EXCELENTÍSSIMO SENHOR DESEMBARGADOR ... · Web viewO dispositivo transcrito contempla importante...
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EXCELENTÍSSIMA SENHORA DESEMBARGADORA RELATORA DO AGRAVO
DE INSTRUMENTO Nº XXXXXXXX – SEGUNDA CÂMARA CÍVEL DO TRIBUNAL
DE JUSTIÇA DO ESTADO DO AMAPÁ.
O MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DO AMAPÁ, por intermédio
da Procuradora-Geral de Justiça Adjunta e do Promotor de Justiça com atuação delegada,
ambos in fine assinados, vem, em face do AGRAVO DE INSTRUMENTO interposto pelo
ESTADO DO AMAPÁ, respeitosa e tempestivamente, à presença de Vossa Excelência,
apresentar contraminuta, fundando-se nas razões a seguir aduzidas.
1. DOS ANTECEDENTES
O Ministério Público propôs Ação Civil Pública (fls. XX/XX) em defesa de
interesses infantojuvenis, requerendo fosse o Estado do Amapá obrigado a promover a
construção e a instalação de unidade para cumprimento de medidas socioeducativas de
semiliberdade e internamento, na qual o Juízo de primeiro grau deferiu pedido liminar nos
seguintes moldes:
1. determinar que o Governo Estadual XXXXXXXX.2. Pelo descumprimento estipulo multa diária no valor de R$ XXXXX,XX (XXXX reais), sem prejuízo da apuração de improbidade administrativa. (fl. XXX)
Inconformado, o Estado do Amapá interpôs o Agravo de Instrumento que
ora se contraria.
2. DA LEGITIMIDADE PASSIVA DO ESTADO DO AMAPÁ1
Preliminarmente, alegou o Estado do Amapá não ser parte legitima para
figurar no polo passivo da ação civil pública, uma vez que a Fundação da Criança e do
Adolescente – FCRIA seria a responsável pelo desenvolvimento de políticas de acolhimento e
desenvolvimento de jovens, bem como por gerir as Unidades de Cumprimento de Medidas
Socioeducativas. Trata-se de argumento insubsistente, como se demonstrará nas próximas
linhas.
A FCRIA, apontada pelo Recorrente como incumbida das políticas públicas
que envolvam crianças e adolescentes, é fundação de direito público, instituída nos termos da
Lei Estadual nº 1.291/2009:
Art. 1º A Fundação da Criança e do Adolescente do Estado do Amapá – FCRIA, criada pelo Decreto(N) n° 0309 de 18 de dezembro de 1991, é uma entidade sem fins lucrativos, com personalidade jurídica de direito público, vinculada à Secretaria de Estado da Inclusão e Mobilização Social, com patrimônio próprio e autonomia técnica, administrativa e financeira, com sede e foro em Macapá, capital do Estado do Amapá.
De fato, por se tratar de ente dotado de personalidade jurídica própria, a
FCRIA está habilitada a responder pelos seus atos. Contudo, a sua responsabilidade está
adstrita aos limites da sua atuação, não se revelando razoável imputar-lhe toda omissão do
Estado na implementação das políticas públicas necessárias à efetivação dos direitos
fundamentais constitucionalmente assegurados às crianças e adolescentes.
Aliás, no presente caso, desconsiderar a responsabilidade do Estado do
Amapá é conceber a descentralização administrativa como esquiva para o cumprimento da
missão constitucional deste Ente Federativo.
Pois bem, a análise da Lei Estadual nº 1.291, de 31 de dezembro de 2008,
leva à conclusão de que não lhe incumbe a construção de Unidade de Cumprimento de
Medida Socioeducativa, ou qualquer outra congênere, ainda que com diferente nomenclatura,
conclusão que se extrai, particularmente, da leitura do seu artigo 2º, que disciplina as
finalidades daquela Fundação:
Art. 2º A Fundação da Criança e do Adolescente do Estado do Amapá – FCRIA, tem por finalidade coordenar e executar a política de Promoção, Garantia e Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes em situação de risco pessoal e social, e de adolescentes autores de ato infracional no cumprimento de Medidas Cautelar e Socioeducativas.
2
Ademais, consoante se vê da fl. XX dos autos, a construção de Unidade de
Atendimento Socioeducativo deve estar prevista no Plano Plurianual do Estado do Amapá, o
que demonstra ser competência deste Ente Federativo a execução dessa atividade.
Assim, ainda que se admitisse, ad argumentandum tantum, ser atribuição da
FCRIA a construção de Unidade de Atendimento Socioeducativo, restaria esta dependente da
implementação, pelo Estado do Amapá, da Ação Orçamentária correspondente.
Ressalte-se, ademais, que a Constituição Amapaense prevê no seu art. 104,
parágrafo único, inciso VI que as leis que estabelecem o plano plurianual, as diretrizes
orçamentárias e os orçamentos anuais são de iniciativa exclusiva do Poder Executivo,
portanto, apenas o Governador do Estado pode inserir no orçamento a previsão de construção
da unidade de atendimento.
Logo, não se há falar em ilegitimidade passiva do Estado do Amapá. No
máximo, admitindo-se que a construção da referida unidade seja atribuição da FCRIA, a
hipótese reclamaria a formação de litisconsórcio passivo, pois impossível a consecução do
objeto perseguido na Ação Civil Pública sem o efetivo concurso do Executivo amapaense.
3. DA INOCORRÊNCIA DE NULIDADE NA CITAÇÃO
Ainda a título de preliminar, alegou o Estado da Bahia a nulidade da citação,
pois não constava na carta precatória a petição inicial da ação civil pública nº XXXXXX.
Mais uma vez, sem razão o Recorrente.
De fato, conforme é de comezinha sabença, apenas se declara nulidade
processual quando esta tenha ocasionado prejuízo. Ora, de eventual vício na citação por
ausência de documento essencial apenas se vislumbra um prejuízo para o réu, a
impossibilidade de responder ao chamamento judicial para integrar a lide e apresentar
contestação, ou a impossibilidade de fazê-lo no prazo legal, pela dificuldade de acesso aos
documentos omitidos.
No presente caso, entrementes, não houve qualquer prejuízo ao Réu, ora
Agravante. Da análise do documento de fl. XX percebe-se que a Procuradoria do Estado do
Amapá fez carga dos autos no dia XX de XXXXXX de XXXX, quando ainda não havia sido
juntada aos autos a carta precatória que tinha como finalidade proceder a sua citação,
passando esse momento – o da retirada dos autos do cartório – a constituir o marco inicial
3
para a contagem do prazo para a apresentação da contestação, uma vez que nele teve ciência
inequívoca da ação que contra si tramitava.
