O "Meu Púchkin" de Marina Tsvetáieva: tradução e apresentação
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Aleksandr Púchkin
EVGUÊNI ONIÊGUIN1
Um Romance em Versos
Tradução de Alípio Correia de Franca e Elena Vássina
1 Para a elaboração das notas, valemo-nos dos comentários de Boris Tomachévski, Vladimir Nabokov, Iuri
Lotman, Nikolai Bródski e Sergue Bondi.
Pétri de vanité Il avait encore plus de cette espèce d’orgueil qui fait avouer avec la même
indifférence lês bonnes comme les mauvaises actions, suíte d’um sentiment de supériorité,
peut-être imaginaire.
Tiré d’une lettre particulière.2
2 ―Pleno de vaidade, ele tinha ainda mais esse tipo de orgulho que faz aceitar com a mesma indiferença as
ações boas e más, conseqüência de um sentimento de superioridade, talvez imaginário.‖ (Extraído de uma
carta particular.) A fonte dessa citação não é conhecida.
DEDICATÓRIA3
3 A Dedicatória acompanhou a primeira publicação avulsa do quarto e do quinto capítulos do romance em
1828 e foi feita a P. A. Pletniov (1792-1865), homem de letras e poeta menor que, em anos posteriores,
tornou-se acadêmico e reitor da Universidade de São Petersburgo. Ele conheceu Púchkin em 1817 e
continuou a ser um de seus amigos mais íntimos. A partir de 1825, foi o principal editor do poeta e, depois
que este morreu, seu primeiro biógrafo.
Не мысля гордый свет забавить,
Вниманье дружбы возлюбя,
Хотел бы я тебе представить
Залог достойнее тебя,
Достойнее души прекрасной,
Святой исполненной мечты,
Поэзии живой и ясной,
Высоких дум и простоты;
Но так и быть — рукой пристрастной
Прими собранье пестрых глав,
Полусмешных, полупечальных,
Простонародных, идеальных,
Небрежный плод моих забав,
Бессонниц, легких вдохновений,
Незрелых и увядших лет,
Ума холодных наблюдений
И сердца горестных замет.
Não pensando em recrear os fátuos,
Com apreço da atenção de amigos,
Quem dera eu pudesse, de fato,
Lhe dar algum penhor mais digno
De você, digno de alma tal,
Cheia de santos devaneios,
De poesia, clara, vital,
De singeleza, altos anseios.
Mas seja assim. Com mão parcial
Tome os capítulos diversos,
Meio engraçados, meio tristes,
Ou populares, idealistas,
Frutos incautos de ócio, acessos
De insônia, suave inspiração,
Vida imatura, emurchecida,
Do intelecto, fria observação,
Do coração, nota dorida.
CAPÍTULO I
E corre para viver e se apressa a sentir.
Príncipe Viázemski4
I
«Мой дядя самых честных правил,
Когда не в шутку занемог,
Он уважать себя заставил
И лучше выдумать не мог.
Его пример другим наука;
Но, боже мой, какая скука
С больным сидеть и день и ночь,
Не отходя ни шагу прочь!
Какое низкое коварство
Полуживого забавлять,
Ему подушки поправлять,
Печально подносить лекарство,
Вздыхать и думать про себя:
Когда же черт возьмет тебя!»
I
Meu tio de altíssimos preceitos,
Quando ficou doente à beça,
Logrou dos outros o respeito
Sem invenção melhor do que essa.
O exemplo sirva de lição!
Mas, meu bom Deus!, que amolação,
Passar com um morto-vivo as horas
Sem nunca pôr o pé pra fora!
Que insídia, ter que estar ao pé de um
Doente, entretê-lo o tempo inteiro,
Lhe endireitar o travesseiro,
Com aspecto triste, dar remédio
E com um suspiro, se indagar,
―Quando o diabo vai-te levar?‖
4 A epígrafe é extraída de ―A Primeira Neve‖ (1819), um poema do príncipe Piotr Viázemski (1792-1878),
um amigo íntimo de Púchkin mencionado diversas vezes no Oniêguin e aparecendo em pessoa no Capítulo
VIII. O sujeito da oração é o ―ardor juvenil‖ comparado à excitação de uma corrida de trenó.
II
Так думал молодой повеса,
Летя в пыли на почтовых,
Всевышней волею Зевеса
Наследник всех своих родных.
Друзья Людмилы и Руслана!
С героем моего романа
Без предисловий, сей же час
Позвольте познакомить вас:
Онегин, добрый мой приятель,
Родился на брегах Невы,
Где, может быть, родились вы
Или блистали, мой читатель;
Там некогда гулял и я:
Но вреден север для меня.
III
Служив отлично благородно,
Долгами жил его отец,
Давал три бала ежегодно
И промотался наконец.
II
Pensava assim o nosso boêmio
Num coche5 voando pela poeira,
Por decisão de Zeus supremo
Herdeiro da família inteira.
Amigos de Ruslan e Ludmila6!
Meu herói, eu quero introduzi-lo a
Vocês, por meio de um relato
Sem preâmbulos, de imediato;
Meu amigo, Oniêguin, foi nascido
Próximo às margens do Nievá7 --
Talvez tenha nascido lá,
Brilhado lá, leitor querido!
Também passeei nesse local --
E a mim o Norte8 me fez mal.
III
Após servir exímio e lhano,
O pai emprestava dinheiro;
Dava três bailes todo ano --
Torrou o patrimônio inteiro.
5 No original, literalmente, ―carruagem de posta‖.
6 Ruslan e Ludmila (1820) é um poema pseudo-épico e a primeira grande obra de Púchkin a granjear
popularidade e, embora tenha suscitado o estranhamento dos críticos quando de sua publicação sobretudo em
virtude de uma surpreendente mistura de gêneros e estilos, ela acabaria por consagrar Púchkin como um dos
escritores mais notáveis e promissores da época. 7 Rio que atravessa todo o centro de São Petersburgo.
8 Alusão ao primeiro exílio de Púchkin ao sul do Império russo em 1820, ocorrido devido ao fato de poemas
políticos de Puchkin terem sido considerados subversivos. Reza a nota I de Púchkin ao capítulo: ―Escrito na
Bessarábia‖.
Судьба Евгения хранила:
Сперва Madame за ним ходила,
Потом Monsieur ее сменил.
Ребенок был резов, но мил.
Monsieur l'Abbé, француз убогой,
Чтоб не измучилось дитя,
Учил его всему шутя,
Не докучал моралью строгой,
Слегка за шалости бранил
И в Летний сад гулять водил.
IV
Когда же юности мятежной
Пришла Евгению пора,
Пора надежд и грусти нежной,
Monsieur прогнали со двора.
Вот мой Онегин на свободе;
Острижен по последней моде,
Как dandy лондонский одет —
И наконец увидел свет.
Он по-французски совершенно
Мог изъясняться и писал;
Легко мазурку танцевал
И кланялся непринужденно;
Чего ж вам больше? Свет решил,
A sorte guarda Evguêni Oniêguin:
Para Madame9 foi entregue;
Depois Monsieur a substituiu:
Infante inquieto, mas gentil.
Monsieur l’Abbé, pobre francês,
Pra não afadigar a criança,
Em tudo a instruía com folgança,
Sem regras chatas, sisudez;
Com estripulias, ficava bravo;
Levava-a ao Liétni Sad10
, passeavam.
IV
Quando a estação do ardor adveio
A Evguêni -- tempo em que vigora
Melancolia terna, anseio --
Monsieur foi posto porta afora;
Eis meu Oniêguin solto, ei-lo,
Seguindo a moda no cabelo,
Trajando feito um dandy em Londres --
Enfim ele viu o grand monde.
Falado ou escrito, o seu francês
Era impecável11
; se dançasse a
Mazurca, o passo era com graça;
Saudava de um jeito cortês;
Que queres mais? O mundo viu
9 Os refugiados da Revolução francesa de 1789 na Rússia em geral eram empregados como tutores pelas
famílias aristocráticas russas. 10
O Liétni Sad [literalmente, ―Jardim de Verão‖] é um parque criado pelo imperador Pedro, o Grande, no
centro de São Petersburgo à beira do rio Nievá que na época de Púchkin se tornou um lugar para os passeios
matinais de crianças. 11
Saber falar e escrever em francês impecável era uma exigência da aristocracia russa do século XIX, por
isso, o francês era a primeira língua que se ensinava aos filhos das famílias nobres.
Что он умен и очень мил.
V
Мы все учились понемногу
Чему-нибудь и как-нибудь,
Так воспитаньем, слава богу,
У нас немудрено блеснуть.
Онегин был по мненью многих
(Судей решительных и строгих)
Ученый малый, но педант:
Имел он счастливый талант
Без принужденья в разговоре
Коснуться до всего слегка,
С ученым видом знатока
Хранить молчанье в важном споре
И возбуждать улыбку дам
Огнем нежданных эпиграмм.
VI
Латынь из моды вышла ныне:
Так, если правду вам сказать,
Он знал довольно по-латыне,
Чтоб эпиграфы разбирать,
Потолковать об Ювенале,
В конце письма поставить vale,
Que tinha brilho e era gentil.
