EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL Procuradoria da República no Município de Altamira EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA VARA ÚNICA DE ALTA- MIRA - ESTADO DO PARÁ O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelos Procuradores da Repú- blica ao final assinados, vem, no exercício de suas funções constitucionais e legais – art. 129, III e V, da Lei Maior, c/c art. 5º, II, b e d e 6º, VII, a e b, da Lei Complementar n.º 75/93 e, ainda, os dispositivos da Lei n.º 7.347/85 – propor a presente AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL, com pedido de li- minar,em face de 1. IBAMA - INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS –, Pessoa jurídica de Direito Público Inter- no, representada por sua Gerência-Executiva em Santarém, com endereço na Avenida Tapajós, n°2267, Laguinho, Santarém/PA – CEP – 68040-000; e 2. ELETRONORTE – CENTRAIS ELÉTRICAS DO NORTE DO BRASIL S/A, concessionária de serviços públicos de energia elétrica com sede e endere- ço no SCN- Quadra 06, Conjunto A, Blocos B e C, Brasília – DF, inscrita no CNPJ sob o n.º 00.357.038/0001-16. 1. SUMÁRIO A presente Ação tem por objeto obrigação de não fazer, para obstar o processo de licenciamento no IBAMA do empreendimento denominado Usina Hidrelétri-

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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALProcuradoria da República no Município de Altamira

EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ FEDERAL DA VARA ÚNICA DE ALTA-MIRA - ESTADO DO PARÁ

O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelos Procuradores da Repú-

blica ao final assinados, vem, no exercício de suas funções constitucionais e legais – art.

129, III e V, da Lei Maior, c/c art. 5º, II, b e d e 6º, VII, a e b, da Lei Complementar n.º

75/93 e, ainda, os dispositivos da Lei n.º 7.347/85 – propor a presente

AÇÃO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL, com pedido de li-minar,em face de

1. IBAMA - INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS –, Pessoa jurídica de Direito Público Inter-no, representada por sua Gerência-Executiva em Santarém, com endereço na Avenida Tapajós, n°2267, Laguinho, Santarém/PA – CEP – 68040-000; e

2. ELETRONORTE – CENTRAIS ELÉTRICAS DO NORTE DO BRASIL S/A, concessionária de serviços públicos de energia elétrica com sede e endere-ço no SCN- Quadra 06, Conjunto A, Blocos B e C, Brasília – DF, inscrita no CNPJ sob o n.º 00.357.038/0001-16.

1. SUMÁRIO

A presente Ação tem por objeto obrigação de não fazer, para obstar

o processo de licenciamento no IBAMA do empreendimento denominado Usina Hidrelétri-

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ca de Belo Monte, no Rio Xingu; bem como o reconhecimento de nulidade do Decreto

Legislativo n.° 788/2005, do Congresso Nacional.

2. BREVE HISTÓRICO

No ano de 2001, o MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL ajuizou Ação

Civil Pública com pedido de liminar contra a ELETRONORTE e FADESP – Fundação de

Amparo e Desenvolvimento da Pesquisa com o objeto de paralisar os estudos para a

construção da Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu. A liminar foi concedida e mantida

em todas as instâncias, inclusive perante o Supremo Tribunal Federal. A ação foi senten-

ciada procedente e se encontra hoje em grau de apelação perante o TRF-1a Região.

Entre as causas de pedir estava a necessidade de autorização do

Congresso Nacional para que os dispendiosos estudos fossem realizados, após consulta

às comunidades afetadas, nos termos do art. 231, § 3o, da CF.

A título ilustrativo, o mapa abaixo, confeccionado pela própria ELE-

TRONORTE, demonstra as principais terras indígenas afetadas:

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3. CONTEXTO ATUAL

Com a promulgação do Decreto Legislativo n.° 788/2005, estaria sa-

nado um dos defeitos do processo de implantação da HIDRELÉTRICA DE BELO MON-

TE, qual seja, a autorização do Congresso Nacional.

Ocorre que, em análise do processo legislativo que culminou com a

promulgação do ato guerreado, nota-se a existência de três graves vícios de formação

que se confundem com o mérito, a saber: i) desrespeito aos preceitos fundamentais des-

critos nos artigos 170, VI e art. 231, § 3o, ambos da CF por falta de consulta às comunida-

des afetadas; ii) desrespeito ao processo legislativo, pois houve modificação do projeto

no Senado sem retorno do mesmo à Câmara dos Deputados e; iii) ausência da lei com-

plementar dispondo sobre a forma de exploração dos recursos hídricos em área indíge-

na.

Diante desses vícios, o Procurador-Geral da República promoveu

Ação Direta de Inconstitucionalidade (doc. 01). O Supremo Tribunal Federal, por seu turno, considerou que, embora Decreto Legislativo, o ato é de efeito concreto, não podendo ser contestado pela via concentrada do controle de constitucionalidade. Foram vencidos o relator e mais 2 ministros (doc. 02).

Quase ao mesmo tempo, a ELETRONORTE solicitou ao IBAMA o li-

cenciamento da mega-obra, cujo processo encontra-se na fase de elaboração do Termo

de Referëncia.

