Evangelho de Joao.

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Comentário exegético ao evengelho de João por W.C. Taylor, Volume II.

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EVANGELHO

SEGUNDO JOÃO

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Impresso nas Oficinas da Casa Publicadora Batida Rua Silva Vale, 781 — Tomaz Coelho

Rio de Janeiro

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EVANGELI-10 SEGUNDO JOÃO

Tradução e Comentário

William Carey Taylor

VOLUME II

edição

1 9 5 7

CASA PUBLICADORA BATISTA Caixa 320 — Rio de Janeiro

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Á

Pedro e João correm para o túmulo de Jesus

E' uma famosa pintura, copiada da tela de Eugênio Burnand, pintor suiço que traba-lhou em Paris em meiados do Século XIX. O original estava, antes da Guerra, no Museu de Luxemburgo, Paris. Naturalmente, o que se vê aqui é apenas o que o artista imaginava que João e Pedro fôssem, correndo para o túmulo para fazerem sua primeira investigação na veracidade do testemunho da ressurreição, no pri-meiro domingo cristão. Sem ter valor algum para fins de culto ou para nos infor-mar sôbre as feições dos dois apóstolos, representa um esfôrço fora do comum para lazer a arte se conformar com os fatos da vida. Nem Jesus nem João tinham ca-belo comprido. Burnand mostra os fatos, e quase tôdas as melhores imagens nas catedrais e igrejas do romanismo confirmam o artista nesta questão. Os homens cortavam o cabelo, nos dias de Jesus e João, como hoje em dia. A popular repre-sentação do autor dêste Evangelho como se fôsse uma donzela com cabelos ondu-lados, até aos ombros, é uma caiação do sentimentalismo medieval sôbre os fatos mais rudimentares dos Evangelhos. Vê-se aqui a concepção de um artista que não ficou prêso a êsse ignorante medievalismo. João é, de fato, mais moço,

como se vê, e tem a força de caráter e da personalidade dos Boanerges, dominado no longo processo da santificação, pelo não me-

nos forte Filho do homem.

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PREFÁCIO

«João expõe poucas idéias mas as repete muitas vezes» — Conner.

Deve o comentador dêste Evangelho, pois, expor muitas vezes as idéias que João repete. De fato, êsse é meu propósito. Quem usa um comentário sôbre a Escritura Sagrada quer achar, no mo-mento oportuno de suas investigações, auxílio para entendê-la, ai mesmo na vizinhança da própria passagem estudada. E' precisa-mente êsse o caso nos escritos de João, o mestre número dois dos séculos cristãos — sendo Paulo o intérprete número um do cristia-nismo de Cristo. Método de incomparável valor pedagógico é a re-petição. Tenho procurado, deveras, acompanhando João, repetir suas idéias, dando em testemunho a nata da exposição de outros, colhida em muitas bibliotecas inacessíveis à vasta maioria dos lei-tores dêstes tornos. De bom grado, daria ampla interpretação de cada verdade, cada vez que se acha no Evangelho. Mas considera-ções de espaço.proibem-me que assim faça. Para tanto, seriam ne-cessários quatro ou cinco tomos. Isso faria da obra um auxiliar pouco prático para a vasta maioria. Por estas considerações, foi preciso incluir centenas de referências a outros lugares do liVro, onde o leitor, virando para a página citada, achará testemunho de valor, de vários autores, sôbre o ponto em foco. João, por exemplo, usa o verbo CRER quase cem vezes. O leitor encontrará exposição do texto, no seu contexto, em muitas dessas passagens; em outras achará referência a discussões paralelas indicadas. Assim é com muitas da palavras principais em que João nos transmite sua men-sagem. Pedimos, pois, ao investigador que nos perdoe esta me-dida necessária e realmente olhe para as outras páginas indi-cadas.

W. C. T.

Rio de Janeiro, 2 de junho de 1944.

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iNDICE

Páginas

Prefácio .. 7

João diminui : Jesus cresce (3:22-36) .. . 11

O Testemunho de Samaritanos a Jesus (4:1-26) . 42

A Colheita Samaritana (4:27-42) .. 89

O Profeta e Sua Terra (4:43-54) .. . 107

A controvérsia sabática revela quem é Jesus (5:1-47) .. 117

Jesus multiplica pães no deserto, e é o pão do céu (6:1-21) 184

O Magno Sermão Provocador (6:22-51) .. 201

A Forte Doutrina do Calvário (6:52-59) .. . 219

Revoltosos sempre — mas agora contra Jesus, não contra César 227

Oposição Múltipla e Crescente (7:1-13) .. 238

Divergências Populares acêrca de Jesus e a Trama Oficial da sua Morte (7:14-36) 245

Jesus, pelo Espírito, é Água Viva que Mana nos Crentes (7:37-52) 257

Jesus Recusa Responsabilidades Judiciais na Esfera Civil (7:53 267

O Testemunho do Evangelho e as Testemunhas Divinas (8:12-20) 276

O Diálogo Mais Trágico, Pungente e Momentoso de Tôda a Li- teratura Humana (8:21-59) .. 282

Jesus Demonstra que é Luz mas Confirma a Cegueira dos Obs- tinados (9:1 a 10:21) .. 304

Jesus Quase Apedrejado como Blasfemo (10:22-39) .. .. 345

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10 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

João, estando morto, ainda é testemunha, na memória de Cristo 358

Maria, não a Madalena, Marta, Lázaro e o Senhor da Vida (11:1-44) 361

Num Rasgo de Raiva um Sacerdote Vê a Vítima Expiatória (11: 380

Jesus, fugindo da Publicidade, Educa seu Ministério (11:54-57) 388

Um Banquete e Seus Resultados (12:1-11) . . . . . . . . . . . . 391

O Rei Messiânico Marcha Triunfante sôbre Sua Capital (12 :12-19) 399

A Visão da Cruz: Sua Glória, Sua Força Perene e Seu Horror 404

A Véspera do «Êxodo» É a Hora da Páscoa: O Mestre Ainda Educa (13 :1-30) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 424

A Luz do Maior Conforto no Dia do Maior Negrume na História Humana (13:31 a 14:17) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 449

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O SANTO EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

João diminui : Jesus cresce

Capítulo III, versículos 22 - 36.

22 Depois destes sucessos veio Jesus e seus discípulos para o território da Ju- 23 déia; e ali demorava na companhia deles e batizava. I E João também estava

batizando, em Enom, perto de Salim; porque havia aí muitas águas; e apare- 24 ciam e recebiam o batismo. I Porque João ainda não fôra jogado na prisão. 25 1 Portanto surgiu uma controvérsia da parte dos discípulos de João com um 26 Judeu concernente a uma purificação cerimonial. I Ora foram a João e infor-

maram-no: "Rabi, aquele que estava contigo além do Jordão, a quem tu deste e de quem dás testemunho, eis que está batizando e todo o mundo vai para

27 ele." I João respondeu nestas palavras: "Não pode um homem continuar a 28 receber nada, a não ser que lhe tenha sido dado do céu. 1 Vós outros mes-

mos me servis de testemunhas continuamente como decla- Jesus o Noivo, 29 rei: 'O Cristo não sou eu', mas 'Sou precursor enviado

João o Para- antes dele'. 1 Quem tem a noiva é o Noivo; e o amigo ninfo do povo do Noivo, que está de pé, ouvindo-o, trasborda de alegria

do Cristo à voz do Noivo. Portanto, esta alegria minha perdura já 30 consumada. I E' essencial que ele vá aumentando, e quanto 31 a mim, que eu vá ficando cada vez menor." 1 Quem vem lá de cima é sôbre to-

dos; quem é da terra, da terra é e da terra fala; quem vem do céu é sôbre 32 todos; 1 o que ele tem visto e ouviu, isto testifica, e todavia ninguém lhe re- 33 cebe o testemunho. 1 Quem recebeu seu testemunho autenticou, como que por 34 selo, que Deus é verdadeiro. 1 Aquele a quem Deus enviou, continuamente fala

as palvras de Deus; pois não é escassamente que êle costuma dar o Espírito. 35 - 36 1 O Pai ama ao Filho e à sua mão tem entregado todas as coisas. 1 O cren-

te no Filho tem vida eterna; porém o rebelde contra o Filho não verá vida, mas permanece sôbre ele a ira de Deus.

22. «Discípulos». Sobre o fato de que Jesus já se fazia acompanhar por um corpo de discípulos, por êle «comissionado», durante o ano de seu ministério na Judéia, vêde as notas sôbre 4:1, 38.

«Na companhia dêles». E' a descrição do Mestre, seu Seminário Teo-lógico e seus seminaristas. O princípio pedagógico da educação moderna é que se aprende a fazer, fazendo. Assim Jesus educou seus apóstolos e, sem dúvida, muitos outros obreiros também. E' uma educação dos Doze que durou durante todo o ministério de Jesus e que o Espírito Santo con-tinuou depois da Ascenção. Marcos escreve : «Então designou doze para estarem com êle» (3:14). Separação do mundo, mas no mundo vivos, para dar todo o tempo a «estarem com êle», é a medida com que Jesus es-tabeleceu o «colégio dos apóstolos». Mas as primeiras aulas neste curso co-meçaram quando principiaram a andar com êle. Cada dia aprendiam, na companhia do Mestre, lições do ensino — são o «nós» da entrevista com Nicodemos — e lições da Real Presença, Emanuel, Deus-conosco, e mé-

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todos e motivos de trabalhos, testemunho, oração e vida social com tôdas as classes do povo. Jesus «designou doze». E não eram doze novatos. Já eram de certa maneira provados. Já em aulas e camaradagem intermi-tente andavam com êle quando podiam e assim, sem posição apostólica ainda, serviam de auxiliares e co-pregadores e administradores do batis-mo, sob a direção, autoridade imediata e instrução de Jesus. Pelo Evan-gelho de João percebemos o ano preparatório do apostolado na Judéia an-tes de sua designação formal e pública para a carreira, no ministério pos-terior na Galiléia. Ninguém lê com inteligência o Quarto Evangelho sem levar em mente êsse fato, tantas vezes em evidência. O comêço do minis-tério messiânico de Jesus era seu batismo. E as qualificações de um após-tolo eram de haver sido testemunha daquela vida da encarnação e minis-tério messiânico, desde o magno sucesso do batismo do Senhor. João nun-ca fala dos «apóstolos». Já estavam todos mortos exceto êle, e não teriam sucessores. E' do espírito coerente de sua modéstia não enaltecer sua po-sição como também nem menciona seu nome. Não estavam em dúvida este ou aquela. Mas João fala «dos Doze». Pressupõe os Sinóticos. E vemos aqui os pré-seminaristas (já separados e consagrados à santa car-reira) aprendendo a fazer, fazendo, sabendo pregar por ouvir aquêle que falou como nunca nenhum outro falara e por pregarem e batizarem sob sua direção.

«O território da Judéia». Alguns supõem ter Jesus ficado no velho lugar dos batismos de João, Betânia, ou mais erradamente ainda, em Be-tábara. Mas João batizava na Peréia — a Transjordânia. O ministério de Jesus realizou-se aquém do Jordão. São campanhas paralelas, pois, a de Jesus na Judéia, e a do Batista na Samaria. Diz o Dr. J. W. Shepard, a êsse respeito: «João subiu a Enom, perto de Salim, identificado pelo Dr. Robinson a uma légua ao leste de Siquém. Enom era lugar de fontes. João, provàvelmente, se tinha afastado para êsse lugar a fim de evitar as intrigas dos fariseus... Havia muitas águas em Enom para os fins batis-mais de João e, como diz o comentador Marcus Dods, até no verão seria possível continuar a imersão.» (i)

«Na terra da Judéia». «Ele saiu de Jerusalém para pregar e batizar nas partes rurais da província.» (2) E' de alta significação que Jesus tri-lhou o caminho de evangelização, que depois marcou para os apósto-los e para a primeira igreja na hora de sua ascensão: «e sereis teste-munhas minhas tanto em Jerusalém como em toda a Judéia e Samaria.) Jesus começou seu ministério público em Jerusalém também. O princípio dos centros é o plano de Cristo e Paulo para alargar as fronteiras do reino. Mas nunca a idéia de Cristo era de centros para sorver egoisticamente tudo que a vizinhança tivesse para lhes dar. O centro vive para dar. E' ponto de partida. E' centro com raios que alcançam a circunferência de

(1) "The Christ of the Gospels", p. 105. (2) "Teachers' Testament", por M. B. Riddle, p. 215.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 13

um círculo vasto e cada vez maior. Não parou Jesus em Jerusalém muito tempo. Conhecia a tendência egoísta, centripetal, bairrista de centros . Saiu para a província. E, quando em Jerusalém, Jesus vivia num arra-balde. Dava o dia ao centro, as noites à Betânia. Agora êle passa um pe-ríodo na Judéia. Ele conhecia a tentação de ficar na capital. De modo que, quando deu a Comissão final, exigiu o centro — Jerusalém — mas exigiu o centro com raios de atividade ao redor: «TODA a Judéia e Sa-naria». Enviou os seus da capital, do centro, para TODOS os lugares em roda — tôda a Judéia embora rural, e tôda a Samaria embora mestiça, hostil e hostilizada. O plano visava fazer com que o servo imitasse ao Se-nhor. Ele dedicou esfôrço igual ao centro, à província e às regiões ainda além.

Queriam que êle ficasse em Cafarnaum, depois de começar ali um sábado. Mas precisamente quando Pedro o avisa : «Todos te buscam», êle saiu para evangelizar, dizendo: «Vamos pregar nas outras cidades e aldeias, pois para isto é que eu vim.» Capital, interior, províncias vi-zinhas, e «até os confins» — eis a ordem de marcha de Jesus, para si e para seu povo.

«E batizava.» Aqui vemos uma lição importante na interpretação da Escritura. E' nosso princípio ouvir o testemunho bíblico integral. Em outro parágrafo o apóstolo afirmará que «Jesus não batizava.» Se for-mássemos nossa opinião logo pela primeira menção do assunto, teríamos de concluir que Jesus mesmo praticava o rito do batismo. Quando, porém, lemos logo adiante que Jesus não batizava mas que seus «discípulos» (apóstolos) administravam o rito, entendemos que a autoridade que im-punha o rito era a de Jesus ; que o Mestre aceitava e designava quais os que estavam em condição espiritual de receber o batismo; que a interpre-tação e os ideais do ato foram dados pelo Senhor, pessoalmente, e que êle superintendia e apoiava com sua presença todo o ato.

Há uma vasta soma de erros funestos de doutrina que procedem dêsse hábito de estribar-se alguém no testemunho parcial das Escrituras e recusar a ouvir o resto que a Bíblia tem a dizer sobre o assunto. Se eu ditar uma carta a um datilógrafo, a carta é minha, embora eu não tenha escrito uma só de suas palavras. Assim o batismo que Jesus ditava era dele. Ele o mandava e o praticava, pela mão de seus autorizados represen-tantes. O batismo dado pelo próprio Cristo certamente era «batismo cris-tão», tão válido como o batismo dado pela sua autoridade, expressa na Grande Comissão, e administrado hoje em dia, em igual obediência. E não há diferença nenhuma entre Jesus Cristo administrar o batismo na Judéia pelas mãos de André, Pedro, João, Tiago e Natanael e administrá-lo na Samaria pela mão do seu «anjo» e precursor, João Batista. O batis-mo de João era «do céu». Nem o céu nem Jesus batizavam sêres humanos, mas ordenaram o ato. E' uma obrigação por todos os séculos e uma vez começado pelo céu, mediante o ministro autorizado, foi continuado por

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Jesus mediante outros ministros, também autorizados. Não há solução de continuidade do rito entre João e Jesus e os apóstolos e o ministério seguinte e as igrejas apostólicas dos séculos. Notai essa continuidade: «Jesus batizava. E João também estava batizando.» Não há diferença nenhuma nesses batismos simultâneos nas províncias vizinhas. Todos eram do cristianismo divinamente autorizado pelas pessoas da Santíssi-ma Trindade em cujo nome o ato viria a ser praticado, logo que raiasse a clara verdade da Trindade, depois da crucificação, da ressurreição e da ascensão de Jesus e da vinda formal do Espírito em lugar do Messias para continuar sua obra. Lucas é historiador do cristianismo na vida terres-tre de Jesus e na sua vida de Administrador celeste de sua religião por meio do Espírito Santo. E Lucas nos afirma que Jesus apenas «começou a fazer e a ensinar», antes da sua morte. O livro dos Atos é a história da marcha do movimento cristão, sem nenhuma solução de continuidade. Jesus ainda é Senhor, em todos os batismos obedientes, como o era nos batismos praticados pelos seus apóstolos e seu precursor.

«Batizava.» O erro mencionado de não reparar no testemunho todo da Escritura, especialmente do contexto de uma declaração, é bem evi-dente na interpretação desta passagem feita por D. Felipe Seio de San Miguel, numa edição da Vulgata com notas em castelhano (Vol. II, p. 269), que examinei na biblioteca do Dr. Silas Botelho, em São Paulo. Ali as notas romanistas na referida Bíblia «católica» dizem que Jesus re-almente batizou, pessoalmente, vários homens e que a declaração poste-rior representa uma mudança de praxe, não uma informação posterior, como nós cremos. E êle entende que êsses judeus batizados por Jesus eram os que tiveram mais tarde a discussão com o Batista e seus discí-pulos e que provocaram as declarações de' João que estamos estudando. O singular da palavra «judeu», no texto grego correto, anula a teoria mesmo que não fôsse categOricamente negado por João no capítulo se-guinte.

«Demorava na companhia dêles e batizava.» «Todos eles (os segui-dores de Jesus), talvez, haviam recebido o batismo de João», (3), diz o Dr. E. F. Scott.

23. «João se achava em Enom, perto de Salim, batizando.» «Jesus estava na zona do norte da Judéia, pois lemos que êle precisava passar por Samaria. João estava perto, num lugar chamado Enom, perto de Salim, onde havia muita água, ou muitas águas. O local não tem sido ple-namente identificado. (Cita várias autoridades). O Prof McGarvey, um dos melhores escritores sôbre a Terra Santa, acha que descobriu o lugar idêntico no vale do Wady Farah, que mede mais ou menos dois quilôme-tros de largura e seis de extensão, onde havia lugares abundantes para

(3) "The Nature of the Church", p. 119.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 15

o batismo e onde êle viu enxames de meninos morenos, grandes e peque. nos, tomando banho em muitos lugares.» (4)

«Enom». Conder, escrevendo sôbre «A Topografia das Terras Bíbli-cas», em «The Condensed Bible Encyclopedia», p. 241, diz: «Enom (João 3:23) é um lugar perto de Salim, provàvelmente dentro ou perto do vale do Jordão. O único lugar onde êsses dois nomes ficam associados é o ri-beiro do Wady Farah, que deságua no Jordão ao lado ocidental, ao norte de Siquém. As ruínas de Ainun ficam no planalto, ao norte da ravina, e a vila de Salim fica na montanha ao sul do ribeiro, o qual tem bastante água.» O coronel Conder opina a favor de um lugar do Jordão bem per-to da extremidade sul do Mar da Galiléia como sendo o local do batismo de Jesus. Assim o Batista teria apenas atravessado o Jordão, antes do tempo de sua enchente, e continuado sua atividade na mesma região, mas num dos tributários do rio, em terreno alto e saudável. As testemunhas não concordam.

«Aenon». «Aenon tem sido identificado... com Ainun, uma légua e meia ao norte de Salim, a cabeça do Wady Farah. A declaração do evan-gelista de que ali havia muita água, ou muitas águas, parece indicar que não estava perto do Jordão.

. A situação era central, fácil de alcançar do norte e de tôda a Sa-maria, e pela principal estrada central que vinha do sul. Outros Aenons existem, longe de qualquer Salim, e outros Salins em distritos com água bastante onde, contudo, não há Aenon. No grande Wady Farah, porém... ao norte, no vale do Jordão, achamos êsse local que satisfaz tôdas as exi-gências.» (5)

«Batizando». O eminente teólogo holandês, G. Vos, professor em Princeton, opina que o batismo judaico dos prosélitos, se já existia nos dias de João, nada tinha com o batismo do Precursor. Este dificilmente pode ser considerado imitador do costume, que existia apenas em germe. Concordamos. João batizava segundo uma revelação divina. Seu batis-mo era «do céu», «conselho de Deus», não se originou dos homens. A inau-guração da carreira de Cristo é por um batismo nitidamente cristão, não judaico. G. Vos confirma outra testemunha citada de que os primeiros in-térpretes luteranos e reformados colocaram o batismo de João na catego-ria de batismo cristão, em oposição à Igreja de Roma; mas diz que Hodge não concordou. Daí, provàvelmente, a divergência notada, neste terreno doutrinário, entre o protestantismo popular das Américas, e a opinião do Calvino.

«Muitas águas». O eminente presbiteriano irlandês, David Smith, diz: «Devia ter sido em consideração dêstes dois eventos (a cura de Naamã e a abertura das águas quando tocadas pela capa de Elias) que João Batis-

(4) "An Interpretation of the English Bible", por B. H. Carroll, Vol. I sôbre oe Evangelhos, pág. 268.

(5) "The Land of Israel", págs. 152, 153.

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16 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

ta escolheu o vale do Jordão como teatro de seu ministério. Aqui êle en-controu seus dois requisitos — solidão e muitas águas... O único rio de Israel fôra consagrado por estes dois profetas (Elias e Eliseu) aos dois atos mais simbólicos da religião, a lavagem pela água e o dom do Espírito (referindo-se ao fato de Naamã lavar-se da lepra e Elias outorgar uma porção do seu espírito a Eliseu). E destarte o que nunca foi um grande rio judaico se tornou mui grande rio cristão.» (6)

«Enom». «Uma certa lagoa, Enom. Como sabemos que era lagoa? Por-que havia muita água ali e se chegaram e foram batizados.» (7)

«Muitas águas». E. C. Caldwell, da Universidade de Chicago, diz que o plural, ta hudata, pode indicar um só volume unido de água. Ele achou a expressão assim usada nos papiros e cinco vezes em Hermas, («A Vi-são»), onde em 1:1:3 e 3:2:9 «a mesma expansão de água é mencionada com o singular e o plural.» (8)

«Muitas águas». O esplêndido livro de geografia bíblica, (Students' Historical Geography of the Holy Land, por W. W. Smith, p. 171) nos informa: «Há um rio a que a Bíblia se refere, que mana na direção do leste e deságua no Jordão, o Rio Farah. (9) Nasce ao pé do Monte Ebal. E' idêntico às águas de Aenom, (9), mencionadas por João.»

«Enom». Vêde a nota sôbre 1:28. «Enom». Os mapas da Bíblia Católica Douay (inglêsa) dão «Enom»

como estando na Samaria. «Fontes e ribeiros». Assim traduz Weymouth, no seu Novo Testa-

mento inglês : «Eram batizados.» Ou, «recebiam o batismo passivamente.» O verbo

grego, diz o Dr. A. T. Robertson, está na voz passiva. Quanto à forma, não há diferença entre a voz passiva e a voz «média» do verbo grego, nes-te tempo. Portanto seria possível traduzir: «batizavam-se». Rohden pa-rece estar sob a impressão de que é voz média e traduz. «Para lá concor-ria o povo e se fazia batizar.» Nos séculos posteriores da história ecle-siástica, de fato, multidões se imergiam a si mesmas. Algumas dessas fic-tícias «conversões» de tribos ou nações, no norte da Europa, se efetuaram assim. O rei aceitava, como religião do Estado, ou da corte, o cristianis-mo, pessoalmente; era a política do trono. Em seguida, o populacho, em tempo marcado, entrava no rio, e milhares se batizavam a si mesmos em massa nas águas «regeneradoras» que os faziam «cristãos». Quando se enxugavam, enxugava-se também tal conversão. Evaporava-se. A Euro-pa nunca foi convertida até hoje, e a vasta maioria de seus supostos bati-zados ainda é pagã, quase tão paganizada como a índia ou o Japão. E' por

(6) "In the Days of his Flesh", p. 496. (7) Agostinho, no Comentário sôbre este Evangelho, Versão Inglesa de J. Gibbs, I, 186. (8) "The Greek of the Fourth Gospel", p. 83. (9) Os vários autores soletram Farah e Enom de muitas maneiras, de acôrdo com línguas

antigas e modernas da região.

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1 TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 17

isso que muitos dizem que o cristianismo ainda espera ser provado na Eu-ropa.

Também no Oriente Próximo havia uma superstição de muitos que-rerem ir ao Jordão e se imergirem nas suas águas de suposta eficácia puri-ficadora. Nada disso se deu no ministério do Batista. Ele atendeu pes-soalmente a cada um. Ouviu a confissão dos pecados de cada um. Exigia arrependimento e fé pessoal e que fôssem demonstradas imediatamen-te pelos frutos (descritos em Lucas III) . Então foram ordeiramente bati-zados pelo Batista, se tinham as qualificações espirituais para o ato. Nem o batismo era um ato à toa, de mero individualismo, nem tampouco era um ato político, de «conversão» ordenada por um monarca — mudança de rótulos, mas permanecendo a mesma superstição de outrora. O Batis-ta recebeu ordens de Deus para batizar. E batizava. E os que se arre-penderam e creram «foram batizados».

24. «João não fôra lançado na prisão.» Outra vez o Quarto Evange-lho pressupõe os demais. Não saberíamos nada a respeito da prisão ou da morte do Batista, se não fosse a palavra anterior e bem conhecida de Ma-teus e Marcos. O discípulo João não se esqueceria do Mestre João. E, claramente, não o despreza, como fazem hoje em dia muitos intérpretes com teorias tendenciosas. Ele não nos narra os capítulos da subseqüente vida de João porque colegas inspirados já os narraram e êle apenas dá os fatos suplementares.

«João». Vêde as palvras de Murray no Vol. I deste comentário, págs. 240, 241, e o comentário sôbre outras referências ao Batista no Evangelho.

25. «Houve pois questão movida dos discípulos de João com os judeus sôbre a purificação.» Assim a antiga Versão Almeida traduzia, em edição de 1857, que possuo. Os discípulos do Batista eram os agressores na con-tenda. O grego tem o caso ablativo (de origem, ou ponto de partida). Podemos traduzir fielmente: «Partiu dos discípulos de João uma contro-vérsia com um judeu sôbre alguma purificação»— não há artigo com êsse substantivo. E' um judeu (melhores textos), não «com uns judeus», ou «com os judeus», como a Vulgata, Almeida e outras versões traduiem.

Da tradução errônea procedem idéias também errôneas. Rohden, por exemplo, diz: «Discutiam eles a questão se tinha maior virtude purifi-cativa o batismo de João ou o de Jesus, isto é, o que era administrado pe-los discípulos dele.» (10 ) Acho impossível semelhante idéia. Por que um judeu, e alheio a Jesus, faria isso? Outrossim, Rohden atribui a João e seus discípulos a superstição medieval de que água benta purifica. Não há vislumbre de semelhante doutrina nas palavras de João, de Jesus ou dos apóstolos.

Rohden também supõe que êsse judeu é quem lançou no meio do cír-culo de João o pomo de discórdia do v . 26, procurando estimular o ciume,

(10) Novo Testamento, Versão Rohden, pág. 211, da Terceira Edição.

C. E. J. — 2

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18 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

em ganho de causa. Mas considerai os fatos. O sujeito do verbo no v. 26 é plural. Logo não pode ser êsse judeu. São os discípulos do Batista que o informam particularmente do êxito do ministério de Jesus. Acabou-se a contenda com um judeu sôbre o assunto. Então os discípulos «vieram a João» com a nova do êxito de Jesus. O tal judeu da controvérsia já não está na cena. A lição do resto dêsse parágrafo é importante ensino pessoal de João à sua grei, na intimidade.

O leitor pode verificar para si se essa palavra purificação se aplica ao batismo no Novo Testamento. Encontra-se nas seguintes Escrituras: Mar. 1:44 (a cerimônia da purificação levítica do leproso que já estava são, sem a cerimônia, antes dela) ; Luc. 2:22 (sôbre a purificação cerimonial de Maria, a mãe de Jesus — se purificação real de pecado é idéia da palavra em referência às cerimônias, então seria preciso dar-lhe êsse sentido tam-bém em referência a Maria. Mas, na verdadeira idéia da purificação ceri-monial, não se supõe haver contaminação moral na maternidade. Era uma exigência cerimonial e simbólica, higiênica, e misericordiosa, prote-gendo a parturiente. Por estar cerimonialmente impura, não podia ser to-cada, nesse prazo.) Também a palavra se acha em João 2:6 (vêde a vas-ta quantia de água reservada para a purificação cerimonial, até numa casa pobre) . Depois, o têrmo se usa em Heb. 1:3; II Ped. 1:9, sôbre o va-lor intrínseco e real da morte de Jesus para nos purificar do pecado. Esse valor nunca foi outorgado a nenhum ser humano pela eficácia sacramen-tal da água benta. Nem tal idéia entraria na cabeça dos discípulos de João, já informados pelo Batista que o Cordeiro de Deus tirava o pecado do mundo. O próprio judeu teria juízo para saber que o leproso já era limpo, no sangue e na pele, antes de praticar a purificação cerimonial que declarava públicamente um fato que já era a verdade na vida dêle antes que êle viesse ao sacerdote no templo.

Qual teria sido a controvérsia, pois, entre a grei de João e êsse judeu solitário? Convém lembrar que a missão do Batista era a de evangeli-zar, e nisso seus discípulos concordavam e com êle se associavam. Esta-vam evangelizando êsse judeu. Ele reage contra tal agressivo evangelis-mo . Alega o valor dos sacrifícios e cerimônias do templo como suficiente para um judeu. Os discípulos do Batista o negam. E' bem possível que conseguiram sua conversão pela fé no novo Messias anunciado pelo Ba-tista. Desaparece êsse judeu da história. Agora os discípulos voltam a João e, em incidente subseqüente, historiam o êxito de Jesus na pro-víncia vizinha de Judéia. Afastada a errônea interpretação dos fatos, vejamos a verdadeira.

26. «Rabi, aquêle que estava contigo além do Jordão Notai como os discípulos do Batista lembram-se da camaradagem de João e Jesus. Não é de supor que eles estivessem juntos sbmente uns minutos em três dias de sua vida. O maior homem da terra e o Maior dos céus es-tando na mesma vizinhança, não seriam indiferentes um ao outro, na

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sua obra comum. Que camaradagem santa gozavam além do Jordão na hora do batismo, na sua vida no deserto, depois da tentação do Mestre quando êle «andava ao redor» na companhia dos peregrinos que cerca-vam o Batista, e na sua vida ali por algum tempo onde êle «morava», tal-vez numa tenda, perto da cena dos batismos do seu precursor. Os dis-cípulos do Batista se lembram de Jesus e da harmonia entre seu Mes-tre e o Profetizado.

Acho exagerada a idéia do ciúme dos discípulos do Batista. Notai o v. 28. Eles continuamente testificam o que João havia dito de Jesus. As proporções, porém, do movimento messiânico deixam-nos pasmados. Não é possível deixar de falar sôbre o assunto. E' preciso falar com o Rabi sô-bre o fato. Eu teria feito o mesmo. Não o faria o leitor, em tais circuns• tâncias ? E' possível que verificassem como seu rabi ia diminuindo e sen-tissem tristeza. E' possível uma dúvida acerca de Jesus; João mesmo du-vidaria, dai a pouco. Mas o esfôrço em imaginar uma separação e hostili-dade e inveja entre os dois movimentos do Batista e de Jesus é tendencioso e contraproducente. O discipulado do Batista sabe perfeitamente quem Jesus é e suas relações com João. Isso declaram: «Tu testificaste e testi-ficas», pois assim é o grego do v. 26. «Êle estava contigo além do Jordão.» «Todos vão para êle», inclusive os disèípulos de João, em número cada vez maior. O fato se declara. E João apoia o que acontece e podemos crer que seus discípulos concordavam. Pois, quando João morre, esses discípulos vão e dizem tudo a Jesus. E' o fim da atividade e do discipulado de João, o qual nunca chamou os homens para si, mas viveu para «preparar um povo para o Senhor». Lembrai-vos de que o apóstolo João está acumulando provas de que Jesus é o eterno Verbo. Entre suas testemunhas são o dis-cipulado do Batista em massa, por êle orientado e que apoia.

«Todos vão para ele.» Não se diz que todos foram batizados por êle. O Batista havia exigido: «frutos dignos de arrependimento». Os fariseus foram repelidos sem exceção. Jesus atrairia muitos ouvintes sem conse-guir sua conversão e subseqüente batismo. Mas podemos crer que dos fru-tos dêste ministério de Jesus surgiram muitas das igrejas da Judéia mais tarde que já eram abundantes quando Paulo voltou da Arábia a Jerusalém, Gál. 1 :22; I Tess. 2:14, na primeira década depois da morte e ressurrei-ção do Senhor. Humildes crentes, ficariam em seus humildes lugares, es-perando o dia que havia de vir. Então seriam organizados em igrejas apos-tólicas, parecidas com a grande primeira igreja que Deus deu como nor-ma, em Jerusalém. Obedeciam ao ato que Jesus mandara como profissão pública de sua fé. E ali permaneciam na fé e expectativa das seguintes ordens de marcha na vida santa, testemunhas cada qual em seu lugar, como Apolo (Atos 18:25) .

27. «Um homem não pode receber (continuamente) nada se lhe não tiver sido dado (permanentemente) da parte do céu.» Há uma similari-dade entre Mateus e João, em fielmente historiar como o judeu Jesus tan-

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tas vezes usava, em lugar do nome de Deus, a frase «o céu». Mateus o cita como falando do «reino do céu»; e aqui João ouve o Batista dizer que na vida e na obra de Jesus «o céu» de fato reinava e dava dons aos ho-mens por intermédio de Jesus.

O tempo perfeito aqui ensina a predestinação. Antes de Jesus rea-lizar êsse triunfante ministério, isso lhe fôra dado do céu. Ensina tam-bém a permanência da obra de Jesus. Continuavam na sua mão e na mão de seu Pai tôdas as suas ovelhas que lhe vieram do rebanho de João, 10: 28, 29, tôdas as suas ovelhas, de fato. A oração pontifical é a afirmativa do Filho ao Pai de que êle guardou essas preciosas dádivas imortais que recebera do Pai — os crentes — e êle pediu que o Pai os guardasse também. E' a doutrina da segurança em Jesus daqueles que nêle crêem, que lhe foram dados pelo Pai, como dons permanentes ao Filho.

Podemos traduzir: «Um homem não pode tomar nada.» O Pai deu: Jesus «tomou» os crentes para si.

28. «Vós mesmos me testemunhais continuamente.» O pronome «me» dificulta a tradução. Não há substantivo testemunhas no original, embora «servir de testemunhas» seja quase inevitável como tradução. O Batista realmente disse aos seus discípulos: «Vós estais testificando», ou «Vós continuamente testemunhais.» E' uma infelicidade perdermos de vis-ta êsse fato. Um movimento como o do Batista não se projeta na consci-ência dos séculos pela ação de um só homem. Talvez não seria tradução errada se vertêssemos: «Vós mesmos sois solidários comigo em testificar.» Há vivos écos de sua voz e mensagem. Há um corpo de discípulos, «um Povo». Se são discípulos, aprenderam o que o Rabi lhes ensinara. Eles lhe são testemunhas, pois vivem testificando o que êle mesmo pregava. E' o que nossa passagem afirma. Jesus declarou a mesma coisa quando disse: «Desde os dias de João Batista até agora o reino dos céus é tomado à fôrça e os que se esforçam são os que o conquistam», Mat. 11:12. Ve-mos, através dos olhos de Jesus, a tremenda fôrça e vontade e determina-ção dos que o Batista influenciou. E' bem enfático o grego deste Evange-lho aqui: «Vós mesmos testificais a meu favor continuamente de que eu disse: Não sou o Cristo: sou o Precursor.» De fato, nada mais razoável do que êsse testemunho dos discípulos de João. E' impossível que qualquer um dêles, digno do nome de discípulo, tivesse achado que João era o Messias. Foram batizados na esperança dum Messias prestes a se manifestar e nesse período do ministério do Batista, num Messias que já fora pilblica-mente identificado, há meses. Os discípulos de João não podiam silenciar. Que diriam? Precisamente que João havia identificado o Messias. Nin-guém precisa mais duvidar. Está em ordem a fé no Cordeiro de Deus.

Vemos como ràpidamente a palavra correu de bôca em bôca, em 1: 35-51. Continuaria o testemunho. O círculo íntimo do Batista não são tan-tos. Perguntariam uns aos outros: «Onde está André, João Bar-Zebedeu e seu irmão? Onde andam Natanael, Felipe e tantos outros que outrora

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nos acompanhavam?» Se um novato perguntasse, receberia a resposta: «Eles nos deixaram para seguir o Messias que nosso Rabi já anunciou e identificou. Nós também cremos nêle. Achamos que é nosso dever conti-nuar ainda com João na sua missão profética de despertar para os fatos o Israel que tão reverentemente ouve sua voz. Mas nós também somos do povo espiritual que êle prepara para o Senhor. E para êle fomos ba-tizados. Quando Deus terminar o trabalho de João, seremos um só povo com um só Mestre.»

Não há nada mais anti-histórico do que supor um grupo de João contra um grupo de Jesus. Dúvidas podia haver, como houve em João mais tarde, mas ciúme e hostilidade não. E se os discípulos do Batista nada haviam aprendido dêle sôbre Jesus, temos de desdizer tudo que o Novo Testamento nos afirma no caso. João tem a certeza de que sua grei está com êle e lhes lembra que já suas vozes lhe acompanham em enaltecer o Cristo sôbre seu «anjo»-Precursor. Não percamos o verbo desta Escritura: «Vós me es-tais continuamente testificando.» Com João, sua grei também é Voz cole-tiva.

«Diante dele». «Toda a evidência demonstra que Jesus, sabendo per-feitamente o que fazia, tomou a única posição que lhe fôra deixada pela eminência de João, o maior dentre os que nasceram de mulher, isto é, a posição do Messias. Se João era apenas o precursor, não cabia a Jesus o rol de um segundo precursor.»

29. «Noivo». E' um dos versículos mais difíceis de interpretar deste Evangelho e da Bíblia inteira. Não é que a idéia, uma vez vista, seja com-plexa ou abstrusa ou difícil de entender. A dificuldade surge de dois fa-tos. Um é a vasta diferença entre costumes de casamento no Ocidente .e no Oriente. O outro é que a verdadeira interpretação procede da verdadei-ra tradução — «noivo... noiva». Essa tradução, porém, vai de encontro a todo o dogma e todo sentimentalismo do catolicismo de tôdas as espécies. O dever do intérprete, contudo, não é de emitir exposições populares, senão de dizer a verdade. E a verdade absolutamente certa é que as palavras gregas aqui significam noivo e noiva. Tal tradução é um gol-pe fatal na.idéia de «filhos da Igreja». A Bíblia não nos dá semelhante frase ou idéia. As igrejas do Novo Testamento e a Igreja Geral (a irman-dade espiritual de todos os salvos) são descritas no Novo Testamento sob a figura do noivado, em suas relações de lealdade a Cristo, o divino Noivo.

«Quem tem a noiva é o Noivo.» Os costumes dos judeus a respeito do casamento entram na urdidura da metáfora do Batista. Ele está dizendo que Jesus é para com seu povo o que o Noivo é para com a noiva. João, nessa linguagem figurada, não é um que quisesse ser o noivo, vendo por isso com ciúme o afastamento de seus discípulos para Jesus. Pelo contrá-rio, o Batista é «o amigo do noivo», seu melhor e mais íntimo amigo, ofi-cialmente o amigo que arranja o casamento, o amigo que por um pequeno prazo tem relações excepcionais com os noivos e prepara detalhadamente

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sua união, presidindo com gôzo a consumação dos planos. Quando todos os olhos estão virados para o noivo, nessa consumação, e ninguém se lem-bra do «amigo» que tanto fêz e de tal maneira se sacrificou, êste sen-te cada vez maior alegria. O triunfo e a alegria que vibram na voz, no riso, no prazer do noivo lhe pagam mil vêzes. Assim João contemplava a adesão a Jesus, por parte da noiva, O POVO (Luc. 1:17), que êle prepara-ra lealmente e continunaria a preparar.

O Dr. J. W. Shepard assim descreve o casamento judaico: «O casa-mento entre os judeus era uma ocasião de grande alegria e festividade, porém de sério significado também. Nas famílias piedosas era precedido por jejuns. O noivado durava um ano, ou menos tempo; era uma relação formal e legalizada e era considerado como tendo o valor sagrado e fôrça moral do próprio casamento, publicamente celebrado. Na noite do casa-mento a noiva era conduzida do lar paterno para o de seu futuro mari-do, com o acompanhamento de música e com a distribuicão de óleo e vi-nho entre os amigos e nozes entre as crianças, tomando a dianteira os ami-gos do noivo, que levavam tochas, lâmpadas, ramos de mirto e grinaldas de flores. A noiva, coberta com um véu, quando chegava era levada ao noivo, a fórmula de casamento era pronunciada e os documentos le-gais assinados, e isso era seguido pela lavagem das mãos e, por último, a festa do casamento, a qual poderia durar um dia ou uma semana.» (11) Uma fase dos costumes se vê na parábola das dez virgens. E' fácil imagi-nar que seria considerada tanto «imprudência» como impudência, cinco moças aparecerem de madrugada (Mat. 25:6) soizinhas, depois de consu-mado o casamento e enquanto todos estavam no meio do banquete das bo-das. Pela excitacão das dez virgens, na parábola, podemos ver como João se considerava estar no meio da festa em que o Noivo trazia para sua casa a noiva e a tomava em união indissolúvel para si mesmo.

Agora, a doutrina que se baseia nos costumes e que João expõe pela linguagem figurada do noivado. Quem é a noiva? Quando se efetuam as bodas? E' noiva ou espôsa? E tem filhos? São as perguntas que sur-gem quando a figura social se transforma em doutrina cristã. Vários dêsses pontos de interpretação tenho abordado no Vol. I. págs. 167471. Aqui apenas desejo salientar que a noiva é o povo de Cristo, o Israel es-piritual de Deus. Aquele povo até aí era quase limitado ao corpo dos dis-cípulos do Batista; êle era por Deus designado para ser o «amigo do Noi-vo» e arranjar a união. Isso êle fizera e contemplava com gôzo o fim de sua obra.

Precisamos, porém, perguntar-nos a nós mesmos se os relativamente poucos que João evangelizou eram os únicos que haviam de fazer parte DO POVO, figurado na noiva da metáfora? Claramente que não. Eu tam-bém faço parte, e vós e os demais crentes dos séculos do passado cristão

(11) "The Christ of the Gospels", p. 88.

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e do porvir. Veremos que Jesus chamará «uma hora» todo o período- da história evangélica, em outra figura (5:25) bem clara. Precisamente como já vão vinte séculos e ainda não se terminou aquela «hora», assim ainda não se formou «O POVO» que é aquela noiva. Se os poucos crentes contem-porâneos do Batista e de Jesus na sua vida terrestre eram, cinicamente, «a noiva», se o casamento metafórico se efetuou, se já há filhos que apare-cem através dos séculos, «filhos da Igreja», então os crentes dos séculos desde o segundo século até a atualidade automàticamente ficam excluídos dos altos privilégios espirituais simbolizados por esta linguagem. E', por-tanto, uma interpretação falsa e contraproducente.

Vão ainda sendo evangelizados, e grangeados ao novo Israel, milhões dos crentes que formarão a noiva do Cordeiro. O casamento não pode ser consumado até que a noiva se tenha preparado. Estamos no período agora dos preparativos, da aproximação dos noivos. Isso se torna uma realidade cada vez que um pecador é convertido a Jesus, unido com Jesus pela fé. A mesma figura continua por todo o Novo Testamento e, conforme a pará-bola das bodas, estamos agora saindo aos becos e às encruzilhadas e con-vidando os convivas. O Apocalipse representa o Espírito e a noiva como ainda dizendo: «Vem», no fim do primeiro século. E sômente no re-mate de todas as visões do vidente do Apocalipse é que se anuncia o ca-samento do Cordeiro e a sua noiva. nue agora «se preparou», no período da evangelização do mundo. O Batista inaugurou e ficou no meio do pri-meiro gôzo dessa união com Jesus que é o seu formal noivado com seu povo, e organizou a peregrinação coletiva para «a casa de muitas mo-radas», «a casa do Pai» do Noivo. Ele percebeu e participou dessa fase inicial da cerimônia, fase de que nós também participamos ainda, dizen-do: «Vem». E' a doutrina cristã, desde o primeiro João (o Batista) até o último João, o apóstolo e vidente do Apocalipse. Este João é quem nos his-toriou o princípio e o fim do emprego dessa figura. Certamente sabia o que estava fazendo e não produziu confusão ou contradição.

Sendo assim, tôda a idéia de «filhos da Igreja» é escândalo. «Filhos da noiva?»

«Trasborda de alegria.» O preclaro comentador Mathew Henry ex-pressa a opinião de que Paulo tem essa mesma alegria, juntamente com os demais ministros do evangelho. À igreja de Corinto o apóstolo disse: «Porque vos desposei com um só esposo» — é a palavra «varão» e êle tinha «desposado», feito o pacto e os votos de amor entre aquele povo e Jesus Cristo. O pacto e os votos já estavam efetuados há anos, mas êle está ainda com «zelos» pela virgindade da noiva. Logo ela ainda não era mãe, não havia «filhos da igreja». Mas Paulo, diz Henry, sabia também do g&zo do Batista, como «amigo do Noivo» que vai acrescentando muitos outros à sagrada relação de fazer parte da noiva, ou ter relações de comu-nhão com Cristo que se podiam simbolizar por essa figura. E, nesse sen-tido, todo o ministério compartilha da alegria de João, sendo também

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anjo como João. Qualquer evangelizador entra na mesma qualidade de atividade, e a própria «noiva diz: Vem.» Quer associar consigo um nú-mero cada vez maior na sua relação com o seu Senhor.

«Com alegria se goza.» Assim vertia a antiga Versão Almeida, em 1857. O grego original diz: «Com gôzo se goza» ou «Com regozijo êle se regozija.» E' um idioma reminiscente do hebraico, e João, o Evangelista, está se lembrando, no próprio idioma oriental do Batista, como há lon-gos anos seus colegas que eram testemunhas auriculares (12) e entraram mais tarde nas fileiras de Jesus lhe haviam narrado a momentosa discus-são entre eles e seu Rabi martirizado, o Precursor. O idioma é evidência-do extremo oposto de ciúme, isto é, uma alegria em outrem que se es-quece completamente de si e exulta sobremaneira no outro. O tempo per-feito do verbo reforça a idéia de satisfação. Chegou à sua plenitude e nesse auge permanece. Que atitude nobre de João e, digamos sem rega. tear-lhes os aplausos, de multidões de seus discípulos também.

«Este meu gôzo.» «Meu especial gôzo. João diz três vezes que é da terra. E' o amigo do Noivo, o intermediário que une Jeová em casamento com o seu reino» (Notas de Geerhardus Vos).

30. «Eu diminuir.» «Aquêle que fôr superior às ambições comuns dos homens é superior também aos receios comuns deles. Se êle tiver pouco a esperar do favor de seus semelhantes, pouco terá de temer do aborrecimento deles ; nada tendo a ganhar por uma dosagem de adulação servil, nada também temerá pela expressão de justa censura.» (13)

«Diminuir». Sim, diz Hort algures, mas não desaparecer já e de vez. «Diminuir». João «amavit nesciri et pro nihilo reputarb. «Ele é quem deve continuamente aumentar: eu sou quem deve con-

tinuamente diminuir.» Os pronomes são a parte enfática no grego origi-nal. «Ele... eu»: nessa ordem, e cada vez mais. E' meu texto invariá-vel, ao deixar um pastorado. De certo, aplico as palavras a mim e a todos os crentes em relação a Cristo. Mas começo aplicando-as a mim e ao meu sucessor. Eu apenas preparei o caminho para êle. «O dia de amanhã será melhor na Igreja que meu dia de ontem entre vós. Termina hoje cada função que exerço. Não sou mais pastor do rebanho. De mim não deveis pedir ministério pastoral. Não volto para invocar a bênção divina sôbre os casamentos ou aniversários festivos, nem para cultos fúnebres, a não ser na falta de pastor no vosso meio. Ele tem direito a essas íntimas relações pastorais que eu até agora gozava. Não lhe serei rival em vossos afetos. E se alguém me afirmar, com lisonja anti-evangélica, que a igreja nunca será a mesma, depois de minha partida, ou que dias piores virão, eu respondo que é uma declaração desairosa a meu respeito, pois indica que

(12) João o evangelista não seria testemunha auricular porque já deixara o Batista e peregrinava com Jesus; estaria em "o território da Judeia", enquanto a conversação narrada se desse em Enom.

(18) "The Life of Christ", de Farrar, p. 59.

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eu não fiz uma obra estável. Minha própria confiança naquilo que o Es-pírito operou por nós todos, me assegura que melhores coisas fará o Espi-rito por vós e convosco, sob o ministério do novo pastor. Convém que êle cresça e que eu diminua. » Nunca me arrependi de haver assim dito e fei-to, nem se desfêz nenhuma amizade fraternal legítima nas muitas igrejas às quais assim preguei.

«Diminuir». Notai que o verbo está no presente linear, de ação con-tínua ou repetida ou costumeira. «Diminuir» não é desaparecer de vez. João ainda tinha muito que fazer. Pode ser que o Batista tivesse bati-zado lá em Enom o famoso e eloqüente evangelista Apolo que logo vol-tou à África e, conhecendo Unicamente o ministério e o batismo de. João, todavia «falava e ensinava com precisão as coisas concernentes a Jesus» (Atos 18:25). Se não houvesse o ministério de Enom, faltariam a Jesus as testemunhas ali conquistadas. O Batista, logo que viu e identificou Jesus, podia ter dito: «Bem. Agora eu não faço mais nada. Ele já chegou. Pode ter meu lugar e minha gente. Eu desisto por completo do meu ministé-rio.» Mas se êle assim dissesse e fizesse, seria desleal. Cavaria um abismo entre Jesus e seu povo. João mesmo tinha uma bem importante missão da parte de Deus. E Jesus não podia fazer a obra de João. «A cada um, sua obra.» Testemunho eficaz sôbre o Messias tem de ser dado por um contemporâneo antes de êle aparecer, na ocasião do seu aparecimento nas águas batismais e no meio do seu subseqüente ministério, confirmando-o, por um período, e removendo tôda dúvida e confusão que perdurasse na mente dos investigadores. A missão do Batista depois de batizar Jesus era ainda de vasta importância. Havia tanta razão para êle trabalhar com Jesus como para Pedro e Tiago e André.

O Batista talvez chegasse ao seu zênite quando uma leva de seus me-lhores discípulos o deixou e foi viver com Jesus, na qualidade de apóstolos do Cordeiro. João vê quando chega seu zênite em Betânia e se retira para Enom. Ai decresce. Mas êle diminui como Deus quer. Talvez de Enom o Batista fosse chamado ao palácio de Herodes e alcançou então sua maior glória entre os homens, a de ser conselheiro real. Mas era o comê. ço do fim. E talvez fosse numa dessas rápidas visitas à côrte de Herodes que o profeta foi prêso, para nunca mais voltar a Enom. Contudo apren-damos esta lição de João; quando Deus nos dá uma responsabilidade, cum-prâmo-la até o fim. Não vamos parar no cume da montanha. Vamos des-cer o outro lado até o fim de nosso dever, como Jesus desceu do Monte da Transfiguração até o menino endemoninhado lá no vale. E' um Pedro, que não sabe o que está dizendo, quem propõe construir tabernáculos e fi-car na luz inefável da transfiguração enquanto perece o mundo lá em bai-xo. Vidas que só sabem subir, mas não sabem descer e não querem dimi-nuir, têm velhices desviadas, carreiras incompletas, vida cristã de torso apenas, energias abortivas. No Apocalipse Jesus se queixava: «Não tenho achado as tuas obras completas, diante de meu Deus.» Se Jesus mesmo não

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soubesse diminuir, «tomando a forma de servo, tornando-se obediente até à morte, e morte de cruz», não teria acabado a obra de nossa redenção. Saber diminuir, sem parar na obediência e na operosidade do bem, é sa-ber imitar ao Batista e ao seu Senhor. Quando chegar nosso tempo de di-minuir, diminuamos trabalhando, testemunhando como vozes que ainda dão seu recado até ao fim.

«Que eu vá ficando cada vez menor.» João diminuiu engrandecido. Abaixou-se, sendo elevado. Tornou-se freqüentador do palácio e caiu na prisão do palácio real de inverno. Sua cabeça se levantOu para o prato, da rainha e sua filha dançarina. João, como Jesus, foi «levantado» na, morte.

Com êsse duplo ministério e duplo batismo, de João e Jesus simulta-neamente, na Samaria e na Judéia, acabou-se a atividade pública do Ba-tista. Aqui cabem as informacões suplementares dos outros Evangelhos, que João sempre pressupõe. Ei-las: «Mas o tetrarca Herodes, sendo re-preendido por êle por causa de Herodias, mulher de seu irmão, e por tôdas as maldades que Herodes havia feito, acrescentou a tôdas as outras ainda esta, a de encerrar João num cárcere, Luc. 3:19, 20 («Harmonia dos Evan-gelhos», Watson-Allen). «Ora tendo Jesus ouvido que João fôra prêso, par-tiu para a Galiléia.» Segue, na Harmonia, o Cap. IV de João. Como Jesus velo completar na Judéia a obra que o Batista começara naquela vizinhan-ça, assim êle acrescentou ao ministério do Batista na Samaria sua própria colheita abundante, ali onde João Batista fizera sua última semeadura.

Quando foi que o Batista «repreendeu» Herodes «por tôdas as suas maldades» ? Provavelmente ia de noite ao território da província vizinha, a pedido do próprio tetrarca. e lhe pregava e admoestava. Talvez fõsge mais longe até à capital do reino. Foi uma vez mais do que era prudente para seu próprio bem-estar. Herodes o prendeu. Visto que foi prêso em Maquero ao leste do Mar Morto, é provável que a última visita ao selva-gem régulo e sua côrte hostil se tivesse realizado naquela zona. Acostu-mado à lisonja e à adulação, Herodes não suportou a mensagem do Ba-tista, e sua exigência de arrependimento; e violou sua palavra real e sua hospitalidade, anulando o «salvo-conduto» do profeta, corno as autorida-des romanistas fizeram com João Hus. "Era o fim do ministério do Pre-cursor, excetuadas algumas visitas do perplexo tetrarca, na própria prisão. Mas depois do intervalo marcado pelo Batista para estar de novo pregan-do, o povo reuniu-se em vão. O Precursor nunca mais foi visto ali até que seu cadáver foi levado à Samaria grata e cordial, para seu sepultamento. O surto de João na alta aristocracia não deu fruto algum, que saibamos. Mas deu exemplo. A Voz não se silenciou. A bandeira da verdade não foi arrastada no pó.

31 - 36. Podemos acompanhar o emininte teólogo presbiteriano de Princeton, Geerhardus Vos, em pensar que é a voz do Batista que ainda ouvimos nestas palavras, até o fim do Capítulo III ? Nestlé agrupa tudo num parágrafo, no seu Novo Testamento grego. Vejamos as.raiões alegadas

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 27

contrárias a essa opinião de Vos. 1. O trecho está cheio da Trindade, «0 Pai», «O Filho», «O Espírito». Muitos não querem crer que João sabia da doutrina do Espírito, João que estava comissionado pelo Pai, que batizou o Filho, que estava cheio do Espírito desde o seio de sua mãe. Evidente-mente essa razão é falsa. 2. Outros pensam que a linguagem tem uma plenitude da luz cristã mais consentânea com o fim do século do que com o ano 27 ou 28 da era cristã. Podemos concordar com êstes, sem aceitar por um instante a razão n. 1, citada em cima. O Dr. A. T. Robertson pen-sa que são do evangelista João as palavras do v. 31 em diante, e assim di-videm o Capítulo as versões Brasileira, Rohden, Williams, e outras. Mont-gomery põe entre aspas, como palavras do Batista, todo o resto do Capí-tulo. Weymouth põe entre aspas, como palavras do Batista, tudo até o v. 34 inclusive, atribuindo ao autor do Evangelho os versículos 35 e 36. Moffatt e outros supõem, por ilícitos motivos subjetivos, que êste trecho deve estar entre os versículos 12 e 13 do Capítulo II. Mas não há nenhu-ma base textual dêsse subjetivismo. O texto comum está certo. As aspas são uma conveniência moderna. Portanto, não podemos afirmar dogmà-ticamente onde acaba de falar o Batista e onde começa o Evangelista.

31. «Vem lá de cima.» Vêde as notas sôbre 8:23. A linguagem torna evidente que o v. 3-também pode ser traduzido assim. Mas é muito dife-rente o fato de vir livremente de lá de cima para a Encarnação e o de começar nossa vida aqui na terra, nascendo da carne, e ainda mais tarde, na hora da salvação, começar a vida eterna, por uma experiência gerada em nós por Deus sobrenaturalmente, «de lá em cima». E' a diferença entre a vinda do eterno Verbo para nossa terra viver a vida humana, e nossa ida a Jesus, do meio de nossos pecados tendo necessidade de um Salvador.

Muitos dizem que no v. 16 não pode ser Jesus quem fala porque diz: «Deus amou... euviou seu Filho.» Os tempos seriam presentes, pelo me-nos no caso do primeiro verbo. Pergunto agora se não estariam os verbos do v. 31 no tempo passado se tivesse sido João, no fim do primeiro século, quem os escolheu, em lugar de serem presentes? Nem um nem outro argu-mento é em si convencedor. Como vemos em várias passagens deste Evan-gelho, Jesus é considerado como descendo do céu, em providência e re-velação, todo o tempo desde a criação até sua segunda vinda.

«Aquêle que vem saindo do céu». Igualam-se «lá de cima» e «do céu». E o «mundo (o kosmos humano) é esta habitação terrestre de nossa raça. Se João, no fim do século, foi quem proferiu essas palavras, então testi-ficam a constante, intermitente, propositada, definitiva série de vindas de Jesus Cristo, em juízo de indivíduos e igrejas, e para unir-se com o Pai no coração do crente espiritual, «ceando com êle», sendo hóspede dêle. E' a vinda em que êle, às vêzes, fica à porta e bate.

«Sôbre todos». Nenhum cristianismo é digno dêsse nome se não exal-ta o Salvador à altura da soberania absoluta sôbre o crente, sôbre cada igreja e sôbre o povo que o ama. Semelhante soberania tem de ser pessoal

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para ser universal. Se Jesus sômente tem relações diretas com um sacer-dócio paramentado, um clero falível e pecaminoso, então a quase totali-dade do seu povo está sob esse clero e não está diretamente sob a autorida-de e direção de Jesus Cristo. Seríamos apenas as vítimas de tais pas-tOres, por si mesmos constituídos bispos sôbre nós e nenhuma relação te-ríamos com o bom Pastor Bispo de nossas almas. Jesus é sôbre TODOS, e temos de obedecer a Deus, nele revelado e conhecido, e não aos homens . O único «Servo dos servos de Deus» é o Servo Sofredor de Jeová, e pelos seus sofrimentos no Calvário êle ganhou sua soberania absoluta e indivi-sível sôbre a consciência cristã, soberania que êle não delegou a nenhum vigário carnal. A soberania de Jesus Cristo afasta do cristianismo puro qualquer autoridade e quaisquer tradições dos homens. Se somos dêle e o amamos, nós lhe obedeceremos, ainda que todos os seres criados se opo-nham. Correlativa da soberania do Senhor é a obediência alegre do servo. E' fútil cantar de «um pendão real» e magnificar poèticamente «a coroa real do Salvador», se vamos reconhecer na vida pessoal e eclesiástica a au-toridade de papas e reformadores e fundadores de seitas desviadas do en-sino do Novo Testamento, na doutrina e vida organizada do cristianismo. O Senhor onipresente e que vem sempre «de cima», sem ausentar-se de lá ou de qualquer outra parte do seu universo, está pessoal e diretamente «sobre todos», dêles quer obediência pessoal com responsabilidades pes-soais, como também obediência coletiva no terreno da responsabilidade or-ganizada, nas igrejas do Novo Testamento. Um cristianismo sem Jesus como Senhor não tarda muito a degenerar num cristianismo sem Jesus como Salvador ou Mestre, mas num vago sentimentalismo a propósito do «meigo NaZareno». Se êle não é Senhor sôbre todos e sôbre tudo, não é Senhor em sentido algum. Ele definirá sua soberania, deixando a César o que é de César, nesta vida aqui na terra. Portanto o poder civil não tem motivo de ciúmes da autoridade de Jesus nos corações do seu povo. Ele revelou a esfera e a qualidade de vida em que exerce sua soberania.

«Quem é da terra, da terra é e da terra fala.» Há um abismo entre a Palavra de Deus e os melhores escritos cristãos dos séculos subseqüentes que por essa linguagem se descreve fielmente.

«Quem vem do céu é sôbre todos.» O famoso comentador Mathew Henry fica arrebatado de entusiasmo por Jesus Cristo, assim descrito. Lembra que nas suas mãos está «toda a autoridade», que êle é «Senhor de todos», que tôdas as coisas estão sendo postas como escabêlo de seus pés, que lhe foram dados os gentios, as nações, para sua herança, que êle «tem poder sôbre tôda a carne (a humanidade, a raça inteira) », sendo to-dos os anjos seus servos e todos os demônios seus cativos, que êle tem o cetro de ouro e a vara de ferro, e que é o Senhor de tôda a graça, o objetivo de tôda a fé salvadora.

32. «O que êle tem visto e ouviu, isto testifica.» João sente que o testemunho de Jesus é o espirito da profecia e que êle, como órgão de re-

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velação pela inspiração do Espírito Santo, ainda recebia o testemunho de Jesus Cristo em forma variada, de Evangelho, Epístolas e Apocalipse. En-quanto êle vivia, não estava encerrada a revelação que nos deu o cânon do Novo Testamento. Vêde, no começo da Primeira Epístola, o entusias-mo do apóstolo pela certeza que tem, como testemunha ocular, da revela-ção histórica de Jesus na encarnação e redenção do seu povo, e sua cer-teza, em nada inferior, sôbre as subseqüentes revelações que Cristo lhe deu, no Apocalipse. Vêde as palavras que encerram o Apocalipse. E' a última Escritura Sagrada.

«Ninguém». Westcott é citado por Hovey: «O fim do século apostó-lico era um período de singular escuridão e desespêro.»

«Ninguém lhe recebe o testemunho.» Realmente, é raro o crente que acredite no simples evangelho de Cristo como Cristo mesmo o pregava. (Vêde nos «Estudos Especiais» os três itens dêsse evangelho, Vol. I, págs. 57-67). Há tantos credos que repudiam e até anatematizam «o testemu-nho» de Deus, o Filho, a respeito. E' uma das verdades mais odiadas em tôda a história do pensamento humano, pois tira do homem tôda a base de glória e rende a glória pela salvação totalmente a Jesus. Isso é «a ofensa da Cruz». «Ninguém lhe recebe o testemunho», pois é fatal à vai-dade do homem. «O que se gloria, glorie-se no Senhor.»

Como explicar uma negação tão categórica do êxito do evangelho no mundo? Paulo havia escrito, como uma das marcas da plenitude da re-velação em Cristo: «Pregando entre as nações, crido no mundo», I Tim. 3:16. Isso uns trinta anos antes de João escrever. Agora João afirma, aparentemente, a absoluta e unânime rejeição do evangelho pelos homens. As duas declarações precisam ser harmonizadas.

Já notamos que não seria cabível a declaração nos lábios do Batista no momento em que êle ouve o testemunho de seus mais íntimos discípu-los: «todo o mundo vai para êle.» O Batista, paraninfo da grei de Cristo que é sua noiva, não pode, nessa sua hora de suprema alegria, negar a exis-tência dêsse povo. E' uma impossibilidade psicológica. Qual, pois, pode ser o valor e a razão de João, o evangelista, ao escrever tais palavras ?

Já notamos (na Introdução) que João captou no Quarto Evangelho um dos estilos de Jesus. Ora um dos métodos didáticos favoritos de Jesus Cristo era a hipérbole. Ele dizia a verdade em termos fortes e chocantes, com o propósito de despertar a atenção. O velho João, banido, vê desa-parecer, como que por encanto, a multidão dos crentes, e também vê sur-gir dentro das pequenas e poucas igrejas que escapam ao golpe de César heresias fundamentais contra «o testemunho» do evangelho. Solta, pois, êsse brado hiperbólico de alarme. «Ninguém» fica. Se examinamos quan-tas vêzes as palavras «ninguém» e «todos», no Novo Testamento, recusam admitir uma interpretação ao pé da letra, ficamos confortados. «Nin-guém» é «a minoria do Mestre». E' declaração do apóstolo paralela à per-gunta de Jesus: «Contudo, quando vier o Filho do Homem, achará, porz

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ventura, fé na terra?x, E' semelhante ao grito de Elias: «Tenho sido zeloso por Jeová, Deus dos exercítos; porque os filhos de Israel deixaram a tua aliança, derrubaram os teus altares e mataram à espada os teus profetas: eu sômente fiquei e procuram tirar-me a vida.›,

33. «Selou.» «Autenticou, como que por sêlo», traduzo. Negar que há salvação por Jesus Cristo crucificado, é que o crente nele tem a vida eterna nessa salvação, é o mais grave e insolente ultraje contra a veraci-dade divina. Para que nós tenhamos uma poderosa consolação, Deus jurou que o sacerdócio de Jesus faria dêle nosso Precursor no céu, nosso Batista, garantindo que como êle entrou no céu primeiro, nós havemos de entrar também. E' nossa «esperança», âncora da alma, firmada no juramento divino, Heb. 6:13-20. «Este testemunho é que Deus nos deu a vida eterna e esta vida está no seu Filho. Quem tem o Filho, tem a vida.» Ora, cren-do êste testemunho divino, «selamos» com a nossa fé a veracidade divina. Mas «quem não crê a Deus, o tem feito mentiroso, porque não tem crido no testemunho que Deus deu de seu Filho», I João 5:9-12. Por apêgo a fal-sas doutrinas, que repudiam até João 3:16, o coração do evangelho, muitos negam a veracidade divina. Não é ofensa leve. Antes ponha cada um de nós o selo de sua fé e sua palavra de convicção doutrinária sôbre a afir-mação de Deus: «O crente no Filho tem a vida eterna.»

«Autenticou.» Vêde o estudo de «Amém, amém», em 5:24. Alexander Maclaren comenta: «As promessas de Deus são tôdas sim e amém. Pela fe nós acrescentamos um amém a tôdas elas, como em Apoc. 22:20.»

«Por sêlo». Deus sela o crente pela obra direta do Espírito regenera-dor e santificador. O crente também sela a Deus. E' uma ação mútua. Há uma reciprocidade no apoio e na unidade. O sacramentalismo caiou miseràvelmente a doutrina toda do «selo», no Novo Testamento. E' pre-ciso remover a caiação e restaurar a verdade apostólica . Há um só subs-tantivo traduzido por sêlo, no Novo Testamento, e um só verbo que é da mesma raiz. Meu Dicionário Grego assim define as duas palavras: «Selo, fechando para guardar e proteger, Mat. 27:66; Apoc. 20:3; escondo, Apoc. 10:4; 22:10; marco, com a impressão de um anel simbólico, literal ou me-taforicamente; confirmo, torno indubitável, João 3:33; 6:27... » (Citando Souter). E ainda (citando Thayer) : «Guardo secreto, guardo em silêncio, autentico: Deissmann interpreta, em Rom. 15:28, como indicando que tô-das as medidas da coleta estavam acabadas, pois selar fruto era o último passo antes de sua entrega. Os rolos eram selados para se protegerem da falsificação.» E o substantivo: «Sêlo, o sêlo ou lacre sôbre rolos de Escri-tura ou documentos oficiais; um anel com sinete; a inscrição ou impres-são de um sêlo — seus dizeres; aquilo por que uma coisa é confirmada, pro-vada, autenticada, como que por um sêlo» — (Thayer, de novo).

As seguintes Escrituras mostram o uso total do Novo Testamento. São: Mat. 27:66; João 3:33; 6:27; Rom. 4:11; 15:28; I Cor. 9:2; II Cor.

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I :22; 11:10; Efés. 1:13; 4:30; II Tim. 2:19; Apoc. 7:3, 4, 5, 6, 7, 8; 10:4; 20:3; 22:10. Também Apoc. 5:1, 2, 5, 9; 6:1, 3, 5, 9; 7:2; 8:1; 9:4.

Não é difícil discernir quando a idéia é de guardar segrêdo, quando é de salvação e segurança, e ainda quando é de autenticar. Em II Cor. 11:10 vemos um sentido derivado: «Não me será selada esta glória.» Se-lar é encerrar, fechar, terminar. A glória que Paulo tinha em mira con-tinuaria, não seria como um objeto retirado do uso e guardado incomuni-cável.

Deus não fala audivelmente, nem o Pai, nem o Filho, nem o Espíri-to Santo. Fala por nós. Nós somos o sêlo que autentica, aos nossos, a ve-racidade de sua Palavra. Dai o terrível pecado de doutrina falsa, negan-do a veracidade divina e repudiando, como indigno da confiança pública, o que êle revelou em Cristo e na sua Palavra. Não há doutrina falsa, con-traditória do ensino do Novo Testamento, que não seja uma negação da veracidade de Deus. E, coerentemente, quando testificamos, com as veras de nossa alma e a convicção de nossas consciências, que a Palavra de Deus é veraz, o nosso testemunho é um sêlo que autentica a Escritura, para to-dos que tenham respeito por nosso juízo e testemunho. Eu ponho meu sêlo de fé e apoio sôbre a veracidade de Deus. E tu? A suprema tragédia da religião hoje em dia é a filosofia evolucionista que levou os incautos a supor que o Velho Testamento (as Escrituras de nosso Salvador que êle tanto estimava) são uma coleção anônima de fábulas. Isso nos deu uma geração que não crê em coisa nenhuma, porque não tem base para crer. Julga mentira a suprema verdade. Não tardou em mostrar a mesma irre-verência para com as próprias palavras de Jesus e do Novo Testamento. A veracidade de Deus não é mais segura no Novo Testamento do que no Antigo. Se os homens não crêem o testemunho de Moisés, Jesus mesmo afirma que não crerão nêle.

Vejamos agora o triste curso da caiação sacramentalista. A referida caiação procede do interpretar tendenciosa e sacramentalisticamente a lin-guagem de Rom. 4:11. Trata-se da fé que foi imputada a Abraão e «há de ser imputada a nós que cremos», vs. 9, 24. Essa fé, e a justiça que a acompanhou da parte de Deus, foram realizadas sem o auxílio de ato físico de espécie alguma, sem cerimônia ou ritual. Paulo, pois, continua: «Não na circuncisão (a fé foi imputada), mas sim na incircuncisão; e recebeu o sinal de circuncisão, sêlo da justiça da fé que teve quando não era cir-cuncidado; para que fôsse pai de todos os que crêem, ainda que não se• jam circuncidados, a fim de que a justiça lhes fôsse imputada.» A fé, e a justiça que trouxe eram fatos e experiência da graça divina no patriarca, antes do sinal que se tornou sêlo. Deus agiu na experiência espiritual, de crer. Será que a circuncisão foi também ato de Deus? E' estultícia dizer semelhante coisa. Foi ato de Abraão, unicamente de Abraão. Lemos em Gên. 17: «Ao acabar de falar com Abraão, DEUS RETIROU-SE ME.

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Abraão tomou a Ismael, seu filho, e a todos os escravos nascidos em sua casa e a todos os que tinham sido comprados por seu dinheiro, todo o macho entre os homens da casa de Abraão e circuncidou a carne de seus prepúcios.» A Bíblia se protege contra seus deturpadores. Deus não agiu no ato da circuncisão. DEUS RETIROU-SE, e então o ato de circun-cisão foi total e unicamente o ato do patriarca, ato de obediência mas não da operação divina por obra e graça do Espírito Santo, como o sa-cramentalista gostaria de crer. Assim ficou evidente para os séculos do porvir que a cerimônia é ato meramente humano. DEUS RETIROU-SE, o homem agiu no rito sozinho. Há tantos milhões de judeus por aí, todos circuncidados, mas incrédulos. Não há e nunca houve, nesse rito ou em qualquer outro, a PRESENÇA REAL DIVINA. E' blasfêmia. Deus mani-festou-se na ocasião de ordenar o rito, visível e audivelmente, a fim de que êle pudesse visivelmente partir ANTES DO RITO e deixá-lo para o ho-mem praticá-lo sózinho.

Pois bem. De quem é o ato de selar, no caso da circuncisão? Era ato de Deus ou ato de Abraão? Era sinal que Deus manifestaria a Abraão ou sinal que Abraão manifestaria aos homens? Era Deus selando a graça jus-tificadora com um sacramento, ou Abraão selando o testemunho de sua fé em Deus, autenticando a palavra de Deus por um ato que demonstrasse sua fé, que existia e já lhe trouxera salvação, antes do rito, sem o rito, independente do rito, sendo êste rito um sêlo humano, pois, não um sêlo divino que estampasse na alma do homem a indelével graça de Deus, como os sacramentalistas gostam de crer e de levar outros iludidos a crer também?

Rom. 4:11 é Escritura paralela de João 3:33. O sêlo é o apoio hu-mano, dado à veracidade divina. O homem sela o que Deus disse e fêz; não é Deus selando e deixando marca indelével no ser humano em que se pratica um ato carnal, físico, impotente para produzir marcas divinas e eternas no espírito do pecador.

Primeiramente, pois, o caiador eclesiástico do evangelho inverte os fatos e os agentes do feito. Abraão era o agente que sbizinho — «DEUS RETIROU-SE» — fêz o ato da circuncisão. Abraão deu o sinal no meio dos seus. O sinal era o sêlo. Quem selou? O agente que praticou o ato cha-mado o sinal. Abraão assinalou, Abraão selou, Abraão autenticou, Abraão confirmou. Deus lhe prometera uma SEMENTE e ordenou a circuncisão dessa semente através da história do judaísmo no porvir. Antes de exis-tir a semente, Abraão demonstrou, em si e nos seus, sua já existente e já realmente justificadora fé, pelo ato mandado. O rito prescrito era a pú-blica confirmação da sua fé na semente prometida. O primeiro passo na caiação é falso.

O segundo passo é identificar a Velha Aliança com a Nova Aliança, os ritos da caducada teocracia nacional de Israel com os ritos dos novos odres, com seu novo vinho do cristianismo revelado por Cristo e o Novo

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Testamento. Acima de tudo, a identificação da circuncisão com o batismo infantil. Fecham-se os olhos à exclusão lógica das meninas no batismo in-fantil. Fecham-se os olhos à evidente incoerência de não batizar tôdas as crianças do país, como no caso da circuncisão em Israel, e por fôrça. Fe-cham-se os olhos à diferença abismal na natureza das duas alianças e seus respectivos cerimonialismos. Fecham-se os olhos ao sentido funda-mental de Romanos 4, o contexto da passagem caiada tão vilmente. O supremo pecado dos séculos cristãos, contra Cristo, contra a infância, con-tra a espiritualidade das igrejas, contra a evangelização dos povos e con-tra o evangelho que é indispensável para tal evangelização, é o batismo in-fantil. O batismo não substituiu a circuncisão. Os circuncidados, nos dias dos apóstolos, continuavam a ser batizados e os batizados continuavam a praticar a circuncisão, como se vê no caso de Paulo e Timóteo. Abso-lutamente não existe, e nunca existiu, nenhuma relação entre o batis-mo e o antigo rito do judaísmo. E' uma medida judaizante identificar os dois e fazer duma cerimônia a sucessora da outra ; e, como os judaizantes primitivos, acaba sempre, mais cedo ou mais tarde, na doutrina de que sem o rito falta algo de essencial da graça do Espírito na alma da criança.

O selo da graça de Deus é o próprio Espírito regenerador e santifica-dor, não um rito de origem judaico-pagão, nem qualquer outro rito. E' o Espirito, Unicamente o Espírito, que sela o crente, não um supersticioso cerimonialismo. Sendo selo, é também penhor, porque o crente tem o Es-pírito no coração desde o primeiro momento de sua vida eterna pela fé. «Deus... imprimiu em nós o seu selo e EM NOSSOS CORAÇÕES deu o penhor do Espírito» II Cor. 1:22. Batismos e outros ritos'são exteriores. Não têm contato com o coração, o íntimo, a sede da vida. Mas o SELO representa o Espírito divino, em contato com o espírito humano, em im-pressão espiritual, graça indelével, de verdade, mas não por nenhum sacra-mentalismo materialista e pagão. Onde o Espírito sela, ai fica, reside, é o penhor e garantia do gozo eterno que nos espera lá no céu. Eis a dou-trina do selo. Deus o Espírito nos sela eternamente no íntimo quando cre-mos. Nós, pela palavra de nosso testemunho leal, selamos, autenticamos a veracidade de Deus no evangelho .

34. «Aquêle a quem Deus enviou, continuamente fala as palavras de Deus.» O que me surpreendeu mais, no longo e constante estudo deste Evangelho, é a insistente declaração de Jesus de que ele nada falava de si, nenhuma mensagem original inventava, nada tirava do seu cérebro huma-no para sua missão messiânica. E' da natureza do embaixador não que-rer ser original, publicar pensamentos seus, fazer de sua missão uma proeza literária, exaltar-se a si mesmo, em lugar de magnificar seu país e cumprir a missão que êste lhe deu. Todo o empenho do embaixa-dor é fazer entendido o que a pátria quer, cumprir a missão por ela dada, dizer os propósitos que ela tem, na linguagem, e de acôrdo com os docu-mentos, que emanam da mesma autoridade originadora da embaixada.

C, E. J, — 3

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Nisto Jesus é o exemplo e modêlo do ministro do evangelho, que também é embaixador de Deus, «anjo» (mensageiro) conforme o título dado a João Batista, o primeiro ministro do Novo Testamento, e ao mi-nistério das sete igrejas da Ásia. Paulo considera a mensagem do minis-tro «um depósito», a ser guardado e entregue com absoluta fidelidade. O ministro é dispenseiro e a suprema exigência feita ao dispenseiro é que seja fiel na mordomia do que lhe foi entregue. A mais preciosa mor-domia na vida humana é o evangelho. Mudar no mínimo que seja êsse sagrado depósito é motivo de um dos dois anátemas do Novo Testa-mento. O outro é congênere, pois se refere a todo aquele que não ama ao Senhor Jesus Cristo. E Cristo diz que se nós o amarmos, guardare-mos sua Palavra. Mudar a Palavra é sinal de desdém e de rebeldia con-tra Jesus Cristo. Os dois «anátemas›, são gêmeos e habitam a mesma alma, inevitàvelmente. Todo o orgulho mental, tôda a vanglória intele-ctual, todos os pruridos de originalidade e ganhar aplausos pelo estilo literário ou oratório, é crime de lesa-majestade contra Cristo. Quantas vêzes Satanás estraga por essa vaidosa tentação ministérios capazes de coisas melhores.

O embaixador pode ter novas instruções que venham anular e substituir os primeiros documentos. E' embaixador plenipotenciário. Assim eram os profetas, os apóstolos, e principalmente, o Salvador Jesus. Sua vinda era, em cada caso, uma nova etapa da revelação progressiva da redenção e da vontade de Deus. Consumada a redenção, pelos eventos da vida e morte e ressurreição do Redentor, resta adequadamente documen-tar a interpretação da revelação suprema e final, que será a norma para os séculos da proclamação da obra consumada de Cristo. Cristo, pois, anu-lou o cerimonialismo de Moisés, em parte por sua própria palavra (Mar. 7:19 e o Sermão do Monte), em parte pela promessa de revelações subse-qüentes mais amplas ainda (João 16:13), e, cataclismicamente, pelos trágicos portentos do Calvário, quando o véu do santíssimo lugar do tem-plo foi divinamente rasgado, profanando o lugar e abrindo a todos a Pre-sença invisível de Deus que fora o privilégio e função única do sumo-sa-cerdote, uma vez por ano. Assim Deus confirmou que os documentos da embaixada de Moisés, se bem que de alto valor na continuidade da reve-lação e para fins históricos e devocionais, já não regulavam o reino de Deus. Este deixou de se utilizar de uma teocracia sacerdotal, como seu ideal na terra, para estabelecer democracias espirituais dos regenerados, como as organizações de agora que obedecem a Cristo e à sua vontade para extensão do seu reino. O Messias-Embaixador reconhece os docu-mentos das históricas embaixadas da Lei e dos Profetas, mantém sua con-tinuidade com tais revelações, dá perante os homens suas credenciais di-vinas, revoga as caducas leis teocráticas, e promete em seu lugar o Espí-rito para continuar sua obra e dar os documentos da nova legislação para

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 35

seu povo regenerado. Esta «lei de Cristo» é o Novo Testamento, a crista-lização da verdade e vontade de Deus para os discípulos de Jesus.

E' natural que na sua humilhação Jesus não escreveu. Quando vol-tou ao trono de sua autoridade é que enviou o seu Vigário, o Espírito, para ungir e inspirar os autores das novas revelações escritas. Quando Jesus exclama: «Está consumado», começará a certeza e a obra oral do teste-munho, e mais tarde a obra literária dos documentos que historiam a re-denção, interpretam-na e nos orientam com os princípios da Nova Ali-ança, aplicados aos problemas das igrejas do Novo Testamento. Nada de escrito, pois, convém um embaixador cujas credenciais nunca foram aceitas pela teocracia. Ele verificou a sua aceitação por uma nova entida-de quando exclamou: «Sôbre esta pedra edificarei minha igreja.» Depois de preparar, durante sua humilhação, os que deveriam ser seus embaixa-dores quando êle tivesse «tôda a autoridade no céu e na terra», viria o tempo em que êsses, «profetas e apóstolos» (Efés. 2:20) da nova era, produziriam sob a direção do Espírito, as Escrituras cristãs. Ele do seu trono enviou seu Espírito, e por seu Espírito, mediante os órgãos apos-tólicos de revelação, temos os documentos da revelação final para os cren-tes e as igrejas, até à sua segunda vinda.

Vêde 7:16, 17, 18; 8:28, 29, 38, 40, 47; 12:49, 50; 14:10; 16:12, 13, 14, para declarações paralelas de Jesus.

«Não escassamente ... o Espírito.» «O Deus-homem, na sua forma de servo, sabia, ensinava e agia, não como os profetas, pelo poder comuni-cado a êle do lado de fora, mas em virtude de sua própria energia divina inerente» (Mat. 17:2; Mar. 5:41; Luc. 5:20, 21; — 6:19, João 2:11, 24, 25; 3:13 e 20:19) («Systematic Theology», p. 696, por Augustus H. Strong). Strong concorda que Cristo agia sob constante direção do Es-pírito. A diferença que êle nota, na linguagem citada, é que um profeta recebia de fonte exterior o ensino que o Espírito lhe ministrava no ínti-mo, enquanto Jesus teve da parte do Espírito a orientação que libertava poderes latentes em sua natureza divina e o guiava até o ponto do empre-go desses poderes conforme a vontade do Pai naquele momento.

«Não é escassamente que êle costuma dar o Espírito.» E' significativo o que diz Matthew Henry: «O Espírito não estava em Cristo como num vaso, mas como numa fonte ou num oceano sem fundo.» Mas vêde a in-variável relação entre o Espírito e a Palavra. A plenitude do Espírito em Jesus é afirmada porque «êle continuamente fala as palavras de Deus.» Assim suas «palavras são espírito e são vida». Os característicos do seu invisível Autor as acompanham para o coração crente.

«Não é escassamente que êle costuma dar o Espírito.» E' obscura a tradução, e de propósito. E' obscuro o original. Quem é êsse que «costu-ma dar o Espírito»? Surge a Igreja Ortodoxa Grega contra a Igreja Ro-mana e discutem acerbamente se o Espírito procede do Pai ou do Filho. Nós dizemos que procede de ambos. E' João que fala, se nossa hipótese

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está correta, ao fim do primeiro século. «Ele» pode ser Cristo que «pro-digaliza o Espírito», na linguagem de Rohden (senão que Rohden empre-ga letra minúscula, espírito, por uma esquisitice estranhável). O Pente-costes já estava sessenta anos no passado, o dia em que Jesus, da glória, «derramou o que vedes e ouvis», Atos 2:33. Jesus, de certo, dá o Espí-rito, e não escassamente. E êle dizia que o Pai dava o Espírito a quem pe-dia, tão liberal e espontâneamente como um pai terrestre dá boas dádi-vas a seu filhinho, Luc. 11:13. O Pai dava o Espírito nos dias da carne do Filho e ainda o dá, Atos 2:17, 18, 38, 39. E' possível até que o Espírito seja sujeito do verbo dar. «O Espírito prodigaliza, dá sem medir», como Deus «dá a todos liberalmente», Tiago 1:5.

Temos, às vezes, uma natural predileção ou afinidade por uma cer-ta interpretação. Eu tenho, como que por instinto, a convicção quase ina-balável de que nessas palavras temos uma Escritura de incalculável valor a respeito da encarnação. Jesus gozava da parte do Pai de uma plenitude imensurável do Espírito, para todos os fins de sua humanidade. Podia sacar dêsses recursos infinitos, sendo êle finito na sua kenosis ou humi-lhação, como nós podemos fazer a mesma coisa, pela graça de Deus. O Espírito, sem medida, sem limites, estava sempre ao dispor de Jesus para que êste, na base humana da voluntariedade e com plena responsa-bilidade de homem, se guiasse pelo infinito e infalível Espírito, passo a passo na sua peregrinação. E'-me querida essa interpretação.

Sua dificuldade está em que julgo serem essas palavras escritas pelo evangelista João, no fim do século, quando Jesus já estava no céu e passou a sua kenosis e passaram os dias de sua carne. Com essa interpretação vai melhor a opinião de Vos, Montgomery, Nestlé e outros, de que aqui realmente fala João Batista, até o fim do Cap. III, e explica a plenitude inexaurível do Espírito na encarnação de Jesus. E' possível, porém menos provável, que João, o evangelista, numa volta ao passado, no fim do sé-culo, como que se figurou mentalmente ao lado do Batista lá em Enom, e deu essa interpretação da encarnação, como se êle ainda fosse contempo-râneo dessas entrevistas do Cap. III. O Dr. A. T. Robertson aparentemen-te pensava assim, pois êle atribuiu os vs. 31-36 ao apóstolo João, mas os interpretou como se fossem uma declaração contemporânea do Batista. Por ora, entre as várias interpretações possíveis dessa magna Escritura, fico nesta incerteza. Ah! se os apóstolos tivessem aspas!

35. «O Pai ama o Filho e à sua mão tem entregado tôdas as coi-sas.» A absoluta, eterna, imutável e universal soberania de Jesus Cristo sôbre as consciências de tôdas as suas criaturas é ancorada no amor di-vino no seio da Trindade. Não há amor na desobediência, nem caridade na vontade própria do homem. João ainda acrescenta a essas palavras do seu Mestre: «Por isso sabemos que amamos aos filhos de Deus, quando amarmos a Deus e guardarmos os seus mandamentos. Pois êste é o amor de Deus, que guardemos os seus mandamentos; e os seus mandamen-

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 37

tos não são penosos» (I João 5:2, 3). A maior felicidade possível à criatura vem pela sua conformidade com o mandamento do Criador que lhe rege a existência. Desobedecer é tristeza, desvio, castigo, per-da de comunhão. A desobediência é sempre perturbadora; divide e espalha. O amor filial e o amor fraternal, ambos, caminham na sen-da da obediência. Desobedecer a Deus é falta de caridade para com os homens: hostiliza o bem-estar comum e público. Quando é que os sen-timentalistas aprenderão a verdade que Jesus assim revela e respeitarão sua autoridade, e não a fictícia autoridade das tradições dos homens? Bem disse o Salvador: «Por que transgredis o mandamento de Deus por causa de vossa tradição?... Assim invalidais a Palavra de Deus por cau-sa da vossa tradição» (Mat. 15:3, 6). E desprezam o amor de Deus ao seu Filho e ao seu povo, pela falta de amor obediente. Nunca houve e não haverá jamais uma só desobediência de Deus, ou indiferentismo para com os seus mandamentos, que seja inocente. E' tudo iniqüidade e hostilida-de, em corações que tudo lhe devem, inclusive o amor que crê e obedece.

«O Filho». E' um éco da frase «Filho unigênito», da qual Geerhar-dus Vos declara: «A linguagem Filho unigênito, sem dúvida alguma, enaltece o valor único do Filho para o Pai, de modo que vem medir a grandeza do amor de Deus para o Kosmos... Se essa passagem faz uma alusão ao sacrifício de Isaque por Abraão, como é bem provável, salienta ainda mais a ênfase no dom do Filho único.» G. Vos pensa que, em con-traste com a filiação dos regenerados aqui na terra, as coisas celestiais a que Jesus se referiu são suas relações com o Pai, na filiação única da sua «eterna geração».

«Tildas as coisas». Vêde 5:22, 26, 27; 14:31, 17:2, 4, 11, 24; 12: 49. «O que a graça é nos escritos de Paulo se indica pelo verbo dar, no Quarto Evangelho.» (14)

36. «Tem vida eterna.» Diz o grande comentador Matthew Henry: «Os crentes verdadeiros... têm a vida; não ~ente a terão, no além-túmulo, mas têm-na agora mesmo. Pois (1) eles têm muito boa fiança, dando-lhes segurança disso. O título que a confirma lhes foi selado e en-tregue, e portanto a vida eles possuem... Têm o Filho de Deus e nêle têm a vida, como também têm o Espírito, o penhor dessa vida. (2) Eles têm consoladores antegozos dessa vida, na comunhão atual com Deus e nas evidências do seu amor. A graça já é a glória iniciada.» Vêde os co-mentários sôbre v. 15 (Vol. I, p. 322) e sôbre 5:24.

«Aquêle que desobedece ao Filho não verá vida mas a ira de Deus permanece sôbre êle.» Por que se afirma vida eterna no caso do crente e ira divina no caso do desobediente? E' o real contraste que se vê. São as duas alternativas possíveis. Crer é tomar o remédio contra a moléstia do

(14) De Abbott, no seu livro sôbre o "Diatessaron", n. 2.742.

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EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

pecado, e ser salvo. Desobedecer é a própria moléstia que mata. O doente morre da moléstia, não do fato de não haver tomado o remédio. A de-sobediência é a moléstia moral que mata. A fé é o ato de tomar o infalí-vel remédio, que é Cristo crucificado.

Essa linguagem deve ser entendida da mesma maneira que a de I João 3:3-10. E' a vida de habitual e perene desobediência que provoca a ira e o conseqüente julgamento de Deus e mostra que o réu «não o tem visto nem o conhece», «é do Diabo», «não é de Deus». E' êsse o pensa-mento e a linguagem de João. A marca do filho de Deus é a fé ; a do «fi-lho do Diabo» é a desobediência, a que João, na passagem referida, dá os nomes de «pecado» e «iniqüidade» e «obras do Diabo», também. E' a moléstia. Ora, é a moléstia que mata. E é a ofensa, a iniqüidade, que traz a culpa, a condenação e a pena. E' o remédio que traz a cura. Crer é re-ceber, tomar o remédio. E o remédio é Cristo crucificado.

E' natural que se investigue porque a fé-confiança em Cristo e a de-sobediência são os pólos opostos na vida humana. Por que não é a fé e a incredulidade? Podemos ver várias razões, e talvez haja muitas outras. Em primeiro lugar, a desobediência é a real ofensa contra a lei de Deus. Não crer em Cristo é apenas uma parte da desobediência humana. E' como a ofensa de um réu, num hospital militar, que obstinadamente se recusa a tomar o remédio prescrito. Mas descrer não é a única desobediência; e Vidas as categorias da desobediência, mesmo a queda da raça em sua cor-rução coletiva, original são motivos da condenação e da ira de Deus.

Há outras Escrituras, e neste mesmo capitulo, que culpam a incredu-lidade com a condenação do homem. «Aquêle que não crê já foi senten-ciado, e fica sentenciado, porque não se fez crente e nessa incredulidade fica» (estou dando aos tempos perfeitos sua força), v. 18. Mas notai como a fé e a moral são casadas, e a incredulidade e a imoralidade: «E o critério da sentença é êste: que a Luz veio e fica no mundo, mas os ho-mens amaram mais as trevas do que a Luz. Pois suas obras eram ma-lignas.» A incredulidade nasce da corrução maligna da vida humana, individual e racial, e sua afinidade inata e habitual é com o pecado, a bai-xeza, a iniqüidade, a desobediência, as obras do Diabo, as trevas.

Igualmente a fé-confiança em Jesus Cristo tem seus frutos e suas afi-nidades com «a Luz», «a vida eterna», «a salvação», «o bem», «suas obras feitas em Deus», (vs. 17-21) e a pureza, a filiação divina, a semelhança a Cristo, o afastamento do pecado, a prática da justiça, o amor fraternal (I João 3:2-10) . Se a fé traz outro nascimento e a vida eterna, ela também produz as qualidades futuras. Somos salvos, repito, sem boas obras por uma fé que produz boas obras na vida.

Os tempos presentes gregos de ação contínua, perseverante, costu-meira, nos proibem de julgar um homem por um ato, um incidente, uma fase ou um período anormal de sua vida. Ele tem de ser discernido pelo curso geral da vida. E o curso geral da vida é como o curso geral de um

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO

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rio. Nós olhamos para o rio Jordão e dizemos: «Corre do norte para o sul.» E é fato. Mas se escolhêssemos as curvas nas margens do rio, tería-mos de afirmar que o rio corre para o norte, ou sul, ou leste ou oeste ou em tôdas as demais direções possíveis. Mas os que fazem nossos mapas sabem melhor do que o observador na curva, cuja visão dos fatos é local e efêmera, limitadíssima pela selva ao redor. O Jordão de fato corre para o sul, a despeito das suas voltas.

Assim ninguém julgue Abraão pela sua mentira, ou suas várias men-tiras, pois Abraão não era um mentiroso no curso longo da vida. Ninguém julgue Pedro um incrédulo porque negou que conhecia a Jesus. Ele o co-nhecia, e ali mesmo naquele instante; e saiu da sua presença para cho-rar amargamente o pecado tão anormal e abominável da sua vida. Nin-guém julgue Davi por um duplo crime que cometeu. O curso de sua vida, a despeito dessas fases negras e detestáveis, é o de um homem «se-gundo o coração de Deus». O cínico olha para um ato e a êle se cinge e ai fica e condena sem misericórdia o crente, ou afirma que não há con-denação de nada na vida de ninguém. Felizmente, o cínico não é o juiz, e o Juiz não é cínico. Ele olha a vida em sua direção geral e vê que «todo o que nêle tem esta esperança purifica-se a si mesmo», e que «todo o que nêle permanece não vive no pecado».

36. «O rebelde contra o Filho.» O Padre Rohden e muitos outros tra-duzem: «quem, pelo contrário, descrê». E' mais fácil defender a posição evangélica com essa tradução. Mas não queremos uma facilidade que não esteja firmada lia Bíblia. Meu Dicionário Grego define êstes verbos e as palavras cognatas assim: «Sou rebelde, desobedeço, sou desleal.» O adjetivo é «desobediente, contumaz». O substantivo é «desobediência, rebelião, contumácia». Não achei uma só Escritura onde me parecesse provável outro sentido. Assim, em geral, os melhores lexicógrafos e a voz dos papiros. A formidável «ira de Deus», aqui contemplada, não cai sô-bre cada ofensa isolada do crente, que como Pai Deus pode corrigir pelo seu castigo disciplinador. E' o rebelde, o decidido contra Jesus, o incrédulo que de propósito rejeita o Salvador e não quer «ter êsse Homem para reinar» sôbre êle. Há milhões de homens que nunca mais ouvirão um ser-mão porque já fizeram essa decisão contra Jesus e querem viver sem Je-sus e sem fazer face outra vez à nova de Jesus como Salvador a quem cabe o domínio da alma e da vida. «A ira de Deus permanece» sôbre os tais. Podem adotar outra religião mais cômoda, mas «permanece a ira». Po-dem moralizar-se e fazer-se religiosos na velhice e multiplicar ritos e sa-cramentos e religiosidade. Mas «permanece a ira». Só se mudará a ira, se êles mudarem sua atitude em relação a Jesus Cristo.

Que essa atitude é claramente a de uma pessoa fora de Cristo, o in-teressado pode verificar pelo exame das passagens bíblicas onde se em-pregam as palavras que defini acima . O verbo: João 3:36; Atos 14:2; 17:5; 19:9; Rom. 2:8; 10:21; 11:30, 31; 15:31; Heb. 3:18; 11:31; I Ped.

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2:7, 8; 3:1, 20; 4:17. Notai essa última frase: «Não obedecem ao evange-lho de Deus.» O evangelho manda que nós nos arrependamos e creiamos. A obediência consiste, pois, no arrependimento e na fé-confiança em Je-sus — não em sacramentos, religiosidade ou justiça própria farisaica. Não obedecer ao evangelho é ser rebelde contra Jesus. O crente e o rebelde são as duas fileiras opostas da vida. O substantivo: Rom: 11:30, 32; Efés. 2:2; 5:6; Col. 3:6; Heb. 4:6, 11. O adjetivo: Luc. 1:17; Atos 26:19; Rom. 1:30; II Tim. 3:2; Tito 1:16; 3:3. Evidentemente êste versículo trata da atitude decidida dos perdidos e não das faltas isoladas de crentes.

«Não verá a vida.» E' o juízo divino. Pobre moço carnal! Era para «ver a vida» que êle rejeitou a Jesus, entregou-se corpo e alma ao mundo, à carne e ao Diabo. Em breve tempo passam os anos fugazes e eis o cor-po é um destroço, a alma é carcomida de memorias vis, a consciência é ultrajada, espezinhada e cauterizada. O próprio rosto duro é uma revela-ção do íntimo cínico e rebelde contra Deus, implacável contra os homens que êle explora, se lhe resistem. Ele que sacrificou Deus, Cristo, a eterni-dade, a própria alma, a salvação, a moral e o amor ao semelhante, pelo prato de lentilhas da carne, qual Esaú desprezando sua primogenitura, ago-ra tão depressa encara a morte física, a agonia horrorosa e a morte eter-na, a «ira de Deus». «O que semeia à sua carne, da sua carne ceifará a corrução.» Não viveu. Bestializou-se apenas. «Não verá a vida» nunca.

«A Ira de Deus». Thayer define essa palavra assim: «Aquilo em Deus que fica em oposição à desobediência, obduração (especialmente em re-sistir ao evangelho) o pecado do homem e se manifesta em punir» (Ver meu «Dicionário Grego», p. 118). Sôbre os objetivos da ira divina, vêde Mat. 3:7; Rom. 1:18; 2:58; Efés. 5:6; Col. 3:6; I Tess. 1:10; 2:16; Apoc. 6:16-17; 16:19; 19:15. Paulo considera todos os homens POR NATURE-ZA «filhos da ira», Efés. 2:3. Isso deve livrar qualquer enganado da idéia de que crianças nascem salvas. Nascem sob o peso do pecado racial; e sua herança é da ira e pena do pecado com que são solidárias na base da uni-dade da raça humana. Só há redenção pelo sangue de Cristo. As crianci-nhas que morrem sem alcançar a responsabilidade terão no céu sua parte na redenção racial e entram no céu purificadas pelo sangue de Jesus. As crianças que alcancem a idade do livre arbítrio farão sua responsável es-colha. Ninguém nasce salvo. E' nascer de novo que dá a vida eterna, não nascer da carne. A ira de Deus está 'sobre tudo. «A Escritura encerrou todas as coisas debaixo do pecado», Gál. 3:22. «Por uma só ofensa veio o julgamento sôbre todos os homens.» «Pela desobediência de um só ho-mem foram todos constituídos pecadores», Rom. 5:18-19. A queda da raça, determinou a perdição da mesma raça, e a ira de Deus é sua reação con-tra o pecado racial, nossa natureza corruta, e não apenas contra atos exteriores.

«Permanece.» Já está sôbre a raça inteira desde que Deus a expulsou do Éden. Paulo encerra todos debaixo do pecado, classifica todos, judeus

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 41

e gentios, como «filhos da ira», sim «filhos da ira» «por natureza». Nascem nessa corrução e conseqüente condenação racial. Tornando-se pessoal-mente «rebelde», a ira «permanece». Permanece a vida inteira, ou até que o pecador se converta e nasça de novo para «a vida eterna». Vede a nota sôbre 6:56.

Traduzimos «rebelde» porque é atitude definitiva e perene que o tem. po do verbo indica. A declaração visa a rebeldia fixa do incrédulo, não as desobediências isoladas do crente. Estas são tratadas de outra maneira, na economia divina. A Escritura que descreve como Deus pune, com amor disciplinador, as faltas dos crentes, se acha em Heb. 12:5-13. A Bíblia ni-tidamente distingue entre a maneira por que Deus disciplina os crentes pe-los seus pecados e a maneira por que sentencia os incrédulos rebeldes, de-baixo de sua ira. Se o Calvário não fêz uma diferença quanto a êste proble-ma, então nada vale. Crentes que fôssem tratados por Deus exatamente como são tratados os rebeldes incrédulos não são superiores a êsses, não são «filhos de Deus». Deus trata o pecado do filho com castigo nesta vida, com a disciplina do amor paterno. Deus trata os pecados do «filho da ira» como Juiz ; e o deixa ceifar o que semeia aqui e ser entregue à justiça di-vina no último dia. Se alguém não sabe dessa distinção, ainda não apren-deu o a b c do evangelho e da felicidade dos salvos. A salvação realmente estabelece perante Deus uma diferença nos homens, pela eficácia da reden-ção operada por Jesus no Calvário. Faz com que cantemos com o Sal-mista: «Também me tirou duma cova de perdição, dum tremendal de lama ; colocou os meus pés sôbre uma rocha e firmou os meus passos. Pôs um novo cântico na minha boca, hino de louvor ao nosso Deus», Sal. 40:2-3.

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O Testemunho de Samaritanos o Jesus

Capítulo IV, versículos 1 - 26.

1 Logo que o Senhor soube que os fariseus ouviram que Jesus ganhava e 2 batizava mais discípulos que João — I se bem que Jesus mesmo não batizava

3 mas sim seus discípulos — 1 êle deixou a Judéia e partiu 4 outra vez para a Galiléia. 1 E era-lhe mister passar pela Sa-

maria. 1 Portanto êle veio a uma cidade da Semana cha-mada Sicar, perto do campo que Jacó deu a José, seu fi-

5 lho. I E aí estava uma fonte do mesmo Jacó. Jesus, pois,

mesmo completamente exausto pela viagem, estava senta-

6 Eram mais ou menos seis horas da tarde. 1 Uma mu- lher vem chegando da província da Samaria para tirar

7 água. Jesus lhe diz: "Dá-me de beber." 1 Pois seus discí-

pulos tinham seguido até à cidade para comprar víveres.

8

1 "Como é", respondeu-lhe a mulher samaritana, "que tu, sendo judeu, pedes de beber a mim que sou mulher

9 (Porque judeus não têm boas relações com samaritanos.) I Je-

sOmente conhecesses o dom gratuito de Dá-me de beber, tu lhe terias pedido

Então donde possuis a tal água viva? 11 1 Será possível que tu és maior que nosso pai Jacó, o qual nos deu o poço, e

tanto êle, em pessoa, bebeu do mesmo, como seus filhos e 12 Jesus, a Fonte seus rebanhos?" 1 Jesus lhe deu a seguinte resposta: "Todo

da Água da aquêle que bebe desta água a intervalos, terá sêde outra 13 Vida Eterna vez; 1 mas quem beber de vez da água que eu lhe darei,

nunca mais, de modo nenhum, terá sêde, mesmo na eter- 14 nidade; pelo contrário a água que lhe darei se tornará nele uma fonte de água,

jorrando constantemente para vida eterna." I A mulher, encarando-o, disse:

15 "Dá-me de vez esta água, senhor, para que eu não venha a sentir sede nem 16 passe continuamente por aqui a fim de tirar água." 1 Tornou-lhe: "Vai-te, 17 chama teu marido e vem para cá." 1 A mulher disse em resposta: "Não tenho

marido." Jesus lhe declarou: "Bem disseste: Marido não tenho. 1 Pois tives- 18 te cinco maridos, e aquele que agora tens não é teu marido. Nisto tens decla- 19 nado um fato." 1 A mulher lhe tornou: "Estou vendo, senhor, que tu és pro- 20 feta." 1 "Nossos pais adoraram nesta montanha e, todavia,

Jesus Sonda vós dizeis que em Jerusalém é o lugar onde é indispensá- 21 a vel prestar os cultos." 1 Jesus declarou-lhe: "Senhora,

Consciência

acredita-me sempre que está chegando uma hora quando nem nesta montanha nem em Jerusalém rendereis culto ao

22 Pai. 1 Vós rendeis um culto que não entendeis, nós rendemos um culto que 23 entendemos, porque a salvação é proveniente dos judecc. 1 Está chegando, po-

Jesus fugindo da

Popularidade

tal qual se achava, do 'à beira da fonte.

Jesus à Beira da Fonte, Exausto

samaritana?"

sus lhe deu esta resposta: "Se tão Deus, e quem é que está te dizendo: água viva e êle a teria dado!" 1 Ela tirá-la, senhor, e o poço é fundo.

10 tornou-lhe: "Nem ao menos tens com que

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 43

rem, uma hora, e de fato já está aqui, quando os que oferecem culto genuíno o darão ao Pai em espírito e verdade. E assim digo por-

Culto como Deus que o Pai está procurando tais como os adoradores dele. 24 o Quer, 1 Espírito é a deidade, e é indispensável que os que lhe

soem prestar culto o prestem sempre em espírito e ver- 25 Jade." 1 A mulher tornou-lhe : "Sei que o Messias está para vir, a quem se

Jesus Testifica costuma chamar 'Cristo': quando esse vier, êle há de nos

26 de si Formal- contar tudo!" 1 Disse-lhe Jesus: "Sou eu, que estou falando

mente contigo."

1. «O Senhor». «Na parte dêste Evangelho que é narração, geral-mente encontramos Jesus, mas vemos o Senhor em cinco passos (4:1; 6:23; 11:2; 20:20; 21:12). Não há motivo para João não aplicar a Jesus o título O Senhor nas partes do Evangelho dedicadas à narração, da mes-ma maneira como Lucas... Quando João escreveu seu Evangelho êle cer-tamente considerava Jesus 'o Senhor', como declarara anteriormente Lu-cas quando escreveu tanto seu Evangelho como Os Atos.» (1) Alguns textos inferiores (os ocidentais) têm «Jesus» em lugar de «O Senhor». Mas o pêso da evidência apoia o texto que seguimos ; e se João, no fim do sécu-lo, não adorava a Jesus Cristo como «o Senhor», então o cristianismo não passa de uma fábula.

«Logo que o Senhor soube». Há pessoas que não ligam importância ao que os outros pensam, ou pelo menos assim afirmam. São diferentes de Jesus. Ele guiava seus movimentos evangelizadores, em parte, pelas correntes do pensamento popular em várias regiões, pois equivaliam a portas abertas numa zona e portas fechadas em outra zona. Ou se não indicassem portas já fechadas, eram sinais de que as portas logo seriam fechadas, e é melhor estar do lado de fora de uma porta fechada do que do lado de dentro, se nossa missão é evangelizar em larga escala — «até aos confins da terra». Jesus tinha maior desdém e hostilidade para com as atitudes dos fariseus do que para as de qualquer outro grupo. Mas sua prudência media as conseqüências da idéia popular e se orientava à luz dos resultados sôbre seu apêlo ao povo e seu ministério numa zona afetada. Não é que se curvava diante da opinião ou vontade popular. Foi embora. Deixou a opinião errada se evaporar. Quando se generali-zou uma agitação pior a seu respeito, encarou o populacho e subiu à cruz, pela fôrça desses mesmos fariseus sôbre a instável vontade do vulgo.

«Os fariseus». A sombra da grave controvérsia que se intensificou até à crucificação toma vulto no horizonte de Jesus. O Dr. A. T. Ro-bertson diz : «A controvérsia teológica está em desacôrdo com a índole do século XX. Não podemos entender, porém, a vida e os ensinos de Jesus, se nos mantemos adversos ao assunto. O breve ministério terres-

( 1 ) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 58, por A. T. Robertson.

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tre de nosso Senhor... se ouriça com a luta dos fariseus a fim de des-truir o poder da popularidade de Jesus junto ao povo.» O emininte intér-prete achou que é prova da historicidade de Jesus e da veracidade dos Evangelhos o fato de que êstes refletem a luta entre os partidos e as seitas do judaísmo, enumerando os fariseus, os saduceus, os herodianos e a Diáspora, e assim preservando os matizes da vida de Jerusalém antes da sua destruição no ano 70 d. C. Porque depois da destruição da «ci-dade santa», os fariseus tornaram-se supremos e sem rivais no judaísmo.

Ele classifica assim os grandes partidos religio-políticos da teocracia que vivia subordinada ao império romano. Os saduceus eram uma aris-tocracia de sangue, fundamentada no sacerdócio. Os fariseus eram uma aristocracia de cultura, aliada com os escribas — uma profissão ou car-reira, não uma seita, os copistas e mestres da Lei. Havia uma irmandade dos fariseus que incluía nos seus 6.000 membros 20 mulheres e em que a entrada dependia de um juramento, na iniciação. Depois da destruição de Jerusalém os fariseus passaram a ser a nação. Em 70 o Talmude tor-nou-se muito mais a Bíblia dos judeus do que o Velho Testamento. A Lei oral era tida por muito superior à Lei escrita, pois «explicava esta». Prevalecia um verdadeiro espírito de casta entre os fariseus. Um dêles que era casado com uma senhora da mesma classe não podia co-mer à mesa com um fariseu casado com uma «mulher do povo». Para o fariseu havia quatro orgulhos — de raça, de posição, de sexo e de pureza cerimonial. Eram êles a sua fórmula de justiça.

O Dr. Robertson cita Westcott ainda em apoio da historicidade do Cristo do Quarto Evangelho, em que João não menciona nem saduceus nem herodianos, que já não existiam no judaísmo contemporâneo, ao fim do primeiro século.

Ele enumera onze motivos da hostilidade dos fariseus para com Je-sus: (1) as afirmações de Jesus acêrca de sua autoridade messiânica; (2) a blasfêmia; (3) sua camaradagem insuportável com publicanos e pecadores; (4) sua negligência irreligiosa de jejuar; (5) a teoria de que êle era o Diabo encarnado, ou seu aliado; (6) violador sistemático do sábado; (7) sinais inadequados; (8) desafio insolente das tradições; (9) impostor ignorante; (10) «complot» para destruir o templo; (11) alta traição contra César. Eram as acusações contra Jesus nessa terrível controvérsia que o seguia sem um dia de tréguas, em tôdas as províncias e tôdas as cidades e vilas da Palestina, até matá-lo e exultar na Colina de Gólgota diante da agonia da Vítima.

O Dr. Robertson ainda cita o terrível ódio dos judeus e contesta seus escritores hodiernos, como Montefiore, que, em parte, negam essa Hostilidade contra Jesus e, em parte, lhe atribuem uma atitude igual-mente hostil e partidária. Ele cita o Talmude, nas antigas edições, que hoje se publicam expurgadas, e que diziam ser Jesus bastardo, que ti-nha uma «amiga» chamada Pandira, cujo marido se chamava Stoda,

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 45

que sua mãe, Maria, era meretriz entre os carpinteiros. Davam uma porção de tradições incoerentes a respeito. Três inimigos principais dos judeus se enumeram: Balaão, Jesus e Tito. Nosso Senhor é chamado: «o enganador, o apóstata, o pecador de Israel», seu nascimento é calunia-do e sua morte é classificada como a mera execução de um «pernicioso criminoso». Cita Pick também, em «Jesus in the Talmud», p. 44, e Jus-tino, no «Diálogo com Trifo», e Orígenes e outros como testemunhas dês-tes fatos. Diz-nos que a última edição do Talmude, não expurgado, é de 1644. «Há no judaísmo uma cadeia de ódio jamais quebrada através dos séculos.» (2)

Nem eu nem o Dr. Robertson temos a mínima simpatia para com a perseguição medieval e moderna contra Israel ou qualquer israelita. Publicamente defendo sempre a liberdade religiosa universal e me opo-nho a qualquer hostilidade contra os judeus. Mas seria anti-histórico supor que Israel foi sempre perseguido. Foi muitas vêzes, pelo contrário, o perseguidor, e o é ainda hoje. Conheço pessoalmente judeus converti-dos. A mente humana dificilmente pode imaginar o ódio que suas famí-lias têm a eles. Em geral, a conversão de um judeu envolve pior perse-guição do que a de um católico. Até o triunfo do cristianismo nominal e político no império romano, o judaísmo e o paganismo foram freqüente-mente aliados contra Jesus Cristo e seu povo ; o farisaísmo que vemos neste Evangelho se projetou, pelos séculos seguintes, com indizível ciúme e ódio. Mas nada justifica que o cristianismo medieval tenha invertido os papéis. Tôda perseguição vem do Diabo, não de Jesus Cristo. '

«Os fariseus». «No tempo de Jesus havia sete escolas de fariseus. Alguns eram chamados Fariseus Encolhedores dos Ombros, porque an-davam nas ruas, encolhendo os ombros, fingindo ser inspirados. Outros eram Fariseus de Rostos para o Chão, pois andavam de cabeça para baixo de modo a não ver um metro adiante, a fim de não verem as mulheres. Havia Fariseus de Pé ante Pé, pois assim caminhavam porque era a terra santa de Deus em que pisavam. Ainda havia Fariseus da Voz Trê-mula, que faziam suas vozes tremer na oração, como inspirados pelo Es-pírito Santo. Jesus rejeitou absolutamente tais formas ; disse: Lavai o rosto. Mas havia um fariseu, por nome Rabi José, que por devoção a Deus não lavara o rosto por dezoito anos.» (3)

«Os fariseus». «Eram atores num drama. Tôda a sua santidade era máscara, tôda a sua vida um gesto dramático elaborado diante de especta-dores admirados... O sagrado exercício de oração deu ensejo para que êsses atores no palco religioso se mostrassem. Ficar de pé era a atitude prescrita e deviam virar o rosto na direção do santuário. Dezoito orações

(2) "The Pharisees and Jesus", preleções de A. T. Robertson, no Seminário de Prin-ceton, págs. 1, 4, 19, 20, 22, 30, 59, 66-109, etc.

(3) "The Religion of Jesus", p. 36, por Tojohiko Kágawa.

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por dia eram a regra e, se a hora de oração viesse quando o fariseu esti, viesse montado, êle devia apear e tomar a posição da praxe ; se chegasse, estando êle na rua, então devia parar aí mesmo e orar... Também diziam: Quem multiplicar orações é ouvido... Jejuavam Vidas as segundas e quin-tas, e sendo estes os dias da reunião da sinagoga, davam-lhes ensejo para mostrar sua dor perante a congregação. Seu jejum não era simples abs-tenção de comer e beber. Não se lavavam nem se ungiam, assistiam ao culto descalços e aspergiam cinzas sare as cabeças. 'Tolos' exclamou Thomaz Fuller, 'os quais, para persuadir aos homens que têm anjos hos-pedados no coração mostram como reclamo disso diabos no rosto'.» «Três vêzes por dia oravam pelo prazo de uma hora; e uma hora antes e uma hora depois dedicavam à meditação, assim usando nove horas por dia na oração. A oração longa, diziam, prolonga a vida.» (4)

«Jesus ganhava e batizava... discípulos.» Não é a mesma coisa. Ga-nhar um discípulo é uma coisa. Batizá-lo é outra. Jesus cuidava de am-bas, sem confundi-las ou ser autor de confusão alguma a êsse respeito. Ele ganhou Nicodemos mas não o batizou, pois o eminente fariseu foi dis-cípulo secreto por muito tempo. Ganhou igualmente a José de Arimatéia e muitos outros crentes que o amavam às escondidas, mas temiam a ex-pulsão da sinagoga, João 10:42. Ganhou Zaqueu e exclamou: «Hoje veio a salvação para esta casa.» Sim. Veio sem batismo. Os que desejam investigar o assunto podem ler meu opúsculo — «Casos no Novo Testa-mento de Salvação sem Batismo». Os tais casos são numerosos.

Aliás, nunca houve na história do mundo um só caso de salvação que não fosse salvação sem batismo. O batismo é impossível sem a prévia salvação, pois o batismo é ato de obediência de uma pessoa já salva e que já deu frutos dignos que comprovam a validade da prévia salvação. A imersão sem a prévia experiência não é batismo válido, Atos 19:1-7. E' tão impossível batizar um incrédulo como é casar uma criança ainda não nascida ou eleger presidente de uma república neste século um ci-dadão que vai nascer em outro século do porvir. Há uma ordem determi-nada e uma relação lógica entre certos eventos. Não se pode tirar retra-to de quem não existe. E é igualmente impossível batizar uma pessoa que não tem a fé e a vida eterna que a fé outorga. Ganhar ou fazer dis-cípulos vem antes de batizar discípulos. E isso é verdade tanto no caso de João Batista como no de Jesus Cristo. E' a marca suprema do batismo genuíno vir em segundo lugar, cabendo à salvação o primeiro lugar na vida cristã. O batismo cristão é o batismo de um que já é cristão, dis-cípulo, voluntária e inteligentemente apegado ao Senhor Jesus Cristo. Esta é uma das mais importantes declarações da Bíblia inteira, para sal-var o cristianismo puro da corrução pelo paganismo sacramentalista.

(4) "In the Days of His nesh", ps. 103, 104, 414, de David Smith.

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Notai como a palavra discípulo se aplica ao povo de João e Jesus, indiscriminadamente. E' um dos nomes apostólicos das ovelhas da grei do Bom Pastor. Aqui, numa só linha, a palavra tem três sentidos diferen-tes, no terreno comum do discipulado. 1. Discípulos de João Batista, «o povo preparado para o Senhor». 2. Discípulos de Jesus, os que já se-guiam ao Senhor. 3. Os apóstolos, «discípulos» piiblicamente separados para o ministério apostólico, sempre os discípulos por excelência. E' evi-dente que êste Evangelho conhece «os doze discípulos» (Luc. 9:1) e os chama «os doze» (João 6:67 ; 20:24, etc.). Estes são «os seus discípulos» que batizavam com autorização de Jesus. Aliás, João 3:22 nos mostra que neste período combinavam as duas tarefas do Mestre, evangelizar os perdidos e, depois de sua salvação, batizá-los, e educar os apóstolos para seu ministério. Eles viviam com Jesus, e o Mestre «demorava na companhia dêles». Estar com Jesus, aprendendo o «que» e o «como» da vida e do ministério de Cristo, é a melhor educação ministerial possí-vel, em qualquer época. Jesus preparava seu ministério dos Doze e dos Setenta enquanto ia deixando no seu rasto núcleos de crentes batizados que mais tarde seriam «as igrejas de Deus na Judéia». Jesus, assim logo no começo de seu ministério, divide responsabilidade, e avança para uni cristianismo obedientemente organizado.

«Fazia e batizava discípulos.» «E' digno de nota que fazer discípu-los se distingue de batizar discípulos — uma distinção que seria desne-cessária e desnatural se alguém se fizesse discípulo por meio do batismo. Essa linguagem, pois, não condiz com a doutrina da regeneração batis-mal.» (5)

«Ganhava e batizava discípulos.» E' a ordem cronológica e lógica, a única ordem bíblica — discipulado antes do batismo, um ideal que so-mente os batistas preservam com lealdade, excetuados uns pequenos gru-pos de seus imitadores que em outros pontos mantêm idéias errôneas. E' tão essencial magnificar a salvação acima do batismo como era salien-tar Cristo acima do Batista e dos apóstolos. E' tão desnatural colocar o batismo antes da salvação como é colocar a ressurreição antes da morte. O batismo proclama que, antes da cerimônia, a morte para a velha vida e a ressurreição para a novidade de vida já se haviam realizado na expe-riência da graça. O preparo para o discipulado é espiritual, é a regência do Espírito na vida para nos ensinar a verdade e o dever. Começa no novo nascimento. Depois de nascer é que se começa a andar, e o batis-mo é um passo de obediência. O cristianismo é aniquilado quando se in-verte a ordem supondo errôneamente haver possibilidade de pôr o ba-tismo antes da salvação e do discipulado .

«Mais... que João.» «Lembrai o tremendo êxito do ministério de João (Mar. 1:5; Mat. 3:5; Luc. 3:7) para poder apreciar o significado

(5) "The American Commentary", Vol. III, p. 110, por A. Hovey.

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dessa declaração de que Jesus superava João em favor popular. Já os fa-riseus tinham-se irado contra João que os chamara 'raça de víboras'. E' provável que êles extraíssem de João algo sôbre o casamento de Herodes Antipas a fim de assim enredá-lo diretamente com o tetrarca, de modo a conseguir que fosse lançado na prisão (Luc. 3:19) ... Parece que João acabou sendo lançado na prisão, embora gozasse liberdade até há pouco (João 3:24), na véspera da partida de Jesus para a Galiléia. Os fariseus, vitoriosos contra João, agora voltam-se contra Jesus com inveja e rai-va.» (6)

Jesus ficou na Judéia seis mêses, calcula Matthew Henry, «a fim de edificar sôbre o fundamento que João havia deixado ali». Acho mais provável que tenha ficado uns nove meses, desde abril até dezembro.

«Fazia... discípulos.» «Fit, non nascitur, christianus», diz Tertu-liano. Com isso o grande apologista africano quer dizer que Cristo é quem FAZ o cristão e, portanto, ninguém nasce cristão. Mas a linguagem afir-ma o novo nascimento. Ninguém pense que o nega.

«Mais discípulos do que João». Peloubet pensa que o Batista ainda estava em plena atividade quando Jesus passou tão perto. Outros acham que êle estava sendo levado preso no tempo em que Jesus atravessou a Samaria. Acho mais provável que Herodes o tivesse prendido, tendo a no-tícia chegado a Jesus antes de êle resolver terminar seu ministério de um ano na Judéia.

2. «Jesus não batizava.» «Por deixar o batismo de água aos apósto-los, êle tornou o rito independente de sua presença pessoal e assim proveu sua continuação na sua Igreja depois de sua partida.» (7)

«Batizava... não batizava.» «Ele, e não ele; pela autoridade e êles pela ministração; êles administraram o ato do batismo, mas o po-der de autorizar o batismo permanecia em Cristo... Judas deu batismo, e não se tornaram a batizar os que Judas batizara.» (8)

«Jesus não batizava.» O Dr. Henry C. Sheldd observa, no «The Ex-positor» (data não anotada), que é estranhável dizer o v. 2 que Jesus não batizava, ao lado da afirmação em 1:33 de que batizava no Espírito San-to. Acrescenta êle: «A idéia de batizar no Espírito Santo é tão extraordi-nária como o título 'Cordeiro de Deus', embora sirva para convencer ao Batista, cujo batismo é apenas em água.»

Em resposta, eu diria que não há nenhuma contradição entre as duas sucessivas declarações: «batiza no Espírito Santo» e «não batiza», pois não tratam do mesmo assunto. Claramente se relacionam com dois batis-mos inteiramente diferentes. Um se administrava durante o ministério de João, de Jesus, dos apóstolos e de nós todos, e o elemento em que se

(6) "Word Pictures in the New Testament" Vol. V, p. 58, por A. T. Robertson. (7) "The Expositor's Greek Testament", Vol. I, p. 723, citando Godet. (8) Comentário de Agostinho sôbre este Evangelho. Versão inglesa de John Gibbs,

1, 70.

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efetua o batismo é a água. O outro era um batismo que não existia ainda, que começou no dia de Pentecostes, que era batismo apenas em sentido metafórico, e que não afeta em sentido algum o outro batismo anterior e permanente, pois a linguagem figurada não anula ou afeta o sentido literal do têrmo usado figuradamente. Há um só batismo, embora haja, figuradamente, batismos no Espírito, batismos nos sofrimentos, etc.

Se Jesus «não batizava» em água, mas «batizava no Espirito», então é claro que o Espírito não vem pelo batismo infantil dos católicos roma-nos, anglicanos, ortodoxos e quejandos. A identificação dos dois batis-mos, ou sua confusão, é indesculpável, é êrro mortal; e Jesus, João Ba-tista e o Quarto Evangelho repudiam abertamente semelhante idéia. Jesus nunca batizou, nem batiza, nem batizará no Espírito, por meio do rito de afusão de água sobre a cabeça de um bebê inconsciente. E' in-sensatez tal interpretação. Pois tal bebê não dá nenhuma evidência, no momento ou depois, de coisa alguma que o Espírito fizesse em seu abono. A graça não reside em água. O Espirito regenerador não vem no batis-mo. A idéia foi tornada por empréstimo ao paganismo. «Batiza» e «Não batiza» se referem a dois batismos diferentes, e não à graça e ao Espíri-to, mecânicamente, ex opere operato, obtidos no batismo infantil. João repudia a confusão sacramentalista.

Ainda devemos notar que a promessa do outro batismo, realizado no dia de Pentecostes e em ocasiões de milagres semelhantes, não im-pede de modo nenhum que houvesse requisitos espirituais para o batismo que João praticava, pela autoridade e comissão de Deus, e que os Doze praticavam, pela autoridade e superintendência de Jesus. João estava cheio do Espírito e Jesus tinha a mesma unção, sem medida. Logo o ba-tismo administrado por ambos obedecia a essa orientação do Espírito que os ungia e dirigia. Nos batizandos também estava o Espírito, pois foram exigidos dêles, como frutos demonstrativos de realidade na pro-fissão, tanto o arrependimento como a fé. Era a experiência da salvação, por obra e graça do Espírito Santo. Vinha antes do batismo, sendo con-dição indispensável para o batismo. Pedro afirmou categõricamente em Jerusalém que os gentios convertidos receberam o Espírito Santo, no momento de crer, antes do batismo e independentemente do batismo, e declara que este mesmo dom do Espírito fora dado aos apóstolos quando creram, igualmente. «Deus lhes deu o mesmo dom que dera a nós quando cremos», Atos 11:17. Ainda êle afirma, mais tarde, que entre êstes que receberam o Espírito quando creram e os apóstolos, Deus «não fêz dis-tinção nenhuma, purificando os seus corações pela fé», Atos 15:9.

Vejamos a diferença entre o evangelho e o sacramentalismo dos ro-manistas, dos ortodoxos e de muitos protestantes. Tal sacramentalismo não admite nem validez, nem virtude, nem valor algum no batismo de João, classifica-o como cerimônia efêmera, mas ao «batismo cristão» atribui o poder e graça do Espirito Santo pára regenerar bebês incons-

C. E. J. — 4

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cientes e deixar a marca indelével do mesmo Espírito, mecânicamente, em suas almas, transformando-as assim de pagãs em cristãs, inconscien-te e irresponsàvelmente. (E' verdade que a principal passagem que tor-cem para obter essa doutrina é precisamente João 3:5, que segundo con-fessam, tem de ser interpretada em referência ao batismo de João, se é que Jesus fala inteligentemente a Nicodemos de algum batismo. Mas não lhes atrapalha essa incoerência de negar valor ao batismo de João e, ao mesmo tempo, tirar daí todo o seu ensino da regeneração batismal.) Este Evangelho, porém, diz : Jesus não batiza em água. Batiza no Es-pírito. O batismo no Espírito, pois, é absolutamente à parte do batismo em água, e com êsse ato nunca se confunde em Escritura alguma. A ex-periência da graça não foi uma coisa antes de Pentecostes e outra coisa diferente depois. Nunca houve salvação de alma alguma sem que fosse verificada a obra do Espírito divino na sua regeneração. Pelo contrário, a salvação principia, continua e é consumada no Espírito, desde a con-vicção do Espírito até à glorificação dos santos em luz, e foi sempre assim, sendo essa experiência da regeneração, condição indispensável para o batismo nos dias do Batista, de Jesus, dos apóstolos e das igrejas do Novo Testamento, através dos séculos. Aliás é marca de uma igreja verdadeira do Novo Testamento pregar êsse evangelho puro e repudiar toda a confusão entre salvação e sacramentalismo.