V
A gente estuda um pouco disso,
Daquilo e seja como for;
Daí, bom Deus, não ser difícil,
Em nosso meio, o esplendor;
A muitos, nosso Oniêguin era
(Aos de opinião firme e severa)
Alguém versado, mas pedante:
Tinha o talento cativante
De resvalar qualquer matéria
Com jeito, tudo sendo dito
Com ares doutos de perito;
Calava-se em conversa séria,
Fazia as damas rir com as chamas
De inusitados epigramas12
.
VI
Latim saiu de moda agora,
Mas, pra lhe falar a verdade,
Sabia bem latim -- embora
Pra ler epígrafes13
, tratar de
Um poeta como Juvenal14
, e,
Ao concluir cartas, pôr um vale15
,
12
Púchkin usa ―epigrama‖ não como definição do gênero poético (saberemos que Oniêguin não possui
nenhum dom poético), mas como um comentário sarcástico. 13
A palavra epígrafe é usada aqui no sentido original do termo grego (epigrafhé), qual seja, inscrição em
prosa ou verso talhada sobre tumbas ou em outros lugares em honra a pessoas e eventos na Grécia antiga. 14
Juvenal (c. 42-c.125 d. C.) foi um poeta romano satírico, bastante popular entre os decembristas em virtude
das denúncias que fez de despotismo e corrupção.
Да помнил, хоть не без греха,
Из Энеиды два стиха.
Он рыться не имел охоты
В хронологической пыли
Бытописания земли:
Но дней минувших анекдоты
От Ромула до наших дней
Хранил он в памяти своей.
VII
Высокой страсти не имея
Для звуков жизни не щадить,
Не мог он ямба от хорея,
Как мы ни бились, отличить.
Бранил Гомера, Феокрита;
Зато читал Адама Смита
И был глубокой эконом,
То есть умел судить о том,
Как государство богатеет,
И чем живет, и почему
Не нужно золота ему,
Когда простой продукт имеет.
Lembrando uns dois versos inteiros
Da Eneida16
, embora não sem erros.
Da historiografia da terra
Não desejava revolver a
Cronologia e sua poeira,
Mas anedotas de outras eras,
Dos dias de Rômulo até agora
Ele guardava na memória.
VII
Sem o alto afã de não poupar-se
Em prol de sons, troqueus e jambos,
Por muito que se pelejasse,
Jamais distinguiria entre ambos;
Homero17
e Teócrito18
eram ruins,
Mas lia em troca Adam Smith19
E era um economista e tanto,
Isto é, avaliava quanto
Faz rico o Estado, do que vive,
Por que motivo, quando tem
Produto simples20
, o ouro vem
A ser de todo prescindível.
15
Forma epistolar latina no arremate de uma carta. 16
Poema épico de Vergílio (70-19 a. C.). 17
Antigo poeta grego, a quem se atribui a autoria da Ilíada e da Odisséia. 18
Antigo poeta grego, autor de célebres idílios, que floresceu no terceiro século antes de Cristo. Iúri Lotman
lembra que os pré-românticos russos, à procura de uma cultura nacional e popular contraposta à precedente
tendência elitista e ocidental do rococó, traduziram extensamente Homero e Teócrito e neles se inspiraram. 19
Economista escocês (1723-1790) que influenciou bastante as ideias politico-econômicas dos membros da
conspiração dos dezembristas – revolucionários da alta nobreza russa que participaram da revolta contra a
coroação do czar Nicolau I em 14 de dezembro de 1825. Embora Púchkin não fosse um participante direto
desse movimento revoucionário, ele tinha vários amigos próximos entre dezembristas..
20 Um dogma fundamental da teoria econômica fisiocrata, que se originou na França do século XVIII, de
acordo com o qual a riqueza se baseava no ―produit net‖ da agricultura. O interesse pela economia política foi
um traço característico da juventude russa no período de 1818 -1820.
Отец понять его не мог
И земли отдавал в залог.
VIII
Всего, что знал еще Евгений,
Пересказать мне недосуг;
Но в чем он истинный был гений,
Что знал он тверже всех наук,
Что было для него измлада
И труд, и мука, и отрада,
Что занимало целый день
Его тоскующую лень, —
Была наука страсти нежной,
Которую воспел Назон,
За что страдальцем кончил он
Свой век блестящий и мятежный
В Молдавии, в глуши степей,
Вдали Италии своей
IX
.....................................
.....................................
.....................................
O pai não pôde compreendê-lo
E hipotecou as terras dele.
VIII
O mais que conhecia Evguêni
Falta ocasião pra que o relate;
Mas no que ele era mesmo um gênio,
O que sabia mais que às artes,
O que lhe fora desde o início
Batente, júbilo, suplício
E o que ocupava cada instante
De sua indolência angustiante
Era a arte da paixão airosa
Que Naso21
decantou em loas,
Por que sofreu, e então findou a
Sua era ilustre e tempestuosa
Na Moldávia, na estepe densa,
Longe da Itália de nascença.
IX22
....................................
....................................
....................................
21
Trata-se do poeta romano Públio Ovídio Naso (43 a. C.-16 d. C.), autor das Metamorfoses e do escandaloso
poema erótico A Arte de Amar, com quem Púchkin sentia ter certa afinidade em virtude de seu exílio: Ovídio
morreu em exílio junto ao Mar Negro. Diga-se que a alusão à A Arte de Amar de Ovídio acrescenta uma
nuança pejorativa ao caráter das aventuras amorosas de Evguêni. 22
Na edição de Evguêni Oniêgui, Púchkin omitiu esta estrofe, indicando a omissão com três linhas
pontilhadas. Diga-se aliás que, ao longo do poema, as estrofes omitidas são de três tipos; as escritas e
descartadas; as que Púchkin intentava escrever mas nunca levou a cabo; e as vazadas num estilo irônico a
modo de Sterne, Byron e Hoffmann. O importante é que as estrofes omitidas deveriam ser compreendidas não
como uma ―lacuna‖ do texto, mas como pausas semânticas com o efeito estético de sugerir, como ressaltou o
célebre teórico do formalismo russo, Iúri Tyniánov, que o romance que se lê extrapola a representação dessas
mesmas estrofes estrofes.
X
Как рано мог он лицемерить,
Таить надежду, ревновать,
Разуверять, заставить верить,
Казаться мрачным, изнывать,
Являться гордым и послушным,
Внимательным иль равнодушным!
Как томно был он молчалив,
Как пламенно красноречив,
В сердечных письмах как небрежен!
Одним дыша, одно любя,
Как он умел забыть себя!
Как взор его был быстр и нежен,
Стыдлив и дерзок, а порой
Блистал послушною слезой!
XI
Как он умел казаться новым,
Шутя невинность изумлять,
Пугать отчаяньем готовым,
Приятной лестью забавлять,
Ловить минуту умиленья,
Невинных лет предубежденья
Умом и страстью побеждать,
Невольной ласки ожидать,
Молить и требовать признанья,
Подслушать сердца первый звук,
X
Quão cedo soube usar disfarces,
Velar o anseio, mostrar ciúme,
Levar a crer, desenganar, se
Mostrar apático, com aziúme,
Submisso e com altivez -- fazer-se
Solícito, sem interesse!
Com que langor silenciava,
Quão inflamadas suas palavras,
Nas cartas de amor, que descaso!
Respirando, amando um objeto,
Como esquecia de si! Que inquieto
E terno, tímido e audaz o
Olhar, que às vezes de repente
Luzia com a lágrima obediente!
XI
Quão hábil em mudar-se inteiro,
Pasmar, por graça, a mente ingênua,
Dar sustos com ágil desespero,
Recrear com uma lisonja amena,
Captar o instante da ternura,
Os preconceitos da alma pura
Ganhar com ardis e ardor, estar à
Cata do afago involuntário,
Pedir, forçar a confissão,
Sondar numa alma o som nascente,
Преследовать любовь, и вдруг
Добиться тайного свиданья...
И после ей наедине
Давать уроки в тишине!
XII
Как рано мог уж он тревожить
Сердца кокеток записных!
Когда ж хотелось уничтожить
Ему соперников своих,
Как он язвительно злословил!
Какие сети им готовил!
Но вы, блаженные мужья,
С ним оставались вы друзья:
Его ласкал супруг лукавый,
Фобласа давний ученик,
И недоверчивый старик,
И рогоносец величавый,
Всегда довольный сам собой,
Своим обедом и женой.
XIII, XIV
.................................
.................................
.................................
Seguir o amor -- subitamente,
Lograr secreto encontro... então
Permanecer com ela a sós
E dar lições sem som de voz!
XII
Quão apto a causar tormento
Numa coquete declarada!,
Ou toda vez que tinha o intento
De reduzir rivais a nada,
Suas frases, como eram mordazes!
Que iscas deitava a esses rapazes!
Só que vocês, santos maridos,
Seguiam seus amigos queridos:
Mimavam-no o esposo astuto,
Há muito aluno de Faublas23
,
E o homem velho e suspicaz
E o magnânimo cornuto,
Feliz consigo a toda hora,
Com seu jantar, sua senhora.
XIII, XIV
........................................
........................................
........................................
23
Um sedutor de dezesseis anos de jovens esposas no romance libertino Les amours du Chevalier de
Faublas, de Jean-Batiste Louvet de Couvrai (1760-1797).
XV
Бывало, он еще в постеле:
К нему записочки несут.
Что? Приглашенья? В самом деле,
Три дома на вечер зовут:
Там будет бал, там детский праздник.
Куда ж поскачет мой проказник?