Logo, tendo o Estado do Amapá acesso à íntegra dos autos, não se há falar
em nulidade, até porque a ação foi devidamente contestada e, inclusive, contra a decisão
liminar contra si proferida, interposto o Agravo de Instrumento que ora se contraria.
Note-se, aliás, que o próprio agravante não apontou qualquer prejuízo
decorrente da suposta nulidade, motivo pelo qual imperioso reconhecer a sua inexistência.
Nesse sentido é a uníssona jurisprudência do Tribunal da Cidadania:
PROCESSO CIVIL. EXECUÇÃO FISCAL CONTRA A FAZENDA PÚBLICA.POSSIBILIDADE. ADAPTAÇÃO DO RITO. INTELIGÊNCIA DO ART. 730 DO CPC.CITAÇÃO VÁLIDA. AUSÊNCIA DE PREJUÍZO. PRINCÍPIO “PAS DES NULLITÉS SANS GRIEF”. LOCAL DO PAGAMENTO. CIRCUNSTÂNCIAS DO CASO. ART. 950 DO CC/1916. SÚMULA 7/STJ.(...)3. À luz do princípio pas des nullités sans grief, não se decreta a nulidade dos atos sem o comprometimento para os fins de justiça do processo, mormente quando não há nos autos prova de prejuízo. (Precedentes: REsp 1014720/RS, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 10/02/2009, DJe 05/03/2009; REsp 556.510/MS, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 22/03/2005, DJ 25/04/2005) 4. In casu, extrai-se o seguinte fundamento do acórdão recorrido: “Outrossim, não há que se falar em nulidade da citação, em razão do disposto no artigo 249, §1º, do Código de Processo Civil, onde se lê: 'Art. 249. (...) §1º. O ato não se repetirá nem se lhe suprirá a falta quando não prejudicar a parte.' Portanto, como não houve prejuízo à Fazenda Municipal, vez que opôs seus embargos dentro do prazo que lhe concedia o artigo 16, caput, da Lei n. 6.830/80, demonstrando com isso que seus procuradores tomaram ciência regularmente do ato de fls. 06 do apenso, desnecessária seria a sua repetição, com a decretação de nulidade da citação, em atenção ao princípio pas de nullité, sans grief (não há proclamar a nulidade se não há prejuízo).”(...)8. Recurso especial parcialmente conhecido e, nesta parte, desprovido.1
AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO ESPECIAL. PREVIDENCIÁRIO E PROCESSUAL CIVIL. NULIDADE
1 REsp 1000028/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 15/10/2009, DJe 23/11/2009. Sem negritos no original.
4
DE CITAÇÃO. COMPARECIMENTO ESPONTÂNEO. PREJUÍZO NÃO DEMONSTRADO. PRINCÍPIO DA PAS NULLITÉ SANS GRIEF. CONTAGEM RECÍPROCA DO TEMPO DE SERVIÇO REFERENTE A REGIMES PREVIDENCIÁRIOS DIVERSOS (PÚBLICO E PRIVADO) PARA FINS DE CONCESSÃO DE APOSENTADORIA.BENEFÍCIO CONCEDIDO E PAGO PELO REGIME A QUE O SEGURADO ESTIVER VINCULADO NO MOMENTO DO REQUERIMENTO. AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO.1. A alegação de nulidade de citação deve ser acompanhada de apontamento do eventual prejuízo sofrido, sob pena de convalidar o ato, prestigiando o princípio da instrumentalidade das formas, resumido pelo brocardo pas de nullité sans grief. Precedente.(..)3. Agravo regimental a que se nega provimento.2
4. DA INEXISTÊNCIA DE LITISCONSÓRCIO PASSIVO
NECESSÁRIO.
O Estado do Amapá afirma em suas razões recursais que seria
imprescindível a presença da Assembleia Legislativa no polo passivo da Ação Civil Pública,
uma vez que, na forma como se decidiu, “cabe ao estado a iniciativa da lei, mas à Assembléia
a sua aprovação” (fl. XX). Disse isso, por óbvio, referindo-se à liminar deferida pelo Juízo de
primeiro grau, que lhe determinou a inclusão na Lei Orçamentária de 2013 ou, não sendo
possível, na de 2014, de construção de uma Unidade de Atendimento Socioeducativo em meio
fechado.
Mais uma vez, jejuno de razão o Estado do Amapá.
De início, transcreve-se o artigo 47 do CPC, que dispõe acerca do
litisconsórcio necessário:
Art. 47. Há litisconsórcio necessário, quando, por disposição de lei ou pela natureza da relação jurídica, o juiz tiver de decidir a lide de modo uniforme para todas as partes; caso em que a eficácia da sentença dependerá da citação de todos os litisconsortes no processo.
2 AgRg no REsp 1174122/SC, Rel. Ministra ALDERITA RAMOS DE OLIVEIRA (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/PE), SEXTA TURMA, julgado em 18/06/2013, DJe 01/07/2013. Sem negritos no original.
5
Parágrafo único. O juiz ordenará ao autor que promova a citação de todos os litisconsortes necessários, dentro do prazo que assinar, sob pena de declarar extinto o processo.
Da leitura do dispositivo, percebe-se que a formação de litisconsórcio
necessário ocorrerá em duas situações: por previsão legal ou quando a natureza da relação
jurídica assim impuser. Nenhuma das hipóteses amolda-se ao caso dos autos, conforme se
demonstrará.
A medida liminar está respaldada no art. 104, parágrafo único, inciso VI, da
Constituição do Estado do Amapá – no mesmo sentido do que dispõe o art. 165 da
Constituição Federal –, o qual prevê que as leis que estabelecem o plano plurianual, as
diretrizes orçamentárias e os orçamentos anuais são de iniciativa exclusiva do Poder
Executivo.
Ora, de fato, o projeto de lei orçamentária há de ser apreciado pelo
Legislativo, todavia, este apenas poderá emendá-lo e, ainda assim, de forma compatível com o
Plano Plurianual e a Lei de Diretrizes Orçamentárias (art. 166, §§ 2º e 3º, da CF, e art. 94, da
CE).