Já estão marcadas para os próximos dias 30 e 31 de março de

2006, audiências públicas nas cidades de Altamira e Vitória do Xingu. Tudo em decorrên-

cia da expedição ilegal do infausto Decreto Legislativo.

Vejamos os vícios do Decreto Legislativo n. 788/2005, articulada-

mente.

4. DESRESPEITO AOS PRECEITOS FUNDAMENTAIS DESCRITOS NO ARTIGO 231, § 3º DA CF POR FALTA DE CONSULTA ÀS COMUNIDADES AFETADAS

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Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, os povos indí-genas obtiveram o reconhecimento de seus direitos originários sobre as terras que tradi-cionalmente ocupam (art. 231). Em conseqüência, tornou-se obrigatória a consulta a es-ses povos em casos de aproveitamento de recursos hídricos ou de exploração mineral em suas terras. A Carta Maior também reconheceu aos índios sua organização social, costumes, línguas e tradições. Em outras palavras, a lei suprema delineou as bases polí-ticas em que se devem efetivar as relações entre os diferentes povos indígenas e o Esta-do brasileiro.

É o que se depreende pela leitura do artigo 231,§ 3º da Constituição Federal, in verbis:

“O aproveitamento dos recursos hídricos, incluído os potenciais

energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indí-genas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Naci-

onal, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada parti-

cipação nos resultados da lavra, na forma da lei” (g.n.).

A CR/88 projetou, assim, para o campo jurídico, normas referentes ao reconhecimento da existência dos povos indígenas e definiu as pré-condições para a sua reprodução e continuidade. Ao reconhecer os direitos originários dos povos indíge-nas sobre as terras tradicionalmente ocupadas, a Lei Maior incorporou a tese da existên-cia de relações jurídicas entre os índios e essas terras anteriores à formação do Estado.

Não se pode pensar que tais inovações foram conseqüências da magnanimidade dos constituintes em favor dos índios. Em verdade, enquanto minorias étnicas, os povos indígenas estão protegidos por diferentes convenções internaci-onais. O Brasil é signatário de várias delas, como a Convenção 107, da OIT, a qual se orienta pela perspectiva integracionista, bem como a Convenção 169 sobre Po-vos Indígenas e Tribais, assinada em 1989 e ratificada pelo Brasil em 19/06/2002, através do Decreto Legislativo n. 142/2002. Esta convenção revela o nítido propó-sito de garantir o respeito à diversidade étnica.

Por ser um Tratado Internacional que cuida de direitos fundamentais relativos aos povos indígenas e tribais, deve ser considerado, no mínimo, como vetor de interpretação das normas constitucionais correlatas. Neste sentido é posicionamento do Ministro Sepúlveda Pertence:

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“ A Convenção 126 da OIT reforça a arguição de inconstitucionalidade: ainda quando não se queira comprometer o Tribunal com a tese da hie-rarquia constitucional dos tratados sobre direitos fundamentais ratifica-dos antes da Constituição, o mínimo a conferir-lhe é o valor de reforço à interpretação do texto constitucional que sirva melhor à sua efetividade: não é de presumir, em Constituição tão ciosa de proteção dos direitos fun-damentais quanto a nossa, a ruptura com as convenções internacio-nais que se inspiram na mesma preocupação.”(ADI 1.675-MC, Rel.-Min. Sepúlveda Pertence, DJ 19/03/03).

Como derivação lógica desse entendimento o princípio da consulta prévia previsto na referida convenção deve ser, no mínimo, um suporte para as interpre-tações que emergem do § 3º do art. 231 da Constituição Federal. Eis o dispositivo:

Artigo 6º

1. Ao aplicar as disposições da presente convenção, os governos de-verão:a) consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropri-ados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrati-vas suscetíveis de afetá-los diretamente.

No emprendimento em tela é manifesto o impacto sobre as popula-ções indígenas e, conseqüentemente emergem, com solar clareza, o desrespeito à Constituição e às normas internacionais. É nesse sentido a lição do Mestre ambientalista PAULO AFFONSO LEME MACHADO1, ao tratar do aproveitamento dos potenciais hidre-létricos:

“Especial atenção há de ter o órgão público encarregado da outorga para que a Constituição Federal seja fielmente aplicada. Três artigos da Carta Maior do País devem ser especificamente cumpridos: 1º) os espaços especialmente protegidos, como parques nacionais, estaduais e municipais, reservas biológicas, áreas de proteção ambiental, estações ecológicas, somente podem ser alterados o suprimidos mediante lei( art. 225, § 1º, III); 2º) o aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as Comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei (art. 231, § 3º); 3º) os sítios detentores de reminiscências históricas dos anti-gos quilombos foram tombados pela Constituição Federal (art.216, § 5º) e, portanto, o tombamento não pode ser modificado nem por lei, nem por de-creto.” (d.n)

1 Direito Ambiental Brasileiro, 7ª ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 382.

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Em que pese o descumprimento, o próprio Governo Federal já admitiu em seu PLANO 2015 que o empreendimento em discussão requer o cum-primento de exigências constitucionais. Sobre o assunto, é de suma relevância trazer à colação os estudos feitos pelos cientistas: BERTHA BECKER, JOSÉ ANTÔNIO S. DO NASCIMENTO e ROSA CARMINA DE S. COUTO2:

“O próprio texto do Plano 2015 reconhece que entre as muitas interferên-cias com as populações locais que a transmissão desses grandes blocos de energia irá ocasionar, a questão da população indígena se reveste de grande importância. O documento aponta para 5 casos onde os em-preendimentos estarão sujeitos a restrições constitucionais. Tais em-preendimentos são as Usinas Hidrelétricas Belo Monte, Cachoeira Por-teira, Cana Brava, Ji- Paraná e Serra Quebrada. Todos estes empreen-dimentos causarão interferências em áreas indígenas, razão pela qual estão sujeitos às restrições constitucionais. A população indí-gena a ser direta ou indiretamente afetada pela construção das hidre-létricas nestas áreas é de aproximadamente 7000 indivíduos” (fls. 120, 125 e 144).(d.n)

4.1. Dos impactos a serem experimentados pelas populações indígenas

Sem muito esforço, observa-se o quanto será intenso o impacto só-cio-ambiental-cultural que a construção da UHE BELO MONTE trará às diversas popula-ções indígenas residentes ao longo do Rio Xingu, em especial à etnia JURUNA, da T. I. PAQUIÇAMBA.

Com a interrupção do curso do rio, essas comunidades terão inúme-ros complicadores, tais como a inviabilidade de locomoção, principalmente nos períodos de seca do rio; a diminuição e provável extinção dos peixes (principal fonte alimentar), além da proliferação de diversas doenças que, se não forem controladas, podem levar a um processo de dizimação do grupo.

Esses impactos, desde a infausta concepção da UHE KARARAÔ pela ELETRONORTE há uma década atrás, já vinham sendo delineados no chamado LI-VRO VERDE, elaborado pela empreendedora há uma década atrás, como se constata a seguir:

“(...) a pesquisa efetuada em convênio com a FUNAI, inventariou um total de 1.014 índios localizados na Volta Grande do Xingu, na A I Bacajá, na Aldeia Trincheira, em Altamira, no beiradão Xingu/Iriri/Curuá e na AI Cu-ruá.Desse total cerca de 344 indivíduos serão diretamente afetados pela formação do reservatório. (...)A população indígena dessa área soma 344 pessoas, agregadas em 42 grupos familiares e em 61 famílias nucleares. Deste total, 193 pertencem ao grupo Juruna, 79 pertencem ao grupo Xipaya, 06 ao Grupo Curuya, 06 ao Grupo Arara do Xingu e 02 ao grupo Kayapó”.”

2 Organização: Sônia Barbosa Magalhães, Rosyan Caldas Brito, Edna Ramos de Castro. Energia na Amazônia, Vol .II. Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi/ Universidade Federal do Pará/ Associação das Universidades Amazônicas. 1996, p. 810.

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Essa situação gerou, à época, grande revolta em tais comunidades indígenas, as quais relutaram de todas as formas contra a construção da então UHE KA-RARAÔ. Tal resistência deu ensejo à cena que correu o mundo. A índia TU-IRA apontou seu facão para o rosto do Presidente da ELETRONORTE, JOSÉ ANTÔNIO MUNIZ, que, por coincidência, é a mesma pessoa que dirige a estatal e tenta, mais uma vez, retomar o projeto de barramento do Rio Xingu.

E nem se diga que o novo projeto da UHE BELO MONTE veio justa-mente para eliminar ou minimizar os impactos previstos para a UHE KARARAÔ, como tem afirmado o presidente da empreendedora. Não é a simples diminuição da área a ser inundada, ou a criação de dois canais de adução, que farão com que as águas cheguem na Volta Grande do Xingu com o mesmo volume e com a mesma quantidade de peixes se não houvesse essa interferência.

Os JURUNA, principal povo indígena a ser sacrificado pelos impac-tos gerados pela obra em tela, estão localizados à jusante do possível empreendimento e dependem fundamentalmente das águas do Xingu para sobreviverem. Eles sabem que, com o baixíssimo nível d’água, após o represamento, terão sérias dificuldades de tráfego, além do pescado não resistir ao calor forte de águas tão baixas. A estagnação das águas aumentará, também, o número de pragas, como ocorreu em Tucuruí, gerando, com cer-teza, sérios riscos sanitários e a proliferação de doenças como a malária naquela região.

Em estudo elaborado pelo Engenheiro e Professor RENATO LUIZ LEME LOPES, intitulado HIDRELÉTRICAS NA AMAZÔNIA – LIÇÕES DO PASSADO E PERSPECTIVAS PARA O FUTURO, há um alerta para os impactos socio-ambientais de uma UHE à jusante da barragem, exatamente onde está localizada a T.I. PAQUIÇAMBA:

“Mudança do regime das vazões;mudança da qualidade da água;alteração da composição da fauna aquática;redução da fertilidade natural das várzeas;erosão das margens”.

Quer pelo próprio reconhecimento da ELETRONORTE (Livro Ver-de), quer pelos dados científicos e conhecimento dos povos indígenas, a construção da UHE BELO MONTE necessitará do aproveitamento de recursos hídricos de Terras Indí-genas, sem esquecer os danos imensuráveis aos povos da floresta.