С кого начнет он? Все равно:
Везде поспеть немудрено.
Покамест в утреннем уборе,
Надев широкий боливар,
Онегин едет на бульвар
И там гуляет на просторе,
Пока недремлющий брегет
Не прозвонит ему обед.
XVI
Уж тѐмно: в санки он садится.
«Пади, пади!» — раздался крик;
Морозной пылью серебрится
Его бобровый воротник.
К Talon помчался: он уверен,
Что там уж ждет его Каверин.
XV
Acontecia, com ele no leito,
De receber bilhetes. Quê?
Convites? Três casas, com efeito,
Estão chamando pra soirée!
Nesta, um baile, naquela, festa
De moças. Mas para qual destas
Nosso maroto correrá?
Por qual começa? Ora, dá
Pra ir às três. Largo bolívar24
E trajes informais por ora,
Oniêguin, bulevar25
afora,
Passeia na amplitude livre,
Até que o Bréguet26
alerta indique
A hora do almoço num repique.
XVI
Já escuro. Ele entra num trenó.
O grito ecoa, ―Eia! Eia!‖27
.
A neve, caindo como um pó,
À gola de castor prateia.
Corre ao Talon28
. Há quem o espere
Já ali, bem sabe -- é Kaviérin29
;
24
Um chapéu de seda com uma aba grande e dobrada, cujo nome advém de Simon Bolívar (1783-1830),
libertador latino-americano e ídolo dos liberais europeus nos anos de 1820. O próprio Púchkin usava o chapéu
à la Bolivar. 25
Trata-se da avenida Niévski na qual até 1820 havia uma alameda de tílias chamada de bulevar. Por volta
das 14 horas tornava-se o lugar predileto para os passeios da alta sociedade petersburguesa. Diga-se que
Nikolai Gógol descreveu esses passeios em sua novela ―Avenida Niévski‖. 26
Um relógio de repetição, inventado pelo relojoeiro parisiense Abraham Louis Bréguet (1747-1823). Um
mecanismo de corda possibilitava ao relógio, enquanto fechado, soar as horas ou os minutos. 27
As interjeições, aqui, se referem ao grito do cocheiro aos pedestres. 28
Um restaurante na avenida Niévski, dirigido por um francês até a primavera de 1825.
Вошел: и пробка в потолок,
Вина кометы брызнул ток;
Пред ним roast-beef окровавленный,
И трюфли, роскошь юных лет,
Французской кухни лучший цвет,
И Страсбурга пирог нетленный
Меж сыром лимбургским живым
И ананасом золотым.
XVII
Еще бокалов жажда просит
Залить горячий жир котлет,
Но звон брегета им доносит,
Что новый начался балет.
Театра злой законодатель,
Непостоянный обожатель
Очаровательных актрис,
Почетный гражданин кулис,
Онегин полетел к театру,
Где каждый, вольностью дыша,
Готов охлопать entrechat,
Обшикать Федру, Клеопатру,
Моину вызвать (для того,
Entrou – e a rolha ao teto; agora
O vinho do cometa30
jorra;
Roast-beef 31
sangra adiante, à farta;
As trufas, luxo juvenil,
Primor que a França produziu;
A torta de Estrasburgo, intata32
,
Entre o Limburger33
vivedouro
E junto ao ananás de ouro.
XVII
Mais uma taça, a sede clama,
Contra os croquetes quentes lá,
Mas o som do Bréguet proclama
Que outro balé começa já.
Legislador teatral tirano,
Também adorador leviano
De atrizes belas que ele visse,
Cidadão de honra das coulisses,
Oniêguin voa ao teatro, e queda
Com quem, haurindo liberdade34
,
Quer salvar o entrechat35
, com alarde
Silvar a Cleópatra, a Fedra
E a Moína36
ovacionar com força
29
Piotr Kaviérin (1794-1855), hussardo e duelista, colega de Liceu de Tzárskoe Seló e companheiro de
Púchkin durante seus primeiros anos em Petersburgo, também estudante em Göttingen (1810-1811) e
decembrista. Vale ressaltar que Oniêguin é introduzido no real ambiente biográfico de Púckin. 30
Assim foi cognominado o champanhe da safra do chamado ―ano do cometa‖ em 1811. 31
Iguaria da cozinha inglesa que entrou em voga na Rússia no final da década de 1810. 32
A torta em questão era feita de fígado de ganso e importada em latas, portanto, ―conservada‖. Na verdade, a
comida enlatada foi uma invenção surgida durante as guerras napoleônicas. 33
Trata-se de um queijo belga, tenro e de sabor forte a que o epíteto de ―vivedouro‖ se liga em virtude da
―poeira viva‖ de micróbios que o recobria. 34
Literalmente, ―onde todos, respirando liberdade‖. Trata-se de um galicismo a partir de ―respirer l’air de la
liberté‖. No levante decembrista, o poeta Riléiev observou: ―Estamos respirando liberdade‖. 35
No balé, salto durante o qual o bailarino cruza os pés rapidamente, um na frente do outro, várias vezes
Чтоб только слышали его).
XVIII
Волшебный край! там в стары годы,
Сатиры смелый властелин,
Блистал Фонвизин, друг свободы,
И переимчивый Княжнин;
Там Озеров невольны дани
Народных слез, рукоплесканий
С младой Семеновой делил;
Там наш Катенин воскресил
Корнеля гений величавый;
Там вывел колкий Шаховской
Своих комедий шумный рой,
Там и Дидло венчался славой,
Там, там под сению кулис
Младые дни мои неслись.
(Apenas pra que os outros o ouçam).
XVIII
Mundo encantado! Em tempo antigo37
,
O rei das sátiras brilhava
Ali, Fonvízin38
, um amigo
Da liberdade, e o que imitava,
Kniajnin39
naturais tributos –
Aplausos, lágrimas de muitos --
Ózerov40
dividiu com a jovem
Semiônova; deu vida nova
Ao gênio de Cornelle outrora
Katiênin41
; Chakhovskói42
, feroz, as
Suas mil comédias ruidosas
Deu à luz; Didlo43
banhou-se em glória;
Lá, lá, à sombra das coullisses,
Vi minha juventude esvair-se.
36
São apresentadas aqui as personagens das apresentações mais populares da época. ―Cleópatra, Fedra…
Moína‖: não se sabe ao certo em que obra Cleópatra figurava. Já Fedra é a heroína de uma ópera adaptada da
tragédia de Racine do mesmo nome. Moína é a heroína de uma tragédia de Ózerov. 37
Antes do exilio ao sul da Rússia em 1820, Púchkin passou por um período de intenso envolvimento com a
vida teatral petersburguesa e com acalorados debates sobre as tendências de desenvolvimento do teatro russo. 38
Denis Fonvízin (1745-1792), o mais importante dramaturgo do Iluminismo russo e autor da peça satírica O
jovem ignorante. 39
Iákov Kniajnin (1742-1791), imitador de comédias e tragédias francesas. 40
Vladislav Ózerov (1769-1816), dramaturgo popular e autor de cinco tragédias em estilo francês
consideradas ―medíocres‖por Puchkin, em que pese sua exaltação das atuações de Ekaterina Semiônova em
peças desse autor. 41
Pável Katiênin (1792-1853), dramaturgo, crítico e dezembrista, que traduziu a peça Le Cid, de Corneille,
acirrando os ideais dezembristas. Ver Capítulo I, estrofe XVIII. 42
O príncipe Aleksandr Chakhovskói (1777-1846), diretor teatral e autor de comédias satirizando os
escritores então contemporâneos. 43
Charles Louis Didelot, ou didlo (1767-1837), célebre dançarino e coreógrafo em São Petersburgo.
XIX
Мои богини! что вы? где вы?
Внемлите мой печальный глас:
Всѐ те же ль вы? другие ль девы,
Сменив, не заменили вас?
Услышу ль вновь я ваши хоры?
Узрю ли русской Терпсихоры
Душой исполненный полет?
Иль взор унылый не найдет
Знакомых лиц на сцене скучной,
И, устремив на чуждый свет
Разочарованный лорнет,
Веселья зритель равнодушный,
Безмолвно буду я зевать
И о былом воспоминать?
XX
Театр уж полон; ложи блещут;
Партер и кресла — все кипит;
В райке нетерпеливо плещут,
И, взвившись, занавес шумит.
Блистательна, полувоздушна,
Смычку волшебному послушна,
Толпою нимф окружена,
Стоит Истомина; она,
Одной ногой касаясь пола,
Другою медленно кружит,
И вдруг прыжок, и вдруг летит,
XIX
Deusas! Que houve?, Onde estão vocês?
Ouçam minha voz de pesar:
São as mesmas? Tomaram sua vez
Outras jovens, sem a tomar?
Hei de ouvir seu coro magnífico?,
O vôo inspirado da Terpsícora44
Russa -- hei de o ver? Ou, com desgosto,
O olhar não achará um rosto
Familiar no palco entediante,
E a um mundo alheio tendo voltado
Certo lorgnon desencantado,
Do gáudio espectador distante,
Vou bocejar, e então, sem fala,
Vida passada, recordá-la?