Pois bem, a construção de unidade de atendimento socioeducativo já está
prevista no Plano Plurianual do Estado do Amapá, conforme já assinalado, mais
especificamente na Ação Orçamentária n. XXX (fl. XXX). Logo, não se vislumbra óbice à
aprovação do projeto de lei orçamentária pela Assembléia Legislativa, especificamente no que
diz respeito à construção da referida unidade.
Basta, pois, para o cumprimento da liminar, a inserção pelo Poder Executivo
estadual da construção de uma unidade de atendimento para menores submetidos a medida
socioeducativa no orçamento anual de 2013 ou 2014. Aliás, é o que se depreende da leitura da
liminar. Transcreve-se:
TRANSCREVER A LIMINAR
Dessa forma, não incidindo a decisão proferida na esfera jurídica da
Assembleia Legislativa, não se há falar em litisconsórcio necessário.
5. DA POSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO
6
Passa-se à análise da preliminar de impossibilidade jurídica do pedido.
Esclareça-se, por oportuno, que a preliminar ora refutada se confunde com o próprio mérito
da causa, pois envolve a discussão sobre a possibilidade de intervenção judicial no Executivo,
matéria tratada em tópico próprio.
Pois bem, o sistema processual brasileiro condiciona a apreciação da causa
pelo Poder Judiciário ao preenchimento das chamadas condições da ação. Nesse sentido, se a
parte carece de legitimidade, o pedido é falto de possibilidade jurídica ou não há interesse de
agir, o processo será extinto sem julgamento do mérito, nos moldes do artigo 267, VI, do
Código de Processo Civil.
Art. 267. Extingue-se o processo, sem resolução de mérito (...)Vl - quando não concorrer qualquer das condições da ação, como a possibilidade jurídica, a legitimidade das partes e o interesse processual;
Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery, comentando o citado
artigo, ensinam:
Essas questões preliminares dizem respeito ao próprio exercício do direito de ação (condições da ação) e à existência e regularidade da relação jurídica processual (pressupostos processuais). As condições da ação possibilitam ou impedem o exame da questão seguinte (mérito). Presentes todas, o juiz pode analisar o mérito, não sem antes verificar se também se encontram os pressupostos processuais. Ausente uma delas ou mais de uma, ocorre o fenômeno de carência da ação (CPC 301 X), circunstância que torna o juiz impedido de examinar o mérito. A carência da ação tem como conseqüência a extinção do processo sem julgamento do mérito (CPC 267 VI). As condições da ação são três: legitimidade das partes (legitimatio as cauam), interesse processual e possibilidade jurídica do pedido.3
Para entender em que consiste a possibilidade jurídica do pedido,
interessante citar a definição de Cássio Scarpinella Bueno:
3 NERY JUN IOR, Nelson e NERY, Rosa Maria de Andrade. Código de Processo Civil comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. pp. 267/268.
7
Por “possibilidade jurídica do pedido” deve ser entendido que o pedido de tutela jurisdicional a ser formulado ao Estado-juiz não pode ser vedado pelo ordenamento jurídico ou, quando menos, que as razões pelas quais alguém pede a prestação jurisdicional do Estado não sejam, elas mesmas, vedadas pelo ordenamento jurídico.4
No mesmo sentido, afirma Cândido José Dinamarco: “a causa petendi gera
impossibilidade da demanda quando a ordem jurídica nega que fatos como os alegados pelo
autor possam gerar direitos”5.
Assim, a análise da possibilidade jurídica do pedido é feita da simples
leitura da petição inicial. Se, e somente se, mesmo considerando verdadeiras as premissas
expostas pelo autor, for impossível atender ao pedido formulado, seja porque este é vedado
pelo ordenamento jurídico, seja porque a causa de pedir não gera o direito alegado, haverá
ausência de condição da ação. Sobre o tema, afirma o STJ:
A possibilidade jurídica do pedido consiste na admissibilidade em abstrato da tutela pretendida, estendendo-se, também, para os casos em que, embora previsto o pedido no ordenamento jurídico, haja uma ilicitude na causa de pedir ou nas próprias partes litigantes.6
Pois bem, feitas essas considerações iniciais, passa-se à análise do caso dos
autos.
Na Ação Civil Pública de que ora se cuida, afirma o Ministério Público que
o Estado do Amapá é omisso no seu dever de efetivar os direitos constitucionais e legais dos
adolescentes que praticaram atos infracionais e estão cumprindo medida socioeducativa.
Informa que as unidades de tratamento existentes estão superlotadas e não cobrem toda
extensão territorial do Estado, distanciando em demasia os adolescentes da família. Estes,
ademais, são transportados como se “bicho fossem” e tratados como “seres de segunda
categoria”, em frontal desrespeito ao princípio da proteção integral, aos art. 17, 123, 124 e
208, X, do ECA, e às normas de direito internacional (Declaração Universal de Direitos
Humanos, Declaração Universal de Direitos da Criança e Convenção sobre Direitos da
Criança).4 BUENO, Casio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil. São Paulo: Saraiva, 2008, p.
368. Sem negritos no original.5 DINAMARCO. Cândifo Rangel. Intituições de Direito Processual Civil. Vol. II. São Paulo: Malheiros, 2009,
p. 308.6 REsp 1084943/MG, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em
18/02/2010, DJe 15/03/2010.8
Logo, ao se confirmarem os fatos expostos pelo Ministério Público, será não
apenas possível, mas imperiosa a concessão dos pedidos formulados à fl. XX, para
restauração da ordem constitucional e legal malferidas.
Não se há falar, ademais, em indevida intervenção do Poder Judiciário no
Legislativo. Como se demonstrará adiante, a separação de poderes constitucionalmente
assegurada não implica óbice ao deferimento do pedido, pois este não adentra a esfera de
discricionariedade da administração, apenas o cumprimento dos princípios regentes do
sistema jurídico.
Demonstrada, assim, a possibilidade jurídica do pedido formulado na ação
civil pública.
6. DO MÉRITO
6.1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS - DA PREVALÊNCIA DA PROTEÇÃO
À DIGNIDADE DOS MENORES EM FACE DE QUAISQUER OUTROS VALORES
Não merece reparos a medida liminar deferida pelo Juízo Primevo, a qual
levou em conta as especificidades do caso, que demanda resposta URGENTE do Poder
Judiciário, tendo em vista que a dignidade de pessoas em desenvolvimento vem sendo
recorrentemente violada pelo tratamento que se tem dispensado aos jovens submetidos a
medidas socioeducativas em Ilhéus.
