escolas desenvolverem algum projeto social ou de capacitação, eu olhei para os lados e levantei o meu braço. Contei que desenvolvemos um projeto in-terdisciplinar aqui há 10 anos e que a cada ano inovamos o projeto aqui na Escola. E também contamos que temos este espaço de escuta aqui para os professores”.

Neste espaço, os professores estão podendo se escutar e tra-duzir as suas histórias. Estão num momento de compartilhar suas tradições e lugares ocupados em outros grupos, para construírem a história deste grupo que é composto por diferentes trajetórias.

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32 Escola e Identidade(s)

Sem perder completamente a identidade, mas sim permitindo que se reinventem a cada mudança necessária. Ou seja, a identidade do professor permanece aberta, em constante reflexão.

Referências

Freud, S. (1996). Psicologia de Grupo e a Análise do Ego. In J. Salomão (Org.). Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 18). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1921)Henz, Alexandre de Oliveira (2009). Formação de Professores (2009). In Julio Groppa Aquino & Sandra Mara Corazza (Orgs.), Abecedário: Educação da diferença. São Paulo: Papirus.

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33O Encontro com o Dessemelhante: a Escuta do Voluntariado

O Encontro com o Dessemelhante: a Escuta do Voluntariado

Lucas Krüger11

Luciana Lopez Silva12

Um celular foi roubado. Com esse ruído de fundo, aguarda-mos aquele que seria o primeiro grupo com os voluntários de um projeto social. O celular, no caso, pertencia provavelmente a algum voluntário. De fora, escutávamos o misto de assombro e indigna-ção: “Mas foram roubar justo de um professor? Roubar o celular de um professor!”. Não que um celular tenha que ser roubado, mas acompanhando de fora, pensávamos: por que o estranhamento? De quem a criança iria roubar um celular e por que razão estaria um voluntário protegido deste ato? Era visível o mal-estar de to-dos.

Mal-estar em 2012 que nos remete a 1930, ano em que Freud publica O Mal-Estar na Civilização. Neste texto, Freud coloca que a vida é árdua demais, proporciona muitos sofrimentos, decepções e tarefas impossíveis. O corpo, a natureza e as relações nos sub-metem inevitavelmente à castração e nos são fonte de sofrimento. A arte, a ciência, as capacidades sublimatórias, o trabalho, são al-

11 Psicólogo, psicanalista em formação SIG, integrante do Projeto SIG Intervenções Psicanalí-ticas12 Psicóloga, psicanalista SIG, integrante do Projeto SIG Intervenções Psicanalíticas

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34 O Encontro com o Dessemelhante: a Escuta do Voluntariado

ternativas pulsionais. Ao mesmo tempo em que a civilização nos ocasiona sofrimento, também nos oferece caminhos para lidarmos com este sofrimento. Lidar com o mal-estar inerente à vida.

O mal-estar social, o reconhecimento das diferenças – entre o eu e o outro, entre aquilo que tenho como um ideal social e ético e aquilo que a realidade apresenta – vêm desencadeando a inserção de pessoas em projetos sociais os mais diversos sob a denominação de ações voluntárias ou voluntariado. Trata-se de uma ação orga-nizada onde pessoas dedicam seu tempo e sua energia, voluntaria-mente, para promover mudanças sociais. O necessário encontro com as diferenças e a interlocução com estas diferenças produz – ou pode produzir – muitas coisas. Trata-se de encontros com o dessemelhante, encontro com aquele diferente de si. Voluntário e criança. Aquele que ensina algo e aquele que aprende algo, lugares que se intercambiam, em que tanto o voluntário quanto a crian-ça trocam de lugares nessa interlocução; ambos ensinam, ambos aprendem. Aquele que tem um celular e aquele que não tem um celular. Ou aquele que não tem aquele celular, não porque não possa ter um celular, mas porque aquele celular especificamente pertence ao outro. Para além do objeto em si, estamos falando da-quilo que se tem e daquilo que não se tem, aquilo que potencializa e aquilo que limita a cada sujeito humano independente de suas condições econômicas e em consonância com uma outra econo-mia – a economia psíquica.

É ali no front do social que as coisas se dão. Que ações podem e são realizadas. Que o estranho e o mal-estar se apresentam sem maiores cerimônias e nos convocam a pensar e a agir. Pensando nisso e na potencialidade dessas ações, bem como no necessário escutar-se, que propusemos levar os grupos de escuta para os vo-luntários envolvidos em um projeto social cujo eixo é o esporte. São algumas dezenas de voluntários envolvidos diretamente nas

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35O Encontro com o Dessemelhante: a Escuta do Voluntariado

ações voluntárias, com o público alvo (crianças e adolescentes em situação de risco social) ou com ações de apoio.

Escuta que, até o presente momento, se deu apenas na for-ma de ruídos. Ou de desencontros. Até o presente momento, não houve o grupo. Já estamos há alguns meses nestes desencontros. Várias visitas, várias conversas, telefonemas, e-mails, voluntários que se manifestam interessados, mas algo tranca. Em psicanálise, costumamos entender aquilo que tranca como uma resistência que se apresenta. Estaremos diante de uma resistência institucional?

Mas a que resistido isto poderia remeter? E como trabalhar isso na ausência? A cena – o roubo de um celular – como já disse-mos, foi acompanhada de fora por nós. O dito não foi a nós diri-gido. Podemos pensar muitas coisas a partir daí, mas qual mesmo o sentido deste ato? Não sabemos, tampouco sabemos o que ficou ressoando a partir daí entre os voluntários, que sentido isto tomou.

Terá algo se explicitado na cena roubo de um celular, algo que nos dá notícias das relações entre voluntários e crianças? Sabemos do fator de vulnerabilidade de grande parte dessas crianças, ima-ginamos de onde elas vêm e o quanto carregam consigo muitas vezes marcas de violência, seja ela psíquica ou física. Registros de excessos por vezes não narráveis em palavras, mas em atos. Sa-bemos por vivências anteriores nossas, bem como sabemos pela nossa inquietude em não permanecer em estado de alienação.

Atravessados todos, voluntários e crianças, por uma cultura que privilegia o tudo ter, a cultura do instantâneo, do espetácu-lo, do narcisismo, cultura que propagandeia a satisfação pulsional sem limites, sem regramentos, sem adiamentos.

Em 1927, em O Futuro de uma Ilusão, Freud se ocupava de pensar psicanaliticamente a cultura e o social. Pensar os caminhos por onde a subjetividade e a cultura se entrelaçam. Diz ele:

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36 O Encontro com o Dessemelhante: a Escuta do Voluntariado

Se, porém, uma cultura não foi além do ponto em que a satisfação de uma parte e de seus parti-cipantes depende da opressão da outra parte, parte esta talvez maior – e este é o caso em todas as cul-turas atuais – é compreensível que as pessoas assim oprimidas desenvolvam uma intensa hostilidade para com uma cultura cuja existência elas tornam possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem mais do que uma cota mínima. Em tais condições, não é de se esperar uma internalização das proibições culturais entre as pessoas oprimidas (Freud, 1927/1990, p.23).

Freud assinala que a lei do “não matarás”, do “não roubarás”, acaba por não ser internalizada. Há uma falha no reconhecimento da lei.

Falha no reconhecimento da lei. As leis da civilização que regulam as relações entre as pessoas. Regras que remetem a um não e a um sim desde que não estejamos alicerçados numa ilusão narcísica. Estará o voluntário, para aquela criança, como o repre-sentante daqueles que ilusoriamente tudo poderiam? Para além de todas as carências reais e imediatas desta criança, terá ela, em sua vida, sido reconhecida como sujeito, para a partir daí reconhecer--se e reconhecer portanto o outro?

E qual será, para o voluntário, a representação da criança por ele acompanhada? De que maneira a cena roubo de um celular desalojaria esta representação? Inquietante estranheza do volun-tário frente a sua não imunidade a uma narrativa em ato de uma criança.

Ontem, se falou que só há inclusão se há a exclusão. Aqui, hoje, diremos que só há estranheza onde há familiaridade. O Gru-po de Escuta se constituiria como aquele dispositivo que abre es-paço para o encontro com a estranheza e a possibilidade, a partir

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37O Encontro com o Dessemelhante: a Escuta do Voluntariado

daí, da produção do novo. É nesta aposta que estamos enredados. Eis o nosso desafio.

Referências

Freud, S. (1990). Psicologia de Grupo e a Análise do Ego. Edição Stan-dard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1927)Freud, S. (1990). O Mal-Estar na Civilização. Edição Standard Brasi-leira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 21). Rio de Janeiro: Imago. (Original publicado em 1930)Meister, J. A. F. (2003). Voluntariado – uma ação com sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS.

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39Unheimlich, o Inquietante diante da Loucura Intervenções no Mal-Estar

Unheimlich, o Inquietante diante da Loucura Intervenções no Mal-Estar

Karine PrestesRafaela Degani

Simone Engbrecht

O desamparo humano torna o homem inserido e constituído em grupo. Freud (1901/1980), em A Psicopatologia da Vida Co-tidiana, estendeu as descobertas da psicanálise fazendo conexão entre as neuroses e a vida mental normal. Estudando esquecimen-tos, lapsos, sonhos, Freud possibilitou que o estudo não ficasse focado somente na psicopatologia. Escutar o homem com uma re-gra fundadora como a livre associação é realizar uma investigação não aprisionada à psicopatologia. Ainda nesse texto, Freud elabo-rou seus argumentos a partir de uma hipótese determinista que investigava a causa de algo, contudo abandonou-a quando perce-beu a complexidade de associações envolvidas na vida. Porém não deixou de lado a pesquisa sobre a vida cotidiana. Não é preciso ter um roteiro único de investigação quando não se procura provar nada. Investigar a psicopatologia da vida cotidiana hoje pressupõe escutar o mal-estar do cotidiano, um estar que pode estar sempre cotidiano, em banalização de um estar e sem diferenças.