XX
Lotado o teatro. Camarote
Reluz; platéia ou parterre -- fervilha;
Com impaciência, salvam forte
Na torrinha, e o pano sibila,
Subindo. Meio etérea, esplendente,
Ao arco mágico obediente
E cercada de ninfas em bando
Está Istômina45
: ela, tocando
O piso com um dos pés, com graça
Gira o outro, e súbito eis um salto,
Súbito voa, qual felpa no alto
44
Antiga deusa grega da dança. 45
Avdôtia Istômina (1799-1848), a primeira bailarina do balé de Petersburgo, aluna de Didelot.
Летит, как пух от уст Эола;
То стан совьет, то разовьет
И быстрой ножкой ножку бьет.
XXI
Все хлопает. Онегин входит,
Идет меж кресел по ногам,
Двойной лорнет скосясь наводит
На ложи незнакомых дам;
Все ярусы окинул взором,
Всѐ видел: лицами, убором
Ужасно недоволен он;
С мужчинами со всех сторон
Раскланялся, потом на сцену
В большом рассеянье взглянул,
Отворотился — и зевнул,
И молвил: «Всех пора на смену;
Балеты долго я терпел,
Но и Дидло мне надоел».
XXII
Еще амуры, черти, змеи
На сцене скачут и шумят;
Еще усталые лакеи
На шубах у подъезда спят;
Еще не перестали топать,
Сморкаться, кашлять, шикать, хлопать;
Еще снаружи и внутри
Que lá dos lábios de Éolo46
esvoaça;
A cintura torce, destorce
E bate um no outro os pés velozes.
XXI
Uma só salva. Oniêguin entra,
Pisando os pés entre as poltronas;
Oblíquo, a seu lorgnon concentra
Nos camarotes, onde há donas
Desconhecidas; perquiriu
Fileiras, tudo; os atavios
E as caras causam-lhe um enfado
Horrendo; e a homens de todo lado
Saudou; com ar abstraído,
Lançou um olhar ao palco, ali se
Voltou, soltou um bocejo e disse:
―Hora de serem substituídos;
Balés, os aturei bastante
E o próprio Didlo é entediante.‖
XXII
Cupido, demo, serpe aos saltos
Estrondam no tablado; reles
Lacaios, no porte-cochére e exaustos,
Ainda estão dormindo em peles;
Nem se parou de patear,
Assoar, tossir, silvar, salvar;
Dentro e fora luz de candeia
46
Antigo deus grego do vento.
Везде блистают фонари;
Еще, прозябнув, бьются кони,
Наскуча упряжью своей,
И кучера, вокруг огней,
Бранят господ и бьют в ладони —
А уж Онегин вышел вон;
Домой одеться едет он.
XXIII
Изображу ль в картине верной
Уединенный кабинет,
Где мод воспитанник примерный
Одет, раздет и вновь одет?
Все, чем для прихоти обильной
Торгует Лондон щепетильный
И по Балтическим волнам
За лес и сало возит нам,
Все, что в Париже вкус голодный,
Полезный промысел избрав,
Изобретает для забав,
Для роскоши, для неги модной, —
Все украшало кабинет
Философа в осьмнадцать лет.
Em todo canto ainda clareia;
Corcéis, sentindo frio, se agitam
Com arreios; perto de fogueiras,
Maldizem a amos os cocheiros,
E batem palmas, as atritam;
No entanto, Oniêguin foi-se já
Pra casa; vai trocar-se lá.
XXIII
Devo fielmente descrevê-lo,
O gabinete oculto onde este
Que segue a moda e é seu modelo
Se veste, desveste, reveste?
O que, ao capricho em disparate,
Trafega Londres, a Mascate,
E em ondas bálticas nos vem a
Nós por nosso sebo e lenha;
O que, em Paris, a avidez toda,
Optando por negócio útil,
Por passatempo inventa e nutre o
Luxo, o requinte da moda --
Isso orna o gabinete a gosto
Para o filósofo aos dezoito.
XXIV
Янтарь на трубках Цареграда,
Фарфор и бронза на столе,
И, чувств изнеженных отрада,
Духи в граненом хрустале;
Гребенки, пилочки стальные,
Прямые ножницы, кривые
И щетки тридцати родов
И для ногтей и для зубов.
Руссо (замечу мимоходом)
Не мог понять, как важный Грим
Смел чистить ногти перед ним,
Красноречивым сумасбродом.
Защитник вольности и прав
В сем случае совсем неправ.
XXV
Быть можно дельным человеком
И думать о красе ногтей:
К чему бесплодно спорить с веком?
Обычай деспот меж людей.
Второй Чадаев, мой Евгений,
Боясь ревнивых осуждений,
XXIV
Cachimbos de âmbar de Czargrad47
,
Na mesa, bronze e porcelana;
O que aos sentidos lhes agrada e
De cristal facetado emana –
Perfume48
; limazinhas feitas
De aço; pentes, tesouras, retas,
Recurvas; umas trinta espécies
De escova – essa, unhas, dentes, essa.
Para Rousseau49
(digo-o en passant)
O ilustre Grimm50
ousou limpar a
Unha bem na sua cara,
Aquele tão loquaz tantã.
Pró liberdade, pró direito,
No caso não pensou direito.
XXV
É dado ser homem de ação
E ver se as unhas estão boas.
Por que afrontar o tempo em vão?
Costume é déspota às pessoas.
Outro Tchaadáiev51
, meu Evguêni,
Temendo a crítica e o mau-gênio,
47
Literalmente, ―cidade de césares‖, antigo nome russo para Constantinopla. 48
Os perfumes eram uma novidade da moda no começo do século XIX. 49
Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), escritor e filósofo francês.Numa nota, Púchkin cita extensivamente a
descrição que o filósofo faz da toalete de Grimm em suas Confissões. 50
Trata-se de Melchior Grimm (1723-1807), enciclopedista francês de extração germânica que foi
correspondente da imperiatriz Catarina II. 51
Piotr Tchaadáiev (1794-1856), reconhecido na alta sociedade russa como um modelo de ―dandy‖
verdadeiro, foi importante escritor e filósofo, amigo do jovem Púchkin, que o considerou seu mentor em
assuntos políticos e filosóficos. Famoso por suas Cartas filosóficas, Tchaadáiev comparou a história russa de
maneira desfavorável com a do Ocidente, do que Púchkin haveria de discordar.
В своей одежде был педант
И то, что мы назвали франт.
Он три часа по крайней мере
Пред зеркалами проводил
И из уборной выходил
Подобный ветреной Венере,
Когда, надев мужской наряд,
Богиня едет в маскарад.
XXVI
В последнем вкусе туалетом
Заняв ваш любопытный взгляд,
Я мог бы пред ученым светом
Здесь описать его наряд;
Конечно б это было смело,
Описывать мое же дело:
Но панталоны, фрак, жилет,
Всех этих слов на русском нет;
А вижу я, винюсь пред вами,
Что уж и так мой бедный слог
Пестреть гораздо б меньше мог
Иноплеменными словами,
Хоть и заглядывал я встарь
В Академический словарь.
Ao se vestir, era um pedante
E aquilo a que chamamos frant52
.
Ele três horas pelo menos
Passava em frente de um espelho;
Saindo do toucador, tinha ele o
Ar doidivanas de uma Vênus,
Quando, como homem já trajada,
A deusa acorre à mascarada.
XXVI
A olhos curiosos tendo dado
A nova moda em toaletes,
Posso, ante o mundo dos versados,
Fazer a descrição das vestes;
Seria ousado fazer isso,
Mas descrever é meu ofício;
No entanto em russo ainda não há
Nem pantalons, gilet, nem frac53
--
Ao passo que (disso me escuso)
Sei que meu estilo, ordinário,
Podia ser muito menos vário
Pelos estrangeirismos que uso --
Mesmo com as incursões um dia
No Léxico da Academia54
.
52
―Janota‖, ou ―almofadinha‖, em russo. 53
Pantalon [calças], gilet [colete] e frac [fraque] eram itens relativamente novos do vestuário no começo do
século XIX, e por isso não tinham ainda nomes russos equivalentes. 54
Alusão ao Dicionário da Academia em 6 volumes (1789-1794), que, por ser regido pelo princípio do
purismo da língua russa, não incluía palavras de origem estrangeira.
XXVII
У нас теперь не то в предмете:
Мы лучше поспешим на бал,
Куда стремглав в ямской карете
Уж мой Онегин поскакал.
Перед померкшими домами
Вдоль сонной улицы рядами
Двойные фонари карет
Веселый изливают свет
И радуги на снег наводят;
Усеян плошками кругом,
Блестит великолепный дом;
По цельным окнам тени ходят,
Мелькают профили голов
И дам и модных чудаков.
XXVIII
Вот наш герой подъехал к сеням;
Швейцара мимо он стрелой
Взлетел по мраморным ступеням,
Расправил волоса рукой,
Вошел. Полна народу зала;
Музыка уж греметь устала;
Толпа мазуркой занята;
Кругом и шум и теснота;
Бренчат кавалергарда шпоры;
XXVII
Mas isso é irrelevante a nós:
Melhor correr pro baile, ao qual,
Num coche de aluguel, veloz,
Meu Oniêguin seguiu, triunfal.
Em frente a escuros casarios,
Por rua sonolenta, ali os
Dois faróis dos coches deitam
Uma luz vívida, e projetam
Os arco-íris sobre a neve;
Na casa esplêndida, luz vem das
Lanternas que a rodeiam; além das
Vidraças, sombras passam leves:
Silhuetas lá, vagueando à roda –
Damas e excêntricos na moda.