O quadro fático sob análise é caótico, sendo que as unidades de
cumprimento de medidas socioeducativas mais próximas estão nos Municípios de XXXXX,
XXXXX e XXXXX, afastando, necessariamente, o adolescente em regime de semiliberdade
ou internamento de suas famílias. Além disso, não há meio de transporte adequado para
conduzi-los até as citadas Cidades, o que os obriga a permanecer nas Delegacias de Polícia
por mais tempo que o permitido e, quando transferidos, deparam-se com a superlotação das
unidades, o que é incompatível com o caráter ressocializador da medida socioeducativa.
Não é demasiado pontuar que o Estado deve, sempre, preservar a condição
humana acima de qualquer outro valor. Muito mais quando se trata de criança ou adolescente,
9
que merecem, nos moldes constitucionais, prioridade absoluta, sendo o próprio Estado um dos
responsáveis pela efetivação dos direitos infantojuvenis.
A propósito, transcrevem-se as lições de Luciano Alves Rossato, Paulo
Eduardo Lépore e Rogério Sanches Cunha:
As crianças são titulares de direitos humanos como quaisquer pessoas. Aliás, em razão de sua condição em desenvolvimento, fazem jus a um tratamento diferenciado, sendo correto afirmar, então, que são possuidoras de mais direitos que os próprios adultos.7
E continuam os doutrinadores:
O art. 1.º adota expressamente a doutrina da proteção integral. Essa opção do legislador fundou-se na interpretação sistemática dos dispositivos constitucionais que elevaram ao nível máximo de validade e eficácia as normas referentes às crianças e aos adolescentes, e que, por sua vez, foram inspirados nas normas internacionais de direitos humanos, tais como a Declaração Universal de Direitos Humanos, a Declaração Universal de Direitos da Criança e a Convenção sobre Direitos da Criança. Assim, pode-se apontar que o reconhecimento jurídico dos direitos da Criança e do Adolescente se deu no Brasil já em um novo patamar, mais ligado aos processos emancipatórios e constituídos por uma concepção de positivação de direitos humanos, tornando-os direitos fundamentais.Outrossim, a tutela às pessoas em desenvolvimento desdobra-se em outras prescrições constitucionais específicas, notadamente no art. 6º, que positiva a proteção à infância como um direito social, e o art. 227, que atribui à infância e à juventude um momento especial na vida do ser humano e, por isso, assegura a crianças e adolescentes o status de pessoas em situação peculiar de desenvolvimento, além de conferir-lhe a titularidade de direitos fundamentais e determinar que o estado os promova por meio de políticas públicas.8
Dessa forma, a atitude omissa do Estado da Bahia para com os jovens que
porventura cometeram ato infracional é inadmissível ante a proteção integral e o sistema de
tutela dos direitos – fundamentais – da criança e do adolescente. Interessante, a propósito, a
crítica de Paulo Lúcio Nogueira:
7 ROSSATO, Luciano Alves; Lépore, Paulo Eduardo e CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do adolescente comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 51
8 ROSSATO, Luciano Alves; LÉPORE, Paulo Eduardo e CUNHA, Rogério Sanches. Estatuto da Criança e do adolescente comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, pp. 73/74
10
Não há dúvida de que o menor carente, abandonado e infrator é fruto da nossa sociedade, marcada por uma brutal diferença entre a classe pobre e a abastada, pois, enquanto aquela sofre as consequências do pauperismo, esta esbanja de forma acintosa o que é subtraído ilicitamente dos menos favorecidos.(…)O próprio Estado destina verbas insuficientes à assistência do menor, ao mesmo tempo que faz gastos desnecessários com obras públicas faraônicas, “mordomias” acintosas, viagens frequentes e desnecessárias, e propaganda promocional cara e mentirosa. Essa má utilização do dinheiro público é consequência da mentalidade egoísta de nossos governantes.Assim, a assistência ao menor, tida como prioritária em muitas campanhas eleitorais, tem sido relegada a segundo plano com destinação de verbas insuficientes.9
Há de ser lembrado que a medida socioeducativa não consiste apenas no
direito de punir do Estado10, objetivando, mais que isso, a proteção do adolescente, a
transformação do seu comportamento irregular, a correção dos atos inadequados e a sua
reintegração à sociedade, essenciais para o desenvolvimento do indivíduo nos aspectos físico
e moral.
Assim, o tratamento inadequado e indigno fere não apenas os direitos
fundamentais do adolescente – como dignidade, educação, saúde e segurança –, mas retira do
indivíduo em formação a expectativa de gozar futuramente de seus direitos de cidadão, pois o
mantém à margem da sociedade, já que não se opera a ressocialização necessária a um
saudável convívio social.
Diga-se, ainda, que a inércia do Poder Executivo apontada na Ação Civil
Pública nº XXXXXX tem resultado, inclusive, na devolução dos adolescentes aos seus
genitores sem a necessária aplicação das medidas legais, o que afronta nitidamente a
prioridade absoluta e a proteção integral assegurados pelo texto constitucional.
6.2. DA ALEGAÇÃO DE OFENSA À LEI DE RESPONSABILIDADE
FISCAL, À LEI ORÇAMENTÁRIA E AO ART. 359-D DO CÓDIGO PENAL
Socorreu-se o Estado do Amapá, dentre outros argumentos, na
impossibilidade de arcar com as despesas oriundas da medida liminar proferida pelo Juízo de
9 Paulo Lúcio Nogueira. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. São Paulo: Saraiva, 1991, p.510 ISHIDA, Valter Kenji. Estatuto da Criança e do adolescente. São Paulo: Atlas, 2010, p. 198
11
Primeiro Grau, invocando a Lei Complementar nº 101/00 – Lei de Responsabilidade Fiscal –,
particularmente os seus arts. 19 e 22, a Lei Orçamentária e o art. 359-D do Código Penal, que
prevê reclusão de um a quatro anos de reclusão para a conduta de ordenar despesa não
autorizada por lei.
De início, reitere-se que os exaustivamente citados princípios da proteção
integral e da prioridade absoluta impõem a primazia dos investimentos na efetivação dos
direitos infantojuvenis. Repita-se, políticas públicas para a proteção das crianças e
adolescentes têm prioridade sobre as demais, segundo a Constituição e a Lei.
Ora, nos moldes em que foi proferida a liminar, não há risco de incidir
qualquer sanção penal ou de responsabilidade sobre o Administrador, pois o que se quer
exatamente é impor a inclusão da despesa de que aqui se trata na Lei Orçamentária anual do
Estado do Amapá. Nada mais.