«Batizava.» O Dr. A. T. Robertson escreve : «O tempo imperfeito do verbo grego indica que não era o costume de Jesus (batizar)... E' a úl-tima menção do batismo sob a direção de Jesus até à grande Comissão (Mat. 28:19) . E' possível que Jesus fizesse parar a administração do batismo por causa da excitação popular e da questão suscitada a res-peito de suas prerrogativas messiânicas, até depois da sua ressurreição, quando êle o impôs de novo como dever para seus discípulos, como o rito da matrícula pública no serviço dele.» (9) E' interessante essa conjectu-ra do Dr. Robertson, interessante e instrutiva. Se a hipótese fôr aceita, derrama grande luz sôbre o evangelho, e demonstra como a salvação é independente de cerimônias ou sacramentos ou ritualismo. Nessa hipó• tese Jesus e os Doze e ainda os Setenta iriam fazendo inúmeras viagens de evangelização até aos confins da Palestina, mesmo além da Palestina, na Fenícia, e nas terras vizinhas dos gentios. Seriam salvos muitos ou-vintes, como Jesus disse de Zaqueu : «Hoje a salvação eutrou nesta casa», ou da pecadora que o ungiu : «A tua fé te salvou.» Alguns desses haviam de morrer antes da morte de Jesus. Morreram sem rito algum. Sua sal-vação seria sem sacramento, sem cerimonialismo, sem obra alguma de categoria ritual. E' claro como o sol ao meio dia que um rito, que poderia ficar suspenso por alguns anos sem fazer falta ao evangelho, sem criar deficiência ou invalidez na salvação outorgada aos crentes durante êsse

(9) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V., p. 59.

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prazo, não fazia parte nem do evangelho nem da salvação. O batismo poderia ter desaparecido para sempre sem afetar a salvação de pessoa nenhuma durante todos estes vinte séculos cristãos, pois o batismo nun-ca fêz parte do evangelho. «Jesus fazia discípulos» e depois «os bati-zava». Eram discípulos antes do batismo e discípulos continuavam a ser, sem ou com o batismo. O batismo, também para Paulo, não fazia parte do evangelho (I Cor. 1:17) .

Mas se algum sacramentalista, horrorizado com o pensamento de anos a fio de' evangelismo e discipulado e salvação sem o batismo, pro-testar contra a hipótese do Dr. Robertson, êle apenas tem a outra saída do dilema, a continuação da qualidade de batismo administrado pelo Ba-tista e por Jesus e seus discípulos. Era um batismo de discípulos e não o batismo infantil. Era um batismo dado aos arrependidos, aos crentes, aos que demonstravam na vida sua salvação por frutos práticos e santos. E', igualmente, sem solução de continuidade a salvação antes do batismo e, portanto, sem o batismo, embora o batismo viesse a ser o primeiro passo de obediência normal do discípulo, obtendo a salvação sem o rito que mais tarde praticaria. Qualquer que seja o partido que o sacramen-talista tomar, diante dêsse inexorável dilema, o evangelho é claro. E' salvação por Jesus, mediante a fé, antes de e sem cerimônia, rito ou sa-cramento. Não há, nunca houve e jamais haverá outro evangelho. Se alguém ousar pregar ou inventar outro, «seja anátema» (Gál. 1:8).

«Não batizava.» Essa declaração categórica alivia a Bíblia de mui-tas interpretações tendenciosas de índole sacramentalista .

Erradamente se traduz Is. 52 :15, em muitas versões : «Ele borrifará muitas nações», em lugar da tradução acertada, que se acha na LXX e se coaduna com todo o sentido do texto e contexto: «Ele pasmará muitas nações.» A profecia se refere ao Servo Sofredor de Jeová, que é Jesus. Que vem a significar que Jesus borrifaria uma nação? «Muitas nações» ? Será que borrifar, mesmo se fôsse a tradução certa, significa batizar? Qual a nação que Jesus batizou? Nenhuma, pois João nos informa logo que Jesus nunca batizou pessoa alguma, muito menos nações inteiras. A tradução, borrifar, pois, é errada e sua interpretação tendenciosa é pior.

Também livra de interpretação falsa e sentimentalista todos aquê-les versículos sôbre a ternura de Jesus para com as crianças. Jesus não batizou essas crianças pois não batizou a ninguém, nunca, nenhuma vez. Podemos jogar no lixo, pois, a interpretação que representa o Salvador praticando o batismo infantil. Ele não praticou batismo nenhum.

E a linguagem põe Jesus e Paulo lado a lado. Ambos deixaram aos seus cooperadores a administração da ordenança. Ambos temiam a su-perstição acerca do batismo que, de fato, vemos surgir no segundo sé-culo e piorar desde aquêle tempo. Ninguém podia ufanar-se! «Eu fui batizado por Jesus Cristo mesmo.» Paulo disse: «Dou graças a Deus

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que a nenhum de vós batizei ... » Já via a propensão dos coríntios para a incredulidade diante das grandes verdades e virtudes e a sua creduli-dade simplória diante dos exploradores, dos sinais exteriores e da supers-tição. Portanto, o apóstolo acrescenta: «Pois não me enviou Cristo a batizar mas a pregar o evangelho.» O batismo não faz parte do evan-gelho, nem da salvação. Paulo seguia a Jesus, ao tornar isso nitidamen-te claro e incontestável. Se o batismo regenera, Jesus devia batizar, teria batizado o mais possível. Para que o Salvador iria se afastar da obra principal e mais essencial na salvação? Se o batismo traz a remis-são de pecados, ou se êle confirma ou sela essa bênção, por todas as con-siderações merece ser praticado por Cristo e Paulo. Batizar, nessa hi-

-pótese, vale por operar ou completar ou selar a salvação. Um apóstolo não seria capaz de dar graças a Deus por ter omitido um elemento vital na salvação de uma igreja tôda. Nem Cristo teria deixado de realizar êsse ato regenerador, se fôsse realmente regenerador. O fato de que êle nunca batizou é prova cabal que o batismo nunca salvou a ninguém, nunca ajudou a salvar, nunca selou ou confirmou a salvação de quem quer que seja. Jesus fazia discípulos. Aí sim, êle entrava em comércio direto com suas almas. Ninguém é discípulo de Cristo por procuração. Discipulado espiritual é salvação, contemplada em um de seus aspectos.

Discipulado antes do batismo, salvação antes de cerimônias, Cristo antes da igreja, o sangue remidor antes da água simbólica, a fé no ín-timo antes da obediência exterior: é o cristianismo de Cristo. Para os salvos, tanto Jesus como Paulo faziam discípulos primeiro, e proviam o batismo em seguida. Evangelho e salvação, fé e discipulado, porém, em primeiro lugar. Depois da salvação, o batismo, depois do começo do dis-cipulado na experiência. "Esse versículo é um dos mais importantes da Bíblia para salvar o evangelho do túmulo de um sacramentalismo mor-tífero.

3. «Deixou.» E' tão importante deixar como é chegar. E saber deixar é sublime sabedoria. Os grandes órgãos de revelação e evangeli-zação de que lemos na Bíblia não ficaram a vida inteira num lugar. Abraão é exemplo ; e fiel ao exemplo é a vida peregrina que vemos em Moisés, Josué, Davi, Jeremias, Amós, os Doze e Paulo, Barnabé, Apolo, Timóteo, Tito, Lucas, Marcos e outros magnos nomes de ambos os Tes-tamentos. A primeira coisa que Jesus fêz foi deixar a terra de sua moci-dade, e agora êle deixa a terra de seu nascimento. Jesus e Paulo eram fortes doutrinadores. Era bom que saissem e deixassem a outros a res-ponsabilidade de testificar a verdade assimilada. Depois de algum tem-po, voltam e «confirmam» a fé, corrigem as faltas na mensagem e na vida das testemunhas locais, e dão nova dose de verdade mais ampla. Assim os grandes órgãos de revelação se multiplicaram em novas teste-munhas em tôda parte e em novos e numerosos centros.

E' uma grande falta a de certos ministros que não ficam tempo su-

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ficiente num lugar a fim de deixar arraigada a verdade que têm para transmitir. E' falta igualmente grave quando ficam tempo demasiado.

Um ancião venerável, que pastoreou uma só igreja 45 anos, declarou, em resposta a um jovem pastor que lhe perguntou se faria a mesma coisa se Deus lhe desse o privilégio de viver sua vida de novo: «Não. Se eu tivesse de viver de novo minha vida ministerial eu procuraria dividi-la em três pastorados de quinze anos. Creio que eu aprenderia mais, aper-feiçoaria melhor meu testemunho e meu ministério, desenvolveria me-lhor minha personalidade e também educaria melhor em cada uma das três igrejas os membros, no sentido de responsabilidade como testemu-nhas e trabalhadores. Os membros de minha igreja chegaram a confiar demais em mim e aceitaram como norma minhas peculiaridades pes-soais.» Notai, porém, que quinze anos, não quinze meses, era seu ideal para um pastorado. A média atual de muitos pastôres é curta demais, frívola, meramente egoísta. Pensando galgar novos degraus na escada da ambição, aviltam e apoucam sua personalidade permanentemente, e as igrejas percebem isso e desprezam o interesseiro. Jesus ficou, quan-do devia. Mas deixou a Judéia em tempo, evitando mil lutas desnecessá-rias e poupando aos crentes novos êsses dissabôres e perseguições. E êsses, deixados em paz, levaram avante pacificamente a mesma obra do Mestre. «Coisas maiores» fizeram do que êle, pois suas pessoas insigni-ficantes não suscitaram a poderosa oposição que contra êle se manifestou. Por «deixar», em tempo, lugar após lugar foi que Jesus e Paulo prolon-garam a vida e multiplicaram cem por cento o número de cidades evan-gelizadas. Saber «deixar» é alta espiritualidade. Cristo ordenou aos apóstolos que soubessem fugir da tentação em tempo. O orgulhoso e obstinado que não sabe recuar de um lugar, avançando para novas con-quistas espirituais, não é «apto para o reino de Deus». Às vêzes Deus só consegue tirar um obreiro de um lugar mediante castigo severo. Às vêzes êle arrancou Paulo com uma visão especial, como em Jerusalém, no princípio de seu apostolado. Mas Jesus e Paulo «deixaram» uma cena de trabalho de modo que outros pudessem levar avante a obra e com um espírito tal que êles mesmos sempre pudessem voltar e achar boas-vindas da parte dos crentes. E' uma sublime lição de visão e ética pastoral.

«Deixou a Judéia.» Diz o Dr. A. T. Robertson: «Cada vez que Jesus apareceu» em Jerusalém, daí em diante até sua última visita, houve uma divergência pública entre êle e os fariseus (5:1-47; 7:14 a 10:21; 10:22-42; 11:17-53). (10)

«Deixou a Judéia.» Não sei como alguns intérpretes acham que Je-sus tinha estado batizando na Transjordânia, ou Peréia. Ele e o Batista agiam no mesmo lado do Jordão e em províncias adjacentes. Pensam alguns que Enom estava no longínquo sul da Judéia, perto do deserto

(10) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 59.

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de Arábia. Não é verossímil. Em primeiro lugar, o Batista sempre se colocava num ponto acessível às multidões de peregrinos. Mas no ex-tremo sul da Judéia êle não teria nem auditórios nem missão. Em Enom, porém, êle estaria na margem de uma estrada muito freqüentada onde muitos tinham de passar, porque nessa época o Jordão estava na sua enchente anual, pois era o período das chuvas. A noção sectária de que ~ente no rio Jordão haveria água suficiente para o batismo (a imer-são) na Palestina é de duas uma — ignorância crassa ou cegueira delibe-rada. Nunca na história da raça humana houve um povo tão dado a imersões cerimoniais como os judeus, para si e para seus utensílios. João e Jesus achariam lugares adequados para a cerimônia em qualquer parte habitada do país, porque um lugar onde um judeu não pudesse obedecer às leis de purificação cerimonial seria para êle um lugar onde não poderia morar. Se a Palestina desde o princípio era tida por «terra onde mana-va leite e mel», deveria nela manar água também. Sem água não have-ria pastagens e sem estas não haveria leite.

Há quem queira ainda tirar o Batista de Enom e colocá-lo, senão ao sul, pelo menos na margem da Judéia, que fica adjacente à Samaria, alegando que a hostilidade dos samaritanos impossibilitaria seu ministé-rio e batismo. Mas a hostilidade dos samaritanos era contra quem pu-nha o rosto na direção de Jerusalém. João vinha na direção oposta. E êle nada tinha com o cerimonialismo judaico. Sua obra era reconhecida como coisa à parte. Ele era órgão da revelação, um profeta, e nada ti-nha com o templo. Os samaritanos, ouvindo sua denúncia dos fariseus e saduceus, ficariam deleitados. Portanto, as objeções quanto à presença e atividade do Batista na Samaria são frívolas.

David Smith, seguindo Jerônimo, nos informa que os discípulos do Batista levaram o corpo de seu mestre degolado à capital da Samaria, Sebaste, e ali o sepultaram, não muito distante de Enom, local de seu úl-timo ministério e que êle foi sepultado junto dos túmulos de Elias e Obadias. Jerônimo é citado a respeito das multidões que visitavam os três túmulos nos seus dias.

Em Mat. 4:12 e Mar. 1:14 tem-se a idéia de que a entrega do Batista foi à traição. A Samaria não estava no território de Herodes, mas no de Pôncio Pilatos. Como podia o rei títere prendê-lo ? Não sabemos. Tal-vez por traição e intriga. Herodes era meio-samaritano, pois a mãe dêle fôra samaritana. Talvez na margem remota da jurisdição de Pilatos êle ousasse prender a João, no distrito rural. Contudo é evidente, se-gundo Mar. 6:18, que João tinha visitado o próprio palácio de Herodes e lhe censurado, face a face, sua conduta. Numa dessas ocasiões é possí-vel que João fôsse prêso na Galiléia ou na Peréia. Seja como fôr, é claro que nem João, nem Jesus, nem os discípulos de ambos achavam embaraço ou escândalo algum em João batizar na Samaria, ou em Jesus nela evan-gelizar, ou no túmulo do Batista ficar em seu solo. O notável pregador

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anglicano, F. W. Robertson, pregou, em 15 de maio de 1853, sôbre «A Repreensão de João a Herodes». Divide êle a vida de João em três épocas: (1) no deserto sozinho, (2) perante as multidões como profeta e precursor, e (3) na côrte real. Quase todos nós nos esquecemos dessa terceira fase da vida do Batista. Como Nicodemos foi de noite a Jesus, igualmente Herodes podia pedir visitas, conselhos e verdades no palá-cio; e o pregador podia lealmente cumprir a vontade real e estar de volta a seu lugar nos dias seguintes. As Escrituras nos dão um relance dessa extraordinária terceira fase do ministério de João, em Luc. 3:19, 20. Aí o historiador nos diz que João repreendeu a Herodes, não somente por causa de Herodias, mas «por tôdas as maldades que Herodes havia fei-to». Mesmo depois de prendê-lo, o vil régulo ouvia ao profeta «de boa vontade», «porque Herodes temia a João, sabendo que era homem reto e santo», Mar. 6:20.

«Agora o profeta está numa esfera inteiramente nova. Tornou-se o homem de renome, célebre em todo o país, procurado no mundo, ouvido pelos grandes, podendo familiarizar-se com a vida brilhante da côrte real de Herodes... João é transplantado do deserto à cidade; a vida simples ficou atrás; êle está no meio da vida artificial. Será que a pedra preciosa pode ser polida sem romper-se em fragmentos? O profeta de ferro se derreterá na moleza? As maneiras palacianas e a insinceridade mun-dana da côrte lhe serão contagiosas?... E' a hora de sua prova. Have-rá quem lhe cochiche: Agora, Batista, cuidado; o que não aprovas aqui, pelo menos trata com silêncio; não conseguirás nada achando faltas nos grandes. Foi a prova a que o Batista ficou submetido.

«A pior coisa nesta vida é a mendacidade covarde. Que um homem seja rude, vá lá; ou sem polimento; porém, se são cristãos, sejam ho-mens sinceros em tudo quanto disserem. Nada de adulação, nada de falar mansamente a um homem ante sua face, enquanto no íntimo se desaprova sua conduta. O que anelamos no cristianismo não é que seja polido, mas sincero. Imediatamente, sem rodeios, o homem genuíno fala: Não te é lícito tê-la... Ele não sabia que estava agindo de um modo nobre. Não olhou de soslaio para o espelho. Não sentia: Tenho coragem para falar assim. Sua repreensão procede de um coração zeloso... João não estava pensando em si, senão na lei de Deus ofendida.»

Nosso historiador, no Quarto Evangelho, está cônscio de tudo isso, mas não o narra. O testemunho total dos Evangelhos, porém, esclarece essas visitas do Batista a Herodes, e numa delas é provável que foi prêso e seu auditório de peregrinos o esperou nos dias seguintes em vão.

«Partiu outra vez para a Galiléia.» A primeira jornada para a Gali-léia é mencionada em 1:43. Vede as notas sôbre êsse versículo e meditai os magnos eventos dos longos meses dêsse ministério na capital e nas zonas rurais da Judéia.

«Outra vez para a Galiléia». As palavras «outra vez» se referem a

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1:43 onde vemos Jesus, pela primeira vez na vida, partir da Judéia para a Galiléia com um grupo de discípulos. Ele fixara a residência de sua fa-mília e o centro de suas operações em Cafarnaum (2:12), pois desceram para ali «êle, sua mãe, seus irmãos e seus discípulos». Doravante são dois grupos «sua mãe e seus irmãos», um grupo; «êle e seus discípulos», outro grupo. Êstes são o «nós» de 3:11. Maria já não dependia do primogê-nito mas de «seus irmãos» para cuidar dela em Cafarnaum. E ele os dei-xou a se acostumar com a nova orientação da família, nesta ausência na Judéia por tantos meses. Quando êle volta, já é mais popular que João, a principal figura nacional ; e todos o buscam de hora em hora. Não volta para a manutenção do lar paterno e da carpintaria, corno nos pri-meiros trinta anos de sua vida. Os discípulos já constituem sua família oficial, são para êle «mãe e irmãos, aqueles que ouvem a palavra de Deus e a observam», Luc. 8:21. Já foram educados como auxiliares do Ba-tista, vivendo em especial intimidade, e agora como auxiliares de Jesus. E' um ensaio do apostolado que êle formalmente estabelecerá na Galiléia. O apostolado havia de ser um ministério especial. Êstes estavam num ministério preparatório, mas já associados com Jesus.

4. «Era-lhe mister.» Não convém espiritualizar a Bíblia senão onde a própria Bíblia nos dá licença para tal medida. Ouvi sermões atribuindo essa necessidade à predestinação, ao fato de Deus haver marcado para esse tempo o encontro entre Jesus e a samaritana e o povo dela, que se convertia. Creio na predestinação e que a vida de Jesus fora planeja-da desde a eternidade. Mas não creio que essa simples linguagem carre-gue tanto pêso de doutrina. Era mister que Jesus passasse por Samaria do mesmo modo como era necessário para os demais peregrinos. As es-tradas do vale eram intransitáveis nessa época, ou pelo menos lamacen-tas. A providência divina ordena os eventos da vida no caminho por onde os fenômenos naturais determinam que haveremos de passar. In-terpreto essa linguagem em sentido natural. Era o tempo do ano quan-do as viagens da Judéia para a Samaria eram feitas sem atravessar o Jordão, isto é, cruzando a Samaria. Os comentadores não são coerentes, nem consigo nem entre si, neste problema, inclusive alguns que cito em cima.

Citei por exemplo Marcus Dods. Ele dá como razão da presença do Batista em Enom as supostas fontes que forneceriam água em abundân-cia suficiente para a imersão durante o verão. Isso coloca os batismos de João em Enom, e os de Jesus, por seus apóstolos, na Judéia, nos meses de julho - outubro. Carrol e outros parecem colocar os referidos batis-mos no inverno, outubro-junho, e o motivo da mudança do Batista para os altos seria o estado lamacento do vale do Jordão e a cheia anual do rio. Alguém poderia fazer a objeção. «Mas se pode imergir em águas de um rio em enchente.» Sei que é fato, pois fiz isso no Rio Mississippi. Mas a objeção não considera o problema. Os peregrinos teriam abando.

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nado o vale do Jordão como estrada real porque, com o Jordão em en-chente, não podiam viajar com confôrto e segurança no vale ou atra-vessá-lo, por falta de pontes, no tempo da cheia. Assim estariam usando a estrada do planalto da Samaria, para onde João transferiria seu púl-pito. Quem prega vai para onde passa o povo, não fica pregando a pe-dras e águas de enchente. Na Samaria, o Batista outra vez estaria fa-lando a Israel, a Voz para a consciência da nação.

Complica-se a cronologia por julgarem alguns que este ministério de João durou talvez um ano ou mais lá no planalto da Samaria. Alguns apoiam a Harmonia de Andrews na seguinte cronologia. Ministério de João, seis meses antes do batismo de Jesus, agosto de 26 a janeiro de 27. Batismo de Jesus, em janeiro. Mudança de João para o planalto uns meses depois, onde continua a batizar, em ministério paralelo ao de Jesus até junho de 28, um ano e três meses. Já citei outros pensadores que supõem um ministério dos dois, em consciente colaboração, por quase três anos. Isso parece-me impossível.

A dificuldade do caso é que sabemos tão pouco dos movimentos detalhados dos dois pregadores peregrinos que com tanta facilidade mu-davam de um lugar a outro.

Faço ainda a seguinte sugestão para auxiliar nosso entendimento do problema. Sabendo apenas pequenina fração da história de Jesus e João nesta época, é bem possível que acompanhassem as estações em seus movimentos em lados diferentes do Jordão, ou no mesmo lado mas em províncias diferentes. Nesse caso, quando os peregrinos tomavam de novo a estrada da Peréia, o Batista poderia voltar a batizar em Betânia, além do Jordão.

O texto da Escritura que nos mostra a dificuldade da situação para os peregrinos e, conseqüentemente, para os pregadores aos peregrinos, é Josué 3:15 — «porque o Jordão transborda tôdas as suas margens }du-rante todo o tempo da ceifa», abril a junho, abrangendo as festas ju-daicas da Páscoa, e do Pentecostes. Outro período de chuvas menos pe-sadas vinha em dezembro, engrossando desde novembro em diante até ao fim do ano.

Queira o leitor voltar às notas sôbre 1 :28 a respeito da cronologia, geografia e clima. Aqui apenas acrescento a hipótese de que, dada a escassez de notícias sôbre os movimentos de Jesus e João nesta época, é possível supor um vaivém de ambos para um e outro lado do Jordão, ou mais para o norte ou ao sul, em estações diferentes do ano. Assim eles podiam ajustar seu programa aos movimentos dos peregrinos. Assim o Batista estaria mais perto de um dos palácios reais. Podia também ser preso por Herodes no território onde o régulo desalmado tinha jurisdi-ção. esses fatos permitem o ajuste da cronologia de acôrdo com todos os fatôres do caso, sem que seja necessária uma solução detalhada.

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«A Samaria. «Os galileus costumavam passar por Samaria em gru-pos quando subiam a Jerusalém nas épocas festivas, mas para viajantes solitários ou sem defesa era melhor a estrada oriental. Os samaritanos odiavam os judeus e foram por êstes odiados por sua vez, com ódio fi-gadal... Estabeleceram um templo rival no Monte Gerizim e sujeitaram os viajantes judeus a inúmeras irritações, maltratando e matando mui-tos que atravessavam seu território. Numa Páscoa durante o govêrno de Copônio (d. C. 6-9), quando, segundo a praxe, os sacerdotes abriram as portas do templo à meia noite, alguns samaritanos furtivamente pe-netraram e poluiram o templo, espalhando ossos humanos nos seus al-pendres; e, por isso, de uma vez para sempre, depois de praticar êste ultrage, os samaritanos foram excluídos do lugar sagrado em todos os seus limites... A história de religiões testifica à sociedade o fato deplo-rável de que as querelas são sempre mais amargas justamente quando as diferenças são menores e os motivos de tolerância mais amplos.» (11)

«Precisava passar pela Samaria.» David Smith opina que se Jesus tivesse ido pela estrada oriental talvez no meio da jornada tivesse encon-trado a João Batista prisioneiro, e que passou pela Samaria porque João tinha estado batizando ali e Jesus queria animar e orientar os ex-discí-pulos do Batista. «Era mister que êle passasse por Samaria visto estar Enom na Samaria, e êle devia visitar o local dos labores do Batista e ga-nhar seus seguidores desanimados.» (12)

«Samaria». O fato de Jesus proibir aos apóstolos novatos um mi-nistério aos samaritanos não é razão para fechar nossos olhos às ativi-dades tanto de Jesus como do Batista na evangelização na Samaria. Shailer Mathews nos declara que Sebaste, na Samaria, e outras cidades eram cidades gregas, como a região de Decápolis, e que nelas moravam judeus, se bem que em minoria. Mas Sebaste foi edificada por governa-dores judaicos, embora um forte anti-semitismo prevalecesse nela e nas demais cidades gregas da Palestina. «Mas êsse anti-semitismo estava longe de suprimir os judeus», (12 ) diz o mesmo autor. E outros nos afir-mam que os judeus modificavam seus regulamentos a fim de atravessar em grupos a zona samaritana. A comida samaritana não lhes era con-taminada, nem água de suas fontes, nem pouso em suas hospedarias ou em suas casas. Josefo nos afirma que as cidades samaritanas estavam «cheias de gente». Era o suficiente, para João e Jesus.

5. «Sicar». Vêde a nota sôbre 1:28, Vol. I, p. 234. «Sicar». «Existem ainda as ruínas de Sicar, que hoje em dia se

chamam An-Askar. A distância de um quilômetro para o sudoeste dp aldeia, ao sopé do Monte Gerizim, acha-se o poço de Jacó, com 33 me-

(11) "In the Days of His Flesh", p. 73, por David Smith. (12) "In the Days of His Flesh", p. 72. (13) "History of the New Testament Times in Palestine", p. 156.

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tros de fundo.» (14) A. T. Robertson concorda quanto às ruínas. (15) Agora darei outro ponto de vista que acho melhor. Peloubet (16) e W. Ewing (17) acham muito mais provável que o local antigo em que se achava Sicar seja agora um montão de ruínas. Dou um tôsco desenho das estradas do tempo. Duas convergem para o Poço de Jacó, em dire-ção norte, uma vinda do Jordão e e outra de Jerusalém. Não sabemos qual Jesus palmilhou, mas por uma e outra os viajantes chegavam di-retamente ao poço que não distava muito da encruzilhada. Na estrada que segue da encruzilhada para Bethshean e o trecho nortista do Jor-dão está «An-Askar», distante quase dois quilômetros. Parece incrível que a mulher de Sicar andasse dois quilômetros diàriamente para bus-car água (v. 15) . Ora, W. Ewing achou as ruínas de Sicar na encosta de Gerizim, distante apenas meio quilômetro, ou menos, do famoso poço. Todos êstes estão de acôrdo em não identificar Sicar com Siquem, mui-to para cima e mais perto de Ebal. Não há água agora no local que .é marcado no desenho como Sicar. Há razão, pois, para a mulher ir buscá-la diàriamente.

Outra teoria que fraqueja é que a mulher ia levar a água aos obrei-ros nos campos. Mas nem o tempo do ano (dezembro) nem a hora do dia (ao pôr do sol) combina com a teoria. Falha a hipótese por engano em calcular a hora, erroneamente, segundo o sistema judaico.

Ewing e outros testificam que o vale é um dos mais lindos da Pa-lestina tôda, e que o som de água correndo das montanhas se ouve da beira da estrada que segue o passo entre Gerizim e Ebal, subindo para a Galiléia. Sem dúvida, notaram isso no inverno quando as chuvas caem. Aliás as autoridades afirmam que o Poço de Jacó varia muito, na pro-fundidade de suas águas, na estação chuvosa e no estio. Tristam viu que o poço em dezembro tinha apenas lama úmida no fundo, mas no fim de fevereiro estava cheio de água até a margem. Outros dizem que o poço ficava sêco de maio a outubro. Não tinha uma fonte natu-ral no fundo ; as águas se infiltravam pelo solo na época das chuvas.

E' preciso, porém, reconhecer a diferença entre os tempos antigos e os de agora. A denudação das terras pelo corte desarrazoado das ár-vores mudou o clima e a fôrça da estação das chuvas. Uma testemu-nha medieval mediu o poço e achou-o com 35 metros de profundidade. Nos séculos posteriores outros dão de metade dessa profundidade para cima. As ruínas e a negligência seriam fatores da mudança.

De qualquer modo, é natural a narrativa de João. Jesus pára ante o declive nas fraldas de Gerizim. A mulher deixa o pote. Os discípulos não ficaram fora muito tempo, pois não achavam possível que alguém

(14) Novo Testamento, Versão Rohden, p. 211 (terceira ed.). (16) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V. p. 60. (Ia) "Notes on the Sunday School Lessons", não marquei outra informação. W.C.T. (17) "The International Standard Bible Encyclopedia", Vol. IV, p. 2.756.

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lhe trouxesse algo para comer. O povo da vila vende mantimentos aos turistas que passam, com boa vontade. Quantas vezes o comércio in-ternacional favoreceu a cordialidade das populações para com o evan-gelho. Correram os aldeãos, ladeira abaixo, para ver o Messias. Esta-mos diante das vivas circunstâncias de fatos históricos.

«O campo». A V. Brasileira traduz: «as terras». Huberto Rohden verte: «vizinha ao prédio que Jacó dera a seu filho José». Não é es-quisito pensar de uma cidade ser «vizinha» de um «prédio» ? A anti-ga Almeida diz: «a herdade». O têrmo se acha no N. T. em Mat. 26: 36 e Mar. 14:32 (a respeito de Getsêmane), em Atos 1:18, 19 (a res-peito do campo Acéldama) ; e em Atos 4:34; 5:3, 4; 28:7. Sempre significa campo, não «prédio» —, nem «herdade», nem mero têrmo vago, mas, sim indicando extensão de «território», como Moffatt tra-duz. Parece que êle confunde a referência com a doação do territó-rio das tribos dos descendentes de Jacó. Mas a história bíblica confir-ma a exatidão do Quarto Evangelho. Vêde. Jacó, ao voltar a Canaã, depois de 21 anos de ausência, comprou «a parte do campo em que ar-maria sua tenda» da família Hamor, «por cem peças de dinheiro», Gên. 33:18-20. Ali deu-se uma trágica violência por causa de Diná (Gên. 34) e Jacó teve de fugir para Betel, ou afastar-se por prudência. Mas ficou dono do que havia comprado e ali edificou um altar e cavou êsse poço que abençoou os séculos. No Egito ele deu êsse campo a José e o descreve como sendo «um declive montanhoso que tomei com minha espada e com o meu arco das mãos dos Amorreus», Gên. 48:22. Não sei se a referência do patriarca é para a luta que êle previa (Gên. 34: 30) sôbre a violência no caso de Diná, ou se foi um fato posterior, não narrado com detalhes no Gênesis. Em todo caso, lemos em Jos. 24:32 que os ossos de José foram trazidos do Egito, quando Israel entrou na terra de Canaã e a conquistou, e ali foram sepultados. O primeiro livro das Crônicas menciona «Siquém e suas aldeias» como parte das posses-sões da tribo de Efraim. Jesus, sozinho e exausto, conhecedor de sua Bíblia, teria muitas meditações sôbre as terríveis violências e ódios e castigos que o adultério causava naqueles dias primitivos e as vinganças provocadas na briosa represália pela honra da ultrajada. E eis que vemos outra adúltera descer para tirar água do poço histórico. Se é «declive montanhoso» do poço até a aldeia, é clara a razão por que Jesus, cansado de viajar o dia inteiro, ficaria ali e não iria com os discípulos até a cidade. Talvez nem esperassem nem ambicionassem pousada. Mas em poucas horas seria êsse seu inesperado privilégio, oferecido com grande cordialidade pelo povo evangelizado, inicialmente, pela mulher que lhes deu a boa nova.

6. «Fonte-poço». Há dois termos no original: fonte nos vs. 5. 6 e 14, e poço em vs. 11, 12.

«Fonte do Jacó». Do patriarca Jacó, com artigo definido no ori-

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ginal. O «Expositor's Greek Testament» pergunta por que haveria um poço no meio de fontes ao redor, e por que a mulher viria de mais longe quando havia fontes mais perto. Opina que se Jacó cavasse o poço seria dêle e que o fato de que era dêle talvez levasse a mulher a ir mais além. O mesmo comentário lembra, porém, que muitas das fontes se seca-vam no verão. Todavia era inverno, portanto essa consideração não vem ao caso. Outros afirmam ser salobras as outras fontes, o que ex-plicaria tanto o ato de cavar o poço fundo como a preferência dada às suas águas cristalinas e frias.

«Fonte de Jacó». «Era realmente uma cisterna de trinta metros de profundidade, cavada por um forasteiro numa terra de abundantes fontes» (Gên. 26:19). (18) O grego original o chama tanto «fonte» como «cisterna». Portanto, eram ambas urna fonte de água viva, bem pro-funda, donde a água era tirada por baldes. O caso em Enom era dife-rente. Ali havia «muitas águas», abertamente acessíveis.

«Completamente exausto pela viagem». Jesus era jovem, forte e acostumado a andar nas estradas. Mas o dia o deixou como que exaus-to, num cansaço consumado (tempo perfeito do verbo) — um cansaço que fica. Notai a realidade de sua natureza humana e, em contraste, o forte estímulo do trabalho espiritual que desfêz num instante sua de-pressão física.

O último sermão de Whitefield foi pregado na noite da sua morte. Ele orou assim: «Senhor Jesus, estou cansado no teu trabalho, mas não do teu trabalho.»

«Completamente exausto». O Dr. A. T. Robertson diz: «O verbo fala de labor excessivo (Luc. 5:5) . João dá ênfase às emoções huma-nas de Jesus (1:14; 11:3, 33, 35, 38, 41; 12:27; 13:21; 19:28)» (Word Pictures, V. p. 60) .

Sôbre a hora do dia, vede Vol. I, págs. 253-255 e as notas sobre vs. 5 e 52 deste Capítulo, etc.

7. «Vem... da província da Samaria.» E' a ordem natural da linguagem grega original. Em toda a narrativa, o elemento mais estra-nhável do caso é que Jesus assim conversasse com «uma mulher», fôsse qual fôsse. E, em segundo lugar, ela vinha da província. Samaria aqui é nome da província, em outro lugar é a cidade de Samaria, Atos 8:5. Podia haver aparecido no poço uma mulher peregrina, voltando de uma das festas. Maria tinha passado por ali, com a multidão, mas sem

(18) Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 60. "Homero toscanejou" aqui. Gên. 26:19 trata de poços que Isaque cavou, no sul da Palestina, não do poço de Jacó, em Sicar. A. T. Robertson cometeu poucos erros, em interpretar a Bíblia. Esse é um de dois que achei em seus livros — escreveu dezenas. O clima e as estações da Pa-lestina são tão diferentes do nosso tempo, e variam tanto em partes diferentes da Palestina e em períodos diversos da sua história, que quase todos os intérpretes deste capítulo estão em conflito entre si, e, às vezes, com suas próprias declarações alhures.

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Jesus, aos doze anos de idade, voltando da Páscoa. Passou primeira-mente com a multidão. Depois ela e José e provavelmente os outros da família vieram uma segunda vez com o menino que acharam no tem-plo em discussão com os doutores da Lei. Se fizessem seu acampamen-to na vizinhança desta água, seria a tarefa da mulher do grupo buscar água do poço, enquanto os homens tratavam de outros misteres. Além disso, havia núcleos de judeus que viviam e negociavam no meio dos sa-maritanos, como havia entre todos os povos. Mas aqui, João nos es-clarece que veio uma mulher e, embora sozinha com Jesus, êle a evan-gelizou com tôda a naturalidade. E, para maior maravilha do caso, a mulher vinha da Samaria mesmo. Não era uma peregrina judia, vol-tando de uma festa em Jerusalém e buscando água para o jantar de seu grupo de peregrinos, acampados ali perto da boa água, ao ar livre, como Jesus e seu grupo teriam feito logo, se Sicar não os tivesse recebido de braços abertos, para a noite e mais dois dias, nas suas casas.

«Para tirar água». As águas acessíveis na zona são salobras e pre-judiciais à saúde, dizem diversas autoridades. O poço é fundo e o solo nas suas camadas sucessivas serve de filtro.

«Jesus lhe diz.» O Codex Siríado dá a entender que Jesus cortês-mente permaneceu de pé, na presença de uma senhora, e que os discí-pulos ficaram atônitos ao encontrá-lo ainda nessa posição e atitude atenciosa.

«Dá-me de beber.» Será que ela lhe deu? David Smith pensa que sim e que então por ironia e curiosidade ela quis beliscar um pouco o orgulho do judeu que se humilhou até o ponto de pedir favores aos sa-maritanos. Pode ser que Jesus também tivesse fontes invisíveis de re-frigério para seu espírito e que tivesse passado a sêde como passou a fome, no gôzo de evangelizar.

8. «Tinham seguido até à cidade para comprar víveres.» Em Luc. 9 :51-53, lemos : «Estando para se completar os dias em que de-via ser recebido no céu, manifestou (Jesus) a firme resolução de ir a Jerusalém, e enviou mensageiros adiante de si. Indo êles, entraram nu-ma aldeia dos samaritanos para lhe arranjar pousada; o povo, porém, não o recebeu, porque seu rosto era como o de quem ia para Jerusalém... E foram para outra aldeia.» E' claro, pois, que a atitude dos grupos sa-maritanos variava. Lucas nos afirma que era Jesus que os samarita-nos rejeitavam, na sua jornada para Jerusalém «para ser recebido no céu». «O povo não o recebeu.» Era uma atitude contra Jesus, e o desejo de Tiago e João de chamar fogo do céu contra a aldeia é mais com-preensível à vista do ultraje feito a Jesus. O Mestre, porém, achou aco-lhimento logo em outra aldeia, provando que nem todos os samaritanos eram tão cheios de preconceitos racistas. Uma vila perto do centro da intolerância não acompanhava os intolerantes. Talvez, como Sicar,

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fôsse mais liberal ou talvez porque tivessem sentido os dois lugares a influência preparadora do Precursor de Jesus o qual lhe abriu estrada tanto na Samaria como na terra dos judeus.

Aqui em Sicar ganharam «pousada», inesperadamente, quando ape-nas procuravam comprar mantimentos.

9. «Mulher samaritana». Duas coisas surpreendentes no caso, um homem falar com uma mulher, e um judeu falar com um «cachorro samaritano».

«Porque judeus não têm boas relações com samaritanos.» A Hovey pensa que estas palavras eram da mulher samaritana. Ela se queixa disso como desculpa por não lhe oferecer de beber.

Como o espiritual supera o material na Bíblia! Nem sabemos se Jesus bebeu dessa água ou comeu do alimento que os discípulos lhe trouxeram.

«Não têm boas relações.» «O verbo grego é composto. Na sua for-ma simples quer dizer : «uso de, valho-me de, aproveito-me de». Quan-do há boa vontade, vizinhança, um se vale do outro. Um bom vizinho gera a boa vizinhança recíproca. «A cortesia com a cortesia se paga.» Jesus enceta, essa relação de boa vizinhança, e tôda a comunidade lhe paga na mesma moeda. Sicar acharia tão extraordinária a atitude de Jesus para com a mais desprezada cidadã da vila como os próprios dis-cípulos. E' provável que êsses não se tivessem comportado mal e desai-rosamente quando fizeram suas compras ; doutra forma não teriam sido convidados a gozar com Jesus a hospitalidade dos cidadãos de Sicar por dois dias em seguida. O incidente inteiro é uma manifestação es. pontânea de superioridade ao nacionalismo e ao racismo, sob a sorri-dente graça do Senhor Jesus Cristo.

10. «Conhecesses o dom gratuito». Ou Jesus é dom gratuito ou êle não se dá. O Doador determina as condições da dádiva. Quem o procura pelas obras, não o acha. «Deus RESISTE aos soberbos, dá graças aos humildes.» O comêço e a continuidade da salvação é dom gratuito. Tudo é por Cristo, de graça, pela energia divina que reside na pessoa de Cristo da qual mana continuamente, e no íntimo do crente, essa graça redentora eterna. Conhecer é a vida eterna, 17:3. E nin-guém conhece pela soberba intelectual. «Tu lhe terias pedido.» E' o suplicante da graça que a recebe ; e o Espírito da graça nos produz no íntimo a convicção do pecado e a insatisfação conosco a fim de que sin-tamos a necessidade da salvação e tenhamos a humildade de pedir e aceitar o dom gratuito.

«O dom gratuito». Esta palavra é coerente com o tom de graça de todo êste capítulo. Mas é a única vez que se usa nos Evangelhos ex-cetuada uma forma adverbial em Mat . 10:8; João 15:22, «gratuita-mente». No livro dos Atos «o dom gratuito» é sempre «o Espírito San-

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to». Vede Atos 2:38; 8:20; 10:45; 11:17. A palavra, porém, é usada mais por Paulo do que por qualquer outro autor do Novo Testamento, Rom. 5:15, 17; II Cor. 9:15; Efés. 3:7; 4:7. E geralmente Paulo se re-fere a Jesus Cristo ou a alguma graça por Cristo dada. Não sei quan-to os samaritanos sabiam do Espírito Santo. Tinham o Pentateuco e esperavam um Messias. Jesus fica no terreno geral da esperança mes-siânica e se identifica com o Messias esperado. Nos vs. 23 e 24 êle não menciona o Espírito Santo, embora nos seja quase impossível ler essas expressões sem pensar na indispensabilidade do Espírito para o culto. Parece-me mais natural, portanto, colocar João ao lado de Paulo no uso dêste têrmo e.pensar que o «dom gratuito» de Deus é seu Filho como Salvador. «Deus amou... deu seu Filho unigênito.» Assim, tanto Paulo como João (na capacidade de repórter do seu Senhor) seguem a êste no sentido fundamental da palavra. De certo também, a Trin-dade é inseparável. Ninguém recebe o Filho sem o Espírito ou o Espí-rito sem o Filho e o Pai. Mas, cronológicamente e lègicamente, na dou-trina e na experiência, Jesus é magnificado pelo Espírito, tem a primazia no regime da graça. Graças a Deus pelo seu dom inefável. E' oferecido, deveras se oferece a si mesmo, a uma criatura desprezível, pois é sem-pre «dom gratuito».

«O dom... e quem». O Dr. A. T. Robertson pensa que Jesus se re-fere a si mesmo como «o dom». E' como o dom de João 3:16 — «Deus amou... deu o Filho.» «O dom» não é algo, de natureza teórica. E' «alguém». E' Jesus, o Salvador.

«Água». Os Sinóticos não citam Jesus falando de «água» em sen-tido metafórico. João o cita quatro vêzes no emprêgo da figura espi-ritual: «nascer de água» (o poder purificador do evangelho, usado pelo Espírito na regeneração) 3:5; «água viva», (salvação plena em Cristo, o Dom), 4:10, 14; e «rios de água viva» que manam «do interior» do crente, 7:38, 39. Mas é indispensável à compreensão desta última pas-sagem não pensar do Espírito como sendo recebido subseqüentemente à fé, à parte de Jesus, numa experiência posterior à salvação. E' neste mesmo texto que Jesus diz: «Venha a mim e beba.» Ora para quem crê, a água da vida fica sendo uma fonte inesgotável no seu interior. E' sem-pre êsse o resultado de crer. E' fase da vida eterna. O Espírito vem com a fé, cava essa fonte eterna na alma crente quando ela crê, fica jorrando em toda a obra de santificação progressiva, mas crer em Jesus é «beber», por todo êste Evangelho. Ele é a água da vida. Ele é insepa-rável do Espírito. E depois do Espírito ser dado em missão pública, no dia de Pentecostes, sua parte seria mais compreensível na salvação e na espiritualidade. O que todos entendiam quando João escreveu seria incompreensível para essa mulher samaritana e mesmo para os após-tolos, naquela ocasião. A realidade existia. A revelação, da parte do Espírito, viria na sua plenitude mais tarde.

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Em nenhuma destas passagens é a «água viva» alheia a Jesus Cris-to e à salvação que êle nos outorga. Os fatores do novo nascimento, «água e Espírito», são o evangelho purificador e o Espírito vitalizador. Mas o evangelho é boa nova. E' a nova de que «o sangue de Jesus seu Filho nos purifica de todo o pecado» (I João 1:7) . Pois a água simboli-za o que o sangue faz, é o que Paulo chama «a lavagem de água com a Palavra».

De certo, é a mais fatal e imperdoável cegueira atribuir à água material e sacramentalista, num literalismo cru e pagão, a maravilhosa eficácia regeneradora que por esta figura é tão claramente atributo de Jesus Cristo e seu eterno Espírito.

O apóstolo voltará a esta sublime figura no Apocalipse (21 :6; 22:1, 17, etc.) .

«Água viva». Equivale tota renovationis gratia — Calvino. «Tu». Enfático. Ah, se conhecesses, serias TU, não o exausto pe-

regrino quem pediria primeiro o dom de água. «Dom de Deus». «Notai as oito dádivas dêste Evangelho: 4:10;

10:11; 13:15; 14:16, 27; 17-8, 14, 22.» (De «The Companion Bible», V, p. 1522.)

4:11. «Com que tirá-la». Ainda permanece a cegueira samaritana, pois são muitos os que pensam que para obter a água da vida é mistér que tenhamos alguma corda comprida e balde seguro com que tirá-la e que se tira um pouco de cada vez e o sedento está sempre voltando para tirar nova quantidade. A heresia samaritana e judaica e romanista e pagã é essencialmente una, a heresia da corda e do balde para tirar a intervalos, do lugar santo, água da vida suficiente para mais uns goles a fim de saciar a sêde. Uns confiam na intercessão dos canonizados (que, no romanismo, gozam erradamente o monopólio do nome «san-tos») como tendo a corda bem comprida, e nos sacramentos e quejan-dos baldes eclesiásticos, para alcançar a água da graça que imaginam estar muito longe. Outros julgam suas próprias orgulhosas pessoas como suficientes para estenderem braço comprido e tirar no balde de sua própria justiça a água que lhes serve no momento. Cada um desses iludidos tem seu balde e sua corda, mas desconhece a água real da vida eterna que Cristo faz manar EM NÓS, dispensando cordas e baldes eclesiásticos e pessoalmente meritórios, pois Cristo vive em nós e é sempre suficiente.

«...tirá-la, senhor». E' o nosso «sr.», título de respeito e cortesia, não «o Senhor» da glória, Deus e Salvador. João emprega o têrmo, às vêzes no pleno sentido da deidade de Jesus, mas essa mulher não chegou a tão sublime penetração no real valor do estrangeiro que se sentava exausto e sozinho. Ela, com seus patrícios crentes, chegariam mais tarde a crer: «êste é realmente o Salvador do mundo.» No começo da

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conversação, porém, Jesus é, para ela, um sr. qualquer, mero cavalheiro desconhecido. Só até êste ponto chegara a idéia da samaritana a res-peito da pessoa de Jesus. No v. 19 sua percepção do valor de Jesus avança ao ponto de reconhecer que êle é um «profeta». Jesus é sr. como ela é sra., na linguagem de cortesia. Mas ela chega a reconhecê-lo como o «Cristo», e os conterrâneos dela o chamam «o Salvador do Mundo». O grau de fé manifestada (em v. 49) pelo nobre de Cafarnaum pôde re-vestir de mais dignidade a saudação, «Senhor». Ele está em caminho para a plena fé dos vs . 50 e 54.

«Poço ... água viva». Ela aceita a hipótese de Jesus, de que êle talvez tenha algo maravilhoso para dar — «água viva» — mas não de-sassocia a frase da água do poço. Ela estava ainda na mesma cegueira daqueles que acham que a água da vida não se desassocia da água ben-ta, água batismal, regeneração pelo batismo infantil. Até sabermos que a «água viva» que Jesus dá nunca é tirada de nenhum poço, não somos evangélicos ou evangelizados nem podemos ser salvos. Confiar em água literal para salvar é incapacitar-se para a «água viva» real, a salvação eterna.

«Donde possuis tal água viva?» E' a curiosidade plebéia que cor-responde ao cepticismo intelectual de Nicodemos e à sua pergunta: «Como podem estas coisas ser feitas?» Jesus não explicou a operação divina a intelectuais ou plebeus. São essencialmente iguais na sua incre-dulidade e cegueira. Ele afirma. Quem quiser venha e beba de graça a água da vida, não porque entende mas por que crê.

12. «Tu és maior?» A forma da pergunta, no original, indica a incredulidade, e exige uma resposta «Não», de modo delicado. Até crer que Jesus é «maior», mais do que homem, Deus o Filho, o caminho da salvação é ainda obscuro.

«Tu és maior?» Hovey sugere que ela pedia mais do que água de um poço, talvez que a água jorrasse da rocha como no caso do milagre de Moisés no deserto. Se o estranho e maravilhoso forasteiro fendesse um rochedo ali no próprio Gerizim e desse água viva, em manancial inesgotável e doce, aquela mulher traria sôbre si e seu povo uma bênção sublime, no terreno material. E' a altura de sua fé, até aí.

«Nosso Pai Jacó». E' algo misteriosa a razão por que Jacó cavou êsse poço. David Smith diz : «Havia fontes naturais na vizinhança como a de El Askar que salta do Monte Ebal. As águas delas, porém, são sa-lobras, desagradáveis ao paladar e prejudiciais. O poço de Jacó tem mais de cem pés de profundeza, vem das entranhas da terra, dava água fria, doce e salubre. Não era de admirar, pois, que o povo de Sicar, como seus descendentes hoje em dia, estivesse acostumado a trazer de lá a água que bebia.» (19) Jacó, pelo esfôrço que fez, daria uma bên-

(19) "In the Days of His Flesh", p. 74.

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cão à comunidade; teria uma riqueza da primeira necessidade para si e para seus filhos, pastôres como eram; e isso faria sua moradia sau-dável e segura. Talvez por essas razões êle originalmente cavou o poço que é uma bênção já há tantos séculos. O poço tornava o povo indepen-dente do severo verão de julho a outubro. (Mas vêde outra nota. Tais poços, quando conservados em boa condição, têm água por muito tempo.)

«Nosso Pai Jacó». Jesus não discute a paternidade alegada. Nee-mias a repudiou. Ela sabia disso. Sua teoria era falsa e ela sabia que êle assim pensava. Os samaritanos eram uma heterogênea mistura de sangues e paternidades. Os «Jacós» que lhes deram o sangue e a vida eram muitos, sendo o patriarca Israel um entre muitos que ela podia ter citado na sua genealogia. E' de notar que ela não disse : «De nosso Pai, Israel». Ela era filha de «Jacó», suplantador, o manhoso, e havia tantas origens nacionais em seu sangue como havia maridos em seu passado. Mas tudo isso nada tem com a água da vida, com a salvação, com a graça de Deus. Jesus não contradisse o nacionalismo dela nem o apoiou. O evangelho está acima de todos os nacionalismos e racismos e, sem distinção, oferece a graça divina a todos que a pedem. Não me lembro de nenhum samaritano cujo nome o Novo Testamento mencione, senão Simão Mago. Provàvelmente êsse nacionalismo dêles, juntado a um complexo de inferioridade, fêz que, mesmo sendo crentes, edifi-cassem um muro de preconceitos e desconfiança ao redor de si e não pe-netrassem livremente na larga corrente do cristianismo apostólico. O ministério de João Batista, de Jesus, do eminente evangelista Felipe e de todos quantos obedeceram a ordem de Jesus de ser testemunhas em «TODA A SAMARIA», teve fruto, muito fruto, sem dúvida alguma. Mas não lemos de apóstolo, diácono, evangelista ou pastor samaritano algum que enriquecesse o reino de Deus em outras terras. O cristianis-mo samaritano tudo recebeu, nada deu, ficou parecido com o Mar Mor-to. A desconfiança e o nacionalismo o fizeram murchar. Deus pôde vencer o nacionalismo de. Pedro e de Paulo, mas o crente samaritano ficou sendo primeiramente nacionalista samaritano, e, em segundo lu-gar, crente. Há muitos setores do vasto campo missionário, que é o mundo, onde se verifica a mesma miopia. Jesus dá livremente, mas os que recebem sua graça não dão senão aos do seu circulo, da mesma raça ou nação. E o dom guardado fica estagnado e, afinal, indesejável e os que o desejam, procuram-no onde é fresco, novo e puro. Triste parábola é a vida cristã samaritana, a despeito de todos os ministérios do Sal-vador, do Precursor, dos apóstolos e evangelistas. Os gentios tomam logo a dianteira na história do reino de Deus, mas os amargurados e desconfiados nacionalistas da Samaria fazem apodrecer seu cristianis-mo numa geração.

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13. «A intervalos». O Mestre aqui representa o ponto de vista da mulher samaritana, em vivo contraste com o evangelho que êle pre-ga. Por mais que desagrade aos sacramentalistas e advogados da sal-vação a prestação de boas obras, êle identifica esse sistema com a he-resia samaritana de corda e balde e visitas periódicas aos poços. O tem-po presente pode indicar ação contínua, intermitente, periódica. O ao-risto indica ação considerada como um ponto, por mais longa que seja sua continuidade e seu efeito. O beber a intervalos, eis o samarita-nismo e sistemas religiosos iguais. O beber de vez, eis o evangelho de Jesus, como Jesus o pregava. (Vêde o estudo introdutório sôbre êste assunto.) Beber é crer, mas envolve o futuro. «Permanece para a vida eterna.» Quem beber, na sua religião, apenas a intervalos, na quares-ma, nos dias santos, nas horas dos sacramentos, nos momentos de de-voção genuflexa, ignora o evangelho que Jesus pregava. O evangelho dos tais não é João 3:16, a boa nova da vida eterna pela fé. Um evan-gelho que não seja essa boa nova de vida eterna em Cristo Jesus é pre-gação falsa para a qual Paulo invoca o anátema de Deus. Não há dois evangelhos. Qualquer outro é demais e é amaldiçoado e é maldição para as suas vítimas. Não deixa de ter mensagem para todos êste Ca-pítulo IV a respeito daquele povo remoto e pequenino da Samaria. Mui-tos prelados e intelectuais e soberbos bem podem aprender dessa hu-milde samaritana, o que ela aprendeu de Jesus. «Quem beber de vez da água que eu lhe darei, absolutamente nunca mais terá sêde, mesmo na eternidade.»

«Cada um que sempre diàriamente está bebendo desta água» é o povo samaritano sem Cristo. Jesus faz deliberada mudança abrupta do tempo do mesmo verbo: «Quem beber de vez da água» da salvação dada por Cristo, tem a vida eterna. «Nunca mais terá sede», isto é, nunca volta ao estado de pecador condenado e sem Salvador. A salvação que êle obteve de vez mediante a fé torna-se força viva, pujante, voluntá-ria, intima e eficaz. E' «vida eterna». N ytai como «eterna» é afirmada positivamente pela própria palavra geralmente usada para a idéia, e ne-gativamente também, de modo a dar absoluta certeza da doutrina.

14. «Absolutamente nunca mais». O estudante deste Evangelho vê constantemente que a garantia da vida eterna do crente, tanto na terra como no céu, não está presa meramente ao sentido de uma só palavra. Jesus afirma que a vida que êle dá é eterna, sim. Mas nega também, e de muitas maneiras, que seja menos do que eterna. Dizer que o que teve sêde muitas vezes por dia, agora nele nunca mais terá sêde é uma das maneiras de dizer seu evangelho do lado negativo, ne-gando em figura forte e vivaz que a vida que êle dá seja menos do que eterna. Não há na língua grega mais forte maneira de negar do que temos aqui. Assim Jesus nega a possibilidade da perda da salvação. Isto é da essência do seu evangelho. E é em semelhante contexto que

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êle afirma durar a salvação para a eternidade. Algum literalista que ambiciona ihterpretar uma palavra no sentido limitado de sua etimolo-gia, vício imperdoável e falsificador de muitas palavras bíblicas, talvez venha dizer que Jesus sèmente disse: «para a era, para a época, para um aion». Onze vêzes temos neste Evangelho a frase: 4:14; 6:51; 6:58; 8:35, 51, 52; 10:28; 11:36; 12:34; 13:8; 14:6. E' traduzida por todos «nunca», em declarações negativas, «sempre» em declarações positivas. Duvido que haja intérprete sério que a traduziria de outra maneira, a não ser em passagens onde foge da verdade evidente para amparar doutrina falsa. Há passagens onde um ciclo ou era da revelação é con-trastada com outro. Temos tais em 9:32, neste Evangelho, mas é tra-duzido «desde que há mundo», por tôda. a extensão da era que é a his-tória da raça humana inteira. Uma vida que durasse por essa extensão de milênios já seria demonstradamente eterna, pois, no caso do indiví-duo, o levaria para a salvação aqui e a glória no céu, PERMANECEN-DO já inúmeras gerações. Jesus fala em Mat. 12:32 de uns para os quais não há perdão nem neste mundo (era) nem no vindouro. Assim um aion é ou esta vida ou a vida do além-túmulo, nos casos onde há com-paração entre uma época da revelação ou providência divina e outra época do reino de Deus. O contexto esclarece quando a «era» é limi-tada,. Mas nessas passagens em que João cita Jesus, a vida eterna dura para «a época», uma «era» definida. Só há duas eras no horizon-te da salvação, esta vida e a vida além. Se a vida do crente dura por tôda a época do tempo, já é dêle quando entra na eternidade. Mas a mais natural interpretação da linguagem A ERA (aion) é a que se refere ao além-túmulo, a era que vem depois do tempo, o céu que sucede à terra. Assim Jesus afirma a permanência dessa vida, durando para a outra época, a eternidade, nunca terminando «na época» (do além ou do aquém, seja qual fôr). Em muitas passagens temos o plural, que abran-ge ambas, e tôdas as épocas. As vêzes vida eterna é afirmada especial-mente acêrca da nossa existência depois da morte, como em Luc. 18: 30, que contém gloriosas promessas para esta vida (neste tempo) e, «na era (aion) vindoura, vida eterna». Há só duas divisões da existên-cia humana, em tais passagens. Salvação que dura por qualquer uma das duas já durou tempo demais para a teoria da perda da salvação por crente algum neste mundo. Certamente nunca é ensinada a perda de crentes aperfeiçoados lá nos céus, pois sua vida daquela era seria tão eterna quanto é a própria eternidade. Nem vale a pena especular a respeito. Se um aion em tais Escrituras se referisse às estações do ano, às dinastias de uma familia real, aos breves períodos sucessivos da história humana, então a linguagem poderia ser torturada para indi-car que a vida que Jesus dá seria coextensiva com um curto período. Mas só há duas épocas no evangelho, esta vida e a outra. E quando não está no horizonte da linguagem um contraste deliberado entre as duas,

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então o alcance da palavra eterna, ou nunca ou sempre abrange am-bas as eras, esta vida e a vida do além, garante a salvação. eterna, po-sitiva e negativamente, por tôdas as maneiras em que linguagem hu-mana é capaz de afirmar o evangelho da vida eterna. João cita declara-ções de Jesus que nos garantem a vida «para a era» definida, a vin-doura, a eternidade. Paulo faz o mesmo. «Ele pode guardar o meu de-posito até àquele dia», o dia final. Uma das deliberadas contribuições suplementares de João ao que faltava nos Sinóticos, pelo menos em abundância, é precisamente dar-nos repetidas vêzes o testemunho de Jesus à suprema garantia do evangelho, a magna bênção da salvação, a vida eterna em. nosso Senhor Jesus Cristo. Como João acrescenta o duplo «amém», ao afirmar esta verdade, Paulo acrescenta o plural das eras, em suas afirmações a respeito do horizonte mais remoto imagi-nável para a extensão das bençãos prometidas em Jesus.

14. «Quem beber de vez...» «Há um sentido em que um homem recebe Cristo e sua graça urna vez para sempre. Sua condição é per-manentemente mudada, e sua sêde é diferente. O verdadeiro crente não precisa olhar para longe, para uma fonte da graça de Deus: esta já foi aberta no seu coração, nova, pura e doce. Em outras palavras o Espírito e a verdade de Deus entraram na vida de sua alma. Ele pode beber de uma fonte que Cristo lhe abriu no íntimo.» (20)

«Quem beber de vez... nunca mais de modo nenhum terá sede.» Saciar a sêde física é uma série infinda de beber muitas vezes e cada vez para efeito fugaz, de pequena duração e eficácia, sendo repetido o mesmo ato sempre. A salvação que Cristo dá não é parecida com tal sistema. Não são inúmeras e incessantes jornadas para o poço do mé-rito e alivio, sempre voltando com uma pequena satisfação pelo mo-mento.

Jesus afirma valor e conseqüências eternas da salvação mediante a fé. Alguns pensam que o contraste é entre um sistema de salvação em doses homeopáticas e o remédio tomado de um gole e com tal efeito que se acaba todo o tratamento de vez.

Não é isso o contraste que Jesus estabelece. Ele reconhece que h saciedade da sêde tem de ser perene. Mas êle estabelece a fonte do ín-timo do crente. Logo o homem salvo tem seu Salvador no coração, que é «Cristo em vós, esperança da glória», diz Paulo. Não é preciso fazer uma viagem ao chafariz eclesiástico ou sacramentalista ou sacerdotal. Sua alma é qual fortaleza inexpugnável cujo abastecimento de água viva está dentro, sob seu próprio controle, inacessível a qualquer inimigo, tirano ou explorador. Cristo operou a redenção de vez e eterna no Cal-vário. Nós a aceitamos de vez no momento de crer. Então o resto da

(20) The American Commentary on the New Testament, Vol. III, in loco, por A. Hovey.

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eternidade é fonte íntima e inesgotável de vida, santidade, paz e poder. Não agrada ao coração carnal pensar assim da salvação. Mas se a Jesus assim lhe agradou revelar a natureza da sua salvação, que fará o pecador? Rejeitará a veracidade do Salvador? Fará outro sistema religioso no qual êle mesmo seja salvador de sua própria alma por sua própria religiosida-de? Será o que os profetas chamam «cisterna rôta». Nem poço de Jacó é. Mas a salvação de Jesus é fonte íntima de graça divina e dessa fonte ma-nam rios de água de vida, pela obra perene do Espírito Santo na vida eter-na do crente.

«Uma fonte». «Nova vida é um estado transcendental em que o rio da vida corre na alma sem impedimento. 'Mana de fonte escondida, não vem por aqueduto' (Teresa) ... Com esta narrativa compare-se a declaração de Filon: Os que buscam a verdade são os que cavam poços e muitos inves-tigadores cavam poços sem achar água. Aliás isso é figura do fracasso de tôda a sabedoria humana: o ideal conhecimento de Deus, por êle dado, é manancial que jorra em abundância e espontâneamente.»

«Inácio disse: 'Não há em mim um fogo que arda por ser nutrido de motivo carnal, mas sim água viva, e ela fala em mim: Vem ao Pai.' Essas palavras de Inácio parecem claramente reminiscências desta história. Fo-ram escritas em 110-117 d. C. Este Evangelho, pois, é de tempo ante-rior.» (21)

«Água... nele para sempre». «A água da fonte de Jacó tinha dois defeitos, o de estar longe, e o de satisfazer a sêde apenas por um pequeno prazo. Cristo oferece água que sacia a sêde perenemente e permanece na pessoa que dêle beba.» (21 a)

«Uma fonte». A salvação não é comparável à cisterna mas à fonte. «Jorrando constantemente». Fonte artesiana e inexhaurível é a vida

de Jesus no coração do crente. Não é uma água dada lá no passado e que fique estagnada, palúdica, impura e vil. Age. Move-se. Mana. Jorra. VIVE, pois é vida eterna, não estagnação incurável, não morte. E' fonte artesiana, não Mar Morto.

15. «Dá-me de vez.» E' o pedido, afinal. Mas é feito mecânicamen-te, mero eco da linguagem dele, pedido de papagaio. Ele o deixa de môlho e trata de convencê-la do- pecado, pois a convicção do pecado é sempre in-dispensável para a salvação. Ninguém pede, sincera e inteligentemente, salvação de um perigo ou estado atual cuja culpa e desgraça ainda não percebe ou entende. Ela não quer obter com seu pedido coisa alguma mas apenas evitar a jornada física, um alívio para a inerente preguiça huma-na. E' o anelo da carne, ganhar algo por nada, no terreno dos valores ma-teriais. Mas êsse mesmo anelo nem quer receber o dom de Deus gra-

(21) "The New Testament in Modern Speech", por Weymoutb, sendo estas palavras uma nota de J. A. Robertson, na última edição, depois da morte do autor.

(21 a) "The Expositor's Greek Testament", Vol. I, p. 726, por Marcus Dods.

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tuitamente, pois tal humildade lhe ofende a estima própria. Ela perceberá, com a meditação. Jesus não insta para uma decisão agora antes que ela tenha entendido o evangelho. Vira para outro assunto que ela fàcilmente pode entender, o seu próprio pecado. Aprendamos com Jesus a não exigir «decisões» prematuras, pois serão falsas.

«Esta água... para que eu não venha a sentir sêde nem passe... ti-rar água». Ela ainda não entendeu o evangelho. Ainda não desassociou «água viva» do balde e da corda e do poço. Ainda está no materialismo que não olha acima da água literal para a bênção divina. Ela não era sa-cramentalista, mas o pobre sacramentalista vive no baixo nível da igno-rância e da incredulidade dela. A única água que está na visão dela e dêles é água que se tira da terra, não a água que vem do céu, de Cristo.

16. «Tornou-lhe: Vai...» E' impossível revelar a essa mulher a na-tureza da salvação. Ela nada enxerga acima do balde, do pote, da corda e do poço. Só água material é perceptível à sua mente obscurecida pelo pe-cado. Pois bem. Jesus muda de tática. Dá uma investida contra o pecado, e o pecado mais íntimo da vida, suas relações sexuais. Ela vivia amasiada. Aí Jesus ataca a complacência dela no ponto mais vulnerável de sua vida e conduta.

Podemos aprender muito do Salvador. Nunca é possível a fé sem pri-meiramente haver o arrependimento. E isso Jesus sabia. E depressa avançou logo que a cortesia o permitiu, para despertar nela o arrependi-mento .

Avalie o leitor que Jesus, segundo a história que estamos estudando, havia proferido apenas 76 palavras quando abordou o assunto mais melin-droso e vergonhoso da vida dessa pecadora. O espelho de sua mente divi-na e pura reflete para a consciência espantada dela o negrume imundo de sua vida diária. Ela é ferida e logo procura escapar por um subterfúgio de problema teológico. Geralmente, quando um pecador se interessa em solucionar problemas teológicos, isso é escapatória a fim de não considerar seus próprios delitos à luz da Palavra de Deus. Jesus não evitou o proble-ma teológico, tomou francamente posição contrária ao ponto de vista dela e declarou-lhe que a salvação veio pelo canal dos judeus, como nação esco-lhida, e não pelos samaritanos ; mas pregou um culto superior às con-siderações de racismo, nacionalismo e de santidade presa a dias e lu-gares. Ao fim dessa franca e devastadora palavra, contrária a todos os preceitos tanto dela como dos judeus, ela está pronta a falar do Messias e receber a nova palavra franca de Jesus de que êle mesmo era o Messias que ela esperava.

Quando foi salva essa mulher? Não sabemos. Talvez ela mesma não soubesse. Parece meio convencida quando avisa aos homens da cidade . Abandonou logo seu companheiro de vida impura? Houve uma igreja mais tarde ali, talvez visitada por Filipe, o evangelista ? Ela foi batizada por

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ordem de Jesus ? Não sabemos. Parece ser parte da grande «colheita para a vida eterna» ali e Jesus encheu-se de gôzo ao contemplar êsse fruto. E' tudo que sabemos, e basta. Só há ainda o fato evidente que ela conti-nuava no meio, fator primacial da evangelização da cidade, pois certos crentes se envergonhavam de dever sua salvação à iniciativa de uma cria-tura tão ignóbil e, com mais puritanismo do que amor, exclamaram: «Já não é por causa de tua fala que cremos ; pois nós mesmos sabemos que este é realmente o Salvador do mundo.» Evidentemente Jesus pregou. De-pois do arrependimento, veio a fé aos corações abalados por sua mensa-gem. E acharam nele a salvação eterna. Vêde o estudo especial sôbre «O Evangelho de Jesus como Ele o Pregou», Vol. I, págs. 57-67.

«Vai ... vem.» Jesus ainda tem lugar para ela, na frente da procis-são dos investigadores. Ainda chama: VEM. Manda que venha outra vez, depois de chamar o companheiro ilícito, amasiado. A conversão se daria talvez ao se arrependerem juntos, em abandonarem-se mutuamente, e em se unirem cada qual por si a Jesus pela fé. Antes da salvação, ela tem de encarar o pecado escandaloso em que vive e procurar, com o com-panheiro, avaliar e repudiar seu pecado diário. Vai só. Vem com o outro criminoso. Buscam salvação e perdão juntos. Ela obedeceu e seu teste-munho não ficou para um homem só. Avisou a população tôda. O evan-gelho no coração estava em todo êsse tempo germinando e daria fruto para a vida eterna. O Batista era o precursor para a Palestina tôda, inclusive a Samaria, e para a Diáspora judaica em tôdas as terras. Mas essa hu-milde mulher era a precursora em Sicar.

«Teu marido». «A palavra grega assim vertida significa homem ou marido. Ela tinha seu homem, mas não era seu marido legítimo.» (22)

«Teu marido». Tudo isso Agostinho alegoriza numa de suas prédi-cas. O «marido» da alma é Jesus. A «sexta hora» é a sexta época nas idades da história humana. A mulher samaritana é a igreja, ainda não justificada, mas prestes a ser justificada. Os «cinco maridos» são os cin-co sentidos físicos. «Chama teu marido» significa «chama o Espirito San-to». «A salvação é dos judeus», se refere ao Israel espiritual. O cântaro significa a concupiscência. Os dois dias que Jesus passou ali são os dois preceitos de que dependem tôda a Lei e os Profetas. Maneira mais abo-minável de torcer as Escrituras, e de conseqüências mais arbitrárias, nun-ca homem algum inventou. O estudo das Escrituras assim parece maté-ria para os mais infelizes habitantes do manicômio.

17. «Marido não tenho.» A palavra de Jesus a essa mulher amasiada é a mesma que João Batista dirigiu a Herodes, o rei, acerca de Herodias: «Não podes tê-la; não te é lícito.» Sendo a união ilícita, cada ato de união sexual é um novo crime contra a lei de Deus e dos homens. Pode o pe-cador ou a pecadora pensar que uma relação dessa natureza é um só pe-

(22) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 64.

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cado, a formação do pacto de assim viverem maritalmente. Mas o juízo de Deus não é assim. Seremos julgados segundo «os atos praticados no corpo». A vida amasiada é um longo rol de crimes perante a face de Deus e assim figura nos livros do juízo divino. Não é muito agradável dizer isso a uma senhora estranha, cinco minutos depois de começar a falar com ela, mas Jesus o disse, francamente mas com delicadeza. Eu bem me lembro de certa vez em que preguei uma semana e havia um homem que se de-clarou convertido. Os crentes lhe perguntaram várias coisas e, entre ou-tras: «Você é casado com a mulher com que vive ?» Ele ficou triste e ofen-dido e perguntou com brio: «Que tem a religião com isso ?>> O evangelho bole com a vida. «Não adulterarás» é uma das dez partes da moral ele-mentar e uma vida amancebada não diminui o pecado de cada ato crimi-noso praticado na relação proibida pela lei de Deus. Ao moço rico, Jesus enumerou os dez mandamentos e pôs em primeiro lugar: «Não adultera-rás.", E' o primeiro mandamento a ferir a consciência desta «geração per-versa e adúltera».

18. «Cinco maridos». O divórcio entre os judeus era empreendimen-to puramente individual, geralmente por iniciativa do marido. Visto que baseavam seus costumes na Lei de Moisés, que por sua vez se ajustava à «rudeza do coração» do povo de Israel quando fora recentemente redi-mido da terra pagã do Egito, a única formalidade exigida era um escrito de divórcio, dando as razões. Assim, não havendo acusações contra a cas-tidade da ex-espôsa, ela seria aceitável por outro marido. Já era grande progresso nos dias de Moisés, a favor dos direitos da mulher na socieda-de. De certo, se ela ou êle fôsse culpável de adultério, deviam ser proces-sados formalmente perante as autoridades teocráticas e morrer apedreja-dos. Era para evitar essa tragédia que José ia deixar a Virgem Maria, discretamente. Jesus só admitia divórcio por um motivo, o adultério; e admitia que o membro inocente da união se casasse de novo. E' possível, pois, que esta mulher samaritana estivesse «casada» com esse sexto «ma-rido», de acordo com o relaxamento dos maus costumes sociais que Jesus condenava e considerava ilícitos perante Deus. Ao dizer: «Chama teu ma-rido», êle talvez reconhecesse a união formal dos dois. Mas ao revelar a sucessão ilícita de divórcios e casamentos, êle declara nula perante Deus a relação conjugal dela com aquele que ela chamava «marido». Certa-mente não devemos supôr que essa mulher fôsse mulher pública. Talvez a vida dela estivesse ao nível tolerado pela comunidade. O padrão de Jesus, porém, é a monogamia inquebrantável, a não ser por um único pecado. À luz deste ideal é que êle despertou a consciência dela. Mas se ela real-mente vivia casada, segundo os relaxados costumes da Samaria, então é mais fácil entender como ela exerceu imediatamente uma influência tão grande sôbre tôda a vizinhança, a despeito de sua reputação um tanto des-

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favorável (v. 42). Sua posição moral na comunidade seria exatamente a de muitas «estrêlas» do cinema, hoje em dia, e de muitos ricos.

«Cinco maridos». «Provavelmente, muitas mulheres, tanto na Sarna-ria como entre os elementos mais pobres dos judeus, tinham urna histó-ria parecida... A situação ia ficando semelhante ao estado atual dos paí-ses maometanos. Lane nos diz: «Há poucas pessoas no Cairo que não se tenham divorciado ao menos de uma esposa, se se casaram há tempo.» Ele cita o caso de muitos que dentro de dez anos teriam vinte ou trinta espôsas... Jerônimo (Ep. ad. Ageruch, 123) menciona uma senhora ro-mana que tinha possuido vinte e dois maridos.» (23)

«Cinco maridos». O Dr. A. E. Garvie sugere que quando Jesus se pu-nha em contato com outra pessoa, «realizava-se uma transferência do con-teúdo da consciência própria da mesma para a consciência própria de Je-sus». Seu espírito corno que refletia, qual espelho, o que se passava na mente do interlocutor. Assim êle discerniu logo na consciência da samari-tana seu passado, suas relações com os cinco companheiros de sua vida imoral. Nós vemos hoje em dia maravilhas nessa questão de um ler o pensamento de outro, em terreno puramente natural.

Quão digna de fé, pois, é a capacidade sobrenatural da pessoa divina e humana de Jesus para discernir o caráter e a história dos pecadores. Mesmo nos dias de sua carne parece que se podia dizer: «Não há criatu-ra que não seja manifesta diante dêle, mas Vidas as coisas estão nuas e descobertas aos olhos daquele a quem havemos de dar contas» (Heb. 4: 13) . «O desejo que Jesus tinha de dar a ela sua salvação pôs em exercí-cio esta sua capacidade que em outros tempos ficava quiescente, e dava-lhe penetração e percepção sobrenatural dos pensamentos e sentimentos das pessoas com que êle se relacionava.» (24)

«Cinco maridos tiveste.» Diz o Padre Rohden sôbre esta mulher: «A samaritana bebera os prazeres sensuais em grande abundância, mas eram águas salobras, êsses gozos; não conseguira matar a sede; sen-tia o coração devorado dum ardor cada vez mais veemente, ardor que a fizera mendiga de muitos homens; ia do desejo ao gôzo, e do gôzo ao desejo — e no fim estava mais insatisfeita que a principio.» (25)

19. «Estou vendo... um profeta...» Profeta é órgão de revelação divina. Jesus mostrou a esse coração perverso suas credenciais, sobrena-turalmente refletindo no espelho de seu conhecimento divino e com pala-vras de juízo, o mal arraigado nessa vida perdida e perversa. Ele era «o Profeta». Deu revelação convencedora aí num instante e, como tôda a re-velação divina, esta se verificou e se confirmou sem o auxílio de uma au-toridade eclesiástica exterior e infalível que a oficializasse. Foi direta.

(23) "Expositor's Greek Testament", Vol. 1, p. 727. (24) "Studies in the Inner Life of Jesus", p. 187. (25) "Jesus Nazareno", p. 90.

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mente ao coração recipiente e se acreditou pela sua verdade e seu poder. «És profeta.» Ela tinha melhor noção do que fôsse um profeta do

que muitos estudantes errados do assunto hoje em dia. Estes se dividem em duas classes. Para uma, qualquer pregador da verdade é um profeta. Para a outra, profeta é o vidente que vaticina sôbre o futuro. Ambas essas classes de estudantes estão erradas. O pregador de nossa época pro-clama verdades que outros nos revelaram na Bíblia. Mas êle não é órgão de revelação. Fica iluminado pelo Espírito para entender, assimilar e de-vidamente aplicar aos nossos problemas a revelação dada aos profetas e apóstolos e preservada e inspirada nas Escrituras. Nenhum de nós é profeta. O profeta, contudo, não era apenas um homem que descortinava o futuro. A samaritana reconhecia que a função do profeta poderia reve-lar-se nos problemas da atualidade e da interpretação do passado. A êle cabia revelar verdades e dar certeza, dissipando dúvidas. Jesus é «o Pro-feta».

«És profeta.» O Padre Rohden diz: «E logo, para cortar cerce tão melindroso assunto, abandonou jeitosamente o terreno moral e entra-nhou-se pelas brenhas das discussões dogmáticas que então se agitavam entre judeus e samaritanos sôbre o lugar do culto religioso.» (26)

20. «Nossos pais». «O argumento, também, de nossos pais é forte. As opiniões, como a eletricidade, passam por um fio, segundo essa hi-pótese. Aquilo que nossos pais e nossos avós creram nos parece necessá-riamente verdadeiro. Quanto mais fundas as raízes de uma crença, tanto mais florescente sua flor.» (27)

«Nossos pais». «A religião de nossos pais» é a desculpa que tanto ale-gam contra Jesus até o dia de hoje. A religiosidade pode ser imposta pelas obrigações do ambiente — a família, o Estado, a Inquisição, o co-mércio ou a roda social ou de classe. Mas a salvação não vem da heredi-tariedade nem do ambiente. Nasce no espírito pela fé em Jesus... O se-gundo nascimento é independente dos sêres humanos, e quem busque escra-vizar-se aos tais é incapaz da experiência da salvação. E' a salvação de Deus em Cristo que tudo vale, não a religião dos pais, a qual pode ser me-ramente a «tradição dos homens» que impossibilita o culto aceitável a Deus e serve de barreira entre a alma e a fé em Jesus Cristo como único e todo suficiente Salvador. A ilustre e simpática Madame Chiang-Kai-Shek, quando alguém lhe perguntou, há pouco, como foi que ela se tornou cristã, respondeu: «Nasci assim. Meus pais eram cristãos.» Não é pos-sível. Ninguém nasce cristão. A salvação não é em terreno natural; é sobrenatural, pela obra e graça do Espírito regenerador. Espero que a ex-periência da nobre representante do grande povo chinês tenha encontra-do em Jesus Cristo mais do que sua linguagem que nessa ocasião indicou.

(26) "lesas Nazareno", p. 91. (27) "The Life of Jesus Christ", p. 743, por Henry Ward Beecher.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO V7

Creio que sim. Muita gente que fala das idéias que lhe foram doutrinadas, não analisa bem as riquezas de sua própria atitude fundamental para com Jesus. Mas diremos, com a fidelidade do crente na veracidade de Jesus Cristo: quem não tiver coisa alguma da parte de Deus senão a natureza decaida e peçaminosa que herdou de seus pais, no nascimen-to da carne, é alma perdida, ainda destituida e necessitada da salvação. Resta-lhe ainda crer e ser salvo.

«Nesta montanha». O deão anglicano Stanley nos informa que, no rolo samaritano do Pentateuco, no trecho do Decálogo, há um undécimo mandamento acrescentado: «Edificareis um altar sobre o Monte de Geri-tzim e g:mente ali dareis culto a Deus.» Era o pecado de acrescentar algo à Palavra de Deus. Substituia a revelação divina pela tradição dos ho-mens .

«Nesta montanha». «Prova, não premeditada, de que o autor contem-pla uma cena memorável e histórica. A mulher se refere sem dúvida a Gerizim.»

«O lugar». «A santidade de lugares especiais é negada. O culto não é aceitável pelo ritual, pelo celebrante, pelas paredes sacrossantas, mas de acôrdo com a têmpera dos adoradores.» (28)

«E' necessário render culto.» A mulher sentia a necessidade de culto e de culto no lugar santo determinado. Jesus emancipou a adoração de Deus de sua escravatura aos lugares santos. Que alguém empreste «san-tidade» a um lugar terreno, uma casa material, uma imagem de barro ou metal, um cerimonialismo físico, é voltar à época «a.C. ». «D . C . » depois de Cristo sabemos que a santidade não reside em objetos materiais mas no espírito, e somente Deus é digno de culto e adoração. Disse o prof. J. B. Weatherspoon: «Peca o homem que preste culto a algo que seja inferior a êle mesmo.»

«É indispensável prestar os cultos.» E' o exagero da opinião popular. Jerusalém era o único centro nacional dos cultos judaicos. Mas cultos lo-cais dos judeus eram permissíveis, e as sinagogas constituíam reconhe-cidos centros de culto judaico em tôda parte do mundo. Havia sinagogas até em Jerusalém, uma no próprio templo. E os cultos sabáticos dos ju-deus se realizavam aceitàvelmente nelas. Jesus as freqüentava todos os sábados. Além disso, eram domésticos ou individuais muitos cultos e de-voções dos israelitas. E' exagero, pois, a linguagem da samaritana. Jesus a acusa de ingnorância no seu próprio culto, e ainda mais ignorante era do culto dos judeus.

21. «Nem nesta montanha». Israel segundo a carne oferecia seus cultos nos «altos», abominação a Deus por dois motivos. Acomodava às superstições locais o culto que devia ser universal e imutável. E tinha um Deus materializado, de quem o adorador se aproximava mais perto no

(28) "Church, Ministry, Sacramento in the New Testament", p. 102, por W. T. Whitley.

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«alto» do que no vale. O judaísmo teve reprodução parcial em muitas ou-tras religiões, no seu pior aspecto, as quais adornam também com seus sím-bolos e templos todas as «Penhas» e penhascos. Diz Fairbairn a este res-peito: «Multidão de templos significa multidão de deidades, e não sim-plesmente de homens e lares onde moram. O homem que adore a Virgem ou reze a S. José pedindo um favor para si ou uma vingança contra o ini-migo, que encete romaria a Santo Antônio em Pádua ou busque obter de S. Francisco em Porciuncul• cura para o corpo ou alma, achará em cada lugar um deus diferente, um ente condicionado pelo meio ambiente em que é adorado.» A êsses «altos» o autor citado opõe o único mediador, e declara: «Cristo é o substituto do lugar santo na adoração.» (29)

«Rendereis». E' mandamento ou profecia? Ordena que fôsse rendido culto nas duas montanhas consideradas sacras? Ou prediz que o culto aca-baria nesses dois centros ? Nem uma coisa nem outra. Sempre haverá culto em Gerizim, para os gerisinitas, e em Jerusalém, para os hierosoli-mitas. Mas vós, os samaritanos, rendereis culto, como crentes, cada reba-nho em sua igreja local, cada indivíduo em seu próprio coração, cada fa-mília cristã em seu próprio culto doméstico. Vemos realizado êsse ideal de independência dos «lugares santos», na missão de Filipe, e de Pedro e João, na Samaria, Atos VIII.

22. «Rendeis um culto que não entendeis.» «Sabeis a quem deveis dar culto, mas não o conheceis» (Westcott). «Os samaritanos rejeita-vam os Salmos e os Profetas e assim era-lhes impossibilitado o conheci. mento mais amplo de Deus.» (30)

«Um culto que não entendeis». Conhecer a Deus em Cristo é a sal-vação, a vida eterna. Saber o que nos tem sido revelado, e tornar isso a base de um culto e de uma religião espiritual e obediente, é elemento vi-tal para o crescimento na vida cristã e para o serviço a Deus. O saber não salva, mas orienta. Conhecer a quem tenho crido e saber o que êle reve-lou para minha mente aceitar e apoiar são idéias gêmeas da vida cristã. Por isso Hovey diz : «Por ter rejeitado grande parte da verdade que Deus revelara na história sacra, nos santos cânticos e na múltipla predição dos propósitos redentores de Deus, os samaritanos se haviam colocado na posição de um povo que adorava a um deus desconhecido.» (31)

«A salvação vem de origem judaica.» Essa é a idéia. Não se diz que a salvação «é dos judeus», como se fôsse privilégio ou patrimônio ou mo-nopólio dêles. A preposição indica origem. A salvação tem partido de Israel, quanto a sua origem histórica. Os samaritanos eram e são um mo-vimento à parte da continuidade da revelação messiânica que culminou em Jesus. Esdras e Neemias estavam certos ao ligar os cativos, que vol.

(29) "-The Philosophy of the Christian Religion", p. 555. (30) "Word Pictures in the New Testament", por A. T. Roberston, Vol. V. pág. 66. (31) "The American Commentary on the New Testament", Vol. III, p. 117.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 79

tavam à Palestina, com o templo, com Jerusalém, com o regime mosaico, pois êsses são os canais históricos da revelação divina e da sucessão da esperança messiânica. Nem o bastardo templo em Gerizim nem o povo meio-pagão de Samaria tiveram jamais lugar algum na revelação divina. São pecadores, a serem salvos pelo Messias judaico. Nada têm de contri-buir para a redenção do mundo.

«A salvação parte do meio dos judeus.» B. F. Westcott atribui à ve-lha dispensação a tarefa de oferecer o meio do qual a nova surgiria. E Riggs parafraseia essas palavras assim: «O vosso povo, ao rejeitar as mensagens dos profetas, perdeu a revelação maior e mais completa que Deus por intermédio dêles deu de si. Por isso vós prestais culto em relati-va ignorância.» (32 )

«Um culto que não entendeis». «O judeu e o samaritano igualmente adoravam ao Deus verdadeiro. Sômente o judeu, porém, o adorava com aquela crescente inteligência que correspondia aos últimos estágios da re-velação.» (33)

23. «Está chegando a hora...» «quando a questão dessa ou daquela sede rival no monopólio dos privilégios religiosos já não existe.»

«Já está aqui.» «Refere-se aos poucos que já adoravam ao Pai em es-pirito e verdade.» (34)

«Genuíno». «O têrmo denota não apenas o verdadeiro opondo-se ao falso, mas o real opondo-se ao aparente, o original distinto do derivado, o genuíno em contraste com o contrafeito.» (36)

«Adoração em espírito». «Culto não pode ser oferecido a coisa algu-ma que seja inferior ao próprio adorador.» Daí a iniqüidade de usar ima-gens como objetos de culto. Jesus as proibe tão realmente aqui como Moisés as proibiu no segundo mandamento do Decálogo.

«Em espírito e verdade». Os intérpretes estão geralmente em acôrdo quanto ao começar êsses vocábulos com minúsculas. E' no espírito huma-no que se realiza culto a Deus. «Não sabeis que sois santuário de Deus e que o Espírito de Deus habita em vós?», diz Paulo à Igreja de Corinto. Uma igreja de regenerados, que entronizam em seus corações a Jesus Cristo como Senhor, é para seus membros o Santo dos Santos, e em seus próprios espíritos, no culto público e doméstico e particular, eles são do sacerdócio universal dos crentes e são o Santo dos Santos onde Deus é manifestado, conhecido e adorado.

Mas notai como Paulo associa o Espírito Santo com o espírito huma-no. Ele não pode estar alheio a esse terreno que se descreve como estando «em espírito». O Espírito é espírito. Deus é espírito. Na união do ho-

(32) "Messages of the Bible", Vol. sôbre êste Ev., p. 125. (33) "Some Lessons on the Revised Version of the N. T.", por B. F. Westcott, p. 146. (34) "Teacher's Testament", por M. B. Riddle, p. 218. (35) "The Philosophy of the Christian Religion", por Fairbairn, p. 465.

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mem com Deus, naquilo que lhes é comum — sua natureza espiritual, sua personalidade — é a esfera onde um culto real se efetua, no intercâmbio e na comunhão de Espírito e espírito...

Igualmente, verdade aqui provàvelmente não significa: doutrinas or-todoxas. Mas certamente não significa atitude anti-doutrinária, tam-pouco. Verdade é uma palavra que indica a correspondência ou conformi-dade de pensamento, idéia, doutrina, culto ou qualquer outro conceito com as imutáveis realidades absolutas dêste universo, tôdas arraigadas e funda-mentadas em Deus,—Pai, Filho e Espírito Santo. Jesus é Deus Revelado, o Visível do Invisível Deus. Ele é, pois, a verdade. O Espírito é Deus Re-velador. João, pois, diz em sua Primeira Epístola que «o Espírito é a ver-dade». Culto aceitável, pois, se rende ao Pai no Filho pelo Espírito e de acordo com as grandes realidades do universo e da deidade trina. A in-terpretação inspirada da deidade e de sua revelação histórica é a Bíblia. Nenhum culto anti-bíblico é «em espírito e verdade». Se fôsse mesmo es-piritual e não material, seria invalidado por ser contrário à vontade re-velada de Deus. E' por isso que Jesus diz: «Adoram-me em vão, ensinan-do doutrinas que são preceitos dos homens», Mat. 15:9 ; Mar. 7:7. Tradi-ções humanas são uma impertinência no terreno de religião onde temos a clara luz da Palavra de Deus, e invalidam o culto. Tal culto não é «em verdade».

Muitos só querem que «em verdade» signifique «em realidade». Mes-mo essa prova revela a falsidade e inaceitabilidade perante Deus de quase tudo que se chama culto. Que realidade há na afirmação de que no batis-mo infantil a criancinha é mudada, pela graça da água benta, de pagã para cristã? Absolutamente nenhuma. Nem o bebê era pagão, nem se torna cristão. Logo tal batismo infantil não é culto «em espírito e ver-dade» mas em um oco cerimonialismo falsíssimo, fruto das tradições pa-gano-medievais dos homens.

Ou que valor teria o outro batismo infantil, baseado na suposição igualmente falsa de que a criancinha nasce já salva, e portanto o batismo, como dever dos salvos, é seu dever e direito. Não é tal batismo infantil, tampouco, culto «em espírito e verdade». Ninguém nasce salvo. E' no se-gundo nascimento que somos salvos, não no primeiro. «O que nasce da carne é carne.» Portanto, fingir batizar esses oito quilos de carne incons-ciente é pecado grave. Não é culto. Não é possível nem em espírito nem em verdade. Nenhuma realidade há em tal fingimento, nem na sagração de um sacerdote, com a imaginação carnal de que a imposição de mãos episcopais lhe confere uma graça indelével na alma. E' superstição, ma-terialismo. Tal culto da sagração não é «em verdade». Não corresponde a nenhuma realidade. E assim também com muitos outros cultos humanos.

E' bom salientar que «em verdade» não significa em terreno de se-cos formulários doutrinários, vãmente repetidos em culto como credos.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO Si

Mas a frase «em verdade» esquadrinha as doutrinas associadas com as mentes que prestam a adoração. Se não há realidade nas idéias, o culto que as manifesta ou incorpora não é real nem aceitável. As tradições dos homens, pois, invalidam o culto, pois ao homem decaído não é conferido o privilégio de inventar doutrina ou desvirtuar as verdades divinas. Revelar verdade é função reservada a Cristo e ao Espírito e sabemos o que revela-ram e inspiraram nas Escrituras. Não dissipemos essa declaração mais profunda da natureza de culto aceitável a Deus, em sentimentalismo'ou dogmas. Está entre os dois extremos — a aproximação direta de espí-rito ao Espírito que é Deus, por Jesus Cristo, único Mediador, o caminho, a verdade e a vida, e no terreno de realidades reveladas para nossa orien-tação em Jesus e a Bíblia. Eis a norma de culto que Deus quer dos ho-mens. Pois Deus «procura» adoradores, (3:16; 6:44; 15:16; I João 4:10). A divina iniciativa se dirige para o alvo divino pelo método e norma di-vinos.

«Em espírito e verdade». Como o Novo Nascimento é um só, com dois fatôres «de água e Espíritox, (da Palavra do evangelho de Cristo cru-cificado, e da energia vitalizadora do Espírito Santo), assim também o culto aceitável tem dois fatôres, dois elementos componentes indispensá-veis. São «espírito e verdade». Um culto ~ente «em espírito» não é aceitável. Também um culto sêco e duro «em verdade» não é culto digno dêsse nome. A união vital e íntima do espírito crente e da verdade são os dois elementos do culto aceitável.

Alguns traduzem: «no Espírito» e fazem que a referência seja ao Espírito Santo. Igualmente traduzem «a Verdade», com a idéia de uma soma de doutrinas, um credo formal. Duvido que qualquer culto válido e poderoso esteja alheio ou ao Espírito Santo ou às verdades da revelação da Palavra de Deus. Penso que neste trecho da Escritura os fatôres do culto são o espírito humano regenerado e crente e a relação genuína dêste culto com a divina, vastíssima e invisível realidade no universo, no pen-samento e na vida. Examinemos os dois maganos vocábulos que nos trans-mitem os elementos e fatôres vitais de um culto aceitável.

O espírito tem de ativar-se. Trava relações pessoais com o Deus in-visível. Há na experiência comércio entre o Espírito divino e o espirito humano. O culto não está nos atos corpóreos, como o prostrar-se no chão, genuflexões, mãos postas, fronte curvada. E' na atitude ativa e social do espírito crente, no seu apego a Deus por Cristo Jesus, sua aproxima-ção invisível ao Pai e Senhor da vida. A razão por que é independente de lugares e dias e altares e templos é que o que é invisível e imaterial em nossa personalidade comunga espiritual e socialmente com o Espí-rito invisível e imaterial e divino que nos criou e nos regenerou em Cristo.

A Trindade é essencial ao culto eficaz. O Pai é adorado. A êle se

C, E, J. — 6

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confessa o pecado de que há arrependimento e dêle se recebe o perdão e paz. Ninguém vai ao Pai senão por Jesus, que propicia. Sua cruz é o altar. Sua pessoa glorificada é o Sacerdote que intercede e reconcilia. E' o único Mediador. E o Espírito aplica a redenção de Cristo e todos os seus perpétuos e renovados valores à nossa vida, constantemente. Deus — Pai, Filho e Paráclito — é Espírito. Está sempre pronto, cor-dial, acessível, e infinitamente benfazejo. Não lhe falta, nem nos falta a boa vontade divina para se pôr em contato conosco. O espírito hu-mano é o refratário, o rebelde, o hesitante, o tímido. «E' indispensá-vel o culto em espírito.» O espírito humano tem de agir e comunicar-se com o Espírito divino e, por Jesus Cristo, estar em comunhão com êle. Daí a ênfase aqui sôbre «o espírito». Esta ênfase repudia e afasta o uso de imagens, icones e estampas. Tais coisas não «auxiliam o culto». Corrompem-no e o fazem degenerar em idolatria. O culto tem de ser conservado na esfera invisível do espírito •humano em comunhão com Espírito divino. Cabe a êste dar as instruções a respeito. E uma das mais antigas delas é, «Não farás para ti imagem de escultura, nem fi-gura alguma... Não as adorarás, nem lhes darás culto.» Fabricar imagens para os fins de culto, adorá-las, prestar-lhes genuflexões ou culto de qualquer espécie é forte e totalmente proibido na lei moral. Aliás é o mais forte e enfático de todos os dez mandamentos, é aquêle que tem no Decálogo as mais severas penas pela sua violação, embora nos catecismos romanistas seja completamente suprimido. Sua omis-são pelo clero é confissão tácita de que as imagens nos altares dêles são idolatria, precisamente da categoria proibida por Deus, como parte da moral mais elementar. Esta palavra de Jesus à samaritana é o lado positivo daquela lei negativa promulgada no Sinai.

«Em verdade», diz o lexicógrafo Souter, significa: «Não mera vera-cidade mas verdade de idéia, realidade, sinceridade, verdade na esfera moral, franqueza.» E Thaw define a palavra: «A verdade como ensi-nada na religião cristã, a respeito de Deus e a realização dos seus pro-pósitos mediante Jesus Cristo e os deveres humanos, oposta tanto às superstições dos gentios como às invencionices dos judeus e mesmo às opiniões e preconceitos corrutos de falsos mestres entre os cristãos.»

A verdade religiosa, pois, é a conformidade entre nossas palavras, nossos pensamentos e doutrinas, nosso culto e nossa vida religiosa, de um lado, e a suprema realidade do universo que conhecemos em Deus e Cristo e sua Palavra, do outro lado. O culto tem de se conformar com a realidade. Esta é muito mais, em grau e essência, do que a mera since-ridade. Existe a mais dedicada sinceridade nos cultos em que são ofere-cidas crianças aos crocodilos ou ao Rio Ganges ou em que são queimadas vivas em louvor a Moloque, pura idolatria, superstição, ignorância, here-

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 83

sia e imoralidade. Há outras palavras gregas que se traduzem por sin-ceridade. A verdade é a conformidade com os fatos do universo. Ne-nhum culto vale coisa alguma perante Deus se engana o adorador, se a base da religião não é fato, realidade, verdade.

Portanto, embora «em verdade», como exigência divina não queira significar meras repetições de credos ou fórmulas doutrinárias, nem com isto se satisfaça, a frase envolve coerência do espírito adorador com as grandes realidades de Deus, revelação e redenção. Que nenhum culto falso é culto «em verdade» é axiomático.

Paulo predisse que surgiria no próprio cristianismo (nominal) um tempo «em que os homens não suportarão a sã doutrina, mas desejosos de ouvir coisas agradáveis, cercar-se-ão de mestres segundo seus desejos e desviarão os ouvidos da verdade e se aplicarão a fábulas». II Tim. 4:3. Eis o contraste: «a verdade... fábulas». A quase totalidade do culto dos homens é assim definida: «fábulas». A doutrina que sustenta a idolatria, a invocação de «santos», a comunicação com os espíritos dos mortos por mediuns e mil outras superstições nada têm de realidade e verdade; são meras fábulas. A idéia de que 6 gotas de água benta e uma fórmula de batismo infantil são capazes de transformar uma criança in-consciente e irresponsável de pagã em cristã e doar-lhe uma impressão indelével da graça de Deus na alma imortal, eis a maior e mais nociva fábula de todos os tempos! A suposta presença real de Jesus numa hós-tia de pão é outra fábula. Não há verdade nesses falsos cultos. Jesus proclama: «Não tem valor o seu culto aos meus olhos porque o que ensina são doutrinas e preceitos humanos», (Mat. 15:9, Versão Rohden) . Tais palavras de Jesus acêrca do culto aceitável certamente iluminam esta sentença a respeito do assunto, e são muitos e enfáticos os ensinos de Jesus no mesmo teor. Sem o espírito adorador e sem a realidade, confor-me a redenção e revelação divina, pode pessoa alguma aproximar-se de Deus em paz e comunhão real. E diz Jesus: «Ninguém vem ao Pai se-não por mim.» Jesus é Caminho e Verdade.

«Culto em espírito e verdade». Marcus Dods diz : «O localismo é agora abolido.» (36) Depende muito do sentido em que se usam as pala-vras. Haveria muito mais razão em dizer: «O nacionalismo na vida re-ligiosa e o racismo e a idéia de um só centro mundial foram agora abo-lidos.» Israel tinha uma assembléia nacional, mas nenhum cristianismo bíblico tem semelhante governo. Antes tem muitas igrejas congrega-cionais autônomas. Aquêle que disse: «Onde dois ou três estão congre-gados em meu nome, aí eu estarei presente», de certo não aboliu o loca-lismo no culto, antes o estendeu. Aliás, Jesus disse que o «culto em es-pírito e verdade» já existia. Certamente se verificava em muitas das re-uniões nas sinagogas que Jesus dirigia, e mesmo nos cultos ao ar livre,

(36) "Expositor's Greek Testament", Vol. I, p. 729

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no seu ministério. A sinagoga já suplantara o templo na vida dos ju-deus durante o cativeiro. Deus ordenou à teocracia que tivesse apenas um templo, um altar, um legítimo cenário do ministério do sacerdócio. Evitou assim a idolatria «nos altos» em tôda parte e forjou das tribos de Israel uma nação; mas êle não ia agora substituir Jerusalém por ou-tra «Cidade Santa», nem prover outros altares e outros sacrifícios ceri-moniais nem um outro sacerdócio paramentado. De novo diz Marcus Dods, errôneamente: «Tudo que era local e tudo que era simbólico ficou para trás.» Não é verdade. Ficaram logo para trás os velhos odres do judaísmo com o velho vinho mosaico. Mas Jesus deu novos odres para o novo vinho, novas formas locais e simbólicas para a Nova Aliança. O fato de que o Novo Testamento não continua o cerimonialismo ou ritual do Antigo, não quer dizer que não tem suas cerimônias, poucas e espiri-tuais, mas visíveis, locais e ricas em simbolismo. Jerusalém e Gerizim eram centros antagônicos, raciais, universais. A presença de Deus ia ser desassociada de tais lugares e tais sistemas e, portanto, seria possí-vel em todos os cultos locais.

«Culto genuíno... em espírito e verdade». O Novo Testamento de Rohden comenta: «Os judeus, pela maior parte, não adoravam a Deus em espírito (`êste povo me honra com os lábios') ; os samaritanos não o adoravam em verdade, porque o seu culto era mesclado de muitos erros. Jesus alude a um culto ao mesmo tempo verdadeiro e espiritual, sem dei-xar por isso de extèrnar-se por sinais sensíveis. Tal é o culto do Novo Testamento.» Concordo, mas soletro com as maiúsculas: Novo Testa-mento. E pergunto: «Se um culto 'mesclado de erros' fôr inaceitável a Deus, que probabilidade há de que Deus se agrade com o culto católico romano?» Não resta dúvida alguma no caso, porque Jesus nos dá a res-posta clara e autorizada: «Nem tem valor o seu culto aos meus olhos por-que o que ensinam são doutrinas e preceitos humanos», Mat. 15:9 (Ver-são Rohden) . E' a conclusão do que êle começou a citar, em parêntesis. O resto da Escritura diz que «não tem valor» todo e qualquer ato de culto baseado em meras «doutrinas e preceitos de homens». Que outra base existe em quase todos os ritos do romanismo?

«Em espírito». «Devemos depender do Espírito de Deus para auxí-lio e poder, pondo nossas almas debaixo de sua influência e operações; e devemos dedicar os nossos próprios espíritos ao serviço de Deus e em-pregá-los nessa operosidade... Devemos adorar com uma fixidez de pen-samento e uma flama de devoção com tudo que houver em nós.»

«Em verdade». «Isto é, na sinceridade. Deus exige tanto a parte interior em nosso culto, como a verdade nesta natureza íntima de nossa personalidade», Sal. 51:6. Assim diz Matthew Henry.

Prefiro o ponto de vista de A. Hovey: «Em espírito». «No fundo da alma, dar-lhe a homenagem de reverente pensamento e sentimento,

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de confiança filial e amor... é movido pelo Espírito de Deus habitando no espírito humano e santificando-o para serviço.»

«Em verdade». «Adorá-lo na esfera da verdade, ou na comunhão e conformidade com a verdade. E' prestar-lhe a honra e o serviço que exige sua própria natureza, segundo a verdade que revela essa natureza.» (87)

«E assim digo porque o Pai está procurando tais como seus adorado-res.» O Dr. A. T. Robertson diz: «João representa o Pai como buscando adoradores, que é uma doutrina que sempre aparece neste Evangelho (3:16; 6:44; 15:16 e I João 4:10).» (38)

«O Pai está procurando.» A salvação não é a única consideração de importância em nossa religião. Quando negamos a falsa doutrina ou a vida desobediente aos mandamentos de Deus, a resposta não tarda: «Mas está negando minha salvação?!» A queixa revela ignorância. A sal-vação é o nascimento, depois a vida segue. E' importante, depois do nas-cimento, depois da salvação, cuidar das coisas que «são vizinhas da sal-vação». Crer a verdade revelada na Bíblia traz bênçãos, obedecer aos mandamentos de Jesus orienta a vida cristã na santidade pessoal e co-letiva e evita mil dores e desastres. E' tão importante para o crente a doutrina verdadeira e a atividade bíblica no serviço de Deus como é importante para nossos filhos a alimentação, o exercício, o trabalho e a escola. Essas Coisas não alteram a filiação deles. Mesmo ignorantes, mal vestidos, analfabetos e preguiçosos seriam ainda nossos filhos. Mas, embora não entre no terreno de filiação, sabemos que é importante cui-dar da qualidade de filhos que temos, se bem que a filiação é eterna. Igualmente, no terreno espiritual, Deus cuida da qualidade de filhos que tem na sua família.

Uma coisa que êle procura é que seus filhos sejam adoradores. Deus procura adoradores. O culto de nossa parte é desejado da parte do Cria-dor e Pai. Os indiferentes que ficam em casa e desprezam o culto de Deus são uma péssima qualidade de filhos de Deus, e a sua vida não reco-mendará o evangelho. O cristianismo tem um dia santo, o primeiro dia da semana. E ninguém é bom cristão ou zeloso pai de família se, ao começar cada semana da sua vida, Deus é esquecido e não recebe culto, louvor e ser-viço da parte daquele cristão e, tanto quanto lhe couber, daquela casa. Deus não é indiferente ao tamanho das congregações dos seus adoradores. Pro-cura adoradores.

Nossa geração foi muito além da geração pioneira dos crentes, no to-cante à reverência e espiritualidade dos cultos no Brasil. Como a irreve-rência era o perigo daqueles tempos, hoje em dia o perigo é o formalismo. A lepra dos cultos pode ser o formalismo, que é sempre hipocrisia, repe-tir formas sem crer ou sentir o que representam. O que muitos formalis-

(37) "The American Commentary", in loco. (38) "Word Pictures in the N.T.", Vol. V, p. 67.

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tas não percebem é que a pregação da Palavra de Deus é de supremo va-lor no culto. E' mais importante do que a própria oração, pois na sua Pa-lavra Deus nos fala, mas a oração é nossa palavra, e o mero rezar, por ca-tólicos ou protestantes, é uma nulidade, em absoluto. Há livros de culto e ordem protestantes, hoje em dia, que prescrevem orações para tôdas as circunstâncias da vida, nada deixando à espontaneidade cristã, à orienta-ção do divino Espírito que nos ensina a orar, e não com meras belezas lite-rárias. E a multiplicação formal de coros, de «Améns», de «Glórias», de Ocas repetições do «Pai Nosso», por pessoas que nada sentem das sublimes súplicas que devem ser o ideal de nossa oração secreta, e a multiplicação de orações ordenadas pelos homens, como parte obrigatória do culto, tudo isso exclui o Espírito e a verdade, e as congregações adoram o que não sabem e a um que não conhecem. Logo decoram as fórmulas e rezas e aban-donam o culto ou o limitam a «uma vez por ano» ou a poucos «dias san-tos». E' a «estrada larga que conduz à perdição» e desvia um povo rà-pidamente de qualquer conhecimento ou comunhão real com Deus. Deve haver uma simetria em cada culto, entre o tempo dado à música, à ora-ção, ao silêncio, à leitura da Bíblia clara e impressivamente e à pregação . Multiplicar as formas, embelezar o estilo, ornar o exterior, mas suprimir a pregação da Palavra é tornar o culto um sepulcro caiado. Eterna vigilân-cia aí é o preço da liberdade e espiritualidade. Que a reverência cresça, e cada vez mais, mas que seja reverência ao Deus invisível que é eterno Es-pírito e vê no coração se somos sinceros ou se somos meros papagaios que rezam na vaidade e na hipocrisia. E que nunca seja divorciada a reve-rência para com Deus de respeito à sua Palavra e acatamento aos seus pre-gadores. E longe de nós esteja a canseira da presença divina.

24. «Deus é espírito.» E há um espírito de culto, como há também um Espírito por quem rendemos culto aceitável em nossos espíritos.

«Espírito é a deidade.» O ponto é que sua natureza não é corpórea, logo não habita em lugares santos. (Dods).

«Em espírito e verdade». Vede o que diz Fairbairn sôbre esta frase, no comentário sôbre 1:18, (Vol. I, págs. 216-217) .

«Deus é Espírito.» «Como Deus é Amor e Deus é Luz. A natureza não corpórea e a personalidade de Deus se declaram aqui. Tudo isso em três palavras.» (39) Para um Ser tão majestoso, infinito e adorável o culto é uma necessidade, diz Jesus, o dever imperativo e universal dos homens.

«Em espírito». Disse o poeta Sidney Lanier a Walt Whitman: «Vós não podeis constituir uma república de músculos e cérebros e montanhas ro-chosas. As repúblicas se formam de espíritos.» E o mesmo se pode afir-mar do reino de Deus e das congregações de adoradores aceitáveis e obe-dientes que são as igrejas do Novo Testamento.

(39) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V. p. 67.

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25. «O Messias está para vir.» O Dr. A. T. Robertson diz: «Os sa-maritanos aguardavam a vinda de um Messias, Profeta como Moisés (Deut. 18:18) . Simão Mago se apresentava como algo que fosse maravilhoso e tinha numerosos seguidores (Atos 8:9) . Pilatos sufocou urna rebelião na Samaria por causa de um fanático que se dizia o Messias (Josefo, nas An-tiguidades, XVIII, iv. 1) .» (40)

«O Messias está para vir.» Havia entre os samaritanos, como em todo o império romano e no oriente, uma viva e urgente esperança messiâ-nica. E' forte nesta mulher e em seus patrícios e vizinhos. Daí as boas vindas dadas imediatamente a profetas como João Batista e Jesus, que se ocupavam fundamentalmente desse assunto e mostravam que o evento era iminente, «à mão», «chegado».

«Que se chama Cristo». E' a mulher que disse isso, ou João o coloca no meio das suas palavras? Não sabemos. No verso 1:42, a explicação pro-vavelmente vem de João. Aqui é possível que a mulher tenha usado am-bas as frases. E' preciso lembrar que a Septuaginta era a Bíblia mundial dos judeus, que sua linguagem se popularizou, que havia cidades gregas na Samaria, que a Palestina toda era bilingue e que os nomes pessoais fre-qüentemente se usavam em ambas as suas formas, aramaicas e gre-gas, como Pedro e Cefas, cabendo numa língua a forma familiarizada na outra. Jesus era estrangeiro para ela, veio da «Galiléia dos gentios», ela bem poderia ter mostrado que sabia que Messias e Cristo eram dois no-mes iguais, em línguas diferentes num país que falava ambas. Tôda a hipótese que se edifica na suposta ingnorância da língua grega na Pales-tina é por sua vez ignorância que tanto a história como a arqueologia de-nunciam.

«Há de nos contar tudo.» E' a curiosidade vulgar. Pensa acêrca da revelação e da religião como coisas cujo fim e função é satisfazer curiosi-dade intelectual, dar solução aos quebra-cabeças da lógica, da filosofia, dos problemas e anelos que desorientam a mente comum. Um Messias que «nos declare tôdas as coisas» é vizinho do Messias que «faça tudo», quan-to a ambição nacional mundana, carnal, política seja capaz de imaginar. Um Messias que julgue («O machado já está pôsto à raiz das árvores»), e que «salve seu povo do seu pecado», separando o povo e o pecado, dis-tanciando um do outro, abrindo um abismo entre o povo redimido e o pe-cado arrependido, abandonado e perdoado, ora essa qualidade de Messias nem os samaritanos, nem os judeus nem os romanos ou gregos queriam ou querem ou quererão. Crucificaram essa qualidade de Messias, e foi em caminho para ser crucificado que Jesus foi afugentado de uma aldeia sa-maritana. O Messias real salva, regenera, moraliza pela obra santificadora do Espírito e da Palavra da verdade. Mas êle não nos declara mil coisas que gostaríamos de saber. Nenhum esforço faz, nenhuma vez, para satis-

(40) Idem.

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fazer a mera curiosidade. Diz o suficiente para sermos salvos e fazermos a vontade de Deus. E isso basta.

26. «Sou eu.» E' bastante sublime a declaração, sem que se precise acrescentar aqui a idéia de que Jesus estava se anunciando como o EU SOU, o Jeová do Velho Testamento. Ele falou de si assim em outra oca-sião, mas aqui não.

«Sou eu.» «A prontidão de Cristo para se fazer conhecido à mulher estava em contraste notável com sua recusa em permitir uma declaração igual aos judeus. Os samaritanos, porém, esperavam um redentor reli-gioso e não tinham esperanças políticas. Mesmo se soubessem que êle era o Messias, não teriam prejudicado sua missão espiritual para obrigá-lo a ser rei político.» (41)

(41) "Teacher's Testament", por M. B. Riddle, p. 219.

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A Colheita Samaritana

Capítulo IV, versículos 27 - 42

27 Ora neste instante chegaram os discípulos dele, e admiravam-se porque ele estava conversando com uma mulher! Entretanto nenhum lhe disse: "Que

28 estás procurando?" ou "Porque estás conversando com ela?" I Então a mu-lher abandonou o seu cântaro, foi-se embora para a cidade e diz aos homens:

29 I "Vinde! Vede um homem que me narrou tôdas as coisas que fiz. Não é esse 30 — 31 o Cristo, é?" I E saíram da cidade e vinham chegando a ele. I No intervalo

32 seus discípulos persistiam em rogar-lhe, instando: "Rabi, come!" I Ele, po-rém, lhes respondeu: "Eu tenho manjar para comer o qual vós desconheceis."

33 I Portanto, os discípulos diziam uns aos outros: "Será possível que alguém lhe 34 trouxe algo para comer?" I Jesus lhes afirmou: "O meu manjar é que eu con-

tinuamente faça a vontade daquele que me enviou, e que leve

35 A Comida que de vez o seu empreendimento à sua consumação. I Não estais

nutria o espíri- vós constantemente dizendo, 'ainda são quatro meses e a

to de Jesus colheita vem' ? Eis que vos declaro: "Levantai os olhos e vede aí os campos porque estão brancos para a colheita;

36 I o ceifeiro já está recebendo salário e ajuntando fruto para vida eterna, a fim 37 de que o semeador e o ceifeiro se alegrem juntamente." I De fato, nisto é 38 veraz o adágio: E' uma coisa ser o semeador e bem outra ser o ceifeiro! I Eu

vos comissionei a viver colhendo aquilo em que nem vos

Os Aspectos cançastes, nem vos cançais por labOres da vossa parte.

Pessoais e Co- Alguns há que estão fatigados pelo labor que fizeram e

letivos da vós outros entrastes e permaneceis na posse dos frutos da 39 Seara luta deles." I E daquela cidade muitos dos samaritanos

creram nele por causa da palavra da mulher que testifi- 40 cou: "Ele inc declarou tôdas coisas quantas eu fizera." I Portanto os sama-

ritanos vieram ter cota ele face a face e convidaram-no insistentemente a to-mar pousada na casa deles. E de fato permaneceu ali

41 Jesus vence dois dias. I E muito maior número deles creu por causa 42 preconceitos da pregação dele; 1 e diziam à mulher: "Já não é por

violentos causa de tua fala que cremos; pois nós mesmos o te- mos ouvido e sabemos que este é realmente o Salvador

do mundo."

27. «Chegaram... admiravam-se.» Hovey pensa que de longe os discípulos viram Jesus em conversação com uma mulher e ficaram atô-nitos. No tempo do primeiro verbo, porém, não se vê a vinda pela estra-da, mas a chegada. A admiração, no entretanto, era prolongada e bem podia ter começado com a primeira vista de Jesus, quando os seus com-panheiros o enxergaram de longe.

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«Conversando com uma mulher». O Dr. A. T. Robertson diz: «Sim-plesmente com uma mulher: havia um preceito dos rabis: Ninguém fale com uma mulher na rua, nem que seja sua própria espôsa. (Horae He-braicae, iii. 287, por Lightfoot). Os discípulos consideravam Jesus um rabi e sentiam que êle agia imprudentemente, colocando-se em nível in-ferior à dignidade que lhe convinha.» (1)

«Com uma mulher». «E' invocação de notável e serena coragem desafiar as convenções religiosas que proibiam a um rabi falar com mu-lheres. Mesmo no século XIX, James Mill, pai de John Stuart Mill, dizia que nem por sonho discutiria a religião com mulher nenhuma.» (2)

— «Entre os judeus as mulheres eram pouco estimadas. Era proi-bido a um judeu saudar uma mulher. Ele não devia falar com uma mu-lher na rua, mesmo que fosse sua espôsa, irmã, ou filha. Na Oração da Manhã, os homens bendiziam a Deus 'que não me criaste gentio, escravo ou mulher!' Era impiedade ensinar as palavras da Lei a uma mulher: era preferível queimá-las. Quem ensina a Lei à sua filha, ensina-lhe maus caminhos diziam. Os discípulos bem podiam ficar atônitos de que Jesus falasse com uma mulher.» (3)

Entretanto nenhum lhe disse: Que... ou por que? E' um ato de reverência para com Jesus que é conveniente no discípulo. Não é discípu-lo aquêle que esteja submetendo seu Mestre a constantes interrogató-rios e exames de motivos, de medidas ou de razões. E' o pêso da lem-brança de Jesus a João Batista: «Bem-aventurado aquêle que não achar em mim motivo de tropêço», Mat. 11:6. Jesus é o grande escândalo de sua religião. Há mais objeções humanas, e mais sérias, contra êle do que contra qualquer outro elemento ou fator no cristianismo. Todos o ambi-cionam, para os fins de sua propaganda, mas o aceitam em parte. Aqui-lo em Jesus que rejeitam é o maior escândalo, problema insolúvel das suas vidas.

Um se ofende com «o escândalo da cruz» I Cor. 1:23. Aí tôdas as filosofias e quase tôdas as religiões e seitas tropeçam e caem. A deso-bediência é descrita por Pedro como o choque da vontade humana com a revelação da vontade divina por Cristo Jesus, o qual lhes serve de «uma pedra de tropêço e uma rocha de escândalo», I Ped. 2:8, de modo que «tropeçam na palavra, sendo desobedientes». Desobedecer a Jesus Cris• to é chocar-se com um Gibraltar inabalável.

Jesus é Deus. Considerá-lo mero mestre insigne, espírito ilumina-do, meigo Nazareno, filósofo galileu, revolucionário social é tropeçar na Rocha da ofensa; é chocar-se com a pedra de escândalo. Tôdas as idéias

(1) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 68. (2) "Reality in Bible Reading", por Frank Bailard, p. 126. (3) "In the Days of His Flesh", por D. Smith, p. 77.

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que não se tornam cativas do eterno Verbo, Deus o Filho, se ofendem com êle.

Jesus é Salvador. Optar por salvadores e co-salvadores humanos ou angélicos é tropeçar e cair na eterna perdição. E' escândalo para os con-gressos de religiões, que ambicionam uma fusão de elementos de todos os grandes homens. Esse ecletismo desonra e destrona o Salvador do mun-do, nivelando-o à baixeza dos altares dos ídolos do intelecto e da supers-tição. «Não há outro nome»... de salvador ou sócio na salvação.

Jesus é Senhor. Sua soberania é absoluta. Sua autoridade já deter-minou uma vez para sempre, na sua vida, no seu exemplo, na sua doutri-na e no Novo Testamento, obra de seu Espírito, o que é o imutável cris-tianismo dos séculos. Não cabe a nenhum discípulo escolher e rejeitar, fazendo livre escolha entre as doutrinas de Cristo, taxando umas de «duras», adotando em lugar de outras verdades as tradições populares dos homens. Eu não conheço em tôda a vida humana uma idéia que cau-se tantos choques e tanto ódio como a simples idéia de que cabe ao dis-cípulo aprender do Senhor e crer o que êle ensina como verdade e obede-cer ao que êle diz ser a moral e o dever. Muitos são os fundadores de suas próprias religiões. Chocam-se de encontro a Jesus, a Rocha de es-cândalo, escolhendo e rejeitando segundo os ditames de sua própria con-veniência.

Jesus é Sacerdote. Rejeitá-lo nessa capacidade e amontoar para si padres de um sacerdócio pecaminoso e rebelde ao Novo Testamento, fun-cionários perante altares onde são adorados ídolos e lhes são apresenta-dos outros sacrifícios além do de Calvário, é tropeçar na Rocha de ofensa, naquele que é sacerdote para sempre segundo a ordem de Melquise-deque .

Bem disse Simeão a Maria: «Este é pôsto para queda e para levan-tamento de muitos em Israel, e para sinal de contradição» (Luc. 2:34). Se alguém contradisser a Jesus, o antagonismo é mútuo. Jesus o con-tradiz com a imutável verdade de sua Palavra. E se alguém se escandali-za com Jesus, êsse tal é escândalo para Jesus Cristo. A Pedro, com sua falsa doutrina, sugerida pelo diabo, que o reino poderia vir sem o Cal-vário, Jesus replicou: «Sai de diante de mim, Satanás: tu és para mim uma pedra de tropeço.» E' escandaloso perante Jesus o crente que opõe suas idéias às da Palavra da revelação divina.

Imitemos a reverência dos discípulos. Não entendiam como Jesus po-dia estar fazendo aquilo que o padrão de ética social dêles condenava. Mas êle era o Senhor. O Mestre. Calaram-se reverentes.

28. «Abandonou o seu cântaro.» Esquecida do fim original da sua presença ali, secundário agora diante de um alvo muito mais elevado e importante? Ou deixou o cântaro como que em penhor de sua volta logo para buscar «a água viva», ou renovar sua pesquisa sôbre o Messias?

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Quais seriam as emoções que ferviam na alma perturbada dessa sarna-ri tana ?

«Diz aos homens.» De certo ela não era a única mulher na cidade. Mas a essas horas, à bôca da noite, ela não encontraria mulheres na rua, pois estariam ocupadas com os misteres domésticos. Contudo, o termo homens é genérico. Sem dúvida outras mulheres samaritanas viram «nas-cer o sol da justiça, trazendo curas nas suas asas» (Mal. 4:2), antes de findar os dois dias seguintes.

À gente do lugar («o povo», não os varões)... As palavras dela criaram muita comoção. Tôda aquela região tinha estado zumbindo com os ecos da pregação do Batista, e pode ser que até alguns de Sicar ti-vessem estado em Enom, ouvindo seu anúncio de que o Messias vie-ra.» (4)

«Abandonou seu cântaro.» Jesus lhe dissera: «Vai... vem!» Ele guardaria a propriedade dela até que voltasse. E mesmo aparecera in-terêsse maior para lhe prender a atenção e o entusiasmo.

29. «Vinde.» E' tradução muito protocolar. Ela não usou verbo, mas um advérbio. Como um popular que gritasse a outro: «Embora! Va-mos ver uma coisa nunca vista, uma grande maravilha. Um homem ali me disse todos os segredos do meu passado. Este não é o Cristo, é?» Se, hoje em dia, a chegada de um cigano alvoroça uma vila, e um medium atrai curiosos pelas suas artes, e um astrólogo adquire fàcilmente adep-tos, quanto mais essa notícia, dita com incomportável excitação, à bôca da noite, despertaria a: curiosidade popular. Cada qual pensaria: «Se disse todo o passado DELA ... ! !» E ninguém tardou para segundo con-vite. Muita coisa que começa com uma curiosidade banal, termina na salvação, se o assunto da investigação é Jesus Cristo e sua influência nas vidas por êle tocadas. Vi muitos pedestres apressados parar a fim de ver o que era o culto evangélico cujos hinos ouviam, e ficar presos pela pregação da Palavra de Deus e ser salvos, antes de saber o que estava acontecendo. Ninguém que começou aquela corrida para ver Jesus so-nhava, no momento, no que os próximos dois dias lhe valeriam, no tem-po e na eternidade. A maneira da samaritana trouxe confiança na rea-lidade que ela encontrara. Nada como a convicção para gerar a convicção em outros.

«Um homem me narrou.» Jesus é grande aos olhos da mulher sama-ritana porque penetrou no íntimo da consciência dela e lhe expôs a vida pecaminosa à luz da pureza e do juízo de Deus. «Narrar tôdas as coisas» que ela fez na vida seria um libelo formidável contra o sexualismo. Vêde como cabe no coração uma só palavra oportuna. Jesus apenas disse: «Aquele que agora tens não é teu marido.» Eis que isso lhe parece a enumeração de todos os escândalos e maus atos dessas seis aventuras de

(4) "In the Days of Ris Flash", por D. Smith, p. 77.

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casamento e divórcio ou vida amasiada. Quantas vêzes entra uni pecador no culto e fica furioso, pensando que alguém informara ao pregador toda a sua vida, ouvinte desconhecido que é na congregação ! Jesus numa só palavra fere o coração soberbo, na sua iniqüidade, o pecador despertado já não está satisfeito consigo. Vem o arrependimento e a fé. Assim para essa mísera criatura oito palavras («Aquele que agora tens não é teu marido») lhe pareciam uma denúncia detalhada de todas as imun-dícias do seu passado, por quem de direito julgava.

«Porventura pode ser esse o Cristo?» «Em grego... quem faz uma pergunta pode indicar a natureza da resposta esperada e assim revelar seu próprio pensamento no caso... Sentimos que a mulher mencionou um pensamento que ela supõe ser grande demais, além da possibilidade das melhores esperanças. Suas palavras gramaticalmente sugerem que não é possível a hipótese mas que a fé ainda vive.» (5)

30. «Vinham chegando.» A samaritana encontraria grupos nas es-quinas. Não esperavam uns pelos outros. «O Messias? Vamos ver ime-diatamente. Fulano já nos disse que João Batista afirmou ter vindo o Messias. Talvez seja êle mesmo!» Se o poço estava ao fim do «declive montanhoso», eis que vem correndo, ladeira abaixo, rumo ao poço. Jesus apontará para a cena como a «campos brancos para a ceifa».

31. «Persistiram... instando.» E' a fôrça do tempo dos dois ver-bos. Jesus está com o olhar abstraido, como quem olha sem ver numa certa direção. Só vê a imagem de seu sonho dourado, o anelo da alma concentrada, a figura da sua visão celestial. Um vai pé ante pé. «Rabi, come.» Ele ainda estava absorto. Esperam. Outro chega, hesitante. «Rabi, come.» Passou-lhe a fome ante o maior interesse espiritual. A incansável devoção do seu espírito desfaz o cansaço corpóreo.

«Come.» Hovey pensa que Jesus afinal comeu mas somente depois de dar a lição do momento aos discípulos. Acho mais provável que êle co-meu na casa de algum hospedeiro samaritano.

32. «Eu... vós ». Os pronomes são bem enfáticos. O ponto da res-posta está nêles «Eu... Vós». Eu tenho manjar para comer. Vós sois ignorantes a respeito, «Eu . vós». Seria egolatria num ser meramen-te humano. Embora Jesus tantas vêzes fale de si, nas categorias mais elevadas e absolutas de deidade, impecabilidade, conhecimento sobrena-tural e poder no universo, êle nunca deixa de ser humilde e manso, e nele não há incoerência ou inverossimilhança, se bem que em qualquer outro tais palavras o levariam ao manicômio. Os discípulos não se ressentem do «Eu... vós». Sabem que existe uma diferença que justifica a compa-ração, nos têrmos mais francos do realismo e da verdade.

«Tenho manjar.» A cegueira de muitos leitores da Bíblia a respeito das figuras metafóricas é alarmante. Os apóstolos não entendiam a lin-

( 5) "Some Lessons of the Revised New Testament", por B. F. Westcott, p. 65,

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guagem metafórica de Jesus nem agora nem quando êle lhes advertiu contra o «fermento» dos fariseus, saduceus e herodianos. De certo eles não estavam comprando pão nas panificações dêsses chefes políticos e religiosos! Tomando ao pé da letra a advertência, ficavam numa cegueira perplexa até que Jesus dissesse claramente: «fermento» significa dou-trina. E' misturada na vida, como fermento na massa do pão e tudo leveda.