XXVIII
Eis que o herói foi pra entrada agora;
Passou o porteiro, como seta,
Subiu a escadaria marmórea,
Se desgrenhou de forma certa,
Entrou. Lotado o salão todo;
Cansou-se a música de estrondo;
Para a mazurca ali se volta;
Se fala e acotovela à volta;
A Guarda55
faz tinir esporas;
55
Literalmente, ―Guarda de Cavaleiros‖. Esta era um regimento privado da cavalaria, criado sob o governo do
imperador Paulo I (1796-1801) para contrabalançar o já existente regimento da Cavalaria. A Guarda de
Cavaleiros se distinguia por sua alta estatura e pelos uniformes com pedrarias. Contudo, no rascunho
Летают ножки милых дам;
По их пленительным следам
Летают пламенные взоры,
И ревом скрыпок заглушен
Ревнивый шепот модных жен.
XXIX
Во дни веселий и желаний
Я был от балов без ума:
Верней нет места для признаний
И для вручения письма.
О вы, почтенные супруги!
Вам предложу свои услуги;
Прошу мою заметить речь:
Я вас хочу предостеречь.
Вы также, маменьки, построже
За дочерьми смотрите вслед:
Держите прямо свой лорнет!
Не то... не то, избави боже!
Я это потому пишу,
Что уж давно я не грешу.
XXX
Увы, на разные забавы
Я много жизни погубил!
Но если б не страдали нравы,
Voam pequenos pés de damas
Atraentes; voa o olhar em chamas
Atrás, nas trilhas tentadoras;
Violinos troam, pondo em surdina
Cicios ciumentos de grã-finas.
XXIX
Nos dias de farra e de paixões,
Com bailes me inebriava à farta;
Perfeitos pra declarações,
Pra se entregar alguma carta.
Maridos respeitáveis! Eis
Os meus serviços a vocês;
Escutem minha voz, lhes rogo:
Eu quero adverti-los logo.
Mamães, vocês também! As mais
Severas, olhem suas filhas:
Usem lorgons para segui-las!
Ou então... então... Deus dê-lhes paz!
E se escrevo isso é com um intuito --
Dizer-lhes que não peco há muito.
XXX
Ai, numa diversão variada
Eu joguei tanta vida fora!
Não fosse a moral avariada,
manuscrito do texto, Púchkin incluiu uma nota afirmando que, de fato, os oficiais da Guarda dos Cavaleiros
apareciam nos bailes usando botas comuns, mas que ele incluiu as esporas à indumentária a fim de conferir
um ―toque‖ poético à cena. Iúri Lotman chama atenção a essa disputa dialógica entre o autor-poeta e autor-
prosador.
Я балы б до сих пор любил.
Люблю я бешеную младость,
И тесноту, и блеск, и радость,
И дам обдуманный наряд;
Люблю их ножки; только вряд
Найдете вы в России целой
Три пары стройных женских ног.
Ах! долго я забыть не мог
Две ножки... Грустный, охладелый,
Я всѐ их помню, и во сне
Они тревожат сердце мне.
XXXI
Когда ж и где, в какой пустыне,
Безумец, их забудешь ты?
Ах, ножки, ножки! где вы ныне?
Где мнете вешние цветы?
Взлелеяны в восточной неге,
На северном, печальном снеге
Вы не оставили следов:
Любили мягких вы ковров
Роскошное прикосновенье.
Давно ль для вас я забывал
И жажду славы и похвал,
И край отцов, и заточенье?
Исчезло счастье юных лет,
Как на лугах ваш легкий след.
Apreciaria um baile agora.
Amo a juventude selvagem,
O aperto e o brilho e a farra, o traje
Que a dama escolhe a dedo, e pés
Pequenos56
; mas você talvez
Não encontre em toda a Rússia ao menos
Três pares com uma forma grácil.
Ai! Esquecê-los não foi fácil,
Dois pezinhos... triste, sereno,
Os lembro, e em sono de regresso
Me põem o coração opresso.
XXXI
Quando e onde, em qual reclusão,
Louco, não vai lembrá-los mais?
Ai, ai, pezinhos, onde estão?
Onde pisam flores vernais?
Criados no requinte oriental,
Na triste neve boreal
Sua marca não se imprimiu.
Gostavam do tapiz macio
De toque luxuriante. Mas,
Deixei há muito e em seu favor
Fome de fama ou de louvor?,
Prisão, a terra de meus pais?
O ânimo jovem foi-se breve
Como em vergéis seu rastro leve.
56
Segundo Boris Tomachévski, na época da concepção deste romance, Púchkin era tributário do assim
chamado do ―culto do pezinho feminino‖, seus manuscrtitos estando repletos de desenhos de pés femininos. A
difusão de suas conotações eróticas se deve ao sucesso do romance «Le Pied de Fanchette» (1769), do escritor
francês Restif de la Bretonne (1729—1806)
XXXII
Дианы грудь, ланиты Флоры
Прелестны, милые друзья!
Однако ножка Терпсихоры
Прелестней чем-то для меня.
Она, пророчествуя взгляду
Неоцененную награду,
Влечет условною красой
Желаний своевольный рой.
Люблю ее, мой друг Эльвина,
Под длинной скатертью столов,
Весной на мураве лугов,
Зимой на чугуне камина,
На зеркальном паркете зал,
У моря на граните скал.
XXXIII
Я помню море пред грозою:
Как я завидовал волнам,
Бегущим бурной чередою
XXXII
O seio em Diana ou a face em Flora,
Amigos queridos, fascina!
Só que o pé de Terpsícora, ora,
Me fascina mais.Vaticina
A recompensa para o olhar
Que não é dado aquilatar,
Com a marca do belo atrai a nós os
Desejos de enxames teimosos.
Amo-o, cara Elvina57
, sob toalhas
Compridas nas mesas, me enleva
Na primavera sobre a relva,
No inverno, em guarda-fogo, em salas
No espelho do parquete, visto
No mar em rochas de granito.
XXXIII58
Lembro o mar antes da tormenta:
Como invejei a onda da vez
Manando e amando turbulenta
57
Nome poético convencional frequente na poesia erótica entre o final do século XVIII e o início do século
XIX. 58
A estrofe XXXIII foi introduzida no primeiro capítulo mais de um ano depois de criado o corpus do texto
principal. Escrita durante a composição do terceiro capítulo em junho de 1824 em Odessa, a estrofe em
questão, além de ser uma declação sincera e apaixonada do autor, estilisticamente visa um contraste irônico
com imagens poéticas convencionais.
С любовью лечь к ее ногам!
Как я желал тогда с волнами
Коснуться милых ног устами!
Нет, никогда средь пылких дней
Кипящей младости моей
Я не желал с таким мученьем
Лобзать уста младых Армид,
Иль розы пламенных ланит,
Иль перси, полные томленьем;
Нет, никогда порыв страстей
Так не терзал души моей!
XXXIV
Мне памятно другое время!
В заветных иногда мечтах
Держу я счастливое стремя...
И ножку чувствую в руках;
Опять кипит воображенье,
Опять ее прикосновенье
Зажгло в увядшем сердце кровь,
Опять тоска, опять любовь!..
Но полно прославлять надменных
Болтливой лирою своей;
Они не стоят ни страстей,
Ни песен, ими вдохновенных:
Слова и взор волшебниц сих
Обманчивы... как ножки их.
Ir-se prostrar ante os seus pés!
O quanto ansiei com a onda tocar
Com os lábios esses pés sem par!
Não, nunca, na estação distante
Da juventude fervilhante,
Ansiei beijar com tanta dor
Os lábios de jovens Armidas59
,
Rosas de faces incendidas
Ou seios cheios de langor --
Não, a onda das paixões em mim
Nunca partiu minha alma assim!
XXXIV
Lembro outro instante no passado!
Em sonhos caros de ora em vez
Seguro o estribo abençoado...
E a palma sente os gráceis pés.
Uma outra vez a mente ferve,
Uma outra vez o toque breve
Ateou no coração já seco
O sangue, uma outra vez o cerco
De amor, fastio! Chega de lira
Que exalte as cheias de desdém,
Não valem as paixões e nem
Canções que cada uma inspira;
A olhada e a voz de feiticeiras
São como os pezinhos... traiçoeiras.
59
Heroína do poema épico Jerusalém libertada de Torquato Tasso (1544-1595), no presente contexto
apresentando conotações de ―feiticeira‖ e sedutora.
XXXV
Что ж мой Онегин? Полусонный
В постелю с бала едет он:
А Петербург неугомонный
Уж барабаном пробужден.
Встает купец, идет разносчик,
На биржу тянется извозчик,
С кувшином охтенка спешит,
Под ней снег утренний хрустит.
Проснулся утра шум приятный.
Открыты ставни; трубный дым
Столбом восходит голубым,
И хлебник, немец аккуратный,
В бумажном колпаке, не раз
Уж отворял свой васисдас.
XXXVI
Но, шумом бала утомленный
И утро в полночь обратя,
Спокойно спит в тени блаженной
Забав и роскоши дитя.
Проснется за полдень, и снова
До утра жизнь его готова,
Однообразна и пестра.
XXXV
E meu Oniêguin? Em suave
Torpor guia do baile à cama:
E a Petersburgo infatigável
Acorda com o tambor.60
Eis chama
O mascate, de pé o vendeiro,
Ao ponto se arrasta o cocheiro,
Vai-se a jovem de Okhta61
com a bilha
E a neve estala em sua trilha.