6.3. DA INVIABILIDADE DE INVOCAÇÃO DO PRINCÍPIO DA
RESERVA DO POSSÍVEL
Alega, ademais, o Agravante o princípio da reserva do possível para
escusar-se da obrigação imposta pela liminar, aduzindo que “os recursos do Estado não são
inesgotáveis, nem se encontram à disposição do gestor, ou mesmo do Judiciário” (fl. XX).
Trata-se aqui, como já dito, da preservação do mais caro valor jurídico, a
dignidade de pessoas em desenvolvimento, em situação que demanda especial cuidado, diante
do qual todos os outros devem ceder. Com efeito, a manutenção da liminar concedida pelo
Juízo de primeiro grau revela-se imprescindível para assegurar a dignidade e a integridade
física de adolescentes, como também a garantia da segurança destes e da própria sociedade,
valores constitucionais preponderantes sobre quaisquer outros que com eles colidam.
Ora, a teoria da reserva do possível, desenvolvida pelo direito germânico,
tem como objetivo condicionar o dever do Estado em face dos direitos sociais prestacionais,
ou seja, o indivíduo somente poderia exigir do Estado prestações que estivessem contidas nos
limites do razoável, consideradas as restrições de ordem econômica para a efetivação desses
direitos. O princípio, conforme é visto pela doutrina brasileira, afasta o dever do Estado
somente nas hipóteses em que aquilo que se reclama seja considerado supérfluo, o que não
12
ocorre na situação dos autos, onde se pugna pelo respeito à dignidade de adolescentes que
se encontram sob a poder-dever de punir e reeducar do Estado.
Discorrendo sobre o tema, em sede doutrinária, o Professor e Juiz Federal
Dirley da Cunha Junior assim se pronuncia:
Nesse contexto, a reserva do possível só se justifica na medida em que o Estado garanta a existência digna de todos. Fora desse quadro, tem-se a desconstrução do Estado Constitucional de Direito, com a total frustração das legítimas expectativas da sociedade11
O Superior Tribunal de Justiça, não por acaso denominado o Tribunal da
Cidadania, tem deixado claro que o princípio da reserva do possível não pode ser invocado
para afastar a proteção à dignidade da pessoa humana:
ADMINISTRATIVO – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS – POSSIBILIDADE EM CASOS EXCEPCIONAIS – DIREITO À SAÚDE – FORNECIMENTO DE EQUIPAMENTOS A HOSPITAL UNIVERSITÁRIO – MANIFESTA NECESSIDADE – OBRIGAÇÃO DO ESTADO – AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES – NÃO-OPONIBILIDADE DA RESERVA DO POSSÍVEL AO MÍNIMO EXISTENCIAL.(...)3. A partir da consolidação constitucional dos direitos sociais, a função estatal foi profundamente modificada, deixando de ser eminentemente legisladora em pró das liberdades públicas, para se tornar mais ativa com a missão de transformar a realidade social. Em decorrência, não só a administração pública recebeu a incumbência de criar e implementar políticas públicas necessárias à satisfação dos fins constitucionalmente delineados, como também, o Poder Judiciário teve sua margem de atuação ampliada, como forma de fiscalizar e velar pelo fiel cumprimento dos objetivos constitucionais.4. Seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente fundamentais. Com efeito, a correta interpretação do referido princípio, em matéria de políticas públicas, deve ser a de utilizá-lo apenas para limitar a atuação do judiciário quando a administração pública atua dentro dos limites concedidos pela lei. Em casos excepcionais, quando a administração extrapola
11 CUNHA JUNIOR, Dirley da. A efetividade dos Direitos Fundamentais Sociais e a Reserva do Possível. Leituras Complementares de Direito Constitucional: Direitos Humanos e Direitos Fundamentais. 3. ed., Salvador: Editora Juspodivm, p. 349-395, 2008.
13
os limites da competência que lhe fora atribuída e age sem razão, ou fugindo da finalidade a qual estava vinculada, autorizado se encontra o Poder Judiciário a corrigir tal distorção restaurando a ordem jurídica violada.5. O indivíduo não pode exigir do estado prestações supérfluas, pois isto escaparia do limite do razoável, não sendo exigível que a sociedade arque com esse ônus. Eis a correta compreensão do princípio da reserva do possível, tal como foi formulado pela jurisprudência germânica. Por outro lado, qualquer pleito que vise a fomentar uma existência minimamente decente não pode ser encarado como sem motivos, pois garantir a dignidade humana é um dos objetivos principais do Estado Democrático de Direito. Por este motivo, o princípio da reserva do possível não pode ser oposto ao princípio do mínimo existencial.(...)Recurso especial parcialmente conhecido e improvido.12
Ademais, ao alegar a reserva do possível, é ônus do Poder Público provar
que inexistem recursos para satisfazer o direito que se reclama, bem como demonstrar que o
destino que pretende dar aos recursos existentes efetivam mais intensamente os direitos
fundamentais, coisa que sequer cogitou fazer o Estado do Amapá. Sobre o assunto, em
trabalho doutrinário, o também Juiz Federal George Marmelstein ensina:
Apesar de a reserva do possível ser uma limitação lógica à possibilidade de efetivação judicial dos direitos socioeconômicos, o que se observa é uma banalização no seu discurso por parte do Poder Público quando se defende em juízo, sem apresentar elementos concretos a respeito da impossibilidade material de se cumprir a decisão judicial. Por isso, as alegações de negativa de efetivação de um direito econômico, social e cultural com base no argumento da reserva do possível devem ser sempre analisadas com desconfiança. Não basta simplesmente alegar que não há possibilidades financeiras de se cumprir a ordem judicial; é preciso demonstrá-la. (…) Assim, o argumento da reserva do possível somente deve ser acolhido se o Poder Público demonstrar suficientemente que a decisão causará mais danos do que vantagens à efetivação de direitos fundamentais. Vale enfatizar: o ônus da prova de que não há recursos para realizar os direitos sociais é do Poder Público. É ele quem deve trazer para os autos os elementos orçamentários e financeiros capazes de justificar, eventualmente, a não-efetivação do direito fundamental13