Pensamos que seja possível exercer uma escuta psicanalítica em outros contextos, além do consultório, sem subverter os fun-

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40 Unheimlich, o Inquietante diante da Loucura Intervenções no Mal-Estar

damentos que dão sustentação a sua especificidade, pois acredi-tamos que nosso trabalho sustenta-se na ética e nos princípios que regem a psicanálise. O analista, orientado por tais princípios, pode intervir em outros espaços de atuação. A regra fundamental é a livre associação. Este é, portanto, o fundamento da escuta em Psicanálise.

A experiência analítica é a intervenção da psicanálise. Intervir é ingerir-se, intrometer-se, estar presente na vida. Diferencia-se sutilmente de uma interferência, que é ter efeito e determinação causal. O movimento de contato com o movimento do objeto de estudo não possui a pretensão de estabelecer se é o sujeito que faz o grupo ou se ele está constituído pelo grupo, mas abre espaço para a reflexão sobre qual é o lugar do qual fala cada sujeito dentro de um grupo.

Laplanche (1992), na introdução do livro Novos Fundamen-tos para a Psicanálise, agrupa os lugares da experiência psicanalí-tica em quatro pontos: a clínica, a psicanálise extramuros, a teoria e a história. Ele define duas especificidades da clínica psicanalítica como objeto: a experiência do tratamento se produz num enqua-dre fundante - a regra fundamental e o objeto da psicanálise não é o objeto humano em geral; não se trata do homem que podemos delimitar através de várias outras ciências – a psicologia, a sociolo-gia, a história, a antropologia - mas do objeto humano, à medida que formula, que dá forma à sua própria experiência.

O movimento que dirige a Psicanálise para a cultura é que faz com que o homem psicanalítico não seja somente um homem segundo a psicanálise, estudado pela psicanálise, porém um ho-mem que doravante está marcado culturalmente pela Psicanálise. Afirmar que o homem é autoteorizante significa dizer que toda verdadeira teorização é uma experiência que, necessariamente, en-gaja o pesquisador.

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41Unheimlich, o Inquietante diante da Loucura Intervenções no Mal-Estar

Verificam-se quatro lugares de experiência, experiência aqui entendida como Erfahrung. Experiência possui em alemão três palavras diferentes: para descrever o que significa amostra, prova (Experiment), o que significa vivência sem aprendizagem, apenas o vivido(Erleibnis) e a aprendizagem, o amadurecimento, o quilô-metro rodado com a vida, o movimento em contato com o objeto em movimento (Erfahrung). O movimento é o lugar da experiên-cia e da intervenção psicanalítica (Laplanche, 1992).

Assim foi nosso movimento: nosso trabalho aconteceu quin-zenalmente durante um ano, em um hospital psiquiátrico; os par-ticipantes eram estudantes da residência multidisciplinar desse local e vinham por escolha individual. Os encontros duravam uma hora e sempre eram realizados em uma sala dentro da instituição. Formamos dois grupos, em dias diferentes da semana, cada um com uma média de 6 a 10 participantes por encontro. Éramos quatro profissionais, duas em cada grupo.

A história do movimento nos grupos de escuta em institui-ções nos suscitou muitos questionamentos e reflexões. A partir desse espaço, fomos entendendo a importância e a necessidade de uma escuta vinda de fora da instituição. Foi fundamental para a intervenção que nós não fizéssemos parte da equipe do hospi-tal; assim se tornou possível o estabelecimento do vínculo inicial de confiança, e, pela escuta abstinente que propõe a psicanálise, abriu-se o espaço para reflexões sobre aquele grupo e sua prática dentro da instituição.

O fato de sermos de fora da instituição possibilitou que es-cutássemos questões, as quais quem estava dentro tinha mais di-ficuldade em perceber. Podemos entender isso de uma maneira semelhante a um sujeito em análise, que busca alguém (o analista) que o ajude a escutar aquilo que nele está inacessível, inconsciente. O grupo de escuta possibilita que questões sejam formuladas e re-

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flexões sejam feitas, e isto só se torna viável a partir de uma escuta abstinente. Este olhar estrangeiro foi bem aceito e acolhido pelo grupo, e os participantes aos poucos foram se apropriando desse lugar e construindo a confiança enquanto grupo, para exporem as questões que os cercavam em sua prática e refletirem sobre o seu lugar dentro da instituição.

Tendo em vista que os participantes trabalhavam diretamente com pacientes graves, psicóticos, dependentes químicos e porta-dores de outras doenças mentais, o grupo de escuta tornava-se importante, pois lidar com a loucura e doença mental grave des-perta angústia. Por se tratarem de profissionais com um trabalho vinculado a um programa de estudos, a questão da temporalidade, ou seja, do tempo que cada um teria para permanecer em contato com aquela realidade – suportá-la, transformá-la, sucumbir a seus efeitos –, foi também um fator de inquietação, dúvidas e angústia. Nosso trabalho realizou-se no movimento de que eles não banali-zassem, mas escutassem o inquietante.

Em cada momento, situações provocavam reflexões sobre qual era o lugar do residente diante da instituição. Escutamos algo dentro do angustiante diante da loucura: o inquietante. Algo tem de ser acrescentado ao novo e não familiar, a fim de torná-lo inquietante (Unheimlich – não familiar). Para Jentsch, autor que Freud citou no texto O Inquietante de 1919, a palavra heimlich ostenta, entre suas várias nuances de significado, também uma na qual coincide com o seu oposto, Unheimlich. Unheimlich seria tudo o que deveria permanecer secreto, entretanto apareceu. Apareceu algo dentro do angustiante: um inquietante, algo novo no interior do familiar, algo familiar dentro do estranho.

Para contar uma história, um dos mais seguros artifícios para criar efeitos inquietantes consiste em deixar o leitor na incerteza de que determinada figura seja uma pessoa ou um

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autômato, de modo que tal incerteza não ocupe o centro da investigação.

A condição particularmente favorável para a geração de sen-timentos inquietantes ocorre quando é despertada uma incerteza intelectual de que algo seja vivo ou inanimado e quando vai muito longe a parecença do inanimado com o vivo.

O fator da repetição pode ser também uma fonte do inquie-tante, pois remete ao duplo. Poderíamos atribuir à repetição ao acaso, porém o que é percebido como inquietante lembra uma compulsão à repetição interior. Perceber desejos francamente re-alizados pelo destino é também inquietante. Os desejos deveriam estar íntimos. Perceber o que é privado no público é inquietante. Unheimlich diante da loucura.

Freud (1919) pontuou que todos nós, em nossa evolução in-dividual, passamos por uma fase correspondente a esse animismo dos primitivos, que se caracterizava por preencher o mundo com espíritos humanos, que em nenhum de nós ela transcorreu sem deixar vestígios e traços de sua manifestação, e que tudo o que hoje nos parece “inquietante” preenche a condição de tocar nesses restos de atividade psíquica animista e estimular sua manifestação.

No entanto não podemos estabelecer relação inversa, pois nem todos os inanimados que se tornam animados, nem todos os conteúdos de retorno do recalcado, nem mesmo todos os duplos e repetições são inquietantes. O inquietante das vivências produz--se quando complexos infantis recalcados são novamente aviva-dos, ou quando crenças primitivas superadas parecem novamente confirmadas.

A partir dos encontros, tornou-se mais claro que uma iden-tidade grupal foi se formando e, aos poucos, os participantes fo-ram percebendo e compreendendo qual era o papel deles naque-la instituição e o que a prática com pacientes despertava dentro

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de cada um e em todos como grupo. Puderam refletir sobre dife-rentes situações, apropriando-se do seu lugar dentro do hospital, com todos os limites e possibilidades que ali havia. Muitas vezes, escutamos dos participantes que aquele espaço era importante justamente para que eles pudessem falar e se escutar frente a to-das as situações que estavam vivenciando e que aquele momento conosco, tornava o trabalho deles menos desgastante. Podiam compartilhar experiências, serem ouvidos, bem como refletir so-bre os conflitos existentes. O espaço de escuta permitiu que os próprios participantes se escutassem e que juntos fossem tendo uma compreensão sobre a causa de suas angústias, e separando o que era de cada um do que era geral do grupo, entendendo, ainda, as consequências emocionais de lidar diretamente e dia-riamente com a loucura.

Temas como medo, contágio, temporalidade e julgamento foram alvo de reflexão. O movimento era construir paradoxos diante do que pareciam diferenças que buscavam julgamento. O movimento do trabalho realizado foi de construção de paradoxos que dessem conta do Unheimlich, uma palavra com dois sentidos opostos dentro de si.

Em um primeiro momento, podemos perceber que a con-vivência direta com sujeitos psicóticos gerou muito impacto em alguns. No começo, sentiam medo e dúvida em como lidar com tais sujeitos. Um sentimento de impotência e questionamento se o trabalho deles alcançaria algum efeito sobre os pacientes também era comum. Pareciam muito angustiados frente ao comportamen-to de algumas pessoas diante da loucura; não entendiam a indife-rença e o jeito automático, sem afeto, com que alguns lidavam com os pacientes. Entretanto, passados alguns meses, o medo deles (residentes) é que se tornassem iguais aos que eram indiferentes. Sentiam-se assustados ao notarem que certas situações, que antes

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geravam tantos impactos e vivências de choque, algumas vezes, tornavam-se banalizadas para eles também.

A relação dos residentes com o grupo era inicialmente também de medo. As reflexões foram diferenciando o que seria uma pergunta sobre um fazer e o que seria uma curiosidade sobre o que pensavam diante da diferença entre a realidade e as idealizações. Sair de uma posição de julgamento de quem sabe ou não, quem está certo ou não, quem está num lado ou noutro foi abrindo espaço para que uma dife-rença dual se transformasse em complexidade de diferenças.

Acompanhamos, com muita atenção, este processo e a mu-dança dos sentimentos de medo, passando pela impotência e che-gando à indiferença. Notamos, então, que, em um primeiro mo-mento, os residentes tiveram a experiência de choque, gerada pelo contato com pacientes graves. Em um segundo momento, passado o choque e o medo inicial, veio à tona um sentimento de indife-rença, de banalização e ainda de negação diante dessa situação antes vivida como traumática. Podemos levantar, como hipótese, o fato de que, para continuarem exercendo suas funções e conviven-do diariamente com a loucura, esses sujeitos mobilizaram todas as suas forças disponíveis para tolerarem psiquicamente a experiên-cia. Porém, essa banalização e falta de interesse com seu trabalho também lhes gerava preocupação e prejuízos como residentes.