Acorda a manhã em rumor melódico,
Se abrem persianas, a fumaça
Azul da chaminé em rolo esvoaça
E o padeiro, alemão metódico,
Com quepe de algodão, aliás
Abriu e fechou seu vasisdás62
.
XXXVI
Mas, farto de rumor de baile
E a manhã madrugada feita,
Dorme em paz à sombra que embala
O filho do luxo e deleite.
Acorda após o almoço, e para
A manhã a vida ele a prepara,
Monótona e multicor.
60
Toque de despertar nos quarteis situados em vários locais da cidade. 61
Região remota de São Petersburgo, com uma população constituída basicamente de finlandeses muitas
vezes responsáveis pelo fornecimento de produtos derivados do leite. No caso, a jovem é uma leiteira. 62
No presente contexto, ―vasisdás‖ designa uma simples ―vidro de vidraça‖, semelhante a ―portas de correr‖
com vidro. Supôe-se que a palavra seja uma corruptela da palavra francesa vasistas, designando um pequeno
painel com vidro e, por sua vez, uma corruptela do alemão was ist das? [―o que é isto?‖].
И завтра то же, что вчера.
Но был ли счастлив мой Евгений,
Свободный, в цвете лучших лет,
Среди блистательных побед,
Среди вседневных наслаждений?
Вотще ли был он средь пиров
Неосторожен и здоров?
XXXVII
Нет: рано чувства в нем остыли;
Ему наскучил света шум;
Красавицы не долго были
Предмет его привычных дум;
Измены утомить успели;
Друзья и дружба надоели,
Затем, что не всегда же мог
Beef-stеаks и стразбургский пирог
Шампанской обливать бутылкой
И сыпать острые слова,
Когда болела голова;
И хоть он был повеса пылкой,
Но разлюбил он наконец
И брань, и саблю, и свинец.
O outro dia como o anterior.
Mas meu Evguêni em áureos anos
Vivia feliz e livremente,
Entre conquistas esplendentes,
Entre prazeres cotidianos?
Em banquetes, com isenção
Era despreocupado e são?
XXXVII63
Não: afetos se esfriaram cedo;
Virou tédio o rumor mundano;
Belas não continuaram sendo
Seu pensamento cotidiano;
Traição já lhe causava esforço,
Amigo ou amizade, insosso;
Pois obviamente não direi que
Torta de Estrasburgo e beefsteak
Sempre regava com champanha,
Ou espalhava sua ironia
Quando a cabeça lhe doía;
Se bem ardente e com artimanha,
O gosto enfim veio a perdê-lo
Por sabre, chumbo e duelo.
63
As estrofes XXXVII-XXXVIII introduzem o tema da desilusão byroniana de Oniêguin com nuanças de
sentido irônicas em torno do desencanto e tédio das personagens de Byron, traços encontradiços entre os
amigos radicais de Púchkin. Iúri Lotman cita uma típica opinião do decembrista Matvei Muraviov-Apóstol:
―Byron causou muito mal ao introduzir a moda da desilusão artificial, que não dá conta de enganar aquele que
sabe pensar.Acredita-se que com o tédio uma pessoa dá mostras de sua profundidade – que seja assim na
Inglaterra, mas conosco, onde restam tantas coisas a ser feitas e até se mora no campo, há sempre como
facilitar o destino do pobre camponês; é melhor que antes experimentem fazer algo e só depois falem do
tédio‖. (Apud Lotman, p.580)
XXXVIII
Недуг, которого причину
Давно бы отыскать пора,
Подобный английскому сплину,
Короче: русская хандра
Им овладела понемногу;
Он застрелиться, слава богу,
Попробовать не захотел,
Но к жизни вовсе охладел.
Как Child-Harold, угрюмый, томный
В гостиных появлялся он;
Ни сплетни света, ни бостон,
Ни милый взгляд, ни вздох нескромный,
Ничто не трогало его,
Не замечал он ничего.
XXXIX, XL, XLI
..............................
...............................
...............................
XXXVIII
Um mal – e já passou a vez
De revelar sua causa – em que há
Um certo quê do spleen64
inglês,
Em suma, em russo é khandrá65
--
Gradualmente o envolveu.
Se dar um tiro, santo Deus,
Não quis tentar, mas, no final,
À vida se tornou glacial.
Como Child Harold66
, ele, inerte
E de mau humor, surgia na sala;
Nem bóston67
, boatos que se espalham,
Nem o ai ousado, nem o flerte,
Não havia nada que o tocasse,
Não havia nada que notasse.
XXXIX, XL, XLI68
..............................
................................
................................
64
Plavra inglesa designando a hipocondria, o estado de tristeza e o desgosto sem causa aparente. 65
Transcrição fonética do equivalente russo para o grego khóndros [―grão‖, ―cartilagem‖], constante de
muitas palavras da medicina e fisiologia do séc. XIX (como em ―hipocondria‖). 66
O herói romantico do poema Child Harold’s pilgrimage (1812-1818), de Lord Byron, que Púchkin estava
lendo enquanto trabalhava no primeiro capítulo do Evguêni Oniêguin. Child Harold tornou-se uma definição
comum para um herói byroniano.desencantado 67
Jogo de cartas semelhante ao whist. 68
A omissão das três estrofes aqui é fictícia, já que nunca foram escritas. A omissão é sugestiva de certo
efeito junção contraditória da narrativa pormenorizada com fragmentação, ou da contraposição de diferentes
pontos de vista.
ХLII
Причудницы большого света!
Всех прежде вас оставил он;
И правда то, что в наши лета
Довольно скучен высший тон;
Хоть, может быть, иная дама
Толкует Сея и Бентама,
Но вообще их разговор
Несносный, хоть невинный вздор;
К тому ж они так непорочны,
Так величавы, так умны,
Так благочестия полны,
Так осмотрительны, так точны,
Так неприступны для мужчин,
Что вид их уж рождает сплин.
XLIII
И вы, красотки молодые,
Которых позднею порой
Уносят дрожки удалые
По петербургской мостовой,
XLII
Caprichosas da sociedade!
Ele deixou vocês primeiro;
E em nossos dias, é verdade
Que o tom tedioso é o sobranceiro;
Se bem talvez damas convençam
Interpretando Say e Bentham69
,
Suas conversas em geral
São insuportáveis, não um mal.
Além do mais são tão perfeitas,
Tão grandiosas e inteligentes,
Tão cheias de afeições clementes,
Tão ciosas, tão circunspectas
E inacessíveis são enfim
A homens, que vê-las gera o spleen.
XLIII
E vocês, beldades em flor,
A quem conduzem muitas vezes
Os drójki70
rápidos e por
Pavimentos petersburgueses,
69
Alusões a Jean-Baptiste Say (1767-1832), economista francês seguidor de D. Ricardo e A. Smith, e a
Jeremy Bentham (1748-1832), o célebre filósofo e jurista inglês. Os ambos foram pensadores populares na
Rússia no início do século XIX. 70
Uma leve carruagem aberta de dois lugares.
И вас покинул мой Евгений.
Отступник бурных наслаждений,
Онегин дома заперся,
Зевая, за перо взялся,
Хотел писать - но труд упорный
Ему был тошен; ничего
Не вышло из пера его,
И не попал он в цех задорный
Людей, о коих не сужу,
Затем, что к ним принадлежу.
XLIV
И снова, преданный безделью,
Томясь душевной пустотой,
Уселся он — с похвальной целью
Себе присвоить ум чужой;
Отрядом книг уставил полку,
Читал, читал, а всѐ без толку:
Там скука, там обман иль бред;
В том совести, в том смысла нет;
На всех различные вериги;
И устарела старина,
И старым бредит новизна.
Как женщин, он оставил книги,
И полку, с пыльной их семьей,
Задернул траурной тафтой.
Meu Evguêni as deixou igualmente.
Apóstata do gozo ardente,
Oniêguin se metia em seu lar;
Pegava a pena, e a bocejar
Queria escrever; mas nauseante
Lhe era a faina obstinada;
Da pena não lhe saía nada,
Sequer no grêmio petulante
Logrou entrar --, o qual nem posso
Julgar, eu mesmo sendo um sócio.
XLIV
De novo entregue ao ócio enfim,
Por um vazio na alma, inquieto,
Sentou-se com seu nobre fim
De se apropriar de outro intelecto;
Na prateleira pôs carradas
De livros, leu, leu – mas pra nada;
Lá tédio, insânia, logro imenso;
Um sem consciência, outro, bom-senso;
Todos de algum grilhão cativos;
E antigos, já obsoletos todos;
E novos, pelos velhos, doidos;
Como a mulheres, deixou livros
E a horda com pó tapou-a lá
Com um funéreo tafetá.
XLV
Условий света свергнув бремя,
Как он, отстав от суеты,
С ним подружился я в то время.
Мне нравились его черты,
Мечтам невольная преданность,
Неподражательная странность
И резкий, охлажденный ум.
Я был озлоблен, он угрюм;
Страстей игру мы знали оба:
Томила жизнь обоих нас;
В обоих сердца жар угас;
Обоих ожидала злоба
Слепой Фортуны и людей
На самом утре наших дней.
XLVI
Кто жил и мыслил, тот не может
В душе не презирать людей;
Кто чувствовал, того тревожит
Призрак невозвратимых дней:
Тому уж нет очарований.