12 REsp 1041197/MS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 25/08/2009, DJe 16/09/2009.
13 MARMELSTEIN, George. Curso de Direitos Fundamentais. Ed. Atlas: São Paulo, 2008, p. 194.14
6.4. DA INEXISTÊNCIA DE INGERÊNCIA INDEVIDA DO PODER
JUDICIÁRIO NO EXECUTIVO
Alega o Recorrente que a decisão hostilizada importa em interferência
indevida no Judiciário sobre o Executivo, nos seguintes moldes:
Não é possível conceber, então, por ser absurdo, com a devida vênia, que um Magistrado possa se fazer substituir ao Chefe do Poder Executivo, imponto e influindo no processo criativo do orçamento, bem como substituir a dialética própria do legislativo, em amoldar tal previsão de orçamento, o que lhe é vedado pelo princípio da reserva de iniciativa da programação orçamentária. (fl. 13)
A possibilidade de controle judicial sobre os demais Poderes decorre do
sistema de freios e contrapesos, que estabelece controle recíproco entre os Poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário, sendo perfeitamente compatível com o princípio da independência,
conforme ensinamentos seguros de Dirley da Cunha Júnior:
Isso significa que, não obstante a independência orgânica – no sentido de não haver entre eles qualquer relação de subordinação ou dependência no que tange ao exercício das funções -, a Constituição Federal instituiu um mecanismo de controle mútuo (...)14
No caso concreto, no entanto, é importante que se pontue que o Judiciário
não interveio indevidamente no limite de discricionariedade do Executivo. O que se
depreende da análise do presente caso é que, exercendo o seu poder-dever de fiscalizar, o
Judiciário impeliu o outro Poder a cumprir o que determina a Constituição, conferindo a
prioridade devida aos assuntos relativos às pessoas em desenvolvimento.
Como dito anteriormente, o princípio constitucional da prioridade absoluta
(art. 227 da CF), as normas de direito internacional (Declaração Universal de Direitos
Humanos, a Declaração Universal de Direitos da Criança e a Convenção sobre Direitos da
Criança) e a legislação infraconstitucional (ECA) norteiam a atividade do Estado, impedindo
que os direitos infantojuvenis sejam preteridos, balizando as políticas públicas para garantir à
criança e ao adolescente a plenitude do seu desenvolvimento.
Assim, é possível dizer, sem dúvidas, que não houve usurpação de
atribuição do Poder Executivo pelo Judiciário, mas a imposição judicial de que o Executivo 14 CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Curso de Direito Constitucional. Salvador: JusPODIVM: 2010. p. 524. Sem
negritos no original.15
cumpra o que determina a ordem jurídica que preside o Estado Democrático de Direito,
demonstrando a eficiência do sistema de controle mútuo entre os três Poderes.
A jurisprudência do STJ, inclusive, admite a interferência do Poder
Judiciário como fiscalizador do Executivo. A título exemplificativo, transcreve-se o seguinte
julgado:
ADMINISTRATIVO – CONTROLE JUDICIAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS – POSSIBILIDADE EM CASOS EXCEPCIONAIS – DIREITO À SAÚDE – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS – MANIFESTA NECESSIDADE – OBRIGAÇÃO DO PODER PÚBLICO – AUSÊNCIA DE VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DOS PODERES – NÃO OPONIBILIDADE DA RESERVA DO POSSÍVEL AO MÍNIMO EXISTENCIAL.1. Não podem os direitos sociais ficar condicionados à boa vontade do Administrador, sendo de fundamental importância que o Judiciário atue como órgão controlador da atividade administrativa. Seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais, igualmente fundamentais.2. Tratando-se de direito fundamental, incluso no conceito de mínimo existencial, inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário estabeleça a inclusão de determinada política pública nos planos orçamentários do ente político, mormente quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal.(...)Agravo regimental improvido.15
Para que não restem dúvidas sobre a possibilidade de interferência judicial
no presente caso, transcreve-se julgado proferido pelo Tribunal da Cidadania, onde se
reconheceu a possibilidade de o Judiciário impelir o Estado do Rio Grande do Sul à
construção de centros específicos para menores infratores:
ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ECA. IMPLANTAÇÃO DE PROGRAMA PERMANENTE DE ATENDIMENTO INDIVIDUALIZADO E ESPECIALIZADO, EM LOCAL ADEQUADO, DE ADOLESCENTES PORTADORES DE PROBLEMAS MENTAIS OU TRANSTORNOS PSIQUIÁTRICOS
15 AgRg no REsp 1136549/RS, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDA TURMA, julgado em 08/06/2010, DJe 21/06/2010. Sem negritos no original.
16
GRAVES PELA INSTÂNCIA INFERIOR. LEGALIDADE. ASTREINTES. FAZENDA PÚBLICA. POSSIBILIDADE. REVISÃO DO QUANTUM ESTABELECIDO. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N. 7/STJ.1. O recorrente insurge-se contra a determinação realizada pela instância inferior de que deve ser construído centros específicos para menores infratores portadores de deficiência mental. No entanto, não há qualquer respaldo legal que possa reverter a decisão judicial estabelecida pela sentença de mérito e confirmada pelo Tribunal de origem.2. A lei é clara ao determinar que os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições.3. O argumento esposado pelo recorrente baseia-se na existência de um programa psiquiátrico terceirizado e da utilização da rede pública em casos agudos para os menores infratores. Contudo, tais argumentações não são suficientes para alterar a decisão judicial fundamentada na letra da lei. O artigo do ECA estabelece, claramente, a necessidade de fornecer o tratamento individual e especializado aos adolescentes em local adequado às suas condições.4. Esta Corte, em situação análoga, já proferiu entendimento no sentido de que a medida sócio-educativa de liberdade assistida deve ser realizada em local adequado ao transtorno mental apresentado.5. A jurisprudência desta Corte Superior encontra-se consolidada no sentido de que inexiste óbice para a imposição da multa (astreinte) à Fazenda Pública, pelo descumprimento de decisão judicial que a obriga a fazer, não fazer ou a entregar coisa.6. Dessa forma, a alegação de inviabilidade de fixação de astreintes contra o Poder Público não deve prosperar, pois é pacífico o entendimento do Superior Tribunal de Justiça segundo o qual tal instituto é compatível com a ausência de efeitos coercitivos em face de pessoa jurídica de direito público.7. Ressalta-se que a revisão do valor fixado na multa diária é matéria cuja análise é inviável por esta Corte Superior, vez que demanda reexame do conjunto fático dos autos.8. Recurso especial não provido.16
16 REsp 970.401/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 02/12/2010, DJe 14/12/2010. Sem negritos no original.