Vemos essa cegueira ao interpretar o Cap. VI como se referindo à hóstia, e «nascer de água» a respeito do batismo infantil, e tantas ou-tras frases do Novo Testamento.

Acostumemo-nos à linguagem metafórica da Bíblia, pois contém grande parte do seu ensino. Há «um só batismo». E' um ato corpóreo obediente, de acôrdo com idéias e condições espirituais que a Bíblia or-dena e as igrejas bíblicas, por seu ministério, administraram como res-ponsabilidade social. Mas há «batismos» também em dores, angústias, no Espírito Santo, «para Moisés», no conjunto de uma nuvem de luz e do Mar Vermelho, etc. São metáforas, linguagem figurada. O batismo no Espírito era grande abundância do Espírito. Há pessoas que pensam do Espírito quase como se fôsse gotas de um certo líquido que caem fisi-camente sôbre alguém. Isso é materialismo, como o é a idéia de que o Es-pírito é eletricidade e dá «choques» nervosos.

A palavra igreja é metáfora quando se refere a todos os salvos. Como há um só batismo, e a menção de batismo em sofrimentos, ou batismo na nuvem e no mar, ou batismo no Espírito não constitui quatro batis-mos, mas ainda «um só batismo» e três referências metafóricas ao ato, assim a palavra igreja quer dizer congregação organizada, assembléia. Mas a totalidade dos crentes não é assembléia que tenha organização ou congregação, e nunca será, nesta vida. Sê-lo-á no céu, e somente no céu, uma assembléia, ao pé da letra. De sorte que a Igreja Geral não é rival ou substituta das igrejas concretizadas por aí de que somos mem-bros. E' linguagem figurada, limitada a poucas passagens. E' cegueira usar essa linguagem metafórica a fim de servir de desculpa para organizar ou anelar a organização de um vasto catolicismo exterior, eclesiástico, dominador do Estado, do lar e da civilização.

Esse «manjar», portanto, que era o supremo gozo de Jesus, não foi preparado por nenhum cozinheiro, sôbre nenhum fogão, nem lhe foi ser-vido em prato de louça. Assim o «nascer de água», o comer o «pão da vida», e o beber da «água da vida», o batismo no Espírito, a «assem-bléia geral e igreja dos primogênitos», «o cálice» que Jesus bebeu no Getsêmane e no Calvário, «a cruz» que o discípulo tem de levar e mil ou-tras frases metafóricas na Bíblia. Ficam somente no terreno do invisí-vel, do espiritual, da experiência. Não são coisas exteriores, materiais, visíveis, tomadas ao pé da letra. Também, no v. 36, «os campos brancos para a ceifa» são outro caso que ilustra o uso da metáfora.

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«Tenho manjar para comer.» A metáfora é dupla — substantivo e verbo. Todavia ninguém supõe tratar de pão material, ou de comer, ao pé da letra. Por que não é possível e razoável interpretar a palavra de Jesus da mesma maneira no Cap. VI? A razão é que os caiadores sacra-mentalistas não querem dar aí o sentido natural que Jesus afirma cate-góricamente no v. 63, repudiando o literalismo. «Comer» é o mesmo vo-cábulo grego de 4:32; 6:27, 55, e não se refere a nada material que se coma literalmente, em nenhuma das três passagens.

3. «Alguém lhe trouxe algo para comer?» Os discípulos estavam tão cegos a respeito do sentido figurado de comida como a mulher sama-ritana estava acerca do sentido espiritual de água. E' uma terrível ce-gueira tomar ao pé da letra linguagem metafórica, como faz o romanismo em João 3:5 e João VI, ou fazer linguagem figurada de simples declara-ções históricas, como fazem os seguidores de Orígenes, «espiritualizando» todos os eventos históricos da Bíblia. O romanismo também é réu aqui, como vemos no caso de Jesus entrar na barca de Pedro para ensinar a turba, ou ter a túnica de uma só peça, etc. Deixemos a Bíblia falar como lhe é natural.

34. «Continuamente faça... leve ao completo acabamento.» E' a dieta da Encarnação toda. O espírito assim se alimenta de maneira sadia com a regularidade perene de nossas «três refeições por dia». Os dois tempos e o sentido dos verbos combinam no sentido dado na tradução. Jesus estava continuamente fazendo a vontade de seu Pai. Mas corria para uma meta, o Calvário, o túmulo selado, o túmulo vazio, a ascenção, o que se chama sua obra redentora. E' o cálice contemplado em Getsê-mane. E' o ato a que se refere quando exclama no Calvário: «Está con-sumado.» E' o «ATO DE JUSTIÇA» a que Paulo se reporta quando com-para a queda do homem e sua redenção, dizendo: «Assim, pois, como por uma só ofensa veio o julgamento sôbre todos os homens para a condena-ção, assim também veio o julgamento» — (o julgamento favorável, a sen-tença divina que diz: «Nada de condenação há para os que estão em Cris-to Jesus», W.C.T.) — «veio o julgamento sôbre todos os homens para justificação de vida», Rom. 5:18. A vida de obediência perfeita de Jesus foi seguida por UM SÓ ATO que nos traz tanto a justificação como a vida eterna, «a justificação de vida». Jesus está voluntàriamente entre-gue a essa carreira e sua consumação. Por êsse motivo rejeitou as tenta-ções do diabo no deserto e quando Pedro as renovou, repudiando a dou-trina da morte do Messias (Mat. 16:22, 23) . Por êsse motivo ia falando da Cruz por todo seu ministério. Sua vida, sua comida, sua nutrição e força consistiam em querer essa vontade divina redentora, e o Calvário que seria a consumação e realização do eterno propósito do amor divino. Na sua peregrinação terrestre Jesus via sempre a longa estrada termi-nando numa colina que tinha o aspecto de uma caveira, os meios e o fim, a carreira messiânica e a sua meta, o processo e a consumação, a jor-

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nada e a chegada, a guerra e a vitoriosa paz, a ignomínia e cruz e o gozo e trono do além. Cada passo era um ato de obediência, mas cada passo dirigia o Redentor para a obra eficaz da redenção, consumada de vez e, daí em diante, oferecida como obra consumada para a aceitação da fé.

«Fazer a vontade». Nós não somos o Redentor. Não há «UM Só ATO» nosso que possa trazer para a raça humana o julgamento favo-rável de justificação de vida, dom gratuito a todo aquêle que crê. Não é nossa função fazer propiciação pelos pecados do mundo. Ninguém inter-prete Is. LM como tendo seu cumprimento em nossas dores, por mais altruísticas que sejam. O Filho de Deus veio fazer, e de fato consumou no Calvário, UM ATO, sem par e sem possibilidade de ser imitado, repe-tido ou suplementado por atos humanos que entrem na conta do resgate do pecador.

Mas o espírito de Jesus, obedecendo a cada passo à vontade de Deus para com êle, pela longa jornada, e levando assim o propósito divino ao seu acabamento eficaz, pode ser imitado por nós em nossa vida tão dife-rente e de funções tão dissemelhantes no reino de Deus. Nós podemos também seguir, sempre seguir, na vida de peregrinos, e perseverar, sem-pre perseverar, na direção do alvo da chamada divina que nós ouvimos e visamos realizar. A tenacidade em continuar na senda, e o esforço para completar todo o empreendimento do propósito divino, é a imitação de Jesus. Teremos de enfrentar hostilidade, calúnias e controvérsias como Jesus enfrentou (Capítulos V, VI, VIII, IX, X, XI, XII). Mas o espírito pacifista, no campo doutrinário e espiritual, faz covardes das testemu-nhas de Deus. No Capítulo I da controvérsia, calúnia, hostilidade do mundo, da carne ou do diabo, eis que o tal seguidor de Jesus volta para trás. Aquêle que pôs a mão no arado foge vertiginosamente. Senta-se num lugar seguro, qual Aquiles na sua tenda longe da batalha, e aí fica vegetando e resmungando: «Nada de controvérsias para mim. Eu estou alheio a tôda matéria de opiniões divergentes.» O retrato dos tais aí está no Cap. VI: «Muitos dos seus discípulos disseram: Dura é esta doutri-na ; quem é capaz de continuar a ouvi-la?... Em conseqüência disto, muitos dos seus discípulos tornaram atrás e já não peregrinavam com êle.» Que adianta uma peregrinação que não chegue à sua cidade de des-tino? Que valor têm muitos começos e nenhum acabamento de obra? Que galardão haverá para os empreendimentos iniciados e abandonados? A alegria de começar e o tédio de acabar é falta de caráter cristão. Jesus, na sua última revelação, diz: «Sê vigilante, e CONFIRMA o que ainda permanece, que estava prestes a morrer; pois não tenho achado tuas obras completas.» Completemos as nossas. Jesus nos previne contra os que nos querem divertir, clamando: «Ei-lo ali, ou acolá!» Não os si-gamos. Se consentirmos em atender, não faremos outra coisa senão cor-rer atrás dos «LÍDERES» de «MOVIMENTOS». Não passa um inverno sem seu novo movimento. O «líder» ambicioso e interesseiro identifica

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o reino de Deus com sua nova «ideologia», «movimento», organização, retiro, rearmamento moral, ou qualquer outra sedução ou mania, e cha-ma a todos para correr do seu trabalho que Cristo lhes designou. E se não correrem para cá e para lá incessantemente, eis que são uns «estrei-tos», «sectários», «sem visão», «reacionários» e nomes piores. Os que correm assim atrás dos homens acabam desiludidos e se desviam da vida cristã prática. Jesus iniciou e organizou UM MOVIMENTO. E' a evangelização do mundo e a educação dos evangelizados em tôda a von-tade revelada de Jesus Cristo, segundo a Grande Comissão; e esse MO-VIMENTO vai sem solução de continuidade até o fim dos tempos. Nin-guém tem direito de fundar outro movimento e chamar o povo de Cristo para deixar o que está fazendo em obediência a Jesus, a fim de entrar em qualquer novidade de doutrinas e práticas e medidas da sabedoria e von-tade humana. Nós não somos vadios, esperando que alguém nos chame para atividade útil. Jesus nos chamou e nos designou nossa tarefa. E' servir e obedecer, em igrejas também obedientes e ativas na Grande Co-missão. Quem nos procure desviar dêsse MOVIMENTO nos tenta a abandonar Jesus Cristo e o caminho de sua vontade clara, obrigatória, universal e imutável. Que todos os tentadores, com tal propósito ulterior, contrário à vontade de Deus, vão por seu caminho, desapontados. Fi-quemos nas igrejas, cooperando até o máximo de nosso poder e até ao fim da vida, na tarefa que Cristo nos deu e levêmo-la a uma gloriosa consumação. Assim êle fêz. Êle disse: «Por amor dêles me santifico.» Êle se separou e se dedicou à CRUZ, sua obra redentora a ser consu-mada. Santifiquemo-nos também para a vontade de Deus e seu propó-sito especial na vida de cada um de nós e para o alvo coletivo de cada uma das nossas igrejas.

«Empreendimento». Vêde a nota sôbre esta palavra em 5:36. 35. «Constantemente dizendo». Por que? Era a época amada, a

colheita, a prosperidade, as peregrinações, o encontro com amigos e ama. dos, o g&zo das magníficas cerimônias e da música do templo, a lem-brança simbólica dos grandes atos da redenção nacional. Os cinqüenta dias desde a Páscoa até o Pentecostes eram os sublimes dias do ano. Na árdua tarefa, cada qual diria: «Estou contando os dias. Só faltam agora quatro meses e então estaremos na gloriosa época da ceifa.» Hovey dá quatro razões por que não pensa tratar-se de um provérbio: (1) Não há conexão que justifique um provérbio no contexto. (2) A palavra «ainda» não caberia num provérbio, mas indica o tempo em que Jesus falava. (3) Um provérbio não seria motivo do pronome enfático VÓS que está no original. (4) Não achamos vestígio de semelhante provérbio na fala contemporânea. (6)

(6) "The American Commentary on the New Testament", in loco.

C. E. J. —

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«Quatro meses e a colheita vem.» A. Hovey opinou que essas pala-vras indicam que o tempo do incidente era o mês de dezembro. (7)

«Quatro meses». O Dr. A. T. Robertson, sem dogmatismo, inclina-se a penãar que essa frase nos permite identificar o tempo como o mês de dezembro. Ele acha que não se trata de um provérbio rural, pois não se sabe de semelhante provérbio e seria infidelidade para com os fatos, pois o prazo entre a semeadura e a colheita do trigo é muito mais do que quatro meses. (7-A) Vêde as notas sare cronologia e tempo no versí-culo 1 e em 1:28.

36. «Já». Em alguns textos a palavra vai com «estão brancos»; em outros, com «está recebendo salário». A lição é a mesma, pois tanto a oportunidade e obrigação de trabalhar, como galardão pelo trabalho feito, já vingam, na atualidade, não em alguma idade áurea do futuro pessoal ou coletivo. Eram discípulos. Em qualquer corpo discente a tentação quase irresistível é de pensar que a vida ainda está lá longe no futuro. Seus mestres lhes exortam que já estão na forte corrente da vida, e todos os seus princípios e dons e ideais são indispenSáveis AGORA; e, se murcham pelo desuso agora, não terão vigor para a hora sonhada lá no futuro. Pensando nos Doze como alunos na escola de Jesus nós os en-tenderemos melhor, pois discípulo é aluno. Sendo que a vida já se vive durante o discipulado, um apóstolo aprendia a fazer, fazendo. Por isto eu felicito todo seminarista que seja pastor enquanto está estudando no Seminário. Aprende a pregar, pregando e a pastorear igreja grande, pas-toreando igreja pequena, e não se desvia logo de sua carreira por não ter tido experiência alguma nas suas atividades enquanto estava se prepa-rando para as mesmas. Seminários teológicos, como quaisquer outras instituições científicas, precisam de laboratórios. E os laboratórios da vida das igrejas do Senhor são os trabalhos nas mesmas igrejas que edu-quem para as dirigir no futuro pastorado. Jesus é infinitamente mais sábio guia e modelo, na educação teológica, do que homens com idéias mundanas que vieram de educandários onde existe a fusão abominável de Igreja e Estado, com os planos e objetivos de um clero privilegiado e distanciado do povo, que centralize tudo numa catedral, em cada cidade, e deixa o povo em massa a perecer sem sua atenção, ou multiplica paró-quias com o dinheiro do govêrno. Jesus educa na mais profunda doutri-na e espiritualidade e na prática do que o discípulo aprende enquanto está assimilando o ensino. Imitemos a Jesus, não aos prelados de um falso cristianismo.

«A fim de que o semeador e o ceifeiro se alegrem juntamente». Um cristianismo congregacional envolve a união, na base de uma espiritual voluntariedade, entre obreiros de variados dons. Deus não quer uma só

( 7) Idem. (7 - Al -Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 70.

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qualidade de obreiros. Uns são essencialmente semeadores. Ele fala mais dos semeadores do que dos ceifeiros. Ambos são necessários e seu trabalho é complementar. Nada vale o trabalho do ceifeiro se o semeador semeou joio. Nada vale, senão em escala muito resumida, a obra de se-mear, se não houver colheita. Trate o pioneiro de preparar o caminho para seu sucessor, não só para si. Cuide amorosamente o ceifeiro de co-lher o que seu predecessor semeou. Assim ambos serão alegres no Se-nhor. Mas se se hostilizam e se derrotam mutuamente, a amargura será a porção merecida que lhes cabe .

«Salário». Jesus apela para a esperança do motivo de galardão, como em outros lugares apela para os motivos de amor e de mêdo. To-dos os motivos que êle usava são poucos para nos levar ao sublime alvo que êle ergueu. Ninguém chegará a um estado de idealismo platônico em que não lhe faça apêlo o sentimento de galardão, pois há muitas es-pécies de galardão, todos os motivos de satisfação em nossa vida por trabalho feito com resultados que nos dão apoio e o sentido de vitória e eficiência. O arcebispo anglicano de Canterbury, Dr. Temple, e o Deão da Catedral de Canterbury também, vivem anatematizando o motivo de lucro, na vida econômica. Poucos estudam as filisofias econômicas, e tais teóricos não descem à vida prática onde as multidões vivem, por-tanto, não se entendem. Gritam contra «o capitalismo», e o povo co-mum pensa que se trata dos «milionários» e não se importa. Mas se dissessem que não acreditam na propriedade, nos juros, nas possessões particulares, na liberdade de carreira e iniciativa, em empresas ou em-prêgos particulares, e que estão advogando a alternativa totalitária do ESTADO SER TUDO, POSSUIR TUDO e FAZER TUDO, existindo o indivíduo sómente para o ESTADO, então o homem comum veria essa nefanda propaganda dos tais que identifica o reino de Deus com o co-munismo ou qualquer outra ideologia semelhante.

Um filósofo (8) respondeu há pouco ao arcebispo Temple: «Qual é a diferença, em princípio fundamental, entre o lucro do homem que em-prega seu capital e o salário ou a paga que o operário recebe por seu labor ?» Que sejam justos, e regidos por justas leis! Mas o MOTIVO de ambos não é ganhar? Trabalhariam sem ganhar? O dinheiro só vale como equivalente dos valores da vida que com êle se compram. Em qual-quer sistema econômico o homem não buscará esses mesmos valores, dando algo em troca, sendo assim galardoado seu esforço pela aquisição? Não cabe a nenhum arcebispo repudiar motivos que Jesus usou e ensi-nou como fundamentais na vida.

«Ajuntando fruto para a vida eterna». A idéia não é que o fruto de nosso ministério evangelizador seja a base da esperança de vida eter-na por nossa parte, lá em outro mundo. O que o Mestre ensina é que os

(8) L. P. Jacks

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convertidos são o fruto e são congregados na comunhão da vida eterna que é a essência da salvação que recebem de Deus agora como «dom gratuito». Os que evangelizamos são para nós «fruto». Esse fruto «ajuntamos» — é o verbo que vem da mesma raiz de sinagoga, congre-gação. Nós recebemos «salário» ao buscar e cultivar o fruto. O fruto é gente salva e recebe vida eterna na salvação. Guardemos bem distin-tas coisas diferentes. Aqui se vê a vida pessoal no cristianismo, o indi-víduo que é fruto recebe a vida eterna, o seu evangelizador recebe ga-lardão. Mas o cristianismo não é um individualismo desenfreado. João Batista grangeava um POVO para o Senhor. E o Senhor congregava círculos de um discipulado e os instruia na disciplina congregacional de si mesmos segundo seu mandamento (Mat. 18:17, 18) . E os apósto-los recebiam salário, figurada e literalmente, e «ajuntavam» o fruto do seu ministério. Paulo cuidou de congregar seu fruto e SELAR os resultados de seu ministério, antes de passar adiante. Nunca houve, no plano de Deus, um cristianismo desorganizado um só dia na histó-ria cristã. A salvação era sempre pessoal, a vida cristã obediente era sempre, é, e sempre será congregacional. Jesus é central; e igrejas au-tônomas, congregacionais, e voluntariamente cooperadoras entre si — eis o cristianismo que vemos nos Atos, nas Epístolas e no Apocalipse. Ora, desde o princípio, João Batista e Jesus e os Doze iam preparando para o porvir essa qualidade de cristianismo, o único cristianismo puro do Novo Testamento, desde Mateus até o amém do Apocalipse, até a se-gunda vinda de Cristo.

«... se alegrem juntos». «Geralmente, muito tempo passa entre semear e colher, mas... Jesus, o Semeador, e os discípulos, como ceifa-dores, aqui se alegram simultaneamente... Outros (Jesus, o Batista, os profetas) semearam. E vós (contraste enfático) entrastes no fruto e nos resultados bem-aventurados do labor dêles.» (9)

37. «E' uma, coisa ser o semeador e bem outra ser o ceifeiro.» «Amós fala do tempo em que 'o que lavra alcançará o que sega, e o que pisa as uvas o que semeia a semente' (9:13) . Isso se deu aqui com a alegria da ceifa; Jesus, o Semeador e os discípulos, os sega-dores, estão se regozijando juntos... E' triste quando o semeador perde a alegria de ceifar (J6 31:8) e tem de semear em lágrimas (Sal. 126:6) . Há casos em que isso sucede como castigo pelo pecado (Deut. 28:30; Miq. 6:15) . Outras vêzes um colhe onde não semeou (Deut. 6:11; Jos. 24:13) . E' a prerrogativa do Mestre ceifar (Mat. 25:26), mas Jesus deu aos discípulos o privilégio de participar do seu gozo.» (10)

«E' uma coisa ser o semeador e bem outra ser o ceifeiro.» Jesus estava colhendo a sementeira de João. Os discípulos teriam a colheita

( 9) e (10) "Word Pictures in the New Testament", por A. T. Robertson, Vol. V. página 71.

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ainda mais gloriosa que havia de resultar do ministério de Jesus. «Pou-cas coisas houve entre nós de mais insensatez do que êsse clamor contra a doutrina e a repetição constante de que não importa o que o homem crê, se tão sómente sua vida fôr acertada. Seria igualmente sensato afir-mar que não importa a natureza da semente semeada se cuidamos bem da ceifa. Mas é lei da natureza dar-nos a colheita de acôrdo com o que semeamos.» (11)

«Uma coisa é ser o semeador, outra ser o ceifeiro.» O semeador deve conhecer a semente, que é a Palavra de Deus. Ai está todo o va-lor de sua atividade, não no mero ato de espalhar alguma coisa, mas na natureza da semente espalhada. E' também arte que exige cuidado e sinceridade o trabalho do ceifeiro. Colhêr a grandes braçadas tôdas as ervas daninhas da vizinhança não ajuda, antes confunde e envenena, e Deus o repudiará. A impaciência de ceifar dá fruto verde, sem ma-dureza e sem doçura. A imperícia em ceifar, colhendo às pressas tudo que se possa abraçar, enche as igrejas de membros não regenerados.

«Vós sois lavoura de Deus», declarou Paulo aos coríntios. «E o que planta e o que rega são um, mas cada um receberá o seu ga-lardão segundo o seu trabalho» (I Cor. 3:8) . A diversidade de dons não resulta no individualismo da obra. Cada igreja é lavoura de Deus. A semente e a safra são dêle, e os semeadores e os ceifeiros são fatô-res unidos na terra que inteligentemente cultivam. Recebem salário, mas vivem para o Dono da lavoura, e os fins que êle tem em mira pela mesma, e não é uma emprêsa individual que lhes deva obedecer às no-ções particulares. Semeemos e ceifemos de modo a dar alegria uns aos outros, mas sobretudo, ao Senhor da seara.

38. Os críticos modernistas se aborrecem com este versículo. Ele mostra as proporções, a seriedade e os que estavam associados com Jesus, no ano de seu ministério público na Judéia que ultrapassou as maiores proporções de todo o êxito de João Batista. Logo lhe negam o valor histórico. E' preferível negar a competência e o juízo de seme-lhantes críticos profissionais e tendenciosos. De certo, Jesus não lançou um movimento dêsse calibre e envergadura sôzinho, ou com apenas dois ou três casais de obreiros que o visitassem de vez em quando. Nunca percamos de vista o fato de que Jesus não inaugurou seu movimento no vácuo, mas no auge do poder e da influência de João e no círculo dos discípulos dêle. E Jesus dirá, em João 15:27, (veja-se a nota aí) que os apóstolos todos tinham estado com êle desde o princípio do seu ministé-rio quando João o batizou. Êles foram antes discípulos de João, depois discípulos de Jesus, em seguida ministros de Jesus em grande número, e finalmente dêsses ministros êle escolheu doze apóstolos.

(10) "iVord Pietures in the New Testament", Vol. V, p. 71. (11) "The American Commentary", in loco.

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«Eu vos comissionei.» E' evidente que os discípulos já estão num incipiente apostolado. Há quase sempre mais pessoas presentes no mi-nistério público de Jesus do que as pessoas mencionadas. Vêde a nota sobre 15:27 para evidência de que os Doze e José Barsabás e Matias estavam com Jesus, geralmente, em todo o seu ministério público, des-de o seu batismo no Jordão. Mesmo que não tivessem sido designados apóstolos, estariam onde Jesus evangelizava e autorizava o batismo, como haviam estado com João Batista. Jesus está por um ano na Ju-déia num ministério que teve mais abundante êxito do que o ministério do Batista no seu auge. O Mestre não arcava com tudo isso sininho. Nem os apóstolos do segundo ano teriam sido capazes de um ano de in-diferentismo e afastamento de seu Mestre e de sua pregação. Ou ficam com êle o ano ou revezam entre sua pesca no mar de Galiléia e a pesca divina no mar da humanidade perdida.

«Eu vos enviei para ceifar.» Lembra-lhes a comissão. Fôra ex-pressa em outra figura, talvez — tornar-se pescadores de homens. Mas enviou-os desde que os tinha chamado para si, um a um. Mesmo a cha-mada: «segue-me» foi uma comissão para acompanhar o Mestre em ensinar e evangelizar. E êles já foram associados com Jesus num evan-gelismo vitorioso, pois êles, em nome de Jesus, tinham batizado mais conversos do que o Batista .

«Ceifar aquilo em que não trabalhastes». «Os samaritanos vinham aí, não por causa de coisa alguma dita pelos apóstolos enquanto faziam suas compras na cidade, mas pelo testemunho da mulher.» (12)

«A colher aquilo em que não tendes trabalhado.» «Estava mesmo na primeira parte do ministério de Jesus. Quase não principiara... e eis que abundante messe lhe vinha na colheita ... Há um tom quase de inveja por parte dêle ao felicitar os discípulos pelo fato de que essa gloriosa ceifa era reservada para êles.» (13)

«Eu vos comissionei a viver colhendo aquilo em que nem vos can-sastes.» E' nossa felicidade e também nossa responsabilidade. Somos cegos se não vemos aqui uma teologia pastoral, sã e sólida, ministrada por Jesus aos seus seminaristas. E seu primeiro cuidado e ensino é que haja continuidade entre os predecessores e os sucessores. O espírito mais anarquizador que se possa imaginar é o do obreiro que quer fazer no comêço de um pastorado, ou de outra atividade cristã, um Capítulo Um de Gênesis. Nós não somos Adãos. Já estamos pelo menos em Êxodo, ou Números ou Crônicas, na marcha da obra em que chegamos a ser um fator posterior no seu desenvolvimento. CONTINUIDADE E' A SUPREMA NECESSIDADE DESSA OBRA. «Sem solução de con-tinuidade» é nosso alvo. Cada igreja é santuário de Deus, construído

(12) The Expositor's Greek Testament", Vol. I. p. 731, por Marcus Dods. (13) "In the Days of His Flesh", por David Smith, p. 78.

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de pedras vivas. Somos os èdificadores sucessivos. Só o louco irá de-molir as paredes já construídas. A história de muitas igrejas, porém, é somente uma série de demolições para começar tudo de novo, em cada pastorado. Jesus cuidou de ensinar seus seminaristas a não serem indivi-dualistas desse jaez, cada um agindo como se fôsse Adão e nada ti-vesse acontecido na história em que êle entra. Vêde como Jesus tra-tou a João Batista, como com êle cooperou, como o louvou, como não se apressou em fazer o Batista diminuir — isso êste por si mesmo fa-zia voluntàriamente. Assim há continuidade na obra. Que tragédia ingrata e estúpida é quando num campo missionário, num educandário, numa igreja o novato derruba, anarquiza, ofende, desprestigia logo tudo que Deus, o Espírito Santo fêz por seus predecessores e exclama: «Ago-ra haja luz. Eu cheguei.» Incompetente. Já está recebendo «salário» demais. Galardão não terá, senão a suma vergonha quando seu Senhor julgar seus estragos personalistas do reino e das igrejas de Deus.

«Eu vos comissionei para viver colhendo aquilo em que nem vos cansastes nem vos cansais por labôres de vossa parte.» De certo, Jesus não insinua a ociosidade. A doutrina aqui é a continuidade da obra do seu reino. Ninguém está no começo da obra. Entra em algo que já vi-nha sendo feito. Tem de relacionar sua vida com outras vidas. Sua missão não é de ser pioneiro, mas sucessor dos pioneiros, edificador grato sôbre os alicerces e as paredes por eles construídos. Nem lhe compete repetir a obra deles. O dever do ministro de Deus hoje é per-petuar a obra do ministério fiel de ontem e colher os frutos, para ar-mazená-los no reino e nas igrejas de Deus.

E' indigno o obreiro que conceba sua vida como se fôsse o livro de Gênesis. O Gênesis está consumado, escrito, feito. Nós somos sucesso-res de alguém, de muitos. Os semeadores já semearam. Somos do tem-po da colheita. Cuidado para não destruir o que outros plantaram. Cuidado para não negligenciar seu desenvolvimento e amadurecimento. Cuidado para preservar seus frutos. E' mister saber ocupar o segundo lugar na fileira, o centésimo e milésimo e perpetuar o que os outros fi-zeram. Nem vale coisa alguma uma roça onde nada se faz senão semear. O cultivo e a colheita são deveres supremos, a seu tempo.

Como Jesus é o Exemplo! Ele era ouvinte submisso, em muitas si-nagogas. E na primeira vez que falou, disse: «E' cumprida essa Escri-tura.» Era a continuidade das revelações prévias. Ele veio em segun-do lugar, após João Batista. E vai humildemente cooperando na obra de João, pregando e batizando como João. Era ceifeiro, de propósito, do que João semeara. Dêsse trigo encheu os armazens do seu reino e formou seu próprio «colégio de apóstolos».

Ai do obreiro «Gênesis», o iniciador abrupto, o deslocalizado na sé-rie, o anarquizador que é incapaz de andar na fileira, o desordeiro e

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egoísta que desmancha tudo que seu predecessor fêz, até lhe cavando o fundamento e edificando tudo de novo. O homem de um talento fêz essa acusação ao seu amo: «Senhor eu soube que és um homem severo, cei-fas onde não semeaste e recolhes onde não joeiraste.»

Longe de negar isso, o amo confirmou que êsse plano era parte da vida organizada em que cada um fazia sua parte e cada um se apro-veitava dos labores alheios e ninguém procurava fazer tudo. Tal servo é chamado «mau, preguiçoso e inútil». Os que sabem cooperar terão os lucros da vida. O isolado e o desconfiado colhe apenas «chôro e ranger de dentes».

Se há uma coisa que eu suplicaria aos meus irmãos no ministério, é que fujam de pressurosas inovações, ao começar um pastorado ou qualquer outra tarefa. Cuidem de colhêr o que os outros pastores se-mearam. Não arranquem a safra. Não pisem a roça já feita. Somos comissionados para nos unirmos na sucessão dos obreiros e para fazer valer o que êles começaram. Uma inifinidade de inovadores, começan-do muito, nada continuando, nada acabando, é o maior atestado de incom-petência e anarquia que pode afligir um povo.

«Vós haveis entrado no trabalho (Mies.» E' a lei da vida. Somos membros da sociedade. Tu podias ter colhido juros do talento que te foi entregue. Há bancos que existem para êsse fim. Desprezar os lu-cros e vantagens mútuas da sociedade organizada, e isolar-te semente na guarda de um talento inútil e intato, é ser mau e anti-social. No intercâmbio entre semeador e ceifeiro, entre credor e devedor, que aproveita o alheio e paga juros, está a união mutuamente vantajosa das vidas em sociedade. A alma que se isola dos seus semelhantes e da so-ciedade da obra comum terá o choro e o ranger de dentes.

Saber êstes fatos serve para nos prevenir contra a amargura quei-xosa e facciosa. Somos pioneiros em alguma obra, fundadores de alguma igreja ou empreza cooperadora? Nem por isso ela é nossa. E' talento que administramos. E quando vencermos e dissiparmos a hostilidade pú-blica e os mal-entendidos do meio ambiente e ganharmos uns fiéis coope-radores nesses anos duros e pouco frutíferos, sejamos avisados. O pró-prio galardão («salário») de nossa fidelidade será talvez ver um obreiro mais moço, menos sério, entrar em nosso lugar, colhêr onde nós semea-mos, ceifar com exultação, onde nós pusemos as sementes uma a uma com lágrimas, ser amado por aqueles que nos odiavam por causa da verdade e ser uma figura eminente e vitoriosa enquanto que nós descemos a la-deira para o sol poente, cansados e olvidados. Tenhamos ânimo. E' exa-tamente como deve ser. A obra é uma. O semeador e o ceifeiro se regozi-jam juntos e o vaivém de semear e ceifar continua sempre, para o Se-nhor da seara. O semeador de hoje por sua vez envelhecerá e verá passar os dias da safra; e de novo os semeadores entrarão em atividade e meterão

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o arado onde êle meteu a foice e o tempo por estas sucessivas estações marcha para a eternidade e o pleno cumprimento do propósito de Deus que seus conselhos predeterminaram antes de se lançarem os alicerces do universo. O servo que quebra êsse intercâmbio entre o passado e o futuro, entre o pioneiro e o conservador, entre o sonho e sua realização, entre as semeaduras e as safras, é servo mau e preguiçoso e seu salário será o chilro e o ranger de dentes.

«Outros». «Os discípulos nada: semearam aqui em Sicar, mas somen-te Jesus e a mulher. Os outros eram João Batista e os profetas.» (14)

39. «Por causa da mulher que testificara: Ele disse-me tudo que fiz.» A convicção do pecado pode ser contagiosa. Ela revelou aos vizinhos o que seu coração havia sentido e foram buácar o Autor dêsse poder ma-nifestado na convicção dela.

40. «Passou ali dois dias.» Não há menção de milagres ou curas. Os sinais dessa natureza freqüentemente embaraçavam o evangelho e for-çavam Jesus a ir adiante ou a esconder-se das turbas curiosas. Aqui a sua missão é puramente espiritual e os efeitos eram maravilhosos e pací-ficos, e, em tudo, satisfatórios. João Batista não operou milagre algum e criou ao redor de si uma qualidade de atmosfera puramente espiritual, de espectativa acerca dum Messias evangélico e de mentes abertas para a re-velação de Deus em Jesus Cristo.

41. «Creram por causa das palavras de Jesus.» As palavras do eterno Verbo são mais poderosas do que o testemunho da samaritana, e a Palavra inspirada do Espírito havia de ser, e é, ainda mais poderosa do que a de Jesus nos dias da sua carne, (16:7, 12-15). O crente que dá a primazia às palavras de Jesus, acima das subseqüentes revelações da ver-dade, volta para os dias inferiores, antes de Pentecostes, antes do Novo Testamento. A suprema revelação não é o Sermão do Monte mas o Cal-vário, e sua interpretação inspirada.

42. «Não é pelas tuas palavras que cremos.» Na própria hora da conversão, a carne pode manifestar-se ao beliscar una desafeto. Quem di-zia palavras tão cheias de preconceitos mostrava-se inferior à pobre cria-tura que havia partilhado com outros o pão da vida.

«O Salvador do mundo». Strong cita o comentador alemão Delitzsch que diz: «O Velho Testamento é a vida de uma nação: o Novo Testamen-to é a vida de um homem. O fim principal da existência na nação era produzir o homem: o supremo alvo do homem era salvar o mundo.»

«O Salvador do mundo». O título não agrada aos modernistas. Não querem admitir que cabe a Jesus assim, bem no começo de seu ministé-rio. Como diz o Dr. A. T. Robertson: «Realmente creram... Vêde Mat. 1 :21 para o verbo salvará, usado a respeito de Jesus pelo anjo Gabriel. Je-sus havia dito à mulher que a salvação era proveniente dos judeus (v.

(14) "Word Pictures in the New Testament", por A. T. Robertson, in loco.

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22). Êle claramente declarou aos samaritanos que êle era o Messias, como dissera à mulher, e explicou que isso significava que êle era o Sal-vador dos samaritanos tanto quanto dos judeus... Não era natural, pois, que êsses samaritanos tomassem Jesus como o Salvador do mundo inteiro, a despeito de ser judeu? Bernard tem êste estranhável comentário sôbre João 4:22 — 'No primeiro século não está provado que a palavra Salvador fôsse usada como titulo messiânico'. O uso de 'salvador e deus' para Pto-lomeu foi verificado no terceiro século a.C. Os romanos chamavam seus imperadores Salvador e o Novo Testamento assim chama o Cristo (Luc. 2:11; João 4:42; Atos 5:31; 13:23; Fil. 3:20; Efés. 5:23; Tito 1:4; 2:13; 3:6; II Tim. 1:10; II Ped. 1:1, 11: 2:20; 3:2, 18) . Todos êsses são es-critos do primeiro século d. C. Os da vida samaritana se elevam à altura da fé no Salvador do mundo.» (15) Êle cita ali o grande perito nos papiros, Deissmann: «Os materiais amplos colecionados por Magie demonstram que o pleno título de Salvador do mundo, com que João adorna ao Mestre, se dava em várias maneiras a Júlio César, Augusto, Cláudio, Vespasiano, Tito, Trajano, Adriano e outros imperadores, como se verifica em ins-crições gregas no Oriente Helênico.» (16)

A dura vontade de descrer, tanto fecha os olhos aos fatos como nega tudo que corrobora êsses fatos, por mais evidentes e históricos que sejam. Marcus Dods acrescenta: «O título de Salvador do Mundo foi, com certeza, suscitado pelo ensino de Jesus durante os dois dias que passou ali.» (17)

«Salvador do Mundo». «E não apenas do povo escolhido, Israel.» (18)

(15) "Word Pictures in the New Testantent", Vol. V, p. 73. (16) "Light from the Ancient East", p. 364. (17) "The Expositor's Greek Testament", Vol. 1, p. 732. (18) "The American Contmentary on the New Testament", Vol. sôbre João, in loco,

por A. Hovey.

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O Profeta e sua Terra

(Capítulo IV, versículos 43 - 54)

44 Depois dos referidos dois dias, saiu dali para a Galiléia. I Ora Jesus

mesmo testificou que um profeta não goza de estima em sua própria terra. 45 I Então quando entrou na Galiléia, os galileus o receberam porque ainda esta-

vam impressionados com tôdas as coisas que o tinham visto praticar em Jerusa- 46 lém na ocasião da festa. Porque eles também foram à festa.

Caná, Centro de Milagres

Então veio ele de novo a Caná da Galiléia, onde fez da água vinho. E ha-via certo oficial de alta categoria, cujo filho jazia enfermo em Cafarnaum.

47 I Este, quando ouviu que Jesus havia chegado da Judéia para a Galiléia, partiu ao seu encontro e suplicava que descesse logo e lhe curasse o filho, porque es-

48 tava agonizante. I Então Jesus, encarando-o, declarou: "Vós absolutamente não crereis, se não virdes miraculosos sinais e maravilhas."

49 Fé e I "Senhor", diz ante ele o oficial, "desce já, antes que

50 credenciais meu menino morra." I Jesus lhe mandou: "Vai, teu filho vive." O homem deu crédito à palavra que Jesus lhe pro-

51 feriu e seguiu viagem. I E, enquanto ele ainda descia, seus escravos sairam 52 ao seu encontro, dizendo-lhe que o menino estava bom. I Então procurou sa-

ber deles em que hora teve a melhora. Disseram-lhe: "Ontem, lá pelas sete

53 horas, a febre o deixou." I Então o pai verificou que

Uma família fora naquela hora em que Jesus lhe dissera: "O teu filho

54 de vive." E tornou-se crente, ele e sua casa inteira. I E Je-

crentes

sus operou ainda este segundo sinal miraculoso quando veio da Judéia para a Galiléia.

43. «Dois dias». Jesus não ficou muito tempo de vez em lugar algum. A verdade precisa de tempo para brotar e crescer. Ele. voltava. Paulo fazia uma segunda visita para «confirmar as almas dos discípulos, exortando-os a permanecer na fé» (Atos 14:22), fazendo mesmo uma se-gunda viagem missionária, «fortalecendo as igrejas», Atos 15:41. E' nesse esquema de confirmar a fé que o velho apóstolo João escreve êste Evangelho final. Filipe, o evangelista, e Pedro e João voltariam a «muitas aldeias dos samaritanos» e à própria capital dêles (Atos VIII), evangeli-zando e confirmando e guiando para novos dons e responsabilidades. Dois dias em seguida, de intensa semeadura, num lugar, valem mil sementes lançadas fora do tempo e à toa, se mais tarde o semeador volta a cultivar

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e colhêr o fruto. Jesus nem ficou prêso nos lugares por êle evangelizados nem os abandonou. São dois extremos a evitar. As primeiras visitas são como andaimes. Convém saber quando tirá-los e até quando deixá-los fi- car. Jesus nada edificou sôbre vantagens sociais nem sôbre sua constante presença visível.

«Para a Galiléia». Não foi para Enom nem demorou na província. Sua missão principal o esperava na Galiléia.

«Galiléia». «Era o comêço de seu ministério na Galiléia. Seu apare-cimento anterior em Caná da Galiléia era apenas um incidente no seu mi-nistério na Judéia.» (1)

44. «Um profeta não goza de estima em sua própria terra.» O no-tável comentador alemão Meyer, com o pleno apoio de A. Hovey (2) dá a seguinte interpretação sôbre «a própria terra» de Jesus. Era a Judéia, a Galiléia, ou a cidade de Nazaré? Meyer opina que a terra de Jesus era a Galiléia. Portanto, êle não começou seu ministério público ali, mói-mente em Nazaré. Ele firmou sua posição de profeta, órgão da revelação divina, fora da Galiléia, na província da Judéia onde trabalhou mais ou menos um ano. Ali ganhou seus lauréis e um corpo de discípulos maior do que João Batista tinha atraído. Logo êle trouxe consigo para a Galiléia o nome es-tabelecido, as credenciais já reconhecidas nacionalmente na capital e no templo, que êle purificou com autoridade. Estava, pois, pronto para seu grande ministério na Galiléia porque ales também foram à festa».

E' a melhor explicação das muitas que li. Este princípio de Jesus deve corrigir uma idéia errônea de muitas igrejas, isto é, que um seminarista sempre tem o dever de voltar à sua própria terra donde partiu para o Se-minário. De um modo geral, é precisamente para onde êle não deve vol-tar. A doutrina e o exemplo do Senhor Jesus são contrários ao alvitre, se bem que o Espírito é soberano e pode chamar e abençoar alguém em sua própria terra como obreiro. Tais casos são raros.

«Não recebe honra.» Há muita discussão sôbre o que significam essas palavras de Jesus. «Sua terra» seria a Judéia, onde nasceu e donde agora partiu? Ou seria a Galiléia, onde morava? Ou especialmente Nazaré, onde tinha residido por trinta anos?

Vejamos os fatos e êsses nos darão a idéia. Já, no versículo 1, João afirma que Jesus tinha mais honra na Judéia do que João tivera no auge de sua glória, e que essa fama lhe era sério embaraço e ameaça por cau-sa do ódio e inveja dos fariseus. Agora êle vai à Galiléia. (Nazaré não figura na narrativa das viagens de Jesus historiadas por João ; logo pode-mos rejeitar a hipótese de uma referência a Nazaré aqui.) E' claro que Jesus esperava ter menos popularidade embaraçosa na Galiléia, precisa-mente porque era conhecido ali. E de fato foi o que se deu. Pôde fazer

(1) "The Teacher's Testament", por M. B. Riddle, p. 220. (2) "The American Commentary on the New Testamene, in loco.

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seu maior e mais extenso trabalho antes que sua popularidade trouxesse contra êle uma igreja igual ou maior, e conseqüentes intrigas para ma-tá-lo antes de seu tempo. Foi um alivio fugaz, pois na Galiléia, depois o quiseram ungir como Rei revolucionário contra Herodes, César e Roma, e em Jerusalém lhe deram entrada triunfal. Mas o alívio, embora fugaz, valia a pena. Outorgou-lhe novo prazo de indizível operosidade em evan-gelizar, e ao mesmo tempo deu-lhe ensejo de educar os Doze para sua missão apostólica. Também a Galiléia era mais populosa, êle poderia achar novos auditórios constantemente, evitar o perigo por conservar-se cons-tantemente em movimento. Outrossim, estava longe do templo, centro do ódio contra êle. Antes estava entre o povo mais liberal da sua terra e o fato de que por tôda parte seus fregueses de outrora o poderiam identificar como homem, evitaria que com demasiada pressa provocassem a questão de sua deidade, missão messiânica e reino.

«Sua terra», pois, é a Galiléia. A honra será menos ali. Mas nem por isso deixará de ser grande, crescente, cada vez mais perigosa ao fim de um ano e pouco de trabalho. Não é, pois, contraditório ler logo em se-guida: «Os galileus o receberam bem porque tinham visto tudo o que êle fizera em Jerusalém.» Não é, porém, um discípulado numeroso e tão em-baraçoso. E êle se livrará do discipulado efêmero dos cinco mil, ao pre-gar-lhes doutrina dura, (João VI) . Ora, que «o receberam bem» não há dúvida. Suas curas garantiam tanto. Mas não é hosanas a um «tauma-turgo» que Jesus queria ou temia. A fé que crescia a seu respeito em Je-rusalém era muito mais, e por isso mais calculada para trazer conseqüên-cias fatais prematuras.

«Não tem honra na sua própria terra.» «A Judéia era a terra de seu nascimento... A província da qual Jesus era natural o rejeitou: sua pró-pria Nazaré nada quis de união com ele; e o homem que o traiu era seu conterrâneo, homem da Judéia. Os demais apóstolos eram galileus.» (3)

45. «Eles também foram à festa.» «Os samaritanos não iam, por-tanto Jesus era uma figura nova para êles; mas os galileus, como judeus ortodoxos, iam e assim ficavam bem dispostos para com Jesus.» (4) «A festa» basta. Já se sabe que é a semana de pães asmos, o período da Páscoa.

Não se traduza: «no dia da festa», como fazem Almeida, Figueiredo e outros. A festa de pães asmos durava uma semana inteira e êles foram para «a festa», não apenas para a cerimônia inicial da ceia pascoal. A Ga-liléia inteira tinha sido educada no valor e poder e missão e mensagens de Jesus pela sua vida na presença dêles — «tudo o que êle fizera em Jeru-salém», durante aquela semana santa de sua religião. E' o valor de Je-rusalém como centro mundial, de 30 a 60 d. C. No palco das festas Jesus

(3) "Teacher's Testament", p. 220 e 228, notas de M. B. Riddle sôbre João. (4) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 74, por A. T. Robertson.

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é visto pelo mundo peregrino inteiro. Mais tarde virá o dia de cada país, cidade e aldeia, «até aos confins do mundo». O propósito de um centro é irradiar e não chupar para si todo o poder e os privilégios e fôrças de uma zona.

46. «A Caná». Ao pé da letra : à Caná, isto é, à já mencionada ci-dade de Caná, cena do primeiro milagre do Salvador.

47. «Oficial». Nada seria mais proveitoso do que uma meditação geral na maneira por que Jesus tratava os aristocratas e as pessoas ricas e cultas. Seu povo é tmntado a manifestar-lhes a adulação servil a fim de ganhá-los. De fato, os homens que tenham alguma coisa, ou de dinheiro ou de cultura, detestam acima de tôdas as coisas a adulação e os adulado-res. O cristianismo nunca é benfazejo quando toma atitude servil, de «res-peitos humanos». Tiago, o primeiro escritor cristão, nos adverte contra isso com a máxima energia, Tiago 2:1-13. E Paulo manda ao bom Timó-teo: «Exorta os ricos dêste mundo a que não sejam orgulhosos» — os ba-juladores dos ricos lhes aumentam criminosamente o orgulho com sua no-jenta adulação — «nem esperem na incerteza das riquezas, mas em Deus; que pratiquem o bem, que se enriqueçam de boas obras, que sejam gene-rosos e liberais», I Timóteo 6:17.

Citemos alguns casos. O primeiro milagre de Jesus beneficiou uma família tão pobre que não tinha servos e nem suficiência das coisas neces-sárias para a festa. Outrossim, para essa pobre samaritana êle deu uma fortuna de graça e revelação que a nenhum sábio outorgou. Deu graças ao Pai porque escondeu da cultura a verdade e a revelou à humildade, Mat. 11:25. O sinal supremo do evangelho é que nivela a sociedade no reino de Cristo, Luc. 3:5, e que êle «se anuncia aos pobres», Mat. 11:5. Jesus escolheu homens de humildes profissões para seus ministros. Aque-le que vinha da soberba Judéia e parecia ter alguma aptidão financeira vendeu-o por amor à posição e ao dinheiro. Não é sem proveito meditar nesses fatos e verdades para que não nos afastemos completamente do es-pírito de Jesus numa bajulação plebéia dos cultos e dos endinheirados.

Vamos ainda aos casos. Para os que gozavam o monopólio do merca-do do templo, Jesus usou um azorrague. À saudação respeitosa de Nicode-mos, que a tradição diz teria sido o homem mais rico de Jerusalém, Jesus instantaneamente respondeu, exigindo que êle se tornasse uma nova cria-tura, bem diferente do que era por natureza, com o novo nascimento, me-diante a fé num Salvador levantado como fora a serpente no deserto.

Notai quão abruptamente Jesus contestou a saudação do moço rico: «Bom mestre». Como êle não dava adulação a ninguém, de ninguém a acei-tava. Ele é digno de adoração como Deus ou é condenável como o mais louco e enganador de tôda a raça dos homens. Não há meio termo, diante de suas próprias palavras. Ou elas são verazes e êle é Deus, ou são a evi-dência de insuportável egolatria e engano do povo e de si mesmo. Ao tal

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rico, Jesus citou duplamente uma parte do Decálogo: «Não furtarás... Não defraudarás», Mar. 10:20. Mas Lucas e Mateus o representam como invertendo a ordem dos dez mandamentos e dizendo ao moço favoreci-do: «Não adulterarás.» Tocou direta e imediatamente na tentação nú-mero um da mocidade rica e o preveniu duplamente e de vez contra o pe-rigo de ser ladrão. Então veio a devastadora exigência que êle deixasse suas riquezas completamente e de vez e se juntasse aos demais seguidores de Jesus, para aprender dêle o resto da vida. Não era nada de mais. Para isso Jesus chamou Pedro, Mateus e os demais apóstolos e deixaram tudo e viviam do evangelho. Notai a lista formidável de textos em que a pa-lavra «hipócrita» caiu dos lábios de Jesus, quase sempre contra os de-tentores de riqueza, poder e cultura — 19 passagens nos Sinóticos, (ou-tra omissão do Quarto Evangelho, porque já está amplamente à mão nos outros). Como a parábola do «administrador infiel» lhes cortou a cons-ciência, pois «mofavam dêle», Luc. 16:14. E como êle repreendeu-lhes a falta de cortesia para com êle, Luc. 7:36-50. Cansa enumerar as adver-tências e as repreensões de Jesus aos ricos, mas sem preconceito e sempre com a vontade de vê-los salvos.

O evangelho nem bajula os ricos, cultos e poderosos, nem os negli-gencia na evangelização, nem lhes recusa a hospitalidade ou as oportuni-dades de mordomia e sacrifício. Não há nêle o espírito de classe, não se-meia ódio de «capitalista» nem é partidário do proletariado, nem admite que este ou aquêle explore a religião para fins de propaganda econômica. O evangelho se especializa na evangelização dos pobres, mas é testemu-nho igualmente para todos. Que os evangélicos fiquem no meio têrmo, com o evangelho. Nem tanto ao mar, nem tanto à praia.

«Um certo oficial». Diz David Smith: «E' geralmente propalado pe-los críticos modernos, e até por Wetstein, que esta história é a versão joanina do milagre da cura do criado do centurião de Cafarnaum» (Mat. 8:5-13 ; Luc. 7:1-10). (5) E' a mania do ódio ao miraculoso na vida de Jesus. Em lugar de rejeitar plenamente a historicidade de Jesus, ficam aparando sua figura e as narrativas a respeito até que o Cristo real dos Evangelhos é de fato rejeitado e uma ficção racionalista fica em seu lugar.

Não há similaridade entre as duas narrativas. O homem dêste inci-dente é um oficial judeu do tetrarca da Galiléia. O centurião era militar gentio. A fé do centurião, mesmo, antes da cura, é declarada por Jesus ser superior à de todos os crentes que êle encontrara entre os judeus, (Luc. 7:9) . Mas Jesus repreende a qualidade de fé que animava o oficial (João 4:48) e com êle todo o seu povo («vós»). Como no caso de Nicodemos, vê as faltas da grei no indivíduo que a representa. O centurião é oficial su-bordinado, de pouca monta, comandante de apenas cem soldados. O ofi-

( 5 ) "In lhe Days of His Flesh", p. 82.

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cial tem um único filho (assim o grego pode indicar) mas vários escravos. O centurião tem um único servo e nada consta de sua família. O servo do centurião estava paralizado, o filhinho do oficial tinha febre. Este falou a Jesus no imperativo aoristo: «Desce já!» O centurião arranjou os prin-cipais judeus como pistolões para com o grande Rabi, que era patrício de-les, e então veio suplicando-lhe o favor para um estrangeiro. O gentio res-peita os preconceitos de raça dos judeus — e, êle supõe, de Jesus — e não quer submetê-lo a urna contaminação cerimonial por entrar na casa de um gentio. O oficial ordenou que Jesus fôsse já e diretamente para sua casa. O militar gentio havia construido a sinagoga local e amava «nossa raça», dizem os chefes da mesma sinagoga. Nada dêsse espírito se vê no oficial ansioso. O centurião já era crente quando apelou para Jesus — o melhor crente na Palestina toda, diz Jesus. A fé nasceu no coração do outro ho-mem depois do milagre. Jesus ficou em Caná e operou o milagre lá longe, num caso; mas já estava em Cafarnaum, e bem avançado no ministério na Galiléia, quando o outro milagre se fêz. O centurião tem a mais sublime doutrina sôbre a absoluta autoridade de Jesus sôbre os homens e a natu-reza; o oficial está mais impressionado com sua própria autoridade —dá ordens a Jesus. Jesus «disse à multidão que o seguia» sua admiração pela fé que o centurião manifestara. Em Caná não há multidão e quem nos informa da fé (em três etapas) do oficial é o próprio João. A «Har-monia dos Evangelhos» (de Watson e Allen) distancia um evento do outro por 24 páginas de tipo, cheias da história do ministério na Galiléia. Sômente uma idéia fixa, hostil ao miraculoso, pode identificar os dois in-cidentes. Se os Evangelhos fossem tão mentirosos ou ignorantes dos fa-tos, nem nos dariam base de acreditar na existência de Jesus Cristo, quanto mais na sua história como eles a narram coerentemente. A in-credulidade é farta no criticismo cínico e radical dêsse tipo. E' em tais fundamentos que descança muito antagonismo ao Evangelho de João.

«Oficial do rei». São mencionados Chuza, Luc. 8:2, e Manaem, Atos 13:1, como possíveis nomes dêsse visitante de Jesus. Em seu romance, «Behold the Man», o agitador socialista japonês, Kágawa, representa a cura como sendo operada no único filho de Chuza e Joana, admiradores ou discípulos secretos de João Batista. Joana abandona a côrte, sua rou-pa linda, seu marido, e em trajes de viúva foge para Jesus, levando con-sigo uma vasta soma de dinheiro e jóias. Jesus tomou essa fortuna numa das mãos e com a outra a deu imediatamente a uma meretriz convertida para se resgatar da escravatura. Chuza então abandona a côrte e se re-une com a espôsa e o filho no discípulado de Jesus. Herodias cinicamen-te diz que Joana deixou a cama de Chuza pela de Jesus.. Uma imaginação doentia e carcomida pelo sexualismo reduz a isso a narrativa pura do Evangelho. Kágawa é filho de meretriz, vivia nessa vil atmosfera e di-ficilmente escapa de suas imaginações carnais, como o livro referido vá-

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rias vêzes exemplifica. Nada disso é verídico ou verossímil. Com a mes-ma mentalidade doentia Kágawa pinta uma paixão de Marta por Judas Iscariotes, mas êste a desprezava porque, diz Kágawa, os seios dela eram pequenos. Mentalidade de geisha!

Lucas, historiador e não romancista com ódio de classe, nos testifica que Joana era espôsa de Chuza, procurador de Herodes. Os «procurado-res» vivem com o rei no Palácio? Ela não jogou, num pacote, uma soma fabulosa nas mãos de Jesus. Ela e Maria Madalena, também mulher ho-nesta e honrada, Susana, e muitas outras mulheres «lhes assistiam com os seus bens» quando Jesus com os Doze «andava pelas cidades e aldeias pregando», Luc. 8:1. Nada há de sensacional nisso, nem dá motivos para introduzir urna insinuação que nunca ninguém, mesmo os seus inimigos infernais, jamais alegaram contra Jesus Cristo. Só podia imaginar tal coi-sa a mente carcomida pela lembrança do sexualismo como há de ser a do famoso japonês, filho de geisha. Nem há prova alguma de que êsse pai angustiado Risse Chuza. E' uma aventura inteiramente no terreno de imaginação doentia o romance anti-histórico de Kágawa.

48. «Quando ouviu que Jesus havia chegado da Judéia à Galiléia». Notai como o Mestre «não podia se esconder». Lá nas rodas da alta so-ciedade êsse oficial soube tanto dos milagres de Jesus como dos seus mo-vimentos. Ele já é figura nacional, maior do que João Batista jamais fora. E cada um, como hoje em dia, contemplava a Jesus no ponto de vista do seu interêsse. Cada um queria dêle algo. Dos dez leprosos cura-dos, nove nem disseram: «Obrigado !» Já tinham recebido dêle o que queriam. Para que demorar? Os apóstolos também viviam em luta inte-resseira sobre qual dêles seria o primeiro, até quase à sombra da cruz . E Paulo testifica como permanecia êsse espírito na santa grei. Uma das roais tristes Escrituras de toda a Bíblia é seu alto louvor de Timóteo, em Fil . 2:20-21, «Nenhum outro tenho de igual sentimento, o qual sincera-mente cuide de vossos interêsses ; pois todos êles buscam o que é seu, não o que é de Cristo Jesus.» Oh! Deus da seara, dê-nos mais obreiros do espírito de Timóteo. Tudo isso são restos da depravação inata que fica no crente, carnalidade interesseira que ainda temos de vencer pela santificação do Espírito, progressivamente.

Esse oficial progrediu do interêsse para a fé real. Mas é preciso en-tender a qualidade de exploração geral de Jesus pelo povo para seus pró-prios fins interesseiros, se vamos comprender a linguagem dura de Jesus e o pouco caso que fez dêsse homem: «Vós absolutamente não crereis se não virdes miraculosos sinais e maravilhas.» E se cressem por êsse motivo, Jesus não confiava em semelhante fé, 2:23-24. Logo nada valia tal atitude para com os milagres de Jesus, ou para com êle mesmo, nesse espírito.

49. «Se não vêdes». Jesus vê a classe no indivíduo. O que é carac-

C. E. J. — 8

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terístico de um é qualidade de muitos. Como viu em Nicodemos o siné-drio, percebeu nesse imperioso homem da côrte real as fraquezas de sua classe. Até que ponto será que o Senhor vê em cada um de nós uma pessoa, livre de preconceitos e peias de ignorância coletiva ? Até onde será que êle vê em cada um de nós apenas urna cédula da massa solidária de uma classe, sem personalidade livre e que corresponda à sua verdade ? A so-lidariedade de religião, classe, cultura, filosofia, tradição, ideologia, cos-tume social, moral coletiva, torna a consciência cega e insensível a Jesus. Cristo vê um e já sabe o que é a massa humana ao redor. A descida moral da independência investigadora de Sicar para a uniformidade incrédula de Cafarnaum era como baixar das alturas de Gerizim ou Ebal para os miasmas e o calor do vale do Jordão e do Mar da Galiléia.

«Se não virdes sinais». «A Samaria tinha recebido sem milagre o Messias como Profeta. Mas na sua própria terra Jesus é aceito, não como profeta proferindo a verdade, mas como mero operador de sinais.» (6)

50. «Desce já.» Quão diferente era êsse aristocrata do centurião de Cafarnaum: «Senhor, não sou digno de que entres debaixo do meu te-lhado, mas dize sômente a palavra e o meu criado há de sarar.» Pelo con-trário, êsse oficial dá ordens a Jesus, na mesma linguagem que usaria para com um dos seus escravos.

«Desce.» Concorda com os fatos geográficos. O mar da Galiléia está abaixo do nível do oceano, num dos sulcos mais profundos da superficie dêste planêta. Também, notai que na fácil descida o fidalgo encontraria depressa seus escravos. E' cada vez mais evidente que a contagem do tempo aqui é romana. Se fôsse à uma hora da tarde, êsse impaciente e imperioso cortesão de Herodes teria chegado em casa no mesmo dia e seria impossível que os escravos dissessem: «Ontem», referindo-se ao tempo da cura.

Quem era êsse fidalgo não sabemos. Talvez Chuza ou Manaem (Luc. 8:3; Atos 13:1) . Se fôsse Chuza, então a esposa dêle seria eter-namente grata pois vivia freqüentemente acompanhando a roda dos dis-cípulos e seu Mestre e lhes pagava as despesas das jornadas, juntamen-te com Suzana, Maria Madalena e outras crentes abastadas e da alta so-ciedade, Luc. 8:1-3. Era a primeira sólida manifestação do «sustento próprio» entre os discípulos. Pois a idéia do sustento próprio hão é que cada pregador deva pagar suas despesas, mas sim que o evangelho se mantenha pelas próprias contribuições dos salvos. Cristo ordenou aos que pregam o evangelho que deixem seus trabalhos, seus lares, «deixem tudo», e «vivam do evangelho». Assim êle e os Doze faziam. E o elemento primacial no sustento próprio era, e quase sempre é um grupo de mulhe-res redimidas por Jesus, gratas e contribuintes.

«Desce já antes que meu menino morra.» O homem não tem a mente

(6) "The Expositor's Greek Testament", Vol. I, in loco, por Marcus Dods.

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aberta ainda. E' «prático». Não tem tempo para «teorias». Nêle Jesus achou um beco sem saida, por ora. Voltou e começou de novo, sabia adaptar-se. Ele não quer discussão. Pois bem. Despachou-o incontinente para ver se o doente estava curado. E o homem de ação vai, verifica e crê. O mesmo método não impressiona a todos.

51. «Creu a palavra.» E' ainda crença sem fé salvadora. Depois de sondar todos os fatos êle «creu», em absoluto, com tôda a sua casa, v. 53. A prova de crer na palavra é obedecer à Palavra no que ela nos ad-verte. Em ir, êle manifestava sua fé na veracidade da palavra de Jesus e daí para confiar na sua pessoa divina não era passo difícil.

52. «Enquanto êle ainda descia, seus escravos sairam ao seu encon-tro.» O eminente comentador Hovey (7) informa que Caná distava de Cafarnaum menos do que cinco léguas. Se o régulo partisse à uma hora da tarde do mesmo dia da cura, os servos o encontrariam de tarde e seria absolutamente impossível dizer que a cura fôra «ontem». Mas se a cura foi às sete da noite, o encontro seria no dia seguinte. Ele é outra teste-munha eminente em favor do emprêgo da hora romana no Evangelho de João.

«Enquanto êle ia». A prova vem de encontro a quem vai ao encontro da prova.

53. «Sétima hora». Marcus Dods e outros acham grande dificul-dade na demora do homem para chegar em casa. Partindo da hipótese do tempo judaico, supõem que a cura se efetuou às treze horas. Como poderia um homem abastado, viajando provàvelmente em carro oficial ou no lombo de boa cavalgadura, resistir à vontade de estar logo em casa ? A distância a vencer era somente uns quarenta quilômetros. Ele mostra tanta pressa quando está com Jesus. Por que não correu célere para casa, se tinha a tarde tôda ao seu dispor? Mas êle espera até o dia seguinte, segundo essa teoria. Não é verossímil a hipótese. Os fatos são outros. As palavras de Cristo foram proferidas às sete horas da noite, pois se calculava a hora segundo o tempo romano, como nós, partindo de meia noite, ou de meio dia . O homem, sossegado pela confiança na palavra de Jesus, não se arriscaria à jornada de noite, com o perigo de salteadores ou de más estradas, no inverno, na escuridão. Encetaria a viagem à luz do outro dia. Do mesmo modo, a cura tendo se manifestado de noite, os criados estariam de viagem cedinho para evitar a vinda do Mestre. Evi-dentemente a cura foi radical, como era de esperar, pois de outra manei-ra a vinda dos criados seria prematura e desnatural. Tôdas as partes da narrativa coadunam, mas coadunam com a suposição de que João, numa província romana, escrevendo a gentios, décadas depois da queda do es-tado judaico, escreveria de maneira a que os romanos pudessem interpre-tar sua linguagem inteligentemente, pois êle não explica, como em outros

(7) "The American Commentary on the N. T.", in loco.

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casos explica qualquer referência a praxes judaicas. Mil dificuldades na Bíblia desaparecem quando a interpretamos razoavelmente.

54. «Ele e sua casa». Nada há de estranhável que em «uma casa» sejam todos crentes. Minha família composta de seis pessoas é crente, e todos crentes batizados. A casa de minha mãe era uma casa de crentes por longos anos, e as famílias dos meus dois irmãos eram e são unidas na fé e em «um só batismo)). Talvez «casa» inclua os escravos. Eles tam-bém seriam crentes pelas mesmas razões que produziram a decisão dos outros no caso. Certamente o menino seria o crente mais grato de to-dos, «um destes pequeninos que crêem em mim», na linguagem de Jesus. Há muitas famílias batistas no Brasil onde família e empregados são to-dos crentes, todos membros da mesma igreja. E não são raras as «casasx, batizadas, unanimemente, depois da sua salvação, sendo todos batizados na mesma hora. O caso esclarece o batismo de famílias crentes que o livro dos Atos narra.

55. «Segundo». Não é de supor que Jesus não tivesse operado ne-nhuma cura anterior na Galiléia. De onde nasceria, então, a fé naquele homem da côrte? Os Sinópticos narram muitos milagres, operados em Cafarnaum, à boca da noite logo depois do fim de seu primeiro sábado na referida cidade. E' o segundo na série que João propôs par,a a consi-deração dos leitores efésios, como demonstração da deidade de Jesus Cristo.

«Jesus operou... quando veio da Judéia.» João dá a impressão mui-tas vezes que está antecipando as objeções críticas de nossos tempos. E' cuidadoso em distinguir êste ato de qualquer milagre posterior. E' um sucesso no início do ministério da Galiléia. Não se confunde com coi-sa alguma narrada pelos Sinópticos.

«Jesus, pois, veio da Judéia para a Galiléia e ainda fêz êste segundo sinal miraculoso.» A linguagem se refere ao milagre feito durante as bodas de Caná. E' «segundo», em relação à vila, não na ordem dos mila-gres de Jesus. Caná saberia já, e Cafarnaum teria em seu meio um anún-cio do valor de Jesus antes de êle chegar para fixar ali seu centro de ati-vidade. E agora, entre os Capítulos IV e V, fica subentendido um ope-rosíssimo ministério na Galiléia já adequadamente narrado pelos Sinóp-ticos e pressuposto por João.

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A controvérsia sabática revela quem é Jesus

(Capítulo V, versículos 1 a 47)

1 Depois destes sucessos havia uma festa dos judeus, e Jesus subiu a Jeru- 2 salém. 1 Ora há em Jerusalém, na proximidade da Porta das' Ovelhas, uma

piscina que na língua hebraica se chama Betzata, dotada de cinco pórticos. 3 1 Nestes jazia grande ajuntamento dos doentes — cegos, coxos, paralíticos — 4 [esperando o movimento das águas. 1 Pois uni anjo, em ocasiões oportunas,

baixava à piscina e agitava as águas; então o primeiro a entrar depois do movimento das águas ficou curado de qualquer doença

5 Jesus de que fôsse oprimido.] 1 E estava aí certo homem que

6 Cura um estivera doente trinta e oito anos. 1 A este, Jesus disse, Desesperado quando o viu estirado e soube que já por longo prazo

7 estava assim: "Queres ficar bom?" I O enfermo lhe tor- nou: "Nenhum ser humano tenho, senhor, que me jogue na piscina quando

fôrem agitadas as águas. E enquanto eu sOzinho va indo, lá está outro bai- 8 xando-se à minha frente." 1 Jesus lhe manda: "Levanta-te imediatamente e 9 toma tua esteira e vai andando." 1 E o homem ficou bom imediatamente, to-

mou sua esteira e ia andando ao redor. Era sábado,

10 A Humanidade porém, aquele dia. 1 Portanto, os judeus que o en- Considerada me- contravam diziam ao curado: "Hoje é sábado!

11 nor que o Sábado Logo, não te é lícito levantar a esteira!" I O qual, porém, tornou-lhes: "Quem me fez bom, aquele é

12 que me disse: Levanta tua esteira e vai andando." I Perguntaram-lhe: "Quem 13 é o homem que te disse: Levanta e vai andando?" 1 Mas o curado não sabia

quem era, porque Jesus, visto que havia grande multidão no lugar, se retirou.

14 1 Depois Jesus o procura e o acha no templo e en-

O Pecado Trouxe, tão o advertiu: "Olha! Agora és homem curado; e Trará de novo, não continues tua vida de pecado para que não te

15 a Dor! aconteça de vez coisa ainda pior!" 1 O homem foi- , se embora e narrou aos judeus que Jesus era quem

16 o havia feito bom. 1 Ora por esta causa perseguiam os judeus a Jesus porque 17 fazia essas coisas no sábado. 1 Mas ele lhes replicou: "Meu Pai está trabalhando

até esta hora. Eu vou trabalhando também." 1 Por 18 Um Palrador Co- esse motivo, pois, os judeus ainda mais procuravam varde e Ingrato matá-lo, porque não 8in:isente violava o sábado, mas Causa a Jesus também chamava a Deus seu próprio Pai, fazendo-

19 Perseguição se a si mesmo igual a Deus. 1 Portanto, Jesus lhes deu esta resposta, e a repetia: "Em verdade, mui solenemente vos digo: O

Filho, de si mesmo, é absolutamente incapaz de

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118 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

Uma Controvérsia qualquer curso de ação, se não olha ao Pai agin-

Dupla e Amarga, do. Porque as coisas que este estiver fazendo,

20 contra Jesus é estas o Filho também continuamente faz. 1 Pois

Organizada

o Pai ama ao Filho e mostra-lhe tôdas as coisas que ele mesmo esteja fazendo, e maiores obras que estas

21 lhe mostrará, a fim d e que vós continueis admirados. 1 Pois precisamen-

te como o Pai ressuscita os mortos e faz que con-

Exposição por tinuem na vida, assim também o Filho faz viver

22 Jesus da sua Igual- a quem quer. 1 Porque nem o Pai está julgando a

dade com Deus Pai ninguém; pelo contrário deu, e atualmente está en-

23 tregue, todo o julgamento ao Filho, 1 para que to- dos honrem ao Filho como honram ao Pai. Quem não honra ao Filho, não

24 honra ao Pai que o enviou. 1 Uma verdade mui solene vos declaro: Aquêle que seja ouvinte de minha palavra e crente naquele que me enviou possui

vida eterno, nem chega a julgamento, pelo contrário passou da morte para a 25 vida e aí fica. 1 Outra verdade solenemente vos af ir--

Atribuições Trans- mo: Uma hora está chegando, aliás já chegou, em

cendentais do Fi- 26 lho, nos Dias de

sua Carne e Para Sempre

27 pessoa. 1 Também deu-lhe autoridade e poder de 28 administrar julgamento continuo, por ser o Filho do Homem. 1 Não continueis

a admirar-vos disso, porque a hora vem na qual todos quantos estiverem nos 29 túmulos escutarão a voz dele 1 e sairão, os que praticaram as coisas retas

para uma ressurreição de vida, os que praticam as

Jesus coisas baixas para uma ressurreição de julgamento.

30 e o Destino I Eu não sou capaz de nenhum curso de ação inde-

Eterno pendente. Conforme escuto, dou sentença, e a minha

sentença é justa, porque não estou procurando fazer 31 a minha vontade mas a vontade daquele que me enviou. 1 Se sou eu quem 32 testifico de minha própria pessoa, meu testemunho não é veraz. 1 E' outro

que está testemunhando de mim, e bem sei que é veraz o depoimento que ele

33 vive testificando a meu respeito. 1 Vós possuis o relatório da embaixada que enviastes a João, pois ele deixou um testemunho permanente da verde-

34 de 1 (Mas eu não estou captando o mero testemunho que venha de fonte hu-mana; pelo contrário estou dizendo estas coisas para que vós sejais salvos).

35 1 Aquêle homem era a candeia que ardia e brilhava, e por uma hora vós tivestes vontade de exultar com

36 João sobre Jesus a sua luz. 1 Eu tenho, porém, o testemunho que é maior que o de João, porque os empreendimentos

que o Pai me deu e ainda outorga, para que eu os leve a serem consumados de vez, os próprios empreendimentos em que agora me ativo, estes testificam

que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus e os tais ouvintes viverão. 1 Pois precisamente como o Pai possui vida em sua própria pessoa, assim também deu ao Filho possuir vida em sua própria

O Testemunho de

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ratinho. permanente a meu algum nem visto sua forma

TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 119

de que o Pai me en-missão. I Outrossim continua dando, teste-

respeito. Não haveis mi-

1 e não tendes, permane- cendo em vós, a sua Palavra, porque vós não dais crédito àquele a quem ele enviou. I Continuamente estais examinando as Escrituras, porque vós mes-

37 Sua Obra Reden-tora lhe é Tes-

temunho 38 vido sua voz em tempo

39 O Pai é Testemu-nha de Jesus

a meu respeito continuamente viou e mantem em vigor minha o Pai que me enviou deu, e

n,tos pensais possuir nelas vida eterna, e são elas que dão sempre testemu- 40 nho acêrca de mim. I E não quereis vir para mim 41 As Escrituras Tes- a fim de que tenhais vida. I Glória da parte de ho- 42 tificam de Jesus mens não recebo, I entretanto, eu vos fiquei conhe-

cendo. Sei que o amor de Deus não existe em 43 vós. I Eu vim — e eis-me aqui — em o nome do meu Pai, e todavia não me

recebeis. Se um outro vier em seu próprio nome, a esse recebereis. 44 I Como é que vós podeis tornar-vos crentes, visto que estais continua-

mente captando glória uns dos outros? E contudo a glória que vem do único 45 Deus não buscais. I Não penseis que eu vos acusarei perante o Pai. Vosso

constante acusador é Moisés, em quem vós depositastes vossa esperança e 46 ainda estais esperando. 1 Pois se estivésseis acreditando em Moisés, teríeis 47 fé em mim; pois ele escreveu acêrca de mim. 1 Mas se não estais dando

crédito às Escrituras dele, como acreditareis nas minhas palavras?"

1. «Depois». João diz «depois disto» e «depois destas coisas». Al-guns pensam que as duas frases indicam interregnos diferentes, esta um intervalo prolongado, com muitos eventos omitidos ; aquela um intervalo menor com seqüência mais aproximada de eventos.

Por que dizer «festa dos judeus»? Em contraste com o longo trecho sôbre a vida samaritana e seu ministério no meio deles, e visando sem-pre os leitores gentios dêste Evangelho, no fim do século.

«Uma festa». A Páscoa, o Pentecostes, a Festa dos Tabernáculos, e o Purim, têm seus advogados. Vede na Introdução (Vol. I, ps. 40-43) os motivos de opinarmos que é a segunda Páscoa do ministério de Jesus. Concorda melhor com a operosidade de Jesus salientada nas narrativas evangélicas, a cronologia, o clima e a harmonia dos Evangelhos supor que era a época da Páscoa.

«Jerusalém». Se buscássemos interpretações fantásticas ou baseadas na mera etimologia, traduziríamos: «Os Jerusaléns», pois a palavra é plural; sempre é plural neste Evangelho. «Jerusalém» é a tradução de duas palavras, uma singular, a outra plural. Mas o significado não é plu-ral. Palavras devem significar para nós o que significavam para quem as falou e quem as ouviu. Uma palavra nunca significa apenas o que indica sua forma gramatical ou sua etimologia. Quer dizer seu sentido adquiri-

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120 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

do, atual naquele lugar e tempo. Em casos onde o significado etimológico entra no pensamento, João explica, acrescenta o fato. E sempre o sentido adquirido no ambiente, e não o sentido remoto das frações etimológicas da palavra, é o significado real da passagem. Ninguém diz : «as Jerusaléns». E nem tampouco deve fugir do sentido evidente e estabilizado de outras palavras usadas por Jesus e seus apóstolos. Nem tanto à praia nem tanto ao mar. Não queremos o sentido remoto, etimológico de uma palavra nem as idéias modernas associadas com seu uso, mas exatamente o que significava na bôca de Jesus quando êle a proferia.

2. aBetesda, Betzata, Betsaida». São as três lições dos antigos manuscritos gregos. Os nomes significam Casa de Mercê, Casa das Azei-tonas, Casa dos Peixes. David Smith repudia a lição Betsaida, achando-a ridícula porque: «Não havia peixes em um poço de água mineral.» (1) Ele diz que a água era de côr encarnada, mas não por serem nela lavadas as vítimas sacrificiais do templo, mas sim porque era água mineral. E acha que nesses tempos de chuva era natural que as águas se movimen-tassem no vale do Kedron. Outros identificaram o lugar com a Fonte da Virgem ou uma represa em baixo, sendo a tal fonte intermitente em jorrar.

«Betesda», ou «Betzata». Diz o Padre Rohden: «Destinava-se essa piscina, provàvelmente, à lavagem das ovelhas e dos cordeiros que iam ser imolados nos sacrifícios rituais.» (2) Duvido. Eram mortos uns 250.000 cordeiros numa só Páscoa, segundo informou o sumo sacerdote a um governador romano da Judéia. Sem dúvida, um tal lugar, adjunto de matadouro, não serviria quase para uma espécie de casa de saúde, com cinco alpendres ao redor, cheios de enfermos. Jerusalém era o centro do povo que mais se lavava e mais cerimônias tinha que envolviam abun-dância de água. E havia essa abundância em Jerusalém, vastos aquedutos e tanques e depósitos subterrâneos. O templo estava dotado do vasto esgoto necessário para a higiene no sacrifício de tantos animais, e das águas necessárias para seus misteres.

3 - 4. Não está nos manuscritos gregos mais antigos e melhores o trecho em parêntese. Sua remoção, para muitos, evita uma dificuldade na narrativa. Outros supõem que é pressuposta a mesma idéia no v. 7 e que os judeus atribuiam aos anjos quaisquer fenômenos «naturais». Hoje em dia há menos desejo de marcar uma linha entre o natural e o sobrenatural e, de fato, tudo é sobrenatural, em certo sentido. Voltamos ao ponto de vista judaico a êste respeito.

David Smith narra outra tradição que explicava o movimento e po-der das águas para curar. «Dizem que Adão, agonizante, enviou seu fi-lho, Set, ao anjo que guardava o paraíso, a fim de suplicar um galho da

(1) "In the Days of His Flesh", p. 139.

(2) "Jesus Nazareno", p. 117.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 121

Árvore da Vida, para que tivesse saúde; e o anjo lhe deu o galho. Antes que Set pudesse voltar, porém, seu pai morreu. Ele o sepultou e pôs êsse galho no montão de terra que lhe cobria os restos mortais. Ai brotou e se tornou árvore. No curso dos tempos, quando se edificava o templo de Salomão, cortou-se a árvore. Mas não cabia em canto nenhum, e dei-xaram-na servir de ponte sôbre um ribeiro. A rainha de Sabá, quando veio com suas ofertas, recusou atravessar na referida ponte, porque viu a árvore e previu que sôbre ela o Redentor do mundo havia de sofrer a morte. Longo tempo depois, os judeus tomaram-na e jogaram-na dentro de um poço de águas estagnadas e deu-se na água fétida uma transforma. ção em água virtuosa para curar. Ali ficou até o dia da paixão de Nosso Senhor quando tiraram o madeiro e dêle fabricaram uma cruz. E' por isso que se chama à cruz uma árvore.» E' de semelhantes tradições sim-plórias e absurdas que a literatura apócrifa e o romanismo medieval estão cheios.

5. «Enfermo». De que? Parece que êle havia semeado na sua car-ne e da carne ceifado a corrução — trinta e oito anos de conseaüências dolorosas do pecado. E Jesus o revine s ue ode lhe sobrevir coisa • ior se êle não deixar de sei --escravo do pecado.

«Enfêrmo». A seita chamada «Ciência Cristã» nega a existência do pecado ou da morte. Alegoriza tudo que na Bíblia se refere a êsses dois males da vida humana, e vai ludibriando suas vítimas. Opera muitas curas de moléstias, embora afirmando que não existem. O enfêrmo fica convencido, e a mente tem influência sôbre o corpo de tal modo que o bom ânimo causado opera realmente mudanças na saúde, especialmente em moléstias de origem e natureza nervosa. O eminente comentador, R. E. Speer, no seu breve estudo sôbre êste Evangelho, pergunta : «Não é fácil ver a diferença entre a atitude de Jesus, que reconheceu não estar são o homem e lhe deu saúde, e a atitude divergente, de uma certa escola de pensamento hodierno, que diz ao enfêrmo estar êle pensando apenas que é enfêrmo, mas que realmente não o é ? Jesus mudou os fatos. Essa opinião hodierna os nega. E êsse contraste abrange coisas que tanto são físicas como espirituais.»

6. «Jesus viu... soube... diz». O saber veio como a vista. Como o espelho divino de sua personalidade perfeita de homem-Deus refletiu na sua consciência logo as relações da mulher samaritana com seis com-panheiros no sexualismo, assim aqui êle «viu... soube ... diz». E' o tempo instantâneo dos primeiros verbos. Suá—alma era como uma kodak na instantaneidade do seu retrato da realidade. Sabendo de vez, diz —vai dizeriq talvez diversas vêzes anes queaça a idéia penetrar naquela mente pecaminosa, doentia, desesperadora e vadia.

«Nenhum ser humano, senhor...» Não é adequado nenhum «se-nhor» Jesus, nenhum mister Cristo, nenhum monsieur Nazareno, ne-

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122 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

nhum Herr Messias, para salvar o pecador — só o eterno e adorável Se-nhor dos senhores todos, Deus o Filho.

7. «Quando a água fôr agitada, falta-me um homem que me jogue dentro do tanque.» A meu ver, essa viva linguagem, como a explicação que segue acêrca da perda da oportunidade para todos os doentes, excepto o primeiro que entrava, envolve ou o versículo 4 ou outra coisa que a êle corresponda. A narrativa de João. sei a qual fôr o texto aceitor_afirma_qu

ogitaç intermitente das águas do tanque, com valor mi-raculoso para uma so pessoa de cada vez. Não me ofende aceitar a de-claração, na sua simplicidade e evidente sentido. E' a geração da supre-ma revelação divina. A Palestina está cheia do sobrenatural. Demônios se opõem a Jesus em legiões, anjos lhe ministram e êle tem às suas or-dens legiões dêles também, como disse a Pilatos. Cristo deu poder ao lodo sôbre os olhos dum cego, à água atirada em jarras, à água para suportar o peso de Pedro, à bôca do peixe para conter a didracma da taxa do templo e mil outras manifestações da sua soberania sôbre a matéria. Vemos um, fora de seu grupo, que João censurou por operar milagres indepen-dente dos Doze, mas não independente de Jesus. A cura do filho do ré-gulo se efetuou bem longe dêle e os fatos a respeito de Lázaro estavam presentes na consciência do Mestre dias antes, e a léguas de distância dos sucessos que se iam realizando. Ou nós cremos nessa vasta e varia-díssima abundância do miraculoso durante a vida de Jesus e da época apostólica ; ou nosso Novo Testamento fica para nós esfarrapado e de-testável, mera coleção de mentiras e fábulas. Não é possível reduzir o miraculoso à psiquiatria ou à sugestão ou ao hipnotismo ou à influência da mente humana sôbre a matéria. Quem se enredar nessas hipóteses caminha na senda do ateísmo, iludindo a seu próprio espirito incrédulo. Não lhe ficará nem Deus nem Cristo nem Salvador nem Bíblia. O na-turalismo ou humanismo filosófico é impotente para explicar ou crer os fa-tos da história de Jesus Cristo. Ou êle é Deus numa real vida humana ou o cristianismo é a pior fraude dos séculos de falsas religiões.

Que Deus permitisse um milagre nessas águas agitadas seria um acompanhamento divino, mas separado, dos milagres de Jesus. O evento está livre da idéia de poder num santo lugar, num dia santo, de culto a uma imagem ou a uma relíquia, de qualquer materialismo. si não seria: tida por miraculasa Era o fenômeno divino do instante. O poder era tido como sendo cinicamente de Deus, não da matéria ou da magia.

Deus agia assim nos dias de Jesus? Sim, e muitas vêzes. Agiu assim no seio de uma virgem na Encarnação. Agiu por anjos em Belém e por uma estrêla miraculosa. Agiu em visões dada,s a José. Agiu por meio da voz na hora do batismo de Jesus e na visível presença do Espirito na forma de pomba. Agiu nos fonômenos da Transfiguração, na voz do céu

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 123

ouvida mais duas vêzes, nas trevas miraculosas do Calvário, no véu ras-gado no templo, nas ressurreições dos santos quando Jesus ressuscitou e na vida do Espírito Santo e no dom de línguas e no aparecimento de lín-guas repartidas de fogo. Deus era soberano nesses milagres e não é de forma alguma estranha_ à _milltidao deseus_ milagres êsse da agitação da água _eni_13étzata que daria motivo para a glória do Salvador.

Um milagre real, de vez_em-quando.,_em Betzata explicaria a paciên-cia e' presença da-multidão. Um milagre real ajudaria, muitos a sacar re-cursos de si mesmos, processo q_ue os psiquiatras usam hoje e_m dia. Com o grito de que as águas se moviam, muitos, a quem só faltava um surto de vontade no organismo, se curariam a si mesmos da paralisia e de molés-tias nervosas que a «Ciência Cristã» e Lourdes e outras influências se ga-bam de curar hoje em dia. Mas ao redor de Betzata iaziam cegos e doen-tes de molestias orgânicas. Éssas não se curavam pela sugestão. Azuar: davam um milagre fé-J.—Jesus operou tal milagre ali. Muitos que tinham fé podiam procurá-Io em outros lugares, e receber a mesma bênção depois.

Coloco o v. 4 fora do texto pelo simples fato que está fora dos me-lhores textos antigos. Mas não está fora de nenhum texto a idéia do mi-raculoso, tanto em ocasiões em que Jesus não estivesse presente como no miraculoso sinal que operou nesse enfêrmo. A presença de Jesus, e mes-mo sua agência direta, não é a única fonte do miraculoso na era apostó-lica. Os Doze levantaram os mortos, nas suas jornadas em separado de Jesus, Mat. 10:8, e depois de sua ascenção, curaram Vida sorte de mo-léstias. Se alguém começa a negar o miraculoso, logo estará negando o Senhor que o comprou, como Pedro o negou sob a intimidação do inimi-go incrédulo; Caveat. O caminho seguro_é-crPr_no mirac_uloso que a Es-critura afirma,__quer _no Velho Testamento quer no Novo, e repudiar os embustes anciosamente inventados em dias que não são épocas de especial reV24A4.-----13ãstam os milagres contemporâneos da revelação, credenciais do revelado. Os milagres de Moisés, de Elias e de Jesus, inclusive a Trans-figuração, provam que êles eram órgãos da revelação divina e são creden-ciais dessas revelações que são tão válidas e imperativas diante de nós como eram em seus dias contemporâneos. E lembremo-nos de que se não ouvem a Moisés e aos profetas, nem ouviriam um ressuscitado de entre sua própria família.

«Outro antes de mim». «E' sintoma do mundo em que vivemos, pois é lugar em que prevalece o egoísmo; se não fosse primeiro, ao entrar na -~ veria milagre em seu caso e permaneceriaum miserável sem affijgqs.» (8)

8. «Toma tua esteira e vai andando.» Jesus não discute as virtudes da água agitada. Ordena a cura e o afastamento do lugar que fôra a cena de tantos sofrimentos.

( 8 ) "Sermons", p. 752, por F. W. Robertson.

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124 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

«Toma». E' o mesmo verbo usado em 1 :29. Êle tirou a esteira do chão para tomá-la sôbre si e carregá-la até o lugar próprio. Jesus to-mou sôbre si o pecado do mundo para carregá-lo até a cruz e removê-lo pela expiação, pelo sacrifício correspondente ao cordeiro oferecido em ho-locausto no altar da redenção simbólica. Tirar de outrem, ou sôbre si mesmo e carregar é a idéia do verbo em ambos os passos.

«Esteira». Se era proibido levar a esteira no sábado, então êsse po-bre homem não foi trazido ali no sábado. Será que os doentes jaziam ali nas suas esteiras dia e noite? E' possível. De certo, era quase como uma casa de saúde, assim como nossas estâncias termais, mas com auxiliares pessoais. O homem que Jesus curou não tinha servo ou auxiliar, e sua esperança era que talvez a inesperada boa vontade de Jesus se manifesta-ria carregando-o até às águas, se porventura se movessem agora.

9. «Ficou bom num instante.» De que estava doente antes do mi-lagre? Várias versões colocam sôbre o parágrafo o título: «Cura dum paralítico». David Smith repudia a identificação do milagre com a cura dum paralítico em Cafarnaum, e cita Crisóstomo como contrário a essa -teoria de alguns judeus e pagãos do seu tempo. Contudo, Smith também diz que êsse doente era paralítico. Não vejo sinal nenhum que indique a moléstia de que sofria. O que sabemos é que era molestia causada pelo seu pecado, pois Jesus o ameaça de «coisa pior» se «continuasse sua vida de pecado». Portanto, é de supor que a moléstia era concomitante do pe-cado que a causou, provàvelmente uma doença venérea. Notai que a do-ença havia durado 38 anos. Talvez a causa e o efeito se repetissem em indissolúvel continuidade. Jesus queria agora uma solução de continui-dade entre a causa e o efeito. Êle removeu o efeito nesta vez para dar ao homem nova folha no calendário da vida, mas o preveniu de que a cura não lhe doava imunidade contra as conseqüências físicas do mal. Cristo dá ao espírito vida eterna; mas não promete ao corpo saúde perene, in-dependente da conduta. Êle castiga agora no corpo os pecados que o es-pírito determina. Tanto crentes como incrédulos, se alguém semear na sua carne, ceifarão a corrução, como Paulo adverte• a muitos crentes nas «igrejas da Galácia». Aliás, repito, é no corpo que Deus castiga nosso es-pírito, nesta vida, I Cor. 11 :30-32 ; Heb. 12:5-7; e se não sofremos assim o castigo dos nossos pecados, «somos bastardos e não filhos» ; isto é, Deus pune para corrigir quando age como Pai, mas às vêzes deixa o ímpio na impunidade, quanto a qualquer providência especial nesta vida contra sua conduta, enquanto êle livremente «entesoura ira no dia da ira e de revela-ção do justo juízo de Deus», Rom. 2:5. Se êsse curado se tornou crente real, era crente que desde logo era ameaçado do castigo divino em seu corpo, se continuasse a pecar. De fato, todo crente vive sob essa ameaça — da colheita na carne segundo sua semeadura. Na outra vida, do além-túmulo, já não estaremos na carne. O castigo do crente é aqui, e envol-

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 125

ve dores físicas e morais, mas não é a «perdição», anulando a vida eter-na». Isso seria contrassenso e absurdo de linguagem.

10 - 47.0 tempo perfeito, no original dêste capítudo, é um dos prin-cipais pontos na sua exposição. Não há no verbo português coisa alguma que a êle corresponda. Portanto a tradução é difícil e, geralmente, impos-sível a não ser aproximadamente por meio de uma paráfrase ou de lin-guagem idiomática que represente a mesma idéia sem corresponder gra-maticalmente ao original. gá212£tnpiin a_perieitu no ca itw. Cada qual representa, do ponto de vista de quem fala ou escreve, uma ação ou um evento realizado e consumado no passado, cujo efeito Perdura na atua-lida e, isto é, no momenta_ de falar ou escrever. O primeiro perfeito se acha no v. 10. «O curado» é perfeitamente curado da moléstia de que sofrera, embora ameaçado de novo sofrimento como colheita se êle de novo semear na carne. No v. 14 a mesma idéia se expressa. «Tens sido curado e ficas com a cura consumada.» Traduzo: «E's homem curado.» No que cabe a Cristo, a cura é perfeita. E êle pede a resolução firme do que ficou são para não trazer nova colheita de dor, por causa de nova se-meadura de pecados. No v. 22, o tempo pw__.•leitocyeillo2LLIidgar é tra-duzido:_ «deu, e atualmente está entregue, todo o julgamento ao Filho». E' eco de uma decisão nos conselhos eternos da Trindade, que fica em vi-gor agora e até a consumação da obra e época redentora. Jesus é juiz agora e dá sentença, mas durante sua missão de Salvador não põe em exe-cução na terra sua sentença final. Isso fará, em sua fase pública e eterna, no dia do grande trono branco, lio julgamento da vida e obra inteira de tôdas as criaturas. Vêde a passagem.

V. 25. O ouvinte que fica sendo crente recebe o evangelho ouvido e o Salvador oferecido, «possui v • • kl, • i • • a 'ul amento pelo co • II • •. •» «Passou da morte para a vida» seria o tempo aoristo. Mas é perfeito. Na vida para a qual êle entrou em tem •o •assado fica ainda • e o esta. • • a—o— é c ou- suma• o, judicia mente consumado, e assim perdura.

V. 33. E' eco da embaixada dos saduceus que o sinédrio enviou ao Ba-tista por instigação dos fariseus. O relatório que trouxeram é a palavra final. O Batista permanece eliminado da lista dos possíveis Cristos, e o testemunho que lhes deu sempre é de valor. Ele, estando morto, ainda fala. Dois perfeitos mostram o permanente lugar de João no cristianismo como precursor e testemunha do Messias.

V. 36. O empreendimento da redenção foi dado pelo Pai ao Filho e ainda fica por sua conta, sob sua responsabilidade e ao seu critério.

V. 37. O Pai deu e dá até o momento atual seu testemunho ao Fi-lho, ou pelo menos ainda vinga o testemunho dado.

V. 37, 38. Nem no passado nem na atualidade, judeu algum incré-dulo viu ou vê, ouviu ou está ouvindo a Deus.

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126 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

V . 43. Eu vim — e eis-me aqui. V. 45. Ah, dureza obstinada! Os patrícios incrédulos de Jesus nutriam uma esperança fanática em Moi-sés, uma vez que depositaram nêle sua fé. A despeito das dificuldades para verter o original no vernáculo, convém não perdermos esta parte da revelação divina nesta preciosa Escritura. O notável gramático e intér-prete do Novo Testamento grego, A . T. Robertson, fala dos vários casos do tempo perfeito como expressão de acabamento, mudança de um es-tado para outro, fato oficial e permanente que é testificado, valor dura-douro e consumado, estado de repouso confiante. (4) Junto ao valor desses perfeitos temos seu erudito testemunho de que a palavra «eterna» signi-fica sem fim.

10. «Sábado». De David Smith e outros temos colhido as seguintes informações sôbre a atitude do farisaísmo vitorioso acêrca do sábado, que era contemporânea de Jesus e que constituia uma barreira de morte para seu evangelho. A libertação do espírito humano de todos os legalismos e formalismos, dos quais este é apenas amostra, constitui. uma bênção su-prema da Encarnação e Vida de Jesus Cristo, e é a notável mensagem da Epístola aos Gaiatas. Este Evangelho mostra a luta: Paulo conta a vitó-ria de Cristo naquela magna carta das liberdades humanas.

Os rabis fizeram uma lista de quarenta formas de trabalho menos uma. Se um homem praticasse no sábado qualquer uma, devia ser ape-drejado. Essas trinta e nove categorias de trabalho eram chamadas «pais», e cada «pai» tinha «filhos» de tradição sabática. Por exemplo, lavrar era um dos trinta e nove pais. Um filho de lavrar era cavar. E cavar abrangia muita coisa. Era proibido puxar uma cadeira de um lugar para outro no sábado, pois podia cavar uma linha no soalho. Permitia-se que um homem cuspisse na calçada no sábado e que procurasse espalhar o cuspo com o pé, pois na calçada o pé não fazia sulco, mas o mesmo ato no chão era pecado, pois o pé, apagando o sinal do cuspo no chão, faria um sulco na terra, cavava. Outro pai era carregar pêso, e que numerosa descendência tinha! Não se permitia a um homem que levasse na Uca a dentadura postiça no sábado, pois era filho dêsse pai proibido. Um al-faiate não podia sair com sua agulha, nem o escriba com sua pena sexta-feira de tarde, para não arriscar a possibilidade de voltar depois do pôr do sol e estar carregando esses pesos no sábado. Outro pai proibido era colhêr, ceifar. Temos a narrativa da ofensa dos apóstolos comendo grãos de trigo. Uma senhora não devia olhar no espelho no sábado. Podia ver um cabelo branco e ser tentada a arrancá-lo no sábado — ceifando-o.

Os fariseus usavam a casuística jesuita — se me perdoam o anacro-nismo! Tinham mil jeitos de anular suas próprias leis, para sua pró-pria vantagem. Era proibido andar mais do que 2.000 cúbitos no sábado.

(4 ) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, págs. 81, 85, 86, 91, 94.

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Mas um fariseu que quisesse ir além poderia na sexta-feira pôr sua comi-da nesse ponto. Chegando ao fim dos dois mil cúbitos e achando a comi-da, ele diria: «Ah, eu estou em casa.» E contaria a jornada de um dia de sábado dessa residência artificialmente decretada por si mesmo no mo-mento... Como os jesuítas, eles usavam a escapatória da «intenção», a reserva mental. Não se podia comer um ôvo que a galinha pusesse no sá-bado. Mas se se dissesse: «Essa galinha se destina à mesa mais tarde», então poderiam comer o ôvo. Era apenas um pedaço da galinha que caira e se comia na intenção de equipará-lo ao banquete de galinha assada que teriam em outro dia. O dia de sábado era, de fato, o grande dia de festas em casa, comer e beber. Agostinho, de Hipona, afirma isso dos judeus de seu tempo. A comida era preparada no dia de sexta-feira e servida fria no sábado.

Os judeus alegavam que a própria natureza trabalhava seis dias e descansava no sábado ; narravam o caso de um rio que manava seis dias por semana e parava no sábado, daí seu nome, o Rio Sabático. A bênção do sábado se estendia à Geena e as dores dos perdidos tinham alívio até passar o sábado. Antecipação da missa, não é? «De tôdas as suas insti-tuições sacras, os judeus não tratavam nenhuma outra com tanta reverên-cia como o sábado.» E' contra essa idolatria que Jesus se insurgiu. Po-dendo curar um enfermo antes do pôr do sol no dia de sábado, Jesus sem-pre o fez. Nunca deixou para mais tarde quando o milagre seria tole-rado pelo clero, e fê-lo, também, precisamente no dia proibido, e na pró-pria sinagoga, ou no templo, quando foi conveniente.

«Sábado é.» «Hoje é sábado !», exclamaram os judeus. Sua surprêsa é sincera e evidente. Há tanto tempo estão na escravatura de suas tradi-ções humanas que era um choque medonho ver um homem que fôsse livre naquele dia.

Notai como o Evangelho de João vai libertando seus leitores da es-cravidão de tais tradições do judaísmo. Primeiramente, as noções messiâ-nicas judaicas sobre o Cristo e seu precursor, o Elias da profecia, são ru-demente repudiadas e o eterno e majestoso Verbo é identificado com o Jesus de vera humanidade. Logo em seguida êsse Cristo tão estranhável SE põe em deliberada oposição a tudo quanto fôsse mais poderoso, sacros-santo e privilegiado do seu povo, atacando e deshonrando o sacerdócio abertamente e limpando o templo de um regime lucrativo e quase indis-pensável da hierarquia. Jesus restaura o ideal de um templo para todos, e principalmente para a comunhão direta com Deus, cujo culto fôsse acessível aos gentios. Logo em seguida, Jesus varre da mentalidade fa-risáica todo o formalismo e procura em seu lugar impor a necessidade do novo nascimento. No quarto capítulo vemos Jesus, seguindo o exemplo do Precursor, não ligando ao desprêzo popular pelos samaritanos e, em pleno evangelismo, fora da grei legítima de Israel, descendo até anunciar

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a uma vil mulher a nova da vinda do Messias. Agora êle, deliberada e abertamente, afronta a hierarquia e o povo no que tinham de mais sagra-do na religião e na vida — seu sábado. O sábado era o santo dos santos da doutrina dos rabis, quase tão sagrado como o próprio nome de Deus. Era a flâmula da lei, do racismo e do separatismo do judeu. Jesus não es-perava o ataque. Provocava. Ele poderia ter esperado até o pôr do sol, qualquer sábado, e então fazer seus milagres. Era o que os fariseus pe-diam. Mas êle não anuiu. Com êsse sabatismo no mundo não podia nas-cer a religião que êle veio dar. Por isso, em cada ocasião propícia êle pra-tica atos que os fariseus têm de admitir serem louváveis, mas que só po-dem atacar com a teoria do seu sabatismo sacrossanto. Assim Jesus sou-be isolar o mal, tornar bem evidente como era ridículo e falso, e impossi-bilitar de uma vez para sempre sua continuação.

Os Evangelhos enumeram várias batalhas dessa guerra sôbre o sá-bado, na qual Cristo saiu vencedor. Há a refrega sôbre os apóstolos na insignificante questão de comer uns grãos. de trigo em caminho pelos cam-pos. Tirar das espigas essas dezenas de grãos era trabalhar no sábado. Jesus travou forte batalha aí mesmo, num ponto aparentemente tão in-significante. Justificou o ato com fortes argumentos bíblicos, Mat. 12: 1-8; Mar. 2:23-28; Luc. 6:1-5.

Em outro sábado êle cura na própria sinagoga um homem que tinha a mão sêca, Mat. 12:9-14, Mar. 3:1-6; Luc. 6:6-11. A batalha é tão in-tensa que os fariseus naquele mesmo dia santo formularam planos para matá-lo.

Temos todo êste capítulo 5 de João sôbre um incidente em si insigni-ficante, mas que levou Jesus a uma prolongada discussão na qual êle co-loca o próprio Moisés contra seu povo e seus sacerdotes e líderes. A êste incidente João dá uma décima oitava parte de seu Evangelho. Ain-da acrescenta o capítulo 9, sôbre um caso semelhante, igualmente fácil de adiar até a tarde. O resultado do milagre é que o curado é jogado fora da sinagoga, uma excomunhão de graves conseqüências, para êle e para Jesus. Três capítulos em vinte e um, João consagra a mostrar-nos a vital importância dessas batalhas na Guerra do Sábado entre Jesus e os guar-diões da Lei.

Lucas acrescenta a censura pública que Jesus levou do próprio che-fe de uma sinagoga pela cura da mulher paralítica (Luc. 13:10-17) a cujo ataque público Jesus replicou: «Hipócritas». «Ficaram envergonhados to-dos os seus adversários e se alegrava tôda a multidão.» Aí estão os es-pectadores constantes. Esses vagamente discernem que Jesus é o campeão destemido das suas liberdades.

Uma outra batalha se deu em terreno escolhido por Jesus, na própria casa «de um dos chefes dos fariseus», Luc. 14:1-6, com os doutores da lei e de outros convivas, aos quais Jesus fez calar diante de outra cura.

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Se nós hoje em dia não avaliamos quão séria foi essa luta — Jesus à-zinho, mas com multidões de admiradores, contra o judaísmo inteiro orga-nizado ardendo em furor, e Jesus sempre com a iniciativa, provocando, fa-zendo cada vez o que êle podia ter feito poucas horas mais tarde, em plena paz e com o apoio geral — contudo os evangelistas não participam de seme-lhante cegueira, que nos aflige. Uns omitem uma coisa, outros relatam uma coisa diferente, mas todos os quatro dão magna ênfase à guerra do sabatis-roo que João acha ainda de vivo interêsse no fim do século e ilustra com novos incidentes e ampla discussão, citada de Jesus. Nenhum dos Evange-lhos, nem a história de Jesus Cristo, é compreensível sem pôr no centro do palco a luta de Jesus contra o sabatismo enquistado na vida dos judeus.

«Sábado». O Dr. J. W. Shepard diz que havia um regulamento com-prido sobre as qualidades de nó que poderia amarrar no sábado, sendo proi-bido o nó de marinheiro e o do condutor de camelos. Não se podia escre-ver juntas duas letras do alfabeto. Farrar nos informa que um sapato em que havia pregos não se podia calçar sem violar a lei sabática de não carre-gar pêso, mas sapato costurado — que o rico fariseu poderia adquirir — era lícito usar. Também era lícito usar os dois sapatos, mas não um só, caso um homem estivesse com calo ou ferida no pé. Calçar um só sapato seria carregar pêso. E um pão constituiria «pêso», se carregado por um só homem, mas, se dois o carregassem de certo não lhes seria pêso!

O Dr. Shepard ainda enumera outras exigências do regulamento sabá-tico : «Um judeu não podia tomar vinagre na bôca no sábado para aliviar dor de dente como bochecho, sem o engulir. Mas podia mergulhar a escôva em vinagre. Um piloto judeu, numa tempestade, depois do pôr do sol na sexta-feira, recusou tocar o leme, ainda que ameaçado de morte. Milhares se deixaram ser mortos nas ruas de Jerusalém por Antíoco Epifânio, por se terem recusado a carregar armas em defesa própria no sábado.» (5)

Era uma situação perigosa a de Jesus. Ele cometeu duas ofensas dig-nas de apedrejamento — (1) blasfemou, fazendo-se igual a Deus, (2) or-denou a quebra do sábado. O homem, segundo parece, ou foi levado ao templo para ser julgado ou se lhe permitiu ir aí fazer sua defesa. Ele está ansioso. Da enfermidade parece que vai cair em pena mais grave. Nem sabia dizer quem lhe mandara levar a esteira. Ao descobrir, em de-fesa própria, di-lo aos seus acusadores. Não é nem ingratidão, nem louvor a Jesus. E' o instinto de preservar-se do perigo. E Jesus sabia da situação e apareceu para aliviar o homem e assumir a culpa, que era maior bondade, talvez, do que a própria cura, pois ainda que o sinédrio não tinha autorida-de para matar, como disseram a Pilatos, sua excomunhão era temível.

«Diziam». O tempo indica interrupções contínuas da jornada do ho-mem. A cada passo estava algum judeu a apresentar-lhe uma queixa. Os

( 5 ) "The Christ of the Gospels", págs. 161, 164.

C E , , —9

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transeuntes da grei estavam todos escandalizados. A marcha para casa fi-cou sendo uma fuga impedida.

«Diziam ao curado: hoje é sábado.» A velha «religião de nossos pais» pode hostilizar o novo crente e achar escândalo naquilo que êle até aí con-siderava mais santo. Os recém-convertidos ao evangelho de Cristo têm en-contrado logo oposição dessa espécie, em todos os séculos e entre todos os povos. A doutrina «eclética» de religião quer que um crente nunca seja afastado da cultura que é a herança religiosa dos pais, e do país em que nasceu. Se não é lícita essa brecha entre a nova fé e a velha vida e cultura sectária, então o cristianismo não devia ter entrado no mundo, pois a mais cruel divisão da história, Jesus a causou na Palestina, e em Israel — se Jesus não é a Verdade, a Vida e o único Caminho. Se é, então nenhum outro caminho é certo, qualquer outra vida é morte espiritual e as supostas verdades de outras religiões são meros envólucros de mentiras que assim se disfarçam. Ghandi não admite que ninguém seja missionário, proseli-tando os adeptos de uma religião para outra. O maior inimigo dêsse ecle-tismo antimissionário era, e é, Jesus Cristo. Para êle, todos os líderes re-ligiosos que ambicionam para si a alma humana são «ladrões e salteadores». O homem não pode assenhorear-se de outro homem sem este ser escravo. Ghandi e seus cobrâmanes têm nas fileiras dos adoradores dos deuses da Índia as mais dolorosas vítimas da escravatura religiosa que o mundo já viu. Qualquer soberania de uma consciência humana sôbre as decisões re-ligiosas de outra consciência é tirania do usurpador e escravatura da víti-ma. SOmente Jesus liberta por sua soberania na vida. Por isso êle é o único Senhor e Legislador do crente, no terreno de nossas relações com Deus .

«Os judeus». Havia apenas uns 6.000 fariseus no país, e poucos sacer-dotes. Mas os judeus em geral seguiam as mesmas teorias e, um homem aparecendo na rua a levar sua esteira, era escândalo para a escrupulosa po-pulação. Jesus não ficou alheio a êsse escândalo, nem procurou diminuí-lo. Ele fàcilmente podia ter adiado a cura até o pôr do sol, quando começaria outro dia. Êle causou o escândalo, de propósito. Era parte «da ofensa da cruz», pois foi o sabatismo enraivecido que o crucificou no Calvário; e «os judeus», no auge dêsse escândalo, pediam em massa: «Crucifica-o, cruci-fica-o !»

11. «Esteira». A cama dos pobres. Êle não teria outra qualidade de cama, se bem que talvez mais de uma dessa espécie.

Notai como Jesus é sempre prático. Não há nenhuma gritaria de «Ale-1Mas» ou «Glória a Deus». O homem foi enviado diretamente à família. E' quem tem direito de saber primeiramente. Depois êle, espontâneamente, foi ao templo no regosijo do seu espírito e aí Jesus o admoestou contra os perigos de sua nova situação. Não dirigiu um côro de glorificação.

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12. «Vai andando.» «O Doador da vida é a autoridade própria acer-ca do seu uso» — Marcus Dods.

13. «Jesus... se retirou.» Poucos entendem ou simpatizam com as atitudes de Jesus. Ele era modesto. Ofendiam-lhe a alma sincera os elogios humanos. Agiu. Fugiu dos louvores. Voltou depois de passar o entusias-mo do momento, para animar o indivíduo. Amava a vida social proveitosa, mas não o palco e as atitudes teatrais. Mandou dar esmolas às escondidas, jejuar com sinais de sociabilidade e regozijo no rosto, orar segundo o «Pai nosso» no quarto, com a porta fechada, orientando a oração secreta por esses pedidos fundamentais, não rezando, supersticiosamente, as meras pa-lavras de «repetições vãs». A religião cristã nominal tem afinidade com o judaismo e «os judeus», logo, não entendem nem obedecem ao humilde Salvador. Vede a nota sôbre vs. 34 e 41, e 12:43.

5:14, 16, 18. O TEMPLO CONTRA JESUS: «Jesus o encontrou no templo ... os judeus perseguiam a Jesus... os judeus procuravam com maior ância tirar-lhe a vida», 7:14, 30 — «Subiu Jesus ao templo... Pro-curavam então, prendê-lo», 8:2, 59 — «De madrugada voltou ao templo ... Então pegaram em pedras para lhe atirar», 10:23, 31 — «E Jesus passea-va no templo... Os judeus outra vez pegaram em pedras para lhe atirar», 12:2, 36 — (Alguns gregos) ... «fizeram êste pedido: Senhor, queremos ver a Jesus...» «Assim falou Jesus (à multidão), e, tendo-se retirado, es-condeu-se deles», 18:13, 12 — «Judas, portanto, tendo recebido a coorte e alguns oficiais de justiça» (da guarda do templo) ... Assim a coorte, o tribuno e os oficiais de justiça dos judeus prenderam a Jesus.» (6)

14. «Deixa de viver em pecado a fim de que coisa pior não te aconte-ça.» «Havia íntima conexão entre o mal físico e o mal moral, no sofrimento desse homem, urna conexão que teria deixado atônitos todos na circunvizi-nhança se pudesse ser revelada. Trinta e oito anos de sofrimento... Há uma conexão entre os males físicos e morais, meus irmãos, que é mais fun-da do que estamos acostumados a acreditar. ...Muitas das formas mais dolorosas de moléstia que se manifestam no corpo surgem do sistema ner-voso; e o sistema nervoso é inseparàvelmente ligado ao estado moral mui-to mais intimamente do que os homens supõem.» (7) F. W. Robertson nos lembra, ainda, o outro ensino de Jesus: nem todo o sofrimento huma-no é o resultado do pecado, e nos previne contra a idéia de que se formos bons não havemos de sofrer. Cristo sofreu; e todos que se determinam a viver piamente têm a promessa de sofrimento. Há uma diferença, porém, nos sofrimentos do inocente e do perverso. Este sofre o mal físico como castigo dum mal íntimo no caráter. Aquele sofre, mas é o sofrimento ino-cente e aliviado com a consolação da Escritura, de Cristo e do seu Espirito. E' pena a que somos sujeitos pela nossa unidade com uma raça de pecado.

(6) "Notes from a Layman's Greek Testament", p. 113, por Ernest Gordon. (7) "Sermons", p. 753, por F. W. Robertson.

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res, com uma humanidade decaída. Ao que ama a Deus, seu sofrimento será bênção carregada de compensações espirituais, e a providência divina fará que tudo concorra para o bem dêsse mesmo servo de Deus que o ama. Para o malévolo, porém, o sofrimento é castigo sem alívio na consciência, pois essa também sofre, talvez ainda mais do que o corpo. Sôbre isso tudo Jesus previne o curado.

15. «O homem foi-se embora.» E' geral o hábito de pensar dêsse homem como crente e defensor de Jesus. E' possível supor que em tudo êle obedeceu, foi para casa, deixou a cama, foi ao templo para orar e dar graças e talvez fazer um sacrifício cerimonial, e que amava e era grato a Jesus. David Smith argumenta que sim, e nota que êle identificou Jesus para os judeus ao dizer: «Foi Jesus quem me fêz bom»; não: «Foi Jesus quem me mandou levar a esteira no sábado.» E' possível e admito essa hi-pótese generosa. Mas, em qualquer hipótese, êsse novato na fé, que era tão velho no pecado, não se recomenda bem. Êle, naquele dia, pregou al-guns dos cravos da cruz de Jesus no Calvário. Se não foi ingratidão para com Jesus, foi falta de juízo, apoucada visão, personalismo, desculpa pe-rante os outros — coisa pior para a causa de Cristo, em inúmeras ocasiões. E' mais proveitoso para a causa um incrédulo ingrato, às vêzes, do que um crente tolo, em cujo horizonte está unicamente sua própria pessoa, seu in-terêsse pessoal.

Alguns rejeitam a idéia de que Jesus ouvia ou curava os pecadores. Mas certamente os nove leprosos, que nem disseram «Obrigado», não ma-nifestaram sinal algum da salvação. E quando lhe trouxeram todos os doentes de uma cidade, não eram todos crentes. E, a despeito da incre-dulidade, odiosa e mortífera de Nazaré, êle ali operava curas, Mar. 6:5-6.

«Narrou aos judeus que era Jesus.» Eles teriam suspeitado isso? E' bem provável. Mas a cura não era do mesmo valor da ofensa contra o que lhes era mais sagrado — o sábado.

«Era Jesus que o havia curado.» Não com a idéia de traição a Je-sus, argumenta Crisóstomo. O «Boca de Oiro» antes insistia que o cura-do correu a afirmar-lhes que Jesus era o autor da cura, pensando que eles o reverenciariam pela maravilha. Se êle tivesse deliberadamente traido seu Benfeitor, seria uma fera. Mesmo assim, êle teria mêdo. Viu o poder que Jesus dispunha e o ouvia dizer: Cautela, para que uma coisa pior não te aconteça. (8)

16. «Perseguiam». O Dr. A. T. Robertson vê aqui o começo da ter-rível perseguição de Jesus que culminou no Calvário. Êle comenta como os fariseus, numa raiva cega, iam-no seguindo até a Galiléia a fim de achar algo contra o Mestre. (9)

«Porque êle fazia (estava acostumado a fazer) essas coisas no sábado.»

(8) "In the Days of His Flesh", p. 141, por David Smith. (9) "The Pharisees and Jesus", p. 86.

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Era de propósito que Jesus provocava essa questão semanalmente, nas si-nagogas e no templo, por tôda a nação. Ele fêz isso precisamente no pri-meiro sábado de que temos menção nos Evangelhos, Mar. 1:21-28; Luc. 4:31-37. Expulsou um demônio, mas o povo não se queixou. No mesmo dia êle curou a sogra de Pedro de uma febre, e ainda ninguém se queixou. O povo todo era sabatista fervoroso e esperava até ao pôr do sol, o comêço de outro dia; «e à tarde, estando já pôsto o sol, traziam-lhe os doentes e endemoninhados e tôda a cidade estava reunida à porta.» E' a última vez em que isso se deu. Jesus daí por diante provoca conflitos, curando em pleno dia do sábado, não esperando mais o pôr do sol. Não passa des-percebido êsse gesto de desafio. «Por isso os judeus perseguiam a Jesus, porque fazia estas coisas no sábado.»

«No sábado». Não sei porque a Versão Brasileira traduz: «nos sába-dos». Talvez para dar a idéia genérica de ser o costume de Jesus assim agir. Não era, de fato, um ato isolado. Fazia «estas coisas». Mas o plu-ral que indica o costume dêle é «estas coisas» e não «sábados».

17. «Meu Pai não cessa de agir.» «De todos os cientistas Deus é o primeiro e o maior. O rádio, o átomo e os raios cósmicos não o surpreendem. O que poderia pasmá-lo é ver certas criaturas suas persuadidas de que a ciência é uma espécie de filosofia pagã. Na marcha da ciência, Deus acom-panha nossas descobertas de acôrdo com a nossa capacidade de usar o que descobrimos. Dizer que a ciência e a religião são hostis, uma à outra, é di-zer que Deus se divide e se vira contra si próprio. Muitos pensam que Deus só fala teologia. «Meu Pai não cessa de agir até agora.» (*)

Alguns sentem que êsse agir contínuo de Deus garante a imortalidade. Se Deus ligasse tão pouca importância à personalidade humana por êle criada que a lançasse no esquecimento do Nada, então não haveria motivo para que nós respeitássemos o que Deus não respeitou. A personalidade se torna em frívola consideração. H. G. Wells assim pensa de nosso desti. no e valor. «Se Mr. Wells opina que não tem importância continuar a vi-ver ou não, então talvez não importe. Mas se Deus pensa que não importa, aí importa de um modo terrível. Mas Deus não pensa assim. Meu Pai não cessa de agir até agora.» E Cristo age na redenção de almas imortais. «A Encarnação é o zênite da atividade divina no universo.»

A declaração de Wells a que se faz referência é: «Se vivemos eterna-mente ou nos acabaremos amanhã, isso não afeta a moral.» O cônego an. glicano Streeter replicou-lhe que o aparente idealismo de tais palavras é falso e enganador. «Pois se a justiça divina pode aniquilar arbitràriamente o homem, a moral humana bem pode pautar sua conduta pela mesma norma.»

«Está trabalhando.» «As orbes celestiais não observam o sábado» (Justino Mártir).

(*) "Sermons and Lectures", p. 14, por E. R. Bernard.

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«Vou trabalhando.» E' a melhor maneira de manter a vida espiritual na hora da oposição. Jesus continuava a trabalhar. Não parou nunca. Diante da oposição, êle às vezes removia sua pessoa e presença para outro lugar, mas voltava com a mesmíssima verdade e doutrina, em ocasião oportuna. Ele nunca modificou, porém, em sentido algum o ensino hosti-lizado. Pelo contrário, dava doses cada vez mais fortes, a despeito da raiva farisaica crescente que ràpidamente ia obscurecendo seu ministério até ser total o eclipse nas horas de trevas no Calvário. E' a maneira do Mestre, dos profetas antigos em que ele se inspirava, e dos apóstolos que se inspi-ravam nele. Paulo nos exorta a ser armados para a luta cristã no mundo e «tendo feito tudo, ficar firmes». O original é mais forte. Montgomery traduz assim: «Havendo derrubado todos eles, permanecei vencedores no campo da batalha.» Nunca cessar o testemunho positivo da verdade e o agressivo combate ao êrro contrário, é o plano de batalha de Jesus. Muita gente que se supõe «espiritual» fala e se ativa em «revestir tôda a armadu-ra de Deus» a fim de — não ofender a ninguém, e não se opôr a nada, e não dizer o nome de nenhum êrro, e não contrariar a quem quer que esteja con-trariando a verdade e vontade revelada de Deus. Para que tanta armadura, para um pacifismo espiritual pusilânime? ! Jesus seguia a ofensiva como a melhor estratégia; ia sempre trabalhando para Deus no sábado, provo-cando a morte do sabatismo escravizador, embora custasse sua própria vida. Vale a pena morrer para libertar o povo de Deus das algemas de uma religiosidade morta e mortífera que Deus já repudiou e fêz caducar. Os que seguem a Jesus no mesmo testemunho são guerreiros na mesma santa causa. Não tomeis «tôda armadura» para ser pacifistas doutriná-rios. Para que semelhante fingimento? Jesus usou essa mesma armadura, mas para atacar, oportuna e constantemente, o mal e o êrro com «a Es-pada do Espírito, que é a Palavra de Deus».

Há pessoas que são muito pacifistas com os advogados de falsa dou-trina, e muito ferozes guerreiros contra seus próprios colegas e irmãos que defendem as mesmas doutrinas e a mesma vida cristã organizada que Jesus estabeleceu e impôs, na Grande Comissão, como de universal e perpétua obrigação até ao fim do mundo. Jesus se opôs aos fariseus por causa da sua observação das tradições humanas. Pessoas leais a Jesus repudiam também as tradições humanas como fonte de doutrina e organização cristã. E' necessária a luta para manter o cristianismo puro. Surgem no meio dos que se esforçam para manter este santo alvo os pacifistas doutrinários. São de uma doçura enxaropada para com os que procuram incorporar no cristianismo tradições judaicas, pagãs, e de papas e reformadores. Para eles, o pacifista só tem palavra de conforto e fraternidade. Mas para os companheiros de Jesus na luta contra as tradições dos homens, êle só tem palavras duras, sarcásticas, a oposição que ele recusa dar ao êrro e à falsa doutrina e à desobediência. Ele taxa de «fariseus» os fiéis seguidores do Mestre e se ergue como campeão da fraternidade com todos os êrros ; mas,

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esquecendo-se de que finge ser pacifista doutrinário, investe com tôda a fôrça e ferocidade contra os que defendem o que Jesus deu como verdade e ensinam o que Jesus mandou como deveres. Semelhante oposição à leal-dade a Cristo é uma tragédia. E' derrotismo que abre guerra civil entre as fileiras consagradas à verdade e à vida leal. Anarquiza a grei, como todo o pacifismo anarquiza. E' o caso de Pedro e Barnabé, na sua dissimulação em Antioquia, quando Paulo teve de repreendê-los públicamente, como Jesus teve de repreender os Doze por seu mêdo e pacifismo ante os fari-seus. O apaziguamento dos que hostilizam a verdade e advogam êrros não é a paz de Deus — é a covardia e traição, manobra de homens indig-nos. Jesus, atacado pelos sabatistas do templo, contra-atacou quando e como e quantas vêzes julgou oportuno. Seu trabalho por Deus era uma constan-te ofensiva. Repetia, pois, a ofensa semanalmente, até que os fariseus ran-gessem os dentes. Mas o povo libertava-se e se regozijava.

18. «Procuravam matá-lo.» Seu fanatismo sabatista fêz com que qui-sessem matar o Senhor do sábado, a fim de preservar o sábado da profana-ção, isto é, o que êles entendiam por profanação, à luz das suas tradições. De fato, o sábado, o dia e a idéia, seria pregado na cruz com Jesus. A divi-são semanal do calendário permaneceria. Mas o fato celebrado no dia memorial seria a ressurreição e não a criação. E a maneira de celebrá-la não seria em obediência a um complexo regulamento de mil coisas que não devem ser feitas, mas seria tornar o dia um dia santo e operoso, em culto e atividade e evangelização e visitas e caridade, inclusive obras de, necessidade na vida pessoal, doméstica e pública. Fica no dia do Se-nhor a idéia de relativo descanso de labôres que dão lucro, mas de um descanso que consiste em mudar de serviço, enchendo o dia de trabalho pelo reino de Cristo e não de trabalho para sustento ou lucro, senão em obras de necessidade. Há um real descanso num domingo dêsse espirito, que não havia num sábado ocioso. O dia e a idéia do sábado ficaram «can-celados» na cruz (Col. 2:14, 16). Ficou a divisão do tempo em semanas, a primazia de Deus no primeiro dia de cada semana para seu culto e o ser-viço coletivo de seu povo, e a transformação do espírito do dia . Alguns acham acertado o nome de «sábado» para o dia do Senhor, a despeito da mudança do dia e da idéia. Meu professor de Bíblia, Carroll, assim pensava. Se não incorporarmos no dia do Senhor o espírito legalista de que o sábado era a bandeira, não vejo mal na interpretação. Mas acho inexata a exegese em que essa concepção se baseia, e é difícil reter o nome do sábado sem reter seu judaísmo de espírito. O Novo Testamento niti-damente distingue o sábado do dia do Senhor, historia a observação de am-bos, lado a lado, na mesma civilização judaica e pelos mesmos judeus cren-tes. Mas o Novo Testamento nunca chama o dia do Senhor «sábado» e declara categôricamente que o inteiro sistema de sábados foi cancelado na cruz, Col. 2:14-18. Ora é estranhável que Jesus semanalmente provocasse

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esse conflito desnecessário, se o sábado havia de passar, sem solução de continuidade, do judaísmo para a Nova Aliança.

«Matá-lo». «Notai três tentativas para assassinar o nosso Senhor, to-das por causa de sua afirmação acerca de sua deidade, aqui e em 8:58, 59 ; 10:30, 31.» (10)

19. «Fazendo-se igual a Deus». E nessa igualdade, êle imediatamente exclama: «O Filho é incapaz de qualquer curso de atividade independen-te.» Como se harmoniza a aparente incoerência de afirmar igualdade e aceitar e regozijar-se na subordinação? A igualdade e a subordinação são possibilidades na vida? São possíveis e reais, tanto na Trindade como no casamento.

«De si mesmo». — «Seu ego nunca era o ponto de partida das ações de Jesus. Essas não têm sua origem nêle nem visam promover os interêsses dêle. Considerações de personalismo estão inteiramente excluídas do ho-rizonte de seus motivos.» (11)

«O Filho nada pode fazer de si mesmo.» Essas palavras, da doutrina da humilhação e kenosis de Jesus nos dias de sua carne, servem para o pa-dre Rohden tirar uma conclusão absolutamente contrária a elas. Diz êle: «Revela-se nesta dissertação tôda a pujança e tôda a penetração do seu es-pírito. Não é já o singelo narrador da Galiléia quem nos fala, não! Lá na Capital, no templo, em face dos expoentes da cultura espiritual de Israel, é Jesus o mais arguto dos filósofos, o mais profundo teólogo, o mais subtil exegeta, o mais cintilante pensador, que sabe lidar magistralmente com os mais abstratos conceitos metafísicos; é o destro doutor da lei que se move com absoluta segurança no mundo misterioso das verdades trans-cendentais. O auditório era composto de escol intelectual de Israel: sacer-dotes, escribas, doutores da lei.» (12 )

Ora, Jesus não era filósofo, nem teólogo, nem pensador de «abstratos conceitos metafísicos», nem doutor da lei. E' fantasia. Nem os oponentes eram «escol intelectual de Israel». Nem havia sacerdotes na discussão, nem se fala de escribas até o capítulo 8, nem há menção de «doutores da lei» neste Evangelho inteiro. Enfàticamente, Jesus não era doutor da lei, nem era «arguto, subtil», nem jamais «lidava com conceitos abstratos metafísi-cos». Tudo isso é esforço clerical de re-criar Jesus à sua imagem. Os sa-cerdotes raras vêzes são o escol intelectual do seu povo. São politiqueiros como eram os de Israel, .zeladores de altares, escravos de mil formalidades ocas. Esses sacerdotes eram saduceus, que nem criam em coisa alguma senão na literatura levítica, que lhes garantia a renda, nem sabiam coisa alguma de teologia ou filosofia. Caifás, Anás, escol? Eram antes escória de um sacerdócio interesseiro, imoralíssimo, hipócrita, cujas qualidades ple-béias se vêem bem claras quando açulam a turba e andam no meio dela

(10) "The Companion Bible", Vol. V, p. 1.526. (11) "Messages of the Bible", pág. 142, de Riggs sare êste Evangelho, (12) "Jesus Nazareno", pág. 119.