Walter Benjamin, no texto Experiência e Pobreza (1933/1994), apresenta sua hipótese sobre os efeitos da vivência de choque, a qual, segundo o autor, está ligada a movimentos reflexos, gestos automáticos, visões, flashes, contrapondo-se a uma experiência unida ao conhecimento.

O autor baseia-se no conceito de trauma em Freud (1920) e afirma que, diante da intensidade da realidade, a consciência exer-ceria uma função de escudo protetor através da anestesis, ou seja, diante do excesso de estímulos, a consciência operaria a “dessen-

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sibilização” dos sentidos, para tolerar a inundação do campo sen-sorial/perceptivo.

Dessa forma, a experiência não se efetiva como tal, sendo que o vivido/sentido/percebido fica no nível da vivência automática, repetitiva e desprovida de significados – não constrói uma memó-ria, não há um processamento psíquico do que é vivenciado visto que não abre espaço para um movimento reflexivo.

Nos grupos de escuta, os residentes construíram um espaço para refletirem sobre as questões que geravam angústia, inquietação e sofrimento e, assim, compreenderam o porquê de suas reações. Os participantes foram chegando à conclusão de que não precisavam ficar alheios à loucura, ou sentir que nada tinham a oferecer, pelo contrário, foram aos poucos percebendo que podiam se aproximar desta experiência, que talvez não fossem mudar as condições do hospital ou, mesmo dos pacientes, conforme idealizaram, mas que seu papel ali dentro era, sim, de grande importância, e, tendo em vista que estavam ali, podiam fazer o que lhes cabia. Com isso o sentimento de impotência e desânimo foi amenizando, dando lugar a ideias mais criativas e de acordo com a realidade em que viviam.

Foi possível acompanhá-los no percurso de transformarem as vivências de choque em experiências passíveis de serem pensadas, compartilhadas, transmitidas – as quais adquiriram para eles no-vos significados ao longo do processo.

A Psicanálise não é um conjunto de conceitos repassados e amostrados em sua aplicação e revistos depois da experiência. Contudo o objeto da psicanálise é o humano enquanto ser teori-zante. A Psicanálise alcança reconhecimento quando o ser teori-zante de si a conhece em experiência analítica, nos quatro lugares apontados por Laplanche. A transmissão da psicanálise não está em perguntas ou em ‘complete a frase’, mas nos abalos da teoria, quando ela é posta em movimento por novas perguntas. Por isso

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a Psicanálise não é uma visão de mundo, e sim uma perspectiva, um sentimento de que algo ultrapassa o que enxergamos e que ficamos com esperança sempre renovada de descobrir.

Bibliografia

Benjamin, W. (1933/1994). Experiência e pobreza. In D. Prado (Ed.) e S.P. Rouanet (Trad.), Obras escolhidas. Magia e técnica, arte e política. (Vol. 1, pp. 114-119). São Paulo: Brasiliense Freud, S. (1901/1980). A psicopatologia da vida cotidiana. In J. Strachey (Ed. e Trad.), Edição standart brasileira de obras completas de Sigmund Freud (Vol. 6, pp. 10-337). Rio de Janeiro: Imago.Freud, S. (1912/1980). Recomendações aos médicos que exercem a Psi-canálise. In J. Strachey (Ed. e Trad.), Edição standart brasileira de obras completas de Sigmund Freud. (Vol. 12, pp. 149-163). Rio de Janeiro: Imago.Freud, S. (1919/1980) O estranho. In J. Strachey (Ed. e Trad.), Edição standart brasileira de obras completas de Sigmund Freud (Vol. 17, pp. 275-313). Rio de Janeiro: Imago.Freud, S. (1919/2010). O inquietante. In P.C.L. de Souza (Ed. e Trad.), Obras completas (Vol. 14, pp. 328-376). São Paulo: Companhia das Letras.Freud, S. (1929/1980). Além do princípio do prazer. In J. Strachey (Ed. e Trad.), Edição standart brasileira de obras completas de Sigmund Freud (Vol. 18, pp. 17-89). Freud, S. (1930 [1929]/1980). O mal-estar na civilização. In J. Strachey (Ed. e Trad.), Edição standart brasileira de obras completas de Sigmund Freud (Vol. 21, pp. 81-177). Rio de Janeiro: ImagoHouaiss, A. & Villar, M.S. (2009). Dicionário Houaiss da Língua Por-tuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva. Laplanche, J. (1992). Novos fundamentos para a Psicanálise. São Paulo: Martins Editora. Laplanche, J. & Pontalis, J. B. (1991). Vocabulário de Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.

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Pensando as tramas e enlaces da clínica com refugiados

Alexei Conte Indursky

Vou propor como reflexão as seguintes questões: sob quais inflexões (bio)políticas distintas clínicas com refugiados puderam tomar forma? Mais especificamente, qual a posição que a noção de traumatismo ocupa atualmente no cenário europeu e brasilei-ro na clínica com refugiados? E ainda, a partir das diferentes es-pecificidades geopolíticas e jurídicas entre Brasil e França, como se produz aquilo que Didier Fassin e Richard Rechtman (2011) chamam de uma economia moral do traumatismo? Dito de outra forma interessa-me pensar como a noção de traumatismo é apro-priada pelo social, não em termos de um saber e discurso científico ou psicopatológico, mas como tal categoria engendra uma esfera moral do sujeito vítima de perseguições políticas? Esfera a partir da qual ele não é apenas objeto/vítima de uma condição de trau-matizado, mas cuja legitimidade do trauma está, a todo o momen-to, se reconstruindo e ganhando novas roupagens.

Proponho isso para pensarmos qual a pertinência do trabalho terapêutico com os refugiados, e em quais pontos a psicanálise nos ajuda pensar a condição do sujeito em exílio de sua pátria e de si mesmo.

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A apropriação política do traumático.

Em termos geopolíticos o refugiado colocou-se, de acordo com a fórmula de George Simmel (1905), como aquele que “hoje chega e amanhã permanece”, mesmo que sob os auspícios de uma alte-ridade inquietante. Não é de se surpreender, portanto, que o prin-cípio régio que orienta o acolhimento daqueles que vem bater à porta pedindo refúgio, seja o do non-refoulement. Termo que ampla-mente traduzimos ao português por não devolução ao local donde este alega ser perseguido, mas cuja acepção psicanalítica nos sugere igualmente a ação do não recalcamento. Não recalcar sua existência. Da posição marginal e invisível do início do século XX, verdadeiro sintoma da ordem política moderna13, o refugiado passou a ocupar, pela movimentação de um contingente populacional raras vezes visto antes das grandes guerras, uma posição peculiar nas políticas internacionais e consequentemente nas políticas públicas de cada Estado-Nação que, doravante, deveria regular o fluxo de demandas de ingresso em seu território. Aquilo que inicialmente era revestido pela razão humanitária supra-nacional passará pelo crivo do poder estatal, que sob a letra do non-refoulement, transformará uma polí-tica da invisibilidade em uma economia da suspeita.

O quadro de legitimidade do refugiado nos países europeus se constituirá a partir dessa nova inflexão. Aquilo que anteriormente constituía a trama política junto aos trabalhadores imigrantes (luta por seus direitos trabalhistas e a psiquiatria pós-colonial) será re-vestido por essa contingência, revelando assim novas implicações.

Sob o plano clínico veremos, grosso modo, uma transição de pa-radigma dos anos 70 até o final do século, na qual o imigrante e o refugiado se distanciarão como duas realidades que, ao mesmo tempo, se recobrem e progressivamente se distinguem. O conceito de exílio,

13 Ver Hannah Arendt (1953). O declínio dos direitos humanos. In: As origens do Totalitarismo.

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que demarcava e traduzia a especificidade de tal fenômeno, começará a dar margem ao fator traumático: se ambos, refugiados e imigrantes parecem compartilhar uma mesma dimensão psíquica, ou seja, ambos sabem da dor que é deixar seu país de origem, sua família, seus bens, seus amigos, o exilado constitui-se como aquele, cujo “processo de luto se encontra complicado pelos efeitos do traumatismo” (Volkan, 2004). O traumatismo se caracterizará amplamente pela dificuldade de repre-sentar ou narrar as vivências de perseguição e violência política de um sujeito cujos referenciais identitários encontram-se desorganizados.

Em nenhum outro lugar essa discussão se fez tão marcada e acompanhada pela presença psiquiátrica e psicológica do que no caso francês. O surgimento de associações sem fins lucrativos que se dedicam à clínica do refúgio mostra como os efeitos da vio-lência política tomaram um espaço importante na compreensão e tratamento da figura clínica do refugiado, reservando ao trauma da tortura uma posição de destaque.

Não por acaso, será precisamente sob o ateste das sequelas físicas e psíquicas do trauma que os comitês e conselho nacional respon-sáveis pelo reconhecimento do status do refúgio irão se debruçar. Desta feita, frente a casos de perseguição e violação dos direitos hu-manos, cujo caráter de emergência e risco de vida deveria prevalecer junto à decisão do reconhecimento do status, uma política da prova começa paulatinamente a estabelecer-se. O refugiado antes de tudo deve comprovar pelo corpo, através de certificados médico-psicoló-gicos, aquilo que a palavra ou o silêncio de seu discurso fracassam em testemunhar frente aos comitês avaliadores. O reconhecimento do traço, a perseverança dos sintomas, sua visibilidade corporal e até mesmo uma escrita específica começam a desenvolver-se na pena dos psicólogos e psiquiatras de tais associações.

Portanto, aquilo que inicialmente articulava-se junto a uma prática clínica foi reapropriado pela prática jurídica de elegibilidade

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ao status de refugiado. E assim passou-se igualmente do registro da verdade da narrativa do exilado para a comprovação corporal, não da verdade de sua dor, mas da verossimilhança de seus sintomas.