Urge reconhecer, por fim, que o conceito de terra indígena compreende não só a terra indígena propriamente dita, como suas adjacências (ex. rios), posto que indispensáveis à sobrevivência do grupo étnico. Trata-se do instituto jurídico

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chamado INDIGENATO. Não se vislumbra aí apenas uma questão de direito patrimonial, mas também um problema de ordem cultural.

Compartilha também desse entendimento o Mestre ISMAEL MARINHO FALCÃO3:

“(..)não é apenas indígena a terra onde se encontra edificada a casa, a maloca ou a taba indígena, como não é apenas indígena a terra onde se encontra a roça do índio. Não. A posse indígena é mais ampla, e terá que obedecer aos usos, costumes e tradições tribais, vale dizer o órgão federal de assistência ao índio, para poder afirmar a posse indígena sobre determinado trato de terra, primeiro que tudo, terá que mandar proceder ao levantamento destes usos, costumes e tradições tribais a fim de coletar elementos fáticos capazes de mostrar essa posse indígena no solo, e será de posse indígena toda a área que sirva ao índio ou ao grupo indígena para caça, para pesca, para coleta de frutos naturais, como aquela utilizada com roças, roçados, cemitério, habitação, realização de cultos tribais etc., hábitos que são índios e que, como tais, terão que ser conservados para preservação da subsistência do próprio grupo tribal.A posse indígena, pois, em síntese, se exerce sobre toda a área necessária à realização não somente das atividades economicamente úteis ao grupo tribal, como sobre aquela que lhe é propícia à realização dos seus cultos religiosos” (d.n.).

4.2.Da necessidade de Oitiva das Populações Indígenas para edição de Decreto Legislativo pelo Congresso Nacional

Em que pese a obrigação de ouvir as comunidades afetadas – que

no caso do empreendimento UHE BELO MONTE tem-se Arara, Juruna, Parakanã, Xikrin,

Xipaia-Kuruaia, Kayapó, Araweté, entre outras etnias indígenas afetadas4 –, o Congresso

Nacional não o fez. Isso é provado pela ficha de consulta de tramitação da proposição e

notas taquigráficas das sessões da Câmara dos Deputados e do Senado Federal que

discutiram e aprovaram o projeto (doc. 3).

Ao revés, o ato legislativo, em seu art. 2o, após autorizar os estudos,

“delega” sua exclusiva atribuição ao Poder Executivo:

“Art. 2o. Os estudos referidos no art. 1º deste Decreto deverão abran-ger dentre outros o seguinte:

3 Gilmar Ferreira Mendes. Domínio da União sobre as Terras Indígenas – O Parque Nacional do Xingu, , Brasília: Ministério Público Federal, 1988, p. 58.4 Pontes Jr, Felício e Beltrão, Jane Felipe, In Xingu, Barragem e Nações Indígenas, artigo publicado no livro

Tenotã-mõ. Alertas sobre as conseqüências dos projetos hidrelétricos no rio Xingu, organizado por Oswaldo Sevá Filho e editado por Glenn Switkes - São Paulo: Internacional Rivers Network, 2005. pp. 75/76.

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I – Estudo de Impacto Ambiental - EIA;...III – Estudo de natureza antropológica, atinentes às comunidades in-dígenas localizadas na área sob influência do empreendimento, de-vendo, nos termos do § 3º do art. 231 da Constituição Federal, ser ouvidas as comunidades afetadas”

O ponto nodal aqui é saber se a consulta às comunidades afetadas

é atribuição do Congresso Nacional, ou se poderia ser delegado por este ao empreende-

dor da obra, ou seja, ao Poder Executivo.

Um dos primeiros livros sobre o tema, logo após a promulgação da

Constituição Federal de 1988, foi Os Direitos Indígenas e a Constituição, coletânea de ar-

tigos. Nessa obra, a d. publicista JULIANA SANTILLI, com fulcro em DALMO DALLARI,

assim comenta o dispositivo constitucional em estudo5:

“... Certo é que o intuito do constituinte, ao determinar que sejam ‘ouvidas

as comunidades afetadas’, foi assegurar a participação das mesmas na definição de projetos econômicos a serem desenvolvidos em

suas terras, e não criar um mero entrave burocrático à obtenção de auto-

rização mineral. Assim, o Congresso Nacional, ao decidir se autoriza ou

não um determinado projeto minerário, deverá sempre levar em conside-

ração o posicionamento da comunidade indígena em relação ao mesmo, e

saber o quanto de tal decisão irá afetá-la. Nos dizeres de Dalmo Dallari:

‘Não é pura e simplesmente ouvir para matar a curiosidade, ou para ter-se uma informação relevante. Não. É ouvir para condicionar a de-

cisão. O legislador não pode tomar decisão sem conhecer, neste caso, os efeitos dessa decisão. Ele é obrigado a ouvir. Não é apenas

uma recomendação. É, na verdade, um condicionamento para o exercício

de legislar. Se elas (comunidades indígenas) demonstrarem que será tão

violento o impacto (da mineração ou da construção de hidrelétrica), será

tão agressivo que pode significar a morte de pessoas ou a morte da cultu-

ra, cria-se um obstáculo intransponível à concessão da autorização” (Infor-

me Jurídico da Comissão Pró-Índio, Ano II, nº 9 a 13, abril a agosto de

1990)”

5 Núcleo de Direitos Indígenas e Sérgio Antônio Frabris Editor, Porto Alegre, 1993, p. 149.9

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Na mesma esteira é a posição de CELSO RIBEIRO BASTOS e

IVES GANDRA MARTINS:

“O primeiro desses direitos é a exploração dos recursos mencionados só

poder ser autorizada pelo Congresso Nacional, o que vale dizer, as duas

casas do Parlamento devem manifestar-se a respeito.