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meneando a cabeça e lançando impropérios contra o Filho de Deus na cruz.

Longe de Jesus ser um «subtil» e «destro» e «arguto» jesuita, com su-ficiência em si para enfrentar todos os paladinos da filosofia carnal, eis que êle declara: «o Filho nada pode fazer de si mesmo.» Jesus é humil-de, não arrogante disputador, e havia nêle uma absoluta dependência no Pai e unção e direção do Espírito. Êle não era nem platonista nem neo-pla-tonista nem seguidor de Aristóteles em idéias ou método, nem adepto das dialéticas das escolas soberbas dos «pensadores». Êle não vivia em «abstra-ções». Oh! que todos quantos professam ser seguidores de Jesus pudessem imitar-lhe essa dependência no Espírito, largar todo êsse espalhafatoso fingimento de filosofia, e determinar como Paulo, na própria Grécia: «Re-solvi não saber coisa alguma entre vós, senão a Jesus Cristo, e êste cru-cificado.» Quais os fatos? Longe de ser o «escol intelectual» que cercava a Jesus, eram os transeuntes na rua que colidiram com o curado, e os beatos do templo que o atacaram. A questão não foi de filosofia ou abstra-ções metafísicas, mas de um plebeu carregar sua esteira no sábado. A en-carnação não é afugentada para o terreno da «Suma» de Tomás de Aqui-no, mas Jesus se iguala ao Pai e a êste revela na sua pessoa e se associa com êle na sua obra perpétua criadora. Sublime? Sim, mas simples e sempre dito na simplicidade do evangelho. Não há uma palavra no Novo Testamento que faça do evangelho uma filosofia. Pelo contrário, os úni-cos filósofos mencionados são os epicureus e estóicos, At. 17:18; e a úni-ca palavra sôbre filosofia é: «Cuidai que não haja ninguém que vos faça de vós presa sua por meio da sua filosofia e vão engano, segundo a tradi-ção dos homens, segundo os rudimentos do mundo, e não segundo Cristo", Col. 2:8. Eis a única menção de filosofia nas Escrituras cristãs. «As tradições dos homens» e «a sua filosofia» são sempre irmanadas, como duas colunas parcialmente caidas que se reclinam uma sôbre a outra, em equilíbrio precário e perigoso. Do lado de lá está o romanismo «arguto», «subtil» e «destro» em tôdas as artes de' subterfúgio e escapatórias de seu «vão engano». Mas não está «segundo Cristo». Do lado de cá, com a +simplicidade do evangelho, longe da «filosofia e vão engano», está o crente, com seu Salvador o qual nos deu inteligíveis revelações do Pai e da verdade e não abstrações, dogmas e «intenção» jesuita.

20. «O Pai ama.» E' o verbo amar que Pedro usou para afirmar seu amor a Jesus e que alguns intérpretes acham descritivo de amor in-ferior. E' claro que se refere ao amor mais sublime aqui.

«Maiores obras lhe mostrará.» Os milagres de Jesus são para Jesus, como o Apocalipse de João historia, «a revelação de Jesus Cristo que Deus lhe concedeu, para manifestar aos seus servos». Os milagres e as revela-ções da encarnação, e da obra miraculosa do Espírito desde Pentecostes (Atos II) até o Apocalipse de Jesus perante o último apóstolo, foram da-dos a Jesus para Jesus, por Deus, em seu Filho, pelo Espírito Santo. Deus

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mostrava a Jesus tôdas essas obras miraculosas e o ungia (por isto é o «Cristo») para dar-lhe, durante a sua humilhação, o poder do Espírito para todo empreendimento miraculoso. Não há solução de continuidade nos milagres de Jesus na época apostólica. Os Atos declaram que os mi-lagres _dos Evangelhos (do de Lucas, especificamente) são «coisas que Jesus começou a fazer e ensinar)). Os milagres descritos na literatura do Novo Testamento, de Atos ao Apocalipse, são a continuação da divina ope-rosidade de Jesus em «fazer e ensinar», por milagres e revelações que completariam «toda a verdade» a ser revelada. E' verdadeira loucura supôr que os milagres ou as revelações continuam, hoje em dia. Termi-naram no fim da época apostólica. Nem há necessidade de espécie algu-ma, hoje em dia, para milagres ou revelações. Foram dados a Jesus pelo Pai mediante o Espírito que fazia de Jesus «o Cristo)). Depois da Ascen-são, Cristo dá o Espírito e age por êle nos milagres e nas revelações de que nós temos a certeza e o testemunho inspirado, no Novo Testamento. Nós não necessitamos de ressuscitar os mortos, curar a lepra com uma palavra, abrir olhos cegos com cuspo e lodo, ou falar línguas nunca antes estudadas, hoje em dia. Quando a obra da redenção se operou na paixão de Jesus, e se interpretou nas revelações da Nova Aliança, os milagres confirmaram a deidade do Redentor e a origem e autoridade divina do evangelho e da vontade de Jesus no cristianismo apostólico. Uma vez confirmado, é confirmado para sempre.

Vêde que os milagres são dados a Jesus para provar quem Jesus é, e servir de credenciais à sua redenção e à primeira pregação mundial da mesma pelas testemunhas. Mortas as testemunhas, mas sendo imutável e completo seu testemunho, ficou terminada a função do miraculoso no cristianismo. Pelo Novo Testamento, os milagres de Jesus são nossos mi-lagres e nos confirmam a revelação de sua pessoa e obra redentora e a vinda do Espírito como seu Vigário, seu Alter Ego. As credenciais aí es-tão. E' a mesma verdade. Não necessita de ser confirmada de novo para cada indivíduo, ou cada geração. Os que forjam os pálidos e duvidosos milagres de hoje em dia estão pregando um outro cristianismo que que-rem assim fortificar e confirmar. O cristianismo de Cristo teve sua con-firmação histórica no século de sua revelação objetiva. Agora assimila-mos subjetivamente na experiência cristã, pelo poder sobrenatural do Es-pírito — interiormente, não em sinais exteriores — a graça que mana da obra redentora do Calvário, da ressurreição do Messias, e da sua Ascen-ção, Deidade e Autoridade no universo. Nossa fé descansa nos milagres de Jesus. Ninguém que rejeite os milagres de Jesus virá continuar a fé por mais de uma geração, no círculo de sua influência. A missão literá-ria de João, o apóstolo, foi de dar-nos esta certeza e confirmação de fé.

«Continueis admirados.» Evidentemente o alvo se realizou. Vemos como João, sessenta anos depois, ainda sentia a realidade dêsses milagres e queria que todos se admirassem, com sua narrativa de testemunha ocu-

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lar. O fim do livro é provar a deidade do Salvador, e prová-la pelos mi-lagres e as demais obras messiânicas, especialmente sua obra no Cal-vário, e conseguir nessa base a fé, pois a fé traz a salvação anunciada, a vida eterna. Sem os milagres, êle é apenas o senhor Jesus, o mister Jesus, inadequado para uma verdadeira salvação. Eu continuo admira-do, entusiasmado, pelos milagres de Jesus. São meus milagres, creden-ciais do Cristo de Deus para minha alma, garantia da minha salvação. São para mim os fatos mais admiráveis da história humana, pois os mi-lagres de Jesus incluem sua voluntária encarnação, transfiguração, morte vicária e ressurreição, a volta para seu trono da glória, a conquista de Saulo de Tarso e tudo mais que os apóstolos nos testificam até o Apoca-lipse. Esse é o Cristo Jesus real. Que êle fôsse um ser não-miraculoso, em natureza e feitos, é anti-histórico, mera fábula de velhas — ou de velhos céticos que se chamam «intelectuais». A uma fria crença e reli-gião que não «se admira» do Salvador e dos seus milagres, falta muito para ser cristianismo, falta o principal.

«Maravilheis». «Atitudes maravilhadas pertencem às crianças e aos homens de ciência. A ciência moderna multiplicou os motivos humanos de admiração. Clemente de Alexandria preservou as seguintes palavras como sendo de Jesus: «Quem se maravilha, reina; e quem reina, ficará em sossego.» Meditando sôbre as conversões que tenho observado no Bra-sil, parece-me que em quase todas há um elemento vivo de admiração no convertido. Parece-lhe maravilhoso o evangelho, a salvação, o Salvador; e êle se admira de que não tivesse descoberto a verdade anteriormente e que o caminho da salvação é tão simples e sublime. E parece-me ainda que o motivo por que alguns filhos de crentes nunca se convertem, antes se tornam os mais duros incrédulos, é que as conversas incessantes que ou-vem acerca do evangelho são monótonas, frias e banais e, diante disso, não percebem a maravilha nas Boas Novas, de que seus pais falam mas não as ilustram, na sua vida cristã rotineira. Ainda que sejam crentes ge-nuínos, a glória ficou para trás, lá nos primeiros passos da jornada. Não constituem nem maravilha nem motivo para outros se maravilharem e crerem.

21. «O FilhoiliMa aos que êle quer.» Jesus escolheu aquele infe-liz de trinta e Orlo anos de sofrimento. E' a escolha divina. «Queres fi-car são?» Assim as duas vontades se unem na salvação. A chamada lei da selva não prevaleceu nas decisões de Jesus. Não «sobrevive o mais apto para a luta». Essa era a lei das selvas. Salve-se primeiro o mais forte, o que tenha amigos, o que tenha conseguido a posição mais favorável. Mas Jesus escolheu o mais impotente, o mais destituido de amigos e proteção, o mais necessitado. Na providência de Deus a corrida não é para os velo-zes, nem a luta para os fortes. Seu reino é para os caídos, os pohres,._os pecaminosos, os fracos, os que no terreno_ de mérito são mendigos da gra-ça. A se-1- 7--à- tem seus filósofos se%gens, apologistas da fôrça brutal. «O

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Filho dá vida aos que êle quer», e o seu querer é não «quebrar a cana ra-chada nem apagar a torcida que fumega».

«O Filho faz viver a quem quer.» Ao pé da letra, ou figuradamente? Trata-se da ressurreição do corpo ou da regeneração do espírito humano pelo Espírito de Deus? Sem dúvida, inclui ambos os atos divinos de «fa-zer viver», o espírito morto em delitos e pecados sendo regenerado agora e o corpo ressuscitado no dia final. Vêde as notas sôbre as duas declara-ções dos vs. 25 e 28. Notai que na regeneração pelo Espírito, Jesus é quem «faz viver» o regenerado. O Espírito é o agente de Jesus. Nos dias da sua carne, Jesus era o agente da deidade e o Espírito agia por êle. Agora o Espírito age na terra e Jesus o envia e opera sua salvação rege-neradora pelo Espírito. O dia de Pentecostes, de Atos II, pois, não fêz ne-nhuma modificação na obra salvadora de Deus. Antes e depois, nenhuma pessoa da Trindade agia isolada das outras. E' Jesus, sob direção do Espírito, durante seu ministério; é o Espírito, sob a direção de Jesus, o resto do tempo. Mas os salvos sempre tiveram, têm e sempre terão a mes-ma salvação, na qual coopera a mesma Trindade, de acordo com o mesmo evangelho. Nós sabemos mais do evangelho hoje em dia; mas a Trinda-de sabia tanto, na matéria de salvar pecadores, nos dias de Abraão, Isaías, João Batista, os Doze, Estêvão, Apolo e Timóteo quanto sabe hoje; e a Trindade sempre salvou e salva segundo seu conhecimento e seu plano e não segundo nossa ignorância. Vêde as notas sôbre 6:63 e 12:50, a res-peito do paralelo ai estabelecido entre Cristo e sua palavra.

22. «Julgamento». O têrmo é largo e variado no seu significado. Pode significar apenas uma opinião formada ou uma decisão jurídica, o ato de sentenciar. Onde êste sentido é evidente, assim traduzo. Mas Jesus está nos julgando os atos, os pensamentos e as palavras, a cada instante. «Eis que eu estou convosco.» A opinião dêle deve valer tudo aos nossos olhos. Devemos sentir-nos envergonhados se as tradições ou a vontade de pais, patrões, colegas ou noivos influenciam nossas ações e pensamentos, quan-do a opinião de Jesus a respeito nada vale aos nossos olhos. Será que nosso cristianismo é dos homens e que vivemos para agradar aos homens, ou buscamos, amamos, guardamos e testificamos o cristianismo real de Jesus Cristo, o cristianismo em que todos os valores de sua divina pessoa dominam — Salvador e Senhor, Sacerdote e Legislador, Oblação e Auto-ridade, Caminho, Verdade e Vida? Um dia vamos querer ouvir seu lou-vor: «Muito bem, servo bom e fiel.» Ele não dirá isso a todos. Não é mentiroso. Muitos se envergonharão dêle na sua vinda, I João 2:28. Sua opinião de nós agora, de nossa doutrina, espiritualidade, moral, vida e obe-diência, é seu julgamento íntimo de nós, na sua vista contemporânea de nossos pensamentos, atos e palavras. Ora o que êle julga agora êle jul-gará na sua sentença final, no dia de juízo universal. A fé traz a sentença favorável de Deus — a justificação. E' sentença agora e eternamente; e o dia final apenas revela o julgamento. Mas o grau de galardão e respon-

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sabilidade eterna está sendo julgado — Deus usa até a figura de escritura-ção em «livros» — e êsse julgamento crescente e total, contemporâneo e cumulativo, também se revela no dia final. Conservamos em mente, e em mira, êste vasto alcance do fato de ser entregue a Jesus TODO O JUL-GAMENTO.

23. «Honrem ao Filho.» «Deus fêz o juízo divino e o destino huma-no dependerem da atitude dos homens para com Jesus Cristo. E' em re-ferência ao Filho, não ao Pai, que os homens decidem seu destino eter-no.» (13)

«Para que todos continuamente honrem ao Filho precisamente como honram ao Pai.» Assim verte o Dr. J. W. Shepard a passagem, e acres-centa: «Jesus afirma que tem o mesmo direito que o Pai à adoração dos homens. Quem não honra ao Filho, não honra ao Pai. O crítico que nega a deidade de Jesus desonra ao Pai.» (14)

«Para que todos honrem ao Filho.» Há três poderosos motivos na salvação e na vida cristã — mêdo, esperança de galardão e amor. O peca-dor é «inimizade (personificada) contra Deus», Rom. 8:7. Não lhe é possível, pois, o motivo do amor a Cristo. A regeneração é o começo dessa capacidade, o amor de Deus sendo derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos é dado, Rom. 5:5. «O temor de Deus é o princípio da sabedoria» — e do arrependimento que conduz para a sal-vação. Os pecadores são interesseiros. Deus, pois, lhes ameaça se con-tinuam no pecado, e lhes dá grandes promessas se deixarem seus pe-cados e aceitarem o Salvador. Não esperemos que vis pecadores princi-piem sua peregrinação já nas alturas dos motivos éticos. Principiam onde andam e o motivo mais eficaz é o temor. Por isso Jesus dizia: «temei antes aquele que pode fazer perecer na Geena tanto a alma como o corpo», Mat. 10:28. E' de causar pasmo ver sentimentalistas insensatos que imaginam estar num plano mais elevado que Jesus e, por isso, não fazem nenhum apêlo ao mêdo. Aos incrédulos Jesus man-da: «Temei.» Ao crente: «Não temas.» E' a salvação que faz a dife-rença. O Quarto Evangelho salienta o mesmo motivo. Contemplando a Jesus como Juiz, é que os homens, atemorizados no seu curso malva-do, se converterão a Jesus como Salvador. A doutrina de que Jesus é Juiz foi pregada por Paulo, Atos 17:31. Ele prevenia dia e noite com lágrimas, pregando públicamente e de casa em casa o arrependimento para com Deus, Atos 20:31. Isso fazia a «todo homem», Col. 1 :28. A suprema razão da anarquia mundial de nossos dias é que «não há te-mor de Deus diante de seus olhos», Rom. 3:18. Os modernistas remo-veram o motivo do temor, desmentindo a veracidade de Jesus Cris-to e asseverando aos malvados que o inferno (Geena) não existe, não

(13) "Messages of the Bible", p. 144 (Notas de Riggs). (14) "The Christ of the Gospels", p. 158.

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havendo, portanto, nada que temer. Não há futuro para a moral, a or-dem, e o evangelho, até que voltemos ao motivo do mêdo, e à doutrina de Cristo como Juiz presente e futuro.

«Há pouco confôrto aqui para os que louvam a Jesus como mestre, mas lhe negam os atributos que o qualificam para receber a adoração», (15) diz o Dr. A. T. Robertson. São duas peças do mesmo modernismo, destrutivo da moral e da fé, negar que o pecador deve temer as conse-qüências eternas do pecado e negar que Jesus é Deus, Juiz, Senhor e Salvador.

«Honrem ao Filho como honram ao Pai.» E' espada de dois gumes, pois iguala ao Filho visto o Pai invisível, como iguala para o Filho na humilhação a honra e adoração dada ao Pai. Os intelectuais pacifistas de muitos países, nas duas décadas entre a primeira e a segunda Guerra Mundial, caluniaram o Deus e Pai de Jesus, extravagantemente exaltando Jesus pelas palavras dêle que, torcidas e torturadas, dão no pacifismo, mas ridicularizando «o velho Jeová» que consideram desdenhosamente o deus tribal de Israel que o povo semítico fêz, à sua imagem, numa época bárbara. A arqueologia mostra que Abraão, Moisés e os profetas não eram bárbaros, mas senhores de uma cultura mais sólida do que a dos seus críticos da atualidade. E quem desonra ao Pai de Jesus, desonra a Jesus. O labéu contra Deus é ofensa contra o Filho. Jesus é a reprodu-ção em vida humana do Deus do Velho Testamento, e ao Deus do Velho Testamento Jesus adorava e o pregava; e o Velho Testamento era sua consolação e luz e espada. Ninguém honra a Jesus no cinismo contra as revelações e o Revelador eterno que êle veio para fazer os homens conhe-cer. Não é possível, coerente e estàvelmente, nenhuma diferença entre nossas atitudes para com o Pai e o Filho, na deidade redentora.

A evolução filosófica, como teoria popular, destrói, na sua imagina-ção, o Criador do universo — fazendo de uma pequeníssima entidade de matéria inerte a criadora da vida e do universo e da história. Esbarra essa teoria com o fenômeno e o fato de Jesus. Que lugar tem Jesus na filoso-fia evolucionista? O crente fará sua escolha. Vê no Filho o Deus eterno, o Verbo que tudo criou e mantém, em unidade com o Outro que é Deus Pai. E' a revelação que Jesus confirmou com o milagre de sua pessoa e se fêz proclamar por testemunhas oculares que eram os homens mais de-sinteressados, sinceros e santos da antigüidade. Quem não percebe Pai e Filho, nas suas hipóteses, é cego aos supremos fatos da realidade. Seu pensamento é torto e incompetente, pois fecha os olhos aos principais fe-nômenos no horizonte da história e vida. Pai e Filho — eis o Prólogo, tan-to de João como da realidade e da verdade em qualquer pensamento do universo, de Deus, do homem, da história e do destino.

«Honrem ao Filho.» Em visão messiânica o segundo Salmo honra ao

(15) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V. pág. 86.

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Filho, e o vê soberano sôbre as nações, governando o universo e a histó-ria, julgando, castigando e possuindo os povos. Salva o crente: «Felizes todos os que nele se refugiam.» Portanto, o salmista exorta : «Beijai o Filho.» E' a saudação oriental de respeito, homenagem e amor. O judeu que não honra ao Filho, desonra seus Salmos e o Messias que eles pro-clamam. O gentio que não honra ao Filho, desonra o Filho do homem que o quis encorporar no reino de Deus sem distinção de raça. «Agora, pois, ó reis, fazei-vos prudentes. Deixai-vos instruir, juízes da terra.» Acatai a Jesus, elite e intelectuais. «Beijai o Filho, para que não se ire e pereçais no caminho.» A única bem-aventurança eterna é a fé que vos dará a vida. Um frio e vago ensino filosófico de um deus que talvez exis-ta no universo, não basta. Deus se fez conhecer no Filho. «Quem não honra ao Filho, não honra ao Pai que o enviou.» Maltratar o embaixa-dor é ofender à pátria que o enviou.

24. «Amém, amém.» O duplo amém com que Jesus introduz muitas declarações é parte do seu estilo de Mestre, preservada Unicamente por João. Nos Salmos temos: «Amém e amém.» Nos Sinóticos temos o sin-gelo «Amém». Em João há o duplo e rico «Amém, amém.» Nossos hi-nos e coros terminam com o amém, e algumas orações e doxologias nas Epístolas e no Apocalipse assim se rematam. Jesus, porém, principiava com o «Amém», ao pronunciar suas mais sublimes verdades, ao dar suas mais solenes advertências.

Jesus, provàvelmente, variava seu uso, às vêzes empregando o sin-gelo, às vêzes o duplo, «Amém». Os Sinóticos contêm «Amém» em 51 passagens, e João o duplo «Amém» em 25, no seu Evangelho. O resto do Novo Testamento acrescenta 26 «Améns», sendo a palavra um título e nome de Jesus, sinal de veracidade, começo de louvores celestiais e pala-vra final de oração (sentido comparativamente raro nas Escrituras apos-tólicas). Portanto, temos o «Amém» nos lábios de Jesus 101 vêzes dos 127 que se encontra no Novo Testamento. Ele é «o Amém», e amém era um vocábulo predileto do seu ensino. Serviu de prefácio de solenidade e ênfase. No cálculo sigo o texto de Nestle. Textos inferiores mostram a tendência cerimonialista de multiplicar améns, o número no Textus Re-ceptus sendo 152, mais 25 do que o texto de Nestle.

Essas declarações tão enfáticas nos orientam no ponto de vista de Je-sus. Ninguém pense que seu ensino se ocupava apenas com o outro mun-do, menosprezando a obrigação cristã nesta vida na carne. Há 51 pro-messas ou ensinos em relação a esta vida, 8 em referência à vida depois da morte, e 10 concernentes a ambas em continuidade. Jesus não negli-genciou deveres desta vida, na esfera moral e religiosa. Mas ele não iden-tificou ou confundiu o reino de Deus com a sociologia, a política revolu-cionária ou socialista, nem com uma ideologia econômica. Há bastante matéria no ensino do Cristo de Deus sôbre esta vida, sem necessidade de torcer suas palavras para justificar um programa para o domínio político

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e econômico do povo. E João dá «Améns» de Jesus ao introduzir com du-pla ênfase uma vintena de declarações sôbre esta vida, sem tocar uma só vez em assunto sociológico ou econômico. Ainda cita Jesus falando um duplo «amém» sôbre a eternidade, e mais dois sôbre a vida do crente em dois mundos. Não é preciso desviar o espírito para utopias ou manias sociológicas e econômicas, para ser prático na atitude para com esta vida. As supremas realidades, obrigações, garantias da graça divina e promes-sas do evangelho dizem respeito a verdades e experiências espirituais, nossas relações com Deus, nossas relações cooperadoras no empreendi-mento de evangelizar e de ensinar os mandamentos do Mestre, que estão aí também no terreno do que damos a Deus, não no de pressão de grupos sôbre César. Nunca Jesus arriou a bandeira da espiritualidade na qual está escrita: «A vida do homem não consiste na abundância das coisas que êle possui.» Ele demonstrou, na sua abundante vida humana esta ver-dade que testificou. Não tinha onde reclinar a cabeça, contudo, nunca lhe faltou coisa alguma por causa da sua fé em Deus. Fique o crente, como crente, no terreno do Espírito, na vontade de Cristo para esta vida com Deus que, sem solução de continuidade, é a vida eterna em dois mundos. E como damos a Deus o que é de Deus, demos a César o que é de César. Sôbre isso Jesus Cristo não fêz nem programa nem regulamento nem ideologia nem a mínima sugestão. O cidadão espiritual é monarquis- ta numa monarquia, democrata numa democracia, coletivista no ter-reno civil dum regime coletivista, leal sempre às autoridades legíti-mas do seu povo. Jesus acatava os hipócritas sentados na cadeira de Moisés — eram autoridades civis na teocracia. Pagava impostos e até nasceu em Belém em conformidade com um recenseamento romano. Sua própria encarnação respeitava a soberania romana, na esfera civil ; mas, no terreno religioso, coube-lhe adoração por parte de anjos, pas-tôres e magos na mesma noite em que nasceu onde quis o decreto de César. Reduzir «o que é de Deus» a «o que é de César», ou vice-versa, é o maior crime contra Deus e César que se pode praticar. E' a idéia totalitária; e os que não sabem a diferença entre o reino de Deus e o Estado civil que ambicionam criar, pelo socialismo radical ou ideo-logias econômicas avançadas, são moralmente réus dêsse crime e loucura. E é precisamente êsse sonho dourado de loucos que neste momento (1943) enche a terra de sangue, lágrimas, fome e dor. No meio do pe-cado, uma raça decaida é incapaz da absoluta unidade sonhada pelo pa-pismo ou pelo totalitarismo. Jesus exige nesta vida um regime dual, Deus e César, Igreja e Estado, separação, respeito mútuo, cooperação em liberdade, cada qual na sua esfera. Fundir os dois em um só, num mundo de pecadores, é a mais desgraçada escravatura.

A ênfase de Jesus, pois, é um duplo «amém» sôbre esta vida, esta vida eterna em Cristo, com Deus, pelo Espírito. A teologia trata destas

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supremas realidades, não dos programas do Estado em relação a meras COISAS. O Mestre perguntou uma vez: «Homem, quem me constituiu juiz e partidor entre vós?» Bem, doutor radical, totalitário, adepto de um reino de Deus que seja deste mundo, mundano, ousas tu responder a pergunta do teu «meigo Nazareno» e dizer: «Eu?» Podes dizê-lo: mas o Filho de Deus não é títere nas tuas mãos, não se submete aos pro-gramas de tua ideologia. E' Senhor do universo; e desejou nesta vida pedir a lealdade e o amor, no terreno do espírito adorador, e excluir dessa relação César, exigindo de ti e de tua estirpe: «Dai a César o que é de César», rn,esmo que êle seja um Nero ou de um regime bem diferente da tua ideologia radical. Jesus ainda decreta: «Meu reino não é dêste mun-do», um decreto que tu nunca conseguirás anular.

Examina êsse divino programa do duplo «Amém» do teu Criador e Senhor e — oxalá seja teu Salvador também. Há 25 soleníssimos «Amém, amém» neste Evangelho. Cinco são denúncias do pecado, não de males políticos e econômicos, mas de pecados no terreno religioso, pecados como a incredulidade, falsas esperanças e a propaganda de outras autoridades religiosas em lugar de ter Jesus como único Salvador e Senhor; a hipo-crisia, a cobiça do que pertence a outro indivíduo e a idéia de que a abun-dância econômica é a vida; a traição de Judas, a negação pela covardia de Pedro. Não espiritualizes essas coisas. São pecados religiosos e morais, os magnos pecados da vida, cometidos cada hora por muitos radicais so-cialistas e advogados de novas ideologias. Nenhuma teoria econômica substitui a reta atitude pessoal para com Deus ou a fé salvadora no seu Filho crucificado. «Amém, amém.»

Sete dessas passagens tratam da eternidade e quatro da vida eterna aqui. A eternidade inclui esta vida, mas os mecanismos e as políticas e «abundância de COISAS» não são a vida eterna aqui e nem existirão para nenhum de nós daqui a cem anos. A sobrenatural realidade é a essência da vida eterna. «Amém, amém.»

Quatorze destas passagens tratam dos valores de Jesus Cristo para a vida dos que nele crêem. «Amém, amém.»

Uma trata do novo nascimento; duas expõem deveres do crente, a imitação de Jesus, o acatamento ao seu ministério: duas são promessas de gozo depois de dores, e de respostas às nossas orações. «Amém, e amém.»

Não sejas cego materialista. Não vivas para o curto prazo da tua vida carnal. Não desmintas teu Salvador. Deus pôs a eternidade no cora-ção humano e tu não a desarraigarás nunca por um instante, a não ser nos que estão momentâneamente ludibriados pela velha Serpente que sempre cochicha: «Deus é mentiroso. Não morrerás.» Jesus não mente. «Amém, amém, digo-te que falamos o que sabemos e testificamos o que temos visto.» Jesus é veraz. As coisas de Deus são a suprema realidade e nós somos embaixadores dessas realidades supremas, eternas e inefá-veis. Acatai à Fiel Testemunha, «o Amém».

C. E. J. — 10

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Sôbre a eterna segurança e vida do crente, doutrinada positiva e ne-gativamente, neste versículo, e com o prefácio do duplo «Amém», vêde a nota sôbre o tempo perfeito dos verbos, nos estudos sôbre vs. 10 - 47, tam-bém Vol. I, ps. 59, 321 - 323, 327; e, neste tomo, as várias discussões da «vida eterna», por exemplo, em Cap. X.

25. «Amém, amém.» A ressurreição espiritual é a salvação, ver-dade gêmea da que se refere à vida eterna, ambas unidas sob a brilhante bandeira do duplo «Amém», vitória de Jesus, em nós e por nós e sôbre nós, em ambas as vidas, para todo o sempre.

«Uma hora está chegando, aliás já chegou.» A linguagem não quer indicar aqui um período de sessenta minutos. De fato, após vinte séculos ainda podemos dizer que esta «hora» é a esperança do porvir e a glória da atualidade. A ressurreição de que se trata é para novidade de vida, vida eterna, o cancelamento de nossa morte moral e espiritual em nossos delitos e pecados, seguido de uma ressurreição espiritual para a vida eterna. A alma que estava moralmente morta vive pela fé em Jesus Cristo

«Hora". Esta hora já durou dezenove séculos e não sabemos quan-tos ainda vai durar. E' a «hora» da oportunidade evangélica, o «dia» da salvação. A mesma frase se acha em 4:23. A «hora» de culto em espí-rito e verdade é a hora em que Cristo é manifestado a consciências mor-tas, e ressuscita, para vida instantânea e eterna, os que estavam mortos em delitos e pecados.

«Agora é.» O Padre Rohden traduz: «Em verdade, em verdade vos digo: virá a hora, dentro em breve, em que os mortos ouvirão a voz do Filho de Deus.» E quando segue a doutrina da ressurreição dos mortos no v. 28 êle pensa que é a mesma coisa. Diz: «Torna, pois, o Mestre a in-culcar a mesma verdade.» (1a) Os versículos 25 e 28, porém, não se refe-rem «à mesma verdade». Aquela ressurreição é a regeneração, é a res-surreição de que Jesus declarou: «o que ouve a minha palavra e crê naquele que me enviou tem a vida eterna... já passou da morte para a vida», v. 24. «Passar da morte para a vida» é uma ressurreição. E Jesus disse que «a hora» dessa ressurreição «agora é» — não como o Pa-dre traduz: «virá a hora, dentro em breve.» (Mais tarde. Noto que a tra-dução desta passagem, na terceira edição do Novo Testamento Rohden, é: «Chegará a hora — e já chegou — em que os mortos ouvirão, etc.» E, nas notas, êle assim comenta o trecho de vs. 24:30: «O poder de ressus-citar mortos, espiritual e corporalmente, compete da mesma maneira ao Filho como ao Pai», p. 212. E' nobre abandonar opiniões erradas.)

«Os mortos». E' outro caso em que o sentido do artigo não é univer-sal, mesmo numa declaração generalizada. Nem todos os espiritualmente

(16) "Jesus Nazareno", 121.

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mortos serão regenerados. Como em Mar. 16:11-18, em João 21:15, 16, 17, etc., «os» não quer dizer «todos».

«Os mortos ouvirão . . . viverão.» Que Jesus podia falar assim, sem uma palavra de explicação, indica quão comum era a figura da morte para indicar o estado do pecador. Já Ezequiel consagrou a figura, em seu «vale de ossos secos». Profetas, apóstolos e o Mestre de todos continuaram o constante emprego da metáfora. E Pedro, sem a mínima necessidade de explicar que é linguagem figurada, afirma que «o evangelho foi pregado aos mortos», I Ped. 4:6. Pedro apenas repete o que Jesus proclamou: «Os mortos ouvirão... e viverão.»

«Os mortos». Chamar os pecadores «os mortos» é urna prática co-mum da Escritura em geral. Essa é a idéia dos profetas mais evangéli-cos. Isaías, na hora da sua chamada, na mocidade, vê seu povo corno se fosse o dízimo de uma nação dizimada, mas do tronco da árvore cortada, «exterminada», nasce da raiz urna árvore nova, «a semente santa», o res-to, o Israel espiritual, Is. 6:11-13.

A magna visão evangélica de Ezequiel foi o vale dos ossos secos. E' a casa de Israel. Ele prega a êsses mortos. Parece fútil em si mas êle invoca o Espírito vivificador, chama sua intervenção para regenerar os ouvintes, dizendo: «Vem, ó fôlego, dos quatro ventos, e assopra sôbre êstes mortos, para que vivam... e viveram», Ez. 37:9, 10.

A figura é tão comum que nem precisava de explicação. Quando Je-sus mandou: «deixa que os mortos enterrem os seus mortos», Mat. t :22, os dois sentidos dêsse versículo são evidentes. Como aqui no v. 25, em contraste com a ressurreição geral de v. 28, a significação figurada e a natural se entendem fàcilmente. Com igual facilidade entendemos Paulo quando declara aos efésios: «Ele vos deu vida quando estáveis mortos pe-los vossos delitos e pecados», 2:1; e, em v. 5 «quando estávamos mortos pelos nossos delitos, nos deu vida, juntamente com Cristo (pela graça sois salvos).» A salvação do pecador pela graça divina é a ressurreição espi-ritual de um morto. O apóstolo, portanto, manda aos romanos, (e serve a verdade para orientar os romanistas, que encontrarão na Epístola aos Romanos sublime e eficaz antídoto contra todo o romanismo), «oferecei-vos a Deus, como ressuscitados dentre os mortos», Rom. 6:13. O batismo proclama os fatos dessa experiência da salvação pela graça, isto é, que o batizando já morreu ao pecado e já anteriormente ressuscitou espiritual-mente com Cristo. Vede ensino igual em Col. 2 :13 .

O apóstolo lança um apelo evangelístico àqueles de quem é «uma ver-gonha até dizer o que fazem em secreto»: «Desperta, tu que dormes, e le-vanta-te dentre os mortos, e Cristo te alumiará», Efésios 5:14.

Na parábola do Filho Pródigo todos entendem a morte viva do peca-dor de que fala o pai: «meu filho era morto e reviveu ...teu irmão era morto e reviveu», Luc. 15:24, 32.

«Obras mortas» é reminiscência da mesma grande verdade, Heb. 6:1 ;

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9-14. Tôdas as pseudo-boas obras, a religiosidade praticada enquanto o pecador está morto em delitos e pecados, são absolutamente sem valor; o pecador tem de arrepender-se dêsse farisaísmo inteiro e ter sua consci-ência purgada da fé nas energias da carne. «Quanto mais o sangue de Cristo... purificará a nossa consciência de obras mortas para servirmos ao Deus vivo», Heb. 9:14. A salvação das obras mortas vem primeiro. Em seguida, o homem arrependido dessa religiosidade defunta, de puro formalismo, poderá como crente, salvo pelo sangue vertido no' Calvário, servir a Deus aceitàvelmente em uma vida pura e operosa na prática do bem. Pedro, por último, fala também de «pregar aos mortos», 4:6. Com todo esse claríssimo significado da frase, nos profetas, em Cristo, e em Paulo, seu grande contemporâneo, não há dúvida do sentido. Pregar aos mortos é o que fêz Ezequiel ao vale de ossos secos, é evangelizar. O Cristo eterno, antes do dilúvio, no Espírito fêz isso no ministério de Noé. Pre-gar aos mortos é a missão dos profetas, do Messias, dos apóstolos e dos evangelistas sempre. E' o Salvador que opera a ressurreição dêsses mor-tos, fazendo viver «um exército muito grande», e cada vez maior, dos salvos «pela graça».

«No ato de ouvir viverão.» Jesus assim esclarece quando e como se dá, essa salvação que consiste no fato de os moralmente mortos experi-mentarem a ressurreição espiritual que se define nas palavras «pela gra-ça sois salvos», Efés. 2:5. A alma morta em pecados experimenta a res-surreição espiritual no ato de ouvir o evangelho. E' o ouvir acompa-nhado da fé de que fala o autor da Epístola aos Hebreus, 4:2. Os ouvin-tes do evangelho recebem a visita vivificadora do Espírito regenerador «quando crêem», Atos 19:2. E' pelo ouvir da fé-confiança salvadora, não por obras de religiosidade legalista, que os gálatas receberam ex-perimentalmente o Espírito regenerador, Gál. 3:2. «Começaram no Es-pírito», 3:3. A conversão dos primeiros gentios ao Senhor é norma, é a conversão-amostra, modêlo das demais. Pois bem. Pedro não pregou dois minutes em Cesaréia, na casa de Cornélio, antes de Deus operar, e cabalmente demonstrar, a salvação dos gentios enquanto ouviam, no mes-mo momento de crerem. «Enquanto Pedro ainda falava essas coisas (a remissão dos pecados, em virtude da paixão de Cristo). desceu o Espí-rito Santo sôbre todos os que ouviam a palavra», Atos 10:44. O Espírito instantâneamente os regenerou e deu provas públicas e miraculosas dêsse fato, a fim de que ninguém nunca jamais tivesse a temeridade de negá-lo. E Pedro analisa o que aconteceu assim: «Começando eu a falar, desceu o Espírito Santo sôbre êles.» Foram salvos e santificados sem batismo. igreja, sacramento, clero ou boas obras. Foram salvos no meio c'o ser-mão, «começando eu a falar» diz Pedro. Foram salvos no segundo mi-nuto do sermão. Ainda Pedro testifica: «Deus que conhece os corações... não fêz distinção alguma entre nós e êles, purificando seus corações pela fé», Atos 15:9. Pedro, pois, teve seu coração purificado pela fé, e não

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pelo batismo no Jordão. Assim também os demais apóstolos. Foi a fé que lavou realmente o coração de Paulo; o batismo apenas simbolica-mente, pois, Paulo está aí no grupo de que Pedro fala, como estão no grupo a mãe de Jesus, o ministério quase todo do tempo, convertidos nos dias de João Batista, no tempo da vida de Jesus na terra, no dia de Pen-tecostes e da pregação de Pedro, Tiago, Paulo, Barnabé, Tito, etc. —«Deus não feia distinção alguma» entre êles. Salvou-os, unanimemente e sem exceção, quando creram evangèlicamente no Salvador. E' a única salvação, através dos séculos. «Com o coração se crê para a justiça.» Deus vê o coração e justifica, no céu, quando o crente ouve e no íntimo crê em Jesus. Este Jesus afirma a mesma verdade. «A hora vem, já é», desde há vinte séculos, em que os pecadores, mortos em delitos e peca-dos, ouvem a voz regeneradora e vivificante de Jesus Cristo, pregado no evangelho, «e os que ouvem viverão». «Aquele que crê, tem a vida eterna.»

25 - 27. «Mortos... viverão.» «Os que estão espiritualmente mor-tos serão despertados de seu indiferentismo pela pregação cujo assunto é o Filho de Deus que os chama ao arrependimento e à fé; e os que tive-rem escutado e respondido ao apelo, viverão... Vós vos admirais, disse Jesus, que eu faça tais afirmativas de mim mesmo. Guardai vossa ad-miração para coisa ainda mais admirável, pois, quando esta voz que agora ouvis quiser chamar os mortos, todos de seus túmulos ouvirão e sai-râo.» (17)

26. «Vida em sua própria pessoa». Jesus é o Absoluto da nossa fé. Êle não é criatura, não deriva sua existência e ser essencial. E' eterno. Sua natureza absoluta «armou sua tenda entre nós», na encarnação, em uma vida humana real, acomodando-se e limitando-se à uma personali-dade humana mas sendo o que era, nesses limites. Vêde Vol. I, notas sô-bre o Prólogo. Esse Jesus é o «Deus desconhecido» dos atenienses, dos filósofos, dos intelectuais céticos, cujas afinidades com o pecado os le-vam a descrer e aliar-se às trevas contra a luz. O Absoluto, o Eterno, a Vida, pode dar vida. Êle a deu do alto do Calvário na hora da sua morte, morreu como o Absoluto, o Eterno, a Vida, e tinha «vida em sua própria pessoa» na agonia no Calvário, e lá no Paraíso com o malfeitor crente, no mesmo dia, «na casa do seu Pai». «Cada um dá aquilo que tem.» Jesus tem Vida em si. Pode dar vida a quem êle quiser. «O primeiro homem, Adão, foi feito em alma vivente; o último Adão em espírito vivificante» (I Cor. 15:45).

27. «Poder de administrar julgamento contínuo». Jesus exerce a divina prMdência. Julga agora do seu trono, não apenas nas suas opi-niões de nossa vida, ou no dia da sentença jurídica do juízo final. Lem-brai-vos de como nas cartas às igrejas da Ásia êle tudo vê e tudo julga

(17) "Messages of the Bible", in loco (notas de Riggs).

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e só êle pode abrir os selos do livro do futuro, dos propósitos de Deus e desenrolar os séculos do porvir. Sérias ameaças contra seu povo, quan-do erra, e grandes promessas para o vencedor, envolvem da sua parte autoridade e poder em absoluto, a administração messiânica da providên-cia divina na vida humana, em justiça e amor. Estamos num dia de juí-zo em que êle permite que a ira do homem se castigue a si mesma, em guerras e fome e cataclismo: e angústia. Jesus é o Juiz. «Sêde pruden-tes»... «Beijai o Filho.»

gÉle lhe deu autoridade para julgar, porque é Filho do homem, ► Ernest Gordon declara: «E' baseado em Dan. 7:13 — Foi-lhe dada (ao Filho do homem) domínio e glória e um reino, para que todos os povos e nações e línguas o servissem; e o seu domínio é um domínio sempiterno que não passará e o seu reino tal que não será destruído.» (18)

28. «Não continueis a admirar-vos disso.» Certas verdades deve-mos assimilar até que sejam como o fôlego da vida, de tão naturais que se tornem para nós. Os milagres de Jesus nos devem causar admira-ção, através dos séculos. São as evidências do seu amor em baixar até nossas tendas para nos redimir. Mas que êle no céu tinha autoridade e poder para ser Juiz do Universo não nos deve admirar. E' seu inerente e eterno direito como Filho.

«A hora vem.» Jesus aqui não diz: «Aliás já chegou.» A razão é que suas palavras aqui tratam da ressurreição geral dos homens, mas no v. 25 tratavam da salvação, que é uma ressurreição moral. Aquela «hora», como já vimos, é qualquer hora da era evangélica, qualquer hora em que alguém é salvo, portanto, prolonga-se até a segunda vinda de Jesus.

Esta outra hora, porém, é a hora da segunda vinda e da ressurrei-ção dos mortos. O v. 28 é razão dada para não causar admiração o v. 27. A autoridade atual de Jesus Cristo não surpreende, pois êle jul-gará o universo no dia final da ressurreição geral. E' o ponto do argu-mento do v. 28 em relação ao v. 27.

O fato de que a «hora» de v. 25 se prolonga, ou se multiplica, atra-vés dos séculos, parece a alguns intérpretes justificar a teoria de duas ressurreições, uma separada da outra por mil anos (o milênio literal), tudo isso sendo encaixado na outra «hora» do v. 28.

Não me parece crível a doutrina nem boa a sua maneira de interpre-tação bíblica. No v. 25, aquela «hora» é figurada, e a ressurreição é fi-gurada. E' coerente, pois, a interpretação. Tôda a linguagem é meta-fórica, e uma parte condiz com a outra, e é tudo compreensível no texto, à luz do contexto.

Mas no v. 28, vários eventos, segundo essa interpretação, que nem por sonho aparecem no contexto, são por força encaixados no texto, sem

(18) "A Layman's Notes on the Greek New Testament", p. 120.

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serem mencionados nesta parte da Bíblia. Uma remota e difícil passagem, altamente figurada, é tomada como norma de uma declaração de Jesus 60 anos antes de estar escrita essa passagem sôbre o milênio. Seria In-compreensível aos ouvintes, mesmo aos mais espirituais; e aos judeus, a quem Jesus falava, não viria ao caso.

Vejamos, pois, quão natural é a interpretação literal da palavra «hora» aqui. A ressurreição é descrita de um modo tão realista que se relaciona com os túmulos. Suponho que ninguém negará que se trata aqui da ressurreição literal, e não da salvação. Certamente a impressão dada por esta Escritura é a de que «todos» os mortos experimentarão a ressurreição juntos e comparecerão juntos ao julgamento final. (*) No meu modo de ver, nenhuma outra interpretação é razoável ou possível, a não ser que trouxéssemos para o estudo da Escritura uma idéia fixa e torturássemos a Palavra de Deus para se conformar com a tal teoria preconcebida .

As «duas ressurreições» aqui contempladas são duas qualidades de ressurreição ; não são dois eventos separados por um «milênio». São ressurreições simultâneas mas tão diferentes como diferentes são os es-píritos que irão habitar nos novos corpos adaptados à qualidade de exis-tência que os dois grupos hão de ter.

Sempre olhemos para as alternativas. Se não é a ressurreição geral dos bons e dos maus que Cristo prediz aqui, qual a alternativa? A teoria rival é que os bons recebem uma ressurreição especial, à parte da huma-nidade incrédula. Desaparecem os crentes vivos, raptados para o ar para estarem com o Senhor e os santos. Fica o mundo sem um só cris-tão. Então se faz um julgamento de nações, como nações, não como pes-soas responsáveis. Se uma nação tratou bem «os irmãos» de Cristo, fica para o milênio de mil anos na terra ainda. As demais nações e o Diabo e seus anjos ficam presos por êsses dez séculos. E' a alternativa que se advoga contra a interpretação natural e quase inevitável deste versículo.

Contra semelhante teoria menciono os seguintes defeitos . 1. Há, nessa hipótese, uma mistura de regimens, de «dispensações», que é re-pugnante e inverossímil Temos de supor que os santos ressuscitadOs e glorificados voltarão à terra e governarão essas nações gentias na carne. Há uma camada governante que habita em luz inefável e glória celeste e há uma camada incrédula governada que habita na carne e no pecado. E dizem que será a maior da época de evangelização no mundo, pois o Diabo será preso e Cristo estará presente, à vista dessa população mista; e os judeus o verão e todos se converterão num dia. Mas é um regime em que o pecado ainda existe e cresce, pois, mil anos depois da primeira res-surreição e dessa mistura de regimes, um renascimento do pecado virá. O Diabo reaparece, não sei por que motivo. E o mais formidável surto

* A frase "ressuscitarão primeiro" (I Tess. 4:16) é um contraste entre os vivos na terra, no último dia, e os mortos, e não entre as duas classes de mortos.

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de pacado e rebelião em tôda a história humana surgirá ; haverá uma terrível guerra, realmente guerra militar, e Jesus Cristo fica sendo o Generalíssimo. Então, lá na Palestina, em Har-Magedon, será dado o choque supremo da história do universo, Jesus contra o Diabo, anjos maus contra anjos bons, divisões santas contra divisões depravadas — e haverá aviões super-humanos contra aviões super-diabólicos e tanques e submarinos e frotas de guerra e invenções, de parte a parte, que a men-te ainda não imaginou ? E' uma teoria para um Júlio Verne. Mas é re-pugnante, em grau superlativo, para a mentalidade espiritual. Certa-mente necessitaríamos de doutrina muito clara para nos fazer acreditar nisso. Mas tudo se baseia em umas poucas passagens, principalmente numas (Apoc. XX), altamente poéticas, hiperbólicas, figuradas e simbó-licas. Não sou contrário a essa doutrina por estar a mesma contrária à minha opinião a respeito do «milênio», pois, não tenho opinião. E' um dos assuntos que reservo para quando tiver mais luz. Recuso-me a ser partidário de milenaristas de qualquer espécie — «post-milenários», «pré-milenários», ou variações das tais teorias. Recuso terminantemente dei-xar uma só passagem da Bíblia dominar todo o meu estudo da Palavra de Deus e impor sôbre a verdade de Deus uma cobertura artificial, com-plexa e tecida de improbabilidades, como essa mistura do carnal e do celestial na vida terrestre por um prazo arbitrário de mil anos. Não necessário semelhante interpretação de Apoc. XX. Nossos melhores in-térpretes, Broadus, Boyce, A. T. Robertson, Carroll, Conner, Strong, Mullins, Maclaren (entre os batistas), Warfield, Machen, Hodge e outros conservadores entre os presbiterianos, e inúmeros outros de tôdas as greis, não a interpretaram dessa maneira fantástica. Leio minha Bí-blia, interpreto cada texto segundo seu contexto não acho que o pró-prio contexto da linguagem de Jesus no ano 28 seja uma Escritura apo-calíptica, escrita setenta anos depois para uma luta bem diferente.

2. Não é provável que em Mat. XXV «meus irmãos» seja uma frase em que Jesus se referisse aos judeus. Os Evangelhos nunca nos mostram Jesus falando dos judeus como seus irmãos. Levantarei mi-nha voz em defesa da liberdade religiosa dos judeus enquanto me restar fôlego nos pulmões, mas alguns gentios são mais aduladores dos judeus, e sonhadores de um novo regime político dos judeus, do que o próprio Israel segundo a carne. Os mais adiantados nesse entusiasmo pro-j u-daísmo são os «anglo-israelitas» que identificam os anglo-saxões com as «dez tribos perdidas», e nutrem pelas profecias a respeito de Israel um nacionalismo estreito, visando a Inglaterra e os Estados Unidos, Canadá, etc.

Ora nunca houve e não há «dez tribos» perdidas. A Bíblia nos preser-va a mensão de tôdas as tribos. Paulo é de Benjamim, José é de Judá, João Batista de Levi, Barnabé também, Ana era da tribo de Aser. A mis-são de Jesus aos galileus é declarada ser o cumprimento de uma profecia

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 153

a respeito do povo das terras de Zabulom e Naftali, 3/lat. 4:15, 16. E Tiago enviou o primeiro escrito cristão que temos «às doze tribos da Dis-persão». Paulo também fala de «nossas doze tribos». Não faltava e não falta nenhuma. Nunca foi perdida nenhuma. Estudei no seminário com judeus convertidos; podiam traçar suas genealogias até às tribos de que faziam parte. Não há vislumbre de justificação do anglo-israelismo ou do sionismo de certos evangélicos, um sionismo mais fanático e perturbador das relações internacionais do que o sionismo dos próprios judeus que a vasta maioria dêles repudia cabalmente. «O Israel de Deus» agora é com-posto dos crentes. Dêste «Israel espiritual» são as promessas a ser cum-pridas, em geral, se bem que uma ou duas passagens do Novo Testamento tratam do futuro dos judeus à luz do evangelho (Rom. IX-XI, etc.). Mas Fil. 3:3; Gál. 6:16; Rom. 2:28, 29 são cabais na doutrina de que os cren-tes judeus e gentios é que constituem agora «o Israel de Deus».

(3) Essa teoria, em seus efeitos, é nitidamente antimissionária. E' mentira nociva essa de que haverá essa época de mil anos de evangeliza-ção, com Cristo e os santos dos céus presentes no meio das nações e uma nação convertida miraculosamente pela segunda vinda de Jesus Cristo. A segunda vinda não é para converter, mas para julgar. A Grande Co-missão é a ordem de evangelizar; e dura «até o fim do mundo». Até o fim, por todo o tempo de evangelização, a presença de Jesus é real mas invisível. Já notei o efeito dessa teoria em muitas vidas. E' sempre pre-judicial ao seu zelo e juízo missionário. Ás vêzes, intensifica o zelo até o fanatismo e o emprego de métodos apressados, parciais e paralizadores de resultados permanentes. Calculam que Jesus vem inaugurar logo ãses mil anos de evangelização privilegiados sem oposição diabólica, portanto, não convém fazer nada agora permanente e estável. Vêem desdenhosa-mente tudo quanto não sejam meras empresas ultra-individualistas, cha-madas «de fé», mas que são de incredulidade e desconfiança na coopera-ção bíblica das igrejas. A maioria, porém, tem a tendência de gastar res-mas de papel em cálculos fúteis do tempo do fim do mundo. E obreiros bons se tornam assim ociosos, fúteis e vítimas de idéias fixas.

Examinaremos ainda a frase «meus irmãos», mas por estas e muitas outras considerações se vê porque é inaceitável a alternativa de duas ressurreições, distanciadas por mil anos, tudo encaixado numa «hora», hora essa que seria uma mistura de corpos carnais e corpos celestiais no mesmo regime terrestre, culminando tudo numa carnificina promovida por uma espécie de ressurreição do Diabo. Quão simples é tomar, com fé clara e firme, a linguagem de Jesus em seu sentido evidente: Na mes-ma hora todos os mortos ressuscitarão, haverá o juízo de todos e come-çará de vez a era da eternidade. Assim cremos.

«Dos túmulos». E' praxe de certos advogados de um vago estado intermediário comentar: «Está vendo? Os mortos não estão agora no céu ou no inferno. Estão nos túmulos.» E' um materialismo rude e bem in-

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crédulo, a máxima insensatez. Então nosso Senhor passou os dias no tú-mulo de José de Arimatéia, depois da sua morte? Não foi para o paraíso de Deus? Não cumpriu a promessa feita ao malfeitor convertido? Como podia Jesus prometer vida eterna àqueles cujo corpo e espírito seriam unicamente cadáveres, pelos séculos do porvir entre a morte e a ressur-ieição? Pelo amor de uma teoria literalista muitos não hesitam em ne-gar a veracidade do Filho de Deus.

«Todos os que estão em seus túmulos». O Evangelho não teme a lin-guagem da aparência. Não hesita em chamar a Jesus «filho de José», pois sabemos que apenas fala segundo as aparências, usa linguagem po-pular. O crente sabe que os «espíritos dos justos aperfeiçoados» não se acham em túmulos ou cemitérios, nem dormem fisicamente. Nossos espíritos voltam para Deus, que os deu. No túmulo ficam somente os restos mortais, o corpo abandonado pelo espírito. Este está com Jesus no paraíso, do momento da morte em diante. Jesus entregou seu espiri-to ao Pai, Luc. 23:46; João 19:30. Este não ficou no túmulo de José de Arimatéia. Quando a filha de Jairo dormia corporeamente o sono da morte, Jesus lhe deu vida. O espírito não estava presente com o corpo. «Voltou o seu espírito», em obediência à chamada do seu Senhor e Criador. Estêvão, com seu corpo caindo nas ruínas da morte, exclamou: «Senhor Jesus recebe o meu espírito.» E Jesus estava de pé para recebê-lo. Na Jerusalém celestial estão «os espíritos dos justos aperfeiçoados» Heb. 12:23. Paulo afirma que estar no corpo é estar «ausente do Senhor», mas estar «ausente do corpo» é estar «presente o Senhor», II Cor. 5:1-8 não prêso por centenas de anos ali no cemitério no meio de uma floresta de cruzes e carneiros. Que sorte! Que ignorância supor ser esse o destino do crente depois da morte! O cemitério não é a «casa de eterna morada». Mentira! Ninguém mora ali!

Como será a ressurreição? Não sei. Pode ser que voltem os espí-ritos aos túmulos dos seus respectivos corpos no momento da ressurreição e ali mesmo se dará a união do espírito aperfeiçoado e seu corpo glorioso, semelhante ao corpo glorificado de Jesus Cristo. Posso ver uma vantagem nesse método. O túmulo é o emblema da morte, a flâmula de sua vi-tória. A ressurreição é sua derrota. Há valor simbólico em uma vitória demonstrativa. Os cemitérios sôbre a face do globo são monumentos da vitória aparente da morte sôbre a personalidade humana. E' natural que sejam o foco do triunfo de Cristo sôbre a morte. O sepulcro vazio de Jesus Cristo possui indizível valor estimativo para nós, além de seu valor apologético. As primícias da ressurreição seguiram a norma por Jesus es-tabelecida. Alguns túmulos nos cemitérios de Jerusalém se abriram e muitos corpos dos santos que ali haviam dormido se levantaram. Saindo dos túmulos apareceram, depois da ressurreição de Jesus, as primícias, e foram vistos em Jerusalém, Mat. 27:52. Parece, pois, que a norma dada

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a esperar é que nos cemitérios do mundo serão os grandes focos do even-to que é a consumação de nossa glória de redimidos. E' uma vitória vi-sível, evidente como a de Hitler, que fêz questão de receber a rendição da França exatamente onde seu povo se rendera aos francêses.

Podemos, sem dogmatismo, todavia, crer que a ressurreição como fe-nômeno perante os vivos se dará nos cemitérios do mundo, inclusive o mar, sem nos entregarmos a uma concepção materialista da ressurreição. Nunca o cristianismo foi réu daquela velha asneira da reprodução, no corpo de nossa glória, do que fôra a exata composição do nosso corpo ma-terial que morreu. Esse espantalho de corpos queimados, com as cinzas espalhadas para os quatro ventos, corpos comidos por peixes e êsses co-midos por outros sêres humanos, corpos que fertilizavam árvores cujo fru-to entrou em outros organismos e mil outras hipóteses simplórias da idéia materialista da resssurreição — digo eu, isso nunca foi a doutrina cristã da ressurreição do corpo. Paulo exclama diante de semelhante hipótese dos incrédulos de Corinto : «Insensato !... não semeias o corpo que há de nascer.» Nosso corpo glorificado será tão sublimemente superior ao corpo de carne e sangue que tivemos, como o lírio é superior ao bolbo de que nasceu. A doutrina da ressurreição é: «Deus lhe dá um corpo como lhe aprouve (falando de sementes que brotam) ... Assim é a ressurreição dos mortos», I Cor. 15:38. Pode dar-se nos cemitérios, como triunfo global de Cristo, mas não é a materialização de velhos corpos fisicamente re-constituídos com identidade de células biológicas, como fôra o corpo que se decompôs. Há identidade de personalidade. Mas Deus «dá um corpo». E' suficiente. Pode dar perante o universo nos cemitérios. Poderia dar de outra maneira, nos ares, no céu, no próprio juízo final, se quisesse. Mas Deus é um Deus de ordem e decência. Cumprirá, com adequada pu-blicidade, o seu programa que é a consumação do Calvário e da Ascenção de Jesus.

O fato acima exposto deve entrosar-se com os outros fatos da dou-trina revelada. Os vivos serão mudados para a mesma glória dos corpos celestiais, I Cor. 15:51, e tudo isso se dará «num momento, num abrir e fechar de olhos, ao som da última trombeta». «Deus trará com Jesus» os espiritos dos justos aperfeiçoados quando êle voltar para a ressurrei-ção, I Tess. 4:14. Estão com Jesus e não ali nos túmulos. Deus os trará para onde seus corpos dormem no pó. O ato final da redenção humana então fica consumado instantâneamente. E' o último 2 de novembro, a romaria final aos túmulos. Os vivos se transformam no mesmo instante em que se verifica a invasão celeste. Um dilúvio de fogo destrói os cemi-térios e a civilização carnal. Seremos arrebatados... e assim ficaremos sempre com o Senhor. Haverá novo céu e nova terra, nos quais habita a justiça. Os mortos serão julgados e entrarão no seu estado eterno, com o destino que suas responsabilidades futuras lhes indicarem, pela pa-

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lavra do justo Juiz. Em tudo isso, aqui meramente esboçado, a predição que Cristo faz sôbre a ressurreição e o juízo tem de ser encaixada. Re-pito: não é uma ressurreição de corpos com as células materiais da velha vida anterior, pois, «carne e sangue não podem herdar o reino dos céus», I Cor. 15:50. E' uma ressurreição em corpos celestiais que Deus dará, na nova união de espíritos e corpos adequados para o trabalho da nova vida. E o que se realizar nos cemitérios será num instante, vitória sim-bólica, a morte da morte e do túmulo, no dilúvio deste mundo físico em fogo e juízo. E voaremos para o juízo, os céus e o novo trabalho que nos espera.

«A hora». Não é a mesma «hora» do v. 25. Aquela hora é a da era evangelizadora, o tempo longo em que as nações são evangelizadas e o evangelho se prega até «aos confins da terra» e «a tôda a criatura». Esta «hora» do v. 28 é o período do fim, da ressurreição dos mortos. O mesmo tempo é chamado «o último dia», em 6:39, 40. Tôda essa linguagem me parece dada para ensinar uma ressurreição geral e um juízo final da raça humana inteira, no qual Jesus será o juiz.

Os que advogam a idéia de duas ressurreições distintas alegam que se «a hora» de evangelizar jã durou dois milênios, então «a hora» da ressurreição dos mortos pode durar um milênio. Pode. A questão é se a idéia é verossímil, coerente. "Esses encaixam as doutrinas claras da «hora» e do «último dia», de 5:28 e 6:39, 40, 44, 54, no seu esquema milenário de Apocalipse 20:1-6, 11-15.

Contra essa interpretação já dei três objeções. E' possível que «hora» em 5:28 signifique mil e tantos anos, o «milênio» e a subseqüente guerra de Satanás e uma confederação de nações, que se unirão com êle, contra a minoria, os santos, para sitiá-los, Apoc. 20:7-8. E' possível, mas é mui-to improvável. Não parece ajuizada a interpretação; e se há um dever nesta vida para o qual precisamos de juízo e de iluminação pelo Espírito, para cumprí-lo, é a interpretação da Bíblia.

Tal interpretação tem ainda outro defeito: encaixa a Escritura clara na Escritura deliberadamente obscura. Apocalipses são uma qualidade de literatura em que o autor procura ser obscuro, esconder verdades, torná-la incompreensível a uma «Gestapo» de César, para animar os perseguidos sem identificá-los para a polícia perseguidora. Um ledor oficial devia ler o Apocalipse à congregação, reunida para ouvir a mensa-gem criptica, e dar a devida explicação oral da linguagem alegórica. O propósito primacial do Apocalipse, pois, quanto à sua forma literária, é esconder sua idéia, deixando o ledor em cada uma das igrejas «inter-pretar» o sentido da linguagem alegórica, na ocasião de ler a mensagem de confôrto a uma igreja perseguida, ameaçada da morte, Apoc. 1:3: Mat. 24:15. Ora, não nos convém tomar um Evangelho, que visa ser a mais clara literatura no mundo, de sentido accessível a todos, a encai-

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xá-lo numa linguagem apocalíptica deliberadamente obscura, incompre-ensível sem a chave de uma interpretação oral enviada com o portador da carta. Se há uma regra sã na interpretação da Bíblia é que se inter-preta a passagem obscura à luz da passagem clara. Portanto, interpre-temos o Apocalipse, Cap. XX, pelo Evangelho de João na sua clareza, e não o Evangelho pelo Apocalipse. O Apocalipse é o livro da máxima alegorização, das mais vivas figuras e símbolos. João é o autor de am-bos, Evangelho e Apocalipse; interpretemos o Evangelho em seu evidente sentido, e o Apocalipse depois como pudermos entender seus símbolos. Mas conforme-se o obscuro com o claro, João com Jesus, o alegórico como o espírito evangélico e missionário tão fundamental em nossa re-ligião.

Com êste espírito, o sentido natural de tôdas essas Escrituras é de um juízo final e único da raça humana inteira. Se houvesse um dia da «primeira» ressurreição, gozada somente pelos «decapitados» e oprimi-dos pela força «da besta», Apoc. 20:4 — pois «não viveram» os «outros mortos», inclusive os apóstolos e os milhões de crentes que morreram em paz, fora de tempos de perseguição, como morreram meus pais, e vós, e antecedentes por muitas gerações — êsse dia seria um dia. Se é a pri-meira ressurreição, seria o dia da primeira ressurreição. E se o resto dos mortos, bons e maus, — pois há uma minoria das nações na carne que é sitiada na terra, segundo o v. 20 — não fôr ressuscitado até o dia da segunda ressurreição, então êsse é outro dia, não somente mil e tantos anos do mesmo primeiro «dia», mas um dia fundamentalmente diferente em tudo. A «hora» em que Nicodemos ou Zaqueu ou Cornélio ou nós outros ouvimos a voz de Cristo no evangelho e vivemos, é uma hora, essencialmente uma em seu significado. A cada um veio a «hora» da sua salvação.

Mas é assim que a cada um vem a hora da sua ressurreição final cor-pórea? Temos duas teorias. Segundo uma teoria, uns poucos privilé-giados têm uma ressurreição especial, «a primeira ressurreição», mil e tantos anos antes do resto dos mortos. E' um dia. E virá outro dia, infinitamente diferente, mau, de sentença e banimento e penas, mil e tan-tos anos depois. E' uma diferença radical de significado e não mera di-ferença cronológica. Não é lícito interpretar esses dois dias tão distin-tos, tão distanciados, como um dia, «o dia» de João 6:39, 40, 44, 54, «o dia» da «hora» de João 5:28, «o dia» de que Paulo pregou em Atenas (Atos 17:31) . Ali Paulo declara que é «o mundo» que será julgado na-quele «dia», que êsse dia é «fixado» — não dois dias de ordem diversa, mil e tantos anos à parte. Outrossim, antes e depois dessa linguagem sôbre «o dia», Paulo assinala as palavras «todos os homens», «todos». E se alguém quer fugir do evidente sentido, alegando que é «o mundo» (perdido) que vai ser julgado, respondo que Paulo não usou a palavra

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mundo que pode ser assim interpretada, mas a palavra que significa «a terra habitada», quase como nós diríamos «a civilização», «a humani-dade» ou a «raça humana inteira». Abrange bons e maus, todos os con-temporâneos daquela «hora» final.

Este não é o lugar para entrar num estudo geral da doutrina do juízo. Mas é lugar para protestar contra o desvirtuamento dessa passa-gem claríssima, que a tortura a fim de forçá-la a caber num esquema hu-mano da escatologia que se fundou, em franca contradição com esta Es-critura e muitas outras, sôbre uma exegese literalista de linguagem al-tamente alegórica. Toda a obsessão que leva a formar elaborados esque-mas escatológicos é contra a vontade de Cristo e seu expresso manda-mento, com o qual tanto reservou cinicamente para Deus «os tempos e as épocas» e a sorte destinada aos judeus, como nos impeliu para fora desse terreno perigoso e proibido, para nossa tarefa missionária uni-versal e multissecular de sermos testemunhas de Cristo, Salvador e Se-nhor, «até às extremidades da terra». Essas «extremidades» ainda não ouviram que houve uma pessoa chamada Jesus Cristo. Todo o tempo gasto, portanto, em especulações escatológicas é pecado, desobediência ao Cristo ressuscitado .

Pergunta o partidário dêste ou daquele esquema das coisas escatoló-gicas : «Então, o senhor é post-milenista ou pré-milenista ?» Nem uma coisa nem outra. Diante do claro mandamento de Atos 1:7-9, recuso fazer ou aceitar esquemas escatológicos. «Amo a sua vinda» e sigo testemu-nhando a sua salvação.

29. «Os que praticaram as coisas retas.» A razão por que, nas Es-crituras sôbre a ressurreição e o dia de juízo final, sempre são as obras que entram no juízo, é coerente com a doutrina geral do Novo Testamen-to. O dia de juízo não é para determinar a salvação de pessoa alguma. Isso já se sabe, pela atitude para com o Salvador ou para com a luz que o indivíduo teve. A ressurreição está de acordo com a afinidade que as escolhas da vida terrestre manifestavam. E Deus não é ignorante da atitude íntima; não necessita de processar o pecador, ou de ajustar contas com êle, para saber o estado fundamental e o destino eterno de sua alma. E' afirmado que o que não crê já está sentenciado e que o crente não entra em julgamento. A própria fé ou a incredulidade nos introduz na vida eterna, ou nos prende na morte eterna, e determina a justificação ou a sentença divina contra a alma de cada um. O dia final, como é descrito por Jesus (Mat. XXV), começa separando os homens, como um pastor divide as ovelhas dos cabritos. Não há juízo primeiro e depois a separação, mas separação segundo a natureza das duas classes e depois juízo segundo as obras. De fato as obras demonstram a dife-rença e são julgadas até as minúcias da conduta. Mas a separação é feita

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por Deus segundo a natureza, e vem antes do julgamento. Toda a base do juízo é a atitude para com Jesus, Mat. 25:31-46.

A doutrina geral do Novo Testamento, pois, é que as obras são a matéria do julgamento no dia final. Melhor, não são pessoas que en-tram em julgamento, pois chegam àquele dia já justificadas ou senten-ciadas. As obras se julgam a fim de revelar o grau do galardão dos jus-tos ou do sofrimento dos maus. As obras são manifestações de nature-za fundamental e proclamam juridicamente e com finalidade decisões já tomadas por Deus. Abraão e Moisés estão no céu há milênios. Ne-nhum dia de juízo há de alterar seu estado final. Judas Iscariotes já «foi para seu lugar». Nada alterará seu destino. Mas seu beijo traidor ainda será julgado e Deus, formal e públicamente, perante o universo, confirmará suas justas decisões já tomadas e esse dia será o último de uma era e o primeiro de outra.

Ouçamos. «Vi também os mortos, grandes e pequenos, em pé diante do trono, e foi aberto outro livro que é o da vida; e foram julgados os mortos pelas coisas que estavam escritas nestes livros segundo as suas obras... Se alguém não foi achado escrito no livro da vida, foi lançado no lago de fogo», Apoc. 20:12, 15. O destino determinado pelo fato de ter o nome no livro da vida, não pelas obras. Jesus mandou: «Não vos regozijeis em que os espíritos se vos submetem; antes regozijai-vos em que vossos nomes estão escritos no céu», Luc. 10:20. Paulo fala daqueles cujos nomes «estão no livro da vida», Fil. 4:3. Nosso evangelista ainda descreve êste livro como o «livro da vida do Cordeiro», Apoc. 21:27; e êle nos afirma que os nomes foram «escritos no livro da vida desde o princípio do mundo», Apoc. 17:8. E' a mesma idéia de Jesus, em Mat. 25:34: «Vinde, benditos de meu Pai, possuí como herança o reino que vos está destinado desde a fundação do mundo... Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, destinado ao Diabo e seus anjos.» A eleição divina é uma eterna realidade, e assegura para o crente sua «herança» eter-na. Mas não obriga o mau e incrédulo a ser habitante do inferno. Se êle fôr para lá, vai por seu livre arbítrio, caindo num lugar que não foi para êle preparado. Toma a atitude que o Diabo tomou, e por isso irá para «seu próprio lugar», para onde suas afinidades o conduzem, e onde será mais feliz do que seria num céu de santidade, de que êle jamais gostou.

Pois bem. «O livro da vida» do Cordeiro é o rol dos que têm a vida eterna pelo novo nascimento mediante a fé. Regula o destino eterno de acôrdo com os fatos do tempo, unicamente pela fé. «Quem tem o Filho tem a vida; quem não tem o Filho de Deus não tem a vida», I João 5:12.

Os «outros livros» são das obras e determinam a recompensa — boa ou má — galardão, ou grap de punição, no céu ou no inferno. Esta re-compensa se regula Unicamente pelas obras praticadas no corpo: «Está comigo a minha recompensa para retribuir a cada um segundo as suas

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obras», Apoc. 22:12. Vêde Sal. 62:12; Jer. 17:10; Is. 40:10; Rom. 2:6; Mat. 5:12; 10:41; I Cor. 3:8, 14; 9:17, 18; II João 8; II Cor. 11:15; Gál. 6:4; II Tim. 4:8, 14; Apoc. 2:22-23; 18:6; Mat. 16:27; Heb. 13:17; I Ped. 4:5; etc. Se associarmos essas passagens com a salvação, a vida eterna, o novo nascimento, a justificação e outras bençãos da redenção que Cristo outorgou ao crente pelo Calvário, tornamos a Bíblia uma Babel de contradições, repudiamos o evangelho e fazemos nula a graça de Deus, Gál. 4:21, dando corno resultado que a morte de Cristo foi «sem necessidade», frívola, ineficaz. A obra de Cristo salva, e a fé a recebe.

Nossas obras operam em outro terreno, o da recompensa. E a dou-trina é sempre a mesma: somos salvos pela graça; somos galardoados, não segundo a graça de Deus, que é infinita, mas segundo as obras, imi-camente segundo as obras, como manifestação de fidelidade, ou de von-tade própria em hostilidade a Deus e ao seu próposito na vida.

O dia de juízo, pois, não é para saber quem é silvo e quem é per-dido. E' para dar recompensas a cada um segundo as suas obras. Deus paga, segundo seus livros. Essa linguagem é metafórica, de certo. A deidade não é esquecediça, precisando de tomar notas de tudo, com medo de olvidar algum item! A linguagem é para nos impor à seriedade da vida e da conduta. Daremos contas de nossos atos, palavras, pensa-mentos, omissões, atitudes e solidariedades.

Convém explicar aqui parte da mesma linguagem metafórica que alguns usam para criar outra Babel na linguagem bíblica e contradizer todo o evangelho. São as referências ao apagar de nomes dêsse livro da vida. Essa classe de Escrituras vai com aquelas que contemplam toda a raça humana sob a égide da cruz, potencialmente salva, como que livre para se inscrever no livro da vida, se quiser. Por exemplo, Jesus é de-clarado ser «a propiciação pelos nossos pecados, e não somente pelos nos-sos, mas também pelos de todo o mundo», I João 2:2. A morte de Jesus foi vicária, em expiação potencial da raça humana inteira, mas é eficaz para os que crêem, os que a aceitam para si. Quando Moisés, em es-pírito vicário também, pediu sua própria perdição a fim de redimir Is-rael, Deus lhe respondeu, recusando riscá-lo do livro, mas acrescentan-do: «Riscarei do meu livro todo aquêle que tiver pecado contra mim», Ex. 32:32. A linguagem antropomórfica da poesia hebraica representa Deus como o arquiteto de cada corpo humano: «Os teus olhos viram a mi-nha substância, ainda informe; e no teu livro foram escritos os dias, todos os dias que foram ordenados, quando nenhum dêles ainda existia», Sal. 139:16. Esse livro de Deus continha a salvação potencial e a utilidade de cada pessoa por êle criada na história humana. Mas na vida desta raça dos pecadores. essa potencialidade não se faz realidade. Todavia, um lugar no livro da vida é oferecido pelo evangelho a todos, quando se lhes prega que podem ter a vida eterna pela fé. Se considerarmos as ameaças de perda

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do lugar no rol da vida como a não realização da vida eterna, por falta da fé, por uma vida de pecado impenitente e dureza incrédula, então essa lin-guagem é compreensível, sem reduzir a cacos as promessas e a veracidade de Deus em Cristo.

A linguagem de Ex. 32:32 é a linguagem da Velha Aliança, um padrão da Lei inviolável. Paulo diz: «Moisés escreveu que o homem que pratica a justiça da Lei, viverá por ela», Rom. 10:5; Lev. 18:5. E se vive com perfeição absoluta, teria direito a um lugar no livro de Deus sem falta, sem culpa. Mas, na Velha Aliança, um pecado riscava êsse lugar potencial no livro.

Ora, na Nova Aliança, os nomes são conhecidos desde a fundação do mundo pelo onisciente Deus. Não lemos que nenhum foi apagado. Lemos: «Não apagarei seu nome», a respeito do vencedor, Apoc. 3:5. Se alguém pensa em acrescentar: «Mas Cristo apagará os nomes dos não vencedores,» eu lembro as solenes palavras no fim da Bíblia. E' pelos acréscimos de nossa lógica que reduzimos a Palavra de Deus a ruínas confusas. Nunca entrou no inferno ninguém cujo nome estêve no livro da vida, Apoc. 20:15. Nem entrou ou entrará jamais no inferno pessoa alguma que fôsse conhecida de Jesus na salvação. Jesus afirma que no últi- mo dia ele dirá: «Nunca vos conheci», a todos os perdidos, mesmo os perdidos que tinham sido religiosos. A religião não é a salvação. Os que se perdem nunca foram salvos, Mat . 7:23. Se fossem, Jesus os teria «conhecido», João 17:3. Mas a todos os perdidos sem exce-ção ele dirá: «Eu nunca vos conheci.» Até Judas foi <<para seu pró-prio lugar». Se, pois, atendermos a tudo que a Bíblia tem para re-velar sôbre qualquer assunto, não faltará a harmonia.

«Ressurreição de vida... ressurreição de julgamento.» Sairão os mortos do estado em que houve separação entre o espírito imortal e o corpo mortal. Ao sairem, é para um destino já determinado. Jesus, o perene Juiz, já deu a sentença que afinal se revelará pública e uni-versalmente: O crente «não entra em juízo». A ressurreição dos maus é «de julgamento». Por que é que o incrédulo «já está sentenciado» mas ainda se lhe oferece a salvação ? E' uma sentença suspensa, en-quanto Cristo busca salvar aquilo que se havia perdido. E' eterna quan-do entra em execução. Há homens que nesta vida cometem o eterno, o imperdoável pecado contra o Espírito Santo e não têm mais es-perança, (Nunca são os que se importam e .se angustiam com o medo de ter cometido tal pecado — já vi muitos destes iluminados e sal-vos.) Mas os homens em geral «já estão condenados», contudo, a sen-tença e suspensa, inativa, adiada, pelo próprio Juiz, visto êle antes bus-car ser o Salvador. A vida eterna do crente é sentença favorável do mesmo Juiz que já entrou em execução e êle mantém a vida que deu. Mas a sentença desfavorável contra o incrédulo apenas revela o que

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êle merece — é juízo intelectual, mas não pôsto ainda em execução. E' a diferença entre o crente e o incrédulo, e dá a cada qual seu rumo na morte e seu destino na ressurreição. Mas, agora Jesus quer salvar a todos, e já salvou o crente. Acho que isto é uma verdade ele-mentar do Evangelho de João que poucos crentes assimilaram, e quase nenhum pecador avalia, e que poucos romanistas e nem todos os evan-gélicos entendem. Entendido e assimilado, o ensino ministra grande confôrto e firmeza ao crente e o incentiva à constante e ardorosa evan-gelização.

«Para uma ressurreição de juízo.» «O fato de que alguns se ressuscitam para a condenação demonstra que mesmo as almas des-tituidas do Espírito de Deus possuem alguma vida contínua, a qual os mantém em existência, sem solução de identidade pessoal, sendo essa identidade intacta desde a hora da morte até à hora da res-surreição. Igualmente, demonstra que êsse longo período entre as duas horas (da morte e da ressurreição) não foi utilizado para trazê-los a nenhuma comunhão com Cristo. Aqui não se nos informa em que estado são ressuscitados nem para que sorte se destinam. Além de sua condenação, o futuro dêles permanece na escuridão. Portanto, é razoável supor que de propósito foi deixado nas trevas.» (19)

30. «Não sou capaz de nenhum curso de ação independente.» E' a qKenosis», a esvaziação de si mesmo na encarnação, enquanto o v. 26 expõe a plenitude (pleroma) da deidade que nele habita corpo-ralmente, em grau diferente em tôdas as fases de sua ação reveladora — diferente nas suas manifestações, mas não em seu fundo ou essência.

«Minha sentença é justa.» E' justa sua sentença justificadora do crente, a decisão jurídica que declara: «Nada de condenação há para os que estão em Cristo Jesus.» Quando lia, na minha juventude, a decla-ração de João em sua Primeira Epístola, «êle é fiel e justo para nos perdoar os pecados», eu como que impugnava os adjetivos, «fiel e jus-to». Antes digamos: «Compassivo e misericordioso». Minha dúvida passou quando fui salvo e entendi algo do alcance da salvação, basea-da na obra objetiva de Cristo na cruz. Deus é apenas «justo» agora quando declara justo perante o divino tribunal «aquele que crê em Jesus» (Rom. 3:26) . Prometeu ao Filho e aos crentes que assim faria. E' «fiel», pois, quando perdoa. Seu perdão é fidelidade e jus-tiça divina. Não perdoar o crente seria não ter palavra: seria co-brar de Cristo o preço de nossa redenção e ainda vir exigido de novo do crente em Cristo. O amor e a misericórdia consistiu no fato de que Pai e Filho eternamente quiseram e planejaram o Calvário, e efetuaram-no dando-lhe infinito valor. Agora, à luz do Calvário, a graça

(19) "The Expositor's Greek Testantent”, Vol. I, p. 742, por Marcus Dods.

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divina é «fiel e justa». A sentença favorável de Jesus não é favoritismo. E' justiça ao crente que aceitou o Cristo do Calvário como o eterno abri-go de sua alma.

Podemos ter certeza de que a sentença de Jesus contra o incrédulo (João 3:18) é também «justa», «fiel e justa». A suposição do ódio vingativo da parte de Pai ou Filho é ofensa à majestade daquele cujo nome e natu-reza «é amor» (I João 4:16). A sentença divina é o amor manifestado ao perdido. Concederá amorosamente tudo quanto houver de considerações le-nitivas para o pecador impenitente. O impenitente é responsável g:quente pela luz na qual agiu contra sua consciência. E' condenado «segundo suas obras». E' precisamente o critério que o orgulhoso exige. Ele se ufana de sua superioridade, e terá o critério que êle mesmo propôs. Paulo afirma uma lei e luz natural da consciência, que João declara ser do eterno Verbo e Criador o qual alumia a todo homem com a luz da ra-zão, consciência e responsabilidade. «Todos os que sem lei pecaram, sem lei perecerão», (Romanos 2:12) . Não ficam culpados por obrigação al-guma ignorada, incapaz de ser conhecida no seu meio ambiente. «Ha-verá menos rigor», diz Jesus, para os indecentes sodomitas que vi-viam nas trevas sem revelação, do que para os privilegiados e decen-tes galileus de Corazin, Betsaida e Cafarnaum que pecavam menos, mas com maior culpa contra a Luz inefável de Jesus, seu conterrâneo, desprezado por êles numa rejeição final na sua própria «casa de oração» (a sinagoga). O inferno não será o mesmo pc',ra todos. As suas varia-ções são individuais. A sentença é para cada um «segundo as suas obras». Para um pecador, essa base só pode trazer condenação. Os que viviam pecando sem lei também «perecerão», mas com tôdas as consi-derações em seu favor que a justiça admitir. Deus quer em favor dêles mais do que poderia querer o parente mais íntimo. Não há hesitação, para quem entende o amor divino em Cristo o Juiz, em deixar para êle o critério de seu juízo e a sua sentença, pois, ambos serão compassiva-mente justos.

Há protestantes modernistas que estão determinados a se livrar da doutrina do inferno, mesmo que com isso tenham de repudiar total-mente o Cristo histórico, os Evangelhos e tôda a veracidade divina. Se-ria crível que homens que se dizem crentes e evangélicos neguem a imortalidade da alma? E' o que vemos até no Brasil, onde o moder-nismo tardou em entrar. Conheço urna Antologia que visa servir de curso de religião nas classes de religião dos colégios subordinados a êsse modernismo, na outra América. Procura rudemente destruir a fé na imortalidade, aceitando no máximo uma imortalidade condicio-nal para os nobres e bons. Não resta para os tais nem Cristo nem Deus real, nem Bíblia nem salvação — como pode alguém ser «salvo» se não estiver em nenhum perigo? Logo, para continuar a gozar seus

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ordenados, como mestres cristãos, identificam o seu «reino de Deus» com o socialismo ou uma ideologia radical, o pacifismo e a guerra contra a verdade divina. Um dêsses escreve na referida Antologia do modernismo esta pergunta: «Como podemos ainda crer na imor-talidade? Os seres aí na floresta que são meio-humanos e meio-maca-cos, como podem ser responsáveis, e ter uma eternidade no inferno por causa da rejeição de um Cristo de quem nunca ouviram falar?»

A primeira coisa que está em ordem é que nos mostrem seme-lhantes criaturas simiescas. O Brasil tem as florestas primitivas mais ex-tensas no mundo. Deve ser fácil trazer à luz um dêsses elos da cadeia da evolução dessa teoria filosófica que tem tanta fé nas capacidades evolutivas de um diminuto pedaço da matéria, mas nenhuma fé em Deus e Cristo, ou na nobre e culta história do médico Lucas. Li a longa narrativa de Theo-dore Roosevelt, sôbre sua travessia da selva brasileira de Mato Grosso e Amazonas, na amável e perita companhia do General Rondon. Eles não acharam nenhum homem com rabo de macaco nem macaco algum com dotes humanos e fala de alma responsável. Não existe tal homem simiesco e nunca existiu nenhum. Ninguém provou, prova ou provará semelhante negação da veracidade divina, que afirma ser Jesus o eterno Verbo que criou no principio o universo. Quando aparecer, pois, o primeiro homem-macaco, ou seu primo, o homem-orangotango, bastará formar uma teoria a respeito de seu destino. Se existisse semelhante produto da evolução materialista, peregrinando em caminho para a humanidade, o evangelho — se ainda existisse evangelho — não teria dificuldade a seu respeito. Ele seria como os idiotas e as crianças que morrem na infância, isento de qualquer culpa, e receberia de graça as bênçãos da redenção para a raça humana em que estivesse entrando. Tais fábulas não metem mêdo no homem de fé. Seu mêdo é da pseudo-cultura de «intelectuais» simplórios que preferem crer em tamanha loucura «filosófica», em oposição a Deus, a Cristo, às Escrituras, à verdade e à salvação.

Nossos jovens em cada ginásio, cada colégio, cada faculdade de filo-sofia, cada educandário superior, terão de enfrentar essa orgulhosa pro-paganda, hostil a Jesus Cristo, à veracidade divina e a todas as realidades urgentes do evangelho. João visa confirmar a fé, «apascentar os cordei-ros», alimentar as ovelhas da grei. Deixemos que êle eduque a inteligência da mocidade crente, bem fundo na fonte da revelação divina em Cristo Jesus, justo Juiz na sua sentença favorável de vida eterna para o crente, e de morte eterna para o mau e incrédulo, mas uma justiça pessoal, para cada um, segundo as suas obras.

«Conforme escuto, dou sentença.» E' a única justiça real. A vontade própria corrompe o juizo. O atencioso respeito à lei divina, o desinteres- sado critério, a ausência de personalismo, é o motivo divino que anima com absoluta justiça o perene Juiz Jesus. Os falsos juízos humanos vêm

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de não ouvir à Palavra de Deus, da auto-suficiência, da soberba intelec-tual. Sem optar pela vontade própria, podemos ter a luz da vontade di-vina revelada.

5:31. «Testifico de minha própria pessoa.» Jesus se condena por es-tas palavras? Vêde o v. 37. Jesus apenas repete o amplo testemunho do Pai — nada tem origem com êle, como acaba de afirmar. O responsá-vel é o Pai e as obras que o Pai «lhe mostra» colaboram no testemunho confirmador.

32. «Testifica de contínuo acêrca de mim.» Alguns intérpretes acham que o «outro» que dá êsse testemunho é o Batista. Nesse caso é preciso pensar que o Batista ainda vivia e testificava, na ocasião em que Jesus falava. Mas o verbo no v. 35 mostra que essa idéia é inexata. Ali Jesus declara que João «era» luz ardente — já não o é. Evidentemente João já passou do palco da vida. Já não está num testemunhar de contí-nuo. O «outro» é o Pai. Isso não esconde o grande valor dado ao testemu-nho do Batista no mesmo contexto (mas em outro parágrafo). O verbo, no tempo perfeito grego, significa: «João deu seu testemunho e o efeito permanece.»

«Testifica.» Vêde nota de Vos sôbre 1:32. «E' outro que está testemunhando.» Quem é êsse «Outro»? «E' o

Pai, não o Batista de quem se fala no v. 33. Esse testemunho contínuo do Pai é outra vez mencionado nos vs. 36 a 38 e em 8:17.» (20) Bendita palavra: «Outro». O Pai é «outro» em relação a Jesus ou ao Espírito. O Espírito é «outro-ao-lado». Vêde as notas sôbre 14:16. Cada pessoa da Trindade é «outra», na obra uníssona da salvação e faz em conjunto o que os «outros» na unidade divina também fazem. Vêde as discussões sôbre a Trindade no Prólogo, Vol. I. Com o «Outro-ao-lado», os apóstolos eram por sua vez, «outras testemunhas» de Cristo, pois estavam com êle «desde o princípio» (o batismo dêle por João). Vêde as notas sôbre 15:27. Fa-zemos parte dessa gloriosa comunhão, com os «Outros» divinos e os outros da grei da fé uma vez entregue aos santos.

33. «Possuis o relatório... enviaste... testemunho permanente.» Tempos perfeitos. Vêde as notas introdutórias sôbre João Batista, Vol. I, ps. 159-178, e o comentário sôbre os Caps. I e o fim do Cap. III. Quan-ta verdade êle testificou? O bastante para a fé salvadora e para preparar «um Povo» para entregar a Jesus. Este «Povo» incluia os dize apóstolos, Apoio e muitos outros do ministério apostólico. O testemunho de João era bastante para satisfazer Jesus e para trazer ao Senhor com sua luz um novo Israel crente.

«Vós tendes mandado mensageiros a João e êle tem dado testemunho da verdade.» Robert S. Speer enumera, no seu pequeno comentário sôbre

(20) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 89, por A. T. Robertson.

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êste Evangelho, sete assuntos do testemunho do Batista (aceitando que o discurso do Batista vai até ao fim do Cap. III) :

1. Jesus é Senhor, 1:23. 2. Jesus o Cordeiro de Deus, 1:29, 30. 3. Jesus, o Filho de Deus, 2:34. 4. Jesus, o Noivo, 3:29. 5. Jesus é sôbre todos, 3:31. 6. Tudo lhe foi entregue, 3:35. 7. A fé em Jesus é essencial para a salvação, 3:36. «Testemunho da verdade». A ênfase sôbre a verdade é uma nota sa-

liente nos dois Jóãos — o precursor e o apóstolo. Opinaram que «a graça e a verdade vieram por Jesus Cristo.» E o apóstolo usa as palavras «ver-dade», «verdadeiro» e vocábulos da mesma raiz, a metade das vêzes em que se acham no Novo Testamento. Ou, em outras palavras, êle sôzinho dá tanto ensino e ênfase sôbre isso como todos os demais autores do Novo Testamento juntos. James Joseph Jacques Tissot, famoso pintor francês da vida de Cristo, declarou: «Não há obra que não tenha seu alvo, seu ideal: o meu é a verdade, a verdade da vida de Cristo.» (21)

De fato, Tissot agiu com certa independência em pintar o menino Jesus, mas representa o homem Jesus de modo convencional; um ser efe-minado de cabelo crescido, ainda que proteste contra o Cristo convencio-nal da arte. Até livrar-se da ignorância dos artistas medievais, que não sabiam a diferença entre nazareno e nazireu, nem Tissot nem qualquer outro escapará da mentira caiadora do «Cristo convencional» ou terá uma idéia sensata do Cristo real e varonil.

«Testemunha da verdade». Mais uma vez Jesus testifica o alto valor do seu precursor. João não fôra mero arauto de um regime agonizante. Ele nunca menciona cerimônia alguma de altar ou templo. Ele não era ministro da Velha Aliança que caducava e cujas «cédulas» penderiam logo, em farrapos nulos, dos cravos da cruz do Calvário (Col. 2:14) . Os sacra-mentalistas que assim caluniam ao Precursor são formalmente desmenti-dos por Jesus. Ele «julga» João para o esclarecimento dos séculos. O Batista é «anjo» (mensageiro) da verdade. Jesus é a «verdade». João glorifica a Jesus.

34. «Eu não aceito o testemunho de homem algum.» (Tradução de Montgomery.) Há «intelectuais» profissionais que imaginam estar fazen-do um favor a Jesus, até mesmo mostrando uma generosa tolerância, quando o chamam, com ar de condescendência e compaixão superior: «o meigo Nazareno». Jesus lhes agradece o favor, e o dispensa. Ele nem pre-cisa nem aceita semelhante testemunho de quem lhe deve adoração e hu-milde súplica de perdão divino pelas misérias morais que estão escondi-

( 21) "The Life of Jesus Christ", Vol. I, p. X, por Tissot.

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das, às vêzes, sob a capa de uma orgulhosa literatice. Jesus não é um dos «mestres», como Sócrates, Confúcio e Maomé. E' Deus.

«Salvos». Por crerem na verdade revelada acerca de Jesus, dando-lhe seu verdadeiro lugar na redenção, confiando nêle como tendo seus reais valores para a salvação e a vida eterna.

«Segundo o uso uniforme do Novo Testamento, nos Evangelhos não menos que nas Epístolas, salvar, no sentido espiritual, quer dizer livrar do juízo e introduzir na bem-aventurança do mundo vindouro. Mas essa velha e sólida idéia de salvar, a base de tôda a religião evangélica, se tor-nou uma ofensa à mente moderna, em muitas terras. Não é que abando-nem os têrmos Salvador e salvação. A substância, porém, da transação é inteiramente abandonada... e procuram transformar Jesus num advo-gado do novo evangelho pelagiano de elevação da sociedade.» (22)

35. «Vontade de exultar». E' uma atitude que Jesus louva — a vontade de exultar, no Batista. Muitos protestantes e os católicos não al-cançaram ainda essa breve atitude leal dos judeus, ao princípio do minis-tério do Batista. Depreciam o Precursor em tôda sua literatura. Têm uma forte «vontade» de menosprezar o Batista e afugentá-lo da Nova Aliança para o fundo do judaísmo. Negam a luz dêle. Jesus não compar-tilha dessa má vontade, obstinada, sectária e dogmática. Quando os ho-mens não gostam de João, é porque o machado dêle está posto à raiz das doutrinas falsas dêles . Jesus exultava em João e o classificava como o maior de nossa raça. Se tivermos igual boa vontade para com João, esta-mos seguindo nosso Mestre. A razão por que os judeus oficialmente re-jeitaram o Batista era precisamente porque êle era um não-conformista, no tocante ao nacionalismo e cerimonialismo dêles .

«A lâmpada». Sôbre o artigo, Marcus Dods cita (23) : «O artigo ape-nas indica a peça familiar da mobilia da casa» (Westcott). «O artigo ape-nas converte a linguagem metafórica numa definição» (Godet). «O ar-tigo aponta para João como a luz definitiva que os poderia ter mostrado o caminho da salvação» (Weiss) . Alguns comparam os fariseus aos inse-tos que voam doidamente ao redor de uma lâmpada. Outros os asseme-lham a crianças que dansam diante de um cortejo nupcial com muitas lu-zes acesas, «o tipo de religiosos sentimentalistas que vivem das Aleluias de suas próprias emoções».

«A lâmpada». «A lâmpada no quarto (Mar. 4:21). Palavra velha para lâmpada ou vela, como em Mat. 5:15. E' usada a respeito de Cristo (o Cordeiro) como a Lâmpada da Nova Jerusalém (Apoc. 21:23). O Ba-tista não era a Luz (1:8), mas uma lâmpada brilhando nas trevas.» (24)

(22) Perdi a referência ao autor e livro. (23) "The Expositor's Greek Testament", in loco. (24) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 89, por A. T. Robertson.

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«Lâmpada que ardia e brilhava.» «Mas em consideração do fato de que (Jesus) apareceu de noite, em corpo mortal, ele acendeu para si uma lâm-pada a cuja luz pudesse ser visto. Essa lâmpada era João.» (25) Agosti-nho, ao interpretar as Escrituras, como poucos homens na história hu-mana, une o bíblico com o anti-bíblico, o bom e o perverso, a verdade e o êrro mais crasso, a sublimidade e a puerilidade. O vício mais feio do ex-positor é a alegorização arbitrária. Nesse trecho Agostinho assim alego-riza os itens da história: o tanque significa os judeus; os cinco alpendres. o Pentateuco; o descer nas águas a fé na morte de Cristo; trinta e oito anos, sendo quarenta menos dois, significa o sinal de perfeição (que é a multiplicação dos dez mandamentos pelos quatro Evangelhos) com os dois grandes preceitos da Lei subtraidos sendo que tomar a esteira e an-dar quer dizer o suprimento dêsses dois grandes mandamentos que falta-vam ao algarismo quarenta (dez mandamentos por quatro Evangelhos — se bem que os dois se acham em plena Lei e pleno Evangelho e, logo, não faltavam) ; tomar a esteira é identificado com o amor ao próximo. Faz lembrar as poções de um macumbeiro para mal-assombrar a vida dum ini-migo. E' com exegese dessa qualidade que Agostinho ajudou a tecer a capa clerical do romanismo.

«Ardia e brilhava.» Caráter heróico e entusiástico. Nem calor sem luz, nem luz sem calor. A união dos dois gera poder.

36. «O testemunho... os empreendimentos». Jesus não era ocioso intelectual, filósofo, homem meramente de idéias. Nunca no mundo viveu um ser mais ativo, operoso e incansável, cuja devoção se renovava até no meio do cansaço físico, como vimos no incidente da samaritana. Ele, mais do que os outros, pode ser julgado pelos frutos.

A tradução salienta o que João salientou na deliberada ênfase sôbre a mudança dos tempos dos verbos no original. A entrega das responsabi-lidades da encarnação se realizou e ainda está em vigor assim como a sua embaixada divina aos homens. Mas o verbo consumar é aoristo, ação vista como um ponto, levada a efeito no arrojo da breve carreira messiâ-nica, vista como um todo. Todos êsses empreendimentos, os milagres, os atos da divina manifestação de que Jesus é Deus, sua «destruição das obras do Diabo», suas lutas com os tenazes oponentes do reino, suas parábolas, sua pregação do evangelho, sua vida compassiva e seu com-panheirismo precioso, a educação dos doze na carreira apostólica, suas denúncias quais Salmos Imprecatórios, e o «êxodo» do Calvário de que Moisés e Elias lhe falaram na Transfiguração — tudo e todos êsses em-preendimentos são vozes que falam perante o tribunal da consciência hu-mana e declaram, uníssonas e em alto e bom som: «Jesus é real, genuíno, veraz, verdadeiro Deus, verdadeiro homem, perfeito sacrifício, compassivo

(22) Comentário de Agostinho sabre este Evangelho, versão de J. Gibbs, em inales,

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sacerdote, eterno, humano, o Salvador que nos convém !» Vêde 4:34 onde «obra», empreendimento, é todo o propósito redentor de Deus. A palavra não se limita a meros atos físicos, milagres na esfera da matéria ou ati-vidades corpóreas. E' o curso de vida operosa daquele que é a plenitude de Deus corporalmente.

«Empreendimentos». «O Cap. 5 inteiro, magna apologética pela na-tureza e missão de Cristo, trata da defesa da deidade do Salvador e é a expansão da narrativa da cura do homem que jazia ao lado das águas de Betesda e dos ataqueá dos fariseus contra Jesus por causa do milagre. A alimentação dos cinco mil era motivo da discussão, no dia seguinte, na si-nagoga de Cafarnaum, quando as multidões abandonaram Jesus em des-dém, depois de saberem o que êle realmente era e pretendia. O Cap. 10 inteiro é dedicado ao alvoroço, causado entre os fariseus por êsse milagre. O Cap. 11 mostra como a ressurreição de Lázaro exasperou o sinédrio além do que êle podia suportar e causou sua decisão final de conseguir a morte de Jesus... E' impossível, em absoluto, rasgar do Evangelho de João esses milagres e deixar em existência coisa alguma do Evangelho. O que restasse seria incoerente e sem significação. O ensino do Evangelho de João é indissoluvelmente ligado com o maior de todos os milagres, a encarnação e ressurreição do Senhor.» (26)

37. «O Pai, deu e continua dando testemunho.» Quando e como, se «não haveis ouvido sua voz em tempo algum nem visto a sua forma»? Meu Dicionário Grego explica assim as duas construções e diferentes sig-nificações do verbo ouvir no original: «ouço, atendo, compreendo, aprendo, obedeço, com ac. ou gen., às vezes o ac. indicando completo alcance da sig-nificação e o gen. mero alcance do som ininteligível, Atos 9:7; 22:9; perce-bo no íntimo da alma a comunicação divina, João 6:45, ou a sugestão dia-bólica, João 8:38». Aqui, pois, não ouviram, no sentido de entender, aten-der e obedecer. Quando do céu o Pai testificou: «Este é meu Filho amado: a êle atendei», julgavam que era apenas trovão. A má vontade lhes tapava os ouvidos, como lhes cegava os olhos. A afinidade com as trevas morais é surdez também à voz divina e à Palavra de Deus. O testemunho de Deus na pessoa, nas obras, na pregação de Jesus, e nas vozes do Batista e dos profetas, mesmo de Moisés, não alcançou os espíritos incapacitados pela voluntária e deliberadamente cultivada dureza de coração.

38. «Não tendes permanecendo em vós a sua Palavra, porque vós não sois crentes.» Notemos outra vez as afinidades espirituais da incredulida-de. Odeia a luz, ama as trevas. Vêde 3:18. Agora o Mestre declara que tais corações são imunes à verdade, vacinados eficazmente contra a Palavra de Deus, incapazes da visão inefável. Logo êle irá dizer fato ainda mais es-tranhável. Esses corações em que a Palavra de Deus não habitava nem en-

(26) "The Teacher" de Set. de 1924, por A. T. Robertson.

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trava, todavia, eram de estudantes zelosos e profissionais da Escritura, ao seu jeito. Mas êles a estudavam a fim de impor, e testemunhar com autori-dade divina, as próprias idéias falsas dêles, não para crer, receber e ensinar o que as Escrituras revelam. Triste é a farça, quando a incredulidade se arvora em perícia na Bíblia e autoridade na sua interpretação, quando se reveste da própria Escritura para se introduzir nos círculos que amam a Deus e dominá-los com as suas próprias tradições, mascaradas em lingua-gem bíblica. Não foi o último clero a explorar a Escritura em seu benefí-cio. E' o fenômeno no mais comum dos séculos.

«Sua Palavra». «Contudo, a Palavra de Deus tinha vindo a êles atra-vés dos séculos pelos profetas. Vêde, em conexão com a frase, João 10: 35; 15:3; 17:6; 1 João 1:10; 2:14.» (27)

Ousados inimigos das Escrituras negam que a Bíblia jamais se cha-mou «a Palavra de Deus». Não há declaração mais temerária, como se vê nas passagens que o Dr. Robertson menciona. Tanto a mensagem profética oral e pregada, como a mesma mensagem escrita pela inspiração profética e apostólica é a Palavra de Deus. Não há diferença nenhuma entre João 3:16 pregado ou escrito, e a mesma coisa se pode dizer do resto da Bíblia. Portanto, as Escrituras nunca fazem diferença entre a verdade pregada e a verdade escrita, porque era uma e a mesma verdade, a Palavra de Deus. Mas dizer que as Escrituras não se chamam a Palavra de Deus é falso. E' fato que a frase não se limita a coisas escritas, mas aplica-se a elas várias vêzes, e à sua mensagem.

«Não dais crédito.» Meu Dicionário Grego define o verbo crer, que aqui traduzo dar crédito: «Neste uso, o verbo significa crer o que outro diz, uma atitude respeitosa para com Cristo, mas não necessàriamente salva-dora, ao passo que as construções com eis (28) e epi (29) ) definem uma ati-tude salvadora, de confiança pessoal em Jesus e descanso do espírito nêle e em sua obra redentora, havendo mútua interpretação e união das perso-nalidades do crente e do Salvador.» A atitude desses furiosos líderes, porém, não é mesmo essa inferior crença, para nem falar em fé viva e regeneradora. Nenhum crédito queriam conceder a Jesus. Era «de-mônio», «samaritano», «louco», «blasfemo», aos olhos dêles. A Palavra de Deus não se fixou nêles, «sendo misturada com a fé», não reside em suas mentes e corações, é para êles estrangeira, matéria especial para a xenofobia dêles. Notai a relação entre os dois verbos. «Não permane-ce» (a Palavra) porque «não credes». Permanece porque credes — é ver-dade correlativa, em relação a crentes genuínos, João 8:31. A verdadeira fé em Cristo é um perene discipulado, pois, no coração em que Cristo ha-bita, permanece em vital santidade a sua Palavra.

(27) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 91, por A. T. Robertson. (28 92) Preposições gregas que significam em, para dentro de, e sobre, em, respectiva-

mente.

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39. «Examinais» — «Orígenes (Contra Celsum, v. 16) e Tertuliano (De Praescript., 8) advogam o uso imperativo aqui; portanto, a nossa exortação familiar, Examinai as Escrituras, remonta pelo menos ao fim do segundo século. (30) Este mesmo comentário, porém, opina que é me-lhor traduzir pelo indicativo, examinais, e interpreta: «Vós examinais a Escritura por causa de vossa crença errada de que essa minuciosa pes-quisa de palavras e sílabas nos livros sagrados vos assegura a vida no porvir. Estais errados. O real valor das Escrituras é que testemunham de mim. E estais duplamente errados porque não vireis para mim pessoal-mente, quando se vos conceder a oportunidade.»

«Examinai.» E' interessante ler o imperativo na Versão Inglesa Ro-manista oficial (chamada de Douay), se bem que nas notas nega-se a tra-dução aceita no texto. Quantas falhas e incoerências há nas versões cha-madas «católicas», traduções de traduções de traduções, e com tanta im-perícia e cegueira £logmática.

«Examinais as Escrituras.» «Eles examinaram as Escrituras, pensan-do que pela obediência à Lei dada por Moisés, em quem depositavam sua esperança, teriam a vida eterna. Moisés, porém, como todos os profetas, escrevia de Jesus... As promessas, os tipos, as cerimônias, os sacrifícios, tudo quanto Moisés escreveu, visavam dirigir os pensamentos dêles para o Filho de Deus; usados, porém, como fins em si, endureciam os corações dominadores. Com tôda a educação divina, destinada a torná-los sá-bios no tocante à salvação, deixaram de reconhecer o Salvador.» (31)

«Examinais.» «Vós esquadrinhais as Escrituras fanaticamente —contais até o número de letras em cada um dos livros, vós vos ufanais de saber êste ou aquêle fato oriundo da ordem ou combinação das letras, vós vos esgotais em imaginar interpretações fantásticas sôbre coisas de so-menos importância, supondo obter por tudo isso a vida.» (32)

«As Escrituras». O Dr. James Moffatt diz algures: «A Escritura é frase que Jesus faz brotar de seus lábios com a máxima reverência. Em-bora existisse uma pregação oral, um ministério grande e numeroso e muitas igrejas antes de haver Evangelhos e Epístolas, contudo, a men-sagem que lhes era comum a todos eles era a mesma Palavra de Deus. Certamente não identificamos essa atitude de Jesus com nenhuma teo-ria nossa acêrca do modo como o Espírito agiu nas mentes santas. No-tamos, porém, que essa devoção reverente de nosso Senhor à Escritura parece crescer mesmo até à sua morte e depois de sua ressurreição. Como pode qualquer discípulo genuíno deixar de manter atitude con-servadora e humilde quanto aos pensamentos de nosso Senhor acêrca das Escrituras, Velhas e Novas? A atitude dele fêz caducar a revelação

(80) "The International Criticai Commentary", Vol. sôbre este Evangelho, p. 252. (31) "Church, Ministry and Sacraments in the N. T.'', p. 102, por W. T. Whitloy. (32) "Messages of the Bible", por Riggs, in loco.

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preparatória e parcial de Moisés e substituir, em lugar dessa, a própria finalidade e plenitude dêle, e das novas Escrituras, nas quais o Espí-rito Santo teria de guiar os apóstolos e homens do círculo apostólico na devida interpretação dêle mesmo e de toda a verdade que a vida cristã havia de precisar.»

«As Escrituras». Com Cristo e as Escrituras os judeus poderiam ter suprido a deficiência de não ter visto a face de Deus e não ter ouvido a sua vdz. O Deus de Jesus é visto e ouvido no Velho Testamento. Eles deviam ter reconhecido em Jesus a revelação de Deus, por causa da face e da voz de Deus nas suas Escrituras. Elas têm as mesmas credenciais do sobrenatural que possui um que se tenha ressuscitado dentre os mor-tos. Nas Escrituras há uma face de Deus e uma voz de Deus.»

«A atitude de Jesus para com o Velho Testamento não indica ser êste simplesmente a origem de suas palavras. Nem denota mera con-cordância de suas palavras e de sua pessoa com o que estava escrito, mas o V. T . converge e se cumpre em sua pessoa; é a camada fundamen-tal do seu ensino. Todo o ensino dêle se ajusta orgânicamente com o V. T. ... A palavra de Jesus está repleta de reminiscências impensadas do Velho Testamento e de reminiscências deliberadas e citações proposi-tadas. Estas são mais notáveis, (a) nos seus mais altos ensinos, (b) nos momentos críticos de sua vida. Ele apela para o Velho Testamento como regra de fé e prática. Ele oficialmente se autentica usando o Ve-lho Testamento como credencial. Há uma distinção necessária aqui en-tre a revelação fundamental do Messias prometido e a imperfeição e falta de finalidade das antigas instituições. (Não devemos, por um instante, pensar que estas são regra da fé e prática. Jesus definitivamente as re-pudiou, Mar. 7:19; Mar. 2:21, 22; Mat. 5:31-32, etc. W. C. T.) O Ve-lho Testamento tem em Jesus sua realização, e sua continuidade de re-velação está no Novo Testamento. A própria razão de ser do Velho Testa-mento era Jesus, e sem êle o Velho Testamento perde seu significado. Jesus tem consciência de seu valor pessoal à luz do Velho Testamento». (Notas de Geerhardus Vos sare a «Teologia Bíblica do Novo Testamen-to», dadas em esbôço no Seminário de Princeton). Quanto às institui-ções da teocracia israelita, êle acrescenta: «Foram dadas por divina ins-piração, mas não tinham valor permanente.»

«Ter nelas a vida eterna.» O pronome «vós» é enfático, como se Je-sus dissesse: «Vós, de fato, acreditais ter vida eterna na possessão das Escrituras judaicas, mas eu não penso assim. A vida está nas relações pessoais com o Salvador e não na mera crença em coisas escritas, ainda que tenham sido escritas por profetas na própria Palavra de Deus.» «Elas não outorgam vida, como imaginavam os judeus. Apontam para o Doa-dor da vida.» (Marcus Dods) .

Mas é fato que os judeus esperavam a vida eterna? E' fato que a

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esperavam das Escrituras? Sim. E' fato. Paulo, portanto, responde sua própria pergunta: Que vantagem, pois, tem o judeu?, do seguinte modo: «Muita, de tôda maneira. Principalmente porque, na verdade, lhes foram confiados os oráculos de Deus», Rom. 3:2. A superstição com que «alar-gam as suas filactérias», Mat . 23:5, indica o valor dado à proteção fí-sica da própria tira de pergaminho em que estava copiada uma Escritura, que ficava assim cercando a fronte ou o ante-braço e dava proteção ma-terial. Quanto à vida eterna, sem dúvida, não davam à frase todo o valor que o apóstolo João daria, mas criam na imortalidade, tenazmente, e ti-nham suas idéias vivas e queridas do que seria a vida de além-túmulo. Paulo no sinédrio bem podia classificar-se como fariseu e assim aliar con-sigo os crentes na ressurreição, contra os saduceus incrédulos. Jesus não falava a saduceus mas a fariseus, os quais figuram entre os mais te-nazes advogados da imortalidade entre todos os que assim aparecem nas páginas da história humana. Jesus reconhecia, pois, a verdade na dou-trina bíblica dêles. «A Lei» era tôda a Escritura, e nela esperavam, de fato, a vida eterna, mas era materializada sua religião, confiando assim, em cerimonialismo, racismo, nacionalismo e orgulho exterior. A espe-rança eterna se ligava com causas inadequadas, efêmeras demais para produzir efeitos eternos.

40. «Não quereis.» Não isolemos das outras faculdades do homem a vontade. Tôdas elas pertencem a uma personalidade indivisível, total-mente afetada pelo pecado, contaminada em tôdas as partes pelo pecado racial e pelo pecado pessoal. Os católicos e muitos protestantes isolam a vontade e fazem dela como que árbitro de uma luta, o juiz de um pro-cesso em que o indivíduo é reu. Aí há dois erros. Primeiro, a vontade é a ré principal da personalidade responsável. Segundo, esta ré não é ár-bitro nem juiz. A vontade necessita da salvação mais do que qualquer outra das nossas faculdades, se pudéssemos distinguir entre umas e ou-tras. Ninguém é arrastado por Deus ou pelo Diabo, pela predestinação ou sorte, pelas «fadas» ou «fúrias» gregas, pela hereditariedade ou pelo ambiente, a uma perdição em que o pecador não tenha voz ou vontade. Sua vontade livremente e por gosto escolhe o pecado. E' o que denuncia a Palavra de Deus (Rom. III), como aqui é a acusação de Jesus contra os principais moralistas e religiosos do seu povo : «Não quereis.» Como já citamos em Agostinho, nossa medicina é envenenada, pois, não pode-mos obrigar a nossa vontade a querer. Ela é a faculdade de querer, e quer o pecado, e não a salvação do pecado, pois, a salvação do pecado a privaria do deleite predileto, o «pecado que se nos apega», Heb. 12:1.

Não pensemos, pois, de nossa vontade como sendo uma faculdade que possa salvar por si as demais faculdades ou mudar nossa natureza íntima. Ela necessita de redenção, da purificação pelo sangue de Jesus, do Calvário, assimilado pela fé. A vontade não tem torça para salvar o

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resto da personalidade. E' fraca, Rom. 8:3 — «fraca pela carne» é o libelo com que «a Lei» nos responsabiliza por sua impotência e pela nossa condenação. E a vontade faz parte da «carne», sinônima, em Paulo, de nossa inteira natureza decaida, pois lemos da morte moral e espiritual do pecador: «estáveis mortos pelos vossos pecados e delitos... fazendo AS VONTADES da carne e dos pensamentos», Efés. 2:1, 3. A vontade é a cidadela de nossa rebelião contra Deus antes da salvação. Precisa ser capturada pelo Cristo vivo, como vemos nesse caso extremo que foi a conversão de Saulo, e num caso lento na salvação de Lídia e dos be-reanos, e num caso repentino na conversão do malfeitor no Calvário. O Espírito assedia a vontade e recebe sua entrega da cidadela, em fé e sub-missão a Jesus Cristo. E ninguém pode crer evangèlicamente por poderes inerentes na fôrça de sua vontade.

O fato do pecado, da depravação que envolve a vontade na ruína da queda, é o comêço do evangelho, como o diagnóstico acertado de um mal é o princípio indispensável de sua cura radical. Não confiemos na fôrça da vontade. João mesmo nos declara que a regeneração não nos virá jamais «da vontade do varão» — usando o termo mais forte, másculo, varonil. Pois, não há vontade suficientemente varonil para salvar. O privilégio e poder de se tornar alguém filho de Deus vem finicamente de Deus, o Espírito regenerador. Não vem de poderes latentes na persona-lidade. Vem de fora, de cima; vem sobrenaturalmente, vem de Deus.

Paulo fortifica e esclarece João. Ele nos declara, naquele que é, tal-vez, o maior capítulo de todos os seus escritos, que «a mente da carne» — e, sem dúvida, nosso inclui a vontade e as demais faculdades — «é inimizade contra Deus», Rom. 8:7. E acrescenta ainda que «não é su-jeita à lei de Deus nem o pode ser; os que estão na carne não podem agra-dar a Deus.» A essa impotência da vontade e de toda a natureza decaidn Paulo opõe: «a mente do Espírito é vida e paz.» Sua vontade divina leva nossa vontade cativa.

Repito, o que disse antes, não pensemos da vontade como árbitro puro e incontaminado de nossas outras faculdades, neutra entre Deus e o pecado, podendo optar por suas próprias forças e dar decisão eficaz. Tal não é a doutrina cristã da vontade. Esta é «hostilidade contra Deus». Não é neutra. E' fôrça do inimigo que Cristo tem de vencer ou persuadir a render-se incondicionalmente. Isso está longe de ser uma negação da responsabilidade humana. E' a afirmação de nossa responsabilidade, na rebeldia contra Deus — nossa vontade é que a mantém. O Espírito as-sedia a vontade, ao nos regenerar.

E' uma cidadela forte que Deus tem de vencer no pecador. A guerra nos ensina que não é com ataques frontais que se tomam as fortalezas, geralmente. Entra-se pelo lado de menos fortes defesas. O lado onde a vontade é mais fraca e accessível é o lado das emoções e afetos. Por

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isso o Espírito apela para as emoções e os afetos do pecador, seu senti-mento de mêdo, esperança, gratidão e amor, como motivos do arrependi-mento. Despertados esses sentimentos, a vontade cede. «Com o cora-ção se crê para a justiça.» O Espírito entra na cidadela da vontade pela porta do coração, que se abre ao seu toque, Atos 16:14. Cremos e somos salvos, regenerando-se sobrenaturalmente a vontade. Chegamo-nos a Jesus porque assim cremos, sob o poder regenerador do Autor da vida. Livre e espontâneamente queríamos o pecado e não queríamos ver a Je-sus para ter vida. Mas o Espírito Santo emprega santos motivos para nos regenerar, e na salvação a vontade é mudada; livre e espontânea-mente aceitamos e amamos o Salvador. O inimigo se converteu em ami-go e discípulo.

«E não quereis vir a mim a fim de que tenhais vida.» Notai que a condição de ter vida é declarada por Yesus ser: «vir para mim». E' inú-meras vêzes declarado também que a condição da vida é crer nêle. Logo «vir» é crer. Aproxima-se de Jesus por «crer» evangelicamente em Je-sus como Salvador. Veremos de novo esta verdade no Capítulo VI.

«Não quereis vir a mim para terdes vida.» «Foram aos filósofos para ter teorias, aos rabis para ter preceitos; foram aos profetas para ter princípios e ao código mosaico para obter cerimônias. Mas não iriam a Jesus para ter vida. Esse libelo está em vigor até o dia de hoje.» (33)

«Vida». O Dr. James Black examina, num sermão citado por «The British Weekly», as definições científicas de vida, de Eddington (cien-tista), McDougal (psicólogo), e Adamson (filósofo) . «Jesus Cristo e seu evangelho constitui a única realização de tôdas as condições enume-radas como essenciais à vida — o ajuste continuo de um organismo ao seu meio ambiente; a intensificação, em profundeza cada vez maior, da personalidade que é cônscia de si mesma; e o poder de formar juízos sãos sobre os valores genuínos da vida e das coisas.» Mas a definição da vida dada por Jesus em João 17 é mais simples e mais real: «a vida é conhecer» — conhecer a Deus e a Jesus Cristo.

41. «Glória da parte dos homens não recebo.» Vêde a independên-cia de Jesus. Nem êle nem seu precursor se estribavam em fiador algum, em padrinhos ou protetores, em patrão ou pistolão. Diretamente de Deus veio o apoio, o sustento e as credenciais de cada um. Eram pro-fetas — falando da parte de Deus. Os milagres dados a Jesus provaram o testemunho de João. E para que nós os imitássemos nesta independên-cia, a Palavra de Deus se fêz o tesouro e abrigo e a autoridade, univer-salmente, para os crentes, para que não tivéssemos de depender de reve-lações ocasionais e individuais, «um pouco aqui, um pouco ali», «ora mais, ora menos», como nos dias antes de Cristo, mas possuíssemos nas Escri-

(33) "Addresses on the Gospel of St. John", p. 204, por E. D. Bom

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turas apostólicas <ztoda a verdade», a revelação final em Jesus Cristo, interpretado sob a ação do Espírito, por suas testemunhas escolhidas e divinamente dirigidas e guiadas.

42. «O amor de Deus não existe em vós.» Como não podemos isolar uma das faculdades humanas da personalidade responsável, senão em es-tudos analíticos em que as palavras servem de definir fases da unidade, nem tampouco podemos isolar a fé, a esperança e o amor, na experiência cristã, senão como aspectos da atitude uma da alma salva em sua rela-ção fundamental com Jesus Cristo. Não há fé que odeie ao Objeto di-vino em que confia. «Ninguém falando pelo Espírito de Deus, diz: Jesus é anátema: ninguém pode dizer: Jesus é Senhor, senão pelo Es-pírito Santo», I Cor. 12:3. «Cristo em nós» é «a esperança da glória», Col. 1:27. «Agora permanecem estas três: a fé, a esperança, o amor», I Cor. 13:13. Notai, porém, a ordem: «A fé» é a atitude inicial na ex-periência da salvação, lógica e analiticamente, se bem que ela nunca venha ou exista em separado das atitudes irmanadas, que são tri-ge-meas na alma crente. E' por isso que Paulo diz: «Sendo justificados pela fé, tenhamos paz» — que noutro lugar êle nos diz ser «fruto do Es-pírito», Gál. 5:22. E logo acrescenta, em Rom. 5:15, no fim da mes-ma sentença maravilhosa que enumera os fatores na experiência cristã: «porque o amor de Deus tem sido derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado.» Ninguém pode amar cristãmente a Deus por sua própria força natural, pela pujan:',À de sua vontade isolada e pecaminosa. Tal amor é sobrenatural e vem unicamente pela graça e obra do Espírito divino, no «coração» regenerado. O Espírito invade nossa vida pela porta do «coração», que significa nossa alma em seu as-pecto emotivo e afetuoso, e «derrama o amor», qual chuva sobre deserto árido. Com a justificação pela fé em Jesus são contemporâneas a paz com Deus e o amor de Deus, derramado pelo Espírito na sede de nossos afetos e emoções, o coração, do qual procedem «as saídas da vida», Prov. 4:23.

Devia ter ofendido a êsses líderes religiosos a denúncia de Jesus, como um chicote que lhes caísse em plena face. «O amor de Deus não exis-te em vós.» O amor a Deus era reconhecido como o primeiro elemento da moral e da religião mosaica, Mar. 12:30, 32. Agora ouvir que aquilo que admitiam ser supremo na religião lhes faltava totalmente era cho-cante. A vida dêles era cuidadosa na incessante «caridade». Como o es-piritismo, o romanismo e outras religiões hodiernas de «caridade», êsses lideres «tocavam trombeta>, diante de si, «nas sinagogas e nas ruas», na ocasião de dar esmolas em uma caridade «para inglês ver». Religião de muita «caridade» e nenhum amor. O amor é graça do Espírito, inse-parável da fé salvadora em Jesus Cristo, e se manifesta sblidamente em fazer o bem e guardar os mandamentos de Cristo, João 14:21, 24; I João

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5:3. O indiferentismo neste terreno do espírito é prova de que não exis-te o amor de Deus no coração.

Paulo ainda apoia a Jesus, como João o apoiou mais tarde, ao negar a existência do amor de Deus quando o incrédulo recusa crer em Jesus. Na passagem clássica sôbre a salvação pela graça, o apóstolo exclama: «Pois, pela graça é que sois (fôstes e sois, no grego) salvos, mediante a fé, e isto não vem de vós, é o dom de Deus», Efés. 2:8. «Isto», não «esta». Não se afirma apenas que «a fé» é «dom de Deus». Isto tudo — a graça, a salvação e a fé — é dom de Deus. «Somos feitura dêle», v. 10. A fé, a esperança e o amor são o permanente «caminho sobremodo excelente» da graça de Deus na salvação. A fé é a primeira, ainda que o amor é o maior, o auge, a meta. Naquele que não crê evangelicamente em Jesus «não existe o amor de Deus». Em ninguém tal amor é natural. Tem de ser sobrenaturalmente derramado nos afetos e nas emoções hu-manas pelo Espírito Santo de Deus.

43. «Se outro vier em seu próprio nome a êle recebereis.» <nA. his-tória», diz Riggs (obra citada), «dá os nomes de sessenta e quatro fal-sos messias que, por ousada arrogância e largas promessas, conseguiram obter numerosos seguidores entre os judeus.»

«Se um outro vier em seu nome» — eis como que numa casca de noz a história dos séculos que se chamam «cristãos». Quanto mais souber-mos da vida humana, tanto mais verificaremos a verdade e o discerni-mento dêsse juízo de Jesus. Não é opinião de um velho desiludido, mas de um moço de 32 anos, no auge de sua popularidade. Nem eram cínicos, pessimistas ou desesperados Paulo e João quando deram opiniões do mes-mo teor, no discurso final de Paulo ao ministério efésio (Atos 20:29, 30 — «dentro de vós mesmos surgirão homens, falando coisas perversas, para atrair os discípulos APÓS SI»), na sua última Epístola e último ca-pítulo (II Tim. 4:3, 4), e no último capítulo dos escritos joaninos (Apoc. 22:11, 18, 19) . Ninguém sabe viver no mundo sem avaliar com João que «o mundo inteiro está no Maligno», (I João 5:19) . «Sabemos mais que o Filho de Deus veio, e que nos deu entendimento, para que conheça-mos o Verdadeiro; e nós estamos no Verdadeiro, istc é, em seu Filho Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna» (v. 20).

44. «Como pode crer gente como vós?» «Recebendo glória uns dos outros.» Convém meditarmos essas pala-

vras de tão profundo discernimento ético e espiritual. Perguntai a qual-quer indivíduo por que êle não é crente. Há de responder precisamen-te nos têrmos dêsse pensamento de Jesus. Está buscando glória, a boa opinião do patrão, da noiva, da sogra, do mestre, de um superior polí-tico, dos freguezes, do clero, das «inteligências». «Será que alguém do sinédrio creu nêle? Aguardam a decisão aristocrática a favor de Jesus e entrementes o rejeitam e desprezam. E' a raiz da maior parte da incre-

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dulidade, a indecisão pessoal, resolvendo-se a continuar com a onda, até que a onda mude de direção e corra para Jesus. Mas Jesus não quer a fé ou o discipulado de meras gotas «da onda». «Quem duvida é seme-lhante à vaga do mar, que o vento subleva e agita. Não cuide êsse ho-mem que alcançará do Senhor coisa alguma, sendo homem irresoluto e inconstante em todos os seus caminhos», Tiago 1 :6. Dessa mesma fra-queza Número Um, procede a inconstância doutrinária, moral e ativa de muitos crentes. Pedro é exemplo disso em muitas ocasiões. E' a mais sedutora de tôdas as fraquezas humanas. Jesus pergunta, atônito, «Como podeis crer, vós que recebeis glória uns dos outros?» Cuidado, crente, para que o mesmo pecado não te leve a negar a Cristo, como Pedro ne-gou, e provoque chôro amargo resultante.

A glória, não do apoio da multidão, mas do beneplácito do único Deus, é suficiente consolação para Jesus e para os que seguem a Jesus. Esses amontoam tesouros no céu, causam alegria na presença dos anjos por um arrependido que trazem ao Salvador, são peregrinos para a Nova Jerusalém, não se importam com o desdém dos que se acotovelam na «Feira das Vaidades». E' séria prova de caráter ser crente fiel e assim preservar seu testemunho a uma geração torta e perversa.

Não estranhemos as multidões que correm atrás da mentira e os poucos que amam a verdade, o entusiasmo com que se grita: «Grande é Diana dos Efésios» e o ódio manifestado no rouco clamor da turba en-furecida : «Crucifica-o, crucifica-o!» Isso é próprio da espécie humana. Jesus entendia tudo isto perfeitamente. Ele «sabia o que há no ho-mem.»

Os crentes novos, porém, devem ser admoestados por estas palavras do Senhor contra a facilidade com que são tentados a seguir homens «simpáticos» em aventuras interesseiras. Cristo estabelece uma prova: «Pelos frutos os conhecereis.» Investiga o «simpático». O que fêz alhu-res, êle fará de novo contigo. O crente deve seguir seu pastor como este segue a Cristo. E, de certo, um homem que tenha a madureza e o juizo, para ser pastor de uma igreja de Deus não deve degenerar em mero tí-tere de ninguém, sacrificando para urna solidariedade carnal e partidária sua direta e inalienável responsabilidade para com Jesus Cristo.

Outros, em certo lugar, deixam o cabelo crescer e fazem-se místicos exploradores. E, mais comum ainda, é que um tonsurado, vestindo ba-tina, finja ser um canal da graça divina, e ter depósitos eclesiásticos dessa graça na pia batismal e nas hóstias armazenadas na sua igreja. Toma a direção do indivíduo e do lar, pelo confissionário, das escolas onde lhe fôr possível, galga posição e ganha remuneração pela união da Igreja com o Estado, se puder conseguir isso. A Jesus não se concederia tal domínio sôbre o indivíduo, o lar, a escola e o Estado. Mas quanto não conseguirão aquêles que vêm sem autorização divina, em seu próprio

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nome ou em nome de outros pecadores de sua grei! Basta abrir os olhos e relanceá-los ao redor para ver os mil entusiasmos de pecadores por outros pecadores, e a canseira e o aborrecimento que causa à maioria ouvir falar de seguir lealmente a Jesus Cristo e mostrar-lhe o amor que obedece.