Того змия воспоминаний,
Того раскаянье грызет.
Всѐ это часто придает
Большую прелесть разговору.
XLV
Sem árduas convenções sociais71
,
Como ele, sem os vãos cansaços,
Fiz amizade com ele. Aliás
Me admirava dos seus traços,
Do vício incauto de sonhar,
A bizarrice sem um par,
Frieza, agudeza. Eu, por meu turno,
Amargurado, ele, soturno;
O jogo das paixões franqueado
Aos dois, aos dois, vida de dor;
Findo no coração o fulgor
Aos dois; rancor do cego Fado
E de homens é o que aos dois cabia
Já na manhã dos nossos dias.
XLVI72
Quem viveu e pensou por certo
Despreza na alma a gente à volta;
A quem sentiu inquieta o espectro
Dos dias que não têm mais volta;
A ele não há fascínio e glória;
A ele a serpente da memória,
A ele o remorso é que morde.
Isso concede um quê maior de
Graça, às vezes, à conversa.
71
Trata-se de um importante motivo biográfico de Púchkin refletido em uma série de seus poemas. 72
Segundo Iúri Lotman, esta estrofe é uma das mais pessimistas na obra de Púchkin. Sua criação está ligada à
crise ideológica por que o poeta passou em 1823 e que o fez recusar o conceito de Rousseau sobre a bondade
primordial do ser humano.
Сперва Онегина язык
Меня смущал; но я привык
К его язвительному спору,
И к шутке с желчью пополам,
И злости мрачных эпиграмм.
XLVII
Как часто летнею порою,
Когда прозрачно и светло
Ночное небо над Невою 8
И вод веселое стекло
Не отражает лик Дианы,
Воспомня прежних лет романы,
Воспомня прежнюю любовь,
Чувствительны, беспечны вновь,
Дыханьем ночи благосклонной
Безмолвно упивались мы!
Как в лес зеленый из тюрьмы
Перенесен колодник сонный,
Так уносились мы мечтой
К началу жизни молодой.
XLVIII
С душою, полной сожалений,
И опершися на гранит,
Стоял задумчиво Евгений,
No início, o linguajar de Oniêguin
Me perturbou; mas vi-me entregue
E afeito a acerba controvérsia
E a bile entre o escarnecimento
E a epigrama atro e virulento.
XLVII
Como, no estio, na hora em que já
É transparente e luminoso o
Céu noturno sobre o Nievá73
E o espelho da água buliçoso
Não mostra Diana74
, seu semblante --
Lembrado um romance distante,
Lembrados os amores idos --
Como, sensíveis, descontraídos,
O ar da noite benevolente
Nós o sorvíamos em silêncio!
Como da cela a um bosque denso
Se leva um preso ainda dormente,
Nos guiava um sonho em mansuetude
Ao limiar da juventude.
XLVIII
Cheia a alma de um desgosto vivo,
Apoiado sobre o granito75
,
Quedava Evguêni pensativo;
73
Trata-se do período de ―noites brancas‖ no verão petersburguês, quando o sol permanence um pouco abaixo
da linha do horizonte,deixando o céu claro. 74
Diana era a deusa romana da Lua e durante as ―noites brancas‖ ela não é vista no céu. 75
Entenda-se ―parapeito de granito‖ do rio Nievá.
Как описал себя пиит. 9
Всѐ было тихо; лишь ночные
Перекликались часовые;
Да дрожек отдаленный стук
С Мильонной раздавался вдруг;
Лишь лодка, веслами махая,
Плыла по дремлющей реке:
И нас пленяли вдалеке
Рожок и песня удалая...
Но слаще, средь ночных забав,
Напев Торкватовых октав!
XLIX
Адриатические волны,
О Брента! нет, увижу вас
И вдохновенья снова полный,
Услышу ваш волшебный глас!
Он свят для внуков Аполлона;
По гордой лире Альбиона
Он мне знаком, он мне родной.
Ночей Италии златой
Como o poeta76
se havia descrito.
Quietude, tudo; havia somente
Guardas chamando mutuamente77
,
Ruído de um drójki indo a distância
Da Milliónnaia78
, em ressonância;
Só um barco, os remos em vaivém,
Singrava o rio, as águas calmas,
E longe nos enchia as almas
A trompa, um canto audaz79
. Porém,
De jogo à noite, o que de fato
Exalta é a oitava de Torquato80
!
XLIX
Ó altas vagas do Adriático,
Ó Brenta81
! Ora, vou vê-la, e após
Sentir o estro de novo, extático,
Ouvir-lhe a mágica na voz!
Aos netos de Apolo82
é sagrada;
Com a lira alta de Albião83
me é dada
A conhecer, de mim é afim.
Das noites da áurea Itália, assim,
76
Referência irônica a Mikhail Muraviov (1757-1807), um poeta medíocre fundador do ―Sentimentalismo
Russo‖, autor do poema ―À deusa do Nievá‖ (1797) que Púchkin cita em seu comentário. 77
Alusão às guardas da principal prisão política russa - a Fortaleza de Pedro e de Paulo situada na margem
oposta do Nievá 78
Uma rua em Petersburgo, em alusão ao hábito de Pavel Katiênin de voltar do teatro a essa hora rumo ao seu
apartamento – ―um ninho liberal‖ – no quartel na Rua Milliónnaia. 79
Referência ao hábito dos ricos habitantes de São Petersburgo de passear pelo Nievá em barcos com coro e
orquestra de sopros. 80
A oitava é a estrofe de oito versos que o poeta italiano Torquato Tasso usou para comprôr seu poema épico
Jerusalém libertada. Nessas e nas estrofes seguintes Púchkin faz alusão a seu plano de fugir da Rússia para o
estrangeiro, um plano seu quando de sua estada em em Odessa em 1824. 81
Rio que tem Veneza em seu delta. 82
Aqui, os netos de Apolo são os poetas 83
Albião é um antigo nome da Inglaterra, e alude à poesia de Byron, em particular, ao Canto IV de ― A
Peregrinação de Child Harold‖, em que Byron descreve Veneza.
Я негой наслажусь на воле,
С венецианкою младой,
То говорливой, то немой,
Плывя в таинственной гондоле;
С ней обретут уста мои
Язык Петрарки и любви.
L
Придет ли час моей свободы?
Пора, пора! — взываю к ней;
Брожу над морем, жду погоды,
Маню ветрила кораблей.
Под ризой бурь, с волнами споря,
По вольному распутью моря
Когда ж начну я вольный бег?
Пора покинуть скучный брег
Мне неприязненной стихии,
И средь полуденных зыбей,
Под небом Африки моей,
Вздыхать о сумрачной России,
Где я страдал, где я любил,
Где сердце я похоронил.
LI
Livre, vou fruir o que deleita --
Com a jovem veneziana, ora
Falante, ora muda, afora,
Singrando em gôndola secreta
Meus lábios vão ter o favor
Da língua de Petrarca84
e amor.
L
A liberdade chega uma hora?
―É tempo, é tempo!‖, grito a ela;
No alto e ante o mar, vagueio afora85
,
Espero o vento, invoco a vela.
Sob o manto da tromba, as vagas
Em luta, em livre enlace de águas
Quando vou livre em travessia?
É tempo de ir da orla sombria
Desse elemento hostil a mim
E entre o ondular meridiano
Chorar sob meu céu Africano86
A Rússia à sombra, onde, enfim,
Penei, onde senti paixão,
Onde inumei meu coração.
LI
84
Francesco Petrarca (1304-1374), humanista e poeta italiano conhecido por sua poesia amorosa. 85
A propósito da passagem, Púchkin fez o seguinte comentário: ―Escrito em Odessa‖. 86
Na primeira edição do capítulo, Púchkin fez um longo comentário autobiográfico: ―O autor, por parte de
mãe, é de origem africana. Seu bisavô, Abram Petróvitch Annibal, aos oito anos de idade foi sequestrado e
levado da costa africana para Constantinopla...‖. Púchkin suprimiria esse comentário na publicação do
romance em 1833.
Онегин был готов со мною
Увидеть чуждые страны;
Но скоро были мы судьбою
На долгий срок разведены.
Отец его тогда скончался.
Перед Онегиным собрался
Заимодавцев жадный полк.
У каждого свой ум и толк:
Евгений, тяжбы ненавидя,
Довольный жребием своим,
Наследство предоставил им,
Большой потери в том не видя
Иль предузнав издалека
Кончину дяди-старика.
LII
Вдруг получил он в самом деле
От управителя доклад,
Что дядя при смерти в постеле
И с ним проститься был бы рад.
Прочтя печальное посланье,
Евгений тотчас на свиданье
Стремглав по почте поскакал
И уж заранее зевал,
Приготовляясь, денег ради,
На вздохи, скуку и обман
Oniêguin e eu já preparados
Pro mundo, eis que nos vimos sós
Numa separação que o fado
Impôs por muito tempo a nós.
E o pai morreu-lhe. O que é anterior a
Oniêguin ter a hoste credora
Reunida com avidez imensa.
Cada cabeça, uma sentença.
Evguêni, que a litígios tais
Odiava, e a parte lhe agradando,
Cedeu a herança dele ao bando,
Por crer que não perdia demais --
Ou, de longe, prever depois o
Fim para o seu tio idoso.