O segundo aspecto é que as comunidades indígenas devem ser ouvidas,

pois a exploração poderá afetá-las.

O constituinte preferiu utilizar o verbo ‘ouvir’, o que vale dizer, a oiti-va de tais comunidades objetiva apenas permitir ao Congresso Naci-

onal os argumentos, em caso de oposição ao projeto pretendido.

As comunidades indígenas não têm, todavia, o poder de veto. Se forem

contrárias à exploração, mas se o Congresso Nacional for favorável, há de

prevalecer a opinião deste sobre a opinião das comunidades.

É de se entender, todavia, que se tal oposição decorrer de argumentos que mostram que a comunidade será extinta, a autorização poderá

ser tida por inconstitucional, em face da violação do princípio da pre-servação conformada no art. 231.”6

Ademais, a oitiva prévia das comunidades indígenas representa

uma expressa consagração daquilo que CANOTILHO chama de "direito à inclusividade":

"No campo dos direitos fundamentais existem dois grupos diferentes:1.di-

reitos dos indivíduos pertencentes às minorias;2.direitos da minorias pro-

priamente ditas. INDIVIDUO E GRUPO e GRUPO/INDIVÍDUO surgem

estreitamente relacionados. Como pessoas, não podem reivindicar outra

coisa se não a do tratamento como igual quanto aos direitos fundamen-

tais. Enquanto grupo, põe-se o problema dos direitos coletivos especiais

dada a sua identidade e forte sentimento de pertença e partilha(...)."7

Nada foi observado pelo Congresso Nacional. Nenhuma audiência

pública, nenhuma viagem de membros ao local da hidrelétrica, nenhum papel... nada que

pudesse expressar a opinião de pelo menos uma comunidade afetada.

6 Comentário à Constituiçao do Brasil. São Paulo: Saraiva, 1988, v. 8, p. 1072.7 Direito Constitucional e teoria da Constituição, 3ª edição, Lisboa, Almedina, p. 363.

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A CF/88, quando formulou a exigência de prévia oitiva das comuni-

dades para exploração de recursos hídricos, não determinou somente um procedimento

formal, mas uma garantia substancial de participação e INCLUSÃO dos indígenas no de-

bate e na tomada de decisões políticas do Estado brasileiro, quando estas puderem atin-

gir os seus direitos fundamentais (igualdade e propriedade), a partir de uma perspectiva

étnica. A forma de se dar vazão à manifestação efetiva e inclusiva das comunidades é a

oitiva prévia, pois somente esta é capaz de influenciar a decisão do órgão legislativo na-

cional.

Aliás, em análise das notas taquigráficas da sessão do Senado Federal que aprovou a proposição, a alguns senadores não passou desapercebida a curiosa pressa na sua aprovação que fez com que as comunidades afetadas não fossem ouvidas, em flagrante afronta ao princípio constitucional da participação, também consagrado no campo do Direito Ambiental:

“O Sr. LUIZ OTÁVIO (PMDB-PA) ... A única observação que quero acres-

centar no meu aparte é a seguinte: estou na Casa há mais de sete anos, e

há projetos que estão aqui desde que cheguei e não saem das comissões,

não andam. São projetos de vários para não dizer de todos os senadores.

E esse projeto, por incrível que pareça, foi apresentado no dia 8 de julho,

na semana passada. Faz quatro dias que esse projeto foi aprovado na Câmara e vamos aprová-lo aqui no Senado hoje. Eu nunca vi isso!

Manifesto apenas minha admiração... Eu queria encaminhar desde a

oportunidade que tive de encaminhar a urgência, mas queria saber o moti-

vo de tanta urgência. Isso não bate!... Essa história de que Belo Monte vai

resolver o problema do apagão... Essa obra é para dez anos, como dis-

se o Presidente José Sarney, ou para quinze ou vinte anos. Então, o motivo não é o apagão. Eu gostaria apenas de saber – e que alguem

me explicasse como – se houve um projeto mais rápido, mais relâm-pago do que esse na história do Congresso Nacional...Temos de fa-

zer de forma, não digo correta, mas transparente. Não é possível, em uma sessão como a de hoje, chegar aqui de pára-quedas o projeto, e

temos de votá-lo hoje. Por que tem que ser hoje? Em quatro dias! É recorde mundial. Com certeza esse projeto vai para Guinness

Book...”

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O mesmo Senador, que, padoxalmente, votou a favor da proposição,

assim chega ao cerne da questão:

”E eu ia me esquecendo dos índios, é verdade. Os índios são muito

mais importantes, como disse a Senadora Heloísa Helena. Eles têm que ser ouvidos, ‘cheirados’. Temos de conversar com os índios. Afi-

nal de contas, eles são os donos. Temos de agir de forma a que todos

nós tenhamos condições de votar com tranqüilidade, sem pressa, esses

projetos relâmpagos. Nunca vi isso, sinceramente! Trata-se de um pro-jeto bala: vem e passa e ninguém vê. Muito obrigado, Sr. Presidente”

(doc. 4).