«Como sois vós capazes de tornar-vos crentes, visto que estais conti-nuamente captando glória uns dos outros?» De novo, é a questão moral de afinidades espirituais. Esta verdade volta para João 3:19-21. Por essa tradução procuro tornar claro que Jesus falava aos judeus descren-tes. «Vós» é bem enfático. Deviam por uma decisão de fé salvadora converter-se de vez. Mas sua salvação era impedida por essa perene am-bição de «captar glória», tomá-la, trocá-la mütuamente, transformar suas relações sociais e religiosas num círculo fechado de mútua admiração (pública) e adulação. Como há uma incompatibilidade absoluta entre a fé salvadora e o ateísmo, entre a espiritualidade e o materiaii,:uo, entre a santidade e a filosofia epicuréia ou estóica, entre o evangelho e qual-quer outra filosofia e especulação humana, do mesmo modo aquela depen-dência da alma crente no Salvador Jesus, e sOmente nele, para salvar-nos, é incompatível com essa ambição de vanglória, de gabolice, de con-fiança e justiça própria.

O fariseu da parábola de Jesus (Luc. 18:9-14) é um retrato da alma farisáica: «Graças te dou que não sou como os demais homens... eu... eu ... eu... eu... » Esse «Eu» tão grande cresceu a tal altura e gordura por causa de muita adulação. Viria «captando glória». Captou tanta que agora vai se vangloriando, a valer.

Tiago nos declara: «Deus resiste aos orgulhosos.» Estão tão cheios de si que Deus nêles não entra. Mas lhes oferece resistência do lado de fera dos seus cernões; «e dá graça aos humildes.» A finalidade da vação e do evangelho e da graça divina é para os humildes, não para aque-les que vivem para «captar glória uns dos outros». Semelhante ambição, diz Jesus Cristo, faz com que a fé lhes seja impossível. E isso explica em parte porque Jesus dizia em outra ocasião: «Quão dificilmente en-trarão no reino de Deus os que têm riquezas», Luc. 18:24. Dificilmente se curvam para a porta humilde da salvação pela graça. A praga da vida dos ricos é viverem cercados de aduladores. «Glória» humana se com-pra no mercado livre, é mercadoria abundante, se bem que muito procu-rada. Mas não condiz com a fé salvadora.

«A glória... não buscais.» Jesus se queixa disso. Um dos motivos legítimos da santidade e da vida eterna é a procura da glória, mas «a gló-ria que vem do único Deus». Vede, em 12:43, as notas sôbre o amor ao louvor divino de nossas ações e atitudes, embora tenhamos de perder o louvor e apoio e mesmo a sociedade religiosa e social dos poderosos da terra . Jesus anelava por sua antiga glória celeste, 17:5, e queria dividir

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seu futuro gôzo dêsse quinhão conosco, 17:22, 24. Paulo apoia os que «buscam glória, honra e incorrupção», «perseverando em fazer o bem», Rom. 2:7, e indica que é um aspecto da «vida eterna», vivida aqui na terra. A glória é parte integral da esperança dos justificados pela fé, Rom. 5:2. Aquela glória sobrepuja o pêso de nossos sofrimentos aqui, Rom. 8:18, 21. Mesmo no Israel teocrático, já havia uma «glória» real, Rom. 9:4, e a «glória» futura do crente é propósito divino eterno, Rom. 9:23. A glória divina brilhava no rosto de Moisés, II Cor. 3:1, e nossos rostos servem qual espelho para refletirem a glória de Cristo, v. 18. E' preciso que saibamos recomendar-nos «por honra e por deshonra», II Cor. 6:8. Há glória na cooperação inteligente das igrejas, II Cor. 8: 23. A morte de Cristo visou «conduzir muitos filhos para a glória», Heb. 2:10. Provações visam glória, louvor e honra, I Ped. 1:7. O Espírito de glória é o Espírito de Deus, I Ped. 4:14, e é recompensa aos calunia-dos pelo vitupério que sofrem.

Não sejamos hipócritas, fingindo o indiferentismo para com o lou-vor de Deus e dos homens. Antes abramos nossos espíritos ao «Espírito de louvor e de Deus» e ambicionemos o apoio e a glória que são genuí-nos na estima divina e humana. Jesus «suportou a cruz» por contemplar o gôzo que lhe fôra proposto. Assim Estêvão e os mártires, também.

A ambição é legítima, mesmo no terreno da chamada e dos dons de Deus. O autor deste Evangelho queria a primeira posição no reino. E quase alcançou-a, antes do fim do século e viu para si um lugar funda-mental no céu, Apoc. 21:14, E' bom «aspirar ao episcopado», I Tim. 3:1 — o episcopado bíblico, que é o pastorado de uma igreja bíblica. Mas sóir ente os cise podem cumprir as exigências devem assim aspirar. e 3:5,0 relativamente poucos, Tiago 3:1. E' uma carreira exigente para a qual relativamente poucos crentes têm aptidões. Os que as tiverem devem ambicionar usá-las para Deus e seu povo.

A glória principia em nossa estima própria. Cada qual se conhece e deve ter satisfação na sua própria vida e caráter. Há uma medida com que é ordenado que meçamos esta estima própria. Não é a cultura, a riqueza, o poder ou a influência que galgamos. «Pela graça que me foi dada, digo a todo aquêle que está entre vós, que não pense de si mais do que convém, mas dirija a sua atenção para pensar sàbiamente, con-forme a medida da fé que Deus a cada um repartiu», Rom. 12:3. E' o metro espiritual, e é tão natural que o crente se meça com êste metro como é medir sua altura em metros e centímetros, ou pesar-se numa ba-lança. Quanta fé? Para quantos e quão grandes empreendimentos? Até que ponto te é real Cristo? Que visão celeste alcançaste e obedeces, (Atos 26:19) ? Que perícia obtiveste nas verdades reveladas no tesouro de Cris-to e da Escritura? Que teu espírito seja medido. Se alguém te pergun-tasse: «Que altura tens!» não seria orgulho dizer os fatos — um metro e

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tanto. Pois o espírito também tem altura. E' anão ou homem feito, ha-vendo chegado «à medida da estatura da plenitude de Cristo», Efés. 4:13.

A glória que Deus recebe de nós é um motivo da vida cristã. «Santi-ficado seja teu nome.» E a glória que nós recebemos de Deus, entre seu povo aqui e na eternidade, é outro motivo. Nada temos de estóicos ou pusilânimes. Amemos a glória, a glória que vem de Deus, mais do que a glória que vem dos homens. Lêde Mat. 10:31-33. «Gloriar-se», com ra-zão cristã, não é vaidade nem orgulho. E' uma das virtudes que o «Es-pírito ("a glória e de Deus» nutre em nossos espíritos; é elemento de es-tabilidade moral, doutrinária e santificadora, Rom. 11:13; I Cor. 9:15; II Cor. 5:12; 7:4, 14; 9:3; Rom. 15:17; II Cor. 11:10, 17, e especial-mente Gál. 6:4. Conhece-te a ti mesmo e em saber o que vales serás fortalecido contra censuras, invejas e injúrias.

45. «Não penseis que eu vos acusarei.» O juízo será aberto, públi-co, jurídico, — nada de vingança pessoal. E será de acordo com a luz que o réu teve. A luz do judeu é sua Escritura cuja cabeça é o Penta-teuco de Moisés. Por essa Escritura êle será julgado; Moisés testificará para dar o padrão com o qual êle será comparado e achado em falta. Por sua própria lei e profecia, êle será julgado.

«Vosso acusador é Moisés.» Que resta da veracidade e juízo e dis-cernimento de Jesus, para quem é um pobre ludibriado que, a despeito das demonstrações cabais da arqueologia, segue os críticos radicais do Velho Testamento e não admite a historicidade de Moisés? Perde o tal, com Moisés, os Evangelhos também. Moisés tem funções na vida dos judeus, dos crentes e do céu. Depois de pouco tempo, Jesus verá Moisés, no monte de Transfiguração, e falarão de melhor «Êxodo» do que o do Egito, o que Jesus fará no Calvário.

Há 49 citações do Velho Testamento no Evangelho de João e 17 são de Moisés. A tragédia de Israel é precisamente que o grande legislador em quem confiavam é que os condenava com sua lei, como réus, e lhes testificava em vão, aos seus corações cegos e duros, que em Jesus lhes é oferecido «o outro Profeta», o Sacrifício válido, Templo e Sacerdote. Paulo é o supremo advogado de Jesus contra os fariseus e o testemunho de Moisés é sua arma predileta, como se vê, por exemplo, em Rom. 10:5. Só nesta palavra há um golpe mortal em todo o judaísmo e nos demais sistemas de salvação pelas obras. Tôda a Epístola aos Hebreus é apenas uma continuação da luta aqui em evidência e, em gloriosa apologética, afirma que Jesus é «melhor» que Moisés e tudo mais, item por item, no judaísmo que caducava e seria em breve destruído.

«O vosso acusador é Moisés.» E' fato terrível: Moisés contra os ju-deus incrédulos, como seu acusador. Seu vital interêsse na obra de reden-ção que êsses fariseus estavam dificultando vai se manifestar no Monte

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Hermom, na Transfiguração, quando êle virá discutir com Jesus o outro «Êxodo», o êxodo de Jesus desta vida, via Calvário, para sua missão de Salvador. Moisés efetuou o primeiro Êxodo, uma redenção física, na-cional; Jesus fará melhor êxodo, com uma eficácia de redenção eterna. Moisés entende como nenhum outro as dificuldades de um redentor e mediador, ante à perversidade anarquizadora da oposição cruel, a des-peito de ter sido o homem mais manso da terra. Êle não cala. Acusa no céu os fariseus. Estão sem desculpa. Moisés preveniu seu povo acêr-ca do Outro que havia de vir. Se tivessem fé na sua palavra, em lugar de urna cega credulidade no poder dos efêmeros ritos que êle dera no Sinai, teriam achado em Jesus, o Prometido, o Outro, o Vindouro de quem Moisés testificara há séculos e a cujo encontro êle vai para animá-lo a perseverar na jornada até o Calvário. Jesus não falou palavra mais semelhante a uma espada de dois gumes do que essa em que fêz Moisés testemunha e juiz contra seus orgulhosos patrícios de então.

46. «Moisés escreveu de mim.» Para a fé reverente, vale mais esta declaração categórica de Jesus, o Criador e Senhor e Salvador de Moisés, e seu Companheiro no Monte da Transfiguração do que tôdas as dúvidas de críticos céticos ou sinceros que seguem as sendas tortuosas de seu pró-prio subjetivismo. «Moisés escreveu.» E' a palavra infalível de Deus o Filho. E há bastante comprovantes literários, históricos e arqueológicos do fato.

47. «As Escrituras dêle... minhas palavras». Absoluta harmonia e continuidade de revelação a respeito de Jesus o Messias, a despeito do cancelamento das «cédulas» da Lei no Calvário, Col. 2:14. Vendo em Moisés o que a cruz cancelou, o judeu não vê Jesus seu Messias. Vendo Jesus, o Cristo, é cancelada a lei no Calvário exceptuado o seu testemu-nho de Jesus, por profecia, história, símbolo, devoção e louvores.

«Se não estais dando crédito às Escrituras dêle, como acreditareis nas minhas palavras?» Afinidade e harmonia perfeita existem entre a palavra de Moisés e as palavras de Cristo. Não é que Jesus continua o regime teocrático definido e imposto na Lei de Moisés. Êle declarou ca-duca essa legislação e a repudiou, dizendo simplesmente: «Mas eu vos digo» (no Sermão do Monte, etc.). A unidade entre Moisés e Jesus con-siste em afirmar que as palavras de Moisés no Pentateuco eram uma re-velação divina, se bem que preparatória, provisória, e limitada, como legislação, a Israel. Era a palavra de Deus para a época, quanto ao ri-tual, e para o porvir, quanto à profecia messiânica. Bem. Sendo assim, passaria a legislação efêmera. Mas ficaria de perene valor e verdade re-velada, a moral ordenada, as profecias da revelação posterior e de uma nova época diferente, a história instrutiva, o exemplo de mil heroísmos e sacrifícios, as orações, a poesia e a devoção literária, os anelos expressos do espírito humano, os provérbios, a sabedoria na vida prática. Há tudo

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isso nas palavras de Moisés. Jesus as usou na hora trágica de sua tenta-ção . Defendeu seu espírito, ameaçado por Satã, com a espada divina de Deuteronômio. Sua Bíblia era, em parte, a palavra de Moisés. E segui-dores de Moisés que não ficam sendo discípulos de Cristo são cegos e desnorteados em seu entendimento errado do grande profeta e legislador. Moisés nos historia tôdas as magnas profecias da redenção, desde a queda até Sinai, e a peregrinação de Israel, no deserto. Desde a «semente que esmagaria a cabeça da serpente» até «o outro profeta» semelhante a Moi-sés, temos suas profecias sôbre Jesus. A cegueira diante da figura de Jesus aos escritos de Moisés impossibilita a fé na pessoa histórica do Messias . A sorte do Velho Testamento fatalmente será a sorte do Novo, e do Messias de ambos. Jesus sempre se identificava com o vulto mes-siânico que ficou cada vez mais claro no Velho Testamento. A cegueira para com o Cristo que Moisés profetizou é cegueira também para com o Cristo dos Evangelhos. E' o mesmo Cristo. Se não é aceitável numa Es-critura, não será em outra Escritura qualquer. A fé ou a incredulidade mostra as afinidades morais do espírito humano.

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184 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

Jesus multiplica pães no deserto, e é o pão do céu

(Capítulo VI, Vs. 1 a 21)

1 Depois partiu Jesus para o outro lado do mar da Galiléia, (isto é, o mar

2 de Tiberíades). I Muitíssima gente, porém, o seguia, porque ainda queriam

3 ver os miraculosos sinais que êle continuamente fazia para os doentes. I Subiu Jesus, porém, no meio da colina, e estava sentado

4 Jesus e os Doze aí com os seus discípulos. I Ora, estava próxima a

5 procuram Des- páscoa, a notável festa dos judeus. I Pois bem:

cansar

Jesus levantou os olhos e viu que tanta gente vinha aproximando-se dele, e disse a Felipe: "Mas don-

6 de neste mundo vamos comprar pães suficientes para estes comerem?" 1 Mas dizia isto, pondo-o à prova; porque êle bem sabia o curso que estava para

7 seguir. I Felipe tornou-lhe: "Duzentos denários * de pães não bastam para

8 eles tomarem cada qual um bocado!" I André, um dos seus discípulos, o

9 irmão de Simão Pedro, lhe sugere : 1 "Está aqui um rapazinho que tem

10 cinco pães de cevada e dois peixes. Mas...! isso

Ensinando uma — que 'e para tantos?" 1 Jesus mandou: "Fazei as- lição de fé, aos sentar os homens." Ora, havia no lugar muita relva.

apóstolos Portanto, os varões se sentavam sôbre a relva em

11 número uns cinco mil. 1 Então Jesus tomou os pães, deu graças e os dis- tribuiu aos que estavam aí deitados, e dos peixes

12 Milagre de Compai- igualmente, tanto quanto queriam. I Logo, porém, que xao aos Famintos ficaram saciados, disse aos seus discípulos: "Apanhai as porções partidas que ficaram em excesso, a fim de que nada se perca."

13 1 Então as apanharam e encheram doze cestas das Jesus criou pão para 1 porções partidas dos cinco pães de cevada que res-

14 aquêle dia e povo, e taram de sobra aos saciados. 1 Portanto, os ho- para os seus depois, /meus, por terem visto que sinais milagrosos ele fi-zera, diziam: "Este verdadeiramente é o Profeta, que está chegando ao mun-

15 do." 1 Quando, pois, Jesus avaliou que iam chegar e arrebatá-lo a fim de constituí-lo rei, êle retirou-se novamente no meio

16 Fé popular em Jesus da colina, sõzinho. 1 E quando veio a hora do 17 como outro Moisés crepúsculo, seus discípulos desceram ao mar, 1 e

para realizar outra tendo embarcado num barco, iam caminhando a

libertação política outra banda do mar para Cafarnanm. E já viera

18 a escuridão e Jesus ainda não lhes chegara, 1 e o

19 mar se despertava, por unia grande ventania que estava soprando. 1 Quando, pois, tinham remado uma légua, mais ou menos, e ain-

* Moeda romana de prata, a paga de um dia de trabalho de um trabalhador rural na Palestina no tempo de Cristo.

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Milagres de noite depois do grande

20 dia de ensino e 21 milagre

da remavam, observavam a Jesus andando sôbre o mar e chegando perto do barco e ficaram espanta-dos. I Mas ele lhes disse: "Sou. eu, deixai o vosso pavor!" I Então com gosto o receberam no bote e imediatamente este chegou à praia para onde rumavam.

1. «Depois dessas coisas». «Nota de tempo em João (3:22 ; 5:1 ; 6:1 ; 7:1) que é comum mas não definitiva. Não significa, a frase, seqüên-cia imediata de eventos. De fato, um ano inteiro pode intervir entre os su-cessos do capítulo 5 em Jerusalém, e os de Cap. 6, na Galiléia. Não há razão suficiente para acreditar que originalmente o Capítulo 6 estava an-tes do Capítulo 5 no manuscrito. A alimentação dos cinco mil é o único evento antes da última visita a Jerusalém que todos os Evangelhos nar-ram (Mar. 6:30, 44; Mat. 14:13-21; Luc. 9:10-17; João 6:1-13). Os discí-pulos acabam de voltar de sua viagem evangelizadora pela Galiléia e de fa-zer seu relatório a Jesus. Era a Páscoa (6:4), exatamente um ano antes do fim.» (1)

1. «Depois». «O intervalo entre os capítulos cinco e seis depende da festa a que se faz alusão em 5:1. Se foi a do Purim, apenas um mês tinha passado; se foi a Páscoa, um ano. Sob qualquer hipótese, Jesus deixara Jerusalém porque os judeus procuravam matá-lo.» (2) Aceito a probabi-lidade de ser a Páscoa a festa de 5:1. Portanto, vejo, no intervalo, o prazo para as muitas atividades de Jesus na Galiléia antes da alimentação dos cinco mil, o ano de sua glória nas cidades e vilas civilizadas por várias missões itinerantes na província da Galiléia, como os Sinóticos nos afir-mam.

«Depois disto». No seu esplêndido livro sôbre «O Cristo dos Evange-lhos», Cap. XVII, que é baseado numa Harmonia dos Evangelhos, o Dr. J. W. Shepard assim analisa os passos de Jesus neste incidente (Cito em conjunto trechos de várias páginas) : «Falta apenas um ano para a cruci-ficação. A crise galiléia abrange este primeiro retiro, a alimentação dos cinco mil, o andar sôbre o mar revoltado, o Sermão sôbre o Pão da Vida em Cafarnaum, e as crises provocadas pelo referido discurso. Antes da prinCipal multidão chegar, Jesus se havia retirado para o silêncio da mon-tanha a fim de ter um breve período tranqüilo de meditação. Mas êsse período foi cortado logo. Levantando os olhos viu uma grande turba e en-cheu-se de compaixão por ela. Jesus leu ao povo cordiais boas vindas, começou e continuou a lhes ensinar. Continuamente curava seus doentes, todos os que de fato necessitassem de cura. Alguns talvez se desapon-taram porque não fêz um discurso revoltado sôbre a morte de João Ba-

(1) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 96, por A. T. Robertson. (2) "The Expositor's Greek Testament", Vol. I, p. 746, por Marcus Dods.

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lista, violência recente de Herodes. A Páscoa dos judeus estava próxima. Um milhão de peregrinos caminhava para Jerusalém. Muitos dêsses pere-grinos havia nessa multidão. Como enfrentar melhor a onda de entusiasmo por um Messias materialista e temporal do que operando um milagre que demonstraria primeiramente sua capacidade de satisfazer as necessidades materiais deles e depois, em nítido contraste, exporia o carater espiritual e sacrificial do reino? Jesus prepara o caminho para essa conclusão. Fa-lou, primeiramente, ao frio, lacônico e calculador Felipe, uma espécie de guarda-livros entre o apostolado. Donde compraremos pão para aquela gente comer?, disse Jesus com um gesto na direção da turba crescente. Era cedo ainda; Jesus deixou os apóstolos meditando no assunto e ia pre-gando, ensinando, curando. Mas o dia se adianta e os apóstolos ficam nervosos. Passa a hora de comer. Chamam-lhe a atenção para o fato de que embora o lugar fôsse deserto (pouco povoado) havia povoações rurais e vilas onde o povo podia comprar víveres e achar pouso. A essa lembrança Jesus replicou: Não precisam sair; dai-lhes de comer. Tôda a natureza (muita relva, montanhas, mar, a multidão ordeiramente arran-jada em canteiros de cinoenta, com as roupas de muitas côres, as som-bras e as luzes da tardinha) unia-se para derramar glória sôbre a cena maravilhosa. Jesus então tornou os pães. Segue a narrativa da multipli-cação desses pães e o fato de sobrar doze cestos de pedaços. A ênfase está nos pães ; e, deste modo, a mentalidade do leitor é preparada para o ser-mão do dia seguinte sôbre o pão da vida, como, na ocasião histórica, os cinco mil ficavam com essa lição baseada na experiência do dia anterior, no terreno material. Jesus mandou os apóstolos juntar as porções prepa-radas para a dislribuição — não as migalhas e restinhos no chão. Ele lhes ensinaria uma lição de previdência no trabalho do Senhor. Nada lhes faltou nesse dia e cada um dos apóstolos tinha seu cesto cheio — êsses cestos do formato de um caixão, lembranças do milagre. O resultado de tão estupendo milagre é instantâneo. Vendo o grande sinal os homens co-meçam a cochichar: Esse é o Profeta, aquele que é semelhante a Moi-sés. Jesus depressa leu es pensamentos da turba. Sabia que avançariam e fariam-no rei da nação. Apressou-se para evitar o propósito revoltoso deles. Obrigou os discípulos a entrar num bote e ir adiante dele para o outro lado do mar enquanto êle despedia a turba. A noite desce sôbre o Vulto solitário, no alto da, montanha, a orar. Na quarta vigília (de 3 a 6 horas da manhã) os discípulos vêem Jesus se aproximar, andando sôbre o mar. O milagre é antecipação de sua ressurreição. Esse mesmo corpo passaria através de portas trancadas sem as abrir. Os que estavam no bote, os apóstolos e outros, o adoraram. Este milagre foi delibaradamen-te usado por Jesus, somos obrigados a crer, para pôr em evidência incon-fundível a verdadeira natureza do Reino Messiânico e cirandar os discí-pulos superficiais, separando dos genuínos êsses que ameaçavam provocar

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um movimento a favor de um Messias nacional, que seria fatal a Vida a obra de Cristo. Para enfrentar a situação, Jesus era obrigado a tornar cla-ras duas verdades: primeiro, que o Reino Messiânico não era um reino de carne e bebida ou riqueza material e poder, e que êle não seria Messias político ; e, em segundo lugar, que o Reino Messiânico era espiritual e que êle era o maná verdadeiro, vindo do céu. Era um dia de culto, segunda ou quinta-feira. Acharam-no quando êle estava em caminho para a si-nagoga. Que faremos para que operemos as obras de Deus? Os rabis en-sinavam uma religião de observâncias rituais e cerimoniais. Havia obras de Deus especiais apontadas para cada hora do dia. Julgavam estar guar-dando todos os preceitos correntes rabínicos. Que mais queria êle que fizessem? Eis a obra de Deus, que creais naquele que êle enviou. Entre as rucr as da sinagoga de Cafarnaum, (em Toll Hum) os arqueólogos des-cobriam urra coluna que contém a escultura de um pote de maná, urna vide com suas folhas e cachos de uvas. O Messias devia fazer coisas maio-res do que Moisés (Sal. 72:16; Ex. 16:15; Sal. 78:24; Deut. 8:3). O mi-lagre daquele dia não se comparava com o maná dado por quarenta anos no deserto. Não foi Moisés que vos deu o pão do céu, mas é meu Pai que vos está dando o verdadeiro pão do céu. Eu sou o pão da vida. Houve uma batalha de palavras nas fileiras dos judeus principais. A discussão degenerou. num bate-Uca deles entre si. Como pode êsse homem nos dar sua carne para comer? Jesus quer desiludi-los ainda mais. Seu propó-sito é afastar dêle todos quantos eram meros ambiciosos de pão, superfi-ciais, que nunca aceitariam a verdade, com os olhos assim vedados, e que fariam grande estrago no seu ministério. Acrescenta, pois: Se não co-merdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue não ten-des vida em vós. Com tais expressões, rematou o sermão.>> Com esta análise da movimentada situação descrita neste capítulo e dos passos pa-ralelos dos Sinóticos, podemos entender melhor a situação e interpretá-la à luz dos fatos históricos.

«Tiberíades». Herodes Antipas edificou uma cidade dêsse nome em 22 d.C. e fê-la sua capital. Como a Cidade do Salvador tomou popular-mente o nome de Bahia, proveniente da Baia de Todos os Santos, ou do estado dequele nome, assim o Mar de Galiléia, quando João escreveu, e ao Povo geral do império romano, seria mais bem conhecido pelo nome de Tiberíades. A cidade é mencionada no v. 23.

2, 5. «Uma grande multidão seguia-o...» «vinha ter com êle.» João vê as coisas como quem estava ao lado de Jesus, e do seu ponto de vista. Já circulavam os três Sinóticos, há três ou quatro décadas. João vai narrar muita coisa que êles não nos dizem e, portanto, não se esforça em repetir senão um pouco do que eles narram. Por meio das passarens paralelas (Mat. 14:13-36; Mar. 6:30-56; Luc. 9:6-15) vemos que o Quarto Evangelho omitiu os seguintes fatos: (a) que esta é a primeira df. uma

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série de retiradas da Galiléia ; (b) que os apóstolos acabavam de voltar de uma missão de ensino e operosidade miraculosa na Galiléia; (c) que gran-de número de pessoas correu pela margem da lagoa, acompanhando de lon-ge a barca em que Jesus e os doze navegavam e que elas já estavam na praia quando êles desembarcaram; (d) que a compaixão de Jesus o levou a passar o dia a ensiná-las, pois estavam como ovelhas sem pastor; (e) que chegaram a urna Betsaida na ida e a outra Betsaida na volta; (f) que o capim era, abundante e verde — no fim do inverno; (g) que o povo as-sentou-se em grupos de 50, quais canteiros de um vasto e belo jardim, da-das as cores de suas vestes sôbre a relva verde; (h) que Jesus olhou para o céu, ao dar graças; (i) que havia mulheres e crianças, («quinze mil»?) além dos cinco mil homens: (j) que Jesus despachou as multidões pela simples medida de primeiramente despachar os doze e então retirar-se à montanha para orar; (k) que Jesus curou muitos enfermos logo ao de-sembarcar, tanto na ida como na volta; (1) que Pedro andou sôbre as águas; (m) que o vento parou, quando Jesus e Pedro acabaram de andar sôbre as águas; (n) que os apóstolos adoraram a Jesus na canoa, dizendo «Tu és o Filho de Deus», mas, não assimilando o real valor do sucesso, fi• caram pasmados e «seu coração se endurecew ; (o) que a população de Genesaré espalhou a nova de sua presença, logo que Jesus desembarcou, e veio uma nova multidão de tôda aquela parte, com doentes que dese-javam até tocar-lhe a fímbria da capa ; (p) que depois da refeição mira-culosa os discípulos guardaram para si ainda uma parte dos peixes; (q) que o assunto do discurso de Jesus quando chegou à Betsaida oriental foi «o reino de Deus»; (r) que «deserto» não significa lugar sem água, pois o campo era verde e luxuriante, mas sim um lugar ermo; (s) que os apóstolos ao fim do dia tomaram a dianteira em querer que Jesus afas-tasse a turba; (t) que Jesus primeiro ordenou aos Doze, que voltavam de uma missão em que fizeram milagres, que dessem de comer à multidão; e depois agiu pessoalmente; (u) que êsses cinco pães e peixes pertenciam aos apóstolos, tendo Jesus perguntado: «Quantos pães tendes? Ide vêr»; (v) que Jesus, fugindo cansado das multidões, todavia, deu-lhes boas vin-das quando o seguiam até ao deserto; (x) que os apóstolos e Jesus nem tiveram tempo de comer — talvez tivessem fome quando partiram na ma-nhã dêsse dia memorável; (y) que a romaria foi causada inesperadamen-te porque muitos conheciam Jesus e os Doze, os reconheceram na canoa, quando partiram e iam correndo, conservando-os a vista, da praia, e ao mesmo tempo chamando por todos os lugares em que passavam novos curiosos e interessados, correndo e falando, falando e correndo e apontan-do para a canoa; (z) que outras multidões logo «ouviram» da romaria e seguiram atrás. E' um magno sucesso na vida do Salvador e os quatro evangelistas todos têm seu quinhão de fatos a contribuir, e João contribuiu muito também.

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Vejamos, pois, seus acréscimos, no fim do século, à história tríplice narrada algumas dezenas de anos antes: (a) João diz que Jesus «atraves-sou o mar da Galiléia»; (b) que a razão por que a multidão seguia eram os milagres de cura (narrados pelos Sinóticos em conexão com duas eta-pas da jornada) ; (c) que Jesus estêve algum tempo na encosta da monta-nha na manhã com os discípulos, antes da chegada das levas mais densas da multidão; (d) que ali e nessa hora, Jesus já sabia que ia fazer o mila-gre do dia, (e) que já propusera o problema a Felipe de manhã, ao ver grande leva da multidão aproximar-se; (f) que «o meninozinho dos pães» (assim está em grego) provavelmente era o auxiliar dos Doze e levava o que era a comida dêles, (combinando Mar. 6:38; Luc. 9:13 e João 6:9) e que assim jejuaram Jesus e os Doze até a hora do milagre, em lugar de co-merem esses pães e peixes para seu almoço; (g) que o assunto retorna no fim do árduo dia e André então menciona o pouco que tinham à mão; (h) que Jesus «distribuiu» a comida, se bem que sabemos que «distribuiu» como «batizou», por intermédio dos apóstolos; (i) que agora a multidão o identifica como «O PROFETA» prometido por Moisés, (Deut. 18:15) — e se é «outro» Moisés, deve ser «outro» herói para guiar o povo do cati-veiro para a liberdade e autonomia nacionais, (j) que Jesus percebeu que iam começar uma revolução, para coroá-lo rei dos judeus, e derramar sangue numa guerra contra Roma; (k) que a distância vencida em umas dez horas de remar foi de, apenas, uma légua; (1) a presença instantânea da canoa no pôrto do destino; (m) e todos os muitos eventos e o grande sermão que João preservou para os séculos futuros, em 6:22-71. O his-toriador Lucas nos informa do assunto do discurso no «deserto» — «o reino de Deus». Mas o assunto do discurso preservado por João é «a vida eterna». O «evangelho do reino» é João 3:16, é a vida eterna, outorgada gratuitamente ao crente em nosso Salvador, em virtude da morte reden• tora de Cristo na cruz. E' o nexo entre a pregação do reino que não entenderam no deserto, e a pregação da vida eterna pela fé que tampouco entenderam na sinagoga de Cafarnaum. Mas, graças a João, outras mul-tidões têm genuinamente entendido o sermão, experimentado essa fé e a vida eterna e, por sua vez, pregado o mesmo claro evangelho a outros. Bendito o acréscimo valiosíssimo que devemos à pena do discípulo amado.

3. «Subiu Jesus, porém, no meio da colina.» «Antes da turba chegar, Jesus afastou-se para o retiro dentro da montanha, junto da extremidade sulista do pequeno terreno plano, a fim de gozar um breve período de cal-ma e meditação. Mas este período foi-lhe roubado depressa, pois... ven-do a multidão que se aproximara, ficou profundamente comovido de com-paixão porque eram quais ovelhas sem pastor. Não lhes faltavam líderes religiosos profissionais mas nenhum dêles genuinamente alimentava o povo espiritualmente. Outrossim, o Batista agora desaparecera e a res-ponsabilidade pesava ainda mais sobre êle e seus apóstolos... O povo

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o seguia a fim de ver os sinais miraculosos e cada vez mais procurava ver nêle o Messias prometido. Como podia êle enfrentar da melhor maneira essa onda de entusiasmo por um Messias material, temporal? Somente operando um milagre que demonstrasse seu poder de satisfazer as necessi-dades materiais deles, e por contraste, dirigir-lhes a atenção ao caráter espiritual e sacrificial do seu reino.» (3)

David Smith opina que já existia um complot para uma revolta, a fim de pôr Jesus sôbre o trono dos Herodes, ou melhor, o antigo trono de Davi, e que os discípulos estavam na trama ou ao menos sabedores do plano. Que existia um sonho dourado de um trono temporal de Davi não duvido, e que muitos estavam calculando e medindo a capacidade de Jesus para ocupá-lo, também aceito, porém, acho duvidoso que os Doze fôssem des-leais a Jesus a tal ponto que entrassem em pactos secretos, contra a von-tade dêle, para obrigá-lo a uma carreira que êle não queria.

Tissot, na sua Vida de Cristo pelas pinturas em que expressava sua concepção reverente da história, representa a encosta dessa colina como o lugar também do milagre, os «canteiros» de 50 e 100 peregrinos sentados em roda ao longo da estrada que serpenteia para o alto onde Jesus se ha-veria de retirar, ao fim do dia. E' uma linda disposição da turba, um grupo olhando para baixo sôbre muitos outros grupos, e a estrada servindo para a distribuição. Contudo, é um tanto artificial a pintura. João parece recordar antes um prado ondulante e todos no mesmo nível, sôbre a relva. Os artistas não têm sido os mais sensatos intérpretes da Bíblia.

4. «A Páscoa, a festa dos judeus». Notai como é linguagem joani-na e os estudos sôbre ela em 2:13 ; 11 :55; 13:1, 13:28; 19:14 e sôbre 4:45.

«A Páscoa, a festa dos judeus». A. B. Bruce opina que não é mera referência cronológica mas indica que Jesus desejava apresentar-se a Is-rael como o Cordeiro pascoal. «O milagre é para fins simbólicos, didáti-cos e para provocar crise. Visava ensinar e provar, prover um texto para o sermão subseqüente. E' pedra de toque para provar o entusiasmo des-ses seguidores delirantes de Jesus Naquelas festas os espirituais veriam a divina dignidade de Cristo e sua graça salvadora, e os carnais se rego-sijariam apenas no fato de estar fartos de pão e se congratulariam com a felicidade material que haveriam de gozar sob o regime de tão poderoso Profeta e Rei. O milagre é ato de juízo, mais do que de mercê. Deu opor-tunidade para separar o trigo e a palha, os verdadeiros discípulos daque-les que estavam imbuidos de falsas esperanças.»

«A páscoa, a festa dos judeus». Notai João a explicar aos leitores gentios tanto o nome gentio da lagoa Tiberíades, como o que é uma pás-coa. E' de supor que convergiam para Cafarnaum, de tôdas as partes do

( 3) "The Christ of the Gospels", p. 262, por J. W. Shepard.

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inundo, caravanas de peregrinos em caminho para Jerusalém a fim de to-mar parte na festa. Ouvem dos milagres e correm para ver e ouvir a Jesus. A cidade está super-lotada de gente. Jesus se retira com os doze. Acabaram uma grande campanha, a terceira na província. Este dia que ia ser de folga e descanso veio a ser um dos maiores dias da história do universo. Em tôdas as nações civilizadas do mundo, João teria testemu-nhas oculares para confirmar essa narrativa. Algum judeu convertido, ou mesmo ainda incrédulo, diria: «E' verdade. Eu estava presente. Eu assisti à Páscoa naquele ano e estive em Cafarnaum naquele dia, de via-gem, e corri com a turba e comi daqueles pães e peixes e vi os milagres que Jesus fêz, na ida e na volta. E' tudo como João diz.»

E' impossível evitar pensamentos sôbre a Páscoa quando Jesus fahA de ser o pão da vida, de comer sua carne . A Páscoa, sim; o maná, sim; a redenção de Israel, sim; um reino sem rei político, sendo o Senhor o Le-gislador único e o Soberano absoluto de um povo chamado e peregrino, sim — tudo isso está no sombreado da narrativa, quando João diz que a atmosfera era da Páscoa. A morte de Jesus lança de antemão sua som-bra no coração de Cristo e, vagamente, no de seus apóstolos. Estes resis-tem. Por isso, «endureceram o coração». Queriam o que a multidão pe-diu no deserto e que Jesus recusou. Cada espectador discernente teria em seu pensamento dois cordeiros da Páscoa — e um dêles é o Cordeiro de Deus que carregava sôbre si o pecado do mundo para o Calvário.

«A festa dos judeus». Notai que, no fim do primeiro século, a Pás-coa ficou um elemento do judaísmo. Não é ainda festa cristã, e nem por sonhos há Páscoa, Semana Santa e Quaresma. Quando o cristianismo se paganizou, se romanizou, absorveu do paganismo o carnaval e o resto do seu calendário, então a Páscoa gradualmente entrou para substituir a fes-ta romana da Primavera. Mas a Páscoa nunca se fêz cristã nem se per-petuou ou se transformou na Ceia do Senhor. João nos orienta nitida-mente: a Páscoa é de fora, é «festa dos judeus». Cristo cumpriu seu sim-bolismo, é «nossa Páscoa». Sendo êle «nossa Páscoa», não precisamos to-mar emprestada a festividade nacional defunta do judaísmo. Fique com os judeus, de quem é.

«A Páscoa, a festa dos judeus». «Jesus não achou prudente sua ida a Jerusalém para assistir à Páscoa. Queria guardá-la ao seu jeito, guar-dá-la no deserto e agir no papel de hospedeiro divino ... Seus convivas se-rão uma grande turba mista de peregrinos que estão em caminho para a Páscoa... Não eram discípulos genuínos ... eram mestres disfarçados . Jesus faz que a fé seja difícil, dura. E sua maneira de fazer isso foi a exaltação de sua própria pessoa. Ele os desafia a crer nele, não em con-sideração de nenhum milagre mas em consideração de sua pessoa. Não

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crerão, nesses termos... Duro discurso não significa difícil de entender. Eles pensavam que entendiam. Duro significa mau.» (4)

5. «Tanta gente». «Uma caravana de peregrinos da Páscoa, que ou-viu outros peregrinos falar sôbre êle.» «Havia entre cinco e dez mil pes-soas.» (2) Outros calculam vinte mil pessoas. Se eram peregrinos da Pás-coa havia muitas famílias inteiras.

«Uma grandíssima multidão (6) vem vindo». Cedo de manhã. Cafar-naum já estava superlotada, de «tanta gente» em caminho para Jerusalém. Correm boatos a respeito de Jesus. De tôda a zona a crescente turba leva consigo os curiosos. Os doentes se arrastam, comovendo o terno coração daquele que tomou sôbre si nossas dores. Êle vai ao encontro deles, sacri-ficando as férias da grei.

«Donde neste mundo compraremos?» Pergunta retórica! Serve para provar um discípulo que era um tanto meticuloso e prático, uma espécie de guarda-livros da grei. Êle calcula ràpidamente os grupos e imagina, talvez, quantos outros seguem atrás e exclama: «Pães do valor de 200 de-nários não bastam.» Um denário era a paga diária de um operário. David Smith calcula que meio-denário daria três refeições, pois, a uma família de cinco pessoas. Multiplicando cinco por três e por dois e por duzentos, o guarda-livros teria 6.000 refeições, com 200 denários de pães, e olhou para as turbas cada vez mais aumentadas e achou insuficiente. De fato, o número seria duas ou três vezes seu cálculo mecânico antes de chegarem todos e realizar-se o milagre.

E' costume afirmar de Jesus uma «economia» do miraculoso. Mas muitos dos seus milagres não eram necessários, como não era mister que ele provocasse os fariseus, curando no sábado quando com poucas horas principiaria outro dia. Os discípulos eram práticos. Bastaria que Jesus enviasse em tempo as turbas para os lugares habitados na vizinhanra. Mas era preciso agir em tempo, e o tempo, no plano de Jesus, era essen-cial para o amplo ensino do dia acerca do reino, e então a grande prova do povo para ver se assimilaram a verdade. O tempo daquelas horas car-regadas de verdade e decisão valeria mais do que todos os pães na Pales-tina.

6. «Dizia... sabia». Os tempos imperfeitos do verbo grego indi-cam o vasto programa de Jesus para um dia sem par no seu ministério — o dia do zênite de sua popularidade, do auge de sua tentação, do seu maior sermão aos pecadores, da sua rejeição pela vontade de seu povo, com as conseqüências, no dia seguinte, quando a massa dos peregrinos do judaís-mo mundial o rejeitou de vez e arrastou na onda seus discípulos nominais,

(4) "Address on the Gospel of St. John", p. 158-160, por Henry S. Nash. (5) "The Expositor's Greek Testament", Vol. I, p. 747, por Marcus Dods. (6) Versão Figueiredo.

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em grande número. Nada que aconteceu apanhou o Filho de Deus de surprêsa. Ele tudo antecipava e estava pronto para cada emergência dos homens ou da natureza, agia sõzinho sem a compreensão dos Doze se bem que nunca deixou de, manter a mais doce comunhão, a mais compassiva camaradagem ou a mais oportuna intervenção divina em socorro dêles.

Este é o capítulo mais comprido de todo o Evangelho. E' o incidente na vida de Jesus a que João dedica mais espaço. E' mais amplamente nar-rado e explanado do que o próprio ato da redenção no Calvário, pois, ex-plica de antemão o Calvário. E' a teoria antes do evento, o plano antes da realização, a inteligente decisão que abrange em seu escopo todos os su-cessos imediatos e remotos dos propósitos divinos da redenção. Jesus «di-zia», educando e orientando com paciência os Doze, porque «sabia» pela unção do onisciente Espírito, a qual o constituiu «o Cristo» de Deus.

«Pondo-o a prova». Jesus nem «tentava», como traduzem algumas versões, nem «atentava» seus discípulos, como verte a antiga Bíblia de Al- I Pôr à prova é parte do processo e método de educação, desenvol- ve o caráter e enriquece a experiência. Tentar é propor um curso de ações e pensamentos que só podem ser aceitos com conseqüências más; é incentivar e acenar para a perversidade. Provar é mostrar as alternati-vas, fortifica a alma induzindo-a à escolha do bem com inteligente e san-ta rejeição do mal, visto e compreendido. Na educação dos filhos um pai sábio segue o exemplo de Jesus, pondo à prova, com sua presença con-fortadora, com medidas oportunas e graduadas de acôrdo com a capacida-de de cada um, calculadas para guiar a mente a uma nova e mais ampla fé, visão e coragem.

7. «Duzentos denários». E' o que ganhariam duzentos homens num dia de trabalho. Alguns traduzem (Montgomery, Williams, Weymouth e outros) em moeda nacional. Se nós seguíssemos os mesmos cálculos em moeda brasileira, a soma contemplada seria de oitocentos cruzeiros para cima (dependendo do lugar, das circunstâncias e da qualidade de tra-balho).

7 - 8. Eu colocaria os eventos dêsse dia tão cheio, narrados pelos Sino-ticos, aqui, entre os versículos 7 e 8. Jesus provou a Felipe de manhã, an-tes da chegada do grosso da turba. De tarde os discípulos, agora cansa-dos, famintos e talvez com medo da turba agitada, levantam de novo o assunto da alimentação do povo, antes que Jesus o mande embora para alimentar-se nas cidades. Jesus manda verificar os recursos que eles têm, lembra-lhes o dever de «dar-lhes de comer», ouve a palavra de André, e age. João comprime vastos eventos numa linha.

8. «André, o irmão de Simão Pedro». Será que eram os únicos fi-lhos de seu pai? Não é necessária essa conclusão. O artigo grego apenas apontava para aquele que é mencionado, mas não exclui outros não mencio-nados. Em Mat. 7:3 o grego diz, ao pé da letra: «Por que vês o argueiro

C. E. J. - 13

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no ôlho do irmão de ti?» Aí o artigo nem quer dizer que êle é nosso único irmão nem que êle só tem um ôlho. Paulo usa o artigo ao escrever de «a nossa irmã Febe» (Rom. 16:1). Sem dúvida, ela não era a única irmã na fé, nem dêle nem dos crentes em Roma. Em Mar. 12:19 lemos como a antiga Lei de Moisés mandava que «o irmão» do morto casasse com a viúva, mas o contexto imediatamente afirma haver seis irmãos, no caso contemplado. Paulo escreve aos Gaiatas (1:19) acerca de Tiago, «o irmão do Senhor», mas em I Cor. 9:5 êle escreve «dos irmãos do Senhor». Evi-dentemente, pois, o primeiro artigo não pode significar «o (único) irmão do Senhor». Paulo sabia de outros, como Marcos indica, até nos declinan-do seus nomes (6:3). Cuidado com afirmações ousadas! O artigo apenas indica, aponta, define aquêle que está no horizonte do contexto, mas não nega a existência de outros, se outros contextos revelam sua existência. Se o clero de Roma tivesse prestado atenção ainda que mínima a esses fa-tos evidentes, não teria insistido em que o mandamento de Jesus a Pedro: «Apascenta as minhas ovelhas», envolvesse um pastorado ànicamente dêle ou que lhe desse a superintendência de todas as ovelhas. O artigo com um substantivo não suporta êsse peso dogmático.

Temos várias menções de André e Pedro, e de Tiago e João, como se fossem os únicos filhos vivos, nas suas respectivas famílias. E' a na-tural, mas não a necessária interpretação; se houvesse, porém, fatos em sentido contrário, esclarecidos em outras Escrituras, não seria uma in-terpretação admissível da linguagem.

9. «Peixes». «Peixe sêco, artigo muito comum na Palestinn. E' como se disséssemos: duas sardinhas.» (7)

10. «Obrigai a gente a sentar-se.» (1) Para que não houvesse de-sordens, uns machucando outros para alcançá-lo, ferindo os fracos e pe-quenos; (2) para que entendessem que iam ter uma refeição adequada; não apenas um bocado para cada um. A obediência provaria que tinham U. Confiavam em Jesus.» (8)

«Homens». E' o têrmo genérico — sères humanos. Mateus (14:21) fala de 5.000 varões (palavra que expressa o sexo), além de mulheres e crianças. Westcott vê no têrmo de João seu conhecimento da narrativa de Mateus.

«Os varões se sentaram.» Ao usar essa palavra, reservada para o sexo masculino, João mostra saber da presença das mulheres e crianças que os Sinóticos mencionam. Mas êle se lembra também que Jesus disse: «Fazei a gente sentar-se» — os homens no sentido geral, homens e mu-lheres.

11. «Deu graças.» E' o verbo congênere da palavra que hoje em dia

(7) "Flistorical Geography of the Holy Land", p. 454, Dor Sir George Adam Smith. (8) "The Expositor's Greek Testament", Vol. I, p. 748, por Marcus Dods.

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se traduz eucaristia. Mas nem significa nem sugere coisa alguma de as-pecto «eucarístico» no milagre. Mostra que Jesus dava graças sempre antes de comer. Nem se limita às ocasiões de refeições sua ação de gra-ças. Vêde 11:41, por exemplo. E' o têrmo usado a propósito da grati-dão do samaritano curado da lepra, Luc. 17:16, e até da orgulhosa ação de graças do fariseu que disse: «Graças te dou que não sou como os de-mais homens», Luc. 18:11. Só as vítimas de uma idéia fixa enxergarão outro sentido nesse verbo, pois nunca teve outro, em parte nenhuma do Novo Testamento. O desvirtuamento do têrmo é parte da caiação clerical do cristianismo puro de Cristo.

12. «Saciados». Na refeição judaica não havia guardanapos. O mio-lo do pão servia para limpar as mãos e era freqüentemente jogado de-baixo da mesa aos cachorrinhos de estimação da família. E' a êsse cos-tume que a siro-fenícia, se referia quando disse: «Assim é, Senhor; mas até os cachorrinhos debaixo da mesa comem as migalhas que as crianças deixam», Mar. 7:28. Lá no deserto haveria muito desse pão, jogado fera depois de servir de guardanapo para limpar dedos sujos com o peixe ser-vido. Mas não foram êsses pedaços que Jesus mandou guardar. Eram porções que Cristo criou e partiu em tan)anha abundância, que sobraram doze cestos de pão que ninguém havia tocado. Isso os discípulos colhe-riam, guardariam e comeriam em outro dia. Alguém pensa que foi quan-do os discípulos fizeram um lanche no dia seguinte, comendo pão .:' 7,sse cestos sem lavar as mãos, depois de desembarcar da noite em alto mar, que os fariseus e escribas desairosamente falaram do fato de que os Doze comiam sem lavar as mãos. Não sei. Mateus e Marcos, de fato, historiam o caso logo em seguida, Mat. 15:1, 2; Mar. 7:1, 2. Seria um sucesso bem natural.

Haviam se saciado dos peixes também. Alguns céticos, e os tímidos que por êles são fàcilmente perturbados, estranham o fato de que nosso Senhor comeu peixe com seus discípulos depois de ressuscitado, Luc. 24: 43. Mas qual é a dificuldade? Se seu corpo espiritual se ajustava à nossa vida material, visível e sensivelmente, ao ponto de realizar os fenô-menos de andar, falar, e pedir verificação das cicatrizes do Calvário, para provar aos seus amados a realidade da sua ressurreição, que dificuldade haveria em seu ato de comer peixe? Aquêle que serviu pela obra de suas mãos criadoras milhares de porções de peixes, e peixe cozido, para as tur-bas no deserto, se sentiria embaraçado em comer peixe no corpo de sua glória ou em dispor do peixe assim comido quando logo depois de tor-oar-se invisível? A objeção só é sensata para quem negar em Jesus uma natureza cujo alcance fosse além de nosso saber ou entender. Aquêle que fez êsses milhares de peixes, não podia desfazer um, quando seu corpo espiritual tomou seu aspecto invisível? As objeções quase sempre surgem por não serem tomados a sério os fatos que a narrativa evangélica afirma.

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Com Deus nada é imposswel. E Jesus é Deus. E sua encarnação, tanto an-tes como depois da ressurreição, tinha forçosamente de agir no terreno do físico e do material, diante dos olhos de testemunhas, para provar a rea-lidade da ressurreição, embora a ascensão bem depressa viesse inaugurar na vida do Salvador a atividade celeste do corpo da sua glória no qual nós o veremos face à face. Não é de admirar que os seus discípulos, que debatiam entre si esses mesmos problemas muito antes do dia dos céticos modernistas, Jesus lhes advertisse em solene queixa contra sua incredu-lidade dizendo: «ó homens de pouca fé.»

«Doze cestos de porções». Jesus era higiênico e ordeiro. Correr pelo ce-dm e colhêr migalhas, pedacinhos e restinhos de comida não seria de-cente e não é essa a idéia do texto. Ele dera aos apóstolos mãos cheias de pão, outras de peixe e êles o distribuiram, em porções inúmeras, a cada um dos convivas do Mestre. Sobrou. Era pão limpo e peixe sêco, fácil de preservação, e cada apóstolo teria um cesto para si, como «gratificação» aos «garçons» voluntários do grande banquete. Não foi por falta de vi-veres, pois, que Jesus se recusou a alimentar no dia seguinte a multidão, que estava com apetite de mais pães e peixes. Desta vez estavam em Cafarnaum. Bem se podiam alimentar. Jesus era generoso, quando a generosidade tinha seu lugar, mas nunca se deixou explorar. Sua mansi-dão não se confunde com a moleza.

13. «Restaram aos saciados». Tudo foi preparado para a multidão. Já não quiseram mais. Serviria para os doze, depois da longa noite de luta com os remos que haveria de seguir, e ainda depois.

«Fragmentos». O Padre Rohden segue a idéia, impensada e indecen-te, de que Jesus mandou coletar os pedacinhos de pão jogados ao chão pela turba. A palavra grega se refere, não a restinhos, mas às porções quebradas originalmente por Jesus para distribuição. Nada mais incrí-vel do que estas palavras do eminente tradutor do Novo Testamento: «Co-ligiram, pois, os pedaços espalhados pela grama e encheram nada menos de doze cestos. Quer dizer que, depois de saciados aquêles milhares de homens, restou ao menos doze vezes mais do que existia ao princípio.» (9) Não tanto. E o que restou consistia em porções limpas, não distribuídas.

«Doze cestos». Segue em Mateus (15:2) a censura dos fariseus con-tra os discípulos por comerem sem lavar as mãos. Swete pensa que a oca-sião foi quando os discípulos comeram dos doze cestos, depois da noite no bote sare o Mar de Galiléia, antes de chegar em casa ou lavar as mãos. (10)

14. «O Profeta». Alguns dizem que os escribas distinguiam entre o «Profeta» que Moisés prometera, Deut. 18:15, 18, e o Messias. E' bem possível. Mas não precisamos supor que Moisés ficasse reduzido às pro-porções da incredulidade dos escribas e nem acompanharemos essa incre-

(9) "Jesus Nazareno", p. 192. (10) "The Pharisees and Jesus", p. 93. por A. T. Robertson.

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dulidade. Fr. Damião Klein opina que não é «possível dizer, com certeza, que idéia êles formavam desse profeta>. (11) Ficariam com êsse Vulto pro-fético em suas mentes no dia seguinte, e exigiriam que Jesus lhes desse um sinal do céu, algo comparável com a dádiva diária do maná, e que, naturalmente, serviria muito bem na campanha revolucionária contra Ro-ma, como o maná servira a Israel na longa marcha através do deserto. Se Jesus não pudesse produzir credenciais semelhantes às de Moisés, não o aceitariam corno «o Profeta» que Moisés prometera. A incerteza na men-te dêles em nada justifica incerteza semelhante em nossa mente. A Ep. aos Hebreus desenvolve o paralelo e as diferenças entre o profeta Moisés e o Messias Jesus, Heb. III. Pelo menos êles discerniram no gracioso Mes-tre do deserto algo parecido com Moisés, mas não discerniam a majestade ou o espírito ou os motivos ou os métodos de sua obra como Profeta, Sa-cerdote e Rei do seu povo.

«Êste é o Profeta.» O Dr. A. T. Robertson pensava que os fariseus teriam aceitado Jesus como Messias, precisamente como aceitaram Bar-Cochba (Filho de uma Estrêla) cem anos mais tarde, se Jesus houvesse consentido em ser um messias político. (12)

15. «Arrebatá-lo». E' o mesmo verbo que descreve, em 10:12, a ação do lobo no meio das ovelhas. E, em Fil. 2:12, lemos que Jesus recusou agarrar-se à glória da sua deidade antes da encarnação, mas a renunciou para nos redimir mediante sua paixão vicária. O uso de tal verbo mostra a seriedade da crise para a qual João dedica mais espaço no seu Evange-lho do que para qualquer outro evento. A pressão daqueles que queriam usar o renome e a popularidade de Jesus era medonha; e não há ideolo-gia, mesmo hoje em dia, que não queira igualmente roubar e explorar, em seu interêsse próprio, a autoridade de Jesus Cristo sôbre a consciência humana. Um grita que êle era «o primeiro comunista». O espírita funda lojas esotéricas em seu nome. Outros o chamam proletário. E muitos movimentos nominalmente cristãos apenas exploram o nome de Jesus para impor doutrinas e tiranias que são anticristãs. «Arrebatar» Jesus, explorando seu nome para fins partidários que Jesus detestava, e doutri-nas que êle condenava, é manobra a que devemos estar bem acostumados e prevenir-nos. Jesus teve a força de vontade para resistir e, depois do pôr do sol, ei-lo «no meio da colina, sozinho». Mas era «sozinho» com Deus, vencedor na luta para manter-se leal a Deus. De novo o Tentador o dei-xou por um pouco.

«Retirou-se novamente para o monte, ele só.» O propósito do mila-gre era apresentar Jesus ao novo Israel como Cordeiro pascoal, seu pão da vida, a água da sua salvação, seu maná no deserto, seu Profeta,

(11) "A Versão Baiana" do Novo Testamento, Vol. I, p. 24Z. (12) "The Pharisees and Jesus", p. 41.

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seu Rei. Êles vagamente perceberam nele o Profeta e o Rei, mas não perceberam nem o sacrifício expiatório, nem o sacerdote ofertante que êle é para a fé. E suas idéias a respeito dele na carreira messiânica de Pro-feta e Rei eram políticas, carnais, mundanas, nacionalistas. Jesus tinha de tomar medidas enérgicas. Manda os discípulos à praia para embar-carem. Êles não teriam firmeza para resistir à turba; suas cabeças fica-riam tontas com a glória do momento; seriam mais embaraço que auxílio, na crise. Jesus some-se na montanha e o perigo passa.

16. «Crepúsculo». E' uma noite que para Jesus é prelúdio do Getsê-mane. A tempestade é para os discípuio, um aviso da sua impotência sem Cristo e uma preparação dos seus espíritos para a tempestade a levantar-se na pcpulação incrédula e aborrecida, nesse novo dia que raiava.

«Seus discípulos... iam caminhando.» João dispõe de Jesus primei-ro, e depois volta sua atenção para os doze. Não é a ordem cronológica dos sucessos, mas é natural que êle seguisse descrevendo a noite dos discí-pulos, uma vez havendo falado do seu embarque à bôca da noite.

17. «Viera a escuridão ... Jesus ainda não lhes chegara.» A lingua-gem é dramática, comovedora. Que fim para um dia que ia ser de festa espiritual, retiro para descanso dos nervos, horas felizes com Jesus! Não é mister que demos sentido metafél-;co à noite, à luta com as ondas e o vento, ao terror, ao sentimento de impotência do pequeno grupo, depois de um dia de tão grande poder. Tudo fazia parte da educação dos doze. Deus prova nosso espírito também; e com surpresas igualmente desagra-dáveis, apfs vitórias sublimes.

Diz o Padre Alexandrino Monteiro, S.S. : «E vendo-os labutando em remar... Da terra, Jesus assistia a luta de seus apóstolos com a fúria dos elementos. E, não lhe sofrendo mais o coração deixá-los sós em seu trabalho, antes de amanhecer vai ter com eles caminhando sôbre as águas a pé enxuto. O' maravilhal... Em meio de nossas tribulações não tema-mos. Jesus não tarda: ele vem sôbre o mar agitado de nossa aflição.» (13)

18. «Uma grande ventania». O mesmo autor, firmando-se no relató-rio dos Sinóticos, nos declara : «Jesus obrigou os apóstolos a embarcar — coegit — pois, tento lhes custava obedecer nestas circunstâncias — partir sem levar consigo o seu divino Mestre ; ao cair já da tarde; com a pre-visão de uma tempestade, pois, o céu estava escuro pelas nuvens, o vento soprava ponteiro e o mar principiava a agitar-se. Mas Jesus manda e é obedecido; os apóstolos entram na barca, e, apesar do temor e desconfian-ça, remam com vigor.» (14)

19. «Uma légua». «A distância de um lugar na margem da lagoa para

(13) "Reflexões Evangélicas", p. 343. (14) "Idem, p. 343.

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o outro era de duas léguas. Remaram, até aí, a metade da distância.» (15)

«Grande ventania». Fenômeno repentino e comum, como testificam todos que conhecem a Terra Santa.

«Jesus... chegando». Evidentemente sairam esperando tomar Jesus a bordo mais tarde em qualquer ponto na praia. Talvez êles esperassem que êle iria despedir a multidão dentro de pouco tempo, mas ainda ficou gente na vizinhança no dia seguinte. Jesus teve de esconder-se, mas, ha-vendo prometido juntar-se aos doze, fê-lo andando sôbre o mar até onde se achavam.

20. «Deixai o vosso pavor.» Como narrei, no meu livro, «Os Manda-mentos de Jesus», ao colecionar os 489 mandamentos de Jesus, que se acham nos Evangelhos, tive grande ânsia de verificar qual dos seus manda-mentos êle mais repetia. E verifiquei, que é: «Não temas.» Eles já es-tavam tomados de mêdo. Portanto, êle usa o tempo do verbo que proíbe continuarem com o espanto. «Não continueis em vosso pavor.» No pano-rama da vida o inimigo número um é o mêdo. E' o que mais impossibilita o progresso e a espiritualidade. Jesus cuidou mais de banir o mêdo do que de qualquer outro mal da vida humana. Distinguia, pois, entre o mêdo real, de Deus, que é o princípio da sabedoria, e o mero pavor de sofrimen-tos humanos no caminho do dever, o qual êle proíbe. Há, porém, um único segrêdo do êxito na sua campanha contra o mêdo. E' que como pre-missa êle nos faz avaliar sua presença: «Sou eu.» Dai o mal de locali-zar a Presença Real de Jesus em um objeto material, como a hóstia, em lugar de generalizar essa certeza confortadora: «Eis que eu estou con-vosco todos os dias» — e através de todo o dia por todos os dias, como o grego indica. A Presença pode banir o mêdo.

«Sou eu.» Vêde a nota sôbre 8:58.

21. «Imediatamente chegou à praia para onde rumavam.» E' mila-gre semelhante ao de Atos 8:39 — «O Espírito do Senhor arrebatou a Fi-lipe.» Vêde as notas do Dr. Shepard sôbre o v. 1. Não vejo o motivo da tradução do Padre Rohden: «Queriam recebê-lo no barco — mas logo o barco tocou na praia que demandavam.» O grego original não tem essa idéia adversativa. E, sem a mínima possibilidade de dúvida, Jesus «subiu para junto dêles no barco», (Versão de Watson e Allen, na sua «Harmonia dos Evangelhos»). Os mesmos tradutores aqui vertem a passagem: «Então êles de boamente o receberam no barco.»

«Imediatamente». E' dia e noite de milagre, dia memorável de uma grande decisão que ainda tem de ser finalmente confirmada na sinagoga

(15) "Word Pictutes in the New Testament", Vol. V, p. 101, por A. T. Robertson.

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perante os líderes da mesma multidão. Semente os doze estarão com êle no fim do dia. E lhes parecerá que a esperança pereceu. Portanto, há ra-zão para o milagre . Eles têm de ver que Jesus é divino ou o abandonarão também. Os milagres dos pães, de andar Jesus sôbre as águas e da che-gada instantânea do barco ao outro lado da lagoa são de uma peça, de um propósito. Revelam o Messias, e Pedro dirá ao fim do dia: «Tu tens as palavras da vida eterna e nós sabemos que és o Santo de Deus.» Jesus cui-dou de que soubessem isso com absoluta certeza. Não há falta de «econo-mia divina» no miraculoso aqui. Os sinais são abundantes em proporção ao significado e às dificuldades de crer.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO

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O Magno Sermão Provocador

(Capítulo VI, versículos 22 a 51)

22 Na manhã seguinte, a multidão, que ficara e ainda continuava ao outro lado do mar, percebeu que não houvera outro barquinho af senão um, que Jesus não entrara com os seus discípulos dentro desse barquinho mas que es-

23 tes haviam partido 'bainho!. I Vieram, porém, de Tiberíades barcos para lá perto do lugar onde comeram o pão, quando o Senhor havia dado graças.

24 1 Portanto, quando a multidão viu que Jesus não

Turba persistente e estava ali, nem os seus discípulos, eles por sua vez

revolucionária entraram nos barquinhos e foram para Cafarnaum, 25 buscando a Jesus. I E quando o acharam ao ou-

tro lado do mar, disseram-lhe: "O' Rabbi, estás por aqui ! ? Quando elle- 26

gaste ?" I Jesus den-lhes a seguinte resposta: "Uma verdade bem urgente

vos digo : Andais a minha procura, não porque vistes sinais miraculosos, mas 27 porque comestes dos pães e vos saciastes. Deixai de tanto esforço pela

comida perecível; antes esforçai-vos pela comida que é duradoura para vida eterna, a qual o Filho do homem vos dará; porque a este o Pai divino au-

21 tenticou." 1 Então, enfrentando-o, tornaram: "Que é que habitualmente vamos fazer para que continuamente ponhamos em

29 E' uma série de atos prática os atos que Deus exige?" 1 Jesus lhes deu

que salva, ou o esta resposta: "O ato que Deus exige é este, que 31 ato de crer em sejais crentes eni quem ele enviou." I Disseram-

Jesus?

lhes, pois: "Então qual é o sinal que tu repetes con- tinuamente, para que já o vejamos e nos tornemos

31 crentes em ti? Que praticas? 1 Nossos pais comeram o maná no deserto,

32 como a Escritura diz: Pão caído do céu deu-lhes a comer." I Jesus em resposta lhes declarou: "Verdade mui solene vos afirmo, Moisés não foi

o doador que vos outorga o pão do céu, mas sim

Pão para o espírito meu Pai vos está oferecendo o pão real que saiu 33 é a Encarnação e a do céu. I Porque o pão de Deus é aquêle que

Paixão de Cristo do céu vem descendo e dando sua vida ao mundo." 34 I Então, enfrentando-o, disseram: "Em tôdas as

35 ocasiões, Senhor, dá-nos de pronto esse pão." i Jesus lhes afirmou: "Sou

eu o pão da vida. Aquele que vem habitualmente, face a face, comigo abso-lutamente enrica sentirá fome, e o crente em mim não sentirá sêde, nunca

36 jamais. I Todavia, já vos informei que tanto me vistes, e ainda me estais 37 vendo, como continuais a não ser crentes. 1 Tudo quanto o Pai me vai dando

virá para íntima comunhão comigo, e aquêle que assim se aproxima de mim 38

face a face nunca, absolutamente nunca, o lançarei fora, I porque desci do céu e aqui estou, não para que eu fique fazendo minha vontade mas sim

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202 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

39 a vontade daquele que me enviou. 1 Ora, a vontade daquele que me en- viou é esta: seu propósito, quanto a tudo que ele me deu como doação permanente, é que eu nada perca mas que o ressuscite no último dia.

40 1 Pois, o querer do meu Pai é isto: que todo aquêle que considera atenta- mente ao Filho e fica sendo um crente nele, possua vida eterna, e eu mesmo

41 o levantarei do túmulo no dia final." Então os judeus murmuravam a seu respeito porque ele disse: "Sou

42 en o pão que baixou do céu." 1 E diziam: "Não é este Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe nós outros conhecemos;

Queixas sôbre a como é que ele vem dizendo agora: Tenho descido 43 Procedência Celes- do céu?" I Em resposta Jesus lhes ordenou: "Dei-

tial de Jesus xai dessas queixas que estais dizendo uns aos ou- 44 tros. 1 Ninguém pode vir unir-se a mim se o Pai

45 que me enviou não o puxar; e eu o ressuscitarei no ultimo dia. Está em vigor o que foi escrito nas Escrituras proféticas: E serão todos doutrinados por Deus. Todo aquele que após íntima associação com o Pai escutou e che-

46 gou a aprender, vem para mim. I Não é que alguém tenha visto ao Pai senão aquêle que está aqui, vindo do lado de Deus. E' este que viu e vê

47 ao Pai. I Mui solenemente vos reafirmo: O crente já possui vida eterna. 48-49 1 Sou Eu o pão da mesma vida. I Os vossos pais comeram no deserto o

50 maná e, todavia, morreram. 1 Este é o pão que vem descendo do céu para 51 que qualquer um coma dele e não morra. I Eu mesmo sou o pão vivo

que desceu do céu. Se alguém comer de vez deste pão, viverá eternamen-te; e o pão que eu darei em beneficio da vida do mundo é a minha carne."

22 . «A multidão .. . percebeu . , ..D Veremos, a seguir, uma porção de evidência da psicologia da turba. E, nos raciocínios e na exploração e na caiação do incidente, veremos os processos dessa mesma psico7ogia e 'Lógi-ca hoje em dia. Não devia ter ficado aí multidão alguma, pois Jesus «obri-gou» os discípulos a partir e «despediu» a multidão, à tardinha do dia an-terior, Mat. 14:22, 23. E' vontade própria, a mesma vontade revolucioná-ria que o quis «arrebatar» e fazê-lo rei, que conservava a multidão ali. Não é, pois, uma demora lícita ou de boas intenções e partem atrás de Jesus ainda com intuitos pouco recomendáveis.

«Ficara ao outro lado do mar.» Passaram a noite sob o céu, à incle-mência da tempestade. Ainda estão pensando em Jesus, ambiciosos do que êle poderia lhes dar, ser e fazer em seu benefício. Seus nervos estão um tanto tensos no dia seguinte. Tomarão uma decisão final contra Jesus an-tes do anoitecer, que, ao romper do dia nem por sonhos admitiriam ser possível.

23. «Depois do Senhor ter dado graças.» Por causa da exploração incessante dessa Escritura através dos séculos, em benefício do dogma da

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transubstanciação, no rito romanista da missa, precisamos de um esforço para remover a caiação pesada que esconde uma palavra boa e singela da linguagem grega do Novo Testamento. Temos no Novo Testamento a pa-lavra eucharistia quinze vêzes. Em nenhuma delas é o nome bíblico da Ceia do Senhor. Significa ação de graças, como se pode ver em Atos 24:3; I Cor. 14:16; II Cor. 4:15; 9:11, 12; Eles. 5:4; Fil. 4:6; Col. 2:7; 4.2; I Tess. 3:9; I Tim. 2:1 ; 4:3, 4; Apoc. 4:9; 7:12. O leitor pode verificar para si que nem eucharistia é nome bíblico da Ceia do Senhor, nem mesmo o têrmo se refere à Ceia, nenhuma vez na Bíblia. E' uma invencionice ten-denciosa das tradições dos homens.

O verbo congênere se usa quarenta vêzes no Novo Testamento, e o ad-jetivo («sede agradecidos») uma vez. O verbo significa dar graças. Visto que Jesus deu graças duas vêzes durante a Ceia, é natural usar o verbo na narrativa, e êle se usa meia dúzia de vêzes, mais ou menos, nas narrativas da Ceia. Mas é impossível caiar por cima dêsse singelo vocabulário qual-quer superstição sacramentalista a não ser que o povo assim explorado seja ignorante da Bíblia ou arrastado pela submissão cega ao seu clero.

Ora, é uma arbitrariedade medonha associar a Ceia do Senhor com êste versículo, pelo simples fato de João lembrar o memorável evento da alimentação dêsses milhares por Jesus, «depois de dar graças» como era sua praxe em todas as refeições. Não há conexão nenhuma, por mais re-mota que seja. Furtar a palavra grega eucharistia de seu uso normal, ciar-lhe um valor completamente estranho ao Novo Testamento, e fazer passar o falso significado ao verbo dar graças é o zênite da perversão da linguagem da fé.

«Quando o Senhor havia dado graças». «O Senhor» deu graças ao Senhor. Deus é grato a Deus. E' a comunhão e o intercâmbio da Trinda-de, a dependência humana do «Deus unigênito» e sua ação de graças por-que o Pai lhe atendeu, a despeito de sua humilhação. Talvez houvesse algo notável no próprio incidente ou na linguagem com que Jesus sacou dos recursos do Pai. Como vemos no caso de Lázaro, êle tinha certeza de antemão. «Pai, graças te dou que me ouviste. Eu sabia que sempre me ouves, mas assim falei por causa desta multidão que me cerca, a fim de crerem que tu me enviaste», João 4:41, 42. Não há nenhum sacramen-talismo, ou menção de sacramento algum, quer no Cap. VI, quer no Cap. XI. Em ambos, a ação de graças do Senhor, ao Senhor, é notável, me-morável, inolvidável. Evidentemente a solene e majestosa cena perma-nece na mente da turba. Diziam uns aos outros, e aos que chegavam: «Aqui é que ele deu graças por poder nos alimentar, em majestade ine-fável.» A ação de graças impressionou, naquele que estava cheio de gra-ça e verdade. E ao servo convém estar como seu Senhor.

24. «A multidão». E' a turba de peregrinos para a Páscoa e os curiosos que arrastava. Não eram tão famintos! Andavam prevenidos

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para a longa jornada. Ainda estavam com seu propósito revolucionário. E' por isso que Jesus teria de repudiá-los de novo, de maneira tão brusca, de modo a deixá-1os tão desiludidos para sempre. Não é mera fome ou cobiça que os anima. E' a paixão revolucionária.

«Buscando a Jesus». «Seu motivo era duplo, além da curiosidade ex-planada no v. 22. Evidentemente não tinha abandonado o impulso da tarde anterior para fazer de Jesus seu rei (6:15) e esperavam de Jesus outra refeição abundante, interesse de que ele os acusou (6:26).» (1)

25. «Acharam». Foi uma prolongada busca (tempo presente do verbo) e um encontro repentino (aoristo) .

«Quando chegaste?» Ah! se eles tão sômente soubessem os fatos mi-raculosos daquela chegada! Mas Jesus não os informa. A pergunta é ten-denciosa, visa apenas introduzir o assunto que querem abordar. Jesus os antecipa e o abre de modo chocante e revelador.

«O' Rabi, está por aqui!? Quando chegaste?» «Tinham visto na véspera que, havendo uma só barca, Jesus não acompanhara os discí-pulos quando a tomaram, e sabiam que por terra era impossível vencer a distância em tão pouco tempo; e assim, encontrando a Jesus já do outro lado, compreendiam que só podia estar ali por um milagre.» (2) Os barcos vieram de Tiberíades, de bem longe. Chegaram na tem-pestade perto do lugar do milagre.

26. «Amém, amém, vos digo.» E' um dos momentos solenes do duplo amém. Vêde as notas sobre 5:24. Esse aviso é trágico, como aqueles com que Jesus advertiu a Judas e aos doze, da traição, e a Pedro da sua negação.

A perifrase de Riggs é: «Vós não me buscais por terdes visto, nos meus feitos maravilhosos, vislumbres da revelação espiritual do verda-deiro significado de minha pessoa e obra redentora. Vosso motivo é antes o gozo dos poucos pães, a satisfação da fome saciada e o conse-qüente cumprimento de vossas espectativas messiânicas. Eis a razão por que seguistes daqui para Betsaida de Júlia, para o deserto além, e na volta para aqui. Eis a razão por que vindes atrás de mim de cidade em cidade, de província em província. Ora, não gasteis vossas energias assim, pensando Unicamente naquilo que perece.»

«Porque comestes dos pães e vos saciastes». Eles queriam o que o outro Israel tinha tido no deserto — pão fácil, peixe de graça, e ainda mais: a cubiça dos apetitosos alimentos da escravatura do mundo. Seus pais antigos, porém, murmuraram contra esse «pão do céu», dizendo: «Quem nos dará carne a comer? Lembramo-nos do peixe, que de graça (graça dos escravocratas a quem serviam vilmente) comíamos no Egito,

(1) Word Pictures in the New Testarnent", Vol. V, p. 103, por A. T. Robertson. (2) Novo Testamento com notas, Versão Franciscana (de Dr. Tose Basilio Pereira) Vol.

I, pág. 338.

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dos pepinos, dos melões, das cebolas e dos alhos. Agora a nossa alma está sêca. (Parecem com o rico tolo que na noite da morte convidou a sua alma a comer). Nenhuma coisa há! Os nossos olhos não vêem senão maná» (Núm. 11:5). O dia cresce. Fizeram a viagem de vol-ta. Estão cansados. Não há mais ensino e turbas, não há mais mila-gre e impressionantes ações de graças. A fome toma a dianteira, «o Profeta» já não vale tanto. A não ser — quem sabe? — que êle faça outro milagre maior, esta vez proveniente, a olhos vistos, do próprio céu. Jesus os desilude incontinente. Não há mais pão. Ninguém prec-sava anunciar a Jesus os pensamentos dêles. Ele viu a fotografia de suas mentes, refletida no espelho de seu discernimento messiânico do homem, como viu o passado sexual da mulher samaritana num relance. Viu, achou repugnante, tirou a máscara deles e deixou evidente o mau motivo que os animava. Jesus é o juiz dos motivos.

«Ficastes fartos.» «Do verbo que significa comer capim, ou comer qualquer coisa, saciar a fome. Estavam mais interessados em estôma-gos famintos que em almas famintas. Foi uma repreensão áspera mas merecida.» (2-A)

«Vos saciastes.» «Verbo usado com referências ao feno dado aos animais, e aplicado aos homens ~ente em sentido pejorativo.» (2-B)

26-54. Riggs vê aqui três discursos em três lugares diferentes: A. 6:26-40. B. 6:41-51. C. 6:52-58. 27. «Esforçai-vos pela comida que é duradoura para a vida eter-

na.» Este verbo merece estudo especial da nossa parte. Traduzimos no v. 28: «continuamente ponhamos em prática», e, no v. 30, «práticas». E, com a partícula negativa, traduzimos logo antes, neste mesmo versí-culo: «Deixai de tanto esfôrço.» Há duas qualidades de comida. Uma é o pão natural. Foram a pé ao deserto, ali passaram a noite, voltaram em canoa e a pé hoje, e conseguiram e estavam determinados ainda a conseguir... pães. Esse esfôrço, para conseguir a posse dêsse objetivo, Jesus condenou. Ele exigiu outro esfôrço com o objetivo de outro pão. O outro pão era êle, o Cristo crucificado, pois comer a carne e beber o sangue é linguagem do Calvário que êle prevê e profetiza como a espe-rança eterna do homem pecador. O outro esfôrço era crer. Pois no v. 29 lemos: «O ato (a obra) que Deus exige é este, que sejais crentes em quem êle enviou.» E' o esfôrço exigido — crer. Tal esfôrço o pobre pai do menino endemoninhado exerceu quando exclamou: «Eu creio Senhor, ajuda minha incredulidade.» Muitas vezes a fé é esfôrço supremo, ato da vontade resoluta, forte vitória sôbre a tentação, resistência brava à sedução do mundo, epopéia da alma, isolada dos homens, mas sozinha com Deus na firmeza de uma escolha deliberada. A fé é ativa, mas sua

(2-A) "Word Pictures in the Neto Testament", Vol. V, p. 104, por A. T. Robertson. (2_B) "The Expositor's Greek Testament", Vol. 1, p. 751, por Mateus Doda.

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atividade é no terreno do espírito, trava relações pessoais com Jesus, toma atitude a seu respeito, faz decisões momentosas, rejeita uma alter-nativa, opta por outra. Às vêzes, é a luta suprema da mente, o Getsê-mane da carne, uma verdadeira ressurreição com Cristo, depois de ser crucificado com Cristo. Não é fácil ou frívola a fé genuína. E' esfôrço do espírito — «não de obras, para que ninguém se glorie». A fé é obra e graça do Espírito Santo na alma que nasce de cima, mas também pode ter suas dores de parto.

Passagens paralelas, são: «Porfiai em entrar pela porta estreita, porque vos digo quê muitos procurarão entrar e :Ião podem», Luc. 13:24; Mat. 7:13-14 («estreita é a porta que conduz à vida, e poucos são os que acertam com ela»). A angústia da alma é mais em «acertar» com a por-ta, do que em andar na vereda. A vida em que se entra é vida eterna. O «acertar» é o «esforçai-vos». A comida que se come pela fé é «duradou-ra para a vida eterna». Claramente a luta está no terreno espiritual, — o esfôrço é crer; «a obra» é fé; a porta é acertar o Caminho logo na entrada, e êsse Caminho é Cristo. Comer é crer. Beber é crer.

Fil. 2:12, «efetuai a vossa salvação» o outro verbo, diferente e mais forte. Paulo exclama: «A salvação já é vossa. Desenve'vei suas po-tencialidades, explorai suas possibilidades, realizai seus objetivos.» Je-sus, porém, fala a homens incrédulos, incentivando-os ao esfôrço decisivo da fé salvadora. Paulo fala a homens salvos, incentivando-os ao esfôr-ço contínuo para conseguir que a salvação seja frutífera e eficaz no má-ximo grau. A fé é o nascer, a vida eterna é o perene viver; e é um es-fôrço crer, e será um esfôrço perseverar em Cristo na vida eterna. Mas o esfôrço é no terreno do espírito, não na busca de pão ou maná ou hós-tia ou qualquer outro bem material, fisicamente apropriado. Para a alma escravizada pelo sacramentalismo, crer nisso, largar a fé no Jesus-Hóstia, nascer com confiança salvadora no Cristo vivo e invisível, é uma luta. Mas vale a pena. . «Esforçai-vos pela comida que é duradou-ra para vida eterna.»

«Comida duradoura». Fisicamente, o jeito de ter comida «duradou-ra» e não comê-la, mas guardá-la intacta. Mas quem come Cristo alcan-ça o sobrenatural, o eterno. Maravilha de maravilhas! Come seu Pão da vida e ainda o tem. Ainda tem o Pão e já tem a vida eterna. E' assim que se unem e harmonizam o aspecto de salvação de vez e sem fim, instantânea e eterna, um nascimento de cima e urna vida sobrena-tural, manancial da graça e rio da vida. O Filho «dará» «comida dura-doura», «vida eterna». Dá de vez. Dura para sempre. O evangelho ver-dadeiro abrange ambos êsses elementos, em João 3:16 e em tôda a Es. critura.

«Autenticou». O sêlo divino da finalidade da revelação foi estam-pado sôbre Cristo na sua encarnação redentora. Deus deu absoluta cer-teza no seu Filho. Todos os recursos divinos seriam incapazes de nos

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autenticar melhor um Messias e Redentor. A fé está satisfeita com Jesus. A doutrina cristã do «selo» é explanada na discussão de 3:33.

«O Filho do homem». «Ele não se chama «O Profeta, como êles o descreviam ontem, porque provocaria expectativa errada; ao chamar-se Filho do homem, porém, êle indicou sua simpatia para com tôdas as ne-cessidades humanas e ao mesmo tempo indicava aos iniciados que êle se considerava o Messias.» (3)

«Selado». «Que Deus tenha selado é ensino raro no Novo Testa-mento (II Cor. 1:22; Efés. 1:13; 4:30) . Não é claro a que fato se re-fere esta passagem em João, em que Deus tenha pôsto o sêlo de seu apoio sôbre o Filho. Isso foi feito na ocasião de seu batismo quando o Espírito Santo veio pousar sôbre êle e o Pai lhe falou. Compare-se 5:37.» (4) O Dr. C. B. Williams traduz: «Afadigai-vos pela comida que dure até à vida eterna, a qual o Filho do homem vos dará, porque Deus, o Pai, lhe tem dado autoridade para assim agir.»

«Permanece». Vêde a nota sôbre o v. 56. 28. «Que havemos de praticar habitualmente a fim de que con-

tinuamente realizemos as obras de Deus?» (A T. Eobertson). «Que havemos de fazer?» «Quando os judeus perguntaram a Jesus,

«Que havemos de fazer?», o tempo indica um curso prolongado de re-ligiosidade. Que curso extenso de boca obras praticaremos? A resposta de Jesus muda de tempo. A obra de Deus é esta que creiais de vez em quem êle enviou. Não uma longa religiosidade, mas a fé instantânea é a consumação da obra da salvação.» (5) E' pergunta retórica, suge-rindo surprêza ou talvez exasperação.

«Habitualmente vamos fazer». E' a essência do paganismo, do ju-daísmo farisáico, do romanismo, enfim, dos que confiam no braço da carne, que impera no pecador não regenerado. Ele quer uma série de obras visíveis que justificam sua confiança em si mesmo, sua estima própria, sua inerente fé na justificação pelas obras. Jesus deixa essa falsa fé se expressar. Num vivo contraste êle declara o que é a verda-deira fé salvadora. Tem em mira uma só OBRA, um só ATO. A OBRA REDENTORA Cristo operou no Calvário. O ato que aceita e assimila em nós o valor do Calvário é a fé — confiança no Cristo crucificado. Uma obra objetiva, o Calvário, e um ato subjetivo, a fé-confiança no Crucificado. Jesus reduz o plural deles, o plural de «obras mortas», para o singular, a fé viva nêle, a qual é obra e graça divina no coração que nasce de cima.

«Praticar as obras de Deus... a obra de Deus é que creais». A per-gunta e a resposta têm a mesma palavra, obra, que traduzi no meu Di-

(3) "The Expositor's Greek Testament", Vol. I, 752, por Marcus Dods. (4) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V. p. l64, por A. T. Robertson. (6) "Janelas Gregas", p. 46, por W. C. Taylor.

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cionário Grego por «trabalho, ocupação, empreendimento, obra, ato, ação moral». Eles, na pergunta, usam o plural — querem aprender uma rotina de atos, misturados de ritual e moral, que os salve e nutra a vida . Jesus toma o vocábulo de suas bôcas e o muda para o singular. «O ato» único que dá e conserva a vida eterna é a fé viva, é crer em Jesus Cris-to como Salvador. O tempo do verbo indica ação contínua, linear. A idéia pode significar, como indiquei na tradução, «ser crente». O ato que salva é a fé que uma vez principiada continua, eterna, como a vida que ela outorga é eterna. A fé salvadora é fé eterna, sempre contem-porânea da vida eterna.

29. «O ato que Deus exige é êste: que sejais crentes.» «Que nin-guém fale mais em propaganda da idéia de que a doutrina de salvação pela fé é um acréscimo ao evangelho de Cristo, porque os lábios do mes-mo Cristo nos declaram: a obra de Deus é esta, que creiais naque le que êle enviou.» (6) A continuidade da obra de Deus, pois, sem descanso sa-bático, está em gerar crentes para a vida eterna, iniciar com o novo nas-cimento esta vida e nutri-la pelo Cristo vivo que morreu e nos alimenta a vida espiritual com o poder de seu sacrifício no Calvário. A obra, por excelência, de Deus, quanto a nós pecadores e à nossa salvação, é o ato de crer, manancial da vida de fé permanente que daí mana e acompanha a vida eterna em nós, como o leito do rio acompanha o rio caudaloso que por ele chega ao seu destino.

«Crer». «Não é correto dizer que o uso de fé por Filon é quase in-clistinguivel do emprego da palavra pelos autores do Novo Testamento. O golfo que separa os dois sentidos é vasto. Alguém o descreveu assim: Com Filon a fé é a rainha das virtudes, é a retidão do homem reto. Com Paulo, porém, a fé é negação de toda a profissão de mérito, é a justiça do injusto.» (7). Riggs parafraseia a exigência dêles assim: «Que é que tu, Jesus, estás fazendo para justificar tais exigências pe-renes e absolutas? Nossos pais comeram o maná no deserto. Por qua-renta anos Moisés lhes outorgou aquele pão miraculoso do céu. Faze algo de efeito igualmente majestoso; mostra-te maior do que Moisés e então poderás pedir nossa fé perene.» Esse desafio é parecido com uma tentação do Diabo. E' mister lembrarem-se de que ontem o aceitaram como o Profeta prometido por Moisés. Era crença, opinião, não era fé salvadora. Depois de uma noite na chuva, a crença se derreteu. E' a fraqueza de meras crenças.

«A obra de Deus é que creiais.» «A resposta de Jesus contém, em pequeno espaço, a essência do ensino de Paulo também acerca da fé. Jesus não consente que os judeus investigadores principiem por falar das obras de Deus. Ele exige que abandonem o legalismo que somava

(6) "An Exposition of the Scriptures", Vol. X, p. 286, por Alexander Maclaren. (7) "Biblical Doctrines", p. 473, por Benjamin Warfield.

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as boas obras, como merecedoras, por parte de Deus, da recompensa da vida eterna. Há uma obra de Deus que toma precedência sôbre tôdas as demais, por ser somente ela que coloca o homem em sua verdadeira relação para com Deus.» (8). Notai que essa vida eterna, como a justiça de Deus de que Paulo fala em Rom. 1:17, é «de fé em fé», pois o verbo crer é presente, de ação linear, e não aoristo, indicador de uma decisão tomada de vez. Não é, pois, de fé para obras, mas tôda a extensão da vida eterna é de fé em fé, de fé perene, de fé constante, ou como João já disse: de graça após graça. A Palavra de Deus pode salientar a nítida decisão instantânea de fé, e suas conseqüências que são de vez e de eternidade; e pode salientar o curso progressivo e sem fim, tanto da fé como da vida eterna. Aqui é êsse aspecto da salvação que está em foco.

«Que sejais crentes». Perene fé salvadora é um só ato divino, é «o que Deus exige». Deus o enviou de vez. Ser crente é «um ato», e a experiência desta fé é perene, eterna, duradoura, vital. Tudo é de uma peça.

«A obra de Deus... que sejais crentes». Robertson cita Westcott como afirmando: «Essa fórmula singela contém a solução completa da relação entre fé e obras.» E cita Lightfoot: </A. chave para a compre-ensão dessa situação inteira é a expectativa nacional de um Moisés maior.» (9)

30. «Ora que sinal estás tu mostrando para que num lance de percepção nós nos tornemos crentes em ti? Que estás operando? Nossos pais, etc.» O tu é enfático, em vivo contraste com o milagre na experi-ência dos pais, o maná. Tu — que sinal estás mostrando? Ou que estás para mostrar? O Dr. Garvie pensa que aqui, pela boca do povo, Satanás quis renovar sua tentação dos quarenta dias no deserto. O messianis-mo popular esperava a renovação da terra, a vitória sôbre todos os ini-migos de Israel e o reino da glória, estabelecido na Palestina e destinado a alargar suas fronteiras para abranger tôdas as nações. São esses os «sinais» de que pensavam. Já ontem perderam tôda a fé em Jesus como semelhante Messias. Agora querem friamente saber: «Se não podes oferecer nossos prescritos e indispensáveis sinais da carreira mes-siânica, qual o sinal de outra categoria que tu és capaz de operar, que tu estás operando em teu trabalho entre nós, para que venham a ter fé alguma em ti?»

«Para que já o vejamos e nos tornemos crentes. Que praticas?» Os judeus mudam de tempos de verbos. Propõem-se a ver (de vez) e a crer (de vez) DEPOIS que Jesus inaugurar uma série prolongada de obras messiânicas, visíveis no céu ou aparecendo do céu a olhos vistos.

(8) "The International Criticai Commentary", Vol. sabre este Ev., por Bernard. (9) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 105.

C. E. J. — 14

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Não seria fé de espécie alguma na sua OBRA REDENTORA "UNICA. Exigem uma campanha messiânica, autenticada por obras visíveis sem fim, e prometem uma futura fé decisiva, de vez . Claramente ver (de vez) primeiro e depois crer (de vez) não é fé alguma. «Pois na espe-rança fomos salvos; porém, a esperança que se vê não é esperança; por-que o que alguém vê, como o espera? Mas se esperamos o que não ve-mos, com perseverança o aguardamos» (Rom. 8:24, 25) . A increduli-dade sugere muitos alvitres, cada qual mais diferente do evangelho, em-bora se pareça com o evangelho em algum ponto. Que possam saltar do tempo presente para o aoristo mostra que o ensino de Cristo não é incompreensível, não é alheio à sua inteligência. Mas é alheio ao seu sis-tema e ao orgulho da sua confiança nas próprias obras e méritos para se salvarem a si mesmos. Apenas queriam ceder uma fé momentânea, contemporânea com o milagre exigido e praticado, adiando a fé final e de vez até depois de primeiramente VER toda uma campanha de ma-ravilhas messiânicas, segundo seu programa de revolta política contra Roma e do estabelecimento do reino de Deus na terra, com sua capital em Jerusalém.

«Tu». Empregaram o verbo e o pronome em deliberado contraste com Moisés. Não lhes agrada nem a fé perene nêle, nem que êle seja o objetivo de uma fé viva e salvadora. E' somente «dar-te crédito», anuir na sua veracidade, que estão prontos a prometer agora, e isso condi-cionado a novos milagres, numa escala supermosaica.

31. «Deu-lhes... pão do céu.» «Os homens hoje em dia estão perturbados pelo número extraordinário dos milagres de Jesus e não pela sua escassez. Mas os fariseus não estavam contentes com a abun-dância e o esplendor dos sinais.» (10). Queriam maravilhas nos próprios céus por cima de suas cabeças.

«Pão do céu». «Segundo a idéia popular de que o Messias alimenta-ria seu povo supernaturalmente, a turba insinuava que Jesus não sa-tisfazia ainda a expectativa, pois, não lhes dava do céu nenhum pão. A êsse desafio, para cumprir a analogia entre êle e Moisés, êle replicou com uma dupla negação. Não foi Moisés, mas o Pai, quem lhes dera pão do céu. E o verdadeiro pão do céu não é o maná, senão Jesus.» (11)

32. «Amém, amém, vos digo.» Vede as notas sare 5:24 a res-peito do duplo amém. «O doador que vos outorga». Assim procuro dar o sentido do tempo perfeito do verbo DAR . Westcott e Hort têm o tempo aoristo. Mas Nestle prefere o perfeito, e eu o sigo aqui. Houve um doador cuja dádiva permanecia para a vida eterna, mesmo para os genuínos crentes israelitas, como Moisés e Josué (I Cor. 10:4) . Moi-sés era recipiente, não doador, desse maná espiritual. Cristo era, e

(10) "The Pharisees and Jesus", p. 90, por A. T. Robertson. (11) "The Expositor's Greek Testantent", Vol. 1, p. 753, por Marcus Doas.

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é, quem continuamente o dá. Vêde as notas sôbre o tempo perfeito, em 5:10-47.

«O pão, o genuíno pão». Vêde a nota de W. Alexander sôbre esta mesma palavra, em 15:1. Sua posição na sentença, neste versículo, é de grande ênfase. Para as necessidades espirituais, nem o maná nem o pão servido aos milhares no deserto, nem a hóstia, é o pão genuíno. Só Jesus, «e êste crucificado», é o pão da vida.

33. «O pão de Deus»... o Pão cósmico! Diz-se de Crisóstomo que afirmou ter o maná dado nutrição, mas não vida, palavras que deixaram a turba atônita. O Pão genuíno nos dará a vida, a vida eterna.

34. «Dá-nos de pronto em tôdas as ocasiões esse pão.» Não se afastam da idéia do maná, dado de modo aoristo tôdas as manhãs! E' impossível ouvir ou ler essas palavras de Jesus sem tirar delas alguma idéia. Ficaram impressionados intelectualmente, sem se converterem. Vêde a nota sôbre a declaração semelhante da samaritana (4:15) .

35. «Eu sou o pão.» «Jesus promete saciar de uma vez e para sempre tanto a fome como a sêde. Não conheço em toda a literatura pro-messa maior. Foi êste o primeiro texto sôbre qual dissertei quando cheguei ao Brasil. Jesus queria ensinar àquela multidão que êle é ne-cessidade absoluta. A questão de nossa relação para com Jesus Cristo é inteiramente pessoal. Não há refeição por procuração, e não há re-ligião por procuração.» (12)

«O pão da vida». Não há a mínima dificuldade nessa linguagem. E' figurada. Já encontramos fermento e farinha, elementos do pão, usa-dos em ensino metafórico, Mat. 13:33; 16:6, 11, 12; Mar. 8:15. Quem sente alguma dificuldade por causa da linguagem evidentemente figura-da? Quando Jesus diz que é Vide, não buscamos sombra física debaixo dela num dia de 34 graus. Sabemos que é figura. Quando êsse mesmo João chama a Jesus, o Leão da tribo de Judá, não paramos para ouvi-lo rugir nem olhamos para ver sua grossa pele. Sabemos que é figura. E, se não fosse exploração dogmática, promovida por propaganda interessei-ra multissecular de um clero ambicioso de mando e riqueza coletiva, nin-guém jamais seria capaz de associar por um instante Jesus, o Pão da vida real, com a hóstia material de um rito desconhecido na Bíblia.

«Eu sou o pão da vida.» «Uma forma de expressão peculiar a êste Evangelho. A figura chamada metáfora transfere os característicos de urna coisa para outra, assevera que uma coisa é outra, isto é, representa a outra. Notai os sete exemplos: Eu sou o pão da vida (6:35, 41, 48, 51) ; a luz do mundo (8:12; 9:5) ; a porta das ovelhas (10:7, 9) ; o bom Pas-tor (10:11, 14) ; a ressurreição e a vida (11:25) ; o caminho verdadeiro e vida (16:6) ; a verdadeira vide (15:1, 5).» (1$)

(12) De um sermão do Dr. A. B. Langston, publicado no "Correio Doutrinal", Vol. VI, n°. 7.

(13) "The Companion Bible", Vol. V, p. 1530.

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«Aquêle que vem a mim». «Esse ato de vir não seria a aproximação física que êles adotaram ontem para chegar-se a êle, seguindo-o de Ca-farnaum ao deserto e do deserto a Cafarnaum; pelo contrário, era um ato de vir que, com igual exatidão, podia ser chamado crer, a aproximação espiritual dêle que envolvesse a convicção de que êle era o que professava ser, isto é, o meio pelo qual Deus vem ao homem e o homem vai a Deus.» (14)

36. «Não crêdes.» Acreditaram bastante coisas, a respeito dêle, mas não creram nêle. Tinham muita fé-crença e nenhuma fé-confiança salvadora. Ontem o aceitavam como «o Profeta» da profecia de Moisés mas não eram crentes. Eles o queriam como agitador político, para ser tí-tere de seu nacionalismo, mas não criam nêle como o Salvador-Messias, nem o queriam como Rei e Senhor de suas consciências. Há uma dife-rença entre a mera crença e a fé salvadora como a distância entre o leste e o oeste. Vêde Vol. I, ps. 69-97: «A Natureza da Fé Salvadora».

37. «Tudo quanto o Pai me dá virá para mim.» A palavra mim é enfática. Spurgeon assim interpreta êsse texto: «Envolve a doutrina de eleição: há alguns que o Pai deu a Cristo. Envolve a doutrina da cha. mada eficaz: os que o Pai deu virão, precisam vir. Por mais obstinada que seja a oposição dêles contra Cristo, contudo, serão trazidos das tre-vas para a maravilhosa luz de Deus. O passo ainda nos ensina a necessi-dade indispensável da fé: pois, nem os que foram dados a Cristo serão salvos a não ser que venham a Jesus. Até êles precisam vir, pois, não há outro caminho para o céu senão pela porta, que é Jesus. Todos que o Pai deu ao nosso Redentor precisam vir para êle; portanto, ninguém pode chegar ao céu a não ser que venha a Cristo.»

«Tudo quanto o Pai me dá». «Está empregado o neutro por ser mais universal do que o masculino, mais inclusivo de tudo quanto o Pai determina salvar do naufrágio do mundo, contemplado como uma totali-dade.» (15)

«O lançarei fora.» «Do reino futuro de Deus no além-túmulo, como também aqui.» (16)

38. «Desci do céu.» Vêde no Vol. I, ps. 318-321, a ampla discussão da descida de Jesus Cristo do céu.

«Desci do céu .e aqui estou.» Vêde a discussão do tempo perfeito do verbo grego, nas notas sôbre 5:10-47.

«Minha vontade... a vontade daquele que me enviou». Vêde as no-tas sôbre 4:34; 7:17.

39. «Tudo quanto o Pai me deu como doação permanente». «Que significa êsse ato de dar? E' um ato, da parte de Deus, anterior ao ato

(14) "The Expositor's Greek Testament", Vol. I, p. 753, por Marcus Dods. (15) "The Expositor's Greek Testament", Vol. I, p. 754, por Marcus Dods. (16) "The International Critical Commentary", in loco, por J. H. Bernard.

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de vir, da parte do homem; a vinda dêste é o resultado da doação divi-na ... O próposito da declaração é dar segurança de que a obra de Cristo não fracassará... Em tudo Jesus impossibilita a idéia de que êle esteja falando apenas por si só, ou que esteja expressando meros conceitos hu-manos ou que esteja movido por considerações arbitrárias. E' a suprema vontade que êle revela. E essa vontade exige que êle proteja e faça pro-visão em benefício de tudo quanto lhe foi entregue.»

«Deu como doação permanente». Sentido do tempo perfeito do verbo grego.

«Eu nada perca.» E' o plano. Jesus salva, mas nada perde. Ia per-der a companhia interesseira daquela gente incrédula aí mesmo, mas nada perdeu do que o Pai lhe deu. Ia perder Judas do número dos Doze mas não do número dos salvos. Ele nunca fôra salvo, era «filho da perdi-ção» e diabo, desde o princípio. Quem se perder foi sempre um perdido, ainda que tenha clamado: «Hosana nas alturas.» O plano do Pai é dar a Jesus os crentes. Jesus lhes dá a vida eterna e Pai e Filho pactuam para que «nada se perca». A veracidade e o poder de Deus se empenham na segurança do crente.

40. «Crê... na vida eterna... ressuscite no último dia». E' a ordem. O romanismo prega a fé, a morte sem salvação, o purgatório, a entrada no céu em virtude de indulgências, missas e o depósito de mérito dos santos, e depois de tudo a vida eterna. Vêde como é falso — caiação do falso por cima do verdadeiro evangelho. Este prega a fé, vida eterna re-cebida na experiência de crer evangèlicamente, e muito depois virá a res-surreição do último dia. Temos a vida eterna. Teremos a ressurreição.

«E eu o ressuscitarei no último dia.» Essa promessa volta, qual um estribilho de hino, nos versículos 39, 40, 44, 54. Cada vez o eu é mais expresso e saliente, como se dissesse : Eu, a mesma pessoa que está di-ante de vós, eu e não outro. Cristo dá aos seus ouvintes a segurança de que nesse respeito êle é superior a Moisés, e a vida que êle outorga não é limitada ao tempo. E' em si uma declaração estupenda.» (17 )

41. «O pão». O pão é Cristo. Ele desceu do céu. Mas Jesus não seria o Pão da vida meramente pela encarnação, sem sua paixão redento-ra. Eles terão de «comer a sua carne», e «beber o seu sangue». Então a carne e o sangue terão de ser separados, v. 35. Exige a sua morte. Morre para que vivam. A morte dêle lhes outorga a vida eterna. O Deus-homem encarnado E CRUCIFICADO — eis o Pão do céu!

Pão se come. Água da vida se bebe. São atos, atitudes pessoais em relação ao Cristo crucificado, que dão a vida agora e a ressurreição no último dia. E' preciso apropriar para si, assimilar em si, o Pão para viver. Como? Jesus é claro. «O que vem a mim de modo algum terá

(17) "The Expositor's Greek Testament", Vol. 1, p. 755, por Marcus Dods.

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fome; e o que crê em mim nunca jamais terá sede.» Através dêsse ser-mão crer é sinônimo de vir, comer e beber, (vs. 35, 40, 47, 48, 64).

Nenhuma referência há no sermão à Ceia. O Sermão e a Ceia são duas coisas absolutamente diferentes que se referem a uma terceira coisa — a morte de Cristo. Ali se cumprem tôdas as referências do Sermão e da Ceia. O Sermão diz em palavras simbólicas o que a Ceia lembra em atos simbólicos. Não há literalismo nesta ou naquele. E' desnecessário, desnatural, supor uma referência anacrônica à Ceia no Sermão. A lingua-gem figurada é perfeitamente cabível e compreensível no contexto do mi-lagre da alimentação dos cinco mil varões. A verdade é clara. Obtemos tôdas as bênçãos da salvação pela fé. As ordenanças simbólicas têm va-lor para os salvos, mas são salvadoras dos perdidos. Os crentes comem a carne e bebem o sangue de Jesus cada momento de sua fé viva e pe-rene, em união vital com o Salvador, o qual está sempre presente neles e com eles, não apenas quando assistem um culto ou praticam um rito. E' o resumo do sermão. Sermão e Ceia são como dois faróis que ilumi-nam a entrada de um pôrto. Um farol não é para iluminar o outro. Am-bos existem para mostrar o caminho para o pôrto. Assim é com êsses dois faróis. Mostram o Calvário, o Pôrto da Redenção Eficaz. A entrada é pela fé, Rom. 5:2.

42. «Cujo pai». «Dessa passagem um argumento se fez contra o nascimento miraculoso de Jesus . Os murmuradores representam a cren-ça contemporânea de que êle tinha pai e mãe, e na sua resposta Jesus não repudia seu pai. Todavia, não é razoável esperarmos que êle tivesse entrado em explanações diante de uma turba geral. Como diz Eutímio: «Ele não trata do seu nascimento miraculoso, a fim de não remover uma pedra de tropêço para colocar em seu lugar uma pedra de tropêço maior.%. (18) Sôbre a família de Jesus, vede as notas em Vol. I, ps. 272-274, 290-291.

43. «Deixai dessas queixas.» «Murmurando os judeus de que dis-sesse que ninguém vinha a êle, senão atraido pelo Eterno Pai, confirma Jesus que assim é, sem que haja coação, mas por um impulso da graça, a que uns cedem livremente e outros resistem com obstinação. Neste sen-tido é que diz a Escritura (Isaías, 54:13) que todos nós somos instruídos e esclarecidos por Deus, e Jesus Cristo o recorda, observando que vem a êle todo o que ouviu do Pai e aprendeu; com o que distingue a estes dos que ouviram o seu ensino e o rejeitaram.» (19 )

44. «Vir unir-se a mim . . . o último dia». Desde o comêço da união vital com o Salvador, no momento de crer nele evangelicamente, até o dia

(18) "The Expositor's Greek Testament", Vol. I, p. 755, por Marcas Dods. (19) Novo Testamento, Versão Franciscana, Vol. I, p. 341, (por J. Basilio Pereira).

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final, a segurança e a certeza do crente, quanto ao seu estado perante Deus, são constantemente afirmadas por Jesus, neste Evangelho. O Sal-vador tudo profetiza, como Paulo o faz em Rom. 8:28-30, sendo tudo tão certo que o apóstolo fala da nossa glorificação como se já tivesse sido realizada em tempo passado.

«Puxar». E' precisamente o verbo que Jesus usou, e a antiga ver-são de Almeida traduziu-o francamente como está no original. Sigo tão belo e antigo exemplo!

«Puxar». A Versão Baiana do Novo Testamento, com notas de Frei Damião Klein, diz: «Também na incredulidade dos judeus reconhece o Filho a providência do Pai. A fé é uma graça que o Pai dá a quem êle quer; e todos os que a recebem, chegam-se ao Filho, o qual então nêles cumpre o que é da vontade do Pai. Embora doa a Jesus a incredulidade dos outros, êle adora as disposições do Pai e com elas se consola.» (20) Vêde Mat. 11:25-30.

45. «Escrito nos profetas». A frase mostra como a «tradição» oral dos profetas, que pregavam aos seus contemporâneos sobre assuntos mes-siânicos, e a «tradição» escrita que temos nas Escrituras que eles nos legaram, é a mesma coisa. O nome dessas Escrituras ficou: «os profetas». Nelas temos os próprios profetas, em testemunho ininterrupto. Com a Palavra escrita fica associada a obra do Espírito no ouvinte. Este ouve da parte do Pai, aprende e vai a Cristo. Deus acompanha sua Palavra, com viva eficácia regeneradora, no coração do ouvinte que crê. E' a mes-ma idéia anteriormente expressada nas palavras «nascer de água e Es-pirito», crer para a vida eterna. Jesus conhece a Nova Aliança, Heb. 8:8-13; 10:15-18. O Salvador afirma a parte do Pai, do Espírito e do Filho na salvação. Somos salvos pela Trindade.

«Escutou e chegou a aprender.» Há uma parte na salvação que pro-cede da iniciativa e atividade de Deus. E esta parte divina na experiên-cia pessoal do crente é anterior à fé salvadora em Jesus Cristo. O Pai «puxa» o pecador para Cristo, pela obra da convicção de pecado, operada pelo Espírito Santo.

«Doutrinados por Deus». A única outra Escritura em que esta pa-lavra, traduzida «doutrinados», se encontra no Novo Testamento é I Cor. 2:13. Gostamos da tradução feita sob a direção de Frei João José Pedreira de Castro, «Bíblia Sagrada, Editôra Vozes», Tomo IV, p. 344: «Ora, nós não recebemos o espírito deste mundo, mas sim o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos as coisas que por Deus nos foram dadas, coisas estas que também anunciámos, não com doutas palavras de

(20) Vol. I, p. 260.

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sabedoria humana, MAS COM A DOUTRINA DO ESPÍRITO (frase que eu traduzi: doutrinados por Deus, W. C. T.), combinando coisas espiri-tuais com outras igualmente espirituais. Mas o homem animal não per-cebe as coisas do Espírito de Deus; pois, para êle são loucuras ; e não as pode entender, porque devem ser julgadas espiritualmente. O homem es-piritual, porém, julga tôdas as coisas, e êle não é julgado por ninguém. Quem conheceu a mente do Senhor, para que o possa instruir? Nós, porém, temos o «sentir de Cristo». Paulo é bom comentador das pala-vras de Jesus. Na salvação, somos «doutrinados por Deus», «não com doutas palavras de sabedoria humana, mas com a doutrina do Espírito» (doutrinados pelo Espírito). Vêde Vol. I, p. 220.

46. «Não é que alguém tenha visto ao Pai». Vêde a ampla discus-são do mesmo assunto, Vol. I, ps. 216-218, com as notas de Fairbairn e Torrey. Sôbre o tempo perfeito do verbo, vêde as notas sôbre 5:10-47.

47. «Amém, amém, vos digo». Vêde a discussão do duplo AMÉM, em 5:24, e da «vida eterna», em 3:16; 6:40; 10:28, etc. e Vol. I, ps. 57:68.

«O crente». «A fé, que é sempre (em tais Escrituras) a fé em Cristo, inclusive a confiança nêle e a entrega de si mesmo a êle, e não meramen-te o reconhecimento intelectual de sua divina Filiação e Soberania... repudia as teorias judaicas da justificação como sendo viável por meio da circuncisão e da observância da Lei de Moisés. Mas a fé é um ato, não meramente um estado mental e emotivo, pois uma referência a qualquer concordância mostrará que o verbo crer se usa, em grego, no tempo aoris-to. Este 'tempo' não indica tempo, contudo, está destituído da idéia de ação contínua, e, conseqüentemente, sugere ação momentânea ou instan-tânea. Casos familiares são a pergunta de Paulo aos pseudo-adeptos de João Batista em Éfeso: 'Recebestes o Espírito Santo quando crestes' (quando efetuastes o ato de crer) ? E em Rom. 13:11: «Agora está mais perto de nós a salvação do que quando cremos» (efetuamos o ato de crer)... A Igreja na sua infância tinha uma giria tôda sua, crer (no tempo aoris-to do verbo grego) significando tornar-se cristão; crer (no tempo presen-te) ser cristão; e os que haviam crido e permanecem crendo (particípio perfeito grego) significa os cristãos experimentados (de longo tempo) .

«A justificação significa a absolvição judicial — sentença pronun-ciada por Deus, que deixa o réu sair do tribunal, livre da condenação de seu caráter. A justiça significa êsse estado de retas relações com Deus, assim juridicamente outorgado... é a situação de quem é justificado, uma idéia forense que não supõe ser o estado moral do pecador a base de sua aceitação por Deus. Indica o estado normal e judicial, de se achar reto diante de Deus, sem contas a pagar-lhe. Pareça talvez um paradoxo que a sentença divina de 'livre de condenação' juridicamente inocente da culpa, precedesse a aquisição real de inocência. Parece estranho que a declaração de ser o pecador aceito por Deus seja anterior à sua aquisição pessoal daquela santidade sem a qual ninguém verá ao Senhor. Por mais

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difícil, porém, que seja a defesa lógica do paradoxo, está de pleno acôrdo com a divina mercê que nos trata conforme aquilo que vamos ser, e não segundo o que somos. E está de pleno acôrdo com os princípios de psico-logia que nos asseveram que a melhor maneira de tornar um homem digno de confiança é confiar nêle.» (21)

48. «Sou Eu o pão.» Vêde vs. 33, 35, 41, e o resto do capítulo, Vol. I, ps. 113-121. O pronome é enfático, exige «pão vivo», v. 51.

49. «Comeram o maná e morreram.» Já pensastes nas muitas maneiras em que o maná e a hóstia são parecidos? A impotência para evitar a morte dos que comem é a última das semelhanças. A suprema diferença é que Deus realmente deu o maná, se bem que para fins mera-mente físicos, mas Deus não dá hóstias, para fim algum.

50. «O Pão que vem descendo». A encarnação envolve tôda a vida terrestre do Filho de Deus. Seu trabalho redentor «está consumado» no Calvário, na ressurreição, na ascensão e na sua intercessão sacerdotal. Vêde comentário sôbre a doutrina errônea de «encarnação progressiva», de Garvie, e a doutrina verdadeira desenvolvida, no Vol. I, págs. 208, 242-243.

«Coma e não morra.» O crente morre fisicamente, como os demais homens. Jesus, porém, nega a possibilidade da morte espiritual do homem salvo. «Tem a vida eterna.» Não morre. Essa vida, pois, é sem fim. Jesus deliberadamente esclarece, em muitas ocasiões, êste glorioso fato do evangelho. Vêde I, 59-68.

51. «Eu... o pão vivo... que desceu. Se alguém comer...» Este verbo «comer» está no tempo aoristo, significa «comer de vez». Qualquer referência, pois, a um futuro sacramento, em que o sacrifício incruênto de Cristo seja repetido milhões de vêzes em milhares de altares, é tão contrária a essas palavras de Jesus como a idolatria é contrária ao De-cálogo.

«Eu mesmo sou». Vêde as notas sôbre eu sou, em 8:58. «O pão... minha carne». O grande Hodge disse: «Se o dogma de

transubstanciação é falso; se a hóstia está tão longe de ser o corpo de Cristo como está qualquer outro pedaço de pão; se sua alma e divindade não se acham presentes nela mais do que em outro pão qualquer; então precisam os adoradores da hóstia confessar que o ato que praticam é a idolatria mais simples e pura que o mundo já viu.» E de novo: «Essa prática tem sido mina de riquezas para o sacerdócio e para a Igreja. Foi principalmente a crença popular nesse erro capital que efetuou a trans-ferência da maior parte das terras e riquezas da Europa para as mãos do clero e deu-lhe poder sem limites sôbre o povo.» «Darei». No Calvário.

(21) De N. P. Williams, em "The Expository Times", de outubro de 1933, sendo o Dr. Williams, o professor de divindade (teologia) da Cátedra Lady Margaret da Universi-dade de Oxford, competente autoridade, pois, sôbre as palavras gregas discutidas.

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«Comer». Agostinho dizia: «Crê e tens comido, pois crer nêle é co-mer o pão vivo. Quem crê come.» (22) James Moffatt opina que a razão por que o autor dêste Evangelho omite inteiramente a história da Ceia do Senhor, e nunca faz menção da mesma, é precisamente para evitar o perigo de um literalismo na interpretação das palavras da instituição: «foste é meu corpo.» (23) Se êle não fêz menção alguma da Ceia, pelo me-nos os contemporâneos não poderiam cair na superstição sacramentalis-ta. «A Escritura previu...» (24) (Gál. 3:8) .

(22) Comentário de Agostinho sôbre este Evangelho, versão de J. Gibbs, em inglês, I, 358, 368.

(23) "The Theology of the Gospels", in loco. (24) Sobre este maravilhoso fenômeno da Escritura "prever" as apostasias e as supers-

tições dos séculos do porvir e prevenir o povo de Deus, vede, no meu Comentário sôbre a Epistola de Paulo aos Gálatas, p. 141, uma discussão detalhada.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO

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A Forte Doutrina do Calvário

(Capítulo VI, versículos 52 a 59)

52 Ora os judeus contendiam uns com os outros, dizendo: "Como pode esse 53 dar-nos sua carne a comer?" 1 Então tornou-lhes Jesus: "Bem seriamente

vos aviso: Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu 54 sangue, não tendes vida em vós. Aquele que esteja continuamente comendo

a minha carne e bebendo o meu sangue, possui vida eterna: e eu mesmo o 55 ressuscitarei no dia final; 1 porque a minha carne é comida real e o meu 56 sangue é real bebida. 1 Quem coma a minha carne

De queixas a e beba o meu sangue continuamente, permanece em 57 Rixas união comigo e eu em união com ele. 1 Precisa-

mente como o Pai vivente me enviou, e como eu também vivo continuamente por causa do Pai, assim igualmente aquêle que

58 continuamente me coma, ele também viverá por causa de mim. 1 Este é o pão que do céu baixou; não como comeram os pais e morreram; aquêle

59 que constantemente coma este pão, para sempre há de viver." 1 Ele declarou estas coisas numa sinagoga enquanto estava ensinando em Cafarnaum.

52. «Contendiam». O verbo se refere a guerras de armas ou de pa-lavras. Os revolucionários de ontem estão em guerra civil hoje. O plano da revolta contra César acaba num bate-bôca entre os promotores da nova ordem.

«Esse». Em sentido pejorativo. «Como... comer?» «A dificuldade da declaração desaparece quan-

do se percebe que a linguagem figurada não é carne e sangue mas sim comer e beber.» (1)

53. «Amém, amém». Vede a discussão do duplo «Amém», em 5:24.

«Comerdes.. beberdes». «Haverá alguma probabilidade de que um discurso para descrentes, proferido ao menos um ano antes da institui-ção da Ceia do Senhor, pudesse ter visado a referida ordenança, a qual é destinada unicamente a crentes?» (2)

«Não comer a carne do Filho». O arcediago anglicano Wilberforce é citado (3) por R. W. Dale como afirmando que João escreveu seu evangelho para «reunir os fragmentos» da fé cristã: «a Trindade, a Encarnação e a doutrina da Igreja e dos Sacramentos». E' a caiação evi-dente. Dale, com ampla razão, respondeu: «Se foi parte do propósito do Evangelho de João 'ilustrar' a doutrina da Eucaristia, é, para dizer o mínimo, bem admirável que somente êle, dos quatro evangelistas, dei-

(1) "The Expositor's Greek Testanzent", Vol. I, p. 758, por Marcus Dods. (2) "The Expositor'', Vol. VIII, N°. 13, p. 382, por W. H. Griffith-Thomas. (8) "Ecclesia", p. 360.

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220 EVANGELHO SECUNDO JOÃO

xasse em completo silêncio a instituição do referido rito.» Também o Evangelho nunca menciona a «Igreja». Podeis imaginar que um «ca tólico» escreveria seu opus magnum sem falar. na Igreja, sacramentos, eucaristia, bispos, Roma, ou o resto do vocabulário indispensável de um católico?

54. «Continuamente comendo... bebendo». Por que João usa o tempo aoristo num versículo, e o presente no versículo seguinte ? São dois aspectos da verdade. Na fé salvadora olhamos de vez para o Cal-vário, como a comparação entre a fé e um olhar, que Jesus fêz no seu discurso a Nicodemos, 3:14, 15. E na vida, que prolonga eternamente a fé que assim nasceu, estamos constantemente assimilando o valor quo-tidiano do Pão da vida, Jesus crucificado, ressuscitado, que nos conforta, anima e fortifica, nutrindo em nós todos os elementos de santidade. Pelo ato da fé, comer de vez a carne, beber de vez o sangue, cumprimos a idéia do aoristo, como se declara em Heb. 10:10, «Temos sido santifica-dos pela oferta (oblação) do corpo de Jesus Cristo, feita uma vez para sempre.» O valor contínuo do Calvário, constantemente assimilado na vida eterna que temos em Cristo, se vê em I João 1:7, onde o autor do Evangelho diz, em outro escrito: «o sangue de Jesus seu Filho nos pu-rifica de todo o pecado.» E' costume dizer, nesta conexão, que nós que assim cremos não citamos a passagem inteira : «Se andarmos na luz, como êle está na luz, temos comunhão uns com os outros, e o sangue de Je-sus seu Filho nos purifica de todo o pecado.» Mas, precisamente os evan-gélicos são os que advogam um cristianismo de luz moral em tôda a grei, de disciplina na santidade, de eliminação dos que andam nas trevas, limi-tando a comunhão a um terreno onde todos estão na luz. Não existe nem falta de ênfase moral nem tibieza nas exigências divinas a respeito, en-tre aquêles que regulam a sua vida pela Bíblia. Nem tampouco há con-fusão sôbre o que continuamente nos purifica. «O sangue nos purifica de todo o pecado.» Não é o sangue que nos purifica de um pouco e nosso andar na luz que nos purifica do resto. Nem somos purificados, se an-darmos em sacramentos, religiosidade e beatice cerimonial. O sangue é o purificador único, total e contínuo. Bebemos o sangue pela fé cada vez que meditamos no Calvário, e assim recebemos pureza na vida eter-na. Se andarmos na luz — e o contexto mostra que isso significa uma comunhão genuína com Cristo e seu povo crente, e não a ausência de pecado na vida, pois todos são imperfeitos — somos de Cristo, embora tenhamos faltas a ser purificadas continuamente por seu sangue. Se não andarmos na luz, não somos de Cristo, nunca fomos salvos, nem go-zamos comunhão com êle. Nesse caso não somos crentes. «Se andarmos nas trevas, mentimos», ao dizer que somos dêle. Crentes imperfeitos an-dam na luz e a contínua purificação dessas imperfeições vem pelo valor perene do Calvário. Assim bebemos e comemos o Calvário, assimilamos

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 22!

seu sangue remidor, em contínua alimentação e refrigério de pureza, santidade e comunhão cristã.

«Comer... beber». Depois de citar de Lightfoot muitos usos dessa figura de comer e beber no sentido de aproveitamento pessoal da leitura das Escrituras, das bênçãos messiânicas, da assimilação da verdade, do gozo das promessas, do alcance da vitória, «The Companion Bible» decla-ra (3-A) que «as palavras do Senhor bem podiam ter sido compreendidas pelos ouvintes, pois sabiam o idioma ; mas de Eucaristia êles não sabiam nada, e não podiam entender semelhante referência. Comparando os vs 47, 48, com os vs. 53, 54 vemos que crer em Cristo é exatamente a mesma coisa que comê-lo e bebê-lo».

«Comer minha carne ... beber meu sangue». «Alguns homens há que entendem aqui que Jesus estava falando da Ceia do Senhor por pres-ciência profética ; ou, antes pensavam que João pôs na bôca de Jesus a concepção sacramentalista do cristianismo, tornando a participação do pão e do vinho os meios de conseguir a vida eterna. No meu modo de ver, isso é uma perversão violenta do evangelho e urna absoluta falsifica-ção do ensino de Cristo. E' uma interpretação grosseiramente literalis-ta do simbolismo místico que êsses judeus também absolutamente não compreenderam na interpretação. ...Teria sido uma fonte de confusão desesperadora para êsses judeus se Jesus tivesse empregado o simbolismo da Ceia do Senhor. E, da parte de João, seria desonestidade real usar essa linguagem como propaganda sua do sacramentalismo.» (3-B) E' ainda maior desonestidade caiar, hoje em dia, o sacramentalismo sobre essa linguagem do Salvador. Dediquemos os recursos de nossos intelectos, línguas e penas à remoção dessa caiação católica do glorioso evangelho de salvarão pelo Cristo crucificado.

«Vida eterna». «Há uma e não duas maneiras de obter a vida eterna ; e, portanto, visto que Cristo disse, Aquêle que crê em mim tem a vida eterna, comer sua carne e beber seu sangue só podem significar a união vital com êle pela fé.» (3-C)

«Eu mesmo o ressuscitarei no último dia.» Não há nenhuma incerte-za aí. Vida eterna é vida sem fim, abrange o comêço pela fé, a continui-dade pela fé, a ressurreição no último dia e a eternidade na glória. Nada menos que isso é a vida eterna. Nada menos é a vida cristã.

55. «Porque a minha carne é comida real e o meu sangue é bebida real». «Beber sangue estava severamente proibido a todo judeu; comer a carne e beber o sangue de um homem era horrível a todos. Não é de ad-mirar que muitos de seus discipulos se desviassem e outros murmurassem... Era o tempo da Páscoa, quando deviam recordar o sangue que assegura-va-lhes a salvação e a carne que concedia fôrça. Parece, aliás, que alguns

(3-A) Vol. I, p. 1532. (3-B) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 111, por A. T. Robertson. (3-C) "Church and Faith", p. 67, por Deão Farrar.

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222 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

advinharam seu sentido, e o deixaram, não por confusão a respeito, mas porque estavam escandalizados. Ele se dizia o Filho de Deus, se oferecia como sacrifício pela vida do mundo que havia de ser redimido, meio de vida para o mundo que tinha de ser sustentado. Isso não era tão difícil de entender como era duro de aceitar.

«E' costume, entre muitos, que êsses versículos sejam usados em ín-tima conexão com a Ceia do Senhor, se bem que esta não fôra observada ainda, e a despeito do fato de nosso Senhor prevenir a todos contra o pe-rigo de tomar ao pé da letra suas palavras, 6:63, e de não haver ligação das duas coisas pelo Apóstolo. ...A experiência mostra que a associação desta passagem com a Ceia do Senhor provoca graves erros. A conclu-são é parte integral do sistema sacramental que tem servido para caiar o Evangelho, e ensina confiança em cerimônia e não em Cristo.» (4) O mes-mo autor ilustra o testemunho desta linguagem e o da Ceia, sôbre o Cal-vário, e a inteira independência entre os dois, assim: «O Deão Stanley escreveu um livro sôbre Sinai e Palestina. E Sir George Adam Smith es-creveu outro livro sôbre a Geografia Histórica da Terra Santa. Um e ou-tro são ótimos companheiros para um turista ..., mas não há proveito em tomar um livro como guia para o outro.» Boa comparação.

Westcott, citado (5) por Dargan, declara: «O esfôrço de transferir as palavras dêste discurso, com seu significado, para o sacramento tanto envolve a história em confusão desesperada, como introduz dificuldades insuperáveis na interpretação.»

Na mesma página é citado o Dr. Hovey, no seu Comentário sôbre êste Evangelho: «Teria a linguagem de Jesus nesta ocasião alguma re-ferência à Santa Ceia que êle instituiu mais tarde ? Não há evidência al-guma de que tivesse — nem vislumbre de sugestão de que êle ia incorpo-rar êsse ensino ao rito sagrado.»

56. «Permanece em união comigo e eu em união com "ele.» A ga-rantia da vida eterna pela palavra de Jesus é necessàriamente a garantia de que nossa união vital com êle permanecerá eternamente. E' precisa-mente o que êle afirma aqui. Os que não admitem sua veracidade quan-do êle afirma que a vida do crente é eterna introduzem na doutrina uma cláusula: «é eterna enquanto permanecer», ou «é eterna enquanto o cren-te permanecer, mas deixa de ser vida e se torna morte, perdição, se o crente deixa de permanecer em Cristo.» Isso é confundir causa e efeito. Esta união permanente entre Cristo e o crente é obra e graça divina, não arte humana. Deus gera, o crente nasce do Espírito. Deus dá a vida, nós a vivemos. O justo vive, por tôda a extensão longa de sua peregrinação para a Cidade Celeste, pela fé. Mas é de Deus o começo e a continuidade, o nascimento e a nutrição e desenvolvimento, a vida tôda, começada e permanente. A idéia de que Deus deu corda ao universo, criando-o e de-

(4) "Citurch Ministry and Sacraments", p. 104, por W. T. Whitley. (5) "Ecclesiology", p. 343, por E. C. Dargan.

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pois deixando-o por conta de fôrças inerentes, é paralela a essa idéia de que Deus deu corda ao crente na salvação e depois o deixa entregue aos seus próprios recursos para continuar salvo. Ambas as idéias são fal-sas. O universo em Cristo «subsiste» (Col. 1:17) e o crente em Cristo vive, permanece, cresce, mantém a filiação e vida e comunhão que o nas-cimento «lá de cima» lhe outorgou. Outorgar sèriamente a uma alma imortal uma vida que seja apenas efêmeramente eterna é contrassenso, frivolidade de linguagem, é negar numa palavra o que se afirma na pa-lavra seguinte. Ninguém é autorizado a reduzir a linguagem mais solene de Jesus, afirmada com o duplo AMÉM, a semelhante absurdo. A vida eterna vinga por uma permanente união do Salvador com o salvo.

A permanência é a eternidade da vida, uma salvação que realmente salva. Como pode ser chamado de salvação aquilo que termine na perdi-ção? O guarda na praia que vê o náufrago e nada para êle, mas depois de levantar-lhe a cabeça por cima das ondas deixa o pobre perdido entre-gue aos seus próprios esforços, havia de vê-lo desaparecer no fundo do mar. Jesus não é dessa qualidade de Guarda. «Salva completam' ente.» Não deixa meramente o nadador depender de seus esforços. Uma salva-ção que logo se transmuda em perdição é digna desse nome. Nem é eter-na, em sentido algum, uma vida, tão fugaz.