A título de exemplo, os dados do Comitê médico para os exi-lados francês nos revela a evolução da emissão dos certificados: Em 1984, 151. Em 1994, 584. Em 2001, 1171 certificados emitidos14. Concomitantemente, o índice de aceites decai acintosamente. Em duas décadas o lugar que o certificado médico-psicológico passou a ocupar no reconhecimento do refugiado demonstra, não apenas que a narrativa e intenção do refugiado são passíveis de suspeita, mas que sua admissão legal passa por uma perícia que possa demonstrar a ve-rossimilhança do traumático. Efeito biopolítico, sabidamente, no qual a vida política do sujeito é reduzida ao valor do seu corpo, ou ainda, reduzida àquilo que seu corpo, enquanto superfície biológica, pode atestar sobre seus percursos políticos. O certificado médico psicoló-gico não é, portanto somente um anteparo que substitui a fala do de-mandante de asilo: ele é igualmente aquilo que autoriza o seu silêncio (Fassin, D. 2011 & Rechtman, R.) quando de casos de mutismo, ou ausência do nexo causal esperado pelos comitês avaliadores.

Passando rapidamente pela atualidade do contexto francês, nós encontramos o traumatismo como o nó que permite uma li-gação entre violência sofrida e sofrimento psíquico sentido, entre uma prática política e uma prática clínica, entre experiência e cui-dado, entre memória e verdade.

* * * *Enquanto isso, do outro lado do atlântico, o instituto e o re-

conhecimento do refugiado redesenhavam-se em outros traçados após a redemocratização do governo brasileiro. A prática de asilo realizada pelas arquidioceses brasileiras durante as ditaduras milita-

14 Ver Dénie de reconaissance. Maux d’exil, n. 34. Setembro 2011. P.01-03. Paris : COMEDE.

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res na América Latina é revestida pelo olhar humanitário da nova constituinte e dos acordos internacionais, sobretudo Cartagena. A criação do CONARE (Comitê Nacional para Refugiados) em sua estrutura tripartite (sociedade civil, governo federal, Acnur) inscre-ve-se como uma referência internacional em termos de sua fun-cionalidade, doutrina e jurisprudência. O quadro de legitimidade do refugiado é radicalmente diferente quando comparado aos ca-sos europeus. Os afluxos de refugiados consideravelmente menores propiciam um princípio de organização de políticas públicas e solu-ções duráveis, inéditas em outros países. Se aqui a suspeita frente ao refugiado ainda existe, a jurisprudência mostra num grande número de casos deferidos que o princípio “de que em dúvida a decisão deve sempre em favor do/a solicitante” é seguido (Leão, 2011).

Um acolhimento e acompanhamento psicológico são reali-zados em certas capitais brasileiras, sobretudo São Paulo, mesmo que a problemática de imigrantes e refugiados não encontre uma distinção psicopatológica tão rigorosa se comparada ao quadro europeu. O olhar das associações e estruturas sociais recai, sobre-tudo, na precarização da vida do estrangeiro, preocupando-se com a integração destes no mercado de trabalho.

Em 2002 o primeiro grupo de refugiados afegãos chega ao Rio Grande do Sul via reassentamento solidário. A experiência de integração revela seus impasses: o choque cultural se faz pre-sente, as distintas expectativas frente ao reassentamento fazem com que dos 23 indivíduos desembarcados, apenas 9 permaneçam em território brasileiro. No entanto, as experiências de reassenta-mento dos anos vindouros mostrariam uma crescente aceitação do trabalho de reassentamento. Desenvolvem-se novas práticas, emergem-se novos problemas.

É importante notar, sobretudo, como o centro de gravitação da temática do traumatismo desloca-se na realidade brasileira. Frente a um quadro de legitimidade diferente e uma proposta de integração

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inédita, a atenção ‘psi’ é convocada a atuar sob outra temporalidade, testemunhando e engendrando novas tramas junto aos refugiados.

Economia moral do traumatismo.

No primeiro semestre de 2011, a Associação Padre Antônio Vieira (ASAV), responsável pelo “reassentamento solidário” de refugiados admitidos pelo ACNUR no Rio Grande do Sul entra em contato com a Sigmund Freud Associação Psicanalítica com a proposição de uma parceria de trabalho junto aos refugiados. A demanda logo recai sobre a dificuldade de integração destes em suas novas moradas e mercado de trabalho.

É nesse momento preciso, em que se poderia dizer que o pior já passou, que manifestações sintomáticas (re) aparecem demons-trando que algo emperra na vida desses sujeitos. Verdadeiro para-doxo sob o olhar dos agentes sociais (que por vezes não conhecem detalhadamente as histórias pré-refúgios, uma vez que não são eles os responsáveis, nem mesmo participantes, do processo do reconhecimento do status), o sofrimento que abate os recém-che-gados lhes causa estranhamento e dúvidas: Mas não era isso o que eles queriam, a obtenção do status? Uma nova casa? Por que de re-pente eles querem ir embora? Por que não confiam mais na gente?

Vê-se precisamente no mal-estar latente a esses encontros a causa de nossa intervenção enquanto psicólogos. Esse caráter “perturbador” das relações revela algo que ultrapassa o aspecto ju-rídico de uma demanda de refúgio (processo pelo qual o sujeito pode encontrar um apoio legal e socialmente legítimo para sua pertença a uma dada comunidade) nos indicando um sujeito de-sassossegado em sua intimidade: esse sujeito que viveu muito, que viu muito, que perdeu muito carrega consigo a marca de algo que não encontra inscrição no social.

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De fato, ao anúncio de um desconforto e do desejo de migrar a uma nova cidade, algo se desestabiliza nas relações de confiança e cumplicidade entre os agentes sociais e os refugiados. A proposta de integração social apresenta-se às duas partes como um desafio árduo. Nota-se dentro desse contexto a posição ambígua que a no-ção de traumatismo ocupa nas representações dos agentes sociais sobre os refugiados. Sinteticamente, aqueles que se refugiaram a partir de situações de mortes, torturas ou sequestros são assumidos como casos ‘difíceis’, para os quais um acompanhamento terapêuti-co é necessário. Ao contrário, aqueles cujas perseguições ou ameaças realizaram-se de forma indireta ou menos violenta são tidos como sujeitos aptos a integração. Porém, que as dificuldades que advêm desse processo sejam logo remetidas aos efeitos do trauma no exílio, não nos parece uma associação tão clara, uma vez que as marcas do traumatismo não se encontram no reino do visível.

Em abril de 2012, em meio a um encontro sobre a inserção dos refugiados no mercado de trabalho rio-grandense na secreta-ria estadual do trabalho, uma psicóloga de nossa equipe apresen-tava o trabalho clínico realizado com os refugiados para os con-vidados de diversos setores públicos e privados interessados na temática. Frente à constatação de que a entrada dos refugiados nos programas de capacitação profissional não era um fato dado e que não raro estes demandavam uma relocação, muitos participantes espantavam-se com a necessidade de um atendimento específico a tais sujeitos. “O que eles precisam, e nos pedem, é trabalho!”, diziam eles. Ali, como em outros espaços de debate com os atores sociais e a sociedade civil, a noção do trauma permanece ainda sob uma forma lábil de reconhecimento social da dor do exílio, cuja “inserção profissional” lhes restituiria as inúmeras perdas decor-rentes dos constantes deslocamentos. Ora afirmada como a ver-dade da dor no refúgio, ora restrita aos casos “difíceis” de violência

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política, a noção do trauma ocupa no cenário brasileiro outra po-sição na economia moral do refúgio.

A inquietante pergunta retorna: estaríamos frente ao não reconhe-cimento das manifestações da dor do exílio, ou reeditando o quadro de suspeitas da legitimidade e discriminação frente aos refugiados?

Tomemos como exemplo o relato realizado pelo CONARE do caso NC. Uma refugiada da América Latina cuja integração não encontrou seus meios.

A referida refugiada recebeu aulas de português por três meses, conforme previa o programa de inte-gração. Mais tarde, diante das dificuldades, seguiu ten-do aulas particulares. Também lhe foi oferecido um curso de capacitação na área do turismo, uma vez que a ONG percebeu que poderia aproveitar a fluência da refugiada no idioma espanhol para trabalhar na área do turismo, mais especificamente em hotelaria. O melhor curso do Brasil foi-lhe pago pelo programa, mas NC decidiu que não gostava da área e não queria trabalhar para ganhar o salário que lhe seria pago. Vale lembrar que o aluguel e a subsistência de NC estão sob as ex-pensas do projeto até o presente momento. NC decla-ra-se infeliz em viver no Brasil, pois aqui não enxerga uma oportunidade de melhora de vida tal qual espe-rava. Este caso parece evidenciar a falta de elementos chaves para o sucesso da integração num terceiro país: a vontade e a flexibilidade. (p. 113. Leão, 2011)

O diagnóstico do documento oficial do CONARE estabelece uma relação direta entre a dificuldade na integração e a responsabili-dade individual da solicitante. Nenhuma constatação aponta à noção de traumatismo e das dificuldades de elaboração do exílio, mesmo que seja senso comum que um acompanhamento psicológico seja necessário em certos casos. Ora, um deslizamento semântico parece ocorrer de forma sistemática frente às dificuldades de integração. A

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quebra da confiança, a ingratidão, o fracasso abatem ambos os lados da relação no processo de reassentamento, seja a equipe, seja o sujeito/família em reassentamento. A economia moral do traumatismo junto aos refugiados parece jogar com esse perigo latente a todo o momen-to. ‘Vontade’ e ‘flexibilidade’, não são vistos sob a ótica de um sujei-to cujo sofrimento implica uma desestabilização subjetiva, mas são reabsorvidos à esfera moral de um “sujeito refugiado ideal”. Aquele que sofre, mas se integra socialmente a partir de capacitações técnicas necessárias a inserção no mercado de trabalho.

A apropriação social da noção de trauma e sua absorção dentro de economia moral sobre a vida dos refugiados aparecem aqui sob diferentes modulações se comparadas ao contexto francês. Estamos longe dos certificados médico-psicológicos em que a própria produ-ção da prova do trauma engendra a possibilidade de entrada e quiçá de legitimidade do refugiado no social. O choque cultural e a elabora-ção do sofrimento do refúgio oscilam ainda em torno de uma ambí-gua noção do trauma, frente a qual a inserção no mercado de trabalho poderia reconstituir-lhe sua função e posição social de outrora.