No mesmo sentido, e na mesma sessão de votação e aprovação do

projeto no Senado, foi o pronunciamento da Senadora Heloísa Helena (P-SOL-AL) que

votou contra a proposição por falta de oitiva das comunidades afetadas:

“... eu acho que a autorização de um projeto como esse, discutida am-

plamente, democraticamente por meio de audiências públicas, ela constrói um novo marco nas relações com a comunidade indígena

local... Quando conversamos com cada uma representação de entidade

indígena, vemos que cada uma tem uma posição diferenciada sobre o

fato. Então, eu acho que superaríamos esse obstáculo se pudéssemos fazer audiências públicas aqui, independentemente de qualquer audi-

ência pública que será feita na construção dos termos de referência, no impacto ambiental...” (idem).

Portanto, o projeto relâmpago ocultava com a pressa sua inconstitu-

cionalidade por não ouvir as comunidades afetadas.

Esses fatos chamaram a atenção da imprensa nacional. A Revista

ÉPOCA, em sua edição de 18 de julho passado, publica matéria de uma página da jorna-

lista ELIANE BRUM, intitulada “Aprovação apressada – a polêmica hidrelétrica de Belo Monte é votada no Congresso sob protesto de índios e ambientalistas”. Na re-

portagem é mencionado o tempo recorde de sua aprovação (menos de 15 dias), bem

como a discrepância entre os números do potencial energético: para o Senado 11.000

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megawatts; para pesquisadores da UNICAMP apenas 1.356 megawatts, o que se mais

em baixo (doc. 05)8.

Diante do exposto, não há outra conclusão: o Decreto Legislativo nº 788/2005 feriu a Constituição da República (§ 3º, do art. 231) ao não consultar as comunidades afetadas antes de sua promulgação.

5. ATENTADO AO DEVIDO PROCESSO LEGISLATIVO – MODIFICAÇÃO DA PROPO-SIÇÃO NO SENADO SEM RETORNO À CÂMARA DOS DEPUTADOS

Como se não bastasse a flagrante inconstitucionalidade material aci-

ma exposta, o Decreto Legislativo nº 788/2005 padece também de irregularidade formal.

Com efeito, o texto original foi aprovado na Câmara dos Deputados

sem qualquer alteração. Ao chegar ao Senado Federal, porém, houve modificação do pa-

rágrafo único do art. 2º.

O texto original, aprovado na Câmara dos Deputados, dizia:

“Os estudos referenciados no caput deverão ser elaborados na for-

ma da legislação aplicável.”

Já o texto final, promulgado após aprovação do Senado, recebeu a

seguinte redação:

“Os estudos referidos no caput deste artigo, com a participação do Esta-do do Pará, em que se localiza a hidrelétrica, deverão ser elaborados

na forma da legislação aplicável” (g.n.).

É evidente que a emenda aprovada pelo Senado é de índole modi-ficativa. Ela exige a participação do Estado do Pará nos estudos, pressuposto que não

estava previsto no texto original, aprovado pela Câmara dos Deputados.

8Para melhor compreensão dos estudos que demonstram a inviabilidade econômica e ambiental da UEH Belo Monte, junta-se a esta petição exemplar do livro TENOTÃ-MO. O livro é de conhecimento da ELETRONORTE desde o ano passado. Porém, até hoje, embora tenho sido dito a uma dos procuradores da República que os dados seriam replicados, tal não ocorreu, nem pela imprensa, nem por ofício, em em qualquer revista de engenharia.

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Em se tratando de emenda modificativa, há necessidade de retorno

dos autos à casa legislativa de origem para sua aprovação, como preceitua o art. 123, do

Regimento Interno do Câmara dos Deputados:

“Art. 123. As emendas do Senado a projetos originários da Câmara serão distribuídas, juntamente com estes, às Comissões competentes para opinar sobre as matérias de que tratam.”

Nada disso foi observado na incomum tramitação legislativa.

É oportuno transcrever as notas taquigráficas do autor da emenda

que modificou o texto aprovado na Câmara, Senador JOSÉ SARNEY. Apesar de dizer ao

final que se trata apenas de emenda de redação, e não de emenda modificativa, o r. par-

lamentar, num primeiro momento reconhece a necessidade de retorno do projeto à Câ-

mara dos Deputados:

“... Mas como a localização está na curva do Rio Xingu, no Estado do

Pará, colocaríamos no Decreto o Estado do Pará, sem prejuízo da audiên-

cia de outros Estados, pois eles vão ser ouvidos, pois eles estão dentro do

estudo da bacia.

Assim, eu faria uma modificação. Receberia a emenda, mesmo que com ela tenhamos de devolver à Câmara dos Deputados”.

Não foi o que aconteceu. A proposição, mesmo modificada no Sena-

do, não retornou à Câmara dos Deputados.