Na união que é a base dessa permanência da vida eterna do crente, há dois fatôres. A Palavra do fator divino, Jesus Cristo, é:

«O que crê no Filho tem a vida eterna» (3:36) «Nunca mais terá sede» (4:14) . «Tem a vida eterna», «Não entra em juízo», «Já passou da morte para a vida», (5:24) «A comida que PERMANECE para a vida eterna», (6:27) «O que vem a mim, de modo algum terá fome» (6:35) «O que crê em mim nunca jamais terá sede» (6:35) «O que vem a mim de modo nenhum o lançarei fora», (6:37) «A vontade daquele... é que eu nada perca» (6:39) «A vontade de meu Pai, é que todo (crente) tenha a vida eterna; e eu

o ressuscitarei no último dia» (6:40) «Quem crê tem a vida eterna», (6:47) «Este é o pão... para que o homem coma dêle e não morra» (6:50) «Eu sou o pão vivo... se alguém comer dêste pão viverá eterna-

mente» (6:51) «Quem come... bebe... tem a vida eterna», (6:54) «Quem come... bebe... permanece» (6:56) «Não é como o pão... que comeram e morreram» (6:58) «Quem come êste pão viverá eternamente» (6:58) «Senhor... tu tens palavras de vida eterna» (6:69) «Eu lhes dou a vida eterna» (10:28)

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«Nunca jamais hão de perecer» (10:28) «Ninguém as arrebatará da minha mão» (10:28) «Ninguém pode arrebatá-lo da mão do Pai» (10:29) «Deste (ao Filho) poder sôbre tôda a humanidade, a fim de que êle

conceda vida eterna a todos aquêles que tu lhe tens dado» (17:2) «Não perdi nenhum dos que me deste» (18-9) «Pai, quero que onde eu estou, estejam comigo os que me tens

dado» (17:24)

O outro fator é o crente genuíno. Nesse crente realiza-se a ga-rantia da Nova Aliança: «Imprimindo as minhas leis nos seus corações, eu as escreverei sôbre a mente dêles. Dos seus pecados e das suas ini-qüidades não me lembrarei mais. Imprimindo as minhas leis na men-te dêles, eu as escreverei também sôbre os seus corações... Todos me conhecerão, pois eu lhes perdoarei as suas iniqüidades e não me lem-brarei mais dos seus pecados» (Heb. X e VIII). Não é, pois, um pe-cador qualquer, que tem tais promessas preciosas. E' o crente, cuja sal-vação e santidade é empreendimento eterno da própria Trindade. A regeneração e a santificação acompanharam a fé e há perdão pelas fal-tas do crente enquanto êle se educa na vontade de Deus e Deus o cor-

De parte a parte, pois, a união de Cristo e o crente PERMANE-CE. Isso é da essência mesma da vida eterna.

O fato de haver dois fatôres na união permanente nem limita o poder divino para garantir a salvação eterna nem destrói a responsa-bilidade humana na experiência da vida eterna. Se salvar de graça o pecador não destrói sua personalidade, antes a regenera, santifica e enobrece, do mesmo modo a continuação dessa graça eficaz não elimi-na ou amesquinha a personalidade humana, pois a permanência é ape-nas a continuação da obra regeneradora e santificadora, cujo início é uma fase da salvação. Não são duas obras heterogêneas, mas sim ma-nancial e rio, fonte e água da vida, fonte que Jesus descreve como in-terior e perene e inesgotável. Não ataquemos a veracidade divina com uma lógica hostil, pois esta só nos prejudica a nós mesmos, cegando-nos para não ver verdades preciosas e divinas. Urna dessas verda-des é que Cristo outorga e garante ao crente vida eterna e com sua permanente presença sôbre, em e ao redor dessa vida lhe concede as energias do seu amor para conservar em união vital o crente e seu Salvador.

«Quem beba o meu sangue». Se isso é feito somente na participa-ção do vinho eucarístico, então é claro que os componentes do clero são as únicas pessoas no mundo a quem cabem essas grandes promessas da salvação outorgada por Jesus Cristo. Pois o leigo e a mulher da grei não bebem. Nada aqui, porém, se faz por procuração. Comer, beber são atos pessoais que terceiros são incapazes de praticar por nós. Se eles co-

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 225

mem e bebem são eles que engordam, não nós. E' a história do processo pelo qual o clero engordou — tomou posição entre a alma e Deus e es-tabeleceu um monopólio blasfemo das funções salvadoras da deidade e dos direitos preciosos da humanidade.

57. «Como o Pai me enviou». O Senhor terá outras maravilhosas declarações a fazer sôbre êsse assunto, em 17:18 ; 20:21. Sôbre a vida inerente do Filho e a vida permanente do crente, vede as notas sôbre 5:26, e vs. 56 e 63 deste capitulo.

58. «O pão que do céu baixou». Nos vs. 50 e 51, Jesus emprega a mesma preposição a respeito da sua vinda do céu e da vinda perene da vida espiritual que dele chega a nós. Como êle saiu do céu, nossa vida e nutrição espiritual sai dele, o Pão vivo e vivificante.

59. «Quando ensinava numa sinagoga». Declara o Padre Rohden: «Nesta altura, entrou Jesus na sinagoga de Cafarnaum, acompanhado dos apóstolos e de grande multidão de povo... Era chegada a grande crise na vida pública de Jesus. Subiu ao estrado ... ao pé dele os após-tolos; mais além os 72 discípulos», (6) etc. Ora os Setenta (7) (não 72) foram escolhidos depois disso, quando terminou o ministério da Galiléia, como Rohden mesmo narra 42 páginas adiante no seu livro. Mas o pa-dre representa Jesus, assim amparado para pronunciar um sermão de grosso sacramentalismo sôbre a «Eucaristia». «Aí está a grande reve-lação eucarística», diz êle. E taxa os ouvintes como «os primeiros here-jes da eucaristia». E' caiação, anacronismo, loucura. Pois bem. Foram-se embora todos, menos os doze. E «os 72»? São apóstatas? Antes de ser nomeados? E' com essa sorte de ignorância da Bíblia que se fabrica

sacramentalismo eucarístico, introduzindo-o, puerilmente, em João cap. VI. O cúmulo se vê na declaração de que a obra real do diabo em Judas Iscariotes era descrença na referência à Eucaristia lá na sinagoga ju-daica; «proferiu o papel de hipócrita — de traidor da Eucaristia. Isca-riotes foi o precursor de todos os apóstatas que encontramos nos anais do cristianismo ... prentende o negador assassinar-lhe a divindade ... e êsse assassino de Jesus foi o primeiro hereje da Eucaristia.» (8) (p. 202) E ainda perguntamos: Onde estão «os 72» ?

«Ensinava numa sinagoga.» «O sistema sinagogal era uma institui-ção relativamente recente do judaísmo, e estava admiràvelmente adapta-da para promover a vida religiosa da nação. Cada cidade, cada vila, pos-suia sua sinagoga, que exercia uma influência poderosa e benéfica sô-bre a comunidade. Era controlada por dez oficiais, que deviam ser ho-mens de lazeres e cultura, a fim de que pudessem dedicar-se à administra-ção de seus ofícios e ao estudo da Lei. Oito deles tinham funções bem definidas. Três compunham um tribunal para a solução de casos na sua

(6) "Jesus Nazareno'', p. 197. (7) Rohden dá o número correto — 70 — em seu Novo Testamento, p. 127. (8) Idem, p. 202.

C. E. J. — 15

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jurisdição, inclusive dívidas, roubos, perdas, restituição, sedução, ad-missão de prosélitos, eleições; eram chamados os chefes da sinagoga. Ou-tro era Oficial da Sinagoga, e sua tarefa era de dirigir as orações, su-perintender a leitura da Lei, e, conforme a ocasião própria, pregar. Era denominado o Anjo ou Mensageiro da Assembléia e Superintendente (bispo) da Congregação. Ainda havia três diáconos, que cuidavam dos pobres, cobrando esmolas de casa em casa e nas reuniões da congregação. Éstes sete eram chamados 'Os Sete Homens Bons da Cidade'. Havia também o targumista ou intérprete, o qual na ocasião da leitura das Es-crituras em vaz baixa aos seus ouvidos as interpretava em voz alta no vernáculo.» (9)

«Numa sinagoga, ensinando». Quando o povo se mostra mais duro e incrédulo é que Jesus dá as mais fortes lições aos que se separam dessa dureza e incredulidade. «O pequeno rebanho» há de saber assim as ra-zões de sua fé. A crise passará e os poucos que creram crescerão como o Líbano e ficarão fortes porque suas raízes são fundas e seguras na verdade.

Mateus 5 - 7 contêm o grande sermão de Jesus aos crentes sôbre sua conduta como crentes, especialmente naquela época de transição do regime da lei para a liberdade do evangelho. João VI é o grande ser-mão de Jesus aos incrédulos, embora alguns erradamente supusessem ser discípulos. E' o magno sermão evangelístico dos Evangelhos. A tragédia da interpretação popular desta passagem é que êsses fatos fi-caram invertidos, na mente sacramentalista, sendo o Sermão do Monte transformado em mensagem de salvação e o sermão da sinagoga trans-ferido inteiramente para a igreja e a Ceia do Senhor e para os que ex-ploram, em seu próprio benefício, essas coisas tão alheias ao Evangelho de João, e especialmente a este Capítulo. Fique cada sermão em seu lu-gar como Cristo quis. Mateus 5-7 êle proferiu para os seus discípulos. João 6 êle pregou na sinagoga.

(9) "In the Days of Ais Flesh", p. 94, David Smtth.

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Revoltosos sempre — Mas agora contra Jesus, não contra César

(Capítulo VI, versículos 60 a 71)

60 Muitos dos seus discípulos, pois, ao ouví-lo, disseram: "Dura é esta dou- 61 trina; quem é capaz de continuar a ouvi-lo ?" 1 Sabendo Jesus, porém, em

si mesmo que os seus discípulos estavam se queixando disto, êle lhes disse: 62 -Isto vos escandaliza ? 1 Então! Suponhamos que observásseis o Filho do 63 Homem subindo para onde estava antes ? ! 1 O espírito é o fator vital, a

carne não importa absolutamente! As palavras que eu vos tenho falado são 64 espírito, e são vida. 1 No entanto, há certos homens dentre vós que não

são crentes." Pois Jesus desde o princípio sabia quais eram os incrédulos e 65 quem era seu futuro traidor. 1 E repetia: "Por causa disto declarei-vos e

ainda vos afirmo : Ninguém é capaz de chegar-se a mim, se não lhe tiver 66 sido outorgado da parte do Pai."

Em conseqüência disto muitos dos seus discípulos tornaram atrás e já 67 não peregrinavam com êle. 1 Portanto, Jesus perguntou aos Doze : "Será

possível que até vós outros estais com vontade de ir

68 Crise e embora ?" 1 Simão Pedro lhe deu a resposta:

Consolação "Para quem iremos, Senhor? Tens as palavras da 69 vida eterna, 1 e nós chegamos à fé estável e ao

reconhecimento experimental de que és tu o Santo de Deus, e nisto ficamos!" 70 1 Tornou-lhes Jesus: "Eu não vos escolhi a vós, os Doze ? Mesmo de vós, 71 um é diabo." 1 Ora êle, se referia a Judas, filho de Simão Iscariotes; porque

este, um dos Doze, o havia de trair.

60, 66. «Muitos dos seus discípulos... disseram: Dura é esta dou-trina... Muitos dos seus discípulos tornaram atrás e já não peregrina-vam com êle.» Seria difícil exagerar a seriedade dessa crise no ministério e na vida messiânica de Jesus Cristo. Ele já se sentira obrigado a afas-tar-se da capital judaica, 4:1. Agora seu centro escolhido de evangeliza-ção popular, juntamente com uma vasta multidão dos peregrinos para a Páscoa, o rejeita em massa. A crise é tão séria que Jesus põe diante dos Doze a escolha de andar voluntàriamente com êle ainda ou acom-panhar, com igual liberdade, a multidão que o abandonava .

Não pensemos que tivesse sido apenas um grupo local de popula-res que mostrou semelhante instabilidade. Eram os judeus do mundo. O tempo era a véspera da Páscoa. Tôdas as estradas da civilização ti-veram suas encruzilhadas na «Galiléia dos gentios». Aí, pois, teriam seu encontro caravanas de todos os centros da Dispersão na Ásia, na Europa e na África. Unidos com amigos e parentes, os peregrinos se-guiriam para Jerusalém.

No meio dessa alegre turba, surgiu a notícia de que Jesus estava

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bem perto no deserto. Correram para vê-lo e ouvi-lo. Parecia-lhes que êle era o Messias político que poderia libertá-los do odiado jugo romano. Queriam, pois, obrigá-lo a ser o rei de Israel político, redivi-vo, para guiá-los na revolução pelas armas ou por prodígios celestes. Êle recusa e manda embora os desiludidos. Falhou o «complot». Agora resta selar a decisão e afugentar os discípulos políticos. Isso Jeíus dé-liberadamente faz com «dura doutrina» — a doutrina que êle sabia ser repugnante à lei e aos escrúpulos mais fortes do judaísmo, a doutrina de viver por «comer a carne e beber o sangue do Filho do Homem». Faz-se, confirma-se, o abismo entre o Messias espiritual e os ambiciosos do Messias político. E' insanável, intransponível, imperdoável para o nacio-nalismo, o orgulho, o racismo de Israel segundo a carne. Essa foi a rejei-ção popular que deixou seu rasto até dentro do apostolado no «diabo» Judas. E' o vestíbulo da paixão, a ante-sala do Calvário.

«Dura é essa doutrina.» Se não temos algumas doutrinas duras, divergimos de Jesus. Êle as tinha e as pregava e com elas cirandava seu discipulado nominal, separando os genuínos crentes dos seguidores espúrios, interesseiros ou nominais.

O cristianismo tem de livrar-se periàdicamente dos elementos es-tranhos ao seu real propósito. Para êsse fim Cristo ordenou várias medidas: o cuidado em batizar, batizando sômente discípulos, exigin-do frutos dignos de arrependimento; ensinando as elevadas idéias do reino de Deus e chamando os voluntários para tomar sua cruz ; e ciran-dando com doutrina dura os que vão com a massa popular, afastando-

deliberadamente da grei e do movimento. Suponhamos que ficasse na companhia de Jesus essa turba de

vinte mil ambiciosos de pães e peixes! Suponhamos que Jesus e os Do.: se tivessem dedicado à adulação dêsses representantes do judaísmo mundial, procurando harmonizar suas ideologias com o evangelho e nivelar o evangelho com tais ideologias; que possibilidade haveria de Calvário, de Pentecostes, da história que lemos nos Atos e nas Epís-tolas e no Apocalipse? O cristianismo teria morrido no ato de nascer.

E' bem provável que nossa geração veja o afastamento de outra multidão, abandonando Jesus e a simplicidade do evangelho. Não nos desanimemos, nem nos escandalizemos. Cristo tem as palavras de vida eterna. Êle vence com poucos ou com muitos, se fôrem fiéis.

O caso de Gideão é paralelo a êste incidente da vida de Jesus. Deus reduziu o exército de Gideão de 32.000 homens armados para 300. Os 22.000 medrosos foram despachados para casa, antes da luta. A primeira classe de pessoas aptas para o inferno são os medrosos, Apoc. 21:8. Mas para nada servem no reino de Deus. A segunda ckasse a ser afugentada são os comodistas — bebiam como se estives-sem num bar ou numa sala de jantar. Os 300, de corações ardentes, pressurosos para a luta, que bebiam avançãado, jogando água na bôca

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com a mão enquanto atravessavam as águas, foram os companheiros clOTSenhor e de Gideão na vitória. Nus _não salva por meio de muitos. Salvou a Israel por meio dos 300 e Gideão, salvou o cristianismo por .

Jesus e os Doze. Salvará sempre pelos heróicos e fiéis. 61. «Sabendo Jesus em si mesmo». Vêde as notas sôbre o exer-

cício dessa qualidade de discernimento, em 2:25 (Vol. I, p. 304), e em 4:16-18.

«Isto vos escandaliza?» «Usado figurativamente em três sentidos: (a) Fazer alguém tropeçar e cair, levá-lo a pecar. (Mat. 5:29; 18:6-9; Luc. 17:2; Rom. 14:21; I Cor. 8:13i II Cor. 11:29). (b) Obstruir a passagem de alguém ou fazê-lo parar, levar alguém a descrer, e rejeitar ou abandonar (Mat. 11:6; 13:21, 57; 15:12; 24:10; 26:31, 33; Jo. 16:1) . (c) Causar pena ou desgosto, ofender, no nosso sentido moder-no da palavra (Mat. 17:27; João 6:61).» (1) Jesus não usaria a pala-vra nos sentidos (a) ou (b) a respeito de si mesmo, mas evidentemen-te a emprega aqui no sentido de (c).

62. Falta a conclusão da pergunta: «Se virdes o Filho do Homem ascender para onde estava, então sereis ofendidos?» (2 )

63. «O espírito é o fator vital.» O pastor eminente e espiritual de John D. Rockefeller Pai escreveu as seguintes sábias palavras: «O mero literalismo em interpretar esta Escritura é uma cilada. O fato de que não percebeu o sentido figurado das palavras é a razão que levou Nicodemos a perguntar: Como podem ser essas coisas? A mulher sama-ritana, por sua vez, indagou: Como pode êle me dar água quando nada tem com que tirá-la do poço? E agora os judeus perguntam: Como pode êsse homem nos dar sua carne para comer? Para êles, isso deu a idéia do canibalismo. E' aqui que se vê um dos erros cardeais da missa roma-nista. Tomou ao pé da letra essa passagem da Bíblia, na sua doutrina da real presença.

«Ora, se semelhante idéia fôsse verdade e o corpo e sangue de Jesus Cristo estivessem presentes novamente na hóstia, isso nada adiantaria . Fisicamente, as propriedades químicas do corpo de Jesus não eram dife-rentes daquelas que caracterisam os nossos corpos. Seu corpo precisava de comida para reparar os estragos diários das células do organismo e para crescer em estatura, precisamente como nossos corpos. E sucumbiu por causa das feridas mortais da cruz. Comer desse corpo não teria mais poder para gerar em nós a vida eterna do que comer o maná.»

«E' o v. 63 que supre a interpretação. E' o espírito que vivifica, a carne para nada ajuda. As palavras que vos acabo de falar são espírito e são vida. Ao pé da letra uma palavra é simnente um som no ar ou uma combinação de letras feita com a tinta no papel. O ouvido pode perceber

(1) "Comentário do Evangelho de Mateus", Vol. I, p. 176, por Broadus, tradução de Theodoro Teixeira.

(2) "The Companion Bible", Vol. V, p. 1532.

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aquêle e o ôlho ver esta e ambas ficar sem sentido. E' indispensável que o espírito discirna para entender a significação das palavras.» (3)

«São espírito e são vida». «Nosso Senhor está falando de suas pala-vras e assevera que elas são espírito e vida. São a encarnação mística dêle mesmo. Levam consigo a essência divina. São a expressão de se-gredos vitais. Elas se apresentam à porta de nossas mentes como presen-ças vivas, trêmulas como a própria vida de Deus. As palavras de Jesus Cristo são vivas.» (4)

«O espírito (das palavras de Jesus) vivifica.» E' o mesmo verbo que Jesus usou em 5:21 duas vêzes. O poder que êle tem êle outorga a sua palavra.

«O espírito é o fator vital, a carne não importa absolutamente!» Um falso liberalismo une essas palavras com as de Paulo, em II Cor. 3:6 — «o qual (Deus) nos fêz idôneos ministros de uma nova aliança, não da letra, mas do espírito ; pois a letra mata, mas o espírito vivifica.» Êsse liberalismo, pois, despreza tôda a interpretação exata, tôda a fide-lidade ao sentido real das palavras de Jesus e das Escrituras. Para tais mentes, não existe verdade, nada está certo, tudo está oscilando, tudo é relativo, talvez seja verdadeiro hoje mas também talvez seja falso amanhã. Tôda doutrina pode ser boa, dizem êles, se é passível de experi-ência. A experiência é que fica, e vale. A doutrina que lhe serviu de base passa; e chegamos a uma nova etapa da verdade, que por sua vez passará. A Palavra de Cristo fica assim feito um nariz de cêra, que cada um pode puxar para os fins que tiver em mira. E se alguém in-siste que as palavras de Cristo são compreensíveis e significam a verda-de eterna e imutável da revelação, logo ouvimos a desairosa perversão destas duas Escrituras. «A letra mata.» «O espírito é que vivifica; a carne para nada aproveita.» O desdém com que tais palavras são pro-nunciadas traduz, às vêzes, o sentimento: «Eu sou mais espiritual, ao reprovar tôda a lealdade a Cristo, do que és tu que insistes em crer o que Cristo revela como verdade, e obedecer ao que êle manda como de-ver.» Convém não sermos enganados por essas atitudes tendenciosas que buscam nas próprias palavras de Jesus e Paulo motivo para justifi-car atitudes de descrença e desdém para com as revelações da verdade que Jesus e Paulo e os demais autores do Novo Testamento nos deram, «a fé uma vez entregue aos santos», a infalível Palavra de Deus.

Jesus afirma aqui exatamente o oposto dêsse liberalismo. «As pa-lavras são espírito.» O conteúdo das palavras, as idéias que as palavras transmitem, o significado que as palavras tinham nos lábios de Jesus e nas penas de seus apóstolos, é a essência da revelação dada. Constituem a mensagem divina. «AS PALAVRAS SÃO ESPÍRITO E SÃO VIDA.»

(3) "Addresses on the Gospel of St. John", p. 1650, por Cornelius Woelfkin. (4) "The Friend on the Road", p. 157, por J. II. Jowett.

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Seu significado é todo o seu valor. O espírito das palavras é precisa-mente a idéia que fielmente transmitem da mente reveladora para a mente recipiente. Se perdermos a idéia, perdemos a revelação, a verda-de, o espírito e a vida do divino Autor, que poderíamos ter recebido se ti-véssemos recebido cordial e sinceramente a revelação que se fez nessas palavras do Senhor. Os céus e a terra passam, mas não as palavras de Cristo, Mat. 24:35. «A letra», na linguagem de Paulo, é o legalismo, a confiança na Lei e suas cerimônias. Somos da Nova Aliança, diz a Es-critura citada, de II Cor. III. E o espírito da Nova Aliança está no significado do evangelho, para o incrédulo, e no sentido das Escrituras da Nova Aliança, para orientar o crente. Vêde as notas sôbre 3:31; 14:23. Todo o desprêzo da palavra de Cristo é crime de lesa-majestade contra o Rei da verdade e da vida.

«As palavras são espírito.» «As palavras ficam semi-personificadas. Têm um papel não muito diferente daquele que Filon deu aos logoi ou dunameis (poderes) em relação ao Logos. Não são meras coisas pronun-ciadas, palavras no sentido moderno. São mais. São poderes reais na natureza divina, que agem em prol de Deus ou Cristo.» (5) Contudo êle nega que as palavras tenham mera eficácia mágica.

«São espírito e são vida.» Vêde as fortes palavras de Spurgeon sôbre o literalismo ao interpretar êste capítulo e o estudo: «Removamos a Caiação do Quarto Evangelho», Vol. I dêste Comentário, ps. 101-127, achando-se as palavras de Spurgeon na p. 121.

64. «Alguns que não crêem». Riggs sugere como título de uma parte dêste capítulo VI: «A meia-fé se transforma em plena increduli-dade.» Não há meia-fé , como não há meia-eletricidade, meio-casamen-to, meia-vida, meia-filiação, meio-nascimento, meia-salvação. Um bebê não é meia-criança, um menino não é meio-homem. Jesus discerne melhor. Ele fala de «pouca-fé», «grande-fé», e reconheceu que um cren-te novo pode dizer: «Eu creio, Senhor: ajuda minha incredulidade.» A fé alcança como seu objeto Jesus Cristo em vários aspectos de seu valor e missão para nossos espíritos. Não é fé salvadora sem que enxergue e abrace a Jesus Cristo, como Salvador pessoal. Mas essa fé nascente, ins-trumento do novo nascimento, nos constitui bebês em Cristo. Há fé para crescer na graça, para servir, para poder em oração, para visão e operosidade no bem, para trabalho nas igrejas e a cooperação das mes-mas na evangelização do mundo, fé para caráter e fé para a esperança, qual âncora da alma, e fé para discernir obreiros para a seara e animá- . los. Uma fé nova se torna experimentada e rica em poder e visão, mas é fé no momento de crer como é no zênite de sua expansão espiritual. Bem diferente, tristemente diferente, é o caso do incrédulo — «alguns que não crêem». São descrentes todos aqueles que aceitam mental-

( 5 ) "The Theology of the Gospels", p. 203, por Jantes Moffatt.

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mente o fato de Jesus ser Profeta, e aí param; «não crêem». Tampouco são crentes os que o admiram como mestre, «meigo Nazareno», «martir de Gólgota», ou «carpinteiro de Nazaré», agitador socialista, líder do proletariado, ou «filósofo astuto, teólogo arguto, súbtil exegeta e cinti-lante pensador», nos dizeres do Padre Rohden. Os tais «não crêem». Não são meio-crentes. A crise revelará que nunca foram crentes. Na sua indecisão ficam onde estão, na condição de meros pecadores per-didos.

«Sabia desde o princípio». O que Jesus sabe agora de Judas êle sa-bia desde o princípio. Qual princípio? O princípio dos eternos conse-lhos da redenção da Trindade ? Do discernimento da sua carreira mes-siânica pelo homem Jesus, com seu crescente conhecimento do propó-sito e plano do Pai na sua vida conforme a orientação que lhe foi dada, passo a passo, pelo Espírito ? Da escolha do apostolado? Do começo do discipulado de Judas ? Notai que a afirmativa é dupla. Jesus conhecia os descrentes no meio dos crentes professos, o Israel de Deus no meio do Israel segundo a carne, c um item nesse conhecimento do estado es-condido do coração incrédulo é a falsa profissão de fé e apostolado por parte de Judas Iscariotes. Jesus discernia o que era genuíno e o que era espúrio, o trigo e o joio que Satanás plantou na vida. E' urna afir-mativa vasta e vem de longe na percepção nítida da mentalidade mes-siânica de nosso Senhor. Já se afirmava, na véspera de sua entrevista com Nicodemos, que êle era conhecedor de tc f.os os homens. Os descren-tes entre seus seguidores, em geral, e Judas, em particular, não são ex-ceções a essa regra universal de sua penetração nas veras da alma hu-mana. O fato de Jesus discernir o rumo moral de Judas nem é motivo de fatalismo quanto ao livre arbítrio de Judas, nem razão para acusar Judas de hipocrisia. E' fácil dizer: «Se Jesus sabia quem era o que o havia de trair desde o princípio, então desde o princípio Judas não tinha outro al-vitre. Era-lhe a única atitude possível. Não tem culpa.» Alto lá. Não va-mos tão depressa. Se nós somos capazes de discernir de antemão o curso da ação de nossos semelhantes — e quem é que não tem previsto, com relativa certeza, o que outros vão fazer? — então Jesus tinha a mesma capacidade e naturalmente maior penetração do que nós. E como, meu prezado leitor, o fato de prever o que alguém irá fazer não o obri-ga a tal ação, assim o fato de Jesus saber o que Judas faria não o obri-gava a fazê-lo. Antes, Jesus, até o fim, sinceramente impedia, de todas as maneiras possíveis, o trágico pendor de Judas para a perdição. Vou além. Essa percepção do curso da vida alheia que vemos em nós, e que não nos torna responsáveis pelas decisões alheias, temos de reconhecer, em grau infinito, em Deus, e em Deus é evidentemente inerente na cria-ção. Se Deus é eterno, super-temporal, se o passado, o presente e o fu-turo são igualmente presentes para êle, se não há surprêsas para êle, se êle em tudo sabe o fim desde o princípio, então êle tem a certeza e

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o conhecimento de tudo no porvir, desde o curso do universo até o mais insignificante detalhe da vida de um inseto — não cai um pássaro sem êle sentir, diz Jesus. E' necessário à personalidade divina e, em par-te, nós, que vivemos à imagem de Deus, temos essa capacidade. Em tudo isso, há presciência divina, certeza divina, eternos planos divinos que abrangem o curso total das ações dos sêres livres, Deus, anjos, demônios, homens. De outra maneira, o universo seria anar-quia. Ou antes não haveria universo. E é igualmente verdade que eu e tu e Judas fomos criados à imagem de Deus com algo dessa percep-ção moral, com algo dessa capacidade de decisões e planos, com li-vre arbítrio em nossas decisões. Até onde, pois, vai êsse «desde o prin-cípio» do conhecimento do curso traidor de Judas, da parte de Jesus? Não sei. Vai longe, tão longe quanto vai aquela personalidade que chama-mos o eterno Verbo. E não reduzirás o problema à simplicidade, nivelando o Filho de Deus a Judas, no alcance das duas personalidades — corrução moral à parte. Não se solucionam os problemas do universo destruindo a concepção do universo ou deixando-o entregue à anarquia, para cam-balear à toa num curso não traçado por ninguém. Deus tudo faz segun-do seu propósito e Judas trai o Filho de Deus segundo seu livre e per-verso coração. Sei e creio ambas essas verdades. São da própria fibra do Evangelho de João.

65. «Ainda vos afirmo.» Vêde vs. 37 e 39. A tese fundamental do Evangelho todo é que Deus dá a regeneração: «deu o direito e o po-der de se tornarem filhos de Deus», João 1:12. Aqui se vê a eterna elei-ção divina, atrás da autorização do convite do evangelho, dando o indi-víduo a Cristo e lhe outorgando, em tempo oportuno, a «graça preve-niente» que o capacite para «chegar-se» ao Salvador pela fé-confiança.

«Se não tiver sido outorgado». Deus outorgou primeiro, salva de-pois. A Escritura não esconde êsse fato, mas não se desdobra em expli-cações para satisfazer a lógica humana. A soberania divina, incluindo nela a salvação do indvíduo, é uma das premissas do evangelho, em to-da parte do Novo Testamento. Broadus comenta: «O tempo aqui refe-rido podia ser aquêle indicado pelo Salmo 2:7; por Isaías 42:1... e tam-bém por João 17:24; Efésios 1:4. Nas profundezas da eternidade, antes de iniciada a criação, Deus amara e se deleitara no seu eterno Filho.» (6) E ainda: «Nosso Senhor não entra em explicações quanto à sobera-nia de Deus, no seu tratamento com os homens. Apenas acrescenta: Sim, ó Pai porque assim te aprouve. (Comp. Ef. 1:5, 9; Fil. 2:13). Note-se que isto não é, como muitas vêzes se tem dito, um sentimento de mera resignação. Nosso Senhor reconhece a propriedade da soberana con-duta do Pai, e o louva por isso. Tudo que agrada a Deus, deve agra-

(6, 7, 8). "Comentário de Mateus", por John A. Broadus, tradução Theodoro Teixei-ra, ps. 120 e 335, do Vol. I, e p. 354, do Vol. II.

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dar a nós também.» (7) Outrossim: «Foi dado (todo o poder), sem di-zer quando... Poderíamos supor uma referência aos conselhos da eter-nidade, porém, mais provàvelmente ao dom oferecido na sua encarnação, assim referido em 11:27: `todas as coisas me foram entregues por meu Pai,' talvez consumado na sua ressurreição.» (8)

66. «Seus discípulos se retiraram e não andaram mais com êle.» Riggs pensa que nessas palavras estão incluidas várias semanas de tra-gédias pessoais. E Weiss e Godet colocam no mesmo período os eventos de Mat. 16:13-20. O que revela a falta de fé e endurece a incredulida-de de alguns, fortifica, define, robustece a fé de outros e lhes ensina os têrmos de sua confissão pública.

Shailer Mathews opinava que aqui -temos eveptos por um período prolongado e que esta pergunta de Jesus aos doze se deu na mesma oca-sião que o incidente de Mar. 8:27-30. E' possível. Esse escritor diz: «Sem mesmo apelar para o Quarto Evangelho, é necessário sustentar que os doze pensavam em Jesus como o Messias muito antes dos suces-sos de Cesaréia de Filipe. O fato de que os quatro o seguiram de tão boa vontade (Mar 1:16-20) indica conhecimento prévio de Jesus e que para êles o Mestre já era mais do que rabi comum. E com mais clareza ain-da, suas palavras em Nazaré (Luc. 4:16-30), e sua resposta aos mensa-geiros de João (Mat. 11:2-6) são ininteligíveis sem ser declarações de sua missão messiânica. O significado das palavras (de Pedro) em Cesa-réia de Filipe não é o de constituirem uma primeira declaração de fé, mas a confirmação de uma fé já velha mas que se reafirma a despeito da qualidade de Messias que Jesus ia mostrando que havia de ser.» (9)

«Não andaram mais com êle.» O Dr. A. T. Robertson pensa que se levantaram, aí mesmo na sinagoga, e barulhentamente sairam, ,zanga-dos, em franco repúdio de Jesus, abandonando seu movimento de vez e com a mesma vidência com que no dia anterior queriam forçá-lo a ser um rei revolucionário.

67. «Quereis vós também retirar-vos?» O sermão sôbre o Pão da Vida operou efeitos decisivos. Converteu em aborrecimento o entusias-mo popular por Jesus; separou como pá os verdadeiros e os falsos dis-cípulos; como brisa, levou a palha, deixando o trigo. Esse resultado não surpreendeu Jesus. Esperava-o. Em certo sentido, desejava-o, ainda que profundamente entristecido pela experiência dolorosa da separação. Je-sus buscava discípulos dados por Deus, v. 37; «puxados» por Deus, v. 44; ensinados por Deus, v. 45; sabendo bem que apenas os tais conti-nuariam na sua Palavra, 8:31. Essas coisas duras, êle as afirmava pro-positadamente para despertar, chocar, repelir, pois sabia que os verda-deiros crentes receberiam seu ensino para meditá-lo e assinalar suas li-

( 9 ) "History of New Testament Times", p. 188.

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ções mais tarde, e que ficariam zangados somente os enganados e hipó-critas.

Ora, havia fortes motivos para que os Doze o abandonassem também — a influência da multidão, o poder de apoio ou antipatia popular, a fôr-

, ça da opinião pública contra Cristo, seu desapontamento ante a idéia de um reino não político, sua ignorância sôbre a relação entre a carne de Cristo e a vida eterna, e sôbre o modo de comer essa carne.

No entanto, ficaram. Por que? Três âncoras lhes seguram a alma. 1. A sinceridade e o zêlo de seu discipulado. Seu supremo desejo é co-nhecer as palavras da vida eterna e possuir essa vida. 2. A segunda ân-cora é tflie Jesus não tem substituto ou altettativa. %A. quem iremos nós?» João Batista está assassinado. Que oferecem escribas, fariseus, sacerdotes, filósofos? Há dificuldades paía crer em Jesus e ser-lhe leal. Mas outra alternativa é pior. Ajuda sempre, nas crises da vida ; medi-tar bem nos diversos alvitres. Que são? O ateísmo, o cinismo mun-dano, a autoridade papal, o , agnosticismo, o pessimismo filosófico ou ecletismo teosófico, essa ou aquela filosofia? Nenhum alvitre «tem as palavras da vida eterna» nem oferece vida eterna. Sio a uma falhas e-falsas. Com os olhos abertos para as alternativas, nós ficamos com 'Cristo. Meu mais sábio professor me disse: «Nunca largues a fé que tens até que se te ofereça coisa melhor.» A mãe de John Clifford admoes-tOu-o uma vez: «Apega-te a Jesus. Prova tudo por Jesus.» 3. _A ter-ceira âncora é «cremos e sabemos». A .fórmula da certeza não é erudi-ção: «sabemos e cremos». E' fé viva no Salvador, Deus Revelado —«cremos e sabemos». A fé dá uma união vital e experimental com Je-sus e, daí, nasce nas convicções do crente a certeza. Não entendemos o infinito alcance de algumas coisas ditas por Jesus, mesmo coisas ditas a respeito de sua própria pessoa. Mas cremos, e crendo sabemos. E' a conclusão valiosa, eternamente valiosa, que Pedro expressou e que João apoiou e preservou no seu Evangelho.

68. «Palavras de vida eterna». «São palavras que trazem con-vicção, não como as palavras do romance popular, do vespertino sensa-cional, da conversação ôca... Como podemos executar o programa dos deveres múltiplos do dia? A vida do primeiro anista colegial é uma eter-nidade, ao seu ver. Ele tem todo o tempo que há. Mas no meio das res-ponsabilidades prementes da vida há de parecer-lhe que ela é uma febre prolongada de pressa e urgência. Podemos fazer a tarefa do dia somen-te por que vivemos na eternidade. Quando oramos entramos também na eternidade e voltamos da oração para o tempo, refrigerados e recrea-dos.» (10) Vêde as notas sôbre o v. 63 e 5:21 e 12:50.

«Palavras de vida eterna» é nome do próprio evangelho. Que resta

( 10 ) -Addresses on the Gospel of St. John", p. 120, por Henry S. Nash

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aos que negam que o crente tem a vida eterna? Um evangelho falso ou pelo menos parcial e confuso.

69. Há sete maneiras de ler este versículo, no grego original. Seja como fôr, porém, quanto às ligeiras diferenças textuais, há dois verbos no tempo perfeito, de ação passada com resultados que duram no tempo presente. E o crer é antes do saber, no terreno espiritual, na experiência da salvação.

70. «Os Doze». Notai como João pressupõe a existência dos Sino-ticos. Êle não narra a escolha e comissão dos doze, mas a reconhece como fato. Êle se refere aos doze como um corpo bem conhecido.» (11)

71. «Um de vós diabo é.» Westcott escreveu no seu grande co-mentário (12) que Pedro «foi por Cristo chamado de Satanás — um adver-sário; mas Judas era um diabo, como corrompedor daquilo que é santo e verdadeiro... Os filhos de Zebedeu tiraram do coração suas ambições erradas e Cristo purificou-os. Mas Judas não expôs seus pensamentos à luz para receber reprovação e castigo e correção.» Ficou perdido, sem-pre perdido, «filho da perdição».

«Um de vós é diabo.» Não diz que Judas era diabo desde o princípio. Sómente ao Filho de Deus é permitido encarnação real numa vida hu-mana. O Diabo é sempre distinto da personalidade humana, sempre alheio e a êle se pode resistir. «Resisti ao Diabo e êle fugirá de vós» (Tiago 4:7) . Há um Diabo e muitos demônios. Judas chegou a ser diabo, merece agora o mesmo nome de Satanás. Talvez o vocábulo ve-nha em seu sentido etimológico, pois é usado assim no Novo Testamen-to como admoestação até a certas mulheres: «que não sejam diabos», (maldizentes, caluniadores). O Diabo é o Caluniador-mor: qualquer ca-luniador é diabo. Judas, doravante, é amargurado, cínico, murmurador. Vê todos os motivos alheios como tortos, quando é a sua visão que é torta, seu ôlho que é mau. Em João 13:2, 27 somos informados de que o Diabo entrou em Judas — até o fim são duas personalidades independen-tes, uma hospedando a outra, urna dirigindo a outra. Esse estado de coisas é evidente a Jesus, um ano antes do Calvário, segundo João nos informa. Nem a mudança em Judas foi instantânea e total de uma só vez, nem Jesus era cego ao crescimento do mal no tesoureiro de seu gru-po de íntimos companheiros. Nem é natural supor semelhante coisa. O necessário curso gradual de tão trágica mudança de caráter e de car-reira é exatamente o que a psicologia nos levaria a esperar no terreno da personalidade responsável.

72. «Iscariotes». «Homem de Kerioth, vila na Judéia.» Broadus diz: «Era não somente de presciência divina — como em tôdas as coisas

(11) "Some Lessons on the Revised Version of the New Testament", p. 59, por B. F. Westcott.

(12) Vol. I, p. cxlvi.

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— que êle trairia o seu Mestre; mas foi também mui cedo previsto por Jesus (João 6:64), que em sua mente humana não era onisciente (Mat. 24:36) . Que uma pessoa na qual isto se previa fôsse escolhida coma um dos Doze não é mais misterioso que um milhar de outras coisas fel. tas sob a providência do mesmo Senhor... Judas devia ter operado mi-lagres, semelhante aos outros (comp. Mat. 7:22—), e sua pregação também devia ter produzido resultados semelhantes à pregação dos ou-tros; do contrário, a diferença seria notada tanto por êle como pelos ou-tros.» (13)

(13 ) "Comentário de Mateus", Vol. I, ps. 296, 297, por John A. Broadus, tradução de Theodoro Teixeira.

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Oposição Múltipla e Crescente

(Capítulo VII, versículos 1 a 13)

1 Ora, depois dêsses sucessos, Jesus percorria a Galiléia, pois já não ti-

nha vontade de viajar na Judéia, visto que os judeus o procuravam matar.

2 I E estava perto a festa dos judeus, na qual habitavam em tendas comemora-

3 tivas da sua peregrinação no deserto. I Então os irmãos dele lhe disseram:

"Muda-te daqui e vai-te embora para a Judéia, de sorte que os teus disci-

4 pulos observem essas obras tuas que fazes; I porque ninguém age às ocultas

e busca, siminho, estar em evidência. Se fazes continuamente estas coisas,

5 põe-te de uma vez à vista do público." I Pois também seus irmãos não

6 eram crentes nele. I Jesus em resposta lhes adverte: "Minha ocasião opor-

tuna ainda não está chegada: a vossa oportunidade

7 A Família está prestes em tOdas as ocasiões. I O mundo não é

Incrédula e capaz de vos odiar continuamente, mas a mim me

Impaciente odeia constantemente, porque sou eu que dou teste-

munho repetido contra ele porque os seus costumes

8 são malvados. I Vós outros subi à festa; eu não vou subir ainda a esta

festa, porque a minha ocasião oportuna ainda não está completamente chega-

9 —10 da." I E dest'arte lhes falou e ficou na Galiléia. I Quando, porém, os

seus irmãos subiram para a festa, então ele também subiu, não públicamente

11 mas sim mais ou menos às ocultas. I Os judeus, portanto, o procuravam na

12 festa e diziam: "Esse tal — onde está?" I E havia grande murmuração a seu

13 respeito entre as turbas. Uns diziam: "Ele é bom." I Mas outros torna-

vam: "Qual! Pelo contrário, ele está ludibriando o povo!" Entretanto, nin- guém falava com franqueza a seu respeito, por medo dos judeus.

1. «Depois dêsses sucessos». Vêde o estudo da frase, no comentá-rio sôbre 5:1. Entre os Capítulos VI e VII Westcott supõe haver um prazo de seis meses, cujos eventos se acham narrados em Mat. XI-XVII, 21. Vêde a Harmonia dos Evangelhos.

«Galiléia». Havia umas 204 cidades na Galiléia, e uns 3.000.000 de habitantes na província tôda. Vêde as notas sôbre 4:3.

«Judéia». Vêde as notas sôbre 4:3. A oposição agora assume tais proporções que João se lembra do antagonismo como que sendo «dos judeus» em massa.

2. «A festa... em tendas». «Não havia outra (festa) mais popu-lar, ou mais santa e mais célebre que ela (Flávio Josefo), era celebrada por oito dias no mês de outubro.»

3. «Seus irmãos». «Meio-irmãos, de fato. Eram hostis às preten-sões messiânicas de Jesus, atitude natural como bem se pode ver, em-bora ao princípio fossem favoráveis (2:12) . Sai daqui, disseram. Era impertinência da parte dêles. Jesus tinha muitos discípulos na Judéia,

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no começo do seu ministério (2:23; 4:1), e saira por causa do ciúme dos fariseus à vista do êxito de sua obra (4:3) . Talvez seus irmãos ouvis-sem da grande multidão que abandonou a Jesus na sinagoga de Cafar-naum. Mas Jesus já tinha estado fora de Cafarnaum alguns meses e da Judéia um ano e meio. Talvez os irmãos de Jesus anelassem que êle corresse pressuroso para a atmosfera hostil de Jerusalém outra vez.» (1)

«Obras». «Essas obras tuas» é uma frase desairosa dos ciumentos incrédulos da sagrada família. Quão diferente era a atitude de Jesus para com os majestosos «empreendimentos» a que o soberano Espírito o impul-sionava, de dia em dia, como se pode ver nas notas sôbre 6:27.

4. «O Mundo». Vêde as notas sôbre 3:16, Vol. I, p. 326. Bunyan teria pensado dêsses moços, conselheiros gratúitos e incompetentes de seu tão bem conhecido — mas para êles totalmente deconhecido — irmão, como membros da família de Mister «Sábio-Segundo-O-Mundo». A tenta-ção de que êles eram os autores inconscientes é a mesma usada por Sa-tanás quando sugeriu que Jesus se lançasse do pináculo do templo: pôr-se, de vez, à vista do público, de modo a ganhar perene confiança. Re-almente Jesus conhecia seu mundo melhor do que êsses provincianos sem experiência.

5. «Seus irmãos». Vêde as notas sôbre 2:1, 3, 12, Vol. I, ps. 271-273, 276, 278, 291. Jesus deu o exemplo. Exigira dos discípulos que deixassem o lar para o seguirem. Ele fez o sacrifício também. Deixou seu lar em Nazaré, o qual êle amara como qualquer um de nós amaria seu lar. Somente depois da sua ressurreição, teve a família de Jesus fé nele como o Messias e Salvador. Maria era crente, sim, mas só podia «entesourar tudo no coração», para um entendimento futuro. Os ir-mãos dêle se orgulhavam, de certa maneira, de seus milagres e sua fama, mas nem compreendiam nem admiravam sua majestade e sua missão. Aqui são vistos em atitude antipática, querendo explorar para sua própria glória, curiosidade ou satisfação, os poderes miraculosos do seu irmão, sem nenhuma percepção ou simpatia por sua missão ou seus problemas.

«Seus irmãos não eram crentes.» A casa tôda do oficial do rei, que foi de Cafarnaum a Caná para pedir a Jesus a cura de seu filho (4:53), se tornou crente. Mas na própria família de Jesus, «seus ir-mãos não eram crentes». De tôdas as famílias, essa era justamente a que tinha mais razão de ser uma família unida pela fé. Sôbre a possibi-lidade de famílias crentes, vêde a nota sôbre 4:53. Sôbre dois sentidos do verbo crer, vêde a discussão de 5:38. E sôbre o fato de que ninguém é meio-crente, vêde o comentário sôbre 6:64. Eram totalmente incré-dulos, e essa atitude os obriga a formar alguma hipótese a respeito do seu irmão. A conclusão que tiram, pois, é que êle está desequilibrado.

(1) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 118,. por A. T. Robertson.

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As alternativas da fé são tôdas irreverentes e terríveis nas suas conse-qüências.

6. «Vossa oportunidade está sempre à mão.» A idéia é: vossa re-ligião incrédula é uma rotina e um ritual. O calendário sacerdotal é um vaivém incessante entre casa e Jerusalém, uma romaria incessante para lugares santos, em dias santificados para cerimônias santas. Mais um dia, menos um dia, nada importa na vossa religiosidade. E' um triste retrato do que era a religião em Israel, mesmo na sagrada família, antes de nascer-lhes a fé viva em Jesus Cristo.

«Minha ocasião oportuna». Essa linguagem parece significar sua oportunidade logo na Festa dos Tabernáculos. A frase «ainda não» con-diz com a decisão com que êle disse, no v. 8: «Ainda não vou.» Contu-do, essas palavras nos fazem pensar naquela triste idéia que decorre tantas vêzes, nas palavras de Jesus citadas neste Evangelho: «minha hora». A vida predestinada tem seu horário celeste, e a fé e a comunhão com Deus nos levam a aguardar, com paciência e submissão, «a hora» de agir, e, com igual decisão de caráter, ser operosos e determinados, no caminho da vontade de Deus. Vêde as notas sôbre 2:4, Vol. I, p. 282 e sôbre 7:30; 8:20 e 13:1.

7. «Mundo». Os três sentidos da palavra mundo no Novo Testa-mento são: o mundo geográfico (Mar. 16:16), o mundo humano (João 3:16) e «a massa da humanidade ímpia, alienada de Deus e hostil à causa de Cristo» (Thayer). O pedaço do mundo que era acessível a esses moços, na pequenina Palestina, era seu público religioso, que, para mui-tas almas devotas, mas não regeneradas, é «o mundo» — um mundo ca-paz de um Calvário ou de urna fogueira de Savonarola ou da Santa In-quisição. Traduzi a palavra, no v. 4, «público». Era o mundo dos pere-grinos para as festas em Jerusalém, o público israelita. Vêde as notas sôbre 4:42.

«Mundo». «A palavra mundo (kosmos) parece ser usada no N. T. 177 vêzes. E' notável que nada menos do que 102 das passagens em que a pa-lavra se encontra, se acham nos escritos joaninos: 76 no quarto Evan-gelho, 22 na primeira Epístola, 1 na segunda Epístola, 3 no Apocalipse. Paulo usa a palavra 46 vêzes, mais de metade estando nas Epístolas aos Coríntios.»

«Em grande número de passagens, a palavra se emprega sem idéia moral... Mas em muitas passagens nos escritos joaninos o significado é definitivamente moral, (provàvelmente 27 em João XIV — XVIII e 16 em I João) ... Às vêzes a palavra é aplicada à massa de homens alienados de Deus.» (2)

«Não vos pode odiar.» Westcott chama a lei que controla tais ati-tudes inevitáveis «a lei de correspondência moral». Aquêles entre os

(2) "The Church and the World in Idea and History", p. 352, por W. Hobhonse.

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quais existe afinidade de espírito se atraem mútuamente. Incrédulos se achegam a incrédulos. O mundo incrédulo não podia odiar os irmãos de Jesus porque êsses eram incrédulos também, e seu ponto de vista era totalmente mundano, no assunto em consideração. Logo, há perfeito en-tendimento, intercâmbio, admiração — mas para Jesus hostilidade, sar-casmo, impaciência. Quando o mundo o classifica como parte integral das fôrças de Belzebu, os «irmãos» dêle vêm buscá-lo para interná-lo como doido.

«Dou testemunho repetido.» Sôbre aquele testemunho público e vi-goroso, dado na ocasião de purificar o templo, vêde as notas sôbre 2:15, 16, Vol. I, ps. 294, 295. O testemunho de Jesus sempre esclarece a ver-dade e a distingue do êrro rival. Em cada capitulo que vamos estudan-do, êsse fato se verifica mais nitidamente, até o fim do Evangelho. Sô-bre o pacifismo religioso, vêde as notas sôbre o v. 43.

«Seus costumes... malvados». Vêde o comentário acerca de 3:19, Vol. I, p. 328. Sôbre o ódio que resultou dêsse testemunho de Jesus e dos doze, vêde as notas sôbre 15:18, 19, 23-25. Temos aqui a sentença do Juiz Jesus sôbre a depravação humana. Vêde as notas sôbre 5:29 a respeito do fato de que o juízo final tem como seu critério as obras pra-ticadas nesta vida.

8. «Não». Aqui temos um ponto delicado de criticismo textual. Nestle e Westcott e Hort dão «ainda não» (oupo). A. T. Robertson acha preferível não (ou). Ele explica : «Em João 7:8 ou (não) ao princípio pa-rece contradizer os fatos do contexto, pois Cristo de fato subiu à festa (7:10). Os documentos gregos estão mais ou menos igualmente dividi-dos entre as duas lições. . . O ponto importante no conselho dos irmãos de Jesus é que ele não devia trabalhar em secreto (7:4), como tinha fei-to, ausentando-se da Galiléia por algum tempo. Manifesta-te abertamente ao mundo. Jesus respondeu: Não vou. Agora João explica com cuidado que quando foi, ele foi, não abertamente, mas como que em secreto. De-monstrou sua independência: foi mais tarde, e foi de modo diferente (em particular, não em público). Por isso ou (não) cabe melhor no contexto do que oupo (ainda não).» (8)

Sigo, como incerto, porém mais provável, o texto de Nestle e de West-cott e Hort, embora dê em cima a opinião contrária do Dr. Robertson. Uma discussão, muito além da real importância do assunto, enche muitas pági-nas dos livros religiosos. Há sempre pessoas que mostram um zelo extra-ordinário pela palavra de Jesus quando se trata apenas de matéria de cri-ticismo textual, mas não demonstram interesse nenhum quando se trata de um mandamento a que devemos obedecer.

Como o assunto irrita e enerva os homens, se vê num interessante ar-tigo a respeito, da autoria de H. Aldrovandri Jor.: «Cristo jamais mentiu.»

( 3 ) "An Introduction to the Textual Criticism of the New Testament", p. 160.

C. E. J. — 16

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Cito uns trechos dêsse artigo: «Lemos, algures, que Medeiros de Albu-querque, da Academia Brasileira de Letras, convidado pelos membros da Associação dos Empregados do Comércio, em 1910, para fazer uma confe-rência, o ilustre homem de letras teve a grande infelicidade de escolher o seguinte assunto: SE SE DEVE MENTIR, reunindo muitos exemplos cor-roborativos de seu infeliz tema, inclusive a pessoa de Cristo que também, diz êle, resvalou nesse terreno.» (O caso citado é êste, segundo o texto seguido na Versão Figueiredo, que o autor do artigo recusa aceitar, com razões que me parecem bem fundadas.) «Portanto, Jesus disse que não su-biria AINDA, ... pois os judeus o procuravam para matar, mas, na sua expressão, não subtraía a idéia de que poderia subir mais tarde.»

«Bem dizia Jesus: Vós errais, não conhecendo as Escrituras. Parafra-seando a expressão de Jesus, podemos ainda dizer: Vós errais, não conhe-cendo os originais, as línguas em que foi escrita a Bíblia Sagrada. Não lan-ceis, ignorantes, ao caráter impoluto de Cristo qualquer labéu, sem pri-meiro examinardes a veracidade dos fatos em torno dessa personalidade que nunca teve nem sombra de iniqüidade.» (4)

Aceitemos, por um instante e para discussão, a hipótese de que Je-sus houvesse dito: «Não vou.» Seria mentiroso, por ter ido depois? Ne-nhum dos meus leitores, se Risse convidado a ir, digamos, à feira livre, às seis horas da manhã, teria hesitação alguma em dizer: «Não vou. Es-tou ocupado em casa a esta hora. Podem seguir, pois tenho que fazer aqui.» Mais tarde às dez horas, já livre de responsabilidades, poderia ir, sem pecar por isso contra a veracidade. Não somos livres para mudar de opinião? Quando disse: «Não vou», não foi. Quando decidiu mais tarde que iria, foi. Se é assim, numa questão de horas, quanto mais na-tural que Jesus inocentemente agisse também assim, num intervalo de dias. Todos nós tomamos decisões dessa natureza, sem quebra de vera-cidade, mas sim com o pleno apoio de nossas consciências. E Jesus podia agir moralmente da mesma maneira. Não é preciso supor que Jesus, quando disse: «Não vou», sabia que mais tarde êle tomaria outra decisão e iria. Jesus não era onisciente, sabia com presciência sômente aquilo que o Espírito Santo lhe dava o poder de prever, e sabia quando o Espí-rito o orientava — não antes. Os que aceitam a forma mais curta do tex-to e então atacam a veracidade de Jesus, com igual ânimo crítico estra-nham o fato de que os profetas afirmam que Deus «se arrependeu». A idéia fundamental do arrependimento é mudança de atitude. O homem muda. Deus não mudará também? Como haverá perdão, a paz dos justi-ficados, o valor do Calvário na vida pessoal, se Deus não muda? O Imu-tável está sempre mudando. E' o paradoxo de sua natureza eterna em re-lação a nossa natureza finita e perversa, em constante reação redentora ante o pecado e o arrependimento. Quando o ímpio se arrepende diante

(4) "Expositor Cristão'', 23 de fevereiro de 1943.

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de Deus, Deus se arrepende diante do ímpio. Que seja «autropomórfica» a linguagem, vá lá! Que há outras verdades a tomar em consideração, eu serei o primeiro a afirmar. Mas se Deus «se arrepende», e se Jesus faz aqui «o que vê o Pai fazer (5:19), então êle se arrepende também. E não nos ofenderia se o texto aqui nos desse um exemplo disso. Não é possível torcer o texto de modo a justificar uma teimosa ética jesuíta. Não é, pois, por essas considerações que aceitamos o outro modo de ler o versículo, mas porque nos parece que o pêso da evidência favorece a fra-se «ainda não vou».

9. «Ficou». E' como o «não vou», que acabei de discutir. «Ficou», por um pouco.

10. «Não públicamente». Como nosso Senhor aborrece a ostenta-ção religiosa! Sua condenação das praxes farisáicas de ostentação ao dar esmolas, em orar diante dos olhos do público, e em mostrarem faces tris-tonhas nos jejuns ceremoniais, constitui o âmago do Sermão do Monte e da Parábola do Fariseu e o Publicano. Vêde as notas sôbre 5:44, acerca da modéstia de Jesus.

7:11 a 10:21. «Notai que todos os incidentes historiados nesta longa passagem aconteceram em Jerusalém durante a Festa dos Tabernáculos (set.-out.) e que o discurso repetido em 10:22-39 foi proferido em Jeru-salém também durante a Festa da Dedicação (na época de nosso Natal). Essas passagens em Luc. 10:1 a 13:21 contêm tudo quanto sabemos acêr-ca do ministério posterior na Judéia.» (5)

11. «Os judeus». Sôbre a religião popular, e o fato de haver poucos fariseus, mas um farisaísmo geral que era universal entre os judeus sé-rios, vêde as notas a respeito de 5:44.

12. «Murmuração». Vêde as notas da Versão Franciscana, citadas no comentário sôbre 6:43.

«As turbas». O Dr. A. T. Robertson insiste em que levemos à mente os grandes grupos diferentes, «as multidões» que constituiam a multi-dão: «os líderes judaicos (7:13, 15, 25, 26, 30, 32, etc.), a multidão da Galiléia e alhures (7:10-13, 20, 31, 40, 49), o povo comum de Jerusalém (7:25) e os soldados romanos (7:45, e segs.» (6)

13. «Ninguém falava com franqueza a seu respeito.» Quando a si-tuação é essa, Jesus está para ser traído. Há muito testemunho em se-grêdo a seu respeito, muitos crentes à moda de Nicodemos, muito em silêncio, precisamente nas horas momentosas em que o volume da fé, co-rajosamente declarada, seria capaz de impressionar, evitando uma crise de oposição a Jesus. E é ainda mais lastimável quando, em círculos cris-tãos, muitos fingem ser da fé e falam do «bom Jesus», do «meigo Naza-reno», do «martir de Gólgota», quando, se falassem com franqueza o que pensam no coração, estariam dizendo também que toda essa idéia de um

(5) "The Teacher", de fev. de 1943.

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Cristo que é Deus Homem, Redentor, é «teologia», e só serve para lu _E-briar os simplórios que não têm a iluminação da cultura científica! O Ca-pítulo VI mostra como Jesus provocou os tais para revelar sua real incre-dulidade e tomar sua posição francamente com os descrentes. Deus per-mitiu o incidente da morte de Ananias e Safira porque estavam entran-do membros demais na novel igreja. «E ninguém mais ousou juntar-se a eles.» E êle ordenou a mais zelosa disciplina nas suas igrejas para que não entrem, e, para que, se entram enganosamente, não fiquem na grei, os que no íntimo opinam que nós somos uns pobres ludibriados em nossa fé no Cristo histórico dos Evangelhos. Não há lugar para tais homens no cristianismo nem um só instante.

«Mêdo dos judeus». Sôbre a freqüência com que Jesus nos seus man-damentos proibia o mêdo, vêde o comentário sôbre 6:20. A sombra do Calvário já está sôbre todos que peregrinam com o Salvador, e é terrível para êle mesmo, para os discípulos e para seu povo. Os cinco mil homens que êle alimentara num dia correram dêle, no dia seguinte, como se fosse um leproso, ao ouvirem-no falar de sua morte sob as figuras de comer sua carne e beber seu sangue. Jesus assim salienta a realidade vindoura. Ele é franco. Os que covardemente escondem seus reais sentimentos a res-peito dêle, sejam favoráveis, sejam desfavoráveis, pertencem moralmente à mesma classe de espíritos daquelas turbas.

( 6 ) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V. p. 124.

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Divergências Populares acêrca de Jesus e a Trama Oficial da sua Morte

(Capítulo VII, versículos 14 a 36)

14 Mas, afinal, em melados da semana festiva, Jesus subiu, entrou no tem-

15 plo e começou a ensinar. 1 Os judeus, pois, comentavam admirados: "Como

16 é que esse homem tem cultura? Não é formado!" I Jesus deu-lhes a seguin- te resposta: "A minha doutrina não é minha mas sim daquele que me en-

17 viou. 1 Se alguém decididamente quiser pôr em contínua execução o querer divino, vai saber acêrca da doutrina, se é de Deus

18 A Forte Vontade ou se eu, de mim mesmo, a profiro. I Aquele Humana de Seguir cujo ensino parte de si mesmo, ambiciona glória,

a Verdade e Von. sua própria glória. Mas quem procura a glória

tade Divina Dará daquele que o enviou, este é sincero e nele não

19 Luzes à Mente. existe maldade. I Não vos deu Moisés a lei? E, todavia, não há um só entre vós que ponha em prá-

20 fica a lei. Por que estais determinados a matar-me?" 1 A turba lhe tor-

21 nou: "Tu tens um demônio! Quem, procura matar-te?" I Jesus por sua

22 vez tornou: "Uma obra fiz e todos vós ficais admirados por isso. I Moisés vos deu a lei vigente da circuncisão, — não que ela tenha sua origem em Moisés, mas sim nos patriarcas, — e vossa praxe permite circuncidar um

23 homem num, dia de sábado. 1 Se um homem recebe a circuncisão num dia de sábado, para que a lei de Moisés não seja quebrada, tendes raiva

24 de mim porque em dia de sábado eu tornei são um homem inteiro? I Dei- xai êsse hábito de julgar segundo as aparências; antes tomai logo a decisão

25 reta." 1 Então alguns do povo de Jerusalém comentavam: "Não é êsse o

26 homem a quem procuraram matar ? I E, todavia, vede como fala ousada- mente, e não lhe dizem nada! Acaso os chefes reconheceram de fato que

27 êle é o Cristo? Não é possível! I Ora! Nós sabemos dele — da sua

28 origem. Mas o Cristo, quando vier, ninguém sabe donde ele é." I Jesus, pois, bradou no templo, no seu ensino, dizendo: "Sim, me conheceis e sabeis donde eu sou. TaTnibém não é de mim mesmo que parti e aqui es-tou; pelo contrário, aquêle que me enviou, a quem vós desconheceis, é ge-

29 - 30 nuíno: I eu o conheço, porque dele venho, e êle me comissionou." I Por- tanto, buscavam oportunidade de prendê-lo; sèmente não pôs ninguém as

31 mãos nele porque sua hora ainda não chegara! 1 Da multidão, porém, muitos creram nele, pois diziam: -Será possível que o Cristo, quando vier, fará sinais miraculosos maiores do que este já fez? Não acreditamos!"

32 I Os fariseus ouviram o murmúrio do povo, dizendo essas coisas acêrca dele, e os sumos sacerdotes e os fariseus enviaram oficiais da guarda do tem-

33 plo para prendê-lo. 1 Jesus, pois, disse: "Ainda um pouco de tempo es-

34 tou convosco, e vou para aquêle que me enviou. 1 Vós me buscareis e não

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35 me achareis, pois onde eu estou, vós não podeis chegar." I Os judeus,

pois, disseram uns aos outros: "Para onde é que ele está para viajar que nós não o acharemos? Será que ele está a partir para a Dispersão dos ju-

36 deus no mundo grego e ficar ensinando os gregos? Não pode ser! I Que

vem a ser essa palavra: Vós me buscareis e não me achareis, e: Onde eu es-

tou, vós não podeis vir?''

14. «Festa». Era um período de oito dias. Nunca pensemos das festas religiosas principais entre os judeus como durando um só dia, ou como significando o dia principal da festa. A festa é o prazo oficial todo.

«Templo». Vêde as notas sôbre 5:14, a respeito do assunto: «o tem-plo contra Jesus.»

«Ensinou.» Ensinou no «templo». Não era essa a função do tem-plo e seus altares, mas a das sinagogas, onde Jesus assistia todos os sábados e usava suas oportunidades de cidadão para fazer exposições da Escritura ao povo. Pois as sinagogas, no judaísmo, como as igrejas, no cristianismo, eram os locais de culto para a instrução do povo na Palavra de Deus. Mas Jesus, na sua deidade, encarnação e missão de Profeta, cumpria a Nova Aliança e seu belo ideal: «todos ensinados por Deus». Vêde o comentário sôbre 6:46.

15. «Cultura» (letras). Tenho visto homens verdadeiramente educados, com uma profunda cultura e sabedoria nas coisas do espírito humano, mas analfabetos; longos anos de fé e comunhão com Jesus, e de educação dada por sua Palavra, assimilada na consciência e no ca-ráter, tornaram essas pessoas humildes verdadeiros conselheiros de ho-mens de letras em sua comunidade. Há uma cultura nas Escrituras que fornece, ao espírito dócil, capacidades mentais e morais diante dos problemas da vida que nenhuma outra sabedoria alcança.

«Letras». Envolve a familiaridade e o uso por Jesus dos métodos literários do tempo, diz Westcott. E Marcus Dods declara que não foi a sabedoria de Jesus que desconcertou os líderes, mas a cultura dêle, a despeito do fato dêle não ter assistido em nenhuma das escolas teológ'- cas rabínicas (as de Hilel ou Shamai). E' a mesma admiração do Siné-drio por causa da coragem eficaz de Pedro e João (Atos 4:13) .

15 - 24. Moffatt interpelou este trecho do Evangelho entre os Ca-pítulos 5 e 6. A justificação dessa medida radical, ousada e arbitrária é que TALVEZ as filhas de papiro do original tenham ficado desgru-dadas, e, caindo no chão, uma fôlha ficou fora de seu lugar. Ao uni-las de novo, eis que a fôlha que continha os versinhos 7:15-24 ficou metida entre a fôlha que nos deu o cap. 5 e a que nos deu o cap. 6, ou entre a fôlha final de um e a primeira do outro trecho.

E' uma hipótese muito simplista. O prof. E. A. Mc Dowell, Jr., colega do pranteado Robertson no Seminário de Louisville (EE.UU. A. ), comenta assim a referida teoria: «Se um desarranjo acidental das

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 247

fôlhas do papiro é responsável pela deslocação do texto, então essa des-locação se devia ter efetuado ou no manuscrito original ou numa co-pia que não fôsse muito distanciada do original no tempo de sua pro-dução. Pois, entre as centenas de manuscritos que foram preservados, de certo, um teria sido guardado que tivesse a suposta ordem original do texto. Em outras palavras, o original ou uma copia bem perto do tempo do original, deve ter sido desarranjado, para poder causar uma sucessão tão longa e ininterrupta de manuscritos assim errados. Mas onde estão os filhos dêsse suposto manuscrito original e puro? Quando fazemos a chamada, não respondem.» (1) Pergunta êle por que um aci. dente igual não se verificou com os outros Evangelhos ou com «Os Atos» ou com as Epístolas. E vamos então supor que os primitivos líderes cris-tãos deixariam perpetuar-se um acidente de tamanha seriedade? «De-vemos atribuir aos copistas e guardas cio Evangelho semelhante crimi-noso descuido? Parece que a teoria de deslocação não resiste às con-siderações do bom senso.» Idéias tendenciosas da cronologia, ou das ati-tudes de Jesus, geram, em mentes irreverentes para com a Palavra de Deus, qualquer arbitrariedade. E essa lhes serve para um criticismo des-trutivo. Sôbre o propósito real do Evangelho, com que sua estrutura in-tegral condiz, mantendo o texto como está, vêde as idéias do Dr. Mc Dowell, citadas no Vol. I, ps. 49, 50, dêste Comentário.

16. «Minha doutrina». Já foi taxada de «dura», por milhares de homens aborrecidos, num só dia. Doutrina dura é bom alicerce do cará-ter pessoal, da estabilidade de uma igreja bíblica, e do reino de Deus sô-bre as consciências humanas, se fôr doutrina dura verdadeira, revelada. Vede as notas sobre isso em 6:60.

«Meu ensino... é daquele que me enviou.» Pois assim todos na Nova Aliança são «ensinados por Deus».

17. «Se alguém se determina gostosamente a pôr continuamente em prática a vontade revelada dêle, conhecerá experimentalmente acerca da doutrina, se é Deus ou se sou eu que estou falando, motu próprio.» E' de novo o ensino de afinidade, «da lei de correspondência», na frase de Westcott. A disposição, a determinação e o gôsto de sempre fazer a vontade revelada de Deus traz luz da mesma revelação. E como a luz que procede do próprio automóvel lhe aponta o caminho a seguir, assim a vontade obediente, já transformada em diretriz da vida e hábito da conduta, ilumina mentalmente a tantos quantos desejam conhecimen-tos doutrinários. E' crime de apostasia desviar-se para as tradições dos homens. Uma vez consentindo em entrar no desvio da desobediência, seguindo as tradições dos homens e não a doutrina de Cristo, quanto maior é a força do propósito, tanto mais se distanciam de Deus ; ficam cada vez mais longe da verdade, na proporção de sua intensidade reli-

(1) "Review and Expositor", Vol. XXXIV, n. 4, ps. 401, 402.

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giosa. A vontade de cumprir, e sempre cumprir, a vontade de Deus, traz em nosso socorro o próprio Deus como guia do pensamento. Ele escla-rece na experiência a doutrina de Cristo e a discrimina das tradições humanas que impossibilitam culto aceitável ao nosso Pai. Os vastos ca-tolicismos do mundo se incapacitaram para saber o que é a verdade. Já foram entregues, corpo e alma, amarrados e envoltos em grilhões, para a constante desobediência da vontade revelada de Deus. Já estão presos a credos impostos pela autoridade clerical que anatematiza a cada passo a doutrina de Cristo. E' absolutamente fútil, para tais pessoas, com tais premissas, procurar saber a verdade. Mas quando já nos dedicamos a uma vida obediente, abrimos o intelecto à luz da doutrina; e Deus, na doutrina de Cristo, revelada no Novo Testamento, nos orienta com se-gurança.

«A doutrina». «Na Escritura, doutrina significa em geral ensino, qualquer coisa ensinada. A doutrina de Cristo abrange todo o escôpo de seu ensino — cada princípio, cada preceito.

«Vejamos como a vontade própria e o egoísmo impossibilitam a im-parcialidade. Interêsse ou simpatias pessoais determinam o credo da maioria dos homens. Removei a vontade própria, pois ~ente assim pode ser removida a barreira às opiniões acertadas.» (Trechos de um sermão do grande, pregador anglicano, F . W. Robertson sôbre «A Obe-diência, O Órgão de Conhecimento Espiritual»). O titulo é sugestivo, mas é mais limitado que a linguagem de Jesus. A obediência em si pode ser limitada e rotineira e não servir como órgão de revelação. E' a atitude que determina a obediência, a fonte da obediência, a decisão que produz a obediência, que nos conduz a conhecimentos experimentais e acertados na esfera doutrinária. Em outras palavras, a obediência e a doutrina. conhecida e assimilada na experiência, são gêmeas que nascem da boa atitude que se chama: a vontade santificada de saber e continuamente executar o que Deus revelou. Deus revelou dever e doutrina, moral e verdade, missões e ortodoxia, evangelismo e teologia bíblica. A determi-nação alegre de saber e pôr sempre em prática a vontade de Deus — quer seja sua vontade a verdade que devemos crer ou o dever que devemos praticar — eis o caminho de acertar a doutrina, tudo que Cristo ensinou sôbre a vida cristã. Querer fazer é o segrêdo de saber, pois quem quer fazer, aprende a teoria e a prática. Como o amador do rádio ou da ele-tricidade se esforça em saber a teoria em seu aspecto prático, assim o crente que tenha fôrça de vontade santa e santificadora busca orientação doutrinária aos pés de Cristo e nas riquezas de sua Palavra, para a vida.

«A vontade dêle» (Deus). Ao pé da letra: se alguém quer o querer dele. Custa sacrifícios fazer a vontade de Deus, sacrifícios e duras con-trovérsias e «contradições de pecadores». Vede as notas sôbre 4, 32, 34. Nessas palavras de Jesus, temos um dos mais importantes versículos da Escritura toda. Querer é o segrêdo de poder moral e religioso.

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18. «De si mesmo». Como o Filho de Deus se esvaziou, na encar-nação, e viveu em absoluta e constante dependência do Pai pelo Espírito, vêde amplamente comentado, no Prólogo e nas notas sôbre 5:19, 30, 31.

«Glória». Vêde o estudo da «glória da parte dos homens», e da inde-pendência de Jesus, nas notas sôbre 5:41, 44.

«Verdadeiro», «genuíno». Vêde as notas sôbre 3:33, 34 e o selo do apoio humano que autentica a revelação divina. Como motivos falsos, egoístas, falsificam o caráter e o testemunho religioso!

19. «Por que estais determinados a matar-me?» Um réu não é juiz de outro réu. Mesmo sendo a hipótese dêles correta, se Jesus fôsse réu de quebra do sábado, eles também eram réus, e contra a mesma lei e êsse mes-mo preceito da lei. A êsse princípio Jesus constantemente apela, por exem-plo, no incidente da adúltera, 8:1-12. Tiago apela para o mesmo princípio fundamental, em sua Epístola (2:8-13) . E o apóstolo Paulo ergue a mes-ma flâmula de justiça (Rom . 14:1-14) . Mas êste princípio, no caso do in-divíduo, não cancela as responsabilidades coletivas que Jesus ordenou (Mat. 18:17-18) nem a disciplina correcional que Paulo também impõe como de-ver das igrejas de Deus (I Cor. 5:11, 12), nem a liberdade e responsabili-dade de opinião. Sôbre o bendito hábito de tomar em consideração tôdas as Escrituras acêrca de um assunto, vêde as notas a respeito de 3:22. Logo, Jesus, que proibiu juízo de certa qualidade no. Sermão do Monte, exigirá (v. 24) juízo reto. Mas um réu não julga outro réu, em matéria de sua própria ofensa, real ou alegada.

20. «Tu tens demônio.» Em outra ocasião, Jesus negará êsse labéu (8:49), mas aqui êle não o discute. Em 10:21, ouvimos da turba uma de-fesa dele contra semelhante acusação. O Dr. Robertson já foi citado acêrca da rápida mudança dos pontos de vista, neste Capítulo, entre várias multi-dões que constituem a grande multidão presente à festa e curiosa acêrca de Jesus. Parece haver uma abrupta modificação, por exemplo, entre os versículos 20 e 21, ou, pelo menos, uma vacilação incessante na mentalida-de da turba. E' uma festa popular como essa que um dia dará a Jesus a entrada triunfal e, na mesma semana, a cruz do Calvário. Não estranhe-mos, pois, os fatos evidentes. O caso aqui é que alguns estão a par do pro-pósito oficial de matar Jesus (v. 26), mas outros, que falam as palavras deste versículo, não alcançaram êsse discernimento, ou familiaridade com os desígnios dos sumos sacerdotes e fariseus.

21. «Uma obra fiz.» A que se refere? Provàvelmente à cura do en-fermo que jazia no alpendre de Betzata. Era um caso famoso. Sessenta anos depois, João ainda o apresentará como uma das grandes provas da deidade de Cristo e fará das discussões provocadas uma parte reveladora, no seu Evangelho. As mesmas pessoas foram a essas festas tôdas, quan-to à assistência local da Palestina. Jesus tinha estado fora da capital, au-sente de tôdas as suas festas por um ano e meio. Cada vez que o povo se reunia em Jerusalém, haveria repetidas narrativas dêsse milagre — o úl-

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timo feito entre eles. E o homem curado morava ali. Era uma razão viva para crer em Jesus, como o era também Lázaro, 12:9, 10. Sómente em circunstâncias como aqui verificamos, seria possível para Jesus dizer: «Uma obra fiz», pois num só dia ele, às vezes, fazia inúmeros milagres mais notáveis do que êsse, se não fora a oposição pública e oficial desper-tada, e ainda lembrada pelo povo, ao ponto de muitos compreenderem a trama para matar Jesus.

«Admirados». Há um tempo de admirar-se e um tempo de não se admirar. Vêde as notas sobre 5:20, 28. A fé admirada, entusiasmada é contagiosa.

«Por isso». Estas palavras não são traduzidas por várias versões, Rohden, V. Brasileira, etc. São vertidas: «Contudo» (Figueiredo e a Fran-ciscana), «Todavia porque» (Dom Frei Joaquim de Nossa Senhora de Na-zareth), «Porquanto» (Harmonia, de Watson e Allen), «Pelo motivo de que» (Almeida, atualmente), «Por isso» (Almeida antigamente e a V . de Frei João José Pedreira de Castro), «Visto que» (Frei Damião Klein). Não vejo sentido algum nestas duas palavras na sentença com que estão or-dinariamente associadas. Há outro alvitre, bem possível e que torna a frase sensata e oportuna. A Comissão Americana aliada com os autores da Revisão Inglesa de 1881 opinou que se juntasse as duas palavras «por isso» com a sentença anterior, fazendo ler: «Vós ficais maravilhados por isso.» (2) A pontuação moderna não existia nos manuscritos gregos — não exis-tia nenhuma nos mais antigos. O ponto ficou erradamente colocado, logo antes em lugar de logo depois de «por isso», e tornou-se geral na obra dos copistas. A mudança de pontuação não afeta doutrina, não serve a nenhum interêsse dogmático, e é um serviço real para o esclarecimento da Escritu-ra. Parece-me, pois, conservantismo cego querer manter um êrro mecâ-nico, evidentemente incorporado no texto séculos depois dos dias de João. O apóstolo escreveu, sem dúvida: «ficais maravilhados por isso». Essa mudança de um ponto, que não existe nos manuscritos mais antigos, não justifica ou diminui a ofensa daqueles que arbitràriamente transferem blo-cos do texto de um lugar para outro, contra o testemunho unânime dos ma-nuscritos e meramente porque isso agrada ao seu subjetivismo. Tam-pouco é caso paralelo o de 7:53 a 8:12, que simplesmente não existe nos mais antigos manuscritos dêste Evangelho. Procuro mover-me no terreno dos fatos, e não de teorias preconcebidas, em todos êsses casos.

22. «Deu a lei vigente.» Deu e está em vigor. Procuro dar o sentido do tempo perfeito do verbo. E' realmente uma importante contribuição para o entendimento do Velho Testamento concordar com Jesus que a lei de Moisés incorporou muita coisa que existia há séculos na religião dos patriarcas. E' exatamente o contrário da teoria do criticismo subjetivo evolucionista, que pretende que a legislação mosaica era a invenção gra-

( 2 ) "Revised New Testament and History of the Revision", p. 488, por I. H. Hall.

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dual de uma casta sacerdotal, séculos depois de Moisés — se é que houve um Moisés, pois mesmo isto êles põem em dúvida. A arqueologia confirma a veracidade de Jesus, e não a dos críticos que são escravos do subjetivis-mo coletivo da casta.

«Num dia de sábado». O ponto é que, caindo o oitavo dia após o nas-cimento num sábado, não se' adiaria a circuncisão por nenhum sabatismo. Do mesmo modo, Jesus recusou adiar uma cura por causa do sabatismo. E' lícito curar, se é lícito circuncidar, seja qual fôr o dia.

«Sábado». Vêde as amplas notas sôbre costumes do sabatismo de en-tão, nas notas sôbre 5:10. O Prof. W. H. Davis sugere que aqui Jesus está ensinando a Israel que êle é o Senhor tanto do sábado como de Israel mesmo.

23. «Se um homem recebe a circuncisão num dia de sábado para que a Lei de Moisés não seja quebrada, estais com raiva contra mim porque no sábado fiz são um homem inteiro?» Se o oitavo dia (o dia da circuncisão) caísse num sábado, faziam ceder o sábado ao rito. Se o sábado poderia ce-der a um rito praticado em um membro do corpo humano, quanto mais po-dia o sábado ceder a Jesus o direito de tornar curado um homem inteiro. E' o argumento de Jesus, e mostra a norma de seus milagres : tornar são o homem inteiro. Está de acôrdo com a praxe do Senhor, de perdoar os pecados do doente em primeiro lugar.

24. «Deixai êsse hábito de julgar segundo as aparências; antes tomai logo a decisão reta.» O Mestre usou o mesmo verbo duas vêzes, em tempos diferentes. Foi de propósito. Um tempo é de hábito, costu-me, ação repetida — o hábito de fazer juízos sôbre a vida alheia pelo «parece que . ..». E' proibido olhar às aparências, ao «rosto». O homem é dado a êsse hábito de olhar ao rosto mas Deus vê o coração e nós tam-bém devemos examinar o coração e não o rosto, em nosso juízo. Há meios de decidir acêrca do coração. «Como podeis falar coisas boas sendo maus, porque a bôca fala o de que está cheio o coração?», Mat. 12:34. A ma-ledicência, o gôsto de condenar sem provas, o prazer em boatos calunia-dores, é retrato perfeito da má índole. Abundando a maledicência — e a maledicência consiste em falar mal de outrem — está provada a mal-vadez do coração, pela infalibilidade de Cristo. Outrossim, «do coração procedem maus pensamentos (raciocínios perversos ou lógica malévola, é a idéia. W.C.T.), homicídios, adultérios, fornicações, furtos, falsos tes-temunhos, blasfêmias». Mat. 15:19. Assim Jesus nos educa em julgar, não pelo exterior, mas pela revelação nas palavras e nos atos do que seja a raiz e o tronco de caráter que produz semelhante fruto. E' dom que o Pai dá aos filhos espirituais, e desenvolve pelo Espírito, havendo nestes boa vontade de obedecer a Jesus, tomando decisões retas. Mas se gos-tam do hábito de censurar por um relance ao exterior, ao aparente, ao

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«parece», ao «ouvi dizer», então saibam que abrigam em sua vida há-bito mau. Jesus o proíbe. São réus que pendem para a violação do nono mandamento. «Deixai», disse Jesus, «de estar julgando» por um relan-ce ao rosto da pessoa ou à face da situação.

O outro lado do mandamento é: «Tomai uma decisão reta.» E' juízo rápido e definitivo. E' dever. E' necessário. E' inevitável. Decisão de caráter envolve juízo reto do caráter dos outros. Não podemos adiar a decisão, tantas vêzes, porque logo outros nos pedem atitudes que só se podem basear em juízo favorável do caráter de quem pede. Viver em indecisão é em si vasta fraqueza de caráter. Temos de decidir, e já. Pois a indecisão de caráter é decisão mesmo, em inúmeros casos. Mas Jesus proíbe que decidamos à toa. «Tomai reta decisão.» «Fazei de vez um julgamento moral.» Pode ser a decisão esta: «Sôbre isso não sei. Não apóio sua acusação. Guardo em reserva minha atitude até que te-nha mais dados pelos quais possa julgar retamente.» Mas com o há-bito de obedecer a Jesus e tomar decisões retas em julgar, com discerni-mento, podemos fazer de vez nossos julgamentos de eventos e personali-dades, com justiça cada vez mais imparcial. Conheço crentes que imedia-tamente formam juízo de pessoas, no íntimo, que quase nunca falham. Discernem o coração pela fala e pelos atos, como Jesus manda, e não pelas maneiras simpáticas, que é o modo mais fácil neste mundo de ser enganado continuamente.

25. «Povo de Jerusalém». O autor é judeu contemporâneo que co-nhece sua gente e a situação histórica. O vulgo de Jerusalém é que sa-beria do plano aí mesmo incubido.

26. «Não é possível.» Assim traduzo a dúvida que a partícula grega indica. Uma pergunta grega podia indicar a resposta, pela partí-cula negativa com que a sentença começava. Aqui a resposta é, de certo: «Não é possível.» Todavia, fazer a pergunta indica que começa a haver sombra de dúvida nas suas mentes.

27. «O Cristo». Entre os discípulos, o têrmo chegaria, com tama-nha certeza, a pertencer a Jesus que o próprio nome dele se tornaria: Jesus Cristo. Para êsses incrédulos, porém, «o Cristo» é o nome do ofí-cio, do vulto messiânico que se vê nas profecias antigas. Vede a discus-são de 4:25 sôbre a qualidade de Messias, popularmente indesejável, que Jesus era, aos olhos dos judeus. Essa noção do vulgo era ignorância, pois os judeus em geral sabiam de onde o Messias viria, Mat. 2:4-6.

«Nós sabemos.» Como muitos, não sabiam o que supunham saber mais.

28. «Jesus, pois, bradou no templo.» «Gritou Jesus, no seu ensi-- no.» Foi um dos maus dias na história cristã, quando surgiu uma cons-

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piração no próprio ministério, e em muitas escolas teológicas, contra a pregação. Os cínicos tomam ares desdenhosos contra o lugar central da pregação no cristianismo de Cristo e dos apóstolos, como se o hábito de pregar fosse uma invasão da liberdade alheia. Os sacramentalistas exal-tam o culto cerimonial, as superstições materialistas e ostentadoras, em prejuízo da pregação da Palavra. Olvidam que são precisamente os adep-tos de tais religiões que só pisam na igreja quando por consideração so-cial tem um filhinho para batizar, uma filha para dar em casamento, com as solenes belezas da liturgia sacerdotal, ou um defunto para chorar. Até se tornou moda, nos seminários teológicos hodiernos, ensinar às no-vas gerações de pregadores a não pregar — mas apenas conversar no púlpito. Para os que se conformam, o resultado é, com a brilhante ex-ceção de uma pequena minoria que sabe muito bem usar a voz, o desâni-mo e a derrota. Quem crê alguma coisa com tôdas as veras da alma, mostra entusiasmo. Quem é arauto brada suas novas, faz ouvido por todos o seu recado oficial. Quem dirige um culto público não conversa, PREGA. A Palavra de Deus não é apenas para uns moços que têm ou-vidos bem agudos, ficando os diáconos e as pessoas velhas no auditório sem compreender a metade do que o pastor diz. Nem os profetas nem Jesus Cristo são exemplos de conversadores no púlpito. Jesus bradou no templo. Os dois principais verbos traduzidos «pregar» no Novo Tes-tamento são: um que trata do tema da pregação, a boa nova, e significa evangelizar, pregando ; e outro verbo que define o ato de pregar como o de um arauto, um proclamador público que brada nas estradas a vinda e a vontade do Rei. De Jesus é afirmado muitas vêzes ter PREGADO assim, nos Sinóticos. E João nos diz três vêzes que êle BRADOU esta mensagem. E é essa sorte de PREGAÇÃO de ARAUTO que Paulo de-clara ser o método pelo qual agradou a Deus salvar os que crêem. O evangelho de Deus não é um tema acadêmico a discutir. E' salvação a proclamar, com os entusiasmos de uma alma certa e acesa de convic-ção espiritual, em testemunho da verdade eterna, imutável e suprema. mente urgente para o bem-estar de todos os homens. De certo, convém modular a voz, de acôrdo com o sentimento. Mas será mau dia para o cristianismo quando seus pregadores degenerarem nuns meros conver-sadores, de índole literária. Estarão desviados de Jesus. Ele BRADOU no templo ; conversava na roda social.

«De mim mesmo». Jesus repete a negação de independência ou de originalidade. Vêde as notas sôbre 5:19, 30, 31.

«Parti e aqui estou.» Sôbre o tempo perfeito do verbo grego, vêde o comentário nos vs. 5:10-47.

«Genuíno, verdadeiro». Vêde as notas sôbre 3:33, 34.

29. «Comissionou». Vêde 4:38 e 17:18 e as notas a respeito.

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«Conheço.» E' a essência da vida social da Trindade e da «vida eterna» do crente, 17:3. Vêde a nota sôbre 8:19.

30. «Prendê-lo.» Vêde a discussão de 5:14 e «o templo contra Jesus».

«Hora». Jesus havia de dizer: «A mulher quando dá à luz, enche-se de tristeza porque chegou a sua hora; mas depois de nascida a crian-ça já não se lembra da aflição, pelo gôzo de haver um homem nascido no inundo. Assim também vós estais agora em tristeza, mas eu vos tornarei a ver, e o vosso coração se encherá de gôzo, e esse gôzo nin-guém vô-lo tirará.» Aí a «hora» de Jesus é a «hora» de «aflição» dos discípulos, pois confundem-se em amor. E' a «hora» de Cristo «con-duzir à glória muitos filhos», Heb. 2:10. O Calvário é a «hora» das dores de parto do amor maternal de Jesus Cristo. «Todavia, foi do agrado de Jeová esmagá-lo; deu-lhe enfermidades. Quando a sua alma se puser por expiação do pecado, verá a sua semente e prolongará os dias... Ele verá o fruto do trabalho (dores de parto) de sua alma e ficará satisfeito», Isa. 53:10-11, segundo as versões Almeida (v. 10) e Brasileira (v. 11) .

«A hora». «João se empenha em tornar claro que a perseguição e morte de Jesus seguiram um curso predestinado», diz Bernard. Vêde 2:4; 7:6, 8; 8:10; 10:39; 13:1, etc. e a discussão aí dada.

31. «Creram.» A essência do evangelho, exposto por João, está nos noventa e oito lugares em que êle emprega o verbo crer. Sôbre os sentidos do verbo, vêde as notas dadas em conexão com os versículos 4:50, 51, 53; 5:38; 6:29, 30, 47, 56, 64. Jesus, no dia depois do mila-gre da alimentação dos cinco mil homens, já provou a crença messiâni-ca de vasto número de discípulos nominais e lhes revelou que não eran: genuinamente crentes. Ele não dava valor algum à mera crença de que êle era um taumaturgo. E vai provar se essa fé aqui declarada é genuína. Vêde 8:31.

«Sinais miraculosos maiores». Vêde a nota sôbre 4:48, e a dis-cussão de 5:7 e 20:30 a respeito da abundância dos milagres que acom-panharam a encarnação e humilhação redentora do Filho de Deus na sua carreira messiânica. «Não acreditamos» é o sentido subentendido na partícula grega usada.

32. «Os fariseus». Há ampla discussão sôbre os fariseus nas notas sôbre 4:1.

«Ouviram o murmúrio do povo.» São boatos, opiniões de grupi-nhos, as idéias pessoais que se avolumam em opinião pública regula-dora de governos e aristocracias, sempre tementes das camadas de opi-nião democrática, mais tementes do que os que vivem no meio dessa

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opinião e dela compartilham. Sobre o alcance popular dessas noticias e opiniões acerca de Jesus, vede as notas sôbre 4:47.

«Oficiais da guarda do templo». Os sacerdotes eram delegados de Roma, na esfera civil, e tinham êsses subdelegados ao seu dispor. O têrmo originalmente se referia aos remadores da linha inferior, nos barcos gregos. A João Marcos é aplicado êsse têrmo, Atos 13:5. E Paulo a si mesmo o aplica em relação a Cristo. Pena é que muitos «sub-delegados» de Cristo agem ao contrário do que êle manda, e seguem sua própria opinião, precisamente como êsses oficiais do templo. E', de novo, «o templo contra Cristo», como em 5:14.

33. «Um pouco de tempo estou... depois vou.» Esses solenes avisos do «êxodo» do Filho de Deus começam aqui e se espacejam em intervalos cada vez mais curtos, em 8:21; 12:35; 13:33; 14:19; 16: 16, 17, 18, 19, limitando-se afinal o aviso aos que se mostram dispos-tos a recebê-lo. Vêde as notas sôbre 16:16-19, quando afinal parece ter penetrado a solene nova na mente dos Doze.

34. «Vós... não achareis.» Há uma vasta melancolia na profe-cia: Vós me buscareis — em vão! O judaísmo incrédulo ainda vagueia na miséria dessa orfandade sem remédio.

«Onde eu estou». «Segundo Santo Agostinho, não disse onde es-tiver, mas onde estou; porque êle estava sempre nesse lugar para onde ia voltar e de lá viera sem deixá-lo (1:18; 3:18).» (3)

35. «Não podeis chegar.» Westcott, discutindo o v. 7, diz que êsse «não pode», «não podeis» e semelhantes declarações «são freqüen-tes no Evangelho de João» e se conformam com «a lei de correspon-dência moral», sendo usadas das «relações entre os judeus e Cristo (7:34, 36; 8:21, 43; 12:39), e do mundo em relação ao Paráclito (14: 17) ; e de outro aspecto da relação entre o crente e Cristo, na sua ini-cial aproximação (6:44, 65; 3:3, 5) e ainda da relação do Filho para com o Pai (5:19). Cada vez mais a impossibilidade está na verdadeira natureza das coisas, e é o outro lado do divino E' NECESSÁRIO (20:9).» (4)

«Os gregos». David Smith pensa que um elemento, talvez, da tenta-ção de Jesus, quando lhe foi mostrada uma visão de todas as nações do mundo, era um apelo de Satanás a uma prematura expansão do espírito missionário do Messias, que se via limitado, nos dias de sua carne, a uma pequena nação em terra diminuta e que assim lhe foi oferecido logo um pro-grama de universalismo missionário fora da vontade revelada de Deus.

(3) "A Versão Franciscana do Novo Testamento" da autoria do Dr. José Basílio Perei-ra, Vol. I, p. 356.

(4) "The Gospel according to St. John", in loco.

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E diz: «E' significativo que os padres gregos costumavam dizer que o cris-tianismo era uma filosofia: outrossim, se Jesus tivesse pregado entre os gregos, êles o teriam classificado como Filósofo e não Salvador, e seu en-sino como filosofia e não evangelho.» (5) E' volta inconsciente a essa ten-tação subtil do Diabo quando certos ministros se envergonham da simpli-cidade do evangelho e procuram torná-lo complexo e mistificá-lo com têr-mos de ostentação filosófica e obter para si louros de filósofos ou peritos nas inúmeras escolas de pensamento filosófico à custa de sua eficácia evan-gélica e evangelística.

«Ficar ensinando os gregos». «Assim, na sua ignorância, antecipan-do o verdadeiro curso que o cristianismo havia de tomar; o que lhes pare-cia fantástico e impossível tornou-se a realidade.» (6)

«Não pode ser.» Sua pergunta indica, no original, essa resposta. 36. «Que vem a ser essa palavra?» «Esquadrinham na sua perple-

xidade essa declaração que consideram inescrutável. Até Pedro se pertur-ba mais tarde sôbre o que significará (13:37).»

(5) -In the Days of 114 Flesh", p. 38. (6) "Expositor's Greek Testament", in loco, por Marcus Dods. (7) "Word Pictures in the New Testanwnt", Vol. V, p. 130.

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Jesus, pelo Espírito, é Água Viva que Mana nos Crentes

(Capítulo VII, versículos 37 a 52)

37 Ora no último dia, o magno dia da festa, Jesus tomara sua posição e de repente bradou, dizendo repetidas vezes: "Se alguém está com sede constante,

38 venha sempre a mim e se sacie. I O que continuamente crê em mim, como a 39 Escritura declarou, rios de água viva lhe manarão do íntimo." I Isso, porém,

ele falou acerca do Espírito que haviam de estar Todo crente tem o continuamente recebendo os que de vez creram nele. influxo do Espírito. Pois o Espírito ainda não estava, porque Jesus ainda

40 não fôra glorificado. I Portanto, alguns da mul- tidão que ouviram essas palavras diziam: "Esse é realmente O PROFETA!"

41 I Outros diziam: "Ele é o Cristo!" Mas alguns tornavam: "Não! Pois é da 42 Galiléia que o Cristo vem ?!! I A Escritura não falou que da semente de 43 Davi, e de Belém, a povoação onde Davi vivia, o Cristo há de vir?" I Por

causa dele deu-se, portanto, uma divergência no 44 Cristo causa povo. I E alguns deles tinham vontade de prende- 45 lo de vez, contudo, ninguém lhe pôs as mãos.

divergência. I Então voltaram os oficiais da guarda do templo para os sumos sacerdotes e fariseus; e esses lhes perguntaram: "Por que não,

46 o trouxestes?" I Os oficiais responderam: "Nunca homem falou assim como 47 fala este homem!" I Portanto, tornaram-lhes os fariseus: "Até vás haveis 48 sido ludibriados?! Não é possível! I Depositou confiança nele pessoa al- 49 das altas autoridades ou dos fariseus?! Não! I Mas esses plebeus, 50 analfabetos quanto à lei — são malditos!" I Nicodemos, que viera a ele

anteriormente, sendo um deles, lhes pergunta: 51 Raiva aristocrática I "Será que nossa lei está julgando o homem sem

que primeiramente ouça dele e saiba que é que 52 ele está fazendo? Não é possível!". I Replicando tornaram-lhe: "Tu tam-

bém és da Galiléia? Não pode ser! Examina e vê que da Galiléia não se levanta profeta!"

37. «No último dia». «A festa dos tabernáculos durava oito dias. No oitavo dia, realizava-se uma santa assembléia na qual o povo celebra-va sua entrada na Terra Santa, abandonando suas tendas e voltando a re2ffir em casas. Em cada um dos sete dias a água se tirava do tanque de Siloé num jarro de oiro e era levada em solene procissão ao templo, em comemoração das águas que sairam da rocha... » (1) Cessou a água por ocasião da entrada simbólica na Terra da Promissão, ao oitavo dia. Jesus bradou que êle era a Rocha, e dêle viria pelo Espírito Santo, que

(1) "The Expositor's Greek Testament", Vol. I, p. 676, por Marcas Dods.

C. E. J. —17

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ia dar, o real e perene refrigério do espírito humano na sua pere-grinação.

«Jesus tomara sua posição de espera e de repente bradou.» Há contraste deliberado entre os tempos do verbo grego, «contraste entre a atitude de demora em posição vigilante de espectativa, e o brado decisivo que sucedeu». (2)

«Bradou.» Vêde o v. 28 sôbre o entusiasmo com que bradou na sua pregação, em contraste com a arte de conversar no púlpito.

«Se alguém sentir sêde». O verbo se usa no Sermão do Monte sôbre o anelo forte pela justiça, Mat. 5:6, e, sempre neste Evangelho, acêrca da dependência da alma em Jesus, 4:13, 14, 15; 6:35; como no Apocalipse, 21:6; 22:17.

«Que venha sempre a mim e beba.» O tempo presente linear do ver-bo grego expressa ação contínua ou repetida. Há um beber de vez, e há um beber perene. Ambas as doutrinas formam parte dêsse simbolismo es-piritual do evangelho, e sem as duas partes complementares o evangelho não é íntegro. Há um aspecto instantâneo, de vez, eterno, jurídico, objeti-vo nas suas causas, imutável no valor que Jesus Cristo tem, para a fé-con-fiança inicial do homem que se salva no ato de arrependimento e fé. E há um aspecto perene, contínuo, intermitente no gôzo, mil vêzes repetido, va-riável em intensidade, cônscio ou incônscio, com surtos de renovação ou períodos de desvio, e êste aspecto da experiência cristã tem sua origem e fonte de poder naquele, e é cultivado pela fé com que oramos e sacamos de Deus os recursos espirituais para crescer na graça e no conhecimento do Senhor. 04primeiro aspecto _é a salvação, com que descobrimos e tomamos posse da fonte inesgotável que é Cristo_Jea_us O sepecto -e—o Uso diário da fontetzedescobrimos na salvacão. 4:14 é-ititeLiei de Vez qt.ieTeus_nfer,ece em lugar de uma religiao de prestações de mérito e in-teryalos_de fervor e satisfação. Aqui é o _beber da vida cristã, depois da salvação. Vêde a discussão sôbre_1:13, 14—Nãohá mais razão para apli-car à ceia do Senhor a linguagem de Cap. VI do que a deste versículo. O católico não bebe do cálice, privilégio reservado ao padre, portanto, fica contente que não se fale da «Eucaristia» aqui. Martini é citado na Ver-são Franciscana assim: «Quem tem sêde (diz êle) da verdadeira justi-ça, dos verdadeiros bens, da verdadeira felicidade, venha a mim e será saciado. Tanta festa por um pouco de água tirada de Siloé, porque o olhais como símbolo da lei, de que vos gloriais! Sabei, porém, que as águas de Siloé são nos profetas símbolo, não tanto da lei, como dos dons do Espírito, que são dados à fé, e não provém da lei; e sabei ainda que a abundância dêstes dons, naqueles que em mim crerem, se pode com-parar perfeitamente aos rios grandes e perenes, que, ricos de águas, inundam e cobrem os mais vastos campos.» (3)

(2) "Some Lessons of the Revised New Testament", p. 25, por B. F. Westcott. (3) Versão Franciscana do N. T., do Dr. José Basílio Pereira, Vol. I, p. 351.

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Tanto sôbre os dois sentidos de crer e os dois aspectos da salvação e da vida cristã, como a relação às duas fases da doutrina e atividade histórica do Espírito Santo na vida humana, creiamos tudo que a Es-critura ensina a respeito, não apenas o lado da nossa predileção. Vêde, nesta conexão as notas sôbre 3:22.

38. «O crente em mim». E' a linguagem própria do evangelho, que já discutimos nas notas sôbre 6:47. A vida eterna tem fé contem. porânea. Vêde as notas sôbre 6:29.

«A Escritura diz.» Como Jesus conhecia, amava, e reverenciava a Bíblia! Nestle cita como Escrituras a que êle se referia: Ez. 47:1-12; Zac. 13:1; 14:8; Joel 2:28; 3:18. Sôbre a reverência de Jesus para com sua Bíblia, vêde a nota de Moffatt, no comentário sôbre 5:39.

«Água viva». Vêde as notas sôbre 4:10. E, da salvação como fon-te, e sua maneira de «jorrar», constante e espontâneamente, há uma discussão nas notas sôbre (4:14) .

«Dêle (do Messias) manarão rios de água viva.» Assim querem traduzir e interpretar Rendel Harris, E. W. Bullinger, o Dr. Burney, W. H. Griffith-Thomas e outros intérpretes britânicos. Resolvem o problema com demasiada simplicidade. O pronome não tem razão al-guma para se referir ao Messias. O antecedente claro é «quem tem sêde», bebe, crê em Cristo. Os pronomes que indicam o Messias são Os dois «me». Não usaria Jesus o pronome da terceira pessoa, se ainda falasse de si, no mesmo texto. E' possível mudar a pontuação e assim fazer que as palavras de Jesus, em aspas, terminem com a referência às Escrituras. O que segue seria uma declaração de João, no fim do século, a respeito de Jesus. Mas a hipótese é discordante do contexto, pois imediatamente João afirma que Jesus falara, não de si, mas do Espírito Santo. A pontuação de Nestle e de Westcott e Hort está certa, e dá sentido mais coerente ao trecho todo.

39. «O Espírito não fôra dado.» «Não fôra dado, isto é, com aquela abundância de graça espiritual que dotou aos reunidos no dia de Pentecostes para falarem em tôdas as línguas.» (4) Pode ser com-parado o fato do Espírito ser «dado», formal e públicamente, no dia de Pentecostes, e sua existência e atividade anterior, com o ato de um pai ao dar sua filha ao seu futuro genro. Quando o moço a pediu em ca-samento o pai a deu. Já são preciosas as relações e o gôzo mútuo, no noivado. Depois, na cerimônia religiosa do casamento na igreja, o mes-mo pai, formal e públicamente, dá sua filha ao mesmo noivo em nova solenidade que seja as promessas e o gôzo anteriores. Assim Deus deu o Espírito em muitas ocasiões, em gôzo e fruto, chamada e dons. Mas,

(4) Comentário de Agostinho sôbre este Evangelho, II, 167, Versão Inglesa de J. Gibbs.

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no Pentecostes, o deu, formal e publicamente, numa relação perene coa os crentes e as igrejas e o mundo.

«O Espírito Santo ainda não estava». «Significa Unicamente que o Espírito Santo não podia cumprir sua missão peculiar como Revelador de Cristo até que fôsse consumada a obra expiatória de Cristo. João 7:39 tem de ser interpretado à luz de outras Escrituras que asseveram a atividade do Espírito Santo na velha dispensação (Salmo 51:11 —«Não tire de mim teu Espírito Santo), e descrevem seu ofício peculiar sob a nova dispensação (João 16:14, 15) . Ele tomaria do que era de Cristo, depois da consumação da obra redentora no Calvário, e mostra-ria isto aos discípulos.

«A limitação na maneira da obra do Espírito, no Velho Testamento, envolveu uma limitação, no alcance e poder, da mesma obra também. Pentecostes foi a libertação de uma maré de influência espiritual que havia sido represada. Daí em diante o Espírito Santo era o Espírito de Jesus Cristo, tomando as coisas de Cristo e mostrando-as, aplicando sua obra consumada da redenção a corações humanos, e tornando o Salvador oni-presente real até o fim do mundo para seus seguidores dispersos.

«Debaixo das condições de sua humilhação, Cristo era um servo_ Toda a autoridade no céu e na terra lhe foi dada sómente depois da res-surreição. Por isto êle não podia enviar o Espírito Santo antes de reali-zar sua ascensão. A mãe não pode mostrar seu filho vantajosamente en-quanto êle não atinge a maturidade. O Espírito Santo podia revelar Cristo plenamente, só quando houvesse um Cristo completo para reve-lar. O Espírito Santo só podia plenamente santificar depois que fosse dado o exemplo e o motivo da santidade na vida e morte de Cristo. Ar-cher Butler declara : 'O divino Pintor não podia descer para preparar cópia antes que o original fôsse provido.'

«Todavia, o Espírito Santo é o Espírito eterno (Heb. 9:14), e tan-to existia como era operoso nos tempos do Velho Testamento... Antes de Cristo, o Espírito já não estava revelado, disponível, manifestado. Agia no mundo assim como a eletricidade, a qual também já existia an-tes de Edison. Realmente havia tanta eletricidade antes de Edison como há agora. Edison apenas nos ensinou a usá-la ; no entanto, podemos ve-razmente dizer que antes de Edison a eletricidade não tinha existência nenhuma, como meio de iluminar, aquecer e transportar o povo. Logo, até ao Pentecostes, o Espírito Santo como Revelador de Cristo 'já não estava'. Agostinho chama o Pentecostes o dies natalis, dia de nasci-mento, do Espírito Santo ; e pela mesma razão que nós chamamos o dia em que Maria deu à luz seu Filho primogênito o dia natalício de Jesus Cristo, embora antes que Abraão nascesse, Cristo já existia. O Espíri-to Santo se ativara na criação, inspirava aos profetas, mas, oficialmente, como mediador entre os homens e Cristo, o Espírito Santo ainda não

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estava. Ele não podia mostrar as coisas de Cristo até que as coisas de Cristo estivessem prontas para serem reveladas.» (6)

«O Espírito ainda não estava». Assim traduzo esta passagem, uma das mais enigmáticas da Bíblia. Nem Nestle nem Westcott e Hort, nas suas edições do texto grego, têm a palavra «dado», que aparece; nas tra-duções. Há só um verbo na sentença, e não é o verbo dar, mas se pode traduzir era, estava ou havia. Certamente Jesus não declarou: «O Espí-rito não existia», nem que «Ainda não havia o Espírito.» Resta a tradu-ção: «O Espírito ainda não estava.» Que significado, portanto, pode se-melhante linguagem ter, nos lábios de Jesus, em tais circunstâncias?

Podemos rejeitar duas idéias confiadamente. «O Espírito não exis-tia», é fundamentalmente falso. O Espírito de Deus não é criatura, co-meçando sua existência no Pentecostes depois da ascensão de Jesus. Ou-trossim, é igualmente falsa a idéia de que o Espírito não operava com energia salvadora e santificadora no crente antes do Pentecostes. Cris-to próprio e as Escrituras negam ambas estas idéias, muitas vêzes e ca-tegóricamente. O significado real, pois, tem de ser outro. Qual será?

Nestle dá na margem esta Escritura paralela. «Se eu não fôr, não virá a vós o Paráclito», João 16:7. O Espírito, como Paráclito, iniciaria sua missão depois de Jesus estar glorificado. Antes não viria. Pois bem. Se o Paráclito não viria enquanto Jesus estava na terra na carne, en-tão é neste sentido que Jesus declarou que «ainda não estava o Espírito».

O Espírito Santo operava no mundo desde quando este existia ainda em estado caótico, Gên. 1:2. De certo, sua atividade não se paralizou quando se deu a encarnação do eterno Verbo na vida humana. Pelo con-trário, o Espírito Santo foi o Autor desta encarnação, Mat. 1:18, 20; Luc. 1:35. Veio também em unção especial, única e ilimitável sôbre Jesus no dia do seu batismo. O Messias, assim ungido, e cheio do Espí-rito Santo (Luc. 4:1), foi por êste impulsionado para enfrentar ao su-premo espírito maligno, em duelo que mostrasse ao Filho do Homem logo sua superioridade divina, no Espírito, sôbre tôdas as forças contrá-rias do universo. Este Espírito guiava invisivelmente a Jesus através de sua vida terrestre, mas não há espaço para seguir aqui sua atividade, segundo as Escrituras, passo a passo. Podemos dizer, em resumo, que o Espírito estava, e se ativava e se manifestava, suprema e centralmen-te em Jesus, sem omitir seus atos costumeiros, ao mesmo tempo, na expe-riência dos homens salvos. Jesus se chamava o EU SOU. O Espírito era Seu Alter Ego, o OUTRO EU, naquela Trindade que é Unidade divina . Jesus agora ainda é o EU SOU, no trono do universo, e o Espirito é seu Alter Ego, seu Vice-Gerente, Administrador do seu reino nos corações hu-manos, Impressor sôbre a vida humana dos benefícios regeneradores e san-tificadores da morte de Jesus. Assim é agora, mas naquele tempo «ain-

( 5 ) "Systematic Theology", por A. H. Strong, Vol. I, p. 317.

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da não estava» no mundo nessa plena capacidade. Estava no mundo su-premamente em Jesus, sôbre Jesus, por Jesus, para Jesus.

Todavia, não tinha chegado ainda no mundo na sua missão subseqüen-te ao Calvário e à ressurreição, de Substituto, Agente, Vice-Gerente, Pará-dito, Intérprete, Revelador do Cristo, na glória exaltado, pois este ainda estava na sua humilhação. «O Espírito ainda não estava porque Jesus não fora glorificado.» Agora Jesus é glorificado e o Espírito está, para cum-prir a promessa: «Ele me glorificará» João 16:14.

Como Jesus estava no mundo antes de sua vinda na carne em Belém (João 1:1-11; I Cor . 10:4 ; João 8:56 ; Heb . 11 :26), «o Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo», (Apoc. 13:8) e salvava os crentes em tôdas as épocas, assim igualmente o Espírito estava no mundo antes de Pentecostes e depois, regenerando, santificando, ungindo, enchendo, cha-mando, iluminando e dando dons soberanamente. Há 46 passagens dos Evangelhos que falam da atividade do Espírito. Eu insisto em crer o que tôdas elas doutrinam sôbre a atividade do Espírito antes de Pentecostes. E insisto em crer no advento do Espírito, em missão especial e de vastíssi-ma importância, no dia de Pentecostes. Nenhum cristianismo é veraz ou inteligível se não afirmar confiadamente a atividade do Espírito em tôdas as épocas de revelação, com as experiências da graça divina outorgadas ao crente. Notas sôbre 3:31-36; 5:21; 4:2 e um Estudo Especial no Vol. I es-clarecem a obra do Espírito antes de Pentecostes.

«Os que haviam crido». No v. 38, é o particípio presente do verbo crer que temos, pois o longo alcance da fé perene está no horizonte futuro. Mas aqui se olha para trás, para o ato salvador de uma fé decidida, justifi-cadora e regeneradora. Já eram crentes, anos antes de assim receber o Es-pírito, embora o Espírito sempre acompanhasse a fé, em todos os tempos.

40. «Este é o Profeta.» Eis a referência: «Jeová teu Deus te sus-citará um profeta do meio de ti, dentre os teus irmãos, semelhante a mim... Disse-me Jeová: Dentre os seus irmãos lhes suscitarei um profeta seme-lhante a ti: porei na sua boca as minhas palavras, e êle lhes falará tudo o que eu lhe ordenar. Todo aquêle que não ouvir as minhas palavras que êle falar, em meu nome, eu o requererei dêle» (Deut. 18:15, 18). Temos assim, desde a antiguidade, a doutrina da dependência de Jesus no Pai, como se afirma tantas- vêzes neste Evangelho, e sua autoridade sôbre nós. Vede as notas sôbre 4:19, 44 e sôbre 6:14 para a discussão do que significa ser Jesus profeta (órgão de revelação) e do que os judeus en-tendiam pela profecia de Moisés que acabamos de citar.

41. «Este é o Cristo». E' mentalmente possível separar as pala-vras de Deut. 18:15, 18 da corrente da profecia messiânica. O Dr. A. R. Crabtree nos afirma que muitos judeus faziam essa separação. «Os judeus distinguiram entre o Messias e o Profeta (1:27; 7:41) . Escre-vendo mais tarde, só um judeu podia saber dessas idéias do seu povo.»

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(6) Assim o preclaro intérprete das Escrituras vê, nesse relatório do autor dêste Evangelho, mais uma prova de que êle era um judeu da Palestina.

42. «A Escritura não diz?» Vêde como alguns sabiam da profecia messiânica, unindo II Sam. 7:12; Miq. 5:2; Sal. 89:3, 27, etc. São di-ferentes do elemento ignorante cujas palavras temos no v. 27.

43. «Portanto, deu-se uma dissidência no meio do povo por causa dêle.» O versículo é bem instrutivo. Temos três vêzes neste Evangelho a palavra grega schisma, divisão, do verbo grego cortar, rasgar, cindir. Em todos os três versículos (7:43; 9:16; 10:19) Jesus é quem provoca e promove o cisma. Três motivos diferentes constituem a ocasião da dis-sidência nas três referidas ocasiões. Aqui há cisma por causa da pessoa de Jesus. Em 9:16, é por causa de sua autoridade divina que anulava o querido dia santo dêles, o sábado, com o seu cerimonialismo. E, em 10: 19, foi «por causa das suas palavras». Os católicos de tôdas as estirpes e seitas podem meditar com proveito nesses fatos. Quando é Jesus a causa de um cisma numa religião estabelecida, é o dedo de Deus que está agindo na vida humana. Esse dedo aponta de novo para o caminho da verdade, abandonado por sacerdotes corrutos, soberbos na sua igno. rância de Deus e da sua Palavra. Jesus era quem mais desviava seu povo de «seguir a religião dos seus pais». Por isso os judeus das gera-ções posteriores o chamaram «o Sedutor». Neste incidente Jesus é causa de urna divisão. Quando o povo está errado, só a separação entre os que persistem nos seus erros e os que seguem O PROFETA, no caminho revelado da verdade e do dever, pode manter viva no mun-do a verdade e a vontade de Deus. «Pensais que vim trazer paz à terra? Não, eu vo-lo digo, mas divisão; porque de ora em diante haverá numa casa cinco pessoas divididas, três contra duas, e duas contra três; esta-rão divididos: o pai contra seu filho, e o filho contra seu pai; a mãe contra sua filha e a filha contra sua mãe ; a sogra contra sua nora, e a nora contra sua sogra» (Luc. 12:51-53). E logo antes disse: «Vim lan-çar fogo à terra, e que mais quero, se êle já está aceso?»

A pregação de que todo cisma, qualquer cisma, é pecado, é uma doutrina desesperada de quem sabe que está errado. Quer, pois, arbi-tràriamente conservar em seu poder os adeptos do êrro que os seus advo-gados e chefes exploram, em benefício próprio, mas em prejuízo a Jesus e ao povo que poderia seguir a Jesus, se não estivesse desviado por líderes falsos na senda das tradições dos homens. Paulo condena o cisma no seio de uma igreja bíblica, a de Corinto, onde o personalismo e o partidarismo cindiam um corpo que devia ficar unido na base da verdade sôbre a qual fora alicerçado. A separação da verdade e da vontade revelada por Deus é pecado, mas a dissidência do êrro e das tradições dos homens é um dever,

(6) "Introdução ao Novo Testamento", p. 134.

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264 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

Jesus é quem o promove, e nenhum sacrifício é demais para seguir o Mes-tre nessa dissidência do êrro. Surgem discussões se a família não é «antes da igreja», às vezes; isto é, se o interêsse da família não precede ao da igre-ja. A divisa é tendenciosa. A FAMÍLIA NÃO É ANTES DE JESUS CRISTO. Nunca. A lealdade a Jesus cindirá a família, se alguns mem-bros dela forem rebeldes e incrédulos contra a pessoa, as palavras e a obra de Cristo no meio dos homens. «Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim; quem ama seu filho ou sua filha mais do que a mim não é digno de mim; e aquêle que não toma a sua cruz e não me segue, não é digno de mim» (Mat. 16:37). Se a turba segue os sacerdo-tes, pois, e o crente segue a Cristo, bendito é tal cisma. O Filho de Deus foi quem o promoveu, desde o princípio, e o abençoará agora e eterna-mente.

44. «Alguns queriam prendê-lo.» O êrro é sempre intolerante noto-cante à_ liberdade civil do não-conformista. -21. dissidência da religião da maioria atrai para a minoria dissidente: cárcerel-,:i4Mes,ianimentos,pet-sem ane, Calvários,. a «Santa» Inquisição, losr„ueiras, tortura. A._----verdade repudia o êrto,no_terreno delilaeidade_ civil, que é_a 1~ de divergir e ainda viver na terra e servir a Drai&segando-es-ditaniealja consciência, eu mesmo deixar de servi-lo, sob saaprópria responsabilidade .

45. «Oficiais». Vêde a nota sobre o v. 32. 46. «Nunca falou um homem assim, como êsse homem fala.» E' a

voz da humanidade, em volume cada vez maior, através dos séculos. E não tenha dúvida o povo de Cristo que é sua Palavra que tem êsse valor e o terá eternamente. A pessoa de Cristo e sua Palavra nos deram seu ministério na encarnação. E sua presença invisível com o pregador da mesma Pala-vra nos deu tudo que é genuinamente cristão em doutrina, nos séculos pos-teriores. «Fala» . .. se refere à pregação cristã. (7)

47. «Os fariseus». Vêde a ampla discussão a respeito, nas notas so. bre 4:1.

«Ludibriados». O substantivo da mesma raiz se acha em Mat. 27:63, onde é vertido por «embusteiro», nas traduções de Castro, Rohden e outros. O título, por excelência, de Jesus, por longos séculos, entre os judeus é «o Sedutor», o embusteiro.

«Não é possível.» Esta resposta se pressupõe por causa da forma grega da pergunta.

48. «Depositou sua confiança nêle.» E' o sentido profundo, íntimo do verbo crer. Os fariseus não estavam alheios à natureza do discípulado cris-tão. Consistia em crer no fato, por êles negado, de ser Jesus o Messias e confiar nêle como o Cristo, a esperança do seu povo. E' muito mais do que uma crença intelectual, e de infinitamente maior valor do que a mera opinião ou crença. E' fé-confiança, baseada na crença dos fatos, a deci-

( 7 ) Minha Gramática Grega, p. 264.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 265

são do espírito à luz dos fatos, o apêgo da alma convencida e convertida a Jesus como Salvador. Sobre essa fé, vêde Vol. I, ps. 69-95 e as notas sôbre 6:29, 47.

«Altas autoridades». Vêde a nota sôbre 3:1, Vol. I, p. 305. Quem olha, vacilante, para o mundo oficial, os sacerdotes, a elite religiosa, para decidir qual será a atitude a tomar acerca de Jesus, nunca será crente. Já é crente nos homens e os segue e os serve. Vêde as notas sôbre a rela-ção entre a vontade de captar glória dos homens e a fé, neste comentá-rio sôbre 5:41, 44.

49. «Plebeus». Nunca se vê em Jesus êsse espírito. No entretan-to, há seguidores plebeus de Cristo que têm essa atitude servil, pusilâ-nime, covarde. Convém meditar na escolha dos Doze pelo Senhor, e na escolha dos cidadãos do reino por Deus Pai, I Cor. 1:26-31. Vêde a nota 4:46 e 12:42.

«Lei... malditos». Jesus afirmara que nenhum dêles guardava a Lei, v. 19. Mas realmente, a própria Lei era, para os tais, urna conside-ração secundária, cabendo à tradição primazia e precedência sôbre a Lei. «O Rabi Eleazar de Modin diz: Quem interpreta as Escrituras em opo-sição à tradição não tem parte no mundo vindouro.» E ainda lemos: «A voz do Rabi é a voz de Deus.» (8)

Os rabis do romanismo têm precisamente a mesma atitude. No mes-mo livro lemos que um rabi foi chamado da terra para o céu, a fim de provar que uma opinião do Todo-poderoso estava correta. (9) O Tal-mud dava a seguinte fórmula para ver um demônio: «Quem quiser vê-lo, tome o cobertor interior (da pele) de um gato prêto que por sua vez seja o primogênito de um gato prêto, que seja também descendente de um primogênito, e o queime no fogo e o reduza a pó. Então encha os olhos com êsse pó e verá os demônios.» (10) O Dr. Robertson, citando Hereford, declara que «Paulo condenou a teoria do farisaísmo, mas Je-sus denunciou sua prática.» (11) Na Mishna havia 12 tratados sôbre abluções. (12 ) Deram 49 razões para declarar imundos certos animais, e classificaram como imundos 700 qualidades de peixes e 21 espécies de aves. «Daí o terror de Pedro na sua visão.» (13) «A palavra final e melhor de que o rabinismo era capaz era uma espécie de pessimismo, uma vã esperança de que o homem poderia morrer antes de pecar outra vez». (14)

50. «Nicodemos». Vêde as notas sôbre 3:1-13. 51. «Será que nossa Lei está julgando o homem sem que primeira-

mente ouça dêle e saiba que é que êle está fazendo?» «Esses peritos na Lei (v. 49) estavam violando, de fato, a lei do processo criminal (Ex. 23:1; Deut. 1:16). Provavelmente Nicodemos sabia que seu protesto seria fútil, mas êle poderia ao menos içar sua flâmula e marcar o ponto

(8), (9), (10), (11), (12), (13) "The Pharisees and Jesus", ps. 30, 34, 44, 45, por A. T. Robertson.

(14) Idem, p. 77.

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de direito em defesa de Cristo.» (15). E' o mesmo verbo, usado a respeito do processo de Jesus, em 18:31.

52. «Da Galiléia nenhum profeta». «Os fatos são que Jonas, Oséias e Naum e, possivelmente Elias, Eliseu e Amós eram da Galiléia. Era a raiva do Sinédrio contra Jesus que lhe fechou os olhos aos fatos.» (15)

«Da Galiléia». Veja-se a nota de Fairbairn no comentário sôbre 1:45, no Vol I, p. 261.

«Examina.» Várias versões católicas romanas acrescentam: «as Escrituras». Sem dúvida era a fonte de informação que haviam de es-quadrinhar sôbre a verdade messiânica. Era um apêlo para a Escritura contra Jesus. E não é a última vez que isso se fêz ou se fará. Muitos esquadrinham minuciosamente a Escritura para provar que o sentido evidente das palavras de Jesus é falso e que seu próprio evangelho (vêde Vol. I, ps. 57-67) não é veraz. Buscam qualquer «interpretação» de qualquer passagem bíblica e a essa juntam sua poderosa lógica eclesiás-tica, a fim de justificar e propagar sua incredulidade teimosa na Palavra de Deus, sua negação categórica dos mais claros ensinos, afirmativas e mandamentos do próprio Filho de Deus e das Escrituras apostólicas que êle prometeu pelo Espírito Santo como «tôda a verdade» da revela-ção cristã, historiada no Novo Testamento. Sobre êsse verbo, vêde a discussão de 5:39.

(15) "Word Pictures in the New Testament", Vol. I, p. 135, por A. T. Robertson. (16) "The Expositor's Greek Testament", Vol. I, p. 767, por Marcus Dods.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO

267

Jesus Recusa Responsabilidades Judiciais na Esfera Civil

(Capítulo VII, versículo 53 e Capítulo VIII, versículo 1 a 11)

53 — 1 E partiu cada qual para casa. I Jesus, porém, foi para o Monte das O1i-

2 veiras. I Mas bem cedo êle voltou outra vez e entrou no templo, e todo o

3 povo vinha chegando para êle. E sentou-se e lhes ensinava. 1 Mas os es- cribas e os fariseus vêm conduzindo perante ele uma

A ré está presente. mulher presa em flagrante no ato de adultério; obri-

4 Onde está o réu? garam-na a ficar de pé no centro 1 e vão di- zendo a ele: "Mestre, essa mulher foi apanhada em

5 flagrante, cometendo adultério. 1 Ora, na lei, Moisés nos deu mandamento

6 de apedrejar as tais. Tu, pois, que dizes?" 1 E isso diziam a fim de pô-lo à prova, para ter com que processá-lo formalmente. Jesus, porém, abaixou-se

7 e pôs-se a escrever com o dedo no chão. 1 Toda- Satã renova a via, como persistiam em fazer-lhe a pergunta, êle

tentação. endireitou-se e lhes disse: "Que jogue a pedra sebre ela o primeiro homem de vós outros que não fOr

8 réu de pecado!'' 1 E mais uma vez curvou-se e pôs-se a escrever no chão.

9 I Mas eles, quando ouviram e se sentiram reprovados pela própria consciência, iam saindo mu a um, sendo que tomaram a dianteira os membros do Sinédrio, seguidos até pelos últimos presentes: e Jesus foi deixado sózinho e a mulher,

10 como ela ficara de pé na roda. 1 Ora Jesus endirei-

O Mestre condena tou-se e não viu a ninguém senão a mulher; per-

moralmente o peca- guntou-lhe: "Mulher, onde estão aquelas testemu-

do sem dar sentem- nhas acusadoras? Ninguém deu sentença contra ti?"

11 ça civil. I E ela respondeu : "Ninguém, senhor." E Jesus tornou-lhe: "Nem eu dou sentença contra ti. Se-

gue teu caminho e deixa de pecar!"

7:53 a 8:11. Este trecho é omitido do Novo Testamento por Tis-chendorf, Tregelles e Lachmann, e dos melhores manuscritos antigos —o Sinaítico (Aleph) e o Vaticano (B) . Westcott e Hort o colocam ao fim do Evangelho. Não aparece em nenhum manuscrito do Novo Testamen-to grego que possuimos antes do Codex Bezae (D), do sexto século. Exis-tia, porém, nos documentos traduzidos na Vulgata (383) e Jerônimo afir-ma que se achava nesse tempo em muitos códices gregos e latinos. Ou-tras versões primitivas o possuem. Eusébio cita Papias (de Hierápolis) como fazendo alusões ao incidente. A evidência é contrária à idéia de que o trecho fizesse parte originalmente do Evangelho de João, mas é favorá-vel à historicidade da narrativa. Sigo o texto grego de Nestle. Há mui-tas variações textuais, de palavra em palavra.

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268 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

Uma dúzia de manuscritos dão êsse trecho logo depois de Luc. 21: 38. O Dr. A . T. Robertson opina que algum escriba primitivo copiou de outra fonte antiga, na margem, êsse incidente e um escriba posterior, em cujas mãos caiu o manuscrito na geração seguinte, incorporou-o ao texto do Evangelho. Os manuscritos antigos todos das classes «Neutra» e «Alexandrina» não contêm essa passagem. Os das classes «Síria» e «Ocidental» a preservaram. Alguns a incluem, mas no fim do Evange-lho de João. «Contudo o incidente tem tôdas as marcas de realidade. E' história verídica, como muitas outras que não fazem parte de nossos Evan-gelhos (compare-se João 20:30; 21:25) .» (1)

O prof . Blass (2) deu razões para supor que esta narrativa original. mente fazia parte do Evangelho de Lucas e seguia logo depois de 21:16.