A clínica psicanalítica quando chamada a intervir junto aos refugiados, que demonstram traços peculiares de sofrimento, incorre no risco de responder a esta demanda de “integração” e “inserção”, tamponando assim o mal-estar produzido em tais encontros e desafios. Frente a tal contexto, um trabalho junto aos agentes sociais revelou-se extremamente pertinente, uma vez que coletivamente pode-se discutir a inquietante familiaridade que tanto nos conecta quanto nos repele no encontro com os re-fugiados. Através desse espaço outro, almejamos realizar aquilo que Christian Lachal (2006) alcunha como a partilha do trau-matismo, onde a dimensão transcultural do refúgio toma parte importante do trabalho de acesso à fala e a herança simbólica de tais sujeitos.

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58 Pensando as tramas e enlaces da clínica com refugiados

É a partir de tais espaços que se instaura a possibilidade efe-tiva de um trabalho psíquico do exílio: onde podemos resgatar a possibilidade desses indivíduos verem-se enquanto sujeitos de suas experiências, e a narrativa forja a capacidade de ficcionar aquilo cuja inscrição psíquica é borrada pelo traumático.

Não por acaso uma necessidade de Trabalho, mas um trabalho de elaboração das travessias do exílio que passa tanto pela elaboração psíquica individual como pela inscrição social do refugiado na cultura.

Bibliografia

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59Clínica com refugiados: o exílio e suas travessias

Clínica com refugiados: o exílio e suas travessias

Alexei Indursky15

Daniela Trois Feijó16

Liege Didonet17

Buendía!É um prazer partilhar dessas novas marcas, da SIG Revista

de Psicanálise e do Projeto SIG Intervenções Psicanalíticas. Na travessia com a Karen e a equipe do Programa de Reassentamento Solidário, juntamo-nos – Alexei Indursky, Daniela Feijó e Liege Didonet – para atender a uma família de refugiados, por uma hora e meia, uma vez por semana durante os últimos meses de 2010. Já era dezembro quando Mademoiselle Marie, a filha mais velha de Renée, trazia nas mãos Cem Anos de Solidão.

E é na companhia de Gabriel García Marquez que construí-mos nosso breve relato sobre os atendimentos que, assim como a obra do Nobel de literatura colombiano, eram feitos de narrativas que soavam aos nossos ouvidos como realismo fantástico, estilo literário em que se misturam realidade e fantasia.

15 Psicólogo, participante do Projeto SIG Intervenções Psicanalíticas16 Psicóloga, psicanalista em formação SIG, participante do Projeto SIG Intervenções Psica-nalíticas17 Psicóloga, psicanalista em formação SIG, participante do Projeto SIG Intervenções Psica-nalíticas

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60 Clínica com refugiados: o exílio e suas travessias

Assombrados pelos fantasmas do incesto e do assassinato de Prudêncio, o casal Buendía-Iguarán e seus amigos deixaram Rio-hacha e, antes mesmo de ver o mar, abriram clareiras às margens frescas de um rio e fundaram Macondo.

Renée, seu segundo marido e seus filhos Mademoiselle Marie, Johnny e William, também atravessaram céus e serras até che-gar à terra tupiniquim prometida. À Marie faltou prudência. “É por causa dela que estamos aqui. Mas ela pagará cada centavo”. A mãe calou-se diante desta sentença do padrasto no primeiro e raro atendimento em que compareceram, pois logo estariam mui-to ocupados com o novo trabalho.

Rebeca, uma indiazinha de 11 anos que chegara sozinha a Macondo se punha a comer terra como que reagindo a essa con-dição de desenraizamento. Comia terra e as cascas das paredes da casa dos Buendía, em detrimento de palavras e narrativas que pudessem dizer de sua história perdida. Ninguém lhe conhecia, tampouco ela respondia para seus interlocutores.

A família também chega ao Brasil desenraizada, sem conhe-cer ninguém, nem lugar algum, destituída de seu solo natal, fa-lam a língua materna que anuncia a sua estrangeiridade. E, assim como Rebeca, não encontram muitas palavras para dizer do que se passou em suas vidas.

Ao falar em espanhol, o sotaque marca o lugar estrangeiro que ocupamos em relação a eles. As estrangeridades se tornam algo familiar e inicia-se a charla, que não é papo à toa e nem conversa jogada fora.

Circula ali, nas afirmações de que o lugar em que vivem agora é muito mais feio, sujo, violento e perigoso do que aquele em que nasceram e do qual tiveram que escapar para salvar suas vidas. E seguem contando das maravilhas da culinária, dos ingredientes que aqui não serão encontrados. Aos poucos, e

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quem sabe com fome e sede de saber, perguntam sobre os há-bitos de quem é daqui. E, com a possibilidade de saborear o gosto bom, o ruim, que parecia ficar como residual, foi poden-do ser contado.

Mademoiselle Marie, Johnny e William, ao chegarem atra-sados semana após semana, contam que não conseguem dormir, passam as noites em claro em frente à televisão.

Lá em Macondo, depois de um tempo, Rebeca começara a desenvolver outro comportamento um tanto quanto inusual: a in-sônia. E a índia Visitación (o nome por si só já indica uma posição curiosa), explica aos Buendia sobre a enfermidade da insônia:

A índia, porém, explicou a eles que o mais ter-rível da enfermidade da insônia não era a impossi-bilidade de dormir, pois o corpo não sentia cansaço algum, mas sua inexorável evolução rumo a uma manifestação mais crítica: o esquecimento. Queria dizer que quando o enfermo se acostumava com seu estado de vigília, começavam a se apagar de sua me-mória as recordações da infância, depois o nome e a noção das coisas, e por último a identidade das pes-soas e a consciência do próprio ser, até afundar numa espécie de idiotice sem passado (García Marquez, 1928/2011, p. 85).

A Psicanálise vem nos dizer que é dormindo que se lembra do esquecido e que se realizam desejos nos sonhos. Contudo, os sonhos também podem ser sonhos traumáticos. A experiência que levou ao exílio de toda a família talvez emergisse nos sonhos de quem a viveu. Uns não dormem para não esquecer; outros, talvez, não durmam para não reviver o traumático.

Como transformar o mortífero sem perder-se de quem se é? De quem se foi? De onde se veio?

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As propagandas de Melquíades e dos outros ciganos parecem representar soluções para estes justos desejos:

... o mico amestrado que adivinhava o pensa-mento, a máquina múltipla que servia ao mesmo tempo para pregar botões e baixar a febre, e o apare-lho para esquecer as más lembranças, e o emplastro para enganar o tempo, e um milhar de invenções a mais, tão engenhosas e insólitas que José Arcádio Buendía bem que gostaria de inventar a máquina da memória para poder se lembrar de todas elas (Gar-cía Marquez, 1928/2011, p.58).

E, ainda no vilarejo da ficção, a lupa e a luneta faziam parecer que “a ciência havia eliminado todas as distâncias” e que “daqui a pouco o homem vai poder ver o que acontece em qualquer lugar da terra sem sair de casa”.

Mesmo sem o dom de ler pensamentos nem de eliminar dis-tâncias, sabemos que para esquecer é preciso relembrar, perguntar--se, construir uma narrativa própria. Estávamos lá com o intuito de escutar o que disso fosse possível.

Quando o pirata Francis Drake assaltou Rio-hacha, no século XV, a bisavó de Úrsula Iguarán se assustou tanto com o ressoar do sinal de alarme e o estampido dos canhões que perdeu o controle dos nervos e sentou-se no fogão aceso. As queimaduras a deixaram transformada em uma esposa inútil pelo resto da vida. Não podia sentar-se a não ser meio de lado, acomodada em almofadas, e alguma coisa estranha deve ter ficado em seu modo de andar, por-que nunca mais tornou a caminhar em público. Re-nunciou a todo tipo de hábito social obcecada pela ideia de que seu corpo soltava um cheiro de coisa chamuscada. O alvorecer a surpreendia no quintal sem se atrever a dormir, porque sonhava que os in-

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gleses com seus cães ferozes entravam pela janela do quarto e a submetiam a vergonhosos tormentos com ferros em brasa viva. Seu marido, um comerciante aragonês com quem ela tinha dois filhos, gastou meia loja em remédios e entretenimentos buscando a maneira de aliviar seus terrores. No fim, liquidou o negócio e levou a família para viver longe do mar, numa aldeia de índios pacíficos situada nas encostas da serra, onde construiu para a mulher um quarto sem janelas para que os piratas de seus pesadelos não tivessem por onde entrar (García Marquez, 1928/2011, p. 61).

Quando invadiram a casa da bisavó de Mademoiselle Marie há muitos anos atrás, ela ficou tão assustada que derramou uma panela de água fervente sobre si mesma. É contado que este gesto a salvou, pois, devido às queimaduras, ela não foi levada com o resto de sua família. Mademoiselle Marie, Johnny e William nos contaram esta estória certa sessão em que se queixavam de bolhas que tinham nas solas dos pés, o que os estava ora atrasando, e ora os impedindo de virem às sessões. Eles contaram que essas bolhas eram uma herança da bisavó, que nunca conseguiu curar-se total-mente e por isso as foi passando de geração em geração, cada vez um pouco mais brandas, por isso o caçula seria quem menos sofria com elas.