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6.5. DA POSSIBILIDADE DE COMINÇÃO DE ASTREINTES CONTRA A
FAZENDA PÚBLICA
Por fim, desconstitua-se a afirmação do Recorrente de que o prazo
estabelecido na obrigação de fazer é irrazoável e que o só fato de multar o estado, como
singelo mecanismo de incentivá-lo a cumprir obrigação de fazer, é equivocado e atentatório
ao interesse público.
Sobre a construção da unidade de cumprimento de medida socioeducativa
em XX meses, embora entenda o Ministério Público tempo razoável, não foi deferida pelo
juízo a quo, que, como já dito, limitou-se a ordenar a inserção da referida construção no
orçamento anual de 2013 ou, justificadamente, 2014, o que afasta por completo qualquer
alegação de irrazoabilidade.
Adentra-se, portanto, à análise do artigo 461 e parágrafos do CPC, a fim de
demonstrar que é correta a imposição de astreintes no presente caso.
Inicialmente, importa transcrever, literalmente, o artigo 461 do CPC:
Art. 461. Na ação que tenha por objeto o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer, o juiz concederá a tutela específica da obrigação ou, se procedente o pedido, determinará providências que assegurem o resultado prático equivalente ao do adimplemento.§ 1º
A obrigação somente se converterá em perdas e danos se o
autor o requerer ou se impossível a tutela específica ou a obtenção do resultado prático correspondente.§ 2º A indenização por perdas e danos dar-se-á sem prejuízo da multa (art. 287). § 3º
Sendo relevante o fundamento da demanda e havendo
justificado receio de ineficácia do provimento final, é lícito ao juiz conceder a tutela liminarmente ou mediante justificação prévia, citado o réu. A medida liminar poderá ser revogada ou modificada, a qualquer tempo, em decisão fundamentada. § 4º O juiz poderá, na hipótese do parágrafo anterior ou na sentença, impor multa diária ao réu, independentemente de pedido do autor, se for suficiente ou compatível com a obrigação, fixando-lhe prazo razoável para o cumprimento do preceito.§ 5º Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como a imposição de multa por tempo de atraso, busca e apreensão, remoção de pessoas e coisas, desfazimento de obras e
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impedimento de atividade nociva, se necessário com requisição de força policial.§ 6º O juiz poderá, de ofício, modificar o valor ou a periodicidade da multa, caso verifique que se tornou insuficiente ou excessiva.
O dispositivo transcrito contempla importante inovação no processo civil
brasileiro, que passa a contemplar como regra a tutela específica da obrigação de fazer,
aperfeiçoando e conferindo maior efetividade, no particular, à prestação jurisdicional.
Acerca do tema, Arruda Alvim, Arakem de Assis e Eduardo Arruda Alvim
comentam:
No sistema atual a obrigação de fazer, assim como a de não fazer, somente se converterá em obrigação de indenizar caso torne-se impossível o cumprimento da obrigação ou opte o credor por este caminho. Caso contrário, poderá o credor exigir o efetivo cumprimento da obrigação de fazer, para o que a lei dotou o juiz de instrumentos altamente eficazes, tais como a imposição de multa (§§ 4º e 5º do art. 461).17
Trata-se, bem se vê, de mecanismo para compelir o devedor da obrigação ao
seu fiel cumprimento, permitindo-se que o juiz, a requerimento ou de ofício, comine multa no
intuito de salvaguardar os interesses versados nos autos. Transcrevem-se, a respeito, os
ensinamentos de Luiz Guilherme Marinoni e Daniel Mitidiero:
Para que a sentença mandamental tenha força persuasiva suficiente para coagir alguém a fazer ou não fazer, realizando assim a tutela prometida pelo direito material, permite-se ao juiz, de ofício, ou a requerimento da parte a imposição de multa coercitiva – astreintes (art. 461, §§ 4º e 6º, CPC). A finalidade da multa é coagir o demandado ao cumprimento de fazer ou de não fazer. Constitui forma de pressão sobre a vontade do réu, destinada a convencê-lo a cumprir a ordem judicial. (…)É possível a aplicação da multa para constranger ao cumprimento de decisões interlocutórias, sentenças e acórdãos, sempre que nelas se impor a observância de um fazer ou não fazer.18
No caso em foco, tem-se obrigação de fazer - hipótese do art. 461 do CPC -
cuja relevância e perigo na demora do cumprimento justificam a atuação positiva do Estado-
Juiz, no sentido de garantir a efetividade do comando decisório.
17 ALVIN, Arruda, ASSIS, Araken de e ALVIM, Eduardo Arruda. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: GZ, 2012, p. 642.
18 MARINONI, Luiz Guilherme e MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, pp. 4.30 e 431.
19
Relembre-se que o objeto da liminar consiste no atendimento a direito do
adolescente submetido a medida socioeducativa, cuja dignidade vem sendo violada pelas
condições precárias para a execução das medias de semiliberdade e internamento. Logo,
eventual retardamento do ora Recorrente no cumprimento da ordem judicial – inserção da
previsão de construção de unidade de tratamento na lei orçamentária anual do Estado –
implica risco a bens de valor inestimável, a saber, a vida, saúde e dignidade de pessoas em
desenvolvimento.
Necessário, ainda, esclarecer que o fato de ser a Fazenda Pública a devedora
da obrigação não impede a aplicação integral do art. 461 e parágrafos do CPC, uma vez que,
por se estar num estado democrático de direito, os próprios entes públicos submetem-se, como
qualquer particular, aos comandos normativos.
Inexiste brecha, portanto, para se estabelecer diferenciação entre a Fazenda
Pública e qualquer outro sujeito de direitos, exceto se o próprio legislador o fizesse. Nesse
sentido, valiosas as palavras do Ministro Vicente Leal, comentando o artigo 644 CPC19, que
faz remissão explícita ao procedimento do artigo 461 do Código de Ritos:
É que a exegese do artigo 644 da lei processual civil não exclui a possibilidade de utilização desse meio coercitivo contra as pessoas jurídicas de direito público, de vez que, assim como os demais devedores, devem cumprir oportunamente as obrigações de fazer e de não fazer assumidas espontaneamente ou impostas judicialmente. Nesse sentido, ensina Teori Albino Zavascki in "Comentários ao CPC", vol. 8, RT, 2000, p. 505: "Não há razão para excluir as pessoas de direito público desse meio coativo. Também elas, como os demais devedores, devem cumprir tempestivamente as obrigações de fazer e de não fazer assumidas em título extrajudicial ou imposta em sentença. Se a pretensão for indevida, há meios adequados para impugná-la (recurso ou embargos à execução, conforme o caso). Porém, uma vez estabelecido que a obrigação é legítima e que deve ser cumprida, nao mais se justificará a resistência. Caberá ao juiz impor a multa, que será suportada pela instituição, sem prejuízo da ação regressiva contra o servidor ou a autoridade que resistir injustificadamente ao mandado judicial."20
Extraia-se, ainda, excerto de outro julgado proferido pelo Tribunal da
Cidadania, desta vez da relatoria do Ministro Teori Albino Zavascki:
19 Art. 644. A sentença relativa a obrigação de fazer ou não fazer cumpre-se de acordo com o art. 461, observando-se, subsidiariamente, o disposto neste Capítulo.