Citamos ainda sobre o trecho as palavras do Dr. A. R. Crabtree: «E' duvidoso ... porque não se encontra senão raramente nos manuscritos gregos. Não se acha nos manuscritos mais antigos, com a exceção de D, nem nas antigas versões latinas. Quase tôdas as versões siríacas e cópticas omitem a passagem. O incidente não é mencionado nos escritos patrísticos gregos, com Tertuliano e Cipriano, que revelam em seus co-mentários amplos conhecimentos dos evangelhos. Finalmente, o estilo do trecho não é o mesmo do resto do livro. Por outro lado não há dúvida de que a narrativa é de origem apostólica. O seu estilo lucano e a verossimi-litude da história levam os mais criteriosos a reconhecerem que é apostó-lica e verídica, embora não de origem joanina. Em alguns manuscritos é colocada no evangelho de Lucas, depois de 21:38.» (3)

53. «Cada qual para casa». Assim começa êsse trecho orfanado do Evangelho. Uns para descanso, uns para esquecimento, uns para a ten-tação, uns para a paz. Jesus foi passar a noite no monte das Oliveiras e está no templo bem cedinho. Bem cedinho também a suspeita tinha agido. Os escribas e os fariseus interrompem o culto matutino de Cristo com seus discípulos, arrastando a pobre moça que haviam capturado talvez depois de uma noite em claro, e depois de muitas imaginações e atenção a boatos e cochichos. E' uma fita no chapéu deles, um troféu de seu tão gabado zelo pela lei. Eis que de madrugada, sacrificando o próprio sono, haviam verificado que o boato e a suspeita tinham razão de ser. Cheios de orgu-lho interrompem o ensino de Jesus, pedindo-lhe para assumir as funções de um tribunal.

VIII, 1. «Jesus... para o Monte das Oliveiras». Se este incidente segue após a reunião do Sinédrio, então trata-se da volta dêsses desiludi-dos para casa, depois do seu desapontamento descrito no Cap. VII. Sen-do o tempo da Festa dos Tabernáculos, Jesus e os forasteiros estariam dormindo em tendas. Se o tempo vem logo em seguida ao de Luc. XXI,

(1) "An Introduction to the Textual Criticism of the New Testament", p. 210. (2) "The Philology of the Gospels", p. 155. (3) "Introdução ao Novo Testamento", p. 143.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 269

então a última Páscoa não está longe e Jesus estaria hospedado, provà-velmente, na casa de Marta, Maria e Lázaro na vila que está na extremi-dade oriental dêsse monte. A passagem em Luc. 21:38 nos afirma que o povo «madrugava» no templo para ouvir Jesus. Privilégio sublime! Há uma bem elaborada descrição do Monte das Oliveiras, mencionada por João sômente aqui no seu Evangelho, no Comentário sôbre o Evangelho de Mateus, por Broadus, Vol. II, ps. 163, 164, tradução de Teodoro Tei-xeira.

2. «Bem cedo». Que «todo o povo» voltava ao templo tão cedo indi-ca que provàvelmente era, de fato, o tempo da Festa dos Tabernáculos. Os forasteiros, em tais circunstâncias, estariam interessados no propó-sito espiritual do dia. Jesus se encontra com outros adoradores que, como êle, gostavam das horas do orvalho para comunhão com Deus. Vêde as notas sôbre 6:45 e 7:28.

2. «Cedo de manhã». «Que diz a Escritura? De madrugada Abraão ficou de pé perante Deus (Gên. 19:27) . Cedo de manhã, levantou-se Abraão para sacrificar Isaque (Gên. 22:3) . Cedo de manhã Jacó adorou a Deus e fêz um voto de lhe dar o dízimo (Gên. 28:18). Moisés se apresen-tou a Faraó de manhã cedo (Ex. 8:20) . Assim igualm,ente edificou um altar a Deus (Ex. 34:4) . Josué de madrugada levou Israel para atra-vessar o Jordão (Jos. 3:1) e para rodear Jerico (6:12) e para tomar Ai (8:10) . Gideão bem cedo foi ver o velo e espremeu dele uma taça de or-valho. (Ju. 6:38). Helkanah e Hannah adoraram perante Jeová de ma-drugada (I Sam. 1:19) . Samuel levantou-se cedo para se encontrar com Saul de manhã, (I Sam. 15:12) . Davi cumpriu as ordens de seu pai da mesma maneira (I Sam. 17:20) . Israel levantou-se de madrugada e achou todos os seus inimigos num arraial de cadáveres (II Reis 19:35) . Jó, «levantando-se de manhã cedo, oferecia holocaustos pelos seus filhos» (1:5) . O Filho de Deus foi à parte de manhã cedo para orar — «antes da madrugada», Mar. 1:35. O povo todo ia ao templo de madrugada ter com êle para ouvir (Luc. 21:38) . As mulheres cedo de manhã no pri-meiro domingo foram ao sepulcro (Mar. 16:2). A manhã é o portão do dia e deve ser bem guardada com oração. E' uma extremidade do cordão em que as ações do dia ficam enfiadas e deve ter um nó seguro, de ora-ção. Se nós sentíssemos melhor a majestade da vida seríamos bem mais cuidadosos de suas manhãs. Quem corre de sua cama para o negócio e não espera para o culto é tão tolo como se não se vestisse ou lavasse o ros-to, e tão insensato como se corresse para a batalha sem armas ou arma-dura defensiva.» (De autor desconhecido).

«No templo». Vêde as notas sôbre 5:14, a respeito do assunto: «O templo contra Jesus».

3:13. «Os fariseus». Vêde as notas sôbre 4:1. «Uma mulher», Vêde, nas notas sôbre 4:27; a discussão da posição inferior da mulher.

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270 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

na vida dos judeus, e o desprêzo de que ela, era vítima na religião fari-sáica .

4. «Em flagrante». Onde, pois, estava o homem? Era algum pro-tegido?

5. «Apedrejar as tais». Não, senhores fariseus! Os tais! A Pala-vra de Deus nunca dá mais valor ao fornicário do que à meretriz. Moral e socialmente, são iguais perante a face de Deus. Uma das razões por que moços dissolutos se viram contra a Bíblia é precisamente porque bem sa-bem que a Bíblia se vira contra êles, enquanto que as religiões falsas. aduladoras dos poderosos, 'permitem «as extravagâncias» da mocidade desregrada, consentindo num ajuste de contas no Purgatório ou em «ou-tra encarnação», assim abrindo as portas para a devassidão.

«Na lei». Vêde as notas sôbre 7:49. 6. «A fim de ter de que processá-lo». Estavam mais dispostos a pro-

cessar Jesus do que à pecadora. Não tenho grande confiança no farisaís-mo para resistir ao meretrício. E' claro que Simão, o fariseu, sabia quem era a pecadora que Jesus perdoou em sua casa, Luc. 7:37. Não fôra de-nunciada ao tribunal que existia para tais processos. Jesus chamou a seu povo «geração adúltera», mas era a geração mais farisáica, na terra mais farisáica, de todos os tempos. O caso dessa mulher é claramente um en-tusiasmo moral de fachada. Não podemos afirmar que Jesus revelou, na consciência de cada um, a memória do adultério. Mas o fato de que unâ-nimemente partiram mostra que nenhum interêsse sentiam, e nenhuma responsabilidade aceitariam, em conseguir que a lei fôsse cumprida rio caso da mulher que trouxeram. E' até possível que ela consentiu em vir, mas seu companheiro não teve tanta ousadia. Ela nenhum sinal de arre-pendimento deu. Desapareceu, simplesmente.

6, 8. «Escrevia.» E' uma das cenas mais naturais em tôda a vida de Jesus. Quem não conversou já, na praia, com um grupo de amigos sem estar escrevendo, desenhando, traçando linhas, assinando iniciais, fazendo tudo quase inconscientemente enquanto pensava noutra coisa? Assim Jesus está agora. As cortes e as calçadas do templo cedinho estão cobertas de pó, talvez a essas horas nem limparam ainda a santa casa da capa grossa do pó que caira sôbre tudo por causa dos movimentos das multidões no dia anterior. E' fácil escrever no chão. Mas acho que o valor psicológico estava em Jesus curvar-se e escrever, e não naquilo que êle escrevia. Pois duas vêzes curvou-se. Duas vêzes escreveu. E no meio da segunda vez ficou a sós com a acusada. E' claro que os que sairam não estavam atentos ao escrito, mas sim ao dito: «Aquêle que está sem pecado, lance a primeira pedra.»

7. «O Nazareno concorda em que a criminosa seja apedrejada, conforme a lei — mas por mãos impolutas.» (4)

( 4 ) "Jesus Nazareno", p. 251, por Huberto Rohden.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 271

«Aquêle que está sem pecado». «E' a voz da justiça: Seja a peca-dora punida, mas não por pecadores; seja a lei executada, mas não por transgressores da lei.» (5) Moffatt traduz: «O inocente jogue a primei-ra pedra.» O original grego diz: «O impecável jogue a pedra...»

«Jogue primeiro a pedra.» No apedrejamento, há uma primeira pe-dra que voa. A regra era que «a mão das testemunhas fôsse a primei-ra... e depois a mão de todo o povo», Deut. 17:7. Assim Jesus lhes mostra que qualquer responsabilidade no caso é deles. São êles as teste-munhas, não Jesus. Pois bem. Se quiserem ação, que ajam! Mas se não são inocentes, não assumam ares de juiz. Sem ser juiz civil, o Sal-vador esquadrinha poderosamente a consciência, e seu Espírito convence o mundo do pecado.

8. «Curvando-se abaixo», ao pé da letra, no v. 6; «baixando-se, no v . 8. Jesus era o único homem presente, aparentemente, que sentia ver-gonha diante de uma situação tão dolorosa. A Lei exigia apedrejamento no caso de uma noiva que fôsse provada ser deshonesta, Deut. 22:21. O adultério, sendo uma das partes casada, tinha a pena de morte. Uma noiva que fôsse ré do crime devia ser apedrejada, juntamente com seu companheiro no crime, Deut. 22:23-24. E' êsse, aparentemente, o caso aqui. Mas onde estava o homem? O adultério não é crime solitário. Se um foi apanhado em flagrante, os dois o foram. Por que trouxeram só a mulher? Já é parcialidade dos acusadores a qual querem impor sô-bre o tribunal que julga o caso. Já é um caso inteiramente à toa, pois êles sabiam que nem o Sinédrio podia dar a pena de morte, muito menos Jesus, que não ocupava a posição de juiz, nem com os romanos nem en-tre os próprios judeus. Eram ferozes contra a jovem, cegos quanto ao homem que a arruinara. Mas Jesus «abaixa-se para baixo», diz o original grego. Ele sente que a face enrubece, e se envergonha do fato rudemente proclamado, na presença de todos, sem o mínimo constrangi-mento, sem a menor dor de consciência, sem simpatia pela juventude da pecadora, talvez arrastada por força superior do seu sedutor. A face dura e aspereza cínica em tratar de pecados sexuais, mesmo na discipli-na das igrejas, nada tem de parecido com a modéstia do Salvador que baixou-se bem baixo em face de semelhante vergonha trágica.

Era a sua própria compaixão que constituia para Jesus o perigo no caso, no meio de uma situação que já transbordava de perigos. Eles sa-biam que êle perdoara a meretriz convertida que entrara na sala de jan-tar de Simão, o fariseu. Talvez esperem que êle faça a mesma declara-ção agora e assim, aparentemente, despreze a Lei que nem êle, nem eles tampouco tinham autoridade para executar. Jesus precisa fazer justiça à Lei, à moça, à moral, ao público e aos próprios acusadores. Seu próprio sentimento de vergonha na situação muda completamente a atmosfera.

(5) Comentário de Agostinho sôbre êste Evangelho, 1, 438, Versão Inglesa de S. Gibbs.

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272 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

Ei-lo cabisbaixo enquanto os arrogantes começam a se entreolhar e de-pois a olhar cada um para dentro de si.

9. «Reprovados pela consciência». Como um tribunal acata e apóia as decisões competentes e justas de outro tribunal inferior, recusando interferir no seu funcionamento, assim Jesus recusou-se a dar sentença num caso em que o juiz, que é cada ser humano, daria sua própria deci-são adequada. As palavras assim traduzidas não estão no texto de Westcott e Hort. Sigo o de Nestle. Há muitíssimas variações textuais nos manuscritos gregos do trecho todo. Nossas versões parecem ter uni-formemente apoiado o mesmo texto seguido na Vulgata, que diz: «Au-dientes autem unus post unum exibant, incipientes a senioribus: et re- mansit solus Jesus, et mulier in medio stans.» Com êsse texto, e o grego de Westcott e Hort, é muito natural traduzir: «começando pelos mais ve-lhos». Seguindo, porém, o texto grego de Nestle, a ênfase me parece mais natural sôbre a posição social e oficial dos líderes do grupo, e não sôbre a idade deles. No texto mais amplo, o contraste é feito entre os «presbíteros» e «os últimos». Esse têrmo pode indicar os mais velhos ou os conselheiros, os membros do Sinédrio, os «presbíteros» do povo de Israel, sem considerações de idade. Se fôsse uma questão meramente de idade teríamos: «principiando com os mais velhos e indo até aos mais moços». Mas temos: «principiando com os presbíteros e indo até aos últimos». Faltando a consideração de idade num lado da comparação, é provável que falte no outro. Os «presbíteros» eram os primeiros, em posição social, política, religiosa e comercial. Seu exemplo seria decisivo. Até o «último» seguiria seu curso. A turba vai com seus líderes. «Do presbítero até ao último»: é o modo de dizer «do primeiro (em posição) até o último», e liga o término do caso com as circunstâncias da hostili-dade a Jesus

«Jesus foi deixado sozinho.» E' o mesmo verbo que se usou no v. 3. A adúltera foi «apanhada» em flagrante: Jesus foi «apanhado» nessa inesperada posição de estranha solidão. E' uma das mais estupendas cenas de tôda a Bíblia. Antes todos estavam numa reunião profunda-mente espiritual de reverentes investigadores e adoradores, numa côrte popular do templo, em hora virgem da manhã. Depois surge outra gen-te, turbulenta, curiosa, prêsa à idéia de um linchamento. Os dois auditó-rios se confundem. O ensino de Jesus acaba. O apelo se fez. A res-posta se dá. A vergonha desceu como nevoeiro sôbre as consciências chocadas. Cada qual quis estar sozinho e tomou essa decisão e esse rumo. De repente, Jesus «foi apanhado» numa grande solidão. Da «roda» de que a mulher pecadora fôra o centro, ficou só êsse centro mes-mo. O resto da «roda» evaporou-se como o nevoeiro diante do sol. Faz-nos lembrar da profecia de Malaquias (4:2) — «nascerá o sol da jus-tiça, trazendo curas nas suas asas.»

10. «Jesus endireitou-se.» Sem dúvida, ouvia o mexer de sandá-

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 273

lias e a lenta marcha dos pés dêsse exército de exaltados que recua no silêncio da vergonha íntima. Quando não se mexe mais uma alparcata na côrte ou no corredor do templo, êle reassume sua posição natural e des-pede a mulher também.

«Testemunhas acusadoras». Insisto em que Jesus saiu do incidente como entrou nele — mero espectador. Ele não era no caso nem juiz, nem promotor, nem testemunha, nem advogado. Ele era leigo quanto à organização judáica do templo e da sinagoga e simplesmente recusou a presunção de agir em capacidades que não lhe cabiam. Incidentalmente, o Mestre lhes dava uma boa lição de como caducava a velha aliança, que o apóstolo Pedro teria de chamar, naquela mesma cidade, «um jugo» in-suportável sôbre a cerviz (Atos XV) .

11. «Ninguém, senhor». Vede as notas sôbre 4:11. «E eu também não pronuncio sentença judicial contra ti.» Um pou-

co mais, essa pobre criatura teria sofrido o que sofreu Estêvão. A tur-ba infligiu-lhe a pena reservada aos blasfemadores e infligiria a ela a pena do adultério. Nunca é lícita, justa ou tolerável, num regime de or-dem e progresso, a administração da justiça pela turba-multa. Era o que acontecia no incidente aqui narrado. A lei exigia que morressem ambos, o adúltero e a adúltera. Se foram apanhados em flagrante, onde estava o homem ? Por que tanto entusiasmo pela morte de uma mu-lher quando nem se falava no réu, mais forte e não menos culpável? E' sempre assim a justiça do populacho irresponsável, da turba-multa, sugestionada talvez por um agitador, cheio de ódios e preconceitos. A palavra de Jesus era tão reveladora e pungente que pôs em debandada a multidão inteira. Só Jesus e a mulher ficaram. As testemunhas de-viam começar a execução da sentença, jogando as primeiras pedras. Mas a mulher estava «de pé no meio», o centro de um círculo que su-miu enquanto Jesus escrevia no chão.

O Mestre se levantou e verificou que as legais testemunhas, que deviam, segundo a Lei, jogar as primeiras pedras, haviam desapareci-do. Não há mais tribunal, nem testemunhas, nem processo. Jesus não é testemunha no caso e, além disso, a Lei exigia «duas ou três teste-munhas» para o julgamento. Logo estava anulado o processo por in-competência dos juizes — réus confessos, e portanto impossibilitados de jurisdição no caso. Jesus mandou a ré embora, com uma exortação para abandonar a sua vida do pecado.

Quão diferente, e quão falsa, é a maneira porque os homens des-regrados hoje em dia torcem essa linguagem: E' «geração adúltera» também, e tem a ousadia insolente de representar Jesus Cristo aqui como não condenando o adultério!

«Nem eu te sentencio.» «Que é isso, Senhor? Tu apóias o pecado?

C. E. J. - 18

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Não, evidentemente não. Notai bem o que segue: Vai e não peques mais.» (6)

Este verbo é forte — nem eu te «ponho abaixo, sob uma sentença judicial» é o que a etimologia grega sugere logo aos olhos (kata-krino). E' usado no Novo Testamento 19 vêzes, das quais quatro são a respeito da crucificação de Jesus como sentença judicial, e a maioria dos outros casos a respeito do dia de juízo final e sua sentença judicial, e tam-bém, uma ou duas vêzes, se refere ao juízo da consciência. Não se trata de mera opinião, favorável ou desfavorável. E' sentença e, no caso dessa mulher, sentença de morte. Pois a Lei ou a matava ou a livrava de vez.

Meu «Dicionário Grego» traduz o substantivo congênere «pena im-posta na condenação judicial, servidão penal». E' o oposto da justifica-ção. Claro é que Jesus agiu acertadamente e dentro da lei recusando-se a ser juiz, promotor público, juri e algoz. Sua divina sabedoria não era tanto em recusar matar essa mulher — qualquer um de nós teria feit, ) o mesmo, mas na sua capacidade de discernir e desmascarar o coração humano na sua perversidade e afugentar uma turba desordeira de pes-soas hipócritas, parciais, desalmadas e misóginas, chefiadas por poli-tiqueiros profissionais de um templo apóstata.

Pois bem. Jesus não condenou o adultério? Condenou-o, não só na mulher apanhada em flagrante, como no seu companheiro de crime que deixaram escapar, na tolerância popular dessa «extravagância» quan-do praticada por um homem. Condenou-o. Sua palavra incisiva foi uma espada de dois gumes que «penetra até a divisão de alma e espi-rito e de juntas e medulas e pronta para discernir as disposições e pen- samentos do coração». Jesus condenou o adultério, mas naquela gente de roupa talar, nos «escribas e fariseus», onde se deveria começar por condenar a fornicação. Condenou os intelectuais e os religiosos e não apenas uma pobre mulher vitimada pela mesma paixão devoradora que êles manifestavam na conquista de uma de suas vitimas.

Mas Jesus «não condenou» o adultério? Talvez nunca na história humana foi êsse pecado condenado de maneira tão pungente, e contra tantos adúlteros de uma só vez. Mas foram os adúlteros intelectuais («os escribas») e religiosos («os fariseus») que se cobriram de vergo-nha da condenação de Cristo. Então ele «condena» não no sentido de sentença judicial da morte, mas como a reação de sua autoridade divina contra a consciência peCaminosa — e admoesta a adúltera. Ela vive no pecado. Jesus usa a forma do verbo que proíbe isso; manda não continuar nessa vida. Ele chama o adultério pecado e exige que nun-ca mais na vida dela haja tal ofensa.

(6) Comentário de Agostinho sabre este Evangelho, I, 438, Versão Inglesa de J. Gibbs.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 275

«Nem eu sentencio.» «Ele não diz que não condena o pecado dela, mas que não sentencia sua pessoa. Fala juridicamente.» (7)

Está de acôrdo com v. 15: «Eu a ninguém sentencio.» Jesus não tinha essa capacidade nem na teocracia judaica, nem no regime roma-no a que essa estava subordinada; nem no plano divino era chegado o (lia do juízo no qual êle entraria nas suas funções de juiz. «E' como o caso em que êle recusou arbitrar o litígio entre dois candidatos a uma herança, dizendo: «Homem, quem me fêz juiz e árbitro entre vós?» Ninguém. Não tinha nem essa missão nem essa autoridade sob lei hu-mana ou lei divina. Não fazia parte da carreira messiânica nem dos deveres de sua humilhação. Em relação ao pecado, é sacrifício expiador e sacerdote intercessor e não juiz. Será juiz, quando não fôr salvador. Jesus recusou a ideologia totalitária.

Com a delicadeza de pensamento e palavra, em que êle é nosso per-feito e formoso Modêlo e Exemplo, Jesus sempre usava a espada «que saia de sua boca», para ferir a consciência, para penetrar até a divisão da «alma e espirito... para discernir as disposições e pensamentos do coração», Apoc. 1:16; Heb. 4:12. Tomai a Harmonia dos Evangelhos e segui a história das conversações e pregações de Jesus. Vereis que tanto na roda social como no sermão ao ar livre, na sinagoga, no tem-plo, êle é sempre direto, franco, cortês e vai logo ao ponto do problema moral do momento. Ele não era juiz. «Homem, quem me constituiu juiz ou partidor entre vós?», Luc. 12:14. Logo nunca lhe coube na terra dar sentença. Seu reino não era, não é, dêste mundo. Mas êle julgava e julga, condenava e condena; e isso é afirmado neste Evan-gelho (9:39; 5:22, 30; 8:15, 16) e em Mat. 23:33, etc.

«Deixa de pecar.» Vêde a discussão de 5:10 em seguida.

(7) "The Companion Bible", Vol. V, p. 1537.

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O Testemunho do Evangelho e as Testemunhas Divinas

(Capítulo VIII, versículos 12 a 20)

12 Então de novo Jesus clamou, dizendo-lhes: "Eu sou a luz do mundo. Aquele que continuamente me segue nunca, NUNCA

13 A Garantia do andará nas trevas, mas terá a luz da vida." I Por-

Evangelho tanto, os fariseus lhe disseram : "Tu estás dando tes- temunho a respeito de ti mesmo: teu testemunho

14 não é veraz." I Em resposta Jesus lhes declarou: "Ainda que eu dê teste- munho a meu respeito, meu depoimento é veraz, porque sei donde venho e

15 para onde vou. Mas vós não sabeis donde venho ou para onde vou. I Vós estais dando essa sentença segundo a norma da carne: eu não dou sentença

16 contra ninguém. I E mesmo se eu proferir juízo, rueu julgamento é verídico, porque não sou eu só, mas somos eu e aquêle que

17 As Duas Vozes na me enviou. I E na lei, na vossa lei, também foi

Natureza de Jesus escrito, e permanece em vigor, que o depoimento 18 de dois homens é veraz. I Quem testifica acêrca de

mim mesmo sou eu, e o Pai que me enviou está continuamente dando tes- 19 temunho a meu respeito." I Então lhe pergunta-

Duas Vozes da ram : "Onde está o teu pai?" Jesus tornou: "Não

Trindade conheceis nem a mim nem a meu Pai: se me conhe- 20 cesseis, também conheceríeis o meu Pai." I Essas

palavras ele falou no gazofilácio, onde costumava ensinar no templo; e nin-guém o prendeu porque sua hora ainda não chegara.

12. «Eu sou a luz do mundo». Se há continuidade na narrativa, tal-vez Jesus terminara seu ensino no templo à luz das lâmpadas. Agora eis que o sol nasce no oriente e enche a grande casa com a sua luz dourada. E Jesus, sempre pressuroso em ilustrar com coisas físicas do momento a verdade espiritual da hora, exclama: «Eis o sol que nasce. Eu sou a luz do mundo, como disse Malaquias, vosso profeta : Mas para vós, os que temeis o meu nome, nascerá o sol da justiça, trazendo curas nas suas asas.» Não queriam a luz, como aquêle Brâmane que vendo por um microscópio que a água do seu rio sagrado estava cheia de germes, quebrou o microscópio que lhe fez tal revelação.

«Eu sou a Luz do mundo.» A rejeição de Cristo envolve recusa à luz oferecida e andar propositadamente na escuridão que termina nas trevas exteriores. Nesse sublime ensino de Jesus acêrca de si mesmo, nós chega-mos, como diz o Dr. A. T. Robertson, (1) a uma encruzilhada dos cami-nhos, exigindo da nossa parte uma decisão. Não é possível que demos

( 1 ) "The Teacher", de fev. de 1943.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 277

louvores a Jesus e ao mesmo tempo neguemos sua deidade. Podemos justificar e aceitar essa linguagem somente na hipótese de que Jesus é o Filho de Deus. De outra forma tudo é vaidade e espuma.

«Sou eu a luz do mundo.» «E' uma das palavras mais claras e sole-nes de Jesus. Mero homem seria incapaz de dizer semelhante coisa, a não ser que fôsse um desequilibrado ou um espírito indizivelmente arrogante. Ou Jesus era o Filho de Deus e verdadeiramente divino, ou os judeus ti-nham razão quando rejeitaram sua doutrina e autoridade. Se êle era a luz do mundo então estava no princípio com Deus e era Deus; se não era a luz do mundo, merecia a pena destinada ao blasfemador, ou a compai-xão nue votamos ao homem privado da luz da inteligência. Não há meio têrmo. Todavia, para os que consideram a pureza moral, a profunda sa-bedoria e a imperecível influência de Jesus Cristo, a hipótese de desequi-líbrio mental ou religioso é absurda. Portanto, êle era o que seus mais devotos seguidores têm crido — o Deus-homem e o único Mediador en-tre Deus e o homem.» (2)

«Mundo». Vêde as notas sôbre 3:16; 4:42. «Eu sou a luz.» «Segui ao sol e onde chegareis? Segui a Cristo e an-

dareis na luz. Ele é sua própria e maior testemunha como o sol ao meio dia é a própria e maior testemunha de sua vida e de seu calor» (Agosti-nho). Vêde ainda Vol. I, ps. 188, 189, 192, 328 sôbre esta importante palavra tanto de Jesus como de João no Prólogo.

«As trevas». Outra palavra do Prólogo também. Vêde Vol. I, .ps. 189, 328, a respeito.

«Continuamente me segue.» Vêde 1:37 sôbre o que significa «se-guir», Vol. I, ps. 251, 252. Aqui é a vida real cristã em íntima comunhão com Jesus que se salienta. Seguir assim é viver perto dêle, viver na luz. Aqui se vê o crente no longo curso da vida regenerada. Não há, porém, confusão sôbre como esta vida regenerada principia na experiência de salvação. Principia pela fé: «Eu tenho vindo ao mundo como Luz, a fim de que todo o que crê em mim não permaneça em trevas» João 12:45, 46. E I João 1:5-10 esclarece que a vida cristã é luz, comunhão e confissão e «prática contínua da verdade», e nesta luz o valor de Calvário é per-pétuo para a purificação constante em nossa vida das imperfeições que confessamos. Crer é ter vida eterna. Seguir é andar na luz com Cristo depois que êle nos salvou e o resto da vida cristã que principiou nessa salvação.

«Absolutamente não». Sobre o forte negativo duplo do original grego, vêde a discussão de 4:13. Se alguém pensa que aqui temos a idéia de salvação pelas obras (a fidelidade em seguir), vêde as notas sôbre 3:36 e 1:43.

(2) "The Teacher", de fev. de 1943, citando o notável teólogo e comentador A. Hovey.

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«A luz da vida». O cristianismo enfrenta duas dificuldades, uma do intelecto, a outra da vontade. Mais ênfase sôbre esta nos ajudaria nos problemas daquele. Esforcemo-nos por viver! No dever comum. no tédio, na verdade rotineira, na caridade monótona, ao ter em mente nosso irmão e nossa irmã e o fardo deles; em tôdas as coisas seguindo ao Senhor, vejamos se sua promessa se realizará.

«E notai o que é essa promessa. Não é que teremos uma solução completa dos problemas... O que se afirma é: 'Tereis a luz da vida.' Isso, sim, se verifica. Luz para viver é o que sucede. Um homem que segue a Cristo na vida chega a crer, pela experiência, no amor que o cerca todos os dias; na grandeza e no valor da vida em Cristo; na possi-bilidade de indizíveis vitórias na sua vida pessoal; no absoluto perdão do pecado; em Deus dentro de nós como nossa fortaleza.

«E é o suficiente para prosseguir. Deus não esclarece tudo; mas dá o suficiente para vivermos nobremente; e em cada avanço ele nos outor-ga maior conhecimento dele, ainda que somente a morte nos venha reve-lar que tôda essa bondade e majestade e comunhão divina meio-compre-endida são apenas Deus mesmo que se deu a nós.» (3)

«Vida». Para as definições científicas da vida, vêde a discussão de 5:40.

13. «Teu testemunho não é veraz.» Jesus já dissera que seu tes-temunho seria inacreditável, se êle fôsse a única testemunha a seu fa-vor. Vêde as notas sôbre 5:31, 33, 43, 44. As duas naturezas na pessoa de Jesus Cristo, porém, permitem seu testemunho desinteressado de sua missão entre os homens, se ele se apresenta com credenciais celestes. Ag., s-tinho dizia: «A luz mostra outras coisas e se mostra também.» Sobre a magna palavra testemunho, vêde o Vol. I, ps. 34, 49, 190, 211, 242.

14. «Veraz». Vêde a discussão de 5:33. «Para onde eu vou». Vêde as notas sôbre 7:33, e vs. 21, 22 deste

cap. e 14:4, 5, 28; 16:5, 10, 16, 17. 15. «Carne». Vêde Vol. I, p. 315 e a discussão de 6:63. «Eu não estou dando sentença em caso nenhum.» Não há meio de

andar seguro na interpretação das palavras de Jesus sôbre êste assunto a não ser que tomemos em consideração tanto o duplo sentido do verbo «julgar», nos lábios dele, como as várias declarações suas a respeito, cada uma no seu contexto. A declaração aqui é bem ilustrada pelo caso descrito lios vs. 1-11. Os sentidos do verbo neste Evangelho a respeito de Jesus se vêem nas notas sôbre 5:22, 9:39, etc. A necessidade de assim levarmos em conta tôdas as Escrituras que tratam de um assunto e não nos cingir. mos a uma só é lembrada na discussão de 3:22.

16. «E ainda que eu também esteja pronunciando julgamento, o critério da minha sentença é genuíno, porque não sou um só, senão eu e

( 3) "The Enterprise of Life", p. 357, por J. R. P. Sclater.

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TRADUÇÃO E COMENTA- LIO 279

aquele que me enviou.» A unidade dual da personalidade de Jesus forti-fica divinamente todo o seu testemunho e é, em si, uma revelação parcial da Trindade. Vêde as notas sôbre o Prólogo, quanto à natureza do Filho de Deus, e Vol. I, ps. 193 (sôbre genuína) e 327, 328 (sôbre «o cri. tério»).

17. «E na Lei, na vossa Lei, também vinga ainda a legislação: De dois homens o testemunho é verídico.» E' uma provisão de Moisés (Deut. 17:6; 19:15), de Jesus (Mat. 18:16), de Paulo (II Cor. 13:1; I Tini. 5:19) e da Epístola aos Hebreus (6:18; 10:28). E' uma das provisões mais elementares da justiça. Esse mandamento de Jesus foi declarada-mente aplicado à disciplina de uma igreja bíblica. A natureza da organi-zação dos discípulos de Cristo é claramente regulada para todo o porvir em Mat. 18:16. A «igreja» de que Jesus fala é uma entidade local que pode ouvir testemunhas, julgar queixas e dar decisão final no caso. E' o processo que Jesus manda, como único Legislador do seu povo. O clero de Roma e de muitos outros sistemas eclesiásticos audazmente anulou o mandamento de Jesus, roubou para si e seu nefando confissionário os atri-butos que Jesus deu claramente à congregação local dos crentes que co-nhecem e julgam os desafetos, seus irmãos. O clero das tais Igrejas Na-cionais ou Católicas aplica essa linguagem claríssima de Jesus a concílios eclesiásticos dos séculos post-apostólicos e ao ministério sacerdotal que chegou a existir numa religião cristã apóstata. Jesus apelava para o sis- tema jurídico de testemunhas na organização dos judeus, segundo a ve-lha aliança, nas suas palavras aqui citadas em João 8. Em Mat. 18:16, êle estabelece o mesmo princípio quanto à novel organização que andava com êle na sua peregrinação, uma igreja congregacional, soberana na dis-ciplina dos seus membros. Não há vislumbre de sacerdotes, ou concílios eclesiásticos de espécie alguma, no horizonte de Jesus ou Paulo quando falam de «duas testemunhas», mas sim as igrejas de Deus das quais Pau-lo, segundo o mandamento de Jesus, declarou: «Não julgais vós os que estão dentro? Tirai esse iníquo do meio de vós» I Cor. 5:13. As pala-vras: «Se êle recusar ouvi-los (os dois homens que eram as testemunhas exigidas), dize-o à igreja; e se recusar ouvir a igreja, considera-o como gentio e publicano. Em verdade vos digo: Tudo que ligardes sôbre a terra será ligado no céu; e tudo que desligardes sôbre a terra, será desligado no céu» — digo, essas palavras não têm no seu horizonte clero de espécie al-guma, nem o presbitério, sínodo, assembléia nacional, conferência ou con-venção que seja tribunal sôbre as igrejas. A estas Jesus deu essa respon-sabilidade, na sua capacidade congregacional, fazendo-as, cada uma na esfera da sua jurisdição, a côrte suprema para os seus membros. Caiar sôbre essas palavras tão claras de Jesus um sistema sacerdotal, ou do con fissionário, ou de concílios eclesiásticos, é ofensa de lesa-majestade con-tra o Filho de Deus. E roubar as responsabilidades que ele deu a uma igreja bíblica e constituir um clero ou um sistema de côrtes eclesiásticas

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sôbre a cerviz das igrejas de Deus, é uma apostasia abominável da Pa-lavra de Deus, nesta importantíssima doutrina e provisão para a dise:pli-na do povo regenerado de Cristo, na santidade e nas responsabilidades de disciplina mútua e cangregacional. Onde essas apostasias prevalecem hoje em dia, aí é precisamente que não existe a disciplina cristã coletiva que Jesus Cristo ordenou, a qual obedece um regime que ouve testemu-nhas e localmente julga e decide. Tudo mais, nas mil invenções das tradi-ções humanas, é mera caiação eclesiástica.

«Lei». Vêde Vol. I, p. 214. 18. «Eu sou quem testifico de mim mesmo, sim.» Jesus é a teste-

munha Número UM, agora que o Batista passou da terra. Quão impor-tantes foram suas credenciais dadas públicamente pelo Batista! O Pai é outra testemunha, por vozes audíveis, em magnas ocasiões, e nas Escritu-ras do Velho Testamento, sempre. Vêde as notas sôbre 5:45, 46, numa luta anterior desta mesma natureza, luta cada vez mais dura agora até ao fim no Calvário.

19. «Nem a mim nem ao meu Pai conheceis.» Palavras enfáticas na forma e na posição. Vêde 14:7, para perceber como os discípulos, du-rante a encarnação, participavam, de certa maneira, das dificuldades dos judeus no seu duro monoteísmo, sem o alívio de uma clara doutrina da Trindade. A distinção entre as três pessoas, sua vida social e sua unidade são aspectos necessários da doutrina da Trindade que se manifestou em Jesus na encarnação, e no Espírito no seu advento no dia de Pentecostes, logo depois da ascenção. Vêde a discussão sôbre a Trindade no Prólogo. Essas palavras, é evidente, não contradizem as de 7:28 onde Jesus fala da sua residência no meio do povo.

20. «Falou no gazofilácio, onde êle ensinava no templo.» A pala. vra «gazofilácio» se acha em Mar. 12:41, 43; Luc. 21:1 e aqui. A lei de Deus proibia que qualquer adorador viesse à sua presença de mãos vazias. Corno o Batista se colocou nos vaus do Jordão porque o povo tinha de pas-sar ali, assim no templo Jesus foi para onde o povo todo tinha de chegar, tanto homens como mulheres. Ali diria continuamente: «Eu sou a luz do mundo.» Certo livre-pensador, conquanto descrente, estava expressando sua admiração pela pessoa de Jesus. Alguém lhe perguntou: «Professor, já houve ocasião em que o sr. tivesse bradado perante qualquer classe ou qualquer auditório: EU SOU A LUZ DO MUNDO?» «Não.» «Mas o sr., sem dúvida, teve grandes mestres na sua mocidade. A qualquer um dê-les já ouviu dizer: EU SOU A LUZ DO MUNDO?» «Não.» «E o sr. seria capaz em qualquer ocasião de dizer: EU SOU A LUZ DO MUNDO?» «Não.» «E, professor, que é que o sr. pensaria de um de seus colegas, se êle um dia bradasse perante um auditório acadêmico: EU SOU A LUZ DO MUNDO?» «Sem dúvida eu diria que era um desequilibrado.» «Pois bem. Sendo assim, como é que qualquer um de nós pode manter respei-to algum por Jesus Cristo, senão com plena fé de que êle era o que preten-

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 281

dia ser, A LUZ DO MUNDO, A ÁGUA DA VIDA, O FILHO DE DEUS, O PÃO QUE DESCEU DO CÉU?» De fato, ou Jesus estava completa-mente destituido de modéstia, que é elemento básico dum caráter nobre e santo, ou era Deus. «Ninguém o prendeu»... «sua hora». Vêde as no-tas sôbre 7:30, 32, 44 ; 10: 39; 11:57, e sôbre 2:4 e 7:30 a respeito da «hora» que sempre estava diante de Jesus e para a qual êle consciente-mente marchava, até que fôsse consumada no Calvário.

«Gazofilácio». «Na côrte das mulheres (chamada assim, não porque só mulheres nela podiam entrar, mas porque elas não podiam ir além dessa côrte) estavam 13 caixas, chamadas as Trombetas, por sua forma, nas quais os adoradores lançavam suas ofertas. Era lugar muito freqüenta-do e parece ter sido sede favorita do ministério de Jesus.» (4) O Dr. Shepard nota (5) que a coragem de Jesus se vê, nesse caso, porque êsse lugar estava bem perto do salão onde se reunia o Sinédrio.

(4) "In the Days of His Flesh", p. 339, por David Smith. (5) "The Christ of the Gospels", p. 354.

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282 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

O Diálogo Mais Trágico, Pungente e Momentoso de Tilda a Literatura Humana

(Capítulo VIII, versículos 21 a 59)

coisas que eu ouvi da parte dele, essas estou falou- 27 - 28 do para o mundo." 1 Não compreenderam que lhes falava do Pai. I Jesus,

pois, lhes afirmou: "Quando levantardes de vez o Depois do Calvário, Filho do Homem, então conhecereis que EU SOU, e

o Pentecostes nada faço de mim mesmo, mas assim como o Pai 29 me ensinou, estou falando estas verdades. I Aque-

le que me enviou está comigo: êle não me deixou aninho, porque sempre 30 faço as coisas que são do seu agrado." I Enquanto êle dizia estas palavras, 31 muitos creram nele. I Então Jesus dizia para os judeus que sentiam essa

fé perene que nele depositaram: "Se vós de vez to-

Depois da Fé, a atardes unia atitude de permanente união com a Liberdade Palavra, a minha Palavra, sois discípulos meus de

32 fato, e conhecereis a verdade e a verdade vos liber- 33 tará." I Replicaram-lhe : "Raça de Abraão somos, e nunca fomos e não

somos escravizados a ninguém. Como é que tu dizes: Sereis feitos livres?" 34 I Jesus lhes tornou: "Mui solenemente vos afirmo: Todo aquêle que vive 35 praticando o pecado é um escravo do pecado. I E o escravo não perma-

nece na casa para sempre: o filho fica eternamente. 36 A Vida I Se, pois, o Filho vos der de vez a libertação, se- 37 Eterna é Dis- reis livres em realidade. 1 Reconheço que sois raça

cipulada na de Abraão: contudo estais procurando oportunida- Palavra. de de me matar, porque a Palavra, a minha Pala-

38 vra, não tem lugar em vosso coração. I Estou falan- do as coisas que eu mesmo percebi e percebo, da parte do (meu) Pai. Logo vós também estais praticando as coisas que ouvistes da parte do (vosso) pai."

39 1 Disseram-lhe em réplica: "Nosso Pai é Abraão." Jesus lhes diz: "Se sois

21 Então êle lhes disse outra vez: "Eu vou embora e vós me buscareis, e to- 22 davia morrereis em vosso pecado; onde eu vou, vós não podeis chegar." I Por-

tanto os judeus comentavam: "Será que ele vai siai- Crer ou Morrer cidar-se, porque diz: Onde eu vou vós não podeis

23 sob o pêlo do vir? Não acreditamos !" I E dizia-lhes: "Vós pecado sois de baixo, eu sou de cima: vós sois deste mun-

24 do, eu não sou deste mundo. 1 Por isso vos disse que morrereis nos vossos pecados. Se não crerdes definitivamente que EU SOU, morrereis nos vossos

25 pecados." I Perguntavam-lhe, pois: "Quem és tu?" Jesus lhes tornou:

26 "Mas para que estou vos falando?! I Tenho de

Jesus se aborrece estar dizendo e julgando muitas coisas a vosso res-mas se firma no peito. Contudo, aquêle que me enviou é veraz e as seu testemunho

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 283

filhos de Abraão, praticai as obras de Abraão; 40 Há Duas Filiações I agora, porém, buscais ensejo de matar-me, um

Espirituais homem que vos tenho falado a verdade que ouvi 41 de Deus; isso Abraão não fez. I Vós fazeis a=

obras de vosso pai." Tornaram-lhe: "Não é de fornicação que nós fomos

42 gerados, temos um por Pai — Deus." I Respondeu-lhes Jesus: "Se Deus fôssc o vosso Pai, vós me amaríeis: porque eu de Deus parti e aqui estou. pois nem de mim mesmo tenho vindo, pelo contrário, ele me comissionou.

43 1 Por que razão é que vós não reconheceis a minha fala? E' porque não

44 sois capazes de ouvir obedientemente a Palavra, a mi-

As Duas Paternida- nha Palavra. 1 Vosso pai é o Diabo, e as ardentes des Geram Atitudes cobiças do vosso pai gostosamente quereis permanecer Diferentes com Re- praticando. Ele era homicida desde o princípio,

lação a Jesus e ã. e nãoparou na verdade nem nela fica, porque não Verdade. existe verdade nele. Quando fala a mentira, e

45 falando das suas próprias coisas, pois é mentiroso e o pai da mentira. 1 E (.

46 porque eu vos falo a verdade que não sois crentes em mim. I Quem dentr,. vós me prova que sou réu de pecado? Se estou falando a verdade, por que ra-

47

zão é que vós não sois crentes em mim? 1 Aquele que

A Perfeição Moral é de Deus ouve obedientemente as palavras de Deus:

de Jesus Cristo por esta causa vós não me 'atendeis, porque não sois

48 de Deus." 1 Os judeus lhe tornaram, em réplica: "Não é muito bem que nós dizemos que tu és samaritano e endemoninha-

49 do?" 1 Jesus respondeu "Eu não tenho demônio, pelo contrário, vivo hon-

50 rando a meu Pai, e vós me desonrais continuamente. 1 Mas eu não busco a minha glória: há quem a promova e dê senten-

51 E' moralmente im- ça. 1 Mui solenemente vos declaro: se alguém de- possível crer em cididamente se constituir guarda da minha Pala-

Jesus e descrer na vra, ele não verá absolutamente a morte por tôda 52 sua Palavra. a eternidade." I Os judeus lhe tornaram : "Agora

temos chegado à certeza de que és endemoninhado. Abraão morreu e os pro-

fetas morreram e todavia tu dizes: Se alguém se fizer decididamente guarda da

53 minha Palavra, nunca, nunca provará a morte! 1 Tu és, porventura, maior do

que nosso Pai Abraão, o qual morreu? Não é possível! Também os profetas morreram. Quem julgas ser?" 1 Jesus respondeu:

54 Crer é conhecer "Se eu começo a glorificar-me a mim mesmo, minha eternamente : Des- glória é nula. E' o Pai quem continuamente me glo-

crer é morrer rifica, de quem vós dizeis que é vosso Deus, 1 e 55 eternamente. todavia não chegastes a conhece-lo e não o conheceis

agora, mas eu o conheço. E se eu disser que não o conheço, serei semelhante

a vós outros — um mentiroso. Eu, porém, o conheço e guardo sua Pala-

56 vra. 1 Abraão, vosso pai, exultou; em que visse o meu dia, e o viu e exultou." 57 Disseram-lhe então os judeus: "Nem ainda chi-

58 Jesus é o EU SOU qüenta anos tens, e hás visto a Abraão?" 1 Jesus

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284 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

do Israel crente. lhes tornou: "Bem solenemente vos afirmo: Antes 59 de Abraão começar a existir, EU SOU." I Por-

tanto tomaram pedras para jogar contra ele; mas Jesus sumiu-se e saiu do templo.

21. «Eu vou embora e me buscareis, e todavia morrereis em vosso pecado; onde eu vou vós não podeis chegar.» Em outra ocasião (7:34), Jesus disse, segundo nosso texto: «Onde eu estou, não podeis chegar.» Faz-nos pensar da declaração de Lightfoot: «No Evangelho de João, Jesus realmente nunca deixa o lado do Pai.» Decerto, o Filho de Deus não foi apanhado de surpresa na sua «hora». O Calvário estava sempre presen-te com êle. «A noite vem», era seu pensamento por todo o seu «dia». Ele não se fêz «o Mártir de Gólgota», mas o sacrifício voluntário, «o Cor-deiro de Deus que tira o pecado do mundo» — tira e toma sôbre si e ex-pia de uma vez.

«E me buscareis». «Mas quando já é tarde, a desilusão e o deses-pêro estendem mãos vazias para onde não sabe.» (1) «E', a trágica bus-ca do seu Messias por Israel através dos séculos.» (2)

«Vós não podeis chegar.» E' a alternativa do evangelho, em todos os momentos de grande crise espiritual e forte ensino de Jesus. E' seu aviso urgente: «crer ou perecer» — não no sentido de crer dogmas, in-ventados pelos homens e impostos por embusteiros que fingem decretar em lugar de Deus o que os homens devem crer, nem no sentido de ca-ber a uma Santa Inquisição estabelecer-se como tribunal sôbre a vida humana, com suas nefandas tiranias. As alternativas são crer evang.& licamente em Cristo, entrando em união vital com êle pela fé-confian-ça, ou ficar sob a condenação, permanecer no pecado, com a conseqüên-te miséria eterna. Vêde a discussão da frase «entregue à miséria eter-na», Vol. I, p. 325.

22. «Ele vai suicidar-se? Não?» Outra vez (7:35) lembraram a possibilidade de que Jesus iria à Dispersão dos judeus no mundo gentio. Esta vez ridicularizam suas palavras com a sugestão de suicídio, de que resultava, segundo a teoria dêles, ir o suicida para o ínfimo lugar na Geena.

23. «Vós sois das regiões cá embaixo» ... «dêste mundo». Vêde 3:31.

24. «Morrereis nos vossos pecados.» E' fatal. Não há remédio em outra vida. Notai que Jesus considera a fé e a conseqüência do pe-cado como alternativas eternas.

«Se não aceitardes em fé que eu sou». «Jesus pode significar: ou 'eu sou de cima' (v. 23), ou 'eu sou enviado do Pai', ou 'sou o

Messias' (7:18, 28), ou 'eu sou a luz do mundo' (8:12), ou 'eu sou o Li-bertador da escravatura do pecado' (8:28, 31, 36), ou 'EU SOU' no sen.

(1) "The International Critical Commentary" Vol. II, sôbre este Ev., p. J. Ii. Bernard. (2) -Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 145, por A. T. Robertson.

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tido em que os judeus falavam de Jeová (Deut. 32:39) . (Vêde Is. 43: 10 onde as próprias palavras para que ... creiais que eu sou se encon-tram.) A declaração EU SOU se acha três vêzes aqui (8:24, 28, 58) e em 13:19. Jesus parece asseverar sua deidade absoluta.» (3) Vêde as notas sôbre 6:64.

25. «Portanto perguntavam-lhe: Quem és tu?» «Jesus tornou-lhes: Mas para que estou vos falando?» «Crux interpretum.» Meu «Dicio-nário Grego» (p. 23) dá várias significações da frase que principia essa pergunta. O que considero decisivo é que Westcott e Hort, e Nestle também, dão a sentença como interrogativa. Sendo assim, é inevitável uma tradução mais ou menos assim. Rohden verte: «Por que afinal es-tou a falar-vos?» E Fr. Damião Klein: «Por que afinal vos estou a falar?» Assim. Williams, Weymouth e outros, em versões inglêsas. Da-vid Smith apóia, dizendo: «Quando Jesus declarou: Onde eu vou, vós não podeis vir, supunham que êle se referia à Geena de um suicida. Era uma idéia bronca e insultante, e o enchia de desespêro e aborrecimento. Esses homens e êle eram de mundos diferentes, e a comunhão lhes era impossível. 'Mas para que estou vos falando?' Não havia outro recurso senão seguir o rumo que lhe fôra traçado, até o fim amargo; e então, quando tivessem tomado sua vingança contra êle, veriam, na sua ressur-reição e nas maravilhas que seguiriam, a vindicação ale por Deus.» (4)

O Novo Testamento em grego moderno mudou a linguagem original, de modo a dizer, na língua atual da Grécia: Desde o princípio, mas não é genuína semelhante lição. Temos, pois, de escolher tanto um significado de cada palavra que a esta não faça violência, como um conjunto dêsses significados que verta inteligentemente a idéia, pelo menos alguma idéia, de Jesus que esteja em harmonia com o contexto. Escolhi o que tendes em cima. A gramática não permite a tradução «desde o princípio» como se acha na Versão Brasileira, Almeida, e outras versões, nem «o princí-pio» como verte o D. Fr. Joaquim de N. S. de Nazaré. Não estranhe-mos o fato de Jesus irritar-se diante de semelhante depravação. Não se irar seria mostrar falta de caráter. Ele sabia irar-se e não pecar. As palavras que descrevem ira que arde e ferve se usam a respeito de Deus.

26. «Tenho de estar dizendo e condenando muitas coisas a vosso respeito.» Não é missão agradável. Vêde o título que dei, na tradução, a êste diálogo. Mas a carreira do homem de Deus nunca é fácil. Não foi fácil ser um Jeremias, um Jonas, um Batista. O que vale em tais cir-cunstâncias é que sejamos desinteressados como Jesus, e demos também cinicamente o testemunho de Deus. «Aquele que me enviou é veraz.» Tes-tificar sua Palavra revelada, pois, é dar a verdade a nosso povo.

27. «Não compreenderam.» A incredulidade é uma cegueira. O Prólogo dá êsse diagnóstico do mal humano: «O mundo não chegou a

(3) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 146, por A. T. Robertson. (4) "In the Days of His Flesh", p. 341.

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conhecê-lo», 1:10. Nem Nicodemos, 3:10. Nem os ouvintes da linda pa-rábola do Bom Pastor, 10:6. Todavia Nicodemos declarou: «Sabemos.» Mas sabiam pouco, compreendiam menos. Vêde a discussão de 4:22; 10: 6 e Vol. I, ps. 230, 240, 244.

28. «Quando levantardes de vez o Filho do Homem, então sabe. reis...» Já mostramos que levantar quer dizer crucificar, nessa lingua-gem. Vêde a discussão de 3:14,34. Os judeus teriam de «levantar» o Filho do Homem, crucificá-lo, mas é claro que não lhes cabia operar a ressurreição ou a ascensão, logo a linguagem não se refere senão ao Cal. vário. Mas podemos ver aqui que Jesus esperava uma continuidade do Israel de Deus. O povo crucificaria seu Messias. Mas três mil desse povo seriam convertidos no dia de Pentecostes, aos quais Pedro diria em seu sermão: «Vós o matastes, crucificando-o por ,mãos iníquas» (Atos 2:23) . Há continuidade, pois, entre o Israel da Páscoa da crucificação e o Israel do Pentecostes subseqüente. E o «resto» profético de Israel segundo a carne é o Novo Israel de Deus, dos primeiros capítulos dos Atos. E' êsse «Israel de Deus» que chega mais tarde a ser o «povo peculiar» de Cristo sem distinção da nacionalidade, como se vê em Rom. 2:29; 11:17; Efésios 2:12-22; Gál. 6:16; Fil. 3:3. Jesus aqui mostra clara presciên-cia, pois, da sua crucificação, e da subseqüente conversão de muitos que gritaram «Crucificai-o», mas ouviram o sermão do dia de Pentecostes e «compungiram-se no seu coração» e se converteram aos milhares.

«EU SOU.» Vêde os vs. 24 e 58. «Nada faço de mim mesmo.» Sôbre a absoluta dependência entre Je•

sus e o Pai pelo Espírito, nos dias de sua carne, vede as notas sôbre 3:34; 5:19, 30, 31.

29. «Está comigo.» «A união do pré-encarnado Filho com o Pai continua depois da endarnação.» (i) Ora, como a presença do Pai no Filho era espiritual, na íntima comunhão, e não em sacramento supersti-cioso, assim é a presença de Pai e Filho no crente.

«Não me deixou sôzinho.» Não é seu costume. E Jesus não nos dei-xa «órfãos». Vêde a discussão de 14:18; 16:32.

«Do seu agrade». O Filho agradou a Deus quando foi obedientemen-te batizado, Mar. 1:11. E lhe agrada pela «loucura da pregação salvar os que crêem», I Cor. 1:21. A escolha dos diáconos, distribuindo res-ponsabilidades numa igreja de Deus, agradou em Jerusalém. A dansa de Herodias «agradou» a Herodes — valeu-lhe a cabeça de João Batista. E' o agrado da carne, que é incompatível com o agrado a Deus, Rom. 8:8. Convém esquadrinhar os nossos corações e ver a quem agradamos e a quem estamos procurando agradar. «Se ainda buscasse agradar aos homens, não seria servo de Cristo» Gál. 1:10. Há uma vasta doutrina sôbre o agrado que prestamos com a nossa vida.

30. «Muitos creram nêle.» «Confessamos francamente que, até

(5) "The International Criticai Commentary", Vol. II, p. 307, por 3. II. Bernard.

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fazermos um estudo intensivo destes capítulos do Evangelho de João, nós não avaliamos que Jesus havia dito tanto e com tão abundantes deta-lhes, acêrca da sua relação com o Pai e da sua missão na terra. João nos apresenta Jesus como processado e como testemunha diante de seus in-quiridores, os quais o examinam e o submetem a suas pesquisas; e te-mos os resultados na Escritura inspirada. Somos contentes porque nunca duvidamos da verdade de um versículo da Escritura, mas somos fran-cos em dizer que consideramos um tesouro especialmente rico as pala-vras diretas de Jesus Cristo. Quão gratos somos a João por ter nos dado tão grande soma do testemunho pessoal de Jesus.» (6) Assim disse o eminente educador e conselheiro da mocidade, o Dr. John L. Hill.

«Creram nele — lhe deram crédito.» «Os que creram nele eram em menor número do que os que apenas lhe deram crédito, sendo este grupo numeroso a quem êle proferiu as palavras do segundo versículo e alguns dos quais começaram logo a achar falta no ensino dele.» (7)

30, 31. «Creram nele... deram-lhe crédito.» O eminente Westcott salienta a diferença entre essa fé salvadora do v. 30, «creram nêle», fé-confiança íntima e vital, e a fé-crença, opinião a respeito de Jesus, corna digno de certo crédito, opinião de que ele era profeta e taumaturgo, ad-miração sem fé salvadora que êle considera ser a fé descrita no v . 31. Ele diz: «A chave para o entendimento da narrativa de João VIII está na mudança da frase, nos versículos 30 e 31. Nosso Senhor falou e mui-tos creram nêle (episteusan eis auton), com devoção e perfeita entrega de si mesmos a ele; mas havia outros, judeus no sentido técnico da lin-guagem desse evangelho, os quais lhe deram crédito (pepisteukotas auto), pois confessavam que era verdade o que ele dizia, e até lhe da-vam razão em suas pretensões messiânicas, mas que não podiam repu-diar sua própria concepção acêrca do que devia ser o Messias, e, coar esse preconceito, estavam preparados já para uma incredulidade fatal.» (8) Está certo Westcott em dizer que «judeus» podiam até acreditar que Jesus era o Messias e ainda limitá-lo às categorias do preconceito deles sobre a qualidade de Messias que êle devia ser. O tempo perfeito do par-ticípio indica que tiveram tal crença e ainda estava de pé a mesma con-vicção intelectual a despeito das dificuldades que até aí haviam encon-trado. O erudito bispo anglicano foi ainda além: «Todos nós podemos sentir a diferença entre confiar em alguém e crer algo a seu respeito. Isto significa o apoio intelectual, aquilo a devoção !ativa. Êsse contras-te deliberado explica os sucessos trágicos que adiante se realizaram na história preservada para nós em João VIII. Alguns creram em Cristo (v. 30) e estavam seguros e prontos para segui-lo até onde êle os qui-sesse guiar. Outros lhe davam crédito (v. 31) e, embora consentissem intelectualmente em sua carreira messiânica, não o queriam em seus

(C) "The Teacher", de fev. de 1963. 1 7 ) —The International Critical Commentary", Vol. II, p. 307, por J. II. Bernard.

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corações como o Messias. Nessa situação jazia a possibilidade do térmi-no fatal do caso, conforme o fim do capitulo.» (8)

Damos, sem inteiramente concordar, as notas de Westcott e Ber-nard sôbre os dois sentidos do verbo crer. Nisto concordamos, como se vê no Estudo Especial, Vol. I, ps. 69-96. Acho, porém, que os crentes considerados no v. 30 são os mesmos a que se refere o v. seguinte. O tempo do verbo (perfeito) indica crentes decididos e confirmados na sua decisão de fé. O artigo definido seria referência aos que creram nesta ocasião e a outros peregrinos semelhantes. E' insustentável a objeção de Westcott segundo a qual quando o verbo crer (pisteuo) tem o objeto da fé com a preposição eis, então é fé salvadora, mas quando o objeto está no caso dativo é mera fé-crença. Uma das mais fortes declarações de fé salvadora e da conseqüente vida eterna se acha em 5:24, contudo, aí temos o simples dativo, não a forma mais forte. Westcott caiu na tentação de GENERALIZAR DEMAIS.

Ele insiste que êsses mesmos crentes são os que têm o diálogo dolo-roso com Jesus nos versículos seguintes. Mas é urna conclusão imprová-vel. Já vimos, em nosso estudo de Cap. VII, que urna turba no templo consta de muitos grupos e ora um fala, ora é outro elemento que opina coisa bem diversa, e de um ponto de vista muito mais, ou muito menos, hostil. A hipótese de Westcott é insustentável, de fato, porque êsses com quem Jesus tem o triste diálogo são positivamente INCRÉDULOS, pois Jesus o afirma nos vs. 45 e 46. Sem dúvida, o grupo de crentes era composto de novatos, calados, recém-nascidos na fé, ainda investigadores, e êles não são ouvidos na terrível discussão que segue. Jesus, porém, os tem em mente precisamente aqui onde os previne que a fé genuína persevera e é sempre contemporânea da vida eterna. Em crerem, entraram num disci-pulado em que apenas agora se matricularam. Não se escandalizem, pois, e sua perseverança mostrará se a fé é genuína. Não é hábito da Escritura distinguir imediatamente entre o joio e o trigo. Simão Mago foi chamado «crente» até revelar que crente não era. Deus deixa os professôres mos-trar sua natureza real. Nem a Judas denunciou antes dêle se revelar. Portanto, nenhuma violência faz ao ensino de Jesus reconhecer que os que se diziam crentes eram benvindos sempre. Longe das palavras do contexto serem uma anulação das grandes promessas feitas à fé, são um aviso que ~ente os discípulos que perseveram na Palavra são, e eram a princípio, crentes genuínos. O fato de Cristo fazer tão grandes promessas aos apóstolos, sem denunciar Judas, nem anula essas pro-messas nem indica que Judas era salvo e digno. «Êle foi para seu lugar.» Simplesmente não fazia parte real do grupo a quem Jesus falou e outro tomou seu lugar e seu quinhão nas promessas. Assim é quando se fala a crentes professos. Usa-se a linguagem que descreve crentes genuínos, prevenindo-os todos que os frutos futuros mostrarão sua natureza atual.

(8) "Some Lessons of the Revised Version o! the New Testament", pe. 63, 64, 115.

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«Enquanto êle dizia essas palavras muitos creram nele.» E' a melhor qualidade de fé, a que resulta da pregação, não a que surge do espanto causado por um milagre. E' desta qualidade de fé, a crença que surge ao ver milagres, de que Jesus desconfiava. Vêde Vol. I, p. 304. A conver-são é instantânea, embora sejam prolongadas as circunstâncias e a ex-periência preliminar e investigadora que conduz o pecador à decisão vital. Nunca ninguém morreu meio-crente, meio-incrédulo, sem ser de Deus ou da perdição. Como Deus vê a fé nascente, e como e quando nossa psicologia a analisa, são coisas bem diferentes. Quando Deus vê a fé, justifica a alma, nesse instante. E a fé vem em inúmeros casos en-quanto se ouve a pregação, pública ou de testemunho pessoal do evan-gelho, face à face. Assim os três mil foram salvos no dia de Pentecos-tes, «receberam a palavra». Assim Cornélio foi salvo. Assim o saltea-dor na cruz. A fé, diz Paulo vem pelo ouvir. Creram ali no templo tam-bém, no ato de ouvir. Mesmo que um tivesse se convertido sozinho, iso-lado, sua fé veio do evangelho que ouviu em tlgum tempo e que nesse momento da conversão estava presente ao seu espírito.

31. «Os judeus que sentiam essa fé perene que nêle depositaram». Procuro assim dar o duplo valor do tempo perfeito. Exerceram a fé, e ela perdura. Vêde as notas sôbre 5:10 (acerca do tempo perfeito), a dis-cussão também de 4:50, 51, 53: 6:29, 30, 47, 56, 64 a respeito da fé.

«Se vós tomardes uma atitude decidida de união com a Palavra, a minha Palavra». Há Escrituras que salientam a prolongada natureza da fé, que é sempre contemporânea da vida eterna, e há outras Escrituras que salientam o aspecto dessa fé que é o novo nascimento, o comêço dessa vida eterna. Nascemos crendo e vivemos crendo. «O justo vive da fé», como foi «justificado pela fé». Creiamos ambos esses ensinos gloriosos e vitais, pois são verdades gêmeas do evangelho. Aqui se tra-ta da fase instantânea, da fé ao ouvir a pregação. «Creram enquanto ou-viam» a Jesus. Nasceram de «água e do Espírito», da purificação pela Palavra e pelo Espírito. Há muitos paralelos entre o Verbo e a Palavra. E a, fé salvadora inclui atitudes decididas para com o Verbo histórico, a pessoa crucificada do Redentor, e para com a boa nova de salvação pelo seu sangue, «o evangelho da vossa salvação». Precisamente como um homem pode mudar de rumo decididamente em mil outras maneiras, assim êle pode também ouvir o evangelho, crer sua verdade e agir, to-mando decididamente e de vez uma singela mas dupla atitude de seu es-pírito, crendo . intelectualmente a verdade do evangelho, «a Palavra», e confiando no seu divino Herói, o eterno Verbo, nosso Redentor. E' o as-pecto instantâneo, de vez, aoristo que Jesus salienta aqui. Cremos de vez no evangelho. Ficamos perenemente em união vital com «a Palavra», daí em diante. E' o paralelo entre o Verbo e a Palavra.

«A Palavra, a minha Palavra». E' em contraste com «a Lei, a vossa Lei». Quão querida é para Jesus a Palavra de Deus, e não se distingue

C. E. J. - 19

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da Palavra de Jesus e da pregação da Escritura. E' a mesma mensagem da vida. E conduz ao conhecimento da verdade e ao gozo da liberdade real. Vede a discussão da maneira em que a Palavra permanece em nós, em 15:7.

«E a verdade vos libertará». «Há uma pequenina palavra grega so-letrada k-a-i que ficou perdida pelo mundo e sua perda causou uma por-ção de desastres sem fim... Porque ficou apagada essa palavra a flor de nossa civilização, assim chamada, murcha precisamente quando ía desabrochando numa perfeição e formosura que seriam a coroa de nosso Maravilhoso Século Vinte.

`Nossa Universidade de Johns Hopkins perdeu sua kai, deliberada-mente em seu bêrço. Em 1876 ela tomou como sua divisa da vida as pa-lavras: Veritas Vos Liberabit, a verdade vos libertará, uma triste decla-raçãozinha deslocada da Bíblia (João 8:32) .

«Numa visita à Universidade da Virgínia, num passeio pela proprie-dade com o prof. Kent, cimentei a grande divisa em grego no Edifício das Ciências: E conhecereis a verdade e a verdade vos libertará. Discuti o Kai, e suas significações, e felicitei a Universidade. O prof. Kent me disse que para ele também fôra há muito tempo motivo de interesse e estudo especial.

«A passagem bíblica inteira é: 'Se vós permanecerdes na minha pa-lavra, verdadeiramente sois meus discípulos ; e conhecereis a verdade e a verdade vos libertará.' As palavras vitalmente importantes são as pe-queninas — se e e. Conhecer a verdade e a liberdade se consideram como que dependendo de permanecer na Palavra de Cristo e ser discípulos dele. A Alemanha há longo tempo repudiou o kai, produziu Nietzsche, glorifi-cou a doutrina de que o Estado, sendo impessoal, poderia cometer cri-mes sem culpa e adotou a política de que a fôrça faz o direito.

«Há somente uma arma que é sempre eficaz contra nosso Adversá-rio e essa é a espada do Espírito que é a Palavra de Deus... Homens e mulheres cristãos, ministros cristãos, homens cristãos, mulheres cristãs, restaurai êsse kai, e tende certeza de que nada podeis saber à parte da-quele que tudo fêz e tudo mantém pela Palavra de seu poder, em quem todas as coisas subsistem. Eu faço minha a oração de Cristo: «Pai, san-tifica-os pela tua verdade. A tua Palavra é a verdade.» (De um artigo no «Sunday School Times», de 7 de julho de 1923, da autoria do eminen-te cientista crente, o Dr. Howard A. Kelly, perito na Faculdade de Medi-cina da Universidade de Johns Hopkins, EE . UU . A . ). Parece incrível que seja um homem de ciência quem tenha de chamar os homens de re-ligião ao juízo. Roubar do seu contexto inquebrantável as palavras «a verdade vos libertará», é ousadia e incredulidade. Há mil aspectos de verdade no terreno material que nenhuma libertação efetuam para o es-pírito humano. E' somente para «vós» — crentes, discípulos que vivem na Palavra de Cristo, que essa verdade de verdades traz a liberdade, ver-

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dadeira e eterna. O' aduladores de ciência materialista, mundana e im-potente, deixai de roubar de Cristo seus atributos e doá-los à impotência moral da ciência física.

«Libertará». Uma mulher da índia que visitava êste mundo novo disse: «A descoberta mais extraordinária que eu fiz aqui é o fato de que inúmeras mulheres em vosso país não estão dedicadas a Jesus Cristo. Nós, mulheres da índia, sabemos que êle é nossa única esperança. Como pode ser que vossas mulheres se esqueceram de que êle é a fonte de tôda a liberdade? Esta veio Unicamente por Cristo.»

33. «Raça... somos.» Eram crentes na salvação messiânica ra-cial. Logo a Jesus não cabia lugar nos seus planos ou suas esperanças. Sua reação era lógica e fundamental. O evangelho é um libelo. Quem me dá a boa nova de um Médico competente me considera doente. Quem me promete libertação me considera cativo. Quem me proclama um Re-dentor me julga escravo. Quem me procura achar supõe que sou um perdido. Os judeus, pois, perceberam bem a lógica de uma libertação que viesse de Jesus.

«Nunca... escravos». Riggs opina que falavam de sua posição so-cial. pois raro era que um judeu fôsse reduzido ao estado de escravatura. Politicamente, a Palestina tivera muitos cativeiros.

34. «Amém, amém.» Vêde as notas sôbre o duplo «Amém», em 5:24.

«Todo aquêle que vive na prática do pecado». João fala daqueles que «não vivem na prática da verdade», I João 1:6. São princípios ori-entadores da vida — o princípio-pecado e o princípio-verdade — e vamos, no curso da vida, manifestando qual é o princípio fundamental em nossa vida.

34. «Pecado». «O pecado que o homem serve pode tomar muitas formas: o mundo, que é o pecado generalizado; o Diabo, que é o pecado personificado; os lôbos que assolam e devoram o rebanho. São meros aspectos do pecado; o pecado é cada um e é todos estes; mas sua morte é o meio pelo qual Deus efetua libertação de cada um e de todos. Por ela o mundo é vencido, o Diabo é julgado; as ovelhas são salvas.» (9) E explica assim: «Sua preeminência é o segrêdo do seu valor; Ele faz o que não é possível a nenhum outro, pois transcende a todos os outros, e sua personalidade como que iguala a personalidade do homem coletivo.» (10)

35. «O escravo não fica para sempre na casa.» «Jesus previne aos judeus que êles não têm regime fixo na casa de Deus.» (") No resto do v. alguns traduzem «o filho», outros «o Filho». O crente é «o filho» que .se torna o herdeiro da promessa dada a Abraão. «O Filho» toma das

(9) "The Philosophy of the Christian Religion", p. 410, por Fairbairn. (10) Idem, p. 411. (11) "The International Criticai Commentary", Vol. I, sôbre este Evangelho, p. 310,

por J. , H. Bernard.

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mãos de Moisés e da hierarquia o governo da sua casa espiritual, Heb. 3:1-6.

36. «De vez». E' a fase inicial e instantânea da salvação. «Sereis verdadeiramente livres.» «Os homens podem gozar a liber-

dade política no máximo grau e ainda ser escravos, pois há o que se chama escravidão religiosa. Aquêle que se curva perante um sacerdote, que teme o anátema dêste, ou se arrasta para o seu confissionário para dêle receber a absolvição é um escravo digno de compaixão. Pode cha-mar-se homem livre, mas sua alma se acha na vil servidão se a supersti-ção lhe obriga a suportar seus grilhões. Dizer os segredos do meu cora-ção a um mortal tonsurado, confiar os segredos da família e o caráter de minha espôsa a um homem que pode estar vivendo na devassidão, eis o que é pior do que a pior forma de escravidão. Eu antes queria servir ao pior Sultão, que esmagou a humanidade debaixo de seu calcanhar, do que dobrar os joelhos diante do Papa ou de qualquer outro sacerdote que os homens criaram. A tirania do sacerdócio é o mais grave dos ma-les. A verdade quebrará êsses grilhões e o Espírito Santo abrirá essas prisões.» (12)

37. «Minha Palavra». Quantos milhares de vêzes Jesus pregara! E os Doze e os Setenta e os discípulos do Batista e os peregrinos em fes-tas em Jerusalém e os cinco mil homens alimentados no deserto e inúme-ros auditórios de sinagogas e multidões de ouvintes ao ar livre eram tes-temunhas, até aos confins do mundo de então, da PALAVRA D'«0 PRO-FETA». E' o Novo Testamento em embrião, como o Novo Testamento é «a Palavra» na sua madureza e plenitude. A mensagem, porém, é a mesma, oral ou escrita. E Jesus já chamava essa mensagem: «a Pala-vra». Vêde, na discussão de 15:7, como entre nosso coração e a Palavra há uma inter-penetração, um intercâmbio vital.

38. «Do Pai . . . do pai». A controvérsia é severa aqui. Os inimi-gos do Filho de Deus estão negando cada afirmação dêle a respeito de sua pessoa. Declarar e negar, acusar e disputar é o vaivém do diálogo desta parte do Evangelho. Forsythe diz que Cristo «evangelizou» o nome de Deus. Sua primeira palavra conhecida foi: «na casa de meu Pai» (Luc. 2:49) . Sua última palavra antes da morte foi: «Pai, nas tuas mãos entrego meu espírito» (Luc. 23:46) . Sua primeira palavra quan-do ressuscitado foi: «Meu Pai e vosso Pai» (João 20:17) . Jesus diz: «Meu Pai» referindo-se à paternidade de Deus em eterna relação única. mente para com êle. Diz aos discípulos, aos crentes: «Vosso Pai», e lhes ensina a dizer: «Nosso Pai», no sentido da paternidade especial de Deus que os crentes gozam experimentalmente em virtude da regeneração, e juridicamente por causa da adoção. Mas não há doutrina mais anti-cristã do que o ensino da paternidade universal de Deus em relação aos pecado-res. Aqui Jesus os prepara para a declaração categórica de que Satã é o

(12) "Treasury of the New Testament", Vol. II, p. 393, por C. H. Spurgeon.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 293

autor da incredulidade religiosa dêles. Jesus fala «do Pai», êles moral-mente imitam «o pai». Aquêle a cuja Palavra atendemos é o autor invisí-vel de nossa fé e prática. E ninguém escapa a uma certa orientação espi-ritual. A questão é: «do Pai» ou «do pai», do Espírito divino ou do espí-rito maligno. Ninguém vive num vácuo. Qual o espírito de que procedem as saídas de nossa vida?

39. «Se sois filhos de Abraão praticai as obras de Abraão.» Jesus fala da filiação da fé. Abraão é o «pai de todos os que crêem» Rom. 4: 11, 16. Há uma hereditariedade espiritual. Aqui Jesus antecipa Paulo e a Ep. aos Romanos. Se examinarmos bem, sempre acharemos na men-sagem de Jesus Cristo a raiz de que a doutrina de Paulo é o fruto.

40. «Tenho falado a verdade.» E' o campo da batalha entre Cristo e Satanás. O ânimo anti-doutrinário de muitos crentes os arregimenta sob a bandeira de Satanás na sua guerra à verdade de que Jesus Cristo é o Revelador. A natureza da «apostasia», no sentido bíblico do têrmo, é oposição à verdade revelada, afastamento da doutrina das Escrituras. A missão de Jesus é declarar a verdade. Ele não é nem «filósofo nem teó. logo», tecendo hipóteses e interpretações baseadas numa realidade além de si mesmo. Nenhuma realidade no universo vai além dêle: êle é a verdade, pois, e descrer é apagar o sol do nosso horizonte espiritual pela cegueira voluntária. Vede as notas sôbre 5:19.

41. «Vós fazeis as obras do vosso pai.» E' a hereditariedade espi-ritual, de novo. Olhai a vida e vereis sua procedência. Não confundamos «as obras da carne» (Gál. 5:19) com as obras do Diabo na vida humana. A carne é a natureza humana não regenerada e por si só promove a las-cívia, a superstição, o egoísmo e as lutas partidárias que daí nascem. Mas o supremo alvo e trabalho do Diabo é a religião. Seu primeiro ato na vida humana foi conseguir que Adão e Eva acreditassem que Deus era mentiroso. Suas tentações a Jesus foram tôdas no terreno religioso. Vencendo aí, a carne humana, isolada do poder divino pela escolha já feita, fará o resto na senda do mal. As decisões fundamentais nessa senda são tôdas religiosas. O anelo do Tentador é religião, cada vez mais religião, porém religião falsa, contrafeita, que venha vacinar a alma contra a verdade, a graça e a vida — religião sem salvação, reli-gião contra o legítimo lugar de Jesus na personalidade e na vida.

42. «Se Deus fôsse vosso Pai». Jesus nega a paternidade uni-versal de Deus. Não é que êles fôssem adeptos dessa teoria. Não. A teo-ria dêles era a especial paternidade de Deus que reividicavam para to-dos os filhos de Abraão na teocracia de Israel. Mas negando a existência dessa filiação na base da descendência racial, Jesus negou também qual-quer paternidade de Deus inerente na descendência meramente huma-na. Negando à raça de Israel a paternidade de Deus, na hipótese da hereditariedade humana, já está furado o alvo da universalidade da paternidade divina da raça humana. Se os judeus não têm Deus como

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seu Pai, a não ser quando regenerados, então ninguém mais goza se-melhante paternidade se não fôr regenerado. A paternidade divina não é para a raça judaica, nem tampouco para a raça humana, mas sim para os regenerados e Unicamente os regenerados. (Falo da paternida-de de Deus na salvação, regenerando o espírito humano por seu Espí-rito, mediante a fé. Deus é Pai do homem no terreno de Criador e Doador da sua personalidade natural.)

«Vós me amaríeis.» As afinidades se demonstram. Se alguém tem qualquer apreciação real da natureza divina, há de amar a Jesus Cristo. A atitude para com Jesus, pois, é a atitude para com Deus. De novo Jesus antecipa o apóstolo Paulo, que escreveu: «Se alguém não ama ao Senhor, seja anátema!» (I Cor. 16:22). O amor a Jesus Cristo se encorpora no primeiro mandamento de todos: «Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração...» A Lei o exige, mas a Lei é impo-tente para conseguir semelhante alvo. Esse amor que é o mandamento Número Um da moral, e fruto Número Um do Espírito, nunca nasce dos recursos naturais de nenhum pecador, mas é possível unicamente pela obra divina do Espirito no crente. «Porque o amor de Deus tem sido derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado» Rom. 5:5. Vêde a discussão de 5:42.

43. «A minha fala». E' urna palavra que chama atenção para o ato físico de falar, a pronúncia, o sotaque, as peculiaridades e só indi-retamente para as idéias das palavras. Podemos dizer que Jesus tinha sua «fala» e era imperdoável que os da casa de Deus não entendessem a «fala» das revelações que eram comuns a êles e a Jesus, no Velho Testamento. A verdade tem sua «fala», a da inspiração da Bíblia. Quando o homem salvo lê a Bíblia, encontra o que já sabe. A «fala» comove o seu espírito, pois sua experiência corresponde às magnas pa-lavras do evangelho que definem a graça de Deus na salvação. Se êsses homens tivessem a graça de Deus, teriam reconhecido em Jesus a «fala» da graça, pois sua linguagem encerrava as fundamentais idéias da «Promessa». A propaganda modernista nos convida a abandonar a linguagem da Bíblia e falar à nossa geração na linguagem do mundo circunstante. Sem dúvida devemos adaptar nossa apresentação da ver-dade ao nosso dia e meio ambiente, mas não pelo abandono da «fala» de Cristo. Suas palavras fundamentais não têm peças salientes na en-grenagem do evangelho. São o próprio motor da evangelização, no seu lado intelectual. O vocabulário do evangelho não é complexo. E' mui-to menos do que o que diz respeito a um automóvel ou a um aparelho de rádio. Mas é essencial. E deve ser entendido. E sem tornar as grandes palavras do Novo Testamento claras e insofismáveis, em nossa pregação, não somos pregadores do evangelho, mas bronzes que soam, címbalos que retinem, trombetas que dão som confuso e desorientador. Se Jesus fugiu totalmente de ser original e falou sômente as palavras

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que Deus lhe deu, e na linguagem das Escrituras, quanto mais ainda será essa a nossa suprema obrigação, como testemunhas da verdade. E quem fizer isso, acaba sendo o mais original pregador de todos, pois trata daquilo de que os homens menos sabem e menos cuidam, mas que tem mais significação para as suas mentes e consciências.

«A Palavra, a minha Palavra — não sois capazes de ouvir obedien-temente.» O caso do objeto (acusativo, aqui) indica o ouvir que pe-netra, entende, atende, obedece. Podiam ouvir o som. Mas é a boa vontade que assimila o sentido.

44. «Vós sois do pai.» Como Jesus fala «do Pai», iguala a frase em referência ao Maligno. Não é que Jesus fôsse expoente de um eter-no dualismo filosófico, como Zoroastro. O Diabo não é pai do organis-mo físico humano ou da psique de ninguém. Ele é criatura, não Criador. Mas êle é o autor da queda da raça humana, assumiu as funções inte-lectuais que cabiam a Deus, deu a orientação paterna contrafeita, fin-gindo grande amor e carinho paterno e 'zêlo pelos interêsses da raça. E nunca largou essa vantagem, senão pela vitória de Deus na regenera-ção e na consciência. Satanás, pois, não é o Criador do espírito huma-no, mas «o pai» de sua depravação, incredulidade e rebeldia, o orienta-dor e conselheiro paterno das mentes viradas contra Deus e sua Pala-vra. E' o brilho cintilante do Diabo, no intelecto descrente, que muitos soberbos chamam: «a cultura». Vêde as notas sôbre o Diabo, na dis-cussão de 6:70. E nas notas sôbre 5:40 vereis algo sôbre a deprava-ção da VONTADE, aqui afirmada: «Não QUEREIS vir, antes gosto-samente quereis praticar as ardentes cubiças de vosso pai.»

«Não parou na verdade nem nela fica.» Esforço para dar o valor do tempo perfeito do verbo grego. Vêde 5:10.

«Desde o princípio». E' sempre necessário saber de que «princípio» o contexto toma seu ponto de partida. «Em Mat. 19:8; 24:21; Mar. 10:6 ; 13:19; II Ped. 3:4 devemos entender desde o princípio da criação. Aqui precisamos indicar: da raça humana. Em Luc. 1:2; João 15:27; I João 1:1 devemos acrescentar: do ministério do Senhor. Em Atos 26:4, complete-se: de minha vida pública. Em II João 5, 6, se refere ao princípio da sua assistência aos cultos para ouvir o evangelho.» (13)

45. «Falo a verdade ... não sois crentes.» As idéias fundamen-tais que povoam tôdas as mentes incrédulas são negações da veracidade de Jesus cristo. Há centenas de Escrituras neste Evangelho em que nenhum incrédulo acredita, a não ser um investigador convencido que se encaminha para Cristo ou hesita em sua decisão entre aceitá-lo ou rejeitá-lo. E muitos que se chamam crentes negam também a veraci-dade de Jesus, nas suas afirmativas mais comuns e características, opondo à verdade daquele que é a verdade a pobre lógica tortuosa dê-

(13) "The Companion Bible", Vol. V, p. 1539.

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les. «Entre a verdade e eles não havia afinidade.» Vêde as notas sô-bre 3:17-18.

46. «Quem dentre vós me prova ser eu réu de pecado?» Há três possíveis alvitres que podemos tomar diante de semelhante linguagem. Podemos buscar, tendenciosamente, razões arbitrárias para rejeitar a autoria joanina do Evangelho de João, fazendo que essas palavras sejam invencionices de um romancista do segundo século. Muitos modernis-tas e alguns «liberais» fazem isso. Não sejamos cegos aos seus moti-vos. Eles não são desinteressados. Não são testemunhas, mas promo-tores públicos da descrença, para destruir a confiança na Palavra de Deus. A segunda alternativa é perder todo o respeito por Jesus Cris-to, denunciá-lo como visionário, maluco, megalomaníaco. O filósofo alemão do racismo, Nietzsche, tomou essa alternativa. O outro alvitre é crer e exclamar em adoração, com Tomé: «Senhor meu e Deus meu!» E' o alvitre que meu espírito, com o pleno apoio do meu intelecto, li-vremente toma.

47. «Aquêle que é de Deus ouve.» São afinidades espirituais. Vêde as notas sôbre 5:25, a respeito dessas afinidades, e sôbre 3:33, no tocante ao fato de que pela fé nós, nos círculos da nossa amizade, au-tenticamos, como que por selo, a revelação divina, dada em Jesus. E não tenhamos uma crença vaga e informe, associada com a nossa fé. O que devemos crer e saber são «as palavras» em que Deus nos deu a verdade de suas revelações. Vêde as notas sôbre 3:34.

48. «Samaritano». Diz Bernard que um dos pontos da contro-vérsia entre os judeus e os samaritanos era sôbre a questão da exclu-sividade de direitos judaicos à hereditariedade dos patriarcas e do seu patrimônio. Jesus, nesse ponto, se aliou aos samaritanos.

«Samaritano e tens demônio». «Esta combinação de insultos era a pior acusação possível neste mundo ou no porvir.» (14)

49. «Eu não tenho demônio.» Estavam dizendo de Jesus: «Tem demônio. E' samaritano.» Jesus protesta. Suas ações não eram de en-demoninhado, fenômeno bem comum entre eles. Sua cidadania nazare-na, galiléia, era propriedade pública. Era bem evidente que êle não era samaritano pelos privilégios que gozava no templo e nas sinagogas. De-cisão reta e instantânea era a ordem do dia. Devia morrer a acusação aí mesmo. Mas alguém de caráter vacilante fica meneando a cabeça. Diz : «Não sei. Onde há tanta fumaça, deve haver algum fogo. O povo não fala sem que haja alguma coisa.» Perguntai a qualquer bombeiro se há sempre fogo onde se vê fumaça. Vêde os aviões lançar no ar fu-maça artificial e escrever propaganda sôbre essa fumaça com ainda mais fumaça. Lêde dos navios que produzem nuvens artificiais de fu-maça e avançam ou recuam ou atacam, à vontade, pelas vantagens da fumaça como arma ofensiva. Não há neste mundo um critério mais

(14) "The Pharisees and Jesus", p. 85, por A. T. Robertson.

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insensato e imoral do que supor que porque alguém é atacado, logo é culpável. Abri os olhos. São os detentores de responsabilidade que sempre têm de suportar os ataques. Pessoas que sabem alguma coisa da natureza humana sabem disto e julgam de acôrdo. Vêde as notas sôbre 7:24. «Tomai retas decisões.» E' a autoridade e o amor de Jesus que o manda.

«Vivo honrando... continuamente desonrais.» As afinidades se arregimentam e guerreiam, na luta entre o mal e o bem, entre a verda-de e a mentira. Nenhum pacifismo religioso ou doutrinário evitará essa luta. E' um dos imponderáveis da vida e da história.

50. «Não busco a minha glória.» Ouvi um notável ministro dizer : «Eu era acadêmico, candidato a urna posição oficial no grêmio estu-dantil. Tive sempre, segundo o ensino da minha mãe, o costume de ler um trecho da Bíblia cada noite, logo antes de dormir. Abri minha Bíblia e li Cap. XII da Ep. aos Romanos: Na honra, dê cada um de vós preferência aos outros. Na manhã seguinte chamei meus cabos eleitorais e desde aquêle momento nunca procurei honras ou posições, por parte de meus irmãos. Eles me colocaram em muitas posições de responsabilidade e procurei desempenhar fielmente as responsabilida-des que me foram dadas.» Ele já estava encanecido quando falou. Esse espírito lhe valeu um grande caráter e personalidade. Tive von-tade, mas ainda não tive coragem, de pregar sôbre o texto usado na ocasião de minha ordenação: «Buscas tu para ti mesmo grandes coi-sas? não as busques» (Jer. 45:5) . Minha consciência me' reprova, em muitas ocasiões de muitas faltas. Aquela mensagem, porém, de tal maneira penetrou meu espírito que a tenho cumprido, na letra e no espírito, tanto quanto me é dado sondar os confins de meu espírito. E não tenho que lastimar a minha decisão. A providência de' Deus abrirá porta grande e eficaz a quem não buscar sua própria honra, por am-bicionar posição oficial elevada.

«Há quem a promova.» E' o fator invisível na vida, que faz de Deus e um crente corajoso a maioria, na luta pela verdade e pela vida cristã. Deus promove a glória de Cristo. Deus anela o culto de suas criaturas, a glória do seu Filho. São iniciativas do coração divino, nos seus propósitos da graça em relação ao coração humano. Vêde a dis-cussão sôbre isto em 4:23.

51. «Amém, amém», ou «Mui solenemente vos digo.» Vêde as notas sôbre 5:24. De novo, vemos o paralelo entre as promessas con-cernentes ao Verbo e à Palavra. Não se desassocia de Jesus sua Pala-vra. A atitude tomada para com a Palavra, na conversão, é indicada pelo tempo aoristo do verbo. O crente se constitui de vez guarda da Palavra. A idéia aqui não é: Se alguém guardar continuamente a Pa-lavra, por mais importante que seja êsse dever. Mas a fidelidade con-

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tínua procede da atitude fundamental e decidida, tomada de uma vez. E' essa de que Jesus fala aqui.

«Absolutamente». Vede as notas sôbre a fortíssima negação, no co-mentário sôbre 4:13.

«Não verá a morte.» E' enfático o original. A famosa Frances Havergal chegou a esta conclusão, a respeito disso: «Quando chegar-mos ao momento da agonia, não veremos a morte porque veremos a Jesus.»

52. «És endemoninhado.» Notai a idéia da palavra. Os calunia-dores de Maria Madalena crêem que o têrmo indica pecado sexual. Mas o sexualismo é «obra da carne», hão obra de demônio. Jesus diz que os adultérios procedem de dentro, do coração. Não são sinal de demô-nio. Aqui as tremendas declarações de Jesus, no terreno religioso e doutrinário, constituem motivo para acusá-lo de blasfêmia e de supor que nesse terreno religioso um demônio esteja sugestionando suas idéias. Lembro de novo que há um Diabo e miríades de demônios, e sua existência é tão real como a existência do Salvador.

53. «Nosso pai, Abraão». Essa convicção histórica e doutriná-ria a respeito do lugar de Abraão nas revelações divinas, e na providên-cia multisecular no reino de Deus, desde o Israel segundo a carne até o atual Israel de Deus segundo a eleição da graça, e matéria comum aos judeus e Jesus. Vem dos seus Velhos Testamentos. Jesus Cristo, como figura histórica, não é mais seguro do que Abraão nos documentos da antiguidade. A famosa escritora pagã, Pearl Buck, diz que não sabe se Jesus existiu. Assim dizem também os detratores do Velho Testa. mento, acêrca de Abraão.

A geração que findou o Século XIX e a que começou o Século XX, nas suas principais castas de «intelectuais» (assim classificados por si mesmos), perderam, em graus diferentes, tôda a sua crença na vera-cidade e historicidade da Bíblia. Ao princípio, sumidades «intelectuais» da Alemanha atacaram o Velho Testamento até reduzi-10 a uma coleção de mitos, dando sempre suas promessas aos ansiosos corações: «Fica o Novo Testamento intato. Ainda teremos Cristo.» Mas, depois de demolir o Velho Testamento, avançaram sôbre o Novo Testamento com a mesma hostilidade implacável e reduziram os Evangelhos a um tecido de autores duvidosos e interpretadores e editôres finais do segun-do século e corrutores subseqüentes do texto, de forma que Mateus já não é mais íntegro ou digno de confiança do que Gênesis e não sabem tais «intelectuais» se Moisés ou Mateus realmente existiu. Provàvel-mente que sim. Mas de certo, se existiram, nada escreveram de que possamos ter certeza hoje em dia. Jesus desaparece nas nuvens de in-certezas, pois encobrem com a névoa da dúvida os documentos que his-toriam sua encarnação, paixão e amor redentivo. E' simplório quem imagina que é possível entregar Abraão aos mitos e reter Jesus como

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realidade histórica. Vão — ou ficam — juntos. Um Cristo capaz de dizer que o mito Abraão viu seu dia e exultou, é mito também, aos olhos dos «intelectuais».

Júlio Wellhausen dizia na Alemanha que Abraão era «livre criação da arte primitiva.» (15) E Winckler insistia que Abraão era um deus, o deus da lua. (16) Tais semi-ateus eram funcionários teológicos do go-vêrno alemão nas universidades, onde a teologia ficava subordinada às ciências materialistas como a Igreja ficava subordinada ao Estado. Mas a posição privilegiada e protegida de tais incrédulos, nas univer-sidades famosas da Alemanha, lhes atraia estudantes de outras terras que para lá foram e se saturaram com essas teorias meio-ateístas, em nada cristãs, e voltaram como «Doutores em Filosofia» para semear as mesmas teorias na Escócia, na Inglaterra e na América do Norte. Es. creveram as mesmas teorias — meras adivinhações de subjetivismo in-crédulo — e tais hipóteses sem base ficaram classificadas como con-clusões científicas do «consenso dos eruditos», precisamente como uma pequena casta de privilegiados hoje em dia quer chamar-se «os inte-lectuais» e gosar os frutos do monopólio do titulo. Ecos da increduli-dade desses funcionários teológicos do Reich se escreviam no mundo anglo-saxão à direita e à esquerda. H. P . Smith declarou: «Os indiví-duos, Abraão, Isaac e Jacó são epônimos, meras personificações de tri-bos pré-históricas ou de grupos etimológicos, e nada mais são.» (17) Não há um único fato que justifique essa incredulidade. Quais aranhas. teceram de seu subjetivismo tôda essa teia de dúvida e hostilidade con-tra a Palavra de Deus. O povo crente não lhes deu nenhum valor mas os filhos de crentes tiveram de enfrentar essas dúvidas insolentes, ar-voradas em roupagem de «erudição», «ciência», «criticismo alto» e quejandas espalhafatosas frases em que se glorificaram a si mesmos. Nada disso tinha qualidade alguma de «ciência», de «criticismo» sério ou de história confirmada. Era subjetivismo incrédulo, criando a dú-vida e o ateísmo à imagem de si mesmos e até espalhando seu produto como teologia, «o consenso dos eruditos» de Igrejas Nacionais ligadas com Estados coletivistas.

Pois bem. A providência divina não tardará em estimular na men-te humana a reação necessária. Ao mesmo tempo que grassava êsse subjetivismo que dissolvia em mitos primeiramente o Velho Testamen-to e depois os Evangelhos, surgiu uma grande ciência que gradual-mente confirmou por testemunhas contemporâneas a literatura e a his-tória bíblica . Essa ciência chama-se a arqueologia. Restaurou as ci-dades e civilizações e línguas de que o Velho Testamento fala, e o grego koiné (comum) do Novo Testamento e da Septuaginta em papiros se-

(15) "Prolegomena to the History of Israel", p. 325. (16) "Gesehichte Israels", Vol. II. ps. 23-28. (17) "Old ressumem History", p. 49.

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pultados nas areias do Egito. Monumentos de granito, bronze e table-tes de cêra nos dão o testemunho dos historiadores ou das autoridades contemporâneas de Abraão, de Moisés e dos profetas e nos mostram a rica civilização e vida que a Bíblia e os monumentos literários em har-monia afirmam ter existido nesses tempos remotos. Item por item as insolentes hipóteses do subjetivismo ruiram por terra. Ur dos Caldeus se descobre agora. Era uma cidade culta, centro oficial de bibliotecas. Acha-se uma casa com o nome de Abraão como dono, não nosso Abraão, pois o nome do pai não é Tera. Israel é nome individual comum. Não se vê nenhuma tribo com o nome de Abraão, invencionice de ousados soberbos. As circunstâncias bíblicas se verificam e se vêem nas pró-prias cidades reabilitadas. As batalhas das guerras e os nomes dos reis de Israel se acham nos monumentos dos reis pagãos mencionados na história do Velho Testamento. Antigas civilizações e esculturas e arte enchem nossos museus. O mundo de Abraão, Moisés e Davi nos saúda, nos visita, nos fala dos dados históricos de nossa Bíblia. Mas a erudição dos tais «intelectuais» céticos se estriba em sua posição privilegiada e proclama a «solidariedade da cultura» contra a Palavra da verdade. Contudo, informemos o povo. Não vencerão. Os fatos são demonstra-dos. Abraão é tão histórico como Jesus, e Moisés como Mateus — e João . A veracidade de Jesus é inabalável. «Abraão viu o meu dia e exultou.»

Uma geração de teólogos céticos chamou para seu perímetro pri-vilegiado uns teólogos de dúvida. Querem descrer um pouco e crer em parte, e andar com conservadores e radicais, um diberah, meio-crente, meio incrédulo, com nome de ambos. Podem ser comparados a cenas que vi no Chile nas ruínas dos terremotos. Olhei da janela de um ho-tel e vi um quarto suspenso no ar. A parede exterior ruiu mas vimos o quarto, a mobília, o lavatório, o banheiro, o teto, uma parte da es-cada e o soalho, tudo suspenso no ar, sem coisa alguma por baixo, por ora seguro na sua posição pela união com uma parede vizinha que não foi abalada, mas que fatalmente cairia a seu tempo. Assim ficam nas igrejas e até nas cátedras de seus educandários homens sem funda-mento algum de fé, mas que por considerações de sentimento ou con-veniência ainda se dizem crentes e vão minando cada vez mais sua pró-pria crença e a crença de outros. Já não crêem em Abraão em sentido algum, a despeito de todos os fatos abundantes da arqueologia. Apenas crêem em Cristo como um pacifista, um Ghandi antigo, um meigo Na-zareno que possa contribuir com uma ou duas frases para uma nova ideologia sociológica e econômica. E' a suma estultícia e audácia que essa apostasia se chame cristã. E' cristão sem Cristo. Ele se perdeu na companhia de Abraão. Nossa fé não é reduzida a êsse mísero e in-competente subjetivismo. Os monumentos confirmam nossa Bíblia. Abraão, Isaque e Jacó são pessoas tão históricas como Napoleão, Wash-

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ington ou D. Pedro II. «Abraão viu meu dia e exultou.» Jesus é Deus, revelado em vida redentora na Encarnação, o Deus de Abraão. Isaque e Jacó, sêres tão reais e históricos como são o escritor e o leitor destas linhas. O cristianismo não é mito, não pede compaixão ou con-descendência de uma casta de «intelectuais». Seus autores são os su-premos historiadores dos séculos.

Provai a Jesus pelo critério que êle mesmo propôs. «Em verdade, em verdade, te digo que falamos o que sabemos e testificamos o que temos visto e não recebeis o nosso testemunho. Se vos tenho falado das coisas terrenas e não me crêdes, como crereis se vos falar das celes-tiais?» Jesus nos fala o que sabe, das coisas terrenas, a vida de Abraão, de Isaque, de Jacó, de Israel. Se é enganado, ludibriado, enganador, mes-mo que inocentemente, tomando por história veraz o que não passa de fábula, como creremos quando êle fala das coisas celestiais? Ele nos convida a não crer, e, nem fingir crer, se não é verdade o que ele diz de Abraão. Se não é testemunha fiel em falar da terra, nem escutaremos quando fala do céu, pois ali também vive Lázaro em companhia de Abraão. O «seio de Abraão» na outra vida é fábula também, se Abraão nunca existiu. A historicidade de Jesus e a de Abraão caem ou se fir-mam, juntas e inseparáveis, como igualmente o Velho Testamento e o Novo.

54. «Minha glória é nula.» Vêde um estudo sôbre a «glória da parte dos homens», e sôbre a independência de Jesus, nas notas sôbre 5:41, 44.

55. «Conhecer» é muito mais do que saber. Não é dádiva de ne-nhum dogma, credo, confissionário ou sacramento. A salvação consiste em travar relações pessoais com Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. A fé salvadora é CONHECER, chegar a conhecer, e a vida eterna é conti-nuar a conhecer eternamente. Vêde a magna definição de Jesus, em 17:3. E' no terreno de experiência dessas relações pessoais com Deus em Jesus Cristo no Espírito que o homem pode encontrar as supremas realidades do universo, nesta vida e eternamente. E notai como de novo Jesus igua-lou a atitude para com Deus, e para com sua Palavra.

56. Abraão... ver o meu dia». O povo é medonho para tirar lin-guagem da bôca dos outros, torcê-la, e afirmar que é «exatamente o que êle disse». E não há meio de convencê-lo que citou erradamente. E' falta comum nos crentes. O povo ouviu Jesus dizer: «Destruí esse san-tuário» e afirmou que êle dissera «destruirei». Ouviu-o dizer que o crente «nunca verá a morte» e, o citava: «nunca provará a morte», cri-ando uma impressão bem diferente do sentido original. Agora Jesus diz: «Abraão viu meu dia.» Tiram de sua bôca as palavras e as reorganizam ao seu jeito e vêm afirmar que o homem Jesus declarou que tinha visto Abraão. Não há coisa mais difícil no mundo do que citar exatamente a linguagem alheia. Quando alguém toma ares de infalibilidade repetindo

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palavras alheias, já se sabe que pretende fazer alguma propaganda no-civa e tendenciosa.

Que quis dizer Jesus nessa afirmação de que Abraão viu o seu dia? Será que Abraão teve a presciência da encarnação e dos eventos narra-dos em nossos Evangelhos?! Não acho provável. E' mais provável e mais sublime o fato de que o dia de Jesus é eterno, superior às considerações do tempo. Antes de Abraão, Jesus é. Pois êle é o contemporâneo dos séculos, «o mesmo ontem, hoje e para sempre», o companheiro do pas-sado, do presente e do futuro. Abraão viu o dia do Cristo pré-encarnado, o eterno Verbo. Este visitou a Abraão e fêz com êle a Aliança da Graça e Abraão viu sua divina pessoa na manifestação antropomórfica, ouviu sua voz, recebeu sua promessa e se alegrou em pensar no cumprimento da mesma que já vai chegando ao seu auge. Naturalmente, é correto di-zer que a visão messiânica estava de algum modo diante da visão patriar-cal, mas o que acabo de expor inclui isso e é idéia muito mais vasta, e penso que era a idéia de Jesus ao proferir palavras tão maravilhosas.

57. «Cinqüenta anos». «À essa idade os levitas ficavam aposenta-dos do serviço (Núm. 4:3) e assim queriam dizer a Jesus que ainda não era velho.» (18) Mas Irineu argumentava baseado nesta passagem que Jesus tinha quase cinqüenta anos de idade .

57. «Abraão». «E' fato significante que há três, e ~ente três dos velhos santos, Abraão, Moisés e Isaías, mencionados pelo Senhor ou pelo Evangelista em conexão com o Messias. Esses são suficientes para representar amplamente os três períodos sucessivos da disciplina do povo — testemunhas dos estágios patriarcal, teocrático e monárquico da vida de Israel.» (18)

58. «Eu sou.» Agostinho compara a consciência de Jesus Cristo de que é eterno, usando o verbo presente, eu sou, e não dizendo da sua preexistência, eu era, com sua promessa aos discípulos na Grande Co-missão: Eis que eu estou convosco todos os dias até à consumação dos séculos. Nos dias de sua carne êle disse: «Antes de Abraão eu sou.» E, estando ainda na terra, prometeu: «estou convosco» através de toda a história humana do porvir. Tempo passado e tempo futuro, para Jesus, é um eterno agora.

«Eu sou.» «A frase denota existência sem aspecto de tempo. Nessa conexão, dizer eu era teria expressado mera prioridade. Na frase como está, porém, há vivo contraste entre aquilo que é criado e aquele que não foi criado, entre o temporal e o eterno.» (20)

O «Expositor's Greek Testament» vê aqui «continuidade da consciên-cia própria de que é o Logos.» (21) E James Denney declara: «Contra pa-

(18) "The International Criticai Commentary", Vol. II, sôbre este Ev., p. 321, por 3'. H. Bernard.

(Is) "The Gospel according to St. John", Vol. I, p. exxxvi, por B. F. Westcott. (20) Idem, p. 140. (21) Vol. I, p. 841, por Marcus Dods.

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lavras tão claras não vale a pena nenhuma idéia fixa de uma consciência própria meramente humana, afirmada a priori como necessária.» (22)

«Eu sou.» «E' claro que João quer representar Jesus como assim afir-mando sua existência, na categoria de deidade, acima do tempo, distinto da existência temporal humana.» (23)

59. «Tiraram» ou «tomaram». E' o verbo do Batista acêrca de Jesus como tirando o pecado do mundo, tirando-o do mundo condenável e tomando-o sôbre si, em nosso lugar, disso resultando a nossa justificação.

«Pedras.» «O templo não estava terminado e havia pedras ao re-dor.» (24)

«Saiu do templo.» Escondendo-se sobrenaturalmente? Nada há que satisfaça nossa curiosidade. Um orador sai do púlpito e da plataforma, inúmeras vêzes na vida, e passa no meio do povo, sem ser reconhecido, Até ouve os comentários a seu respeito, às vêzes, inesperadamente. E' possível que Jesus cultivava e sabia bem a arte de desaparecer da turba. E' prova de que sua forma e face não eram excepcionais.

«O Templo». Vêde as notas sôbre 5:14 a respeito do «Templo contra Jesus».

(22) "Studies in Theology", p. 62. (23) "The International Criticai Commentary", in loco, por J. H. Bernard. (24) Idem, in loco.

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304 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

Jesus Demonstra que é Luz mas Confirma a Cegueira dos Obstinados

(Capítulo IX, versículos 1 a 41; capítulo X, versículos 1 a 21)

1-2 E, quando ia passando, viu um homem cego de nascença. I Ora seus dis- cípulos perguntaram-lhe, com estas palavras : "Rabi, quem pecou, este ou os

3 seus pais, para que nascesse cego?" 1 Jesus respondeu: -Nem este pecou nem os seus pais; pelo contrário, o sucesso se deu

Mais uma Prova da Para que as obras de Deus fôssem manifestadas nele.

4 Deidade de Jesus I Nosso dever é praticar continuamente as obras daquele que me enviou, enquanto é dia: a noite vem

5 quando ninguém pode mais trabalhar. 1 Enquanto eu estiver no mundo,

6 sou a luz do mundo." 1 Dito isto, cuspiu no chão e do cuspo fêz lôdo e o

7 colocou sobre os olhos I e lhe disse: "Vai ao tanque de Siloé, que (etimolô- gicamente) quer dizer: Embaixador perpétuo, e lava-te (os olhos)." Por-

8 tanto, ele foi e os lavou e veio vendo. I Diziam, pois, seus vizinhos e os que outrora notavam que ele era mendigo: "Não é este o homem que fica-

o va sentado e pedia esmola ?" I Uns diziam : "É." Outros: "Não é, não!

10 Mas é parecido com ele!" Ele declarava: "Sou eu mesmo." I Perguntavam-

1.1 lhe, pois: "Ora como te foram abertos os olhos?" 1 Respondeu ele: -O ho- mem que se chama Jesus fêz lôdo e me ungiu os olhos e disse-me : Vai ao tanque de Siloé e lava-te (os olhos). Pois eu fui e, no ato de me lavar,

12 levantei os olhos vendo!" 1 E disseram-lhe: "Onde se acha aquele ho-

13 mem? Ele diz : "Não sei." Conduzem-no perante os fariseus — o cego

14 de outrora. 1 Era sábado, porém, o dia em que Jesus fêz lôdo e lhe abriu

15 os olhos. 1 Portanto, de novo os fariseus também o interrogavam como foi que ele alcançou a vista. E ele lhes declarou. "Ele me colocou lôdo nos

16 olhos e os lavei e estou gozando a vista." I AI- Diálogo entre um guns dos fariseus, pois, diziam: "O tal homem não Crente Novo e Sa- é de Deus porque não guarda o sábado." Outros.

batistas Velhos porém, tornavam : "Como pode um homem, sendo pecador, praticar continuamente semelhantes sinais

17 miraculosos?" E houve uma divergência entre eles. I Dizem, pois, ao cego outra vez: "Que é que tu dizes acerca dele, visto que ele te abriu os olhos?"

18 E ele afirmou: "E' profeta!" 1 Ora os judeus não acreditavam a seu res- peito que era cego e ficou vendo, até que chamaram os pais daquele que le-

19 vantou os olhos e viu; I e lhes fizeram esta pergunta : -Este homem é o vosso filho que, segundo vós dizeis, nasceu cego? Como é, pois, que agora

20 vê?'' 1 Ora a resposta que os pais dele lhes deram Escolher o Sábado foi esta: "Nós sabemos que este é o nosso filho e

21 ou Jesus que nasceu cego: 1 mas como é que ele está vendo agora não sabemos, e quem foi que lhe abriu os

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 305

olhos nós não sabemos. Perguntai a ele, pois ele já está na sua maioridade;

22 ele mesmo falará a respeito de si próprio." 1 Essas coisas disseram os pais dele porque temiam os judeus, pois estes já tinham combinado que, se al-

23 guém o confessasse como o Cristo, seria excomungado. 1 Por este motivo os pais dele disseram : "Ele já está na sua maioridade: fazei a pergunta a

24 ele." 1 Chamaram, pois, pela segunda vez o homem que era cego e disse- ram-lhe: "Dá glória a Deus: nós sabemos que esse homem é pecador."

25 I Contudo, ele tornou: "Se é pecador, não sei. Uma coisa sei, que sendo

26 antes cego, agora vejo." 1 Tornaram-lhe, portanto: "Que é que ele te fez?

27 Como te abriu os olhos?" 1 Ele respondeu-lhes: "Eu já vos disse e não es- cutastes. Por flue razão é que desejais estar ouvindo (isso) de novo? Sere

28 que vós outros também quereis tornar-vos discípulos dele?!" 1 E disseram- lhe descomposturas, acrescentando : "Tu és discípulo daquele homem : mas nós

29 somos discípulos de Moisés. 1 Nós sabemos que Deus deu a Moisés sua Pala-

30 vra, mas não sabemos donde esse é." 1 O homem disse em resposta: "Pois nisso há uma coisa maravilhosa, que vós não saibais donde ele é, e, todavia,

31 ele me abriu os olhos! 1 Sabemos que Deus não ouve pecadores, mas se alguém é temente a Deus e pratica ,continuamente sua vontade, a este ele ouve.

32 1 Nunca foi ouvido que alguém abriu os olhos de

33 A Excomunhão do um homem que havia nascido cego. 1 Se ele não

34 Crente é de Deus, não pode fazer nada." 1 Disseram-lhe em réplica : "Tu nasceste totalmente em pecados, e,

35 todavia, tu presumes ensinar-nos a nós?!" E o lançaram fora. 1 Jesus ou- viu que o jogaram fora, buscou-o, achou-o e lhe disse: "Tu és crente no Fi-

36 lho do Homem?" 1 Ele respondeu nestas palavras: "E quem é ele, senhor,

37 para que eu me torne crente nele?" 1 Jesus lhe tornou: "Tanto o tens visto

38 e vês, como é ele quem fala contigo." 1 E ele disse: "Creio, Senhor." E o

39 adorou. 1 Então Jesus declarou: -Eu vim a este

Os Moralmente mundo para juízo, a fim de que vejam os que não 40 Cegos vêem se e os que vêe se tornem cegos." 1 Os que

estavam com ele dos fariseus ouviram isso e lhe

41 disseram: "Nós não somos cegos também, somos?" I E Jesus lhes tornou:

"Se fôsseis cegos, não teríeis culpa; mas agora dizeis: Nós vemos. Vossa cal- X:1 pa perdura. 1 Mui solenemente vos afirmo: Quem não costuma entrar pela

porta no aprisco das ovelhas, mas está subindo continuamente por outra par-

2 te, esse é ladrão e bandido. I Mas quem costuma entrar pela porta é um

3 pastor das ovelhas. 1 A este o porteiro abre e as ovelhas ouvem sua voz, e ele chama por nome suas próprias ovelhas e as

4 Cegos e conduz para fora. I Quando tiver obrigado todas Bandidos as suas ovelhas a sair, caminha em frente delas e as

5 ovelhas o seguem porque lhe conhecem a voz. 1 A um estranho, porém, nunca, nunca seguirão, pelo contrário, fugirão dele, por-

6 que não conhecem a voz dos estranhos." Essa figura Jesus lhes falou, mas aqueles homens não compreenderam quais eram as idéias que ele lhes

C. E. J. — 20

Page 304: Evangelho de Joao.

306 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

7 pregava. I Tornou, pois, Jesus a dizer-lhes : "Mui solenemente vos afirmo: 3 Eu sou a porta das ovelhas. I Todos quantos vieram antes de mim são la-

drões e bandidos, mas as ovelhas não os ouviram.

9 Jesus a Porta, o 1 Eu sou a porta: por mim, se alguém entrar, éle Pasto, e o Pastor será salvo e terá sua entrada e saída e achará pasto.

10 das Ovelhas I O ladrão não vem senão para furtar, matar e des- troçar de uma vez: eu vim para que tenham vida

11 e para que a gozem perene e abundantemente. 1 Sou eu o Pastor, o bom

12 Pastor: o bom Pastor pelas ovelhas oferece a sua vida. 1 Mas o mercená- rio, não sendo pastor, cujas ovelhas não lhe são próprias, observa o lôbo se aproximando, abandona as ovelhas e foge — e o lôbo arrebata as ovelhas e

13 as espalha — I porque é um mercenário e não liga importância às ovelhas.

14 1 Sou eu o Pastor, o bom Pastor, conheço as minhas e as minhas me conhecem

15 I precisamente como o Pai me conhece e eu conheço o Pai e pelas ovelhas

16 ofereço a minha vida. 1 Outras ovelhas também eu possuo, as quais não são deste aprisco. Eu devo trazer de vez aquelas ovelhas também, e elas ouvirão

17 minha voz e serão feitas um rebanho, com um Pastor. 1 Por este motivo o

Pai me ama, porque ofereço minha vida, para que eu

13 Cisma por Causa de novo a receba de uma vez. 1 Ninguém tirou-a de Jesus de mim, mas eu de mim mesmo a ofereço. Tenl,

autoridade para a oferecer de vez, e autoridade ta:1-'-

19 bém para recebê-la outra vez: êste mandamento recebi do meu Pai. 1 Por

20 causa dessas palavras, deu-se entre os judeus uma nova divergência. Pois muitos deles diziam: "Sie tem demônio e fala como louco. Por que o escu-

21 tais?" 1 Outros diziam: "Essas palavras não são de um endemoninhado. Será: que um demônio é capaz de abrir olhos aos cegos?! Não é possível !"

IX . 1. «E», João está acumulando testemunhos. E' mais um caso em que a Luz do mundo brilhou num evento no qual sua benéfica deidade raiou na vida do Verbo encarnado. Nesse sentido o Evangelho inteiro é um «E ... E ... E... » Sendo 9:1 a 10:21 um só parágrafo, o termo é declarado (10:22). Era a Festa de Dedicação, no meiado de dezembro.

«Enquanto ia passando.» E' precisamente o contrário do que fize-ram o sacerdote e o levita, na parábola do Bom Samaritano. Jesus ia AO LADO do necessitado. Contudo, o próprio diálogo que segue nos proíbe supor que os milagres se dessem por acaso. Um dos fatôres na-quele nascimento foi o propósito glorioso de Deus a ser manifestado na-quele dia.

«Se os impugnadores dos milagres pudessem produzir um só docu-mento judaico em que fosse descrito com igual minúcia e verossimilhan-ça qualquer evento fictício, que sabemos não ter acontecido, então seria mais fácil concordar com êles.» (1)

2. «quem pecou?» Como os apóstolos necessitavam de aprender de

(1) "Messages of the in loco, por J. S. Riggs.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 307

Jesus! Olhar ao sofrimento humano e imediatamente começar a julgar, criticar, aceitando hipóteses malévolas, atribuir ao que sofre mil crimes imaginários como explicação do mal que padece — eis o retrato de um co-ração mal formado. O sofrimento não é sinal de pecado da parte de quem sofre. No comum dos casos, êsse é a vítima de pecados alheios, de sua solidariedade com a raça humana, com sua família, com sua nação, com sua comunidade, com sua grei. Deus nos livre de semelhante atitude des-confiada é desairosa. Os judeus opinavam que uma criança poda necar antes de nascer.

3. «Mas o sucesso se deu». «A doutrina de predestinação é eviden-te em tôdas as partes do Quarto Evangelho, cada evento sendo contempla-do sub specie aeternitatis, como predeterminado na mente de Deus .» (2 )

«As obras de Deus». Não apenas o milagre que agora se ia operar. mas toda a vida dêsse cego era um plano divino. E' cego quem não ve que êsse era um vaso preparado. Sua capacidade de tornar-se campeão de Jesus de modo tão eficaz, o superior intelectual no vaivém da dis-cussão teológica com os homens mais astutos do Sinédrio, não era um aci-dente ou o surto de um gênio até aí ignorado. Era Deus na preparação providencial de uma das eficazes testemunhas da deidade de seu Filho. E ninguém pode imaginar quantas «obras de Deus» se operaram aquê-le dia per êsse homem, ou quantas outras ainda se deram por sua causa em tempos posteriores. As obras que Deus pretende operar numa perso-nalidade redimida são pontos salientes no plano divino para sua vida. Que «obras» é uma palavra que não se limita a descrever milagres é evi-dente pelo seu uso neste Evangelho (3:19, 20; 6:28, 29; 7:7; 8:39, 41; 10:32; 14:10-12) e no Novo Testamento em geral (Mat. 5:16; Mar. 13: 31; 14:6; Atos 9:36; 26:20; Rom. 14:20; Efés. 2:10). Assim como pro-fecia não é ~ente predição, também obras não são cinicamente milagres, mesmo quando se trata de Jesus. Livrêmo-nos dessa idéia.

4. «Nosso dever é praticar continuamente as obras daquele que me enviou.» Os melhores textos gregos têm «nos» e «me», enquanto textos inferiores uniformizam os pronomes, alguns dando «nos,» ... «nos», ou-tros dando «me» ... «me». Até Bernard insiste que o texto é: «Convém que eu faça as obras daquele que me enviou.» Outros querem o texto: «Convém que nós... nos enviou». Mas o Dr. A. T. Robertson diz: «Este é o texto indubitàvelmente correto (nos... me), tendo o apoio das classes neutra e ocidental do texto grego.» (3) E' NOSSO dever agir de acôrdo com o propósito de Deus na missão de Jesus. E Jesus afirma isso, na sua oração pontifical (17:18), e transmite formalmente ao seu povo sua mis-são evangelizadora (20:21) . Tudo isto exalta sublimemente o mais hu-milde trabalho e carreira crente, equiparando nossa atividade e missão

(2) "The International Criticai Commentary", Vol. II, p. 325, por J. H. Bernard. (3) Word Pictures in the Neta Testament", Vol. V, p. 161.

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308 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

com a redenção efetuada de vez por Jesus e oferecida agora aos homens, manifestando seu espírito em obras benfazejas, como Jesus ia fazenda o bem.

«E' necessário que nós continuamente façamos as obras daquele que me enviou, enquanto é dia.» «Nós» é a palavra enfática. Jesus desperta nos discípulos a consciência, o sentimento da responsabilidade. Ele é a Luz do Mundo, em certo sentido, somente enquanto estiver visivelmente no mundo, v. 5. Eles já foram avisados no Sermão do Monte: «Vós sois a luz do mundo.» Brilharão aqui nesta vida somente um breve dia até a noite da morte terminar suas poucas horas de trabalho. Suponho que quase todos os apóstolos eram de maior idade que Jesus. O dia deles já era avançado também. E ainda não se haviam despertado para a sua res-ponsabilidade. Não reagiam contra o sofrimento que lhes estava diante dos olhos. Eles tinham operado milagres, mas em missão especial nas via-gens evangelísticas, e a pedido, quando tinham fé suficiente. Pois bem. Eis um cego de nascença. Mas em lugar de pensar em curá-lo, estão pen-sando numa questão puramente especulativa, querendo meter-se naquU., que não é da conta deles, procurando saber os segredos da vida alheia, am-bicionando trazer à luz da publicidade os esqueletos escondidos de outra geração de uma família. Jesus, com êsse pronome, como primeira pala-vra, censura-lhes a dureza de coração. Ele como que lhes diz: «Vós sois sócios comigo nas obras que eu faço. O Pai me enviou a mim, especial-mente a mim, é verdade. Mas é preciso que nós nos ocupemos de fazer o bem ao povo, de continuo. Adquiri, pois, êsse hábito. Eu vou para o céu logo. Ficareis em meu lugar, como luz do mundo. Convém que nós — vós da mesma maneira como eu — estejamos ocupados na obra prática, não em especulação seca e fútil. Dirigi vossa atenção para assuntos mais prá-ticos, para as necessidades humanas que podeis suprir tão bem como eu. se sacardes dos recursos divinos ao nosso dispor pela fé.»

«A noite vem, quando ninguém pode continuar sua obra.» Não é que Jesus pensasse da eternidade como sendo uma noite. O mesmo João viu a cidade celeste e nos informou que «não há noite ali.» E' somente com referência a esta vida que êsse têrmo pode ser figuradamente empregado acerca. do Salvador e dos salvos. «A noite vem», no sentido de pôr têr-mo à atividade deste breve dia da vida terrestre. Há muito que fazer. Ativemo-nos. Jesus era moço ao dizer essas palavras. «A noite vem» na mocidade para muitos. Façamos a obra dêle, enquanto a vida durar.

«A noite vem.» Na «Vida de Johnson», por Boswell, somos informa-dos de que aquele famoso inglês colocou debaixo do vidro de seu relógio as palavras gregas deste texto: «A noite vem.» Sir Walter Scott colocou em seu relógio, sempre diante de seus olhos, as palavras do mesmo texto em inglês. Convém, como nosso Mestre, tê-las em nossos corações e remir o tempo porque os dias são maus -- e poucos.

Vêde as notas sôbre o trabalho como elemento do caráter divino,

Page 307: Evangelho de Joao.

TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 309

como a essência da doutrina da Providência, e como o espírito de devoção de Jesus e do crente fiel, na discussão de 5:17. Sôbre «obras» no sentido de empreendimentos, notai a discussão de 5:36, e, ainda sôbre «obras», o comentário a respeito de 6:27. Continuar sua obra, completar sua obra, é o supremo anelo de todo o obreiro sério, com profundo sentimento de chamada divina. Linda e sublime é a oração de Moisés: «Seja sôbre nós a graça do Senhor nosso Deus; estabelece tu sôbre nós as obras das nossas mãos, sim a obra das nossas mãos, estabelece-a» (Sal. 90:17) . Estes dois versículos são os que mais se gravaram na minha mente, consciên-cia e vida, desde há longos anos.

5. «Enquanto eu estiver no mundo, a Luz do mundo sou.» Su-blime revelação, ou suprema loucura. Vêde as notas a respeito, no co-mentário sôbre 8:20, e 8:12. E sôbre «mundo», notai o estudo de 3:16; 4:42. Jesus como que chama agora a si mesmo para a tarefa do mo-mento, lembrando-se de que as oportunidades da encarnação consti-tuem outras tantas obrigações.

6. «Acabou de dizer isso e cuspiu.» Antes da noite vir, agiu. Agiu agora. Decisão de caráter é um dos elementos de fôrça espiritual que mais valem na vida. Teria sido tão fácil passar adiante, especu-lando, especulando sempre: «Será que êsse pecou ou pecaram seus pais `h> Mas a especulação não cura. Jesus agiu. Curou.

Imediatamente queremos nós, por nossa vez, entrar na especula-ção. Por que Jesus não o curou de vez, com uma palavra, ou mesmo sem palavra nenhuma? Não é difícil ver as razões. Se de repente o homem enxergasse a luz, embora pelo desconhecido poder exercido por Jesus, êle perderia sua oportunidade de conhecer o Salvador e lhe ser grato e nêle confiar e ser salvo. Perde-se menos tempo fazendo a obra de modo que seja compreensível e sirva para dar glória a Deus, que era o fim da existência tôda, inclusive a cegueira, dêsse homem. Seria uma prova real de sua fé. Não é agradável sentir um outro a pôr lama em nosso rosto. E para que essa viagem fútil? O homem teria de com-preender o espírito de Jesus para alcançar a bênção. Sua fé, assim pro-vocada, seria capaz de enfrentar as sucessivas provas ainda mais du-ras que o tornariam um discípulo e uma testemunha de Jesus com tan-ta ousadia e perseverança.

«Cuspiu no chão.» «Não se pediu a Jesus que curasse esse ho-mem. Em muitos lugares se louvam os efeitos curativos da saliva. Os judeus consideravam a saliva eficaz para moléstias dos olhos, mas proi-biam seu emprêgo no sábado. Não sabemos porque Jesus se acomodou à crença corrente, a não ser que tivesse o propósito de encorajar o cego a crer.» (4)

7. «Vai lavar.» O verbo traduzido lavar significa lavar um mem-bro, uma parte do corpo, como se vê em Mat. 6:17; 15:2; Mar. 7:3;

(4) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 162.

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310 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

João 13:5, 6, 8, 10, 12, 14; I Tim. 5:10. Em João 13:10 se acha o outro verbo em conexão com o banho total. Vêde a nota sôbre êsse versículo.

«No tanque de Siloé». «Um tanque de dezesseis metros de compri-mento, uns cinco metros de largura e seis metros de profundidade, com água mais ou menos de um metro de profundidade.» (5)

7. «Vai ao tanque de Siloé lavar-te.» Jesus exigiu bastante incô-modo, viagem considerável, entrada às águas em um lugar público, com a esquisitice de ter lama sôbre os olhos, descer e subir ladeiras, pois Si-loé está no vale do Tiropéion, logo ao sul do templo, na cidade de Jeru-salém. Para um cego que só o conhecia de nome e não lhe pediu auxílio, era exigir muita fé, sem falar em fé. E' o motivo, provavelmente, das exi-gências de Jesus. Incidentalmente, mostra a liberdade do uso dos tanques de Jerusalém pelo público, como se vê em 5:4.

«Que etimolàgicamente quer dizer: Enviado». E' um tanto extra-nhável que João achasse proveitoso explicar a significação do nome do tanque. Por que? Será para indicar que o tanque não era fonte natural mas que suas águas vinham, através de um túnel, de uma fonte supe-rior? Talvez isso seja o motivo da escolha original do vocábulo come nome do local. Mas isso não interessaria a João narrar. Será que o homem era o enviado — o escolhido para manifestar a glória de Deus? Marcus Dods acha que o motivo é ser Jesus o «Enviado de Deus» e João assim, de passagem, estabeleceria um paralelo entre o tanque En-viado ser instrumentalidade em dar luz a olhos mortos, e Jesus, o En-viado de Deus, dar-se como a Luz do mundo e do indivíduo. Traduzo «embaixador perpétuo», como em 1:6, para mostrar o sentido do tEm-po perfeito. A missão de Jesus é perpétua, e perene como o manar de uma fonte.

«Foi... lavou, veio vendo.» João é mestre da arte de escrever. David Smith vê no incidente uma parábola dramatizada, segundo o modo dos antigos profetas. «Era uma parábola acêrca da cegueira que viera sôbre Israel, e uma sátira dos seus doutores, guias cegos de cegos. Professavam dar luz aos que se sentavam nas trevas, mas ape-nas puzeram um véu sôbre o coração do povo e selaram-lhes os olhes na cegueira moral.»

8. «Diziam os vizinhos e os que outrora estavam acostumados a notar que ele era mendigo.» Os que consideram as esmolas como fonte constante de mérito estudam os rostos dos mendigos, gravam-nos (para não dar duas vezes sua mísera dádiva com que compram a graça divi-na) e são dependentes deles, de certa maneira, para o êxito da sua es-perança de salvação. Aqueles reconheceram logo o notório mendigo, de lugar tão favorecido e público. Mas este vê. Segue o diálogo animado sôbre a sua própria identidade, ouve o que dizem e resolve a dúvida pela simples declaração: «Sou eu mesmo.»

(5) '"The Teacher", de fev. 1943

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 311

9. «Sou eu.» Um intérprete colecionou todos os passos dêste Evangelho em que Jesus diz: «Sou eu», ou «Eu sou», ao todo umas vinte e cinco Escrituras, e quer crer que em tôdas elas o fato de êle usar a forma do verbo ser na primeira pessoa do singular do tempo presente, mais o pronome eu, significa que Jesus estava afirmando sua identidade com Jeová, o «Eu sou» que se revelou a Moisés por êsse nome. Isso é torcer a Escritura com inépcia. E saibamos que é tão fá-cil torcer a Escritura para ensinar a verdade como é para ensinar a mentira. E é repreensível torcer a Bíblia em prol da verdade, da mes-ma forma que é torcê-la a fim de ensinar mentiras. Muitas dessas pas-sagens apenas dizem o que êsse cego disse agora: «Sou eu.» Aqui o cego disse: «Sou eu», sem sentido transcendental. O referido intér-prete afirmou que «eu sou» era desconhecido, a não ser nos lábios de Jesus, neste Evangelho. Mas eis um caso que desfaz a teoria. Nunca façamos a Bíblia ensinar demais, nem encaixemos numa Escritura ver-dade ensinada em outra Escritura.