Muitas gerações depois do assalto do pirata Francis Drake em Riohacha, Amaranta, terceira filha de José Arcádio Buendía e Úrsula, volta a queimar a pele, desta vez como penitência, após o suicídio de um pretendente frustrado que entristeceu muito a sua mãe:

De sua cama ouviu o pranto de Úrsula, os pas-sos e murmúrios da multidão que invadiu a casa, os uivos das carpideiras, e depois um profundo silêncio

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com perfume de flores pisoteadas. Durante muito tempo continuou sentindo o hálito de lavanda de Pietro Crespi no entardecer, mas teve forças para não sucumbir ao delírio. Úrsula abandonou-a. Nem mesmo levantou os olhos para apiedar-se dela na tarde em que Amaranta entrou na cozinha e pôs as mãos nas brasas do fogão, até doer tanto que não sentiu mais dor e sim a pestilência de sua própria carne chamuscada. Foi uma dose de cavalo contra o remorso. Durante vários dias andou pela casa com a mão metida num pote cheio de claras de ovos, e quando as queimaduras sararam foi como se as cla-ras de ovo também tivessem cicatrizado as úlceras de seu coração. A única marca externa que a tragédia lhe deixou foi a venda de gaze negra que pôs na mão queimada, e que haveria de usar até a morte (García Marquez, 1928/2011, p. 150).

Então as queimaduras que viraram bolhas são a marca daqui-lo que ficou livre, ou desligou-se, e está posto no corpo porque não encontrou lugar na palavra, numa repetição transgeracional do trau-mático. O que salvou a vida da bisavó também pode estar impedindo os bisnetos de entregarem-se às suas facções mortíferas, mas também dói, é desconfortável e dificulta que se movimentem na e para a vida.

Em Macondo, Melquíades foi por muito tempo a esperan-ça dos Buendía, vendendo soluções desejáveis. Em Porto Alegre, Marie, Johnny e William lamentam estarem tão distantes de Dr Hollywood. Pois ele sim seria capaz de curá-los de seus males no eu-pele. E lembram, com ênfase, que o Dr do suposto saber era brasileiro! Estariam eles demandando: curem-nos?! Curem-nos de nossas dores?!

E também estariam reconhecendo a capacidade de realização de um estrangeiro, estariam eles acreditando em si mesmos viven-do longe de casa?

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65Clínica com refugiados: o exílio e suas travessias

Os três irmãos, aos poucos, foram deixando de ir aos atendi-mentos. Eles começaram a trabalhar porque estavam conseguindo acordar de manhã porque estavam conseguindo dormir à noite. Será que também estavam amando?

Eles puderam contar conosco no espaço-tempo da sessão para, através da palavra, desnaturalizar os fatos e os atos. Sair da ficção total e perguntar, perguntar-se: será sonho, ilusão, ou reali-dade misteriosa para a qual buscam alguma apropriação?

Tomando ainda a definição literária de Menalton Braff (2010) e Celia Rodrigues, que os sujeitos dessa família possam narrar as suas histórias mais ao estilo do realismo fantástico “questionado” de Hoffmann (Der Sandmann, 1816) do que o fantástico “natura-lizado” de Gabriel García Marquez.

REFERÊNCIAS

Braff, M. (2010). Gabriel García Marquez, o mago. Revista Cult (On line). Disponível: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/gabriel--garcia-marquez-o-mago/García Marquez, G. (2011). Cem anos de solidão. Rio de Janeiro: Re-cord. (Original publicado em 1928)

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67Entre-Atos: Psicanálise, Arte e Saúde Coletiva

Entre-Atos: Psicanálise, Arte e Saúde Coletiva

Ana Lúcia Mandelli de Marsillac18

Divido este texto em 3 atos: 1º ato: Entre-lugares, 2º Coletivo e 3º Ato analítico e Ato em Saúde Coletiva.

1º Ato: Entre-lugares

O Crítico cultural Homi Bhabha, trabalha com o conceito de “entre-lugares” que pode ser pensado como um conceito fer-ramenta, enquanto espaço de articulação de diferenças culturais. Bhabha analisa que é neste ponto de encontro que precisamos focar nosso olhar, pois é neste ponto, neste nó da rede, que se dá a formação do novo. Novo que não é o absolutamente inovador, mas que é construído em uma trama temporal, resgate do pas-sado, critica ao presente, ideais a serem alcançados. O novo é criação singular, neste sentido inédito. Diferença, na repetição. Entre-lugares é tenso embate entre fronteiras: passado-presente; eu-outro público-privado, coletivo-individual. O Entre-Lugares é excedente da soma das partes da diferença, é algo que se cria para além.

18 Psicóloga. Doutora em Artes Visuais pela UFRGS. Membro da equipe de coordenação da Residência Integrada em Saúde Escola de Saúde Pública/SES-RS.

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68 Entre-Atos: Psicanálise, Arte e Saúde Coletiva

Mas neste texto me refiro em especial ao entre-atos, que guar-da a lógica dos encontros proposta por Bhabha, mas debruça-se, especificamente aos atos, ao saber-fazer de um sujeito referido a um determinado campo de saber. Pretendo colocar em questão o ato analítico e suas interfaces com o que convém chamar ato em saúde coletiva. Haveria um ato específico desse campo de saber? Campo este, híbrido por excelência, que convoca o trabalhador dos mais diversos núcleos profissionais a posicionar-se dentro de determinado campo, que comporta regras e ideais compartilha-dos. O ato analítico ganharia contornos específicos nesse contex-to, no necessário encontro com esse outro ato?

Ao nomear entre-atos, também busco sublinhar a teatralida-de, a cena que sustenta todo ato. Dentro de um mesmo campo, no caso a psicanálise, diferentes cenas, diferentes contextos, implicam em diferentes estratégias e, assim, em diferentes atos. O ato analí-tico no setting terapêutico individual, certamente é diverso do ato analítico em um contexto institucional, ainda que pautados sobre uma mesma ética.

Entre-atos, também remete a ficcionalidade que sustenta o humano, ficcionalidade que sustenta o desejo e o encontro com o outro. Freud, ao debruçar-se sobre o Inconsciente descentra o sujeito do campo exclusivo da razão. A psicanálise aprofunda a ferida narcísica do homem, revelando que ele não é senhor em sua própria casa. o Inconsciente o ultrapassa, fazendo-o dizer mais e também menos do que conscientemente gostaria.

A verdade Inconsciente difere do saber. Este refere-se a um campo: campo da psicanálise, das artes, da saúde coletiva, .... O saber nos defende da multiplicidade da vida, nos auxilia a ver a realidade, recortá-la, suportá-la, ... A verdade é o singular, nesse sentido não há A verdade, mas verdades singulares, que dizem da trama Inconsciente. Essa verdade é construída pelo sujeito e man-

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69Entre-Atos: Psicanálise, Arte e Saúde Coletiva

tém uma estrutura de ficção. Jacques Lacan, em seu seminário sobre: A ética da psicanálise, afirma que a realidade não é o oposto do ilusório, fictício. A realidade é ficcional. Nesse sentido, psica-nalistas, mas também todos os profissionais da saúde debruçam--se sobre o ficcional, debruçam-se sobre as mais diversas formas de ser, sobre as mais diversas formas do mal-estar que acometem os sujeitos, em uma determinada época.

Os saberes que tendem a ler os sintomas como mal estar que afetam exclusivamente o corpo orgânico, reduzem o sujeito, usuá-rio do sistema de saúde, a objeto, a máquina. Colocam em segun-do plano a história, o contexto e o saber do sujeito sobre seu mal estar. Entre-atos é encontro entre saber técnico e saber popular, entendendo o saber em sua inexorável condição defensiva e par-cial, auxiliando-nos a lidar com o mal-estar inerente ao humano.

Entre-lugares refere-se também a encontros entre campos de saberes. Psicanálise, Arte e Saúde Coletiva são determinados por universos simbólicos, imaginários e Real que constituem o que eles vêm a ser. Quanto mais fechado um campo, mais regras ele comporta, mais ideais de pureza ele vislumbra. Entre-lugares, remete-me a pensar na porosidade necessária a cada campo, para de fato colocar em ato a tão idealizada transdisciplinariedade.

Freud ao criar a Psicanálise, delimitava suas fronteiras, o con-ceito de Inconsciente coletivo, junguiano, por exemplo não fazia parte do que vinha a ser a psicanálise. O inconsciente se constitui no coletivo, mas não nasce com o sujeito. O inconsciente , tal como uma rede, vai sendo tecido antes mesmo do sujeito nascer, pelo dis-curso dos pais, pelo contexto e continua sendo tecido ao longo da vida do sujeito. Nesse sentido, a psicanálise é um saber sobre o sin-gular, diretamente imbricado com o coletivo e com o ficcional. O campo da psicanálise nasce com Freud em constante dialogo com o discurso do seu tempo, a arte, a filosofia, a religião e a ciência.

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70 Entre-Atos: Psicanálise, Arte e Saúde Coletiva

Como afirma Homi Bhabha é no entre-lugares que o novo entra no mundo.

Entre-lugares, é entre o saber técnico e o saber cultural, saber cotidiano, saber sobre a vida. É o lugar onde o ato em saúde pres-supõe sujeitos ativos, protagonistas, éticos e responsáveis. Onde o ato em saúde, torna-se mais potente, trabalhando com um resgate do saber/poder de todos os sujeitos envolvidos. É no entre-lugares que se torna possível perguntar: Que hipóteses o usuário faz so-bre seus sintomas?, Quais as formas de qualificar o processo de trabalho, a partir dos diversos saberes que compõem uma equipe multiprofissional?, Que habilidades e que ética precisam ser trans-mitidas e compartilhadas? Trata-se de um resgate da dimensão política do ato em saúde e do humano. Nesta via, fortalecemos redes, encontros e a formação de coletivos. Entendo que é nesta via que a saúde pode contribuir para uma nova sociedade.

2º Ato: Coletivo

Como, precisamente, analisa o sociólogo Zigmunt Bauman: “A liberdade individual só pode ser produto do trabalho coletivo” (2000, p. 15).

Para refletir sobre o coletivo, é preciso situar o contexto de que se trata, pois inevitavelmente a concepção de coletivo vincula--se a um determinado tempo. Podemos nos remeter aos anos 70 no Brasil. Havia um coletivo crítico, que se rebelava contra os ditames ditatoriais. Das mais diversas formas, manifestam sua cri-tica e buscavam ativamente, constituir coletivos, criar brechas de liberdade. Nesta época, o artista pernambucano, Paulo Bruscky fomenta a rede de arte postal internamente no Brasil e no exterior com artistas da Argentina, Chile, Alemanha Oriental, Espanha, Estados Unidos, buscando constituir um coletivo.