6. AUSÊNCIA DA LEI COMPLEMENTAR DISPONDO SOBRE A FORMA DE EXPLO-RAÇÃO DOS RECURSOS HÍDRICOS EM ÁREA INDÍGENA

Há ainda uma outro argumento a ser considerado, trata-se da previ-

são do § 6º, do art. 231, o qual impede a exploração dos rios existentes em áreas indíge-

nas, ressalvado o relevante interesse público da União, definido em lei complementar:

“São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que te-

nham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se

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refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos

rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse públi-co da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando

a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União,

salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de

boa-fé.” (d.n)

A lei complementar exigida pela Constituição da República ainda

não foi promulgada. Isso inviabiliza qualquer obra ou estudo que tenha por objeto a ex-

ploração de recursos hídricos em áreas indígenas.

Diante dessa visão, se não houver uma análise teleológica dos §§ 3º

e 6º do art. 231 da CR/88, estes serão conduzidos à inaplicabilidade no que se refere aos

recursos hídricos em geral.

Como não se pode admitir norma constitucional desprovida de efei-

tos, impõe-se concluir que são atingidos pela disciplina de ambos os dispositivos, os rios

que, margeando as áreas indígenas, sejam indispensáveis às atividades produtivas da

comunidade e/ou sejam portadores de significativas referências culturais, como se extrai

do art. 231,§ 1º, CR:

“São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas

em caráter permanente, as utilizadas para as suas atividades produtivas,

as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a

seu bem estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segun-

do seus usos, costumes e tradições.”

Para melhor elucidar a questão é válido transcrever trecho do estu-

do realizado pelo sociólogo ROBERTO A. O. SANTOS9 :

“Graças à raiz histórico-originária de sua posse, as terras dos índios estão-

lhes afetadas permanentemente (art. 231, parágrafo segundo), dispondo

eles de um “usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos la-

gos nelas existentes”. Com o fim jurídico de proteger a posse indígena

permanente, o Estado brasileiro estatuiu que são bens da União as ter-

9 Organização: Sônia Barbosa Magalhães, Rosyan Caldas Brito, Edna Ramos de Castro. Energia na Amazônia, Vol. I Belém, Museu Paraense Emílio Goeldi/ Universidade Federal do Pará/ Associação das Universidades Amazônicas. 1996, 214

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ras tradicionalmente ocupadas pelos índios, o que incluiu o solo,

subsolo, águas superficiais e águas subterrâneas (CF/88, art. 20, item

XI).

Por fim, cabe pontuar que o Congresso Nacional editou o inconstitu-

cional Decreto Legislativo em comento autorizando Estudo de Impacto Ambiental, Relató-

rio de Impacto Ambiental, Avaliação Ambiental Integrada e outros, para impor a realiza-

ção do empreendimento em tela, mas em nenhum momento dispôs sobre o retorno às

comunidades indígenas atingidas das vantagens financeiras a serem auferidas com a re-

alização do empreendimento.

7. DA EFETIVAÇÃO INCONSTITUCIONAL DO PROCESSO DE LICENCIAMENTO AMBIENTAL

Malgrado as argumentações despendidas que relatam a evidente

afronta aos ditames constitucionais, o IBAMA empreende medidas preparatórias para

elaboração do Estudo de Impacto Ambiental e da conseqüente concessão do licencia-

mento ambiental almejado pela Eletronorte. Especificamente, estão previstas para os

dias 30 e 31 de março de 2006, nas cidades de Altamira e Vitória do Xingu, reuniões

para elaboração do Termo de Referência do Estudo de Impacto Ambiental. Neste ponto,

resta apontar dois graves vícios presentes nestas reuniões: Em primeiro lugar, a ausên-

cia de suporte constitucional para a realização dos estudos, uma vez que não houve a oi-

tiva prévia das populações indígenas envolvidas e em segundo lugar, a celeridade combi-

nada com ausência de ampla divulgação à sociedade e, pasmem, ausência de comuni-cação ou consulta às populações indígenas envolvidas.

A efetivação destas medidas aponta para a impossibilidade de con-

cessão de efeitos jurídicos ao Decreto Legislativo n. 788/2005 sob pena de pena de per-

petuação da vitanda afronta aos ditames constitucionais. A Construção da Usina Hidrelé-

trica de Belo Monte nas condições jurídicas atuais equivale à edificação de um monu-mento ao Desrespeito à Constituição. Frise-se que a condução do processo sem a

constitucional oitiva prévia das populações indígenas afetadas pode igualmente respon-

sabilizar o Governo Brasileiro perante à comunidade internacional pelo desrespeito aos

mandamentos previstos na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho.

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Estas graves conseqüências demandam a presença enérgica e célere do Poder Judiciário. Poder este que livre de paixões momentâneas que flutu-am ao sabor de interesses políticos e econômicos assegure a perenidade da so-berania da Constituição. Não sobeja afirmar que a presente pretensão não se afigu-ra desarrazoada, não se busca o impedimento sectário do “progresso da amazô-nia” , como tão propalado pelos desenvolvimentistas, mas o simples respeito à Constituição. Neste vetor é o sempre presente ensinamento de Konrad Hesse que nos aponta qual solução tomar no conflito entre a fruição de aparentes benefícios e a afronta à Constituição:

“Todos os interesses momentâneos — ainda quando realizados — não lo-gram compensar o incalculável ganho resultante do comprovado respeito à Constituição, sobretudo naquelas situações em que a sua observância revela-se incômoda. Como anotado por Walter Burckhardt, aquilo que é identificado como vontade da Constituição“deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso, tenhamos de renunciar alguns benefícios, ou até a algumas vantagens justas. Quem se mostra dis-posto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um prin-cípio constitucional, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Esta-do democrático”. Aquele, que, ao contrário, não se dispõe a esse sacrifí-cio, “malbarata, pouco a pouco, um capital que significa muito mais do que todas as vantagens angariadas, e que, desperdiçado, não mais será recu-perado”10.