10. «Como... abertos?» No Oriente é comum uma praga de mo-léstias dos olhos. A pergunta é em si natural. A santidade do dia tam-bém gera suspeitas. E a presença de Jesus aponta para uma repetição de suas ofensas contra o sábado. Logo são dados como prováveis vá-rios motivos, nas muitas perguntas que voam de tôda parte ao recém-curado.

11. «O homem que se chama Jesus». Já êsse nome, o Josué dos que falavam a língua hebraica, nome tão comum em tôda parte entre os israelitas, se considerava peculiarmente a propriedade de Jesus. Nosso Jesus eclipsou logo os demais e, para seus contemporâneos em Israel, já era «O Jesus». E' o sagrado nome dêle, e nunca deve ser usa-do hoje em dia como nome de uma criança ou firma comercial ou pro-duto, se temos alguma reverência em nosso espírito.

«Ungiu-me os olhos.» Aqui Agostinho vê o poder miraculoso do batismo, e outros vêem o poder da crisma. Mas são confusos na ex-ploração obstinada e insensata de tão simples declaração histórica, para nela fundamentar a superstição de um sacramentalismo. O caso então significaria que a crisma viria antes do batismo, e isso não se dá. Por-tanto somos livres para deixar a Escritura ficar na sua simplicidade sem ver sacramentos numa religião onde tais superstições não existem e, portanto, nunca recebem menção alguma. Os caiadores ficaram em conflito aqui e, portanto, a Escritura é clara. Tôda a glória é de Jesus.

«E no ato de lavar levantei os olhos vendo.» Quão vívido!

12. «Onde está?» De novo Jesus mostra como evitar a ostenta-ção. Sumiu. Nada dos ares de taumaturgo o caracteriza.

13. «Aos fariseus». Vêde as notas sôbre 4:1. O povo estava

Page 310: Evangelho de Joao.

312 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

com os fariseus, mas dêles esperava a decisão do que evidentemente se-ria um caso de grave significação.

14. «Era Sábado o dia no qual Jesus fêz lôdo». Crime! ESC-an-dai° Heresia! Vêde as notas sôbre 5:9-18; 7:22, 23. Godet nos infor-ma que os rabis proibiam trinta categorias de trabalho no sábado.

15. e...como alcançou o gôzo da vista». «Estou no gôzo da vista.» E', de novo, deliberado o contraste entre os tempos aoristo e presente, no grego original. Todo o interêsse deles está no ato de lhe ter sido outorgado o milagre da vista, no sábado, bem entendido. E agora todo o entusiasmo do homem curado está no fato: «Estou vendo, sempre vendo. O milagre se prolonga ainda. Permanece a vista.» E' precisamente assim a salvação. Veio de vez, permanece eternamente. A frase «de novo» é importante neste versículo, pois mostra que «uns» e «outros» do v. 9 incluiam fariseus. E' palavra mais enfática na sen-tença.

16. «Não guarda o sábado.» O Dr. A. T. Robertson afirma que no sábado os fariseus proibiam que se tratasse de uma perna torcida ou se derramasse água por cima da mesma. Não era lícito ler à luz de uma lâmpada no sábado, nem escovar roupa. Certos atos eram per-missíveis, outros não... E o vinagre poderia ser usado em gargarejos, mas era pecado engulir uma parte. As purificações eram divididas em categorias diferentes de acôrdo com a origem da água — do tanque. da fonte, de água corrente, ou da água das represas. (6)

«Não guarda o sábado.» «Tais palavras não se acham na Bíblia grega noutro lugar além dêste.» (7)

«Houve um cisma entre êles.» E' a palavra, a mesma palavra tra-duzida por cisma em I Cor. 12:25 — «para que não houvesse cisma no corpo». Não era cisma que êsse homem tão corajosamente se aliasse a Jesus, mesmo a custo de separação e excomunhão da sinagoga? Era. Então o cisma nem sempre é pecado? Não. Cisma é divisão. E' o que a palavra significa. E a divisão é inevitável entre o Evangelho e a Lei, entre ensino verdadeiro e ensino falso, entre Israel segundo a carne e Israel segundo o Espírito, entre o reino de Deus e o mundo, entre as igrejas e o Anti-Cristo. Paulo orgulha-se de pertencer à seita do «Ca-minho» — «segundo o Caminho a que êles chamam seita, sirvo ao Deus de nossos pais>, Atos 24:14. Paulo era do cisma e da seita que se iden-tificara com o Caminho. O cisma é pecado quando a entidade que se divide por personalismo e partidarismo é realmente digna do nome de «corpo de Cristo». Quando não é, então a separação dos bons dos maus é um dever imprescindível. E' obediência à voz de Deus que cha-ma: «Saí do meio dela, povo meu.» A separação para Cristo é a essên-

(6) "The Pharisees and Jesus", ps. 45, 46. (7) "The International Criticai Commentary", in loco, por Bernard.

Page 311: Evangelho de Joao.

TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 313

cia da santidade cristã. Para os maus e herejes e advogados da men-tira, essa separação dos crentes é cisma. E' um cisma como êste — o crente ficou excomungado pelos fariseus e uniu-se a Jesus num novo corpo, novo rebanho, nova grei. Vêde 7:43 e 10:19.

«Como pode um homem que é pecador praticar semelhantes sinais miraculosos?» E' um pouco de teologia popular. Mas é inexata. Os mi-lagres não provam a origem de um ensino ou de um movimento. Os ma-gos do Egito fizeram milagres iguais aos de Moisés até certo ponto. Uni milagre pode proceder de qualquer fonte de poder sobrenatural, Deus ou o Diabo, anjos ou demônios, profetas ou líderes dotados por Satanás. Um milagre, pois, não prova origem divina de uma doutrina ou religião ou clero ou ministro. Por isso se manda PROVAR OS ESPÍRITOS. Outro êrro da teologia popular se vê, nos lábios desse mesmo mendigo, no v. 31.

17. «Profeta é.» Não diz que é «o Profeta», o outro Moisés; não tem artigo a palavra. E' urna fé bem elementar ainda. Vêde como cres-ce. «Se é pecador não sei.» Ele não tem ainda conhecimento de Jesus senão na ligeira experiência do lôdo. E' acusado de ser discípulo de Je-sus, e não lhe nega a lealdade do discípulo, v. 27. No v. 30 afirma que Jesus é proveniente de Deus. A sua fé desabrocha ràpidamente. A oposição ajuda, como os aviões sobem quando correm contra o vento. No v. 31, já o crente crescente não admite que Jesus seja pecador. Supõe que êle faz a vontade de Deus. Jesus o achou, excomungado, talvez tonto com a súbita desgraça, e perguntou-lhe: «Tu aí crês no Filho do Homem?» Vem logo a resposta da boa vontade! «Quem é, senhor, para que eu ve-nha a exercer fé nêle?» Jesus se identifica perante êsses olhos novos que o viram, e tão pouca coisa tinham visto senão a pessoa do Salvador. «Eu creio e vou crendo, Senhor.» A palavra significa mais que «senhor» agora, pois a fé chegou a tal zênite que o homem a quem são proibidos os privilégios do culto rende a Jesus o preito de sua adoração. Assim é um notável caso de fé. E como Jesus se regozijou nessa fé e sua co-rajosa confissão pública! À meretriz destemida que lhe lavou os pés com as lágrimas do seu arrependimento e fé, Jesus declarou: «A tua fé te salvou. Vai em paz.» À samaritana, de estirpe congênere, Jesus de-clarou direta e claramente que era o Messias. A êsse mendigo êle afir-ma ser o Filho do Homem profetizado por Daniel. Tomemos nota. A gló-ria do reino é que aos pobres se lhes anuncia o evangelho e Cristo se alegra na fé que manifestam. Cristo e um mendigo estão sós contra o mundo, mas nem um nem outro se sente isolado. Gozam da união vital do Salvador com o salvo. Sôbre o que é envolvido no fato de Jesus ser profeta, vêde as notas sôbre 4:19, 44.

18. «Não creram.» Não tinham vontade de crer. O querer é par-te de crer evangelicamente. (Vêde a discussão de 6:64) .

19. «Vós dizeis que nasceu cego.» Insolência cínica! Talvez

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quando obtiveram posição privilegiada para o filho no templo de onde pedisse esmolas, disseram isso. E agora os chefes insinuam que fizeram isso como exploração da boa fé das autoridades, mas que o filho nunca foi cego. Seria uma saída da dificuldade, negar a cegueira, como os céticos negam, em situação desesperada, que Jesus ou Lázaro estivessem realmente mortos.

20, 21. «Sabemos... não sabemos.» Há muito saber e muita vontade de não saber, no resto do incidente. Dez vêzes se emprega o verbo saber, no resto do capítulo. Todos bem sabem os fatos a respeito de Jesus e sua parte no incidente, mas a má, vontade lhes fecha os olhos

fé e os leva a negar fatos tão evidentes. 22. «Excomungado». «A palavra se acha na Bíblia grega somente

aqui e em 12:42; 16:2. Plena excomunhão envolvia ser cortado da in-teira 'congregação de Israel' (compare Mat. 18:17) ; mas é possível que a pena menor de exclusão da sinagoga pelo prazo de um mês (o período de costume) é que é indicado aqui.» (8) Marcus Dods acrescenta que houve duas exortações públicas, com intervalos de um mês. A excomu-nhão final consistia na exigência de que o excomungado fôsse cortai) da vida social do povo e tratado como um leproso. (9) Não percais de vista a tensão das relações entre Jesus e as autoridades sacerdotais. Não há evidência de que Jesus ou os apóstolos foram privados de seus privilé-gios, antes êstes os usaram em evangelizar por duas outras décadas de-pois da morte de Jesus. Não. "Eles não cogitavam de ação contra Jesus ou os Doze. A medida visava os novos e pequenos. A única pessoa sôbre quem caiu a espada de Dâmocles foi êsse ex-mendigo e não há evidência de que êle tivesse sofrido grande coisa ou ficasse atemori-zado. O plano, e a propaganda que inclui o plano, contemplava o que hoje em dia se chama uma «guerra de nervos», amedrontar os me-drosos.

O filho de um pastor batista brasileiro, que fôra padre eminente na Igreja Católica Romana, é aluno numa escola pública. A professora estava explicando a palavra excomungar aos alunos e que coisa terrí-vel era aos olhos dela. Esse pequeno aluno, quando veio seu tempo, de-clarou: «Não prejudica em coisa alguma. Meu pai foi excomungado e é uma bênção.» Assim provou ser a excomunhão ao mendigo curado e salvo por Jesus. A excomunhão com Cristo como Salvador é bênção. Mas nem por isso é menor a tirania e ousadia dos que excomungam o povo por ciúme e raiva provocada pela lealdade dos excomungados a Jesus Cristo.

«Expulso da sinagoga». Fico imaginando qual a sinagoga de que êsse judeu foi expulso. A sinagoga era uma emprêsa cívica, religiosa,

(8) "The International Criticai Comnzentary", Vol. II, sare este Evangelho, p. 331, por J. H. Bernard.

(9) "The Expositor's Greek Testament", Vol. I, p. 50.

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social e educacional que poderia organizar-se com uns vinte judeus. Ti-nham relativa autonomia, pagando impostos para o templo a «apósto-los» que o Sumo Sacerdote enviava para recebê-los. Não sabemos se os sacerdotes ou o Sinédrio podiam baixar decretos que valeriam em tô-das as sinagogas. Parece que sim, pois deram a Paulo autoridade para ir a sinagogas de terras longínquas e prender e castigar os cren-tes. Havia uma sinagoga no templo. Talvez ali a excomunhão fosse lançada neste caso. E é provável que a medida já se achasse imposta por decreto que ia se estendendo a tôdas as sinagogas na Palestina. Assim o têrmo teria seu uso genérico, o singular sendo representativo, «a sinagoga» significando «qualquer sinagoga» ou «tôdas as sinago-gas». Não havia uma vasta Sinagoga Católica óomposta de Sinagogas Nacionais e essas de sinagogas locais. Estas eram as únicas sinagogas. «Expulso da sinagoga», pois, é uso genérico da palavra sinagoga (sub-entendido no adjetivo original), precisamente como é genérico o uso cia palavra igreja no mandamento de Jesus: «Dize-o à igreja» — qualquer igreja, sendo regra de disciplina em tôdas as igrejas.

«Se alguém o confessasse como o Cristo, seria excomungado.» «Je-sus fizera da confissão pública dele perante os homens a prova de dis-cipulado, e a negação dele a evidência de não ser discípulo (Mat. 10:32; Luc. 12:8).» (10)

«Confessasse». A atitude dos homens para com Jesus é diferente. Precisam definí-la. Exige uma crença, se é fé-confiança, e essa crença se desenvolve numa confissão de fé. Já assim tão cedo no movimento cristão, tanto Cristo como seus inimigos não estranham ser mister que o crente se defina. Atitudes neutras são covardes. CONFESSAR, custe o que custar, publicar a fé em Cristo, é prova de sinceridade. E assim confessá-lo intensifica a fé e esclarece a crença e por sua publi-cação evangeliza aos conhecidos.

«Os judeus». Sôbre a fundamental unidade intelectual e espiritual entre os judeus e os fariseus, vêde a nota sôbre 6:20.

23. «Maioridade». Tinha, pois, pelo menos trinta anos, pois é a idade em que um judeu alcançava a maioridade. Jesus e João Batista por isso principiaram seu ministério com essa idade. Ele fala como ho-mem bastante maduro, conhecedor do meio e da vida.

24. «Dá glória a Deus.» «Não é uma exortação a ser grato a Deus como se dissesse: Graças a Deus. E' uma forma de chamar alguém a dar depoimento sob juramento perante Deus que está dizendo a ver-dade. E' equivalente a: Dize a verdade, como em João 7:19.» (11)

«Sabemos.» «Procuram aniquilar um fato por meio de um dogma.

(10) "Word Pictures in the Neto Testament", Vol. V, p. 166, por A. T. Robertson. (11) "The International Criticai Contmentary", Vol. II, sôbre este Evangelho, p. 331,

por T. H. Bernard.

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Dizem: De acôrdo com os nossos conhecimentos tal milagre é impossí-vel; portanto, nenhum milagre se deu.» (11-A)

«Glória». E' um entusiasmo fingido, cujo intuito foi resistir a gló-ria do Pai manifestada no Filho. Vêde as notas sôbre 5:41, 44.

«Dá glória a Deus.» «Com lealdade à tua palavra jurada perante Deus, dize a verdade.» E' a significação que o Dr. A. T. Robertson dá às palavras.

«Pecador». Os fariseus classificavam como pecadores os imorais, os gentios, os publicanos e Jesus. Os saduceus incluiam até os judeus da Dispersão, às vêzes. (12)

25. «Uma coisa sei.» Quantos milhões de sermões foram pregados sôbre essas bravas e Convincentes palavras de testemunho e de expe-riência!

26. «Como?» E' a grande fortaleza do ceticismo — opor aos fatos um «Como?»

27. «Seus discípulos». Quanto sabia esse mendigo de Jesus, por haver estado aí no templo? Já sabe que êle tem uma comunidade de dis-cípulos. Sua mente é capaz e corajosa, como se vê nessa fina ironia.

«Escutastes». Sôbre os dois sentidos do verbo ouvir, vêde as notas sôbre 5:37.

28. «Moisés». Vêde a nota sôbre Moisés, como acusador dos judeus incrédulos, nas notas sôbre 5:45, 46. Também sôbre Abraão, 8:53, 56, 57, pois Moisés é tão real e histórico como Abraão.

29. «Deu a Moisés sua Palavra.» A idéia é que Deus falou e a sua fala (a Palavra) ainda tem valor, ainda está de pé. O tempo perfeito dá :sta idéia: «Nós sabemos que a Moisés Deus falou e sua Palavra perma-nece.»

30. «Maravilhosa». A despeito do sarcasmo dêste apologista de Jesus, vemos sua sincera atitude maravilhada, que é a essência mesma de uma fé genuína no Salvador histórico dos Evangelhos. Vêde as notas s_ôbre 5:2.

31. «Deus não ouve a pecadores.» E' idéia desse pecador naquele instante convertido. As palavras se acham isoladas do incidente. São falsas. Paulo afirma: «Todo aquêle que invocar o nome do Senhor será salvo», Rom. 10:13. Jesus, pessoalmente, e Deus Pai, inúmeras vêzes nas Escrituras, são vistos atendendo às súplicas dos pecadores. Se êle não atendesse à súplica da alma que clama pelo perdão no seu arrependi-mento, então ninguém seria salvo. Há uma seita chamada «A Igreja Cristã», uma das várias seitas que adotaram tal nome pensando que, assim se chamando, já não seriam «seitas», a despeito de sua pregação de doutrinas bem sectárias e falsas. Essa seita proclama uma «lei de per-

(11_A) "Messages on the Books of the Bible", in loco, por J. S. Riggs. (12) "The Pharisees and Jesus", ps. 77, 78, por A. T. Robertson.

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dão» composta de quatro passos: a fé (crença), o arrependimento (a re-forma da vida), a «boa confissão» («Crês que Jesus Cristo é o Filho de Deus» ? e o batismo. Dizem que o pecador não precisa orar. Só necessi-ta tomar esses quatro passos e será perdoado. Logo para que orar? E citam essa Escritura para opor-se à oração do pecador que pede a Deus a salvação. «Segue por tua própria fôrça o caminho marcado e serás perdoado», dizem. E' um sistema que dispensa a obra do Espírito San-to na conversão e a graça de Cristo na vida eterna. Alie, não crê na vida eterna, de forma alguma, nesta vida. Sua fé são meras opiniões e não fé-confiança salvadora. Sua penitência é mero romanismo — sal-vação pelas boas obras. Sua confissão não tem nada de valor cristão —é baseada num texto espúrio e todos que nascem na cristandade confes-sam êsse fato histórico a vida inteira. Seu batismo é espúrio, pois é a mera imersão de gente perdida. «Entra nas águas um diabo enxuto e sai um diabo molhado.» E' a única diferença que se nota nas suas vidas. Já se acha no Brasil essa seita. Convém que conheçamos a sua propa-ganda.

Ora, um homem convertido há cinco minutos não é autoridade em doutrina. A Bíblia não apóia todas as conversações que repete, pois repete palavras do Diabo, de Herodes, de Pilatos, etc.

Sem dúvida, o que o homem queria dizer é que Deus não ouve habi-tualmente súplicas de um pecador confirmado, do modo como ouviu a Jesus nesse caso, e que Deus não faz milagres por meio de impostores. Mas não se pode limitar a soberania de Deus. Algo ele fêz por Israel por meio de Balaão, e Saul uma vez ficou entre os que profetizavam. O Dia-bo opera milagres, até onde Deus permite, sem o apoiar. E' melhor con-siderar o argumento do homem como palavras de sua inexperiência de novato, ingnorância da verdade, em lugar de erguê-las logo em padrão completo a que Deus é obrigado a se conformar, ou em dogma anti-evan-gélico que visa impor uma lei de perdão inventada pelas tradições sacra-mentalistas. Como generalização, em casos como o que o homem curado meditava, pode ser a verdade, mas arrancada do seu contexto e evidente aplicação, nada é mais falso. Deus ouve pecadores. Cristo demonstrou na cruz a falsidade dessa, como de mil outras teorias nocivas. Ouviu o pecador crucificado ao seu lado, salvou-o e o levou ao paraíso naquele mes-mo dia

«Vontade». Vêde as notas sôbre 4:34 e o que custa «crer e ob-servar».

32. «Nunca... abriu os olhos.» De novo, o neófito se mostra ignorante. Aqueles próprios fariseus, se quisessem testificar, pode-riam dizer de outros casos em que Jesus operou semelhante milagre, e seus apóstolos fizeram o mesmo. Vêde como o mais heróico novato é impotente para ensinar. E' por isso que Deus proíbe consagrar os tais

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o ministério : «não neófito, para que não suceda que, inchado de sober-ba, caia na condenação do Diabo.»

33 . «Não poderia fazer nada.» Isso também é falso . Mas até •Garnaliel, em ocasião memorável, fêz declaração igual.

34. «Tu na totalidade de teu ser nasceste no meio de pecado (a frase «em pecados» é enfática). E és tu que te propões para ensinar-.nos a nós?» (palavra enfática) . Mais orgulho e desdém seria impossí-vel imaginar. 'Eles aceitavam a teoria com que os apóstolos especula-ram mas que Jesus terminantemente repudiou. O nascimento do cego ::ra evidência que sua própria existência era um elo numa cadeia de pe-.::ados. Nesses pecados nasceu cego, a cegueira era castigo da cadeia criminosa e todos êsses anos de cegueira ele estava nos pecados de duas ge-rações, concretizados na sua pessoa. E agora ele é mendigo, castigado Dor Deus, cuja pena Jesus inipiedosamente terminou ; mas êle se põe .a dar corajosas respostas às supremas autoridades e a ensinar-lhes duras lições em religião. Era o cúmulo!

35. «E o lançaram fora.» O prof. F. L. Anderson acha que este homem excomungado é o primeiro membro da nova comunidade que decisiva e inteiramente quebrou suas relações com o velho Israel e, ao mesmo tempo, com todo o mundo incrédulo. O bom pastor busca sua ovelha na hora de perigo e revela sua relação para com o rebanho sa-grado na narrativa que segue, a parábola do Bom Pastor, que é a con-tinuação imediata dêste incidente. Aí Jesus prevê e prediz (10:16) que o Novo Israel não será composto unicamente das ovelhas que perten-ciam ao velho redil de Israel nacional. Farão parte gentios, e judeus excomungados como êsse corajoso e declarado discípulo de Jesus que tanto se declarou discípulo de Cristo aos líderes hostis corno não hesi-tou por um instante em perder tudo no judaísmo e sofrer o terrível os-ri acismo da expulsão formal da sociedade de seu povo. (Vede em cima, sõbre v. 22.) Esse excomungado já está no terreno do apóstolo Paulo nas suas cartas mais avançadas de controvérsia com os judaizantes. Quando êsses estabelecem uma brecha entre o discipulado de Moisés e o de Jesus Cristo, nosso destemido e grato excomungado escolhe e pro-fessa instantâneamente seu discipulado a Cristo. Realmente, nenhum dos Doze está tão decidido na sua atitude para com Jesus. Esse bra-vo está meio século adiantado, em relação aos seus contemporâneos. .mesmo os do círculo cristão. Jesus e os Doze irão mais devagar para essa posição da vanguarda, que nos dias em que João escreve este Evangelho já é o terreno em que todo o cristianismo vive. (13)

«Buscou-o, achou-o.» Um só verbo, com os dois sentidos. O «bom» Pastor busca e acha uma ovelha perdida.

. (13) "Addresses on the Gospel of St. John", p. 427, resumindo e comentando a opi-niiio do Dr. F. L. Anderson.

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«Crês?» E' o aspecto perene da fé. Crês agora e continuas a crer? Se a fé já se verificou no espírito humano, e resultou em salvação, em qualquer hora da vida eterna somos crentes e podemos exclamar: «Eu .sei em quem tenho crido.»

36. «Para que me torne crente». E' o ato de tornar-se crente, decidir e tomar a atitude íntima que salva. O homem já está bem dis-posto para com a pessoa amável de Jesus. Já não está longe, pois, do reino quem ficou entusiasmado com o Rei. Este homem enxergou o princípio vital: é mister tornar-se crente antes que se possa viver a vida da fé.

«Quem é, senhor?» Até aí, existe respeito, mas não adoração. 37. «Tu o tens visto.» Tu o viste e a visão perdura, é o sentida

do tempo perfeito do verbo. Jesus está no gôzo de sua predileção para os pobres e humildes, segundo Mat. 11:25-30 e I Cor. 1:26-31.

38. «Creio, Senhor.» Não é fé-crença em dogmas. Jesus não en-sinara a êsse mendigo nenhum credo, nenhum sistema teológico ou filo. sófico-teológico. Tal coisa não passa de opiniões humanas, não é a verdade revelada por Deus nas Escrituras Sagradas. Mas aqui se tra-ta de fé salvadora, fé-confiança. Esse adorador de Jesus havia crido na sua pessoa. Tôda a confiança dele estava posta, com todas as veras da alma, no Filho do Homem. Tal fé traz tal crente a adorar J Cristo. Nossa adoração é dada à mesma pessoa a quem é dada a 'nossa fé, à mesma pessoa divina em que está posta tôda a nossa confiança para o tempo e a eternidade. E' a adoração rendida ao Salvador por um homem salvo. O adorador diz: «Creio, Senhor.» «E o adorou.» «E' trágico ouvir hoje em dia a negação de que Jesus deve ser adorado. Ele aceitou a adoração dêsse novo converso, como fêz mais tarde quan-do Tomé o chamou: Deus (João 20:28) . Pedro (Atos 10:25, 26) se recusou a permitir culto a sua pessoa por parte de Cornélio, como Pau-lo e Barnabé fizeram em Listra (Atos 14:18), mas Jesus não fêz ne-. nhum protesto nessa ocasião» (14)

39. «Para juízo eu a este mundo vim.» O mundo são os que se separam para a união com Jesus, segundo a fé que o cego curado mos-trou. Se se recusam a fé, já são julgados. Se Jesus declara em 3:17 que Deus não enviou o Filho para julgar, mas para salvar, contudo, não vai contra esta passagem. No versículo segu.nte, 3:18, é dito: Quem nele crê não é julgado; o que não crê já está julgado porque não creu. A fé é a linha de divisão. Passando para o lado da fé, o condenado passa a ser salvo. Ficando do lado de lá, na incredulidade, fica na condenação. Jesus veio esclarecer esta linha de demarcação. Veio para que os ho-mens tomassem atitude decidida para com ele. Inevitàvelmente sua

(14) 'Word Pietures in the New Testantent"; Vol`.. V, p. '172: por A. T. Robertson.

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vinda é juízo para o mundo incrédulo e Jesus veio nesta inteligência. Vêde as notas sôbre 5:22 e 8:16.

39 a. «E os que estão vendo, se tornem cegos de vez.» Westcott insiste em que o verbo seja traduzido «se tornem» e não «sejam feitos», e opina que essa cegueira resulta de forças ou influências que já estavam operando nêles. (15) Nossa interpretação tem de ser de acôrdo com os fatos, obedecendo às afirmativas do texto e os evidentes propósitos do contexto. O texto diz que essa cegueira vem de vez, a fim de que os que estavam vendo ficassem já definitivamente cegos. Não é propósito pri-macial da encarnação, o qual é para que os que estavam numa perene cegueira permanecessem vendo perpetuamente. E' o segundo propósito da encarnação, porém, dar juízo. E o julgamento de Jesus é que êsses fa-riseus que estavam vendo (segundo seu modo de estimar o próprio valor e posição religiosa) passassem de vez para a categoria de cegos. E' o jul-gamento. E' a sentença. E Jesus veio para dar essa sentença. Ali mesmo êle os pronunciou: cegos. Não foi um processo, senão um evento, uma sentença judicial. Num momento estavam os réus cheios de orgulho, cheios de si, soberbos pelo mérito e religiosidade. Jesus quebra de vez essa presunção, e, na sua fúria os fariseus ficam tão confusos como um cego que anda apalpando pelas ruas. E' uma sentença judicial de Jesus. Fêz que êles passassem da categoria suposta, mas irreal, de homens de visão, espíritos iluminados, almas videntes, para a sua posição real —uma cegueira obstinada, propositada e confirmada.

A linguagem está cheia de ironia. Esses fariseus não viam a realida-de. Eram cegos — mais cegos não podiam ser, mas eram cegos que man-tinham estabelecimento de ótica, para preparar óculos para outros. Na figura do Mestre, tinham traves nos seus olhos e estavam passando por peritos em extrair argueiros dos olhos do povo. Reduzir êsses hipócritas (Mat. XXIII) a sua verdadeira posição de cegos, e cegos reconhecidos, cegos incapazes de tratar os olhos alheios, cegos charlatães em tôda ques-tão de ótica espiritual, eis a sentença de Jesus. Ele não transformou em cegos os fariseus que viam nem lhes recusou luz alguma. Seu juízo ape-nas mostrou que os que fingiam ver a realidade e orientar a nação eram também cegos, guiando outros cegos, destinados a cair todos juntos no barranco do desastre nacional. Eis, pois, os dois fins de Jesus na sua en• carnação: transformar cegos em almas que vêem e crêem no Salvador e cheguem a ver o reino de Deus pelo novo nascimento; e desmascarar os falsos médicos dos olhos do coração, sentenciando-os, pronunciando-os como cegos que fingem ver, incompetentes, enganadores do povo.

Essa sentença de Jesus fêz para os fariseus o que fez no caso de Saulo de Tarso a descoberta do décimo mandamento, em seu real signifi-cado e penetrante revelação. O mandamento veio, «reviveu o pecado

(15) "Some Lessons of the Revised Version of the New Testament", p. 100.

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e eu morri», Rom. 7:9, 10. A sentença de Jesus é igualmente revela-dora, igualmente fatal. E daí procede a indizível reação farisáica em seguida. Enchem-se de raiva pela sentença que os desmascara. A Casa de ótica dos Cegos para os Cegos já não terá mais prestígio entre o povo. Fechará logo as portas. E tudo se ilustra no milagre. O cego de nascença ficou vendo, vendo perpetuamente pela graça de Jesus. E os outros cegos de nascença, espiritualmente cegos de nascença, declaram cego aquêle que vê, expulsam-no da sinagoga dos videntes, e sendo cegos se proclamam os peritos da visão espiritual. Jesus retifica a sentença dêles, com sentença melhor, leal aos fatos.

40. «Os fariseus». Vêde as notas sôbre 4:1, e a linguagem de Mat . XXIII.

41. «Não teríeis culpa». Jesus de novo antecipa o princípio de Pau-lo na Ep. aos Romanos: «Onde não há lei, não há transgressão.» A culpa acompanha a luz da responsabilidade. Se nada soubessem de moral, reli-gião, revelação e dever, então seriam como idiotas. Seus atos não teriam culpa. Juridicamente, seus atos não seriam pecado. Tendo a luz, glo-riando-se dessa luz das Escrituras, e até gabando-se de ser peritos na ma-téria, êles não têm a desculpa da ignorância. São responsáveis. Como sempre, a linguagem figurada muda ràpidamente. Como intérpretes das palavras de Jesus, temos de acompanhar essa marcha rápida do pensa-mento.

«Vosso pecado é permanente». Notai o efeito dessa declaração de Cristo, falando nas palavras formais de uma sentença judicial, em rela-ção à doutrina do juízo do último dia e do inferno. A fraqueza intelectual da oposição à doutrina do inferno é supor que por soma finita de pecado, ou número limitado de pecados, Deus vai dar punição infinita ou infinda, penas ilimitadas. Não é o caso. «O vosso pecado permanece.» A morte não muda a direção da' vontade humana, o rumo do caráter, a índole da alma descrente. Segue seu rumo e o rumo é mau. E as penas eternas são compensação de pecados eternos. O inferno corresponde aos seus ha-bitantes. O pecado «permanece». A ira de Deus «permanece». Vêde 3: 36. Mas não há dois que sofrerão da mesma maneira, pois a cada um se dará segundo as suas obras. Mas sendo contínua, ininterrupta, perma-nente o curso de obras más, será igualmente contínua, ininterrupta e per-manente a punição que unirá em si a justiça e a misericórdia de Deus. O inferno é misericórdia divina, pois a mente da carne é inimizade contra Deus e não sentiria sossêgo na sua presença. Sentirá mais gôzo no in-ferno, seu ambiente próprio.

9 :41 - 10 :1. «Fica subsistindo o vosso pecado ... vos digo.» Nossa divisão de capítulos abre um abismo entre o Cap. 9 e êste capítulo, como se o incidente do cego de nascença curado fizesse parte de outro livro. Mas o apóstolo ligou o incidente e o ensino de Jesus Cristo a respeito do seu cuidado pastoral. E' aos fariseus triunfantes e intolerantes que Jesus de-

c. E. J. - 21

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clarou: «Amém, amém, vos digo» depois de haverem expulso da sinagoga o homem que se uniu a êle como uma de suas ovelhas. Não é um ensino platônico, divorciado da realidade. E' um texto vivaz num contexto de realidade dramática.

10:1. «Amém, amém.» «Prelúdio solene pela repetição como em 1:51. Essas palavras nunca introduzem um tópico novo (Comparai 8: 34, 51, 58) . Assim em 10:7.» (16) Vêde as notas sôbre 5:24. Não há so-lução de continuidade na Escritura aqui, diz Godet. Os maus pastôres são os mesmos guias cegos.

1-6. «Esta figura». Não é a palavra que traduzimos por parábola. Significa: «provérbio, figura, alegoria, (discurso ao lado do caminho), modo velado de falar que contenha pensamento elevado, metafórico e di-dático.» (17) Jesus usou de uma indireta aos fariseus aqui. «Mas não compreenderam... » Podemos chamar êsses versículos a Parábola do Bom Pastor em forma de borrão. E a mesma parábola em sua forma polida se acha nos vs. 7-18. Na sua primeira forma a parábola é uma in-direta que visa furar o orgulho dos fariseus e ferir sua preponderância de pastôres do povo, os cegos que guiavam outros cegos, caindo todos de-sastrosamente. As indiretas geralmente ferem sem ser compreendidas ou assimiladas pelas pessoas visadas. Servem um fim legítimo em casos de usurpação ou abuso de autoridade ou influência de líderes do povo. A ironia é arma lícita, em tais casos, e Jesus a usava sem hesitação contra os detentores de poder tirânico e das prerrogativas usurpadas. Mas a in-direta de Jesus não foi compreendida. Portanto, êle repete mais ampla-mente a comparação e esta vez usa a parábola não só como ofensiva bem inteligível contra os fariseus, mas também corno doutrina para o povo sô-bre as bênçãos que advêm de sua missão messiânica como Bom Pastor. O v. 21 mostra que esta vez a parábola surtiu imediato efeito, além de seu valor permanente na memória daquela geraçãO e nos tesouros escri-tos do evangelho.

Nesta primeira forma, vs. 1-6, a primeira ênfase é sôbre os falsos pastôres, os «ladrões e salteadores», aí em tão violenta oposição a Jesus diante de sua mãe. São sete linhas sôbre os falsos pastôres e dez linhas sôbre o Bom Pastor. Na segunda forma da Parábola há vinte e seis linhas sôbre o Bom Pastor e quinze linhas sôbre os ladrões, salteadores, merce-nários e lôbos. Jesus ainda identifica o bom e genuíno em nítida e bem definida distinção do falso e nocivo. Mas o positivo é mais que o negativo, e conserva, mais ou menos, a mesma proporção em ambas as formas da parábola; e, na sua forma mais extensa, está mais em evidência o bene-fício do próprio povo pelo ministério de Jesus como Pastor,

Enumeramos as figuras da primeira edição, por assim dizer, o borrão

(16) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p 173, por A. T. Robertson. (17) Meu Dicionário Grego, p. 129.

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da parábola. São a porta, o aprisco, as ovelhas, subir por outro caminho, ladrão, salteador, o pastor, o porteiro, o extranho, e as atividades do pas-tor e a correspondente atividade das ovelhas. Jesus é uma vez a porta, o Pastor. Quem é o porteiro? Quem é o extranho? Já discutimos quem é o ladrão e salteador. O extranho é qualquer voz diferente da voz de Jesus — tradição dos homens. O porteiro alguns dizem ser Moisés, ou-tros João Batista, outros Jesus mesmo, outros o Espírito Santo. Jesus não nos explica e, portanto, não convém ser dogmático no assunto, mor-mente porque o porteiro desaparece na nova forma da parábola. O que a parábola faz é repudiar os líderes falsos e enaltecer Jesus como o guia que tôdas as bênçãos traz ao povo espiritual de Deus. Godet acha que o pro-pósito da primeira forma da parábola foi confortar o cego de nascença que se curou e ensinar aos fariseus. Mas acho mais provável que o alvo para o curado e os demais discípulos era o duplo propósito de confôrto e ensino e, quanto aos fariseus, era o Bom Pastor afugentando o ladrão.

«A porta». Agostinho diz : «Cristo, pois, é portão de entrada para vós, não de vossas casas, mas para vossos corações ... Assim êle é tanto a porta como a pedra de esquina. Tudo é por meio de comparação; ne-nhumas dessas figuras vingam ao pé da letra.» (18) Êle acha que Cristo é «porta», «porteiro» e «pastor», tudo na mesma parábola.

«Aprisco». Há muitas interpretações contraditórias ou confusas dessa palavra. Em geral é a organização que é o centro e a sede da vida coletiva e da proteção e descanso das ovelhas. O romanismo exalta a palavra, achan-do nela o ensino principal da parábola. De tal forma a exalta que aniqui-la outra palavra de Jesus — «rebanho» — e põe em seu lugar essa palavra aprisco. E' exaltação do material sôbre o espiritual, de coisas acima de personalidades, de organização acima de experiência, salvação e espiritua-lidade. O termo é um dos detalhes da parábola que está nela sem signifi-cado saliente. O aprisco onde as ovelhas achavam abrigo nos dias da car-ne de nosso Senhor era a teocracia judaica. Jesus devia ser a porta daque-le aprisco e da teocracia espiritual, o Israel crente e regenerado. Cristo era a porta e o Pastor. E viviam ainda no aprisco judaico de templo e si-nagoga, achando no Messias a entrada e saída e direção da sua vida. Esse aprisco seria aniquilado no ano 70 d. C. Os outros apriscos de onde ou-viriam a voz de Cristo essas outras ovelhas não são definidos. Eram a sociedade organizada, gentia, que abrigava os que se destinavam a ser crentes. «E' necessário que os traga», diz Jesus de tais ovelhas. E' um pouco diferente da salvação dos judeus. «A salvação é dos judeus», dissera Jesus à samaritana. Êle estava, como judeu, no aprisco que Deus estabelecera para Israel. Convertido alguém, ali estava provisà-riamente no lugar próprio para um israelita e devia continuar sua vida

(18) Comentário de Agostinho sare este Evangelho, Versão inglesa, de J. Gibbs, II, p. 100 e 104.

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no aprisco judáico. Seu aprisco viria abaixo, por ser inadequado. Jesus traria as outras ovelhas. Não edificaria novo aprisco teocrático. A parábola não insinua semelhante idéia. Faria um só rebanho. A unidade está na comunhão de personalidades redimidas com o Salvador, não na organização exterior. Aí desaparece da vida cristã essa palavra. Nunca mais se fala do aprisco. Realmente nunca se usa o termo no Novo Tes-tamento figurando outra coisa senão a teocracia judaica. Vede o es-tudo suplementar sôbre «Removamos a Caiação Católica dêste Evange-lho». Aqui damos tôdas as passagens no Novo Testamento em que a palavra traduzida aprisco é usada: Mat. 26:3, 58, 69; Mar. 14:54, 66; 15:16; Luc. 11:21; 22:55; João 10:1, 16; 18:51; Apoc. 11:2. São tra-duzidos pátio da casa oito vêzes, casa uma vez, átrio urna vez, aprisco duas vêzes. Não é nada vivo. E' material, exterior, impotente para sal-var. O rebanho, não o aprisco, tem vida, união vital com o Salvador, personalidade, salvação. A doutrina de um só aprisco é tradição huma-na, acrescentada à Escritura. Não existe aí a não ser numa falsificação da Palavra de Deus. O cristianismo paganizado que se edificou sôbre essa falsificação do texto é em si tão falso como a substituição de reba-nho por aprisco. E' uma apostasia fatal.

«Ovelhas». Godet viu uma alegoria baseada na vida da ovelha: (a) de manhã quando o pastor vem buscar suas ovelhas das mãos do portei-ro comum, num aprisco geral da vida onde foram guardados seguros vários rebanhos durante a noite. Vs. 1-6.

b) A vida das ovelhas durante o dia. Vs. 7-10. c) À boca da noite, as ovelhas expostas ao perigo dos lôbos quando

voltam ao aprisco, o pastor com risco da própria vida lhes outorgando segurança. Vs. 11-21.

Pela variação das estações é preciso lembrar que no verão (maio-outubro) os pastores ficavam a noite inteira com seus rebanhos ao ar livre. Assim estavam nos campos quando o côro dos anjos cantou o ad-vento do Messias em Belém. Assim a metade do ano, tôda a segurança era absoluta e unicamente devida ao pastor, e os apriscos não se relacio-navam com a vida das ovelhas. Quão fútil, pois, é o esfôrço para eclip-sar a missão do Pastor com as excelências materiais de um redil.

«Ladrão e salteador». E' salteador, bandido, quando chega a hora de roubar as ovelhas. E' ladrão na sua maneira traiçoeira e hipócrita de ganhar entrada no meio do rebanho. Muito de mansinho para conseguir entrada, muito violento e prejudicial na saída depois de tanto estrago ao rebanho.

Jesus fala de alguém. Quem é? Quem sobe por outro caminho? Quem procura alcançar as ovelhas sem entrar pela porta? Jesus nos diz no v. 8: «Todos quantas vieram antes de mim são ladrões e salteadores.» Será que Moisés é ladrão, e Isaías salteador? Vieram antes de Cristo, como os demais profetas.

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Podemos ter certeza de que Jesus não falava dos profetas. Eles pela fé entraram pela porta que é o Messias em quem creram antes de sua en-carnação e foram salvos. Podemos ter certeza que êle não falava de João Batista que veio antes dêle, oficialmente, corno precursor. E com igual certeza podemos saber que a parábola visava ouvintes e agentes de mal-vadez diabólica, aí mesmo na sua presença, elementos de traição e violên-cia que se punham em oposição a Jesus.

De fato, é o que vemos no contexto. O Capítulo IX é o contexto do Capítulo X sem solução de continuidade. Os fariseus que o antagoniza-vam a cada passo são os ladrões e salteadores. Haviam aparecido uns se-tenta falsos cristos no meio do povo e causaram a morte de multidões, perturbações, e prejuízo de outras multidões. E os sacerdotes no templo, os escribas na cátedra de Moisés, como seus intérpretes oficiais, e os fa-riseus, como chefes fanáticos do povo em uma religiosidade beata mortí-fera e insuportável, de puro legalismo, eram um bando vil de ladrões e sal-teadores; e o campo de suas violências e exploração era o próprio culto, no templo e na sinagoga, nas festas e no caráter, nos ritos e romarias sem fim. Êsses não entraram por Cristo, a porta. Êsses tinham outro caminho para apanhar as ovelhas. Êsses exploravam a religião e o povo em seu próprio proveito. E, como êles, na denúncia de Jesus, estão incluí-dos todos os líderes religiosos de igual ânimo.

«Ladrão e salteador». «O ladrão tem seu próprio lugar na linguagem figurada da Escritura (por exemplo, I Tess . 5:2, 4 ; II Tess . 3:10 ; Apoc. 3:3) . Ele é colocado lado a lado com o salteador, na condenação dos fal-sos cristos em João 10:1, 8. Mas em todos os casos onde o termo saltea-dor é mencionado no Novo Testamento, a idéia é de violência aberta e não de manhas e traição. Os chefes do povo tinham feito da casa de Deus um covil de salteadores (Mat. 21:13), como a frase fica no Velho Testamen-to (Jer. 7:11) ; não roubavam secretamente mas empregavam a extorsão ousada. O viajante de Jerusalém a Jericó caiu mo meio de salteadores (Lue. 10:30; vêde II Cor. 11:26) que não necessitavam de esconderi-jos.» (19 ) . .«Ladrão e salteador». Na história da Escócia um dos maiores nomes, depois de John Knox, é o de Alexander Henderson. Entrou no ministério por ambição e, estando a Escócia ainda debaixo de um falso episcopado nacional, êle se aliou a essa teoria, e rapidamente foi se adiantando. Ro-bert Bruce era o grande pregador presbiteriano que se opunha aos epis-copais, mas estava sob a sombra da hostilidade do rei, protetor de Hen-derson.

Henderson, depois de ensinar filosofia oito anos na Universidade de Santo André, foi nomeado cura de uma paróquia importante, a de Lu-chars. Mas o povo não quis o pároco enviado pela autoridade episcopal e

(19) "Some Lessons of the Revised Nem Testamenn p. 75, por B. F. Westcott.

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fechou as portas da igreja com fortes pregos. Quando vieram, pois, os representantes episcopais para a instalação do novo padre, não puderam entrar. Afinal, com grande sacrifício da própria dignidade, quebraram uma das janelas e entraram.

Tempos depois, o eminente Bruce veio pregar na comunidade e Hen-derson quis ouvi-lo. Arranjou meios de ouví-lo sem ser conhecido. Mas qual não foi sua consternação ao ouvir essa Escritura anunciada como texto, passagem favorita contra o pseudo-episcopado das tradições huma-nas. Parecia-lhe uma seta divina enviada diretamente à sua consciência. Tão profunda foi sua convicção de pecado que êle se converteu. Com a sua salvação êle repudiou o episcopado tirânico e sua posição e se iden-tificou com a causa que havia perseguido e tornou-se um dos grandes pre-gadores da Escócia. Não tenhamos dúvida de que eram precisamente lí-deres semelhantes aos pseudo-bispos de falsas Igrejas Nacionais ou Cató-licas que faziam tenaz oposição a Jesus Cristo e dêle receberam a classi-ficação: «ladrões e salteadores». As palavras não são vazias de significa-ção mas aplicam-se às tiranias eclesiásticas de todos os tempos.

1, 4. «O Aprisco». O Dr. John L. Hill explica a linguagem metafó-rica: «E' uma figura oriental, a história da vida pastoral dêsse povo sim-ples. .. O aprisco era um lugar cercado, de dimensões que variavam de um ou dois até quinze ou vinte acres... Essa área era fechada por um muro de pedra, com uma espécie de cadeia de espinhos agudos por, cima, a fim de afastar os lobos, os chacais, a hiena, os leopardos e as pânteras que eram abundantes no país (especialmente no vale do Jordão, W.C.T.). Dentro do aprisco e junto do muro havia ranchos baixos em que os reba-nhos eram fechados nas noites frias . A entrada regular no aprisco era pelo portão ou uma abertura no muro, onde um porteiro ficava como guar-da e permitia aos pastôres entrar ou sair com suas ovelhas.

«Esse uso do aprisco era uma espécie de cooperativa, pois o mesmo aprisco era útil a muitos pastôres, visto que os rebanhos eram pequenos e a despesa ficava dividida proporcionalmente entre os pastôres dos vários rebanhos. Ã. tarde, o pastor, conhecido do porteiro, fazia entrar suas ove-lhas e eram contadas. De manhã, cada pastor voltava e chamava suas ove-lhas pelo nome e elas o seguiam para a pastagem . Em nossa época industrial é mister que se expliquem as ilustrações de Jesus pois, para nós, pode ser que a verdade ensinada já seja mais clara do que a ilus-tração com que o Mestre procurava derramar luz sôbre tal verdade.» (20) Westcott diz que tanto um aprisco podia ser usado por vários pastôres como um pastor podia espalhar suas ovelhas em vários apriscos .

Esse ensino, logo após o alvorôço provocado pela cura do cego de nascença e sua excomunhão, de nada serviu aos judeus. Apenas reno-

(20) "The Teecher", de fev. de 1943.

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varam as acusações de que Jesus era demônio ou um desequilibrado (v. 20).

2. «O pastor das ovelhas». «A obra de nosso Senhor como Pas-tor é tríplice: no passado, sua obra de expiação, sua morte vicária ; atualmente, sua intercessão sacerdotal; no porvir, sua função de ga-lardoar.» (20)

3. «Porteiro». «O porteiro tinha o cuidado das ovelhas no aprisco durante a noite e abria a porta de manhã ao pastor. Não é certo que Jesus quis dar a esse detalhe aplicação especial.» (21)

«Ouvem sua voz.» Convém esquadrinhar os nossos corações. «A voz» é o que a voz diz: a Palavra. Ouvir é obedecer, seguir. Estamos seguindo a Palavra do Bom Pastor ou a sedução de líderes de movimen-tos, baseados nas tradições dos homens, ou a um novo rumo sem ne-nhuma tradição?

3. «E êle chama pelo nome suas ovelhas.» E' a intimidade que a relação pastoral exemplifica. Mostra que não é possível haver senão um Pastor Universal — Jesus Cristo. Ele nos conhece pessoalmente, pelo nome, por nossa vida, por circunstâncias de nossa atividade a cada momento. E' o Pastor que nos convém, «o Pastor e Bispo de nossas almas». Ambas essas palavras, pastor e bispo são nomes de tarefa e carreira do ministério local de igrejas congregacionais. E' figura da-quela direta e intima supervisão que o sub-pastor de um rebanho exer-ce, debaixo de Cristo, e em imitação de Cristo.

E' da essência do pastorado conhecer pessoal e intimamente seu povo. Meu primeiro pastorado foi de uns seis anos. Conheci pelo nome cada membro da igreja, todos os seus filhos, seus vizinhos e os filhos de seus vizinhos e amigos. Meu segundo pastorado foi de quatro anos e consegui a mesma coisa na cidade pequena e no distrito rural ao re-dor. Isso não é excepcional nos pastôres evangélicos. E' a norma de nossa vida, em imitação do Bom Pastor. Agora pergunto: «Quantos. Católicos Romanos no Brasil há cujos nomes o papa em Roma conhece? Que sabe êle da existência dos tais?» Não é, pois, pastor dêles em sen-tido algum. O único Pastor Universal é Jesus Cristo e êle o pode ser porque é onipresente e onisciente. No demais, os pastôres são oficiais locais de rebanhos congregacionais.

4. «Caminha em frente delas e as ovelhas o seguem». «Que lição temos aqui para os pastôres que procuram tanger suas igrejas como gado e por isso fracassam.» Não é provável que o apóstolo João tinha o propósito de, como um corolário, impor, no exemplo de Jesus, o ideal do ministério cristão, preservando essa parábola tão extensivamente, e narrada de duas maneiras, e em propositado contraste com o espírito desumano e interesseiro dos pastôres judaicos reinantes no templo?

(21) "Ward Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 174, por A. T. Robertson.

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«Vai atdiante». O Pastor divino é o Exemplo divino. Abre caminho. Mostra a vereda acertada. As ovelhas o seguem voluntàriamente. Os porcos são tangidos — as ovelhas não. Seguem seu líder. E' o exem-plo, o guia, que é o persuasivo e bom pastor. O ministério não precisa de tangedor de porcos mas de pastor de ovelhas. Limitemos o rebanho aos regenerados. Terão voluntário prazer em seguir o Exemplo e em seguir seus pastôres como êstes seguem a Jesus Cristo. Seguir é imi-tar no bem.

«Conhecem a sua voz.» Sir George Adam Smith, em sua Historical Geography of the Holy Land, (p. 311), diz : «Não me lembro de ter visto no Oriente um rebanho sem um pastor. Os pastos do Oriente são muito vastos, muito diferentes de nossos vales estreitos e encostas cul-tivadas das montanhas.» Ele narra como viu quatro pastôres almoça-rem juntos. As ovelhas dos quatro rebanhos se confundiram numa só multidão e se espalharam em grupos, em veredas divergentes. Mas quando os pastôres terminaram seu almôço, cada um deu uma chama-da peculiar, na voz familiar ao seu próprio rebanho, imediatamente se separaram de novo e uniram-se a seus respectivos dirigentes.

5. «A um estranho». Agostinho se gloria na perseverança das ove-lhas em sua lealdade ao Bom Pastor e diz : «Se a tentação sobrevier, persevera até o fim, pois a tentação não continuará até ao fim.» A ten-tação suprema será de seguir os estranhos simpáticos — outras vezes com outra doutrina, outra vereda, contrária à voz e Palavra de Cristo.

«Absolutamente não o seguirão.» «Simplesmente não seguirão nunca semelhante homem ou mulher. Fugirão como do lôbo ou de uma praga. Ai de nós! Se tão somente os pastôres da atualidade tivessem as ovelhas (velhas e jovens) treinadas de tal modo que não fugissem, seguindo as vozes estranhas que as chamam para a filosofia falsa, a psicologia falsa, a ética falsa, a religião falsa, a vida falsa!» (22) E' outro ideal que João provavelmente quis expor, dando o exemplo de Cristo como norma pastoral aos «anjos das igrejas da Ásia», já amea-çados pela invasão dos lôbos gnósticos em seus rebanhos.

6. «Essa parábola». Hoje em dia alguns comentadores negam que seja parábola; recusam admitir que haja alguma parábola no Evan-gelho de João. Alguns fazem da afirmativa uma teoria dogmática, tendenciosa e anticristã. Dizem: «Vêde que nas parábolas não há mor-te expiatória. Ninguém morre para salvar outro. O Pai recebe o filho pródigo sem derramamento de sangue. Não há sacrifício vicário e ex-piatório nas parábolas, logo, a idéia não faz parte do evangelho.» Nada disso se baseia nos fatos que aí estão em evidência abundante nos Evan-gelhos todos. Nenhum subterfúgio intelectual arrancará do Evange-lho ou das parábolas a idéia da redenção. Aqui temos refutação cabal

(22) "W ord Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 175, por A. T. Robertson.

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de semelhante teoria, na Parábola do Calvário, da morte redentora, da vida e segurança que traz aos redimidos, da absoluta necessidade do Cristo crucificado como o único caminho verdadeiro de salvação e a única comunhão dos salvos. A parábola mata muitas teorias tendencio-sas e incrédulas.

Insistem os advogados anti-redentoristas dessa teoria que aqui te-mos uma alegoria, não uma parábola, e que a palavra geralmente usa-da não se acha aqui, embora muitos a traduzam por parábola. Não nos opomos aos fatos assim afirmados, mas unicamente à exploração do fato para fins de promover guerra entre uma parte dos ensinos de Je-sus e outra parte, ou entre um método literário e outro método de sua pre-gação. Se êstes versiculos são diferentes da norma de uma parábola, que é uma história completa em si e que tenha seu interesse independente do pro-pósito de Cristo em narrá-lo, todavia, também é de uma brevidade e for-ma que não justificam o emprego do nome comum hoje em dia para classificá-la: alegoria, termo que indica narrativa mais extensa e de-talhada, ordinariamente. Afinal, o ensino da linguagem figurada é mui-to mais vital do que a classificação da figura empregada. Pode não ser parábola, no sentido exato da palavra, mas é uma qualidade congênere de ensino. E o propósito suplementar que João teve, na escolha de ma-teriais para seu Evangelho, torna o ensino um esclarecimento das pará-bolas, quanto ao método fundamental de ilustrar o valor da morte de Cristo.

Eu não concordaria por um instante sequer com a idéia de que o capítulo sobre o Bom Pastor é o único ensino que temos da salvação pela graça redentora de Cristo crucificado. A morte de Jesus está na parábola dos lavradores maus (Luc 20:9-18) . A idéia de crer e ser salvo está na parábola do semeador (Luc. 8:12) . «A Pedra Rejeitada» é parábola sem sentido, a não ser na base da fatal rejeição de Jesus pe-los judeus e de seus valores eternos, depois da morte, como fundamento seguro da esperança e vida (Mat. 21:42-45) . E no «Sinal do Tem-plo» temos a profecia de sua ressurreição (João 2:19) . E um futuro de ausência e de glória do Senhor se vê em várias parábolas.

Que não seja salientado o ensino da morte de Jesus nas parábolas é coerente com o lugar das parábolas no ministério público de Jesus . As parábolas não visavam o círculo íntimo do discipulado, mas o pú-blico hostil, Mar . 4:11 ; Mat . 13 :11-16; Luc. 8:10. Para êsse público, completamente cego à idéia de um Messias crucificado, o ensino da doutrina da morte messiânica seria fútil — pérolas lançadas aos por-cos. Aos próprios discípulos era bem difícil ensinar a verdade do Cal-váxio. Ela nunca penetrou nas suas mentes até que chegou à realidade. E, por isso, para eles o único doutrinamento viável era a afirmação clara e categórica de que Jesus ia morrer. Está de acordo com a situa-ção psicológica, pois, que Jesus evitasse, em geral, linguagem metafó-

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rica, e, em prevenir seus discípulos, lhes avisasse abertamente da sua morte. Mas o ensino da necessidade e do valor dessa morte bem po-dia viver nas mentes dêles pela parábola ou figura do Bom Pastor que daria sua vida pelas ovelhas. E' o evangelho do reino, o único evan-gelho.

«Esta parábola . . . Jesus; mas aquêles . . . » A referência do Ulti-mo pronome vai longe e trata dos líderes dos fariseus com que Jesus teve as discussões e lutas narradas em Cap. IX. Nosso X, que dá o nú-mero deste Cap. está no meio das aspas que marcam os limites do pe-queno discurso que começou no v. 41 do outro capítulo.

A divisão dos capítulos faz mal, neste caso, e muito mal. Crentes bons dissociam o resto do discurso de Jesus do seu contexto, da oca-sião histórica e do propósito que êle tinha em mira. Assim desorienta-dos, ficam perguntando até se eram ladrões e salteadores Moisés, Davi, Isaías, Amos, João Batista — pois, de certo, vieram antes de Jesus. A despeito da linguagem geral — «todos quantos» — a explicação de Je-sus limita a imediata aplicação aos que dois pronomes indicaram: «lhes» e «aquêles». O contexto esclarece o texto. Esta regra nos livrará de mil interpretações erradas da Bíblia. 7-18. A forma final da parábola parece visar maior clareza pela simplicidade e elucidação dos têrmos. Godet pensa que o significado da palavra aprisco esta vez é a salvação messiânica, e que Jesus como porta é o único Mediador da mesma salva-ção. Até aí está bem. Mas não se explica, nessa hipótese, como os sal-teadores podiam «subir por outra parte». Nem é claro como as ovelhas «entram e saem» da salvação. Nunca é possível interpretar coerente-mente todos os detalhes de uma parábola. E' mister discernir a dire-ção geral do ensino e ser fiel a qualquer aplicação especial que Jesus deu às suas próprias palavras. Esse ensino se acha em dez afirmati-vas. 1. «Eu sou a porta: se alguém entrar por mim será salvo.» 2. De-pois de salvo, «por mim... entrará, sairá e achará pastagem.» Jesus salva logo no comêço da vida cristã e essa vida é nutrida e disciplinada e dirigida pelo mesmo Cristo. 3. Jesus quer que os seus tenham vida espiritual «e a tenham em abundância». A morte do Pastor, neste caso, é necessária para essa vida abundante das ovelhas. 4. Há um conheci. mento mútuo pessoal entre o Salvador e os salvos, tão íntimo como o de pastor e ovelhas. 5. A sua vida Jesus dará pelas ovelhas, e a reassu-mirá para a eficácia de sua contínua atividade pastoral. Sua ressurrei-ção é parte vital de sua obra e carreira pastoral, v. 17.

6. Jesus morre como, quando e para os fins que êle bem entende. Não é mártir. E' sacrifício voluntário. Está no eterno plano dos con-selhos da Trindade. O Filho recebeu eterno mandamento e em obedi-ência e amor veio dar e reassumir a vida pelas ovelhas. 7. Essa missão salvadora não se limita aos contemporâneos do Calvário. Jesus olha para as outras divisões da raça humana e faz a mesma provisão para

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os crentes que haverá no meio delas que fazia para os discípulos judeus do primeiro século. E estariam tôdas essas ovelhas igualmente privile-giadas numa só comunhão, constituindo um só rebanho do único Pastor, nos termos dêsse pastorado da morte e ressurreição messiânica, outor-gando vida abundante pela morte, tão abundante de graça, mérito e salvação.

8. Jesus volta ao assunto mostrando que ser ovelha é ser crente, atual ou futuro, v . 26, 27. 9. Êle renova a pregação de seu evange-lho: (a) Êle salva; b) salva o crente; (c) essa salvação é a vida eterna. «Eu lhes dou a vida eterna, e nunca jamais hão de perecer, e ninguém as arrebatará da minha mão.» A salvação de' Jesus é de uma vez para sempre e consiste em vida e segurança eterna. 10. A união eterna de Pai e Filho garante a salvação e segurança do crente com o poder ir-resistível de ambos, v . 29-30.

Ora, êsses dez ensinos são categóricos, repetidos, claríssimos. Re-petem o que já foi dito por Jesus em outras ocasiões. Seja qual fôr nossa interpretação das figuras da parábola, tem de encaixar-se nessa incontestável interpretação, sem linguagem figurada, que Jesus deu à sua própria linguagem. Não é lícito torcer uma figura para obrigá-la a repudiar e contradizer o ensino claro de Jesus em linguagem despida de figuras.

7. «Eu sou a porta.» J. Campbell Morgan diz : «Eu estava voltan-do da América no Atlantic e um dos passageiros era Sir George Adam Smith. Tivemos muitas conversações e nunca me esquecerei da viagem. Oxalá eu pudesse passar um ano inteiro na sua companhia. Entre outras coisas, êle me disse que quando viajava na Palestina, como era seu cos-tume, desviou-se da estrada real, com seu guia, e encontrou um pastor e um rebanho de ovelhas. Começou a conversar com o homem, pois Sir George falava árabe tão bem como o inglês. Êle mencionou os apriscos orientais que havia visto em tôda parte com abertura mas sem porta. O pastor respondeu: Eu sou a porta. Quando a noite vem e tôdas as ovelhas estão recolhidas, eu me deito atravessado na entrada. Nenhuma ovelha sai e nenhum lôbo entra senão por cima de meu corpo. O homem não era crente e falava de maneira simples e natural de seus afazeres diários.» (Citado em artigo no «The British Weekly»).

«Sou a porta.» «Essa metáfora deve ser útil aos que insistem pelo literalismo no significado do pão como real corpo de Jesus em Mar. 14: 22. Jesus não é uma porta, fisicamente falando, mas é a única entrada para o reino de Deus (14:6).» (23)

8. «Todos». Devemos nos acostumar a interpretar essa palavra de modo a aplicá-la a «todos» que sejam da categoria ou do grupo que está no sentido da linguagem. Não mentimos quando empregamos a frase co-

(23) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 176, por A. T. Robertson.

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mum: «todo o mundo». E' hipérbole, figura da retórica que Jesus muito usava. E' lícito para o servo como era para o Senhor, pois êle não dava sentido excepcional a palavras nem possuia uma «linguagem sacra». Po-dem examinar o uso de «todos» nas seguintes passagens: Mat. 1 :17 ; 2:3 ; 3:5; 4:24; 9:35; 10:22 ; João 12:29. Mesmo quando temos a palavra «todos», o contexto pode limitar o sentido ao grupo nêle indicado. E um dos métodos mais perigosos de aplicar a Escritura à doutrina e vida é in-jetar um todos obstinadamente onde nem existe, como em Mar. 16:17-18 (onde a existência de tais milagres no século apostólico, uns no caso de um crente, uns no caso de outros, satisfaz perfeitamente a profecia) e João 21:16, 17 (onde a acréscimo da palavra tôdas ao substantivo «ovelhas» serve, aos caiadores deste Evangelho, para justificar sua doutrina de um pastorado universal de Pedro durante sua vida sôbre todos os crentes —coisa que êle nunca teve um instante de sua vida — e ainda para doar aos seus pseudo-sucessores um papado sôbre todos os povos por todos os sé-culos nesta vida e no além-túmulo) . Cuidado, senhor intérprete, com a palavra todos, na Bíblia. Regule seu alcance pelo contexto imediato e ain-da pelo mais largo contexto dos fatos e das doutrinas das demais Escri-turas da revelação divina.

«Antes de mim». Ante à dificuldade de interpretar a Escritura, mui-tos perguntam se a preposição grega não significa posição em lugar de tempo. Pode ser. Assim seria ladrão e salteador aquêle que se pusesse em frente de Cristo, lhe roubasse a primazia e autoridade no seu rebanho. Mas não é a idéia aqui. E' o caso de dizer que isso seria verdade se fosse fato, mas não é fato ; a mesma verdade se impõe noutros fatos, os do tex-to e contexto no seu sentido real. «Antes» significa tempo, sim. Jesus achou o templo, as sinagogas, a vida nacional de Israel, a interpretação bíblica e até messiânica, a superstição e idolatria do sábado, e a comer-cialização do regime sacrificial inteiramente ocupados por «ladrões e sal-teadores». Entrincheirados no privilégio fortificado pelo apoio do Estado, êles reconheceram em Jesus um perigo para sua posição e sairam pelas estradas da Palestina para atacá-lo quais bandidos. Eram antes dêle, no tempo, e por ser encanecido o sistema de tirania e de traições em que se estribavam, Jesus era tido como autor de novidades revolucionárias e no-civas, digno de morte. O evangelho sempre encontra oposição na tirania antiga, de poder indisputado até que o Cristo e sua verdade apareceram. Para os que estão entrincheirados nos erros da «religião de seus pais», êstes estão sempre «antes» da inovação da verdade, de Cristo, da Palavra de Deus. E' sua defesa e sua arma ofensiva contra o eterno Verbo e sua eterna verdade.

«Ladrão e salteador». «Portanto, todos que alegam ser vossos pasto-res messiânicos que não passaram pela Porta, que sou eu, são ladrões e salteadores. E êsse fato foi estabelecido pelo fato adicional de que as ove-lhas não deram ouvido aos tais. Eu sou a Porta, não só para os pastores

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como também para as ovelhas. Eu sou a Porta para os pastores porque sou a Porta para as ovelhas.» (24)

«Ladrões e salteadores». Vede a nota sôbre v. 1. Judas era ladrão; agia secreta e escondidamente, 12:6; 13:29. Barrabás era salteador, bandido, insurreto. Esses exploradores eram ladrões e salteadores. Os, vendilhões no templo eram salteadores com a extorsão dos cambistas e os preços exorbitantes cobrados pelos animais de sacrifício. Eram quais salteadores que de repente pulam na estrada diante do viajante e exigem a bolsa ou a vida.

Livremo-nos da idéia de que todos os adeptos de qualquer religião são igualmente bons e que não se deve dizer mal de nenhum deles. Jesus é nosso exemplo e ele classifica como ladrão traiçoeiro e salteador peri-goso todos que procuram alcançar a salvação e as bênçãos do reino de Deus subindo por outro caminho e não pelo Caminho, que é Jesus Cris-to mesmo. Tanta condescendência com falsos líderes religiosos é COMO,

se os bancos deixassem seus cofres abertos dia e noite sem guarda. A fa-cilidade com que gente boa se deixa explorar e roubar por qualquer líder religioso que tenha voz solene e ares piedosos e algumas chapas de vo-cabulário santo, é uma das coisas mais tristes e lamentáveis da nossa fra-queza da raça humana decaída. Era uma casta bem numerosa, rica, ti-rânica, imoralíssima, hipócrita, vilmente exploradora, esse covil de ladrões e salteadores que impedia o povo de seguir a Jesus como ovelhas do Bom Pastor. E essa exploração lucrativa e vantajosa ainda se efetua de mil maneiras, e tem muitos interesseiros que sabem utilizá-la como bom meio de vida.

O supremo êrro é seguir aos que são simpáticos. Naturalmente, o explorador é simpático. E' seu meio de vida. Mas Jesus não disse que seria simpático o líder digno de confiança. Sua prova é sempre a mes-ma: pelos frutos os conhecereis: Não olheis para a cara. Examinai a história do líder ; verificai onde já trabalhou. O que fêz ali, fará aqui. Se deflorou donzelas ali, fará o mesmo na tua casa com tuas filhas. Se tomou empréstimos ali e desapareceu, vai desaparecer com teu dinheiro também. Cuidado com os estranhos. Há ladrões profissionais que passam de uma igreja evangélica a outra, tirando coletas gordas para orfanatos, caridade, para empresas evangélicas que não existem, nem nunca existi-ram. Há evangelistas que ludibriam os incautos, enchem as igrejas de filhos do Diabo sem regeneração, e passam adiante para outras ricas co-lheitas. O covil de ladrões nas coisas sagradas está longe de ter sido ex-tinto. E há denominações religiosas inteiras de ladrões e salteadores. Roubam ovelhas com os métodos de um Lampião. Jesus disse essas pa-lavras para acautelar-nos dos estranhos e o apóstolo João nos preveniu

(24) "The International Criticai Commentary" sôbre êste Evangelho, Vol. II, p. 346, por J. H. Bernard.

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que há muitos anti-Cristos, muitos exploradores, e nos preservou a pará-bola de Cristo para nosso aviso. Só Jesus e os pastôres leais e desinte-ressados, que guiam o povo para seguir a Jesus, têm direito a qualquer liderança oficial das ovelhas de Cristo. E' da natureza da ovelha seguir a seu pastor e recusar-se a ouvir estranhos. Fora dêsses pastôres que seguem o supremo Pastor e Bispo de nossas almas, os líderes por outros caminhos são ladrões e salteadores. Tomam ovelhas que não são deles, mas de Cristo, e as constituem em rebanhos para seu proveito inte-resseiro. Sejam escribas, fariseus, saduceus, judaizantes, gnósticos, ni-colaitanos, clero romano, mestres de falsa doutrina protestante, dema-gogos batistas, semeadores de confusão pentecostal e outros de seitas anti-sectárias — tudo e todos que desviam as ovelhas de seguirem a Cristo nos rebanhos e debaixo dos pastôres da sua chamada são ladrões e salteadores, mercenários, lôbos. A parábola nos previne contra um perigo real e multissecular.

«Ladrões e salteadores». De certo, não ao pé da letra. Se nós fôsse-mos hóspedes nos lares desses homens, os teríamos por cavalheiros sim-páticos, corteses, amáveis, sinceramente zelosos do bem-estar público. Eram supremamente religiosos, cultos e práticos, a elite e os intelectuais da nação.

Como entender que êles tanto odiassem a Jesus ? Como entender que Jesus igualmente os hostilizava a cada passo e os denunciava pübli-camente como «ladrões e salteadores» e como «hipócritas» no terrível discurso de Mat. 23 ? Uma coisa é clara. «O Nazareno» não é muito «meigo» na sua atitude a respeito deles .

Ninguém entende Jesus por um instante sem avaliar que a sua su-prema realidade e seu máximo prazer é Deus, a verdade que Deus re-velou, a vontade de Deus posta em prática — «seu manjar e sua bebi-da». Por este critério êle julga os homens. Se são contrários, são maus. Nesse terreno absolutamente nada valem a cultura, a religião cerimonial, a posição, as relações privilegiadas com a hierarquia ou com o Estado. E' o indivíduo e Deus que Jesus contempla. Se êle tiver afinidade com Deus (o Pai) terá afinidade com Deus o Filho, e virá para «a Luz». Se foge da Luz, é porque ama as trevas e é trevas em essência, trevas per-pers onificada s .

O absoluto de Jesus é Deus, «o Deus vivo e verdadeiro», seu Pai. O absoluto dessa aristocracia teocrática era «a Lei». Eles ensinavam que Deus no céu passava muito tempo a estudar «a Lei». O inferior estudar o superior, quem não sabe, busca a fonte de saber. Deus, pois, era para eles como o inventor de uma máquina ou o descobridor de um mais pode-roso do que êle mesmo. Essas idéias se chocam e inevitavelmente se im-possibilitam, uma à outra. Daí a intransigência. Jesus não iria limitar a liberdade civil do credo falso, da religião oca e morta de legalismo ce-rimonial e racista. Mas em sua alma e para seus discípulos, na base de

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voluntariedade, êle o repudiava total e austeramente. E' a negação de seu espírito, negava-o a cada passo.

Mas ainda perguntará algum cético platônico, para quem não existe verdade e tudo é relativo e todos os absolutos são anátema: «Por que o Nazareno se exaltava e dizia nomes duros contra seus semelhantes ? Por que não buscava a união, a solidariedade religiosa, a paz ? Por que não fazer com os outros homens de Deus uma Frente Unida contra o ódio, a guerra, o materialismo, o secularismo que grassam tanto no mundo e são o inimigo comum da humanidade? Por que tanta severidade contra os outros servos do mesmo Deus e até da mesma grei ?» Procuram dar uma resposta que conserve sua ficção do «Meigo, sempre Meigo Naza-reno». E por isso negam a historicidade dos discursos do Quarto Evan-gelho. Mas encontram nos Sinóticos a mesma luta e linguagem mais ex-tensa, mais variada e mais forte. (Vede Mat . XXIII) . Portanto aca-bam repudiando tendenciosamente toda a história de Jesus e ficam sem saber se êle existiu ou se é um mito benéfico, útil apenas para populari-zar certa propaganda benfazeja.

O assunto é o Bom Pastor. E nunca entendemos uma só cena da vida de Jesus nem ensino algum que saiu de sua bôca sem olhá-lo pelo prisma pastoral. Ele é sempre Pastor. Ama as ovelhas. Vive para as ovelhas desgarradas que busca e congrega na sua camaradagem. Ofere-ce sua vida pelas ovelhas, alimenta-as, guia, apascenta, pastoreia. Nesse quadro o religioso que seja antagônico a Jesus fatalmente cai na categoria de ladrão e salteador. Também busca tomar as ovelhas para si. A rea-lidade redentora que Jesus visa em prol das ovelhas é a razão de ser do seu rebanho. A exploração das mesmas em benefício do monopólio hierárquico de «um só aprisco» é o móvel dos que resistem à soberania pastoral de Jesus na vida das ovelhas. Se de fato Jesus Cristo tem direito, soberania e valor eterno e absoluto na vida dos crentes, êsses outros que ambicionam o domínio da grei só podem ser classificados de «ladrões e salteadores». Roubam e assenhoreiam para seu monopólio interesseiro a grei que não compraram com seu sangue e em cuja vida não têm nem autoridade nem valor. Não há espírito pastoral que não tenha êsse for-te instinto de preservar as ovelhas. Para o pastor, o rival de Cristo é moralmente ladrão e salteador.

Correlativo a êsse zêlo pastoral é o treinamento das ovelhas para não seguir a voz do estranho. Ninguém pense que a ovelha oriental ti-vesse por índole essa capacidade de reconhecer a voz do Bom Pastor e re-pudiar a voz do estranho que quisesse mandar na sua vida . Essa capa-cidade é parte da educação da ovelha pelo Pastor. E' a proteção que o Pastor outorga à ovelha quando lhe ensina essa submissão única e total a Jesus. A entronização de Jesus é o repúdio dos demais pretendentes ao trono. Jesus via nos líderes de Israel tais pretendentes rivais. Por amor às ovelhas que necessitavam a salvação da parte dêle, êle se separou dos

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rivais e pôs um abismo entre os «ladrões e salteadores» e o Pastor com seus rebanhos.

«Ladrões e salteadores». «Seria exposição temerária aplicar êstes termos aos profetas. E' fácil ver que se trata dos falsos Messias ou líde-res dos fariseus.» (Gerhardus Vos, em ensino oral sôbre Teologia Bíbli-ca, no Seminário de Princeton) .

9. «A porta». «Pode se chamar a isso de intolerância estreita, se quiser, mas é a estreiteza da verdade. Se Jesus é o Filho de Deus, en-viado à terra para nossa salvação, ele é o único caminho. Isso ele já declarou em 5:23. Vai dizê-lo de modo mais cortante em 14:6. Não agrada ao paladar dos mestres dogmáticos religiosos que estão diante de sua face no momento, como não agrada aos mestres dogmáticos liberais hoje em dia. Jesus oferece a porta aberta a qualquer um que tiver von-tade de praticar a vontade de Deus (7:17) . Será salvo. A ovelha que entra no aprisco tendo a Jesus como porta estará segura contra ladrões e salteadores. Terá entrada e saída e se achará em casa, quanto à rotina do rebanho protegido; achará pasto representa a alegria da ovelha no pasto provido pelo pastor.» (25)

«As ovelhas não os ouviram.» E' o resumo da história dos séculos. As portas do inferno não prevalecem, a despeito de seus simpáticos repre-sentantes. Vêde a minoria de Deus, de geração em geração, e vereis a continuidade do reino, a despeito da incredulidade da massa humana de-caída, e a despeito do sempre numeroso contingente dos que seguiam a Jesus por causa dos pães e peixes, mas abandonaram o Autor da «dou-trina dura». Êste fato, que Jesus testifica, é a única consolação para seus ministros fiéis. As ovelhas ficam. Jesus nunca perdeu nenhuma.

9. «Entrará.» Êste verbo se usa em 3:5 a respeito da entrada no reino pelo novo nascimento mediante a fé. Em 4:38, se emprega acerca da continuidade dos labôres de obreiros sucessivos, e nos vs. 1 e 2 acerca dos obreiros falsos que preferem dispensar Jesus que é a porta e galgar acesso às ovelhas pela sua própria ginástica, saltando o muro e tomando posse do rebanho sem consultar a vontade do seu Dono e Pastor. Todas são passagens instrutivas, se bem que com sentidos diferentes do uso metafórico da palavra «entrar». Sôbre essa variação dos sentidos figura-dos de uma palavra, vede as notas sôbre 4:32.

«Será salvo.» Vêde as notas sôbre 4:42 — Jesus, desde o princípio do seu ministério é chamado o «Salvador do mundo». Notai a discussão também de 5:34 e 12:47.

«Por mim». Tudo se promete, Jesus é o canal da sua própria graça, em todo o curso de suas bênçãos, o entrar, o sair, o achar pasto, o ser salvo. Não é o evangelho a noção dos que pregam que Jesus fez lá em época remota, algo essencial perante Deus, mas agora nós fazemos por

(25) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 177, por A. T. Robertson.

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sacramentos, boas obras, igreja e clero o essencial da vida. A vida e sua abundância, a vida diária e a vida eterna, o afã de cada dia, a religião quotidiana e sua manutenção e crescimento, tudo vem diretamente de Jesus ao crente e vem Unicamente por Jesus.

10. «Furtar, matar e destruir». «Durante a Idade das Trevas que precedeu a Reforma, era costume em nosso próprio país, (a Inglaterra) que o padre, na ocasião da morte de um camponês, visitasse os enluta-dos; mas não com o intuito de confortar a viúva e os órfãos, senão para tomar posse do cors-presant' — isto é, a melhor vaca, o cobertor da cama e a capa do defunto. Não há prova de que a capacidade dos escribas e fa-riseus chegasse a tal grau, mas se mostrava bastante monstruosa. O gol-pe do fariseu te tocou, disse o Rabi Eleazar à viúva a quem o Rabi Sa-batai roubara tudo. Semelhante iniqüidade despertou a indiginação do Senhor e êle marcou êsses pastores infiéis como mercenários que não se importavam com as ovelhas, antes eram ladrões que entravam somente para roubar e matar e destruir.» (26)

«Vida». Para definições científicas da vida, vede as notas sôbre 5:40. O tempo presente dá a idéia aqui: «perene».

«Vida abundante». Alguém analisou assim a vida abundante que Cristo veio para dar: esfera maior; menor cuidado nas coisas; mais fôrça de vontade ; energia em grau crescente ; nossos poderes desenvolvidos pelo exercício; gôzo que transborda ; delicadeza de sentimento; sua su-premacia não vencida ou neutralizada por circunstâncias. Rom. XII; I Cor. XIII, ou Gál. 5:22 talvez sejam análises mais completas, salientando atitudes e virtudes mais em evidência na vida eterna em abundância de vigor espiritual.

«Vida abundante». Não faltam em nossos dias líderes materialistas no cristianismo nominal que só enxergam esta vida e definem «vida abundante» em têrmos de casas, emprêgo, seguros de saúde e velhice, tudo para esta vida fugaz, nada em relação a Deus, Cristo e à eternidade. E querem citar esta frase de Jesus em abono de suas ideologias materia-listas e suas utopias econômicas. Nada mais falso e desleal a Jesus Cris-to já se viu, nem maior exploração. A vida abundante é dada por Jesus no íntimo, não pelo Estado numa Nova Ordem.

11. «O bom Pastor». «Alguém sugere que devemos associar o Bom pastor com sua morte (João 10:11) e o Salmo 22; o Grande Pastor com a ressurreição (Heb. 13:20) e o Salmo 23; e o Sumo Pastor com a glória (I Ped., 5:4) e o Salmo 24.» (27)

«Sua vida em lugar das ovelhas». O grande gramático e expositor; o Dr. A. T. Robertson, salienta que a preposição é a que se emprega normalmente em grego para afirmar a substituição. O Salvador é sa-

(26) "In the Days of His Flesh", p. 414, por David Smith (27) "The Teacher", de fev. de 1943.

C. E. J. — 22

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crifício «vicário», substitutivo — o pastor dando sua vida em substi-tuição da vida da ovelha que o lôbo procurava. Morre o Pastor: vive a ovelha em virtude dessa morte. «Esse Pastor dá sua vida pelo pecado do mundo, (1:29; I João 2:2).» (28)

12. «O mercenário». Pode ser um pastor, nominalmente, do re-banho, que serve somente em consideração do dinheiro que ganha, peca-do contra o qual Pedro admoestou (I Ped. 5:2) . O mercenário, covar-de que é, não se importa com a sorte das ovelhas; cuida Unicamente da própria pele.» (29) Não é mercenário todo aquêle que recebe ordenado pelo cuidado do rebanho. E' preciso deixar tudo, para ser pastor ge-nuíno, Mat. 19:27, 29; Mar. 1:20. Ninguém é pecador, empregado pú-blico (Mateus), médico, advogado ou carpinteiro (Jesus) e ao mesmo tem-po genuíno pastor. Cristo chama, e os chamados deixam tudo para serem pastôres. A ordem do Senhor é que tenham «comida» e «salário» (Mat. 10:10; Luc. 10:7) em compensação de seus esforços. São «trabalhadores» (Mat. 9:38) . Devem ser pagos. Devem «viver do Evangelho» I Cor. 9:14. «Quem pastoreia um rebanho e não come do leite do rebanho?» I Cor. 9:7. «Aquele que é ensinado na Palavra faça participante em todas as coisas boas àquele que o ensina», Gál. 6:6. Essas Escrituras não per-mitem a alma avara, mesquinha e antipastoral abusar dessa parábola para fazer propaganda interesseira contra o sustento que êle e os demais cren-tes devem aos pastôres que lhes ensinam e guiam. A palavra mercenário não descreve tais homens, mas sim o interesseiro fugaz que não se iden-tifica com o rebanho, tanto nos perigos como na prosperidade.

«Espalha». O pastor tem por missão evitar tanto o estrago do reba-nho pelo lôbo, no que êle fere e devora, como também a dispersão das de-mais ovelhas. Todo aquêle que divide e dispersa um rebanho de Cristo é inimigo do bem. (Vêde o que Jesus diz em Luc. 11:23.) A ovelha é o ani-mal mais incapaz de andar sozinho com segurança. Não é sagaz nem forte, na defesa própria. Por isso Cristo lhe é Pastor e lhe ordena pastores. Ele viu as multidões e tinha compaixão delas porque andavam desgarradas como ovelhas sem pastor. Mat. 9:36; Mar. 6:34. Qual o remédio para as ovelhas sem pastor? E' que tenham pastôres, um pastor para cada reba-nho local, todos subordinados ao grande Pastor, Jesus Cristo. Uma ove-lha desgarrada do rebanho está em mil perigos e fica inútil. A tarefa do pastor é evitar que o lôbo (o inimigo) disperse as ovelhas. Que fiquem unidas no seu rebanho. Há quase tanto estrago das igrejas por espalhar suas energias e seus membros como pelo que o lôbo arrebata de vez.

13. «Mercenário». Judas era um. São elementos associados com Je-sus, e dentro da grei, não Mos — inimigos declarados e ferozes, do lado de fora. Não vem ao caso que Jesus aqui exponha a doutrina do pastora-

(28) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 178, por A. T. Robertson. (29) "Word. Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 179, por A. T. Robertson.

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do das suas igrejas, mas esta parábola já pressupõe pastôres verdadeiros, ao denunciar os falsos e interesseiros.

14. «O Bom Pastor». O veterano comentador das lições da Escola Dominical, o Dr. Hight C. Moore, enumera (30) dez alvos e empreendi-mentos e triunfos do Bom Pastor no cuidado pelas suas ovelhas, definidos nesta grande figura pastoral: (1) Conhece-as. São queridas. Ocupam a atenção da sua mente e são o alvo de sua missão aos homens. E é um co-nhecimento mútuo. (2) Misericórdia. Do mútuo conhecimento do Pai e do Filho procedem o conselho e plano para a redenção humana. (3) Reden-ção. Quatro vezes êle afirma que dá sua vida pelas ovelhas, envolvendo a morte sacrificial dêle e a participação delas na vida que êle oferece. (4) Segurança. Vida eterna significa segurança agora e eternamente . (5) Direção. Guia pela sua Palavra, seu exemplo, seu Espírito, sua provi-dência, todo dia e todo o caminho. (6) Nutrição. Cuida o Pastor de suster o rebanho. (7) Serviço. As ovelhas seguem, obedecem sua voz. (8) Co-munhão universal. Um rebanho de judeus e gentios, no programa dos sé-culos, a comunhão dos santos no seu reino. (9) Missões. Jesus trará essas ovelhas que faltam. (10) Unidade para sempre. Um Pastor e um rebanho é a realidade agora da comunhão espiritual do povo de Deus e será per-feita, visível, celestial, na sua consumação eterna.

15. «Assim como». «A relação do Filho para com o Pai é a norma da relação para com Cristo, daqueles que são de Cristo.» (31)

15. «Ponho minha alma (vida) no altar como sacrifício em lugar das ovelhas.» E' terminologia dos sacrifícios. A morte de Jesus é o ofe-recimento de sua vida em sacrifício. O vivaz tempo presente do verbo torna o Calvário atual para o Messias durante todo o seu ministério.

16. «Aprisco». Significa nação, não igreja. Os futuros crentes contemplados não pertencem à teocracia judaica. São gentios, gente de outro redil nacional, o Império Romano. Serão o ramo do zambujeiro, en-xertado na oliveira de Israel, Rom. 11:20, 24. Não são do «curral» da raça de Israel mas de todas as raças e tribos e nações. O Cristo ressusci-tado os trará para si, começando com Cornélio, capitão italiano, Atos X, e indo, por seu povo missionário, até aos confins do mundo, até toda cria-tura. E' profecia do êxito das missões. Tais «ovelhas» atualmente esta-vam na incredulidade, a vasta maioria ainda não havia nascido. Eram, porém, «ovelhas» de Jesus, não salvas ainda, mas destinadas a ser salvas, «a eleição da graça». A eleição «o conseguiu», Rom. 11:5-7. Jesus as sal-vará e as trará ao seu rebanho espiritual, à comunhão da fé, à grei dos re-dimidos, ao corpo místico do seu povo crente, à Igreja Geral, onde não há nem judeu nem grego mas um só homem novo em Cristo.

Os franciscanos enxergam isto. Na sua Versão anotada do Novo Tes-

(se) "The Teacher", de fev. de 1943. (31) "Some Lessons of the Revised New Testament", p. 138, por B, F. Westcott.

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tamento, dizem: «Sendo êle o único verdadeiro Pastor, fará desaparecer o muro de separação entre os dois povos hebreu e gentio, e constituirá um só rebanho, uma só Igreja.» Duvido que os franciscanos entendam pata-vina do que seja esta «uma só. Igreja». Não é uma grei eclesiástida, nem organização alguma. Não é a notória meretriz medieval que vivia, e vive, em concubinato com tantos Césares e deles dá à luz filhos de escravidão, na união ilícita de Estado e Falsa Igreja. Nada disto é «um só rebanho». Mas todos os salvos entram neste rebanho, e Jesus é seu Pastor.

Reafirmamos que, para este rebanho único, Jesus é o Pastor único. O romanismo dá grande ênfase a êsse «um só redil», que é frase de sua in-venção. Mas não quer de forma alguma admitir a posição e autoridade de «um só Pastor» neste rebanho espiritual. A Versão Franciscana com no-tas, Vol. I, p. 367, diz: «o pastor (escrevem pastor com minúscula várias vêzes na discussão e Igreja sempre com maiúscula, mostrando a exagerada opinião do valor da Igreja e o pouco respeito que sente por Jesus. W . C . T . ) significa ao mesmo tempo Jesus Cristo, e todos os verdadeiros dou-tores.» A seguir, na mesma página, diz que todos os pastôres e doutores, «os simples fiéis», todos os pais e superiores são pastôres de outrem e «em todo o caso, cada um é pastor de sua alma, subordinadamente aos que o são por ofício eclesiástico ou dever social» (Allioli). Assim pela «in-terpretação», chegam os veneráveis monjes a afirmar o que Jesus nunca afirmou — um único aprisco. E, no mesmo fôlego, atribuem seu peculiar e único pastorado a cada padre, cada «doutor», cada pai de família, e, ao zênite, «cada um é pastor de sua alma.» E' exemplo nítido de como Roma traduz parte da Bíblia falsamente, e depois deturpa o que da verda-de não suprimiu. Vêde o estudo especial suplementar sôbre o «Remova-mos a caiação católica do Quarto Evangelho.»

Não permitamos que esta violência franciscana contra o texto desvie nossa atenção devocional de seu ensino. Este ensino é que Jesus tem uma soberania absoluta e única na vida cristã; que nossas relações com êle nr, comunhão espiritual de sua gente são imediatas, íntimas e independentes de terceiros, sejam quais fôrem êsses terceiros: que êle nos conhece pelo nome, nos chama pela graça, nos salva e nos guia eternamente; que êle é tudo nesta esfera — porta, pastor, pastagem, sacrifício, disciplinador, pro-vidência, segurança, vida eterna. A doutrina de eleição é ensinada, e a li-vre escolha também da ovelha, que ouve diretamente a Jesus e o segue por sua espontânea vontade. Esta Escritura ensina uma Igreja espiritual, unida em eterna comunhão com Jesus, destinada a ser arrebanhada, con-gregada, na glória um dia, como é em figura, agora na graça. Ensina o Pastorado Único de Jesus para o indivíduo que êle salva e para tôda a grei dos salvos. Outras Escrituras, nas Epístolas, em Mat. 18:17 e nos Atos e no Apocalipse, ensinam que as muitas igrejas são organizações bíblicas e têm seus muitos pastôres num cristianismo bíblico. Mas essas Escrituras não são esta. A cada qual sua respectiva doutrina, sem nenhuma confu-

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são. A Igreja Geral não é a soma das igrejas, mas sim das ovelhas. E nenhum homem é Pastor universal. Só Jesus. Há muitos pastô-

res iguais em igrejas autônomas. Não estão no horizonte desta parábola, porém, nem tais igrejas nem tais pastôres senão indiretamente. Não os confundamos com Jesus, «Pastor e Bispo de vossas almas», mantendo di-reta relação com cada alma que salva.

Outras «ovelhas». Em Isaías 56:8 lemos a profecia: «O Senhor Jeová que congrega os dispersos de Israel diz: Ainda outros congregarei a êle, além dos que se acham congregados.» Os versículos anteriores do mesmo capítulo previam um dia em que eunucos (aos quais não era permitido ter lugar no culto judaico) e estrangeiros (limitados à côrte dos gentios) te-riam pleno lugar na Casa do Senhor. A profecia trata claramente de um regime de graça e não de um rigor levítico. Os verbos tanto em 10:16 como em 11:52 lembram a idéia de sinagoga — como se fôsse «sinagogar». E' a obra gregária do Messias. Que desastre foi que Jerônimo perdesse de vista essa influência messiânica gregária, unindo as ovelhas ao Pas-tor num rebanho. Ele aniquilou a distinção existente nas versões latinas anteriores e fez ovile (redil, aprisco) e grex (rebanho) confundíveis e de fato miseravelmente confundidos para o catolicismo subseqüente que vive ela Vulgata, mesmo nas suas freqüentes divergências da Palavra original de Deus.

«Outras ovelhas». «Na ocasião do advento de Cristo êle tinha outras ovelhas que não eram do aprisco judaico. Eram os filhos de Deus que es-tavam dispersos (11:52) ; alguns se entregaram à direção da luz divina que lhes fôra concedida e estavam ansiosos por lhe dar boas vindas (3: 20, 21) ; eram cidadãos do reino da verdade que aguardavam seu rei (18: 37).» (32 )

«Eu devo trazer de vez.» Esta «vez» é tecla a era evangélica como a «hora» de 5:25 são todos os séculos, desde a encarnação até a segunda vinda de Jesus. Está muito de acôrdo com o espírito desta parábola ver tudo pelo prisma de eternidade, e ver a consumação das missões como um ponto.

«Um rebanho». O grande pregador, Spurgeon, diz, em oposição à falsa tradução, um só aprisco: «Querem que tenhamos a Igreja Romana e a Igreja Grega e a Igreja Anglicana teclas fundidas em uma. E se fôssem assim fundidas o resultado não valeria meia pataca. Antes muitos males resultariam disso. Logo viria sobre nós uma Idade de Trevas pior e um pior paganismo do que nunca. Há uma só igreja espiritual de Deus e nunca houve duas.» (33) Esta igreja espiritual não é organização ecle. siástica; nem é composta das igrejas organizadas, nem as substitui nem as visa contrariar, destruir ou enfraquecer. Mas o Novo Testamento ensina,

(32) "The Gospel According to St. John", Vol. II, p. cxxx, por B. F. Westcott. (33) "The Treasury of the New Testament", Vol. II, p. 443, por C. H. Spurgeon

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342 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

autoriza e obriga, no cristianismo apostólico, tanto o dever de haver mui-tos rebanhos como o dever de haver muitos pastôres. Esses rebanhos são igrejas bíblicas e seus pastôres são o ministério bíblico, chamados pastô-res-presbíteros-bispos. O cristianismo organizado foi sempre uma plura-lidade de rebanhos e pastôres imitando cada um o Supremo Pastor e Bis-po de nossas almas, Efés. 4:11. Note-se bem — «pastores», a plurali-dade. Cada igreja é «rebanho». Corinto era (I Cor. 9:7). Éfeso era (Atos 20:28) . Um rebanho e um Pastor, sem os muitos rebanhos e os muitos pastôres, não é cristianismo apostólico; nem os rebanhos e os pastôres, sem o Supremo Pastor e o Rebanho de tôdas as ovelhas, constituem o cris-tianismo genuíno. Ambos, a norma geral e espiritual, e a norma local e organizada, eis a norma real dum cristianismo apostólico. Quem afirma haver uma só igreja organizada, ou que Deus quer só uma, está dizendo uma das mais nocivas mentiras que lábios humanos podem proferir. O próprio Novo Testamento, em grande parte, foi enviado a muitas igrejas. E, na sua última página, João escreve «igrejas», pela inspiração do Es-pírito.

«Um rebanho, um Pastor». «O inteiro caráter da promessa do Senhor se tem obscurecido em virtude da infeliz tradução de duas palavras per-feitamente distintas pelo mesmo vocábulo, aprisco. A tradução falsa vem da Vulgata Latina... A Antiga Latina, como as demais versões primitivas, notou a diferença, que é nitidamente clara no original gre-go; e seria difícil exagerar a influência maligna que a confusão entre «rebanho» e «aprisco» tem causado à teologia popular. Em outro lugar a magna lição da unidade incorporada da Igreja é ensinada, mas aqui o pensamento se refere à fonte da unidade em relação pessoal com Cris-to.» (34)

«Rebanho». <acrônimo, em sua Vulgata, confundiu essa distinção (entre rebanho e aprisco), mas êle está errado. Seu uso de ovile para traduzir o grego aule e poimnion auxiliou as noções católicas romanas O uso de rebanho aqui é apenas outra metáfora do reino, em Mat. 8:11, no qual os filhos do reino entram de todos os climas e tôdas as nações. Vêde também as várias metáforas de Efés. II sôbre essa mesma idéia. Há sOmente um grande Pastor das ovelhas (Heb. 13:20), Jesus Cristo, nosso Senhor.» (35)

«Um rebanho». «Não há aprisco suficientemente grande para êste rebanho. Nem a nação judaica de então, nem qualquer organização terres-tre agora, por maior e mais venerável que seja, pode abranger todos os

(34) "Some Lessons of the Revised New Testament", p. 130, por B. F. Westcott. (35) "Word Pictures in the New Testament", p. 182, por A. T. Robertson. (36) "Church, Ministry and Sacraments in the New Testament", p. 106, por W. T

Whitley.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 343

crentes verdadeiros ou excluir todos os crentes hipócritas... outros há, não desses apriscos, que Cristo reunirá a seu único rebanho.» (36)

«Um rebanho, um Pastor». Sôbre o efeito paralizador do nacionalis-mo (que quer uma só «Igreja» numa nação), vede as notas sôbre 4:12. E na discussão de 4:38, já temos comentado algo da teologia pastoral de Jesus.

17. «O Pai me ama.» «O amor de Jesus, no sacrifício de si mesmo em prol da humanidade, evoca o amor do Pai para com o Filho. O amor desperta o amor.» (37)

«Ninguém tirou-a de mim.» Sub specie aeternitatis. A morte de Jesus está acima do tempo. E' uma realidade desde a fundação do mundo. Em qualquer época da história do universo é um ato consumado. E «ninguém tirou» a vida do Filho de Deus. Ele a pôs eternamente no altar do sacrifí-cio pelo pecado, oferecendo-se livremente. Não é mártir. A redenção que nos outorgou é também superior às considerações do tempo. E' um ato consumado. «E' vida eterna», «redenção eterna», «salvação eterna». E Paulo pode dizer em triunfo: «Aos que justificou, a êstes também glo-rificou» (Rom. 8:30) . E' pena que nossas versões tenham suprimido o aoristo da tradução aqui. E a ressurreição está tão evidente e eterna, para Jesus, ao contemplar sua missão de Bom Pastor, como sua morte. Que valeria um Pastor defunto?

18. «Autoridade para a oferecer». J. E. M. Ross nos adverte acêrca da nova concessão de poder que vemos aqui. Não é poder para ven-cer, dominar, gozar o triunfo político, comercial ou aristocrático, mas poder de sacrifício próprio, de servir a outros, dando-se a si mesmo em prol dêles, eis o novo poder que Jesus mostrou e possibilita.

«Eu de mim mesmo a dou.» "O Homem Cristo Jesus foi, de todos os sêres criados — até onde nos é conhecida sua história —, o único que escolheu seu próprio destino, que o previu e aceitou-o juntamente com todas as demais condições; que viu uma grande necessidade e a ela correspondeu, dizendo: Eis que eu venho. Assim diz Dora Green-well. Uma dama francêsa exclamou: 'Minha permissão não foi pedida antes da minha vinda ao mundo.' A permissão de Jesus foi pedida e con-cedida. Seu cumprimento da vontade do Pai foi voluntário. Ele não era o prêso dos poderosos, a vítima de intrigas ou circunstâncias. Eis um que, sendo livre, se ofereceu.» (38)

«Ninguém tirou-a de mim.» Jesus não está sob nenhuma compul-são, nem mesmo do Pai. E' comum nas Escrituras falar de coisas futu-ras como já passadas. Assim Jesus viu Satã cair do céu, Luc. 10:18. Assim, «aos que justificou, a êstes também glorificou», Rom. 8:39.

«Autoridade». Nenhum de nós tem autoridade para deixar esta vida.

(37) "The International Critical Commentary", sebre este Evangelho, Vol. II, pág. 364, (38) "The Tree of Healing", p. 114, de J. E M. Ross.

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344 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

Isso é suicídio. Não nos é lícito. Jesus teve autoridade para dar sua vida humana em sacrifício expiador do pecado do mundo, e teve auto-ridade para reassumí-la na ressurreição. Jesus não foi mártir. Sua ida a Jerusalém teria sido virtualmente um suicídio se êle não tivesse auto-ridade para ir, e dar a vida em sacrifício substitutivo no Calvário, mor-rendo voluntàriamente e ressuscitando voluntàriamente no terceiro dia. Os eventos da semana do Calvário obedecem ao plano eterno da re-denção, e Jesus tem autorização para dar a vida. Pode reassumí-la vo-luntàriamente como voluntàriamente a ofereceu em holocausto remidor. Notai a associação de «autoridade» e «mandamento». E' assim na «Gran-de Comissão».

19. "Dissenção entre os judeus». O Dr. A. T. Robertson pensa que é um caso da divergência entre as escolas liberal e conservadora, dos fa-riseus. (39) Vêde a discussão de «cisma» em 7:43 e 9:16.

«Cisma outra vez». Jesus une e Jesus divide. Une as ovelhas e as separa e guarda dos lôbos e mesmo dos cabritos. Ele separa o trigo da palha, o joio da semente boa, os maus e os bons peixes que a rêde apa-nha, os crentes dos incrédulos hipócritas, ladrões, mercenários, lôbos. Veio para dividir, veio para unir. O próprio plano de Cristo para unir é um plano de separar e dividir. Ele traz espada. Separa famílias. Une os seus, cerca-os com as paredes dos apriscos, serve-lhes de porta e os conduz separados para os pastos e de volta para o descanso. São tare-fas do Bom Pastor. E tomar Jesus como Salvador, Senhor, Sacerdote e Pastor causará cisma em tôda parte.

20. «Tem demônio e perdeu o juízo.» Notai a conexão. Ser ende-moninhado geralmente tem relação com o desequilíbrio mental. Maria Madalena, por ter sete demônios, não era por isso meretriz.

21. «Não é possível.» O negativo grego está na primeira palavra da sentença. Indica essa resposta, sem dizê-la. Há quem defende a Je-sus. Um dos primeiros hinos cristãos teve como uma das linhas do coro: «Crido no mundo».

(39) "The Pharisees anel Jesus", p. 30.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO

345

Jesus Quase Apedrejado Como Blasfemo

(Capítulo X, versículos 22 a 39)

22 - 23 Naquele tempo realizou-se em Jerusalém a Festa da Dedicação. 1 Era

24 inverno; e Jesus passeava no templo no pórtico de Salomão. I Os judeus, pois, o cercaram e lhe diziam: "Até quando nos tiras o ânimo? Se tu és o Cristo, dize-nos de vez, com

25 para a Franqueza franqueza." Jesus tornou-lhes: "Já vos disse, e todavia não sois crentes: us obras que eu faço con-

tinuamente em nome do meu Pai, estas dão constante testemunho a meu res-

26 peito. 1 Vós, porém, não sois crentes, porque não sois do número das mi-

27 nhas ovelhas. 1 As minhas ovelhas ouvem a minha voz, e eu as conheço

23 e elas me seguem, 1 e eu lhes dou a vida eterna As Marcas das e nunca jamais hão de perecer, e não haverá nin- Ovelhas do Bom guém que as tire da minha mão como presa sua.

29 Pastor ) Aquilo que meu Pai me deu como dom perma- nente é maior do que todos, e ninguém pode rou-

30 - 31 bá-las da mão do Pai. 1 Eu e o Pai somos um só ser." 1 Os judeus carre-

32 garam pedras novamente para o apedrejar. 1 Jesus lhes replicou: "Mui- tas obras boas vos mostrei da parte do Pai: delas que sorte de obra é por cuja causa estais para me ape-

33 drejar?" 1 Os judeus lhe responderam: "Nós não vamos apedrejar-te por causa de nenhuma obra boa, razão é que tu, sendo homem, continuamente te fazes

34 Jesus lhes tornou: "Não está escrito na vossa lei: Eu,

35 se ele chamou deuses àqueles a quem a Palavra de Deus veio — e a Escritura não pode ser quebrada

36 — 1 vós dizeis : Blasfemas!!, porque eu, a quem o Pai santificou e enviou ao mundo, vos declarei:

37 Sou Filho de Deus? 1 Se eu não faço continua- mente as obras do meu Pai, deixai de crer em mim.

33 Se, porém, eu as estou praticando, mesmo que não estejais dando crédito a mim, crede sempre nas obras, a fim de que decididamente chegueis a conhe-

39 cer e continueis conhecendo que em mim o Pai vive e eu vivo no Pai." 1 E eles buscavam novamente oportunidade de tomá-lo preso; e saiu-lhes da mão,

22. «Então veio a Festa da Dedicação em Jerusalém.» Esse «en-tão» serve de desculpa para alguns críticos a fim de desmembrar este Evangelho. Moffatt, por exemplo, coloca 3:22-30 logo depois de 2:12, ale-gando que é sua «verdadeira posição», mas sem dar um vestígio de pro-va ou autoridade dos manuscritos. Transpõe também 7:15-24 para logo depois de 5:47, "sua posição original no Evangelho». Mas não há evi-

Apelo Ameaçador

Pai e Filho lhes dão segurança

mas por blasfêmia, e a a ti mesmo Deus." 1 disse : Deuses sois? I

A Deidade de Jesus Afirmada e

Provada

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346 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

dência alguma disso, senão a vontade do crítico que assim quer crer. Ele remove do seu lugar 10:19-29 e coloca ao fim de 9:41, «restaura» o v. 5 a sua «posição original» entre 11:2 e 11:3, e a 11:18, 19 dá um lu-gar entre 11:30, 31. No Capítulo XII os vs. 44:50 são metidos entre 12:36 e 12:37. Os capítulos XV e XVI são jogados arbitràriamente no meio da linguagem de 13:31, antes do Cap. XIV. Em 18:14 êle introduz os vs. 19-24, e depois o v. 15. Não há sequer vislumbre de autoridade dos manuscritos para justificar tamanhas arbitrariedades. E' simples insolência contra a Palavra de Deus, orgulho acadêmico que exalta seu mero subjetivismo acima de todos os fatos, e dá mais valor ao seu crité-rio crítico do que à testemunha ocular que é autor do Evangelho. Mes-mo entre outros críticos «liberais» ou radicais essas arbitrariedades não encontram apoio geral. E os que não hesitam em tomar liberdades com o texto, também o desmembram de outras maneiras.

Por exemplo aqui, onde Moffatt corta com seu canivete entre os vs. 18 e 19, o Dr. Bernard usa o canivete entre os vs. 21 e 22 e mete no meio o Cap. IX e talvez o Cap. VIII. E' em o «então» que ele se justifica. Mas êsse advérbio não implica nenhuma necessária proximidade entre o que precede e o que sucede. Mat. 2:16 abrange um prazo de dois anos. Há quatro «entãos» na tentação de Jesus, sem garantia da imediata con-tinuidade ou da ordem dos três eventos. E em vários parágrafos dos Evangelhos a palavra é usada a respeito de tempo indefinido, mais ou menos na referida época. Basta ligeira leitura das 159 vezes em que a palavra aparece no Novo Testamento para ver que nenhuma hipótese de necessária continuidade merece respeito.

Nossa última palavra na cronologia é «a festa dos tabernáculos», de 7:2, 37. Os eventos se sucederam no templo e na vizinhança de Jeru-salém. Com poucos meses depois da referida «festa dos tabernáculos» vem "a festa de dedicação», realizada na segunda quinzena de dezembro por oito dias. «E' inverno.» O Jordão não é convidativo para viagens. Nada mais natural do que ficar Jesus naquela zona durante esses três meses. O «então» é geral. Logo antes vem uma comprida citação. Pode ser que algumas palavras citadas sejam de datas diferentes durante aque-le trimestre. A referência ao tempo é vago, quanto ao trecho anterior, mas é logo definida, para o que se vai narrar, como a semana em dezem-bro do mesmo ano, especialmente dedicada ao templo renovado, depois da contaminação, causada por Antíoco em 165 a.C.

«A festa de dedicação». Era parecida com a nossa antiga «sema-na de São João», em junho, como era observado no interior. Os judeus também acendiam fogueiras em frente de suas casas. Não havia pe-regrinação para Jerusalém, no chuvoso e frio inverno, mas em casa o povo alegrava-se sobremaneira. No templo, Jesus não seria oprimido pelas multidões excessivas das três grandes festas de Páscoa, Pentecos-tes e da festa prolongada da Expiação e dos Tabernáculos. Seria bela

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 347

oportunidade para exercer seu magistério, o que fazia em todo esse prazo; e os Setenta se ativaram também, cooperando lá fora.

«Jerusalém». Vêde a discussão da palavra nas notas sôbre 5:1. 23. «Era inverno. E Jesus passeava no pórtico.» Era a estação

chuvosa. Jesus buscava um teto para debaixo dele continuar seu minis-tério. A Festa da Dedicação era mais ou menos o tempo do Natal, em nosso calendário, com neve nas montanhas nas zonas frias da Judéia. A festa era comemorativa da reconstrução do templo e sua dedicação por Judas Macabeu em 165 a.C., depois que Antíoco Epifânio o havia con-taminado.

«No templo, no pórtico de Salomão». "Quando o Quarto Evange-lho foi escrito, já o templo estava em ruínas há muitos anos. Mas a nota do tempo e lugar é fàcilmente explicável por termos aqui as reminiscên-cias de uma testemunha ocular.» (1) Q autor nota que_era_a_luga.r_ pro-picio_para os mestres peripatétiços numa estação chuvosa. Vêde nas no-tas sôbre 5:14 o esbôço de E. Gordon a respeito do «Templo contra Jesus».

24. «Atando nos tiras o ânimo?» E' o mesmo verbo que João Batista usou acerca de Jesus tirar o1-.7cMo do mundo. A «alma» (psuché) é a personalidade humana, especialmente quando se trata de sua vida emotiva e intelectual neste mundo. Jesus como que lhes tirava a alma. Nós dizemos que «~.o...ficou na garganta». Os apóstolos estavam em terrível indecisão e com as mentes agitadas. A Versão Franciscana do Dr. Pereira traduz: «Até quando terás tu o nosso espírito em su~o?» Frei Damião Klein: «Até auando nos trazes incerteza?» O padre Rohden: «11~w». Frei J. J. Pedreira de -Castro: «Até quando nos trazes surpresos?» Watson e Allen, na «Harmonia dos Evangelhos»: «Até quando nos deixarás perplexos?»

Parece-me psicolègicamente extranhável que os judeus principais tivessem começado assim este incidente. A opinião geral coloca um pe-ríodo de meses entre os versículos 21 e 22 deste capítulo. Acho mais provável a conclusão de David Smith de que todo êste incidente (9:1 —10:39) deu-se na semana da «Festa da Dedicação». Há evidente unidade na linguagem da Parábola do Bom Pastor, pressuposta nos vs. 27-29. Outrossim é preciso um intervalo entre 8:59 e 9:1. Jesus não «sumiu)), ficando imediatamente lá no templo operando milagres. Portanto, o es-paço de tempo que a maioria de intérpretes coloca entre 10:21 e 10:22, eu coloco entre 8:59 e 9:1, unificando assim capítulos 9 e 10 (até o v. 39) . Assim é lógica a exclamação sôbre as almas perplexas, os ânimos exaltados.

Parece razoável pedir a Jesus «franqueza», mas aqui era subtileza élesL O genera no nielo—da—liatálliaThão VEM- ó-direito de ser franco para

(1) "The International Critical Commentary", sôbre este Evangelho, Vol. II, p. 343, por J. H. Bernard.

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348 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

com o emissário do inimigo sôbre o seu _plano de campanha ou as fOrças que tem ao seu dispor. Antes da guerra sim, Há um tempo para a fran-queza informadora e há um te-mbí).- para, o silêncio veraz, mas não cofflu-nicativo, com lealdade para consigo mesmo e os outros. Quem acha que deve dizer ttiab que- sabe a todos que desejam saber é tolo e não franco. E' traidiSrde- responsabilidades pesadas. Jesus não tinha direito _de preci- pitar uma crUé-antes de- «sua hora».

«Se tu és o Cristo, dize-nos de vez com franqueza.» «És tu o Cristo? é uma dessas perguntas a que não é possível responder, sim ou não, dire-tamente, se se visa evitar mal-entendidos. Se ele tivesse dito, Sim, eles teriam concluído que êle pretendia ser o Messias da expectativa patrió-tica judaica, e êle não era essa sorte de Messias. Se êle respondesse, Não, teria repudiado sua verdadeira missão.» (2) Sobre o fato de que Jesus era um Messias indesejável, aos olhos do seu povo, vêde as notas so-bre 4:25.

25. «Não sois crentes.» Vêde as notas sôbre 6:64. «As obras». Não meramente milagres. Vêde as notas sôbre 5:36 e

:3. «Em nome do meu Pai». Veja-se o que Cristo faz em nome do Pai,

o que o Pai faz em nome do Filho e o que outros fazem em seu próprio nome, nas notas sôbre 5:43; 12:13; 14:13, 26; 15:16, 21; 17:12; 20:31.

26. «Vós, porém, não sois crentes, porque não sois do número das minhas ovelhas.» Notai bem a linguagem. Jesus não diz: «Vós não sois, por ora, minhas ovelhas porque ainda não sois crentes.» Quem escolhe e organiza o rebanho espiritual é o Bom Pastor. E' isso que afirma: «A razão porque não sois crentes é que não sois do número das minhas ryvelhas.»

E' a verdade da eleição. A mente da carne quer para o homem a gló-ria e a responsabilidade de tôdas as magnas decisões. Jesus é o Deus da eleição do seu POVO. Era a maior ofensa possível contra o orgulho do Israel segundo a carne, concordar em que aquele carpinteiro iria determinar quem faria parte do sagrado rebanho do divino Pastor, descrito no Salmo (XIII! «Merece ser apedrejado como o pior blasfemo na história inteira

da nação.» E vão arranjando as pedras. O fator da escolha divina das ovelhas do rebanho não elimina a doutrina da responsabilidade humana por suas escolhas também, nas suas atitudes para com Deus. A verdade abrange ambas essas escolhas; a de Deus, porém, é primeira, eterna, an-tes da fundação do mundo. Se isso te ofende porque coloca o homem em segundo lugar, eu pergunto: «Então queres que Deus fique em segundo lugar, depois do pecador?» Por causa do fato da escolha divina, e só-mente à luz dêsse fato, é que Jesus pode revelar-lhes mais tarde: «Tenho

(2) "The International Critical Commentary", sôbre êste Evangelho, Vol. II, p. 344, por J. H. Bernard.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 349

outras ovelhas, lá entre os gentios atualmente descrentes, ignorantes mes-mo do evangelho. Eu as trarei ao seu tempo. O redil de Israel já não existirá. Os crentes todos, judeus e gentios, — mas apenas CRENTES ju-deus e gentios — serão por mim constituídos um só rebanho e eu serei o único Bom Pastor Universal.» Graças a esse fato, Deus podia animar Paulo, em Corinto, dizendo-lhe daquela cidade dura, vil e incrédula: «Te-nho muito POVO nesta cidade» (Atos 18:10) . A doutrina é clara. A questão é saber se temos a reverência de crer na veracidade do Senhor ou se torceremos suas palavras para terem sentido diametralmente contrário ao que êle disse.

«Crentes». A palavra grega que traduzimos «dedicação» realmente significa «renovação». O templo não fôra destruído, apenas profanado. Ernest Gordon lembra que Davi orou: «Cria em mim, ó Deus, um coração limpo e renova dentro de mim um espírito estável» (Sal. 51:10). O crente desviado que experimenta esta renovação e recupera «a alegria da sua sal-vação» terá no Salmo 51 a música da festa de sua alma e Jesus lhe ensina-rá nos corredores de sua alma, que é templo do Espírito Santo. E' uma experiência possível somente ao crente. Jesus diz logo (v. 26) que seus inquiridores não são crentes. Não se pode renovar o que nunca existiu.

E' mais difícil para a mente soberba da carne crer estas palavras de Jesus do que entendê-las. Se os homens gozam o livre arbítrio, Deus o exerce também. Se os homens fazem planos e escolhem quem desem-penhe cada papel no plano, Deus não é menos livre, justo e sábio. Sua eleição é o exercício da sua liberdade, sabedoria e responsabilidade. E a responsabilidade divina não é arbitrariedade.

27. «Ouvem a minha voz.» E' o ouvir de fé leal, que vem da pre-sença real do Salvador na experiência e vida dos salvos, dando-lhes sua divina orientação pela Palavra sua, que temos na Escritura, e pela ilu-minação e impulso sagrado da atuação do Espírito Santo no crente. O ouvir é nesse caso muito mais do que saber intelectualmente o que Cris-to disse. E' perecer no coração, sêde dos afetos, das emoções e das saídas da vida, conhecer experimentalmente o Senhor e reconhecer por afinidade esp'ritual o que êle quer, fazendo-o com gôzo. Vêde as notas sôbre 5:25, 37.

28. «Eu lhes dou a vida eterna e nunca jamais hão de perecer e não haverá alguém que as tire da minha mão como presa sua.» Era o. versículo predileto de Melanchton e foram estas suas últimas palavras. Só há uma declaração mais enfática na Bíblia, que é Heb. 13:5 — «Não te deixarei, nem te desampararei.» Aqui, no original grego há cinco ne-gativos. «Eu absolutamente não te deixarei jamais, nem nunca de for-ma nenhuma te abandonarei.» Aqui temos: Eles não, não perecerão por tôda a eternidade.2, Fortes são as promessas da segurança do crente em Cristo, «âncora segura e firme da alma, e que também entra dentro do. véu». Vêde as notas sôbre 6:39, 40; 17:12; 18:9.

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350 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

«Eterna». «Que vale o serviço de um Deus, se êle limita a êste bre-ve prazo de nossa vida aqui seus cuidados para conosco, embora êle mes-mo seja eterno?»

«Eterna». Alteinativas solenes! Vida eterna ou perdição eterna, Mat. 25:46. O bispo anglicano Gore lembrou à nossa geração que Je-sus apelava para o motivo de modo, advertia sôbre aquêle que tinha po-der de lançar corpo e alma no inferno. E o Deão Ralph Inge, por longo :empo deão da «Catedral de São Paulo», em Londres, também declara : «Não sei qual a palavra aramáica que Jesus provàvelmente empregou onde os Evangelhos têm aionios, mas estou certo de que as idéias popu-lares rde sentido aguado (desvirtuado ou reduzido, W. C. T.) dessa pa-lavra grega, quando se emprega a respeito da punição depois da morte, não têm em seu apoio nenhuma erudição.» (3) E Moffatt, citando Gore,

inda nos transmite sua advertência de que o repúdio do mêdo como motivo é loucura. Moffatt adiciona que é igualmente estúpida a noção popular de um Deus que seja magnífico progenitor de todos, sem dis-posição que se oporia a nada ou a ninguém, como se isso fôsse o único fato ou fator na situação do pecado e da culpa, diante do amor divino. A salutar emoção de temor é o reverente princípio de sabedoria. E também a ETERNA salvação é a essência do evangelho e da estabili-dade moral do crente. Ela tem suas raízes na velha eternidade, na elei-ção, e sua consumação na eternidade final, na glorificação, como Paulo fala em Rom. 8:29-30. Li há pouco um artigo na imprensa evangé-lica — mas êste não tinha idéia evangélica — sôbre «Permaneça! Per-maneça!» O intuito do articulista era torcer estas palavras sôbre a vida eterna para ensinar a doutrina da apostasia (no sentido anti-bíblico da possível perdição do crente, depois de salvo). Ele começou di- zendo que Deus deu a Adão e Eva a vida eterna. Parece incrível que seja capaz ide semelhante disparate um leitor da Bíblia. A imortalidade e muito menos do que a vida eterna. Os perdidos têm a imortalidade: os crentes têm a vida eterna, dom de Deus por nosso Senhor Jesus Cristo, Rom. 6:23. Adão no seu primitivo estado de inocência não ha- via pecado, não precisava da salvação, não fôra recipiente da graça re-dentora da raça decaída que somos agora. Ele, pelo contrário, estava debaixo da lei e caiu dêsse estado natural, não do estado da graça sal-vadora em que entramos por Jesus Cristo mediante a fé. Tais pensa-mentos são tão elementares e fundamentais no evangelho que é difícil pensar que uma alma que os desconhece conhece o evangelho. De fato, os que negam a veracidade de Cristo, que afirma tantas vêzes a vida eterna do crente, já não têm o evangelho dos Evangelhos, de Jesus e dos apóstolos. Seu evangelho é de obras e seu salvador responsável é o homem a quem gritam sua doutrina de desespêro: «Persevera! Pcr-

(3) -Outspoken Essays", segunda serie„ p. 42.

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severa!» Se a salvação depende da perseverança humana, nunca será salvo um homem sequer. O contrário é a verdade. A perseverança de-pende da salvação e da vida eterna dada na salvação. Nossa perseve-rança nunca é perfeita; mas é o fruto, não a raiz da vida. Quanto à duplamente forte negação que aqui vemos, vêde as notas sôbre 4:13. Acerca da palavra «perecerão», vêde as notas sôbre a ira de Deus, na discussão de 3:36. Ryle diz: «A falsa graça — muitos a perdem.» São os crentes .espúrios aos quais, sem exceção, Cristo o justo Juiz dirá: «Eu nunca vos conheci.» Vêde, nas notas sôbre 5:10-47, corno Jesus fortificou esta doutrina com o sentido do tempo perfeito dos verbos em que é exposta. E sôbre a moral da idéia do aniquilamento da alma, nesse «perecer», vêde as notas sôbre 5:17, por Streeter. «Tu tens as palavras da vida eterna», exclamou Pedro. E tu as tens também? A i estão no evangelho para todos que não opõem sua lógica soberba e in-crédula à veracidade de Jesus Cristo. Se negarmos sua veracidade aqui, ficamos com a casca do evangelho e jogamos fora seu fruto. O crente alcança a salvação, crendo de vez, mas vive a vida eterna na fé, sua fé perene, eterna também, contemporânea daquela vida que é sem fim, divina. A fé salvadora é fé eterna, pois quem começou a boa obra (vêde 6:29) a completará em nós, os crentes.

29. «Aquilo que meu Pai me deu como dom permanente». Quan-do foi que o Pai deu as ovelhas a Jesus? O Cap. XVII se refere à tran-sação no seio da Trindade como realizada na glória eterna, antes do tem-po existir. Deu, e ainda são do Salvador — é o sentido do tempo perfeito — deu permanentemente. O neutro é usado para tornar mais enfática a certeza da vitória final de cada crente, pois a coletividade, a dádiva total, é superior a «todos», todos os inimigos no pandemônio ou na terra, maior do que todos os esforços para nulificar a salvação outor-gada, a vida eterna dada, as promessas que alicerçam a segurança do crente. «Deu.» E' a história da encarnação, numa palavra. Vêde 6:65 e as notas a respeito.

«Ninguém pode arrebatá-las» da mão do Pai ou de Jesus. Ele é o forte Pastor de Salmo XXIII. Vêde as notas sôbre 3:27, para a dis-cussão da origem dêsse poder de Jesus. O Dr. J. II. Rushbrooke, Pres. da Aliança Batista Mundial, diz: «Imaginai um pastor em terras orientais cuidando de suas ovelhas. Ele tem de ser corajoso e vigilante, e precisa conhecer bem o terreno por onde anda. Não há muito capim no distrito onde êle mora; e em certos meses todos os arredores estão queimados e inférteis. Ele, porém, conhece os oásis com uma pontinha de verde e guia o rebanho para ali a fim de que suas ovelhas comam e descansem. Muitas vêzes sentem sêde, pois os ribeiros secam-se no ve• rão. Ele, porém, sabe onde há um ribeiro que se não secou, de águas mansas onde podem beber e se refrescar. Esse jovem pastor conhece veredas difíceis através das montanhas que ligam um pasto a outro;

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êle caminha por essas veredas perigosas e as ovelhas seguem o som de sua voz, pois se conhecem, pastor e ovelhas, mutuamente. Em outras ocasiões precisam passar por vales tropicais, cheios de feras. Lembrai-vos de como Davi matou um leão e um urso para proteger seu rebanho. O pastor precisa trazer o rebanho corajosamente para a terra aberta da segurança.

«Podeis imaginar êsse pastor deitado um dia na sombra de uma grande rocha, olhando as ovelhas que pastam, quando num instante raiou na sua mente o pensamento dum novo nome para seu Deus: 'Ele é meu Pastor. Sua relação para comigo é como a minha relação para com as ovelhas.' (Segue-se uma paráfrase do Salmo XXIII) . E' de ad-mirar que o nome da máxima ternura para Jesus é o Bom Pastor? Mas não vos enganeis. Pastor não é nome de ternura, tão sômente. Nem é nome de fraqueza. O Pastor é o Forte, com amplos recursos; êle sus-tém e fortifica, guia e defende. Suas ovelhas não precisam temer ne-nhum mal.» (4)

Aleph, B,L,W e outros bons MSS têm o neutro aqui; não é «O Pai que me deu», mas «Aquilo que o Pai me deu». Os católicos falam da «onipotência delegada» que alegam gozar a mãe de Jesus, elevando-a, virtualmente, à posição de quarta pessoa da Trindade. O crente não precisa desse subterfúgio ou superstição. Mas êle tem a graça suficien-te («Minha graça te basta»), derivada da onipotência, de sorte que, em Cristo, êle está mais forte do que tôdas as fôrças da oposição, e sai '<mais que vencedor» na luta. Que a idéia não é estranha ao apóstolo João se vê em sua Primeira Epístola (5:5) — «Pois tudo (Notai o neu-tro. W .C.T. ) que é nascido de Deus vence ao mundo; e esta é a vi-tória que venceu (Notai o tempo, com a garantia, W.C.T.) o mundo, a nossa fé.» A fé torna certa a última vitória e é a fôrça vencedora du-rante tôda a Santa Guerra da alma peregrina. E' fé eterna, sempre con-temporânea. «Agora permanecem estas três: a fé...»

«Arrebatar». E' roubar com violência. Não pense o crente incauto que tudo ao redor lhe é favorável. E' o mesmo verbo que se usa no v. 10 a respeito do lôbo, e no v. 28 a respeito do homem. Não há lobis-homem: mas há homens que farão no terreno espiritual o que o lôbo fará no mundo físico. E podem ser os entes mais queridos na própria família. Cristo, único Senhor e sempre supremo, é a divisa que nos convém, com tôda a vigilância. Traduzo «roubá-las» porque o neutro «aquilo» se refere às ovelhas, no abstrato, e volta-se a discuti-las con-cretamente. O ato é roubar «uma a uma», (presente linear), ação inter-mitente.

30. «Eu e o Pai somos um.» Isso traz a garantia da segurança do crente cada vez para mais perto de nós. O poder e a vitória certa resi-

( 4 ) "The Baptist Times", (Londres), 9 de Setembro de 1942.

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dem num que é de nossa raça, nosso Irmão. Mas a verdade que é a nossa segurança se fêz o perigo do Bom Pastor que quase foi destruido pelos lôbos nesse instante. A deidade de Jesus é o assunto da contro-vérsia que o levava cada vez para mais perto da cruz. Vede a discussão dessa unidade nas notas sôbre Cap. XVII.

31. «Os judeus carregaram pedras outra vez para apedrejá-lo.» Iam se preparando com fúria intensa e calculada. Em 8:59 lemos que «pegaram» em pedras. Estavam em outro lugar, onde havia pedras para a construção do templo, que somente foi acabado poucos anos antes da sua destruição. Mas aqui Jesus se acha no Alpendre de Salo-mão, um dos lugares mais antigos e mais perfeitamente acabados, res-tando de fato, em parte, do próprio templo de Salomão. Seria necessá-rio, pois, carregar as pedras de outra parte do templo. David Smith opi-na que a nitidez e exatidão detelhada da linguagem é prova de que o li-vro é narração de uma testemunha ocular. (5)

«Os judeus». Vêde as notas sôbre 5:10 e a unidade nacional com os fariseus.

32. «Muitas obras». Jesus não disse: «Muitos milagres». As suas obras incluiam seus milagres, mas abrangeram tôdas as fases de seu mi-nistério público. Nas notas sôbre 5:20 consideramos o valor dos milagres para Jesus mesmo, na sua humilhação, sua kenosis. Reverentemente di-zemos que êle tinha necessidade delas para a confirmação da sua fé hu-mana no propósito divino da sua carreira. O primeiro a necessitar e usar essas credenciais de sua pessoa e sua missão é o próprio embaixador. Tais credenciais, porém, eram para acreditá-lo perante o povo a quem era enviado. E aqui vemos como as obras de Jesus — inclusive seus milagres, mas não limitadas a estes — foram «mostradas» ao seu povo como cre-denciais de sua missão redentora.

33. «Sendo tu homem, te fazes Deus.» E' nítida definição da crise que os agitava. Não sendo verdade que Jesus, sendo homem, se fazia Deus, então eles tinham razão. Se êle não fôsse Deus, suas palavras eram blasfêmia e a maior arrogância. Nem humilde, nem veraz, nem moral, nem ajuizado, nem digno de respeito é Jesus Cristo se não é Deus de Deus, Luz de Luz, a própria e real deidade encarnada na pessoa histórica que nos é apresentada em nossos Evangelhos. E' impossível ter respeito pelo Cristo dos Evangelhos e