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71Entre-Atos: Psicanálise, Arte e Saúde Coletiva

A arte postal é uma arte em trânsito que acontece no processo de troca e circulação. A arte correio já vinha acontecendo, desde os anos 60, em várias partes do mundo, mas ganhava contornos especí-ficos, nos locais onde vigoravam regimes ditatoriais. A arte correio, como bem precisa Paulo Bruscky, vale-se da instituição correio para criar e para subverter. Transcende o uso de postais, valendo-se dos mais diversos suportes: envelopes, cartas, postais, telegramas, discos, filmes ... Em um tempo permeado pela censura e pela violência, a arte postal era um grito de liberdade, fazia redes, trocava infor-mações. Paulo Bruscky, funcionário do antigo INPS, valia-se em algumas de suas obras do imaginário e dos símbolos da saúde, para promover saúde. Arte eminentemente política, à medida em que lança o posicionamento de um em uma rede de interlocutores.

Paulo Bruscky, S. O. S., 1977. Acervo MAC-USP.

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72 Entre-Atos: Psicanálise, Arte e Saúde Coletiva

Paulo Bruscky, Da série Envelopes, 1976.

Paulo Bruscky, S.O.S., 1977.

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73Entre-Atos: Psicanálise, Arte e Saúde Coletiva

Paulo Bruscky, Telegramarte, 1977.

Paulo Brsucky, Da Série: Autum Radium Retratum, 1976.

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74 Entre-Atos: Psicanálise, Arte e Saúde Coletiva

Paulo Bruscky, Tratamento Fora de Domicílio, 1974.

Paulo Bruscky, Diagnóstico: Arte, 1978.

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75Entre-Atos: Psicanálise, Arte e Saúde Coletiva

Não por acaso, é nesta década que se iniciam, nas conferencias nacionais de saúde, discussões que gestam o que viria a ser o SUS. Sistema modelo, reconhecido mundialmente por seus princípios e ideais. Entretanto, inegavelmente, ainda precisamos avançar mais na prática, nas estratégias de como fazer?

O avanço da democracia associado às rupturas contemporâ-neas com os princípios tradicionais (tradição familiar, religiosa, moral, ...) que cerceavam a liberdade e definiam o futuro, leva-ram a crer em uma falsa autonomia do sujeito e de suas produ-ções. Com frágeis parâmetros históricos a se nortear, seja a favor ou contra eles, e diante da falência dos ideais utópicos coletivos, como por exemplo a liberdade de expressão nos anos 70, torna-se muito mais fácil colar-se aos discursos neoliberais, que associam a liberdade de escolhas às possibilidades do ter.

Destaco, assim, na atualidade, o grave sintoma social do in-dividualismo, que se mascara atrás de um discurso libertário, vin-culado, entretanto, exclusivamente ao bem privado e não público. Liberdade de escolhas, de investimentos, porém, escassez de es-peranças frente aos valores coletivos. Quanto a isso é freqüente o discurso de que não há nada a ser feito, uma vez que independe da vontade individual. Enquanto isso, vemos o aumento crescente da desigualdade e da violência.

Na Contemporaneidade, estamos em meio à lógica da comu-nicação e das redes. O desapego às tradições demarca ainda mais uma impossibilidade de fixarmos e engessarmos as culturas e, até mesmo, o que vem a ser entendido como comunidade. Nesse sen-tido, entendo ser mais apropriado pensarmos que comunidades se constroem, através de traços culturais e laços sociais, os quais se constituem e são constituídos pelos agentes em um determinado contexto. Tratando-se, dessa forma, de categorias flexíveis e mu-táveis.

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76 Entre-Atos: Psicanálise, Arte e Saúde Coletiva

Laços Culturais que são constituídos, cristalizados e recons-tituídos de forma singular. Sabendo que o singular é aquilo que pode ser compartilhado com o outro, é justamente o que faz laço social. Diferentemente da ordem do individual, o singular resgata o passado e busca transmitir, compartilhar essa história, já ressig-nificada pelo sujeito. Podemos pensá-lo como um traço constitu-ído pelas memórias que restam das trocas cotidianas, pelo nome próprio, pela língua materna, pelo pertencimento a determinado território, que carrega consigo outras tantas singularidades. Mas a singularidade também é tropeço, no sentido da repetição, que nos parece dominar: insistência de uma lógica significante, sintoma.

Nossa relação com a cultura e com os coletivos dizem dos modos como experimentamos e construímos a vida. Um claro exemplo disso é a forma como se tende a “consumir” a cultura na contemporaneidade, em um excesso de estímulos, em curto es-paço de tempo. Se por um lado isto diz da lógica das redes, das conexões, certamente diz também da lógica do consumo e do bem privado, que marcam nosso tempo.

Na clínica individual também se trabalha com cultura e com o coletivo, não apenas nos trabalhos nas comunidades, com grupos, contemplando traços loco-regionais. A clínica ampliada e a co-gestão, dispositivos preconizados pela Política Nacional de Humanização do SUS, pressupõem a valorização das singularidades, da cultura e dos coletivos. Propõe-se o trabalho em saúde na perspectiva de resgate de sujeitos ativos e protagonistas, não de um humanismo, assisten-cialista, que tende a aprofundar o assujeitamento. Nessa perspectiva a saúde coletiva aproxima-se da ética da psicanálise, que não busca um bem maior para o sujeito, mas que ele seja responsável pelo seu desejo.

Mas o que seria o coletivo na contemporaneidade sobre o qual vem se debruçar psicanalistas e muitos outros profissionais da saúde no campo da saúde coletiva?

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Em um contexto marcado pelo ter, pelo consumo, pela lógica do prazer em tempo integral, os coletivos se enfraquecem. Em um mundo em que supomos ter liberdade de escolhas, uma vez despidos dos grilhões da tradição, faltam-nos causas coletivas e sobram-nos interesses individuais. Confunde-se atualmente sin-gularidade com individualidade, conceitos que afastam-se radical-mente quando refletimos que o singular constitui-se no coletivo, em um processo histórico e contextual e o individual pressupõe prescindir dele.

O coletivo se enfraquece, quando a causalidade do mal-estar recai exclusivamente sobre o orgânico. Hoje em dia, os graves sin-tomas da depressão e da drogadição são, de modo geral, tomados como questões puramente orgânicas e químicas. Este viés de lei-tura, tende a culpabilizar o sujeito por sua fraqueza, insuficiência pessoal de não conseguir responder às exigências que a contem-poraneidade lhe faz. Ao nomear e medicalizar excessivamente os sintomas, corrobora-se com imaginários sociais de respostas rápi-das ao mal estar. Colam-se subjetividades a universos imaginários alienantes, onde se passa a definir precisamente quem é o louco, quem é o drogado, quem é o deprimido, o hiperativo, o psicótico; prática que se intensifica com o passar dos anos. Em um mesmo gesto, objetaliza-se o sujeito e desresponsabiliza-se o coletivo de refletir sobre sua implicação. Corrobora-se com uma cultura indi-vidualista e com a exclusão social.

Frente ao ideal de beleza, juventude e fortuna, alguns se retra-em, buscam ser nada, ou um nada; outros, repetindo e reproduzin-do a lógica dominante consomem, buscam alivio rápido contra o mal-estar, colocam a droga na suplência de si. Ao não pensar sobre esses sintomas, a sociedade nega sua implicação e nesse mesmo gesto não constitui coletivos. A psicanálise, em uma postura cri-tica e calcada em outra ética, coloca sempre o sujeito em questão.

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Cabe ressaltar, entretanto, que não se trata de uma ode ao sujeito, mas da condição radical de incompletude que constitui os sujeitos e coletivos, assim desejantes.

O coletivo que adjetiva a saúde não visa apagar as singulari-dades, pois entende-as em relação de contigüidade com o coletivo. Coletivo e singular desdobram-se um do outro como na fita de moebius. A saúde do sujeito está imbricada com sua história, seu contexto e sua forma de experenciar o coletivo.

Como bem propõe a Política Nacional de Humanizaçao do SUS, o modelo de gestão proposto pelo SUS está diretamente imbricado com o modelo de atenção. A organização do sistema tendo a atenção básica como eixo norteador, decorre da necessária vinculação do profissional de saúde com o contexto em que o su-jeito vive e estabelece suas trocas com o outro, com a comunidade. Trabalha-se na perspectiva do território, como espaço de trocas e de produção de saberes. Vincula-se a concepção de saúde para além da doença e, nesse sentido, fala-se em promoção de saúde, fortalecendo laços com e entre a comunidade.

A desinstitucionalizaçao dos usuários das instituições mani-comiais está imersa no campo da saúde mental coletiva, porque é indissociada da concepção de coletivo que se almeja. Não um co-letivo de iguais, mas um coletivo de singularidades, as mais diver-sas, quanto forem os sujeitos. Não há cuidado na clausura, não há recuperação e promoção de saúde, onde não há liberdade. Ainda que limitada aos universos simbólicos de uma determinada época, a liberdade é prerrogativa da condição de sujeito e de coletivo. O cuidado não é prerrogativa exclusiva do profissional da saúde, ele é responsabilidade social, pois somos todos responsáveis pelo nosso contexto, seja através de nossos atos, seja pela nossa omissão. A desisnstitucionalização, dessa forma, prevê o cuidado imbricado na trama da cidade, atrelado à serviços substitutivos, que guardam

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relação com os ideais da atenção básica, do cuidado no território. Associa-se o saber técnico ao desejo singular, associa-se cuidado na comunidade e nos serviços de saúde.

Uma emocionante experiência em saúde coletiva e arte, foi re-alizada pelo coletivo Rádio Nikosia, em 2011, em Barcelona. Co-letivo de diagnosticados e não-diagnosticados em saúde mental, como denominado por eles. Iniciam seus laços pela experiência de rádio aberta e ampliam suas estratégias de promoção de saúde com um atelier/oficina de arte. O nome do projeto é: “Arte Niko-sia, imagens e vozes que constroem cidadania”. Um coletivo que se encontra semanalmente para fazer sua arte e debater sobre seu processo criativo, sob mediação de uma artista plástica, com lar-ga experiência em saúde mental coletiva, Fabiana Rossarola. Arte como forma de promoção da saúde, como forma de sublimação do mal estar. Não é arte como entretenimento, como ocupação para diagnosticados, mas arte que desacomoda, que possibilita novas formas de si.