20 REsp 279475/SP, Rel. Ministro VICENTE LEAL, SEXTA TURMA, julgado em 16/11/2000, DJ 04/12/2000, p. 116. Inteiro teor. Sem negritos no original.
20
Tratando-se de meios executivos para cumprimento de obrigações de fazer e de entregar coisa, deles não se furta a Fazenda Pública, sujeita que está, nessas espécies de obrigação, ao procedimento comum dos artigos transcritos. Assim, indubitavelmente, é cabível, mesmo contra a Fazenda Pública, a cominação de multa diária (astreintes) como meio executivo para cumprimento de obrigação de fazer ou entregar coisa.21
Tem-se, pois, que o Estado do Amapá é parte no processo e devedor da
obrigação de fazer imposta pelo Juízo, não detendo qualquer privilégio que o isente da
imposição de astreintes.
A possibilidade de fixação da multa prevista no art. 461, § 4º, CPC, contra a
Fazenda Pública é matéria pacificada pelo Superior Tribunal de Justiça. Transcrevem-se
precedentes:
AGRAVO REGIMENTAL. PROCESSUAL CIVIL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. INADIMPLEMENTO. FAZENDA PÚBLICA. MULTA. FIXAÇÃO EX OFFICIO. POSSIBILIDADE. VALOR. MATÉRIA FÁTICA. SÚMULA 7/STJ.1. Constitui entendimento unânime das Turmas integrantes da Terceira Seção desta Corte, ser possível a fixação pelo juiz, ex officio, de multa por inadimplemento de obrigação de fazer, ainda que se trate de execução contra a Fazenda Pública. Precedentes.2. Impossível, na via eleita, a aferição do valor fixado a título de multa, vez que tal pretensão demanda incursão à seara fática dos autos (Súmula nº 7/STJ).3. Agravo regimental improvido.22
PROCESSUAL CIVIL. FIXAÇÃO DE ASTREINTES CONTRA A FAZENDA PÚBLICA.POSSIBILIDADE.1. É cabível, mesmo contra a Fazenda Pública, a cominação de multa diária (astreintes) como meio executivo para cumprimento de obrigação de fazer ou entregar coisa (arts. 461 e 461-A do CPC).2. In casu, o Tribunal de origem registrou que a União somente cumpriu a decisão depois de decorrido um ano da determinação judicial, que consistiu na implementação do pagamento de pensão especial de ex-combatente. Fixou, assim, multa diária em seu desfavor. Não há como o STJ analisar a razoabilidade do prazo estabelecido para o cumprimento da obrigação, pois
21 REsp 788122/RS, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 14/03/2006, DJ 03/04/2006, p. 277. Inteiro Teor. Sem negrito no original.
22 AgRg no Ag 334301/SP, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, SEXTA TURMA, julgado em 27/11/2000, DJ 18/12/2000, p. 286, REPDJ 05/02/2001, p. 155. Sem negritos no original.
21
ensejaria reexame fático, inviável nesta instância extraordinária de acordo com a Súmula 7/STJ.3. Agravo Regimental não provido.23
Em situação idêntica à ora analisada – obrigação de construir unidade de
atendimento para menores infratores –, já decidiu o STJ pela aplicação das astreintes:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO ESPECIAL. AGRAVO REGIMENTAL. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211 DO STJ. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. OBRIGAÇÃO DE FAZER. FAZENDA PÚBLICA. INADIMPLEMENTO. COMINAÇÃO DE MULTA DIÁRIA. "ASTREINTES".INCIDÊNCIA DO MEIO DE COERÇÃO.(...)3. A função das astreintes é vencer a obstinação do devedor ao cumprimento da obrigação e incide a partir da ciência do obrigado e da sua recalcitrância.4. In casu, consoante se infere dos autos, trata-se obrigação de fazer, cuja imposição das astreintes objetiva assegurar o cumprimento da decisão judicial que determinou a construção de unidades de atendimento aos menores infratores, onde deverão cumprir as medidas sócio-educativas a que forem condenados.5. "Consoante entendimento consolidado neste Tribunal, em se tratando de obrigação de fazer, é permitido ao juízo da execução, de ofício ou a requerimento da parte, a imposição de multa cominatória ao devedor, mesmo que seja contra a Fazenda Pública." (AGRGRESP 189.108/SP, Relator Ministro Gilson Dipp, DJ de 02.04.2001).Precedentes Jurisprudenciais.6. Agravo regimental desprovido.24
Diga-se, finalmente, que a imposição do pagamento da multa diária somente
ocorrerá no caso de descumprimento da ordem judicial pelo Estado do Amapá. Se não há
intenção de descumprir a ordem, efetivando o dever de o Estado de proteger os menores com
prioridade absoluta, tampouco há risco de imposição da multa, motivo pelo qual não se há
falar em irrazoabilidade de seu valor ou prejuízo ao erário.
23 AgRg nos EDcl no AREsp 161.949/PB, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 16/08/2012, DJe 24/08/2012. Sem negritos no original.
24 AgRg no Ag 1025234/SP, Rel. Ministro LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, julgado em 07/08/2008, DJe 11/09/2008. Sem negritos no original.
22
7. PEDIDO
Face ao exposto, pugna o Ministério Público pelo conhecimento do presente
Agravo de Instrumento e, no mérito, pelo seu improvimento, mantendo-se incólume a decisão
liminar proferida na Ação Civil Pública nº XXXXXXXXXXXXX.
Cidade/AP, dia de mês de ano.
XXXXXXXXXXXXXXXXPromotor de Justiça
OBS: Modelo de contrarrazões elaborada pela central de recursos do Ministério Público da Bahia, com adaptações realizadas pelo CAOP-IJ do Ministério Público do Amapá referentes à legislação do referido Estado.
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