8. CONCLUSÃO

À luz de uma interpretação principiológica do Texto Constitucional,

mormente dos arts. 49, XVI e 231, § 3º, tanto a autorização quanto à oitiva das comuni-

dades indígenas estão na esfera de atribuições exclusivas – daí porque indelegáveis – do

Congresso Nacional.

É a primeira vez que o Congresso Nacional promulga Decreto Le-

gislativo autorizando o início de estudos de viabilidade para a construção de hidrelétrica

10HESSE, Konrad A Força Normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: SAFE, 1991.

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que afete povos indígenas. Vale dizer, é a primeira vez que o Parlamento Nacional exer-

ce a atribuição consignada no § 3º do art. 231 da Constituição Federal.

E, de conformidade com os dados do Conselho Indigenista Missio-

nário – CIMI, estão planejadas 14 usinas hidrelétricas no Brasil que afetam comunidades

indígenas, além da UHE de Belo Monte.11 O precedente que se cria aqui com a aprova-

ção do projeto sem a consulta às comunidades afetadas é gravíssimo e, portanto, precisa

ser reparado. Por derradeiro, resta salientar que estudos independentes comprovam a in-

viabilidade sócio-econômica do empreendimento. Com efeito, antes do relâmpago pro-

cesso legislativo se iniciar, havia sido editado o livro TENOTÃ-MO, cujo exemplar encon-

tra-se em anexo12.

9. PEDIDOSEm razão do exposto, estando presentes todos os requisitos legal-

mente exigidos para o deferimento antecipado do provimento jurisdicional, o Ministério Público Federal pugna pela:

Sustação liminar de qualquer procedimento empreeendido pelo IBAMA para condução do licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, especificamente das audiências públicas programadas para os dias 30 e 31 de março de 2006 nas cidades de Altamira e Vitória do Xingu;

Fixação de multa diária de R$100.000,00 (cem mil reais) – as-

treintes - em caso de descumprimento da ordem pelo IBAMA;

A citação dos requeridos para, querendo, contestar a presente

ação, sob pena de revelia;

A confirmação, por sentença de mérito, de todos os efeitos da de-cisão; 11 Como exemplo podemos citar, respectivamente, dentre as UHE’s planejadas e os povos indígenas afetados: Serra Quebrada/TO, Apinagé e Krikati; Cachoeira Porteira/PA, Wai-Wai, Tiryó, Xipaia-Kuruaia, Wapixana; Cana Brava/GO, Avá-Canoeiro; Chuvisco/PA, Wai-Wai. cf. Conselho Indigenista Missionário – Cimi, in Outros 500. Construindo uma nova história. São Paulo: Salesiana, 2001. p. 71.12 Estudos constantes do livro demonstram que ao invés dos 11.000 megawatts de potencial energético divulgado pela União e pelo Legislativo, a UHE Belo Monte produzirá apenas 1.356 megawatts.

O livro é de conhecimento da ELETRONORTE desde o ano passado. Porém, até hoje, embora tenho sido dito a um dos pro-curadores da República signatário desta que os dados seriam replicados, tal não ocorreu, nem pela imprensa, nem por ofício, em em qualquer revista de engenharia.

Em estando certo o relato de pesquisadores da UNICAMP e da UFPA, até aqui não contestados, o Brasil estaria jogandofo-ra milhões reais em um projeto fadado ao insucesso.

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Condenação do IBAMA em obrigação de não-fazer, consistente na proibição de adotar atos administrativos referentes ao licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica de Belo Monte;

A dispensa do pagamento das custas, emolumentos e outros en-cargos, em vista do disposto no artigo 18 da Lei n°7.347/85; e

A intimação da União;

Por oportuno, esclarece-se que eventual produto da aplicação das

multas diárias por descumprimento de liminar seja revertido ao fundo fluído a que se refe-

re o art. 13 da Lei nº7.347/85.

Dá-se à causa, para efeitos meramente fiscais, o valor de R$

1.000.000,00 (um milhão de reais).

MARCO ANTONIO DELFINO DE ALMEIDA FELÍCIO PONTES JR. Procurador da República Procurador da República

Rol de Documentos (cópias reprográficas):

.1 Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da Repúbli-ca n. 3573;

.2 Movimentação Processual da Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta pelo Procurador-Geral da República n. 3573;

.3 Notas taquigráficas das sessões da Câmara dos Deputados que discutiram e aprovaram o Decreto Legislativo n. 788/2005

.4 Notas taquigráficas das sessões do Senado Federal que discutiram e aprovaram o Decreto Legislativo n. 788/2005

.5 Aprovação Apressada. Matéria Publicada na Revista Época de 18 de julho de 2005. p.91.

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