Este coletivo, que passa a ser reconhecido socialmente, foi convidado pelo Museu Picasso a propor uma atividade comunitá-ria na cidade. Refletiram sobre a proposição a ser feita, realizaram oficinas preparatórias com profissionais que buscaram trabalhar a concepção de corpo com o grupo e propuseram, em um espaço público contiguo ao local onde se dão as oficinas, uma oficina pú-blica e coletiva de arte e saúde, com a seguinte proposição: “Saca a Pasear tu Locura”, leva para passear tua loucura. Forneceram grandes papéis e tintas e propuseram aos participantes liberarem suas sensações e expressões do corpo, representarem isso no papel e levarem seu “corpo louco” a passear pela cidade e ser exposto onde supusessem mais conveniente!

A experiência por si só é sensível e produz saúde e coletivos, ao visitar o singular. Acresce-se de sensibilidade ao sabermos que

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os mediadores eram todos aqueles diagnosticados ou não, que co-letivamente se inserem em meio à trama da cidade, produzindo deslocamentos e releituras de si e dos outros cidadãos, que pude-ram refletir sobre a loucura que habita a todos.

Arte Nikosia, imagens e vozes que constroem cidadania, Registro da ação: Saca a pasear tu locura, Barcelona, 2011.

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Arte Nikosia, imagens e vozes que constroem cidadania, Registro da ação: Saca a pasear tu locura, Barcelona, 2011.

Arte Nikosia, imagens e vozes que constroem cidadania, Registro da ação: Saca a pasear tu locura, Barcelona, 2011.

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Arte Nikosia, imagens e vozes que constroem cidadania, Registro da ação: Saca a pasear tu locura, Barcelona, 2011.

3o Ato: Ato analítico e ato em saúde coletiva

A partilha do sensível faz ver quem pode to-mar parte no comum em função daquilo que faz, do tempo e do espaço em que esta atividade se exerce. Assim, ter esta ou aquela “ocupação” define compe-tências ou incompetências para o comum. Define o fato de ser ou não visível num espaço comum, dota-do de uma palavra comum etc. Existe portanto, na base da política, uma “estética [...] (RANCIÈRE, 2005, p. 16).

O filósofo francês, Jacques Rancière, reflete sobre a dimensão política do fazer, eu acrescentaria do saber-fazer, a partir do bri-lhante conceito de partilha do sensível. Partilha que remete à idéia

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de herança e, neste sentido, a algo que se herda e que se divide entre aqueles que têm direito. Mas, na medida em que, de fato, nem todos tem os mesmos direitos, a partilha se dá de diferentes formas. O conceito de Rancière é preciso, porque, ao se falar sobre saber-fazer e sobre política, necessariamente, temos que pensar em uma herança simbólica que se transmite de forma singular, tendo em vista que cada um se apropria, diferentemente, do con-texto histórico e ocupa, no laço social, posições distintas.

Ao acrescentar à concepção de partilha, o conceito de sensível, Jacques Rancière, avança ainda mais e nos lembra que, intrinseca-mente, atrelada à concepção de fazer e de política, está a sensibili-dade. Na base da política e do saber-fazer, há uma estética, que diz das formas de se colocar frente ao comum. A sensibilidade está na forma de transmitir, de se posicionar frente ao coletivo. Partilha do sensível diz de uma certa divisão no laço social, em que os su-jeitos, como em um jogo, ocupam posições diferentes e se ocupam do comum de diferentes formas em função daquilo que fazem.

Rancière leva o conceito de política para a vida cotidiana, para o laço social, para o fazer do sujeito. Sempre que se ocupa do que é comum, se está fazendo política. Entretanto, não se pode esquecer, que o laço social é permeado pelo imaginário em sua condição alienante, permeado pelos jogos de poder. As divisões hierárquicas, por exemplo, são um meio de desqualificar a palavra de alguns em detrimento da valorização da palavra e dos atos de outros, supostamente, detentores da verdade.

Lacan analisa, em seu seminário O Sinthoma, que: “não se é responsável senão na medida de seu saber-fazer” (p. 57) Esta frase remete aos rumos que conferimos ao nosso saber. Compreender é uma face possível do nosso saber, mas nosso saber-fazer precisa realizar cortes, destacar um sujeito desejante, que está para além do nosso saber.

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A psicanálise centra sua práxis sobre a linguagem, solicitan-do ao analisando que discorra livremente em suas associações. O que se escuta são discursos múltiplos, equívocos, duplos sentidos, metáforas e metonímias, que revelam a polissemia universal. O ato analítico, das mais diversas formas, consiste em fazer emergir os significantes que movimentam o sujeito. Neste ato, revela-se a sobredeterminação subjetiva inconsciente à linguagem. Descom-passo que desequilibra sentidos.

O ato analítico na saúde coletiva pode se dar das mais diversas formas, seja pela inserção do psicanalista em equipes de saúde que prestam atenção direta aos usuários, nos mais diversos pontos das redes de saúde (atenção básica, centros de atenção psicossocial/CAPS, oficinas de geração de renda, pronto atendimento, atenção ambulatorial, atenção hospitalar, equipes de matriciamento); seja em espaços de gestão das políticas de saúde e de educação em saú-de. Saímos do setting tradicional e mudamos de cena, passamos a lidar diretamente com os coletivos, com as instituições, com as corporações, mas sobretudo mantemos nossa atenção às singula-ridades e à desconstrução de lógicas-discursivas que tendem a ob-jetalizar os sujeitos, aliená-los da sua condição desejante e politica.

O ato analítico é ato de linguagem, ato simbólico que abre fendas, revela nossa inexorável alienação aos símbolos. Ao des-construir sentidos, abre-se a possibilidade de reorganização, re-significação.

“Da adversidade vivemos”, dizia Hélio Oiticica, nos anos 60. Frase exemplar da atitude que tem na esperança, seu mote e no enfrentamento, sua estratégia. Não há lugar ideal e ausên-cia de adversidades, estamos em meio a elas e é nesse sentido que a psicanálise têm muito a contribuir. A psicanálise inaugura outro olhar sobre o homem e sobre o mundo. Em constante di-álogo com outros campos de conhecimento, permanece atenta a

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seu tempo, renovando seu potencial de intervenção social. Tanto a arte quanto a psicanálise e a saúde coletiva tendem a propor o necessário enfrentamento das adversidades.

“[...] Arte e psicanálise se encontram na medida em que com-prometem o sujeito a uma atitude crítica diante da história que os produziu” (SOUSA, 2001, p.126). Diante da tendência humana às atitudes repetitivas e defensivas que tendem a nos confortar e nos manter, supostamente, no mesmo lugar, como se estivéssemos ilesos às adversidades, a psicanálise propõe uma análise crítica e ampla, como em uma rede de associações que nos conduzem aos diversos fatores e tempos que compõe determinada realida-de, instigando ao consequente enfrentamento das adversidades como elementos que nos permitem transpor. As singularidades não comportam homogeneizações. Da adversidade que permeia a vida, vivemos e nos tornamos múltiplos, a partir das mais diversas estratégias de enfrentamento, das mais diversas técnicas de cria-ção e re-criação.

O ato em saúde coletiva seria permeado pelos diversos saberes que compõem o campo, em uma perspectiva de valorização das singularidades, a saber, um dos princípios da PNH. Como bem analisa Gastão Campos, um dos desafios desse campo seria: “com-binar graus de polivalência com certo nível necessário e inevitável de especialização.” (1997, p. 248) Nesse sentido os profissionais que se dispõem a atuar no campo da saúde coletiva precisariam ter um olhar e um fazer múltiplo, sem abandonar, contudo a es-pecificidade de seu núcleo de origem, o que aqui no caso venho chamando de campo da psicanálise.

O ato em saúde coletiva contagia-se pelo ato analítico, partin-do da relação transferencial e valorizando a escuta, mas também ao desconstruir sentenças e ao valorizar a construção discursiva e ficcional do outro, fazendo cortes nas produções sintomáticas. O

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ato em saúde coletiva aproxima-se do ato analítico ao retirar os sujeitos de seus sonos cotidianos. Os sintomas, sejam eles subje-tivos ou institucionais, buscam visibilidade, buscam ser lidos em sua complexidade, pois é sobre ela que se torna possível produzir deslocamentos, promover saúde. Não há ausência de adversidades, mas é preciso encontrar estratégias para lidar com elas. É preciso ocupar-se das adversidades, debruçar-se sobre o sintoma, sobre o mal estar, para resgatar deles uma produção significante para o sujeito, para que seja possível produzir-se algo novo. O ato produz um achado, surpreende o sujeito!

O modelo dominante na atualidade substitui o saber pela infor-mação, a falta pela completude, a busca pela resposta já, o enigma do passado e do futuro pela pretensa certeza garantida do presente. A psicanálise, enquanto discurso critico, reconhece a impossibilidade de dominar completamente o mal-estar. Ele faz parte da civilização. O ato analítico busca recuperar elementos recusados na pressa por eli-minar desconfortos, os quais estão ligados entre sujeito e experiência. A experiência diz respeito a possibilidade de transpor as diferentes formas de alienação prescritas no laço social. Somente ao considerar a relação entre sujeito, coletivo e experiência, podemos situá-lo em um lugar singular nesse laço discursivo e qualificar nossos atos.

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87Entre-Atos: Psicanálise, Arte e Saúde Coletiva

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MEMBROS DO PROJETO

Alexei Conte IndurskyAlice Telmo

Almerindo BoffCristina Herbstrith

Bárbara Conte (coordenadora)Daniela BratzDaniela Feijó

Eneida Cardoso BragaGustavo Scalco

Isabel Cristina DovalKarine PrestesKarla AquinoLiege Didonet

Lisiane Molina LeffaLucas Kruger

Luciana Lopez SilvaLuísa Pesce

Marina CônsulPriscilla BuenoRafaela Degani

Simone Engbrecht