LII
De chofre ei-lo avisado pelo
Mordomo de que o tio jazia
Na cama, à morte, e Evguêni vê-lo
E ouvir-lhe o adeus o alegraria.
Lida a triste carta, de pronto
Evguêni parte para o encontro,
Guia o coche à pressa, bocejante,
Se preparando neste instante,
Só por dinheiro, pra encontrar
Ais, tédio, enganação sem fim
(И тем я начал мой роман);
Но, прилетев в деревню дяди,
Его нашел уж на столе,
Как дань готовую земле.
LIII
Нашел он полон двор услуги;
К покойнику со всех сторон
Съезжались недруги и други,
Охотники до похорон.
Покойника похоронили.
Попы и гости ели, пили
И после важно разошлись,
Как будто делом занялись.
Вот наш Онегин сельский житель,
Заводов, вод, лесов, земель
Хозяин полный, а досель
Порядка враг и расточитель,
И очень рад, что прежний путь
Переменил на что-нибудь.
LIV
Два дня ему казались новы
Уединенные поля,
Прохлада сумрачной дубровы,
Журчанье тихого ручья;
На третий роща, холм и поле
Его не занимали боле:
(Começo meu romance assim)
E após voar ao tio num solar
Já o viu posto na mesa onde era
Como oferenda feita à terra.
LIII
Viu pelo pátio os empregados;
Acorreram ao corpo mais
Amigos, inimigos, dados
A frequentar os funerais.
E sepultaram o defunto.
Cada um, pope ou conviva, junto
Comeu, bebeu e saiu de cena
Com ar de algo que valera a pena.
No campo nosso Oniêguin vive;
De oficina, água, mato e terra
Dono absoluto (e há pouco, em guerra
Contra a ordem, gastador terrível)
Ei-lo feliz por ter trocado
Por algo a via do passado.
LIV
Por dois dias foi nova a paisagem
Com os prados em isolamento,
O bosque escuro e sua friagem ,
O murmurar do riacho lento;
Já no outro, bosque, monte e prado
Não lhe causavam mais agrado;
Потом уж наводили сон;
Потом увидел ясно он,
Что и в деревне скука та же,
Хоть нет ни улиц, ни дворцов,
Ни карт, ни балов, ни стихов.
Хандра ждала его на страже,
И бегала за ним она,
Как тень иль верная жена.
LV
Я был рожден для жизни мирной,
Для деревенской тишины:
В глуши звучнее голос лирный,
Живее творческие сны.
Досугам посвятясь невинным,
Брожу над озером пустынным,
И far niente мой закон.
Я каждым утром пробужден
Для сладкой неги и свободы:
Читаю мало, долго сплю,
Летучей славы не ловлю.
Не так ли я в былые годы
Провел в бездействии, в тени
Depois, lhe davam sonolência;
Depois com clara consciência
Viu que lá o tédio era tal qual,
Mesmo sem palácios diversos,
Nem ruas, cartas, bailes, versos.
Khandrá espreitava no final,
Seguia sob aquele céu,
Feito uma sombra ou esposa fiel.
LV
Nasci pra ter vida de paz,
Na calma que há no campo, alívio;
A lira ali ressoa mais,
Mais vivo é o sonho criativo.
Voltado a um ócio inócuo vago
Ao longo do ermo desse lago
E far niente87
é a lei mais certa;
Aqui toda manhã me esperta
Ao suave luxo e à liberdade;
Leitura, pouca, sono, muito,
Fama fugaz não é o intuito.
Não foi assim numa outra idade
Que passei à sombra, em letargia
87
Expressão italiana significando ―fazer nada‖, ócio, corrente na fala e na correspondência de
contemporâneos de Púchkin. Segundo Lotman, o uso da expressão coloquial no texto poético era uma
inovação audaciosa de Púchkin.
Мои счастливейшие дни?
LVI
Цветы, любовь, деревня, праздность,
Поля! я предан вам душой.
Всегда я рад заметить разность
Между Онегиным и мной,
Чтобы насмешливый читатель
Или какой-нибудь издатель
Замысловатой клеветы,
Сличая здесь мои черты,
Не повторял потом безбожно,
Что намарал я свой портрет,
Как Байрон, гордости поэт,
Как будто нам уж невозможно
Писать поэмы о другом,
Как только о себе самом.
LVII
Замечу кстати: все поэты —
Любви мечтательной друзья.
Бывало, милые предметы
Мне снились, и душа моя
Их образ тайный сохранила;
Их после муза оживила:
Так я, беспечен, воспевал
И деву гор, мой идеал,
Os mais felizes dos meus dias?
LVI88
Flores, amor, prado, indolência --
Campanha! Esta alma lhe é fiel.
Me apraz mostrar a diferença
A toda hora entre Oniêguin e eu,
A fim de que nenhum leitor
Mordaz, ou mesmo um editor
De alguma complicada intriga,
Ao cotejar meus traços, diga
Que este retrato rabiscado
Por mim foi feito como fez
Um Byron, poeta da altivez,
Como se não nos fosse dado
Fazer agora um longo poema
Sem ter senão a nós por tema.
LVII
Ressalvo: todos os poetas
Gostam do amor devaneante.
Podia sonhar coisas diletas
E a alma guardar-lhes nesse instante
A imagem obscura; um dia
A Musa a elas revivia.
Eu, assim, cantava uma vestal
De uma montanha89
, o meu ideal,
88
Como lembra Lotman, Púchkin declara nas estrofes LVI-LIX dois novos princípios artísticos importantes,
quais sejam, o poeta renuncia à fusão lírica do autor e do herói e rompe com a tradição romântica que exigia a
criação de uma atmosfera de declarações íntimas líricas do autor.
И пленниц берегов Салгира.
Теперь от вас, мои друзья,
Вопрос нередко слышу я:
«О ком твоя вздыхает лира?
Кому, в толпе ревнивых дев,
Ты посвятил ее напев?
LVIII
Чей взор, волнуя вдохновенье,
Умильной лаской наградил
Твое задумчивое пенье?
Кого твой стих боготворил?»
И, други, никого, ей-богу!
Любви безумную тревогу
Я безотрадно испытал.
Блажен, кто с нею сочетал
Горячку рифм: он тем удвоил
Поэзии священный бред,
Петрарке шествуя вослед,
А муки сердца успокоил,
Поймал и славу между тем;
Но я, любя, был глуп и нем.
LIX
Прошла любовь, явилась муза,
И прояснился темный ум.
Свободен, вновь ищу союза
Cativas de Salguir90
. Aliás,
Amigos, de vocês me vem
Sempre a pergunta: ―mas por quem
Sua lira mais suspira? A quais
Vestais do grupo ciumento
São versos de mais sentimento?
LVIII
―O olhar de quem, pondo o estro ativo,
Com seu carinho que faz bem
Pagava o canto pensativo?
Seu verso idolatrava quem?‖
À fé, ninguém, amigos, juro!
O anseio de amar insano e obscuro
Vivi sem gosto. É mais feliz
Quem o mesclou a ânsias febris
De rimas; este conseguiu
Em dobro aquela insânia sacra
Da poesia, seguiu Petrarca;
As dores da alma as dirimiu,
Logrou a fama além de tudo;
E eu era, amando, bronco e mudo.
LIX
O amor se vai, a Musa acode
E se ilumina a mente em treva.
Livre outra vez, procuro o acorde
89
Referência à heroina do poema narrativo de Púchkin ―O prisoneiro do Cáucaso‖ (1821) 90
Rio na Criméia. As ―vestais cativas‖ em questão compõem o harém do poema narrativo ―A fonte de
Bakhtchissarai‖ (1821) ,de Puchkin.
Волшебных звуков, чувств и дум;
Пишу, и сердце не тоскует,
Перо, забывшись, не рисует,
Близ неоконченных стихов,
Ни женских ножек, ни голов;
Погасший пепел уж не вспыхнет,
Я всѐ грущу; но слез уж нет,
И скоро, скоро бури след
В душе моей совсем утихнет:
Тогда-то я начну писать
Поэму песен в двадцать пять.
LX
Я думал уж о форме плана,
И как героя назову;
Покамест моего романа
Я кончил первую главу;
Пересмотрел всѐ это строго:
Противоречий очень много,
Но их исправить не хочу.
Цензуре долг свой заплачу,
И журналистам на съеденье
Плоды трудов моих отдам:
Иди же к невским берегам,
Новорожденное творенье,
И заслужи мне славы дань:
Кривые толки, шум и брань!
De ideia e afeto, som que enleva;
Escrevo, e a alma não se alvoroça,
A pena, em transe, não esboça,
Junto a versos inacabados,
Cabeças, uns pés delicados.
As cinzas frias não chisparão;
Não há mais pranto, e ainda me aflijo;
Mas logo, logo, esse vestígio
Da tromba apaga na alma . E então
Escrevo um poema, os versos, tantos,
Que avento uns vinte e cinco cantos.
LX
Pensei no esquema e em qual ia ser o
Nome do herói. Nesse interim,
Do meu romance, este primeiro
Capítulo está pronto enfim.
Examinei tudo isso antes;
As incoerências são bastantes,
Só que não quero reescrever.
Pago à censura o que eu dever,
E dôo pra devoração
Dos críticos minha obra. Vá,
Portanto, às margens do Nievá,
Recém-nascida criação!
Me obtenha fama e seu tributo,
Os boatos, o barulho e o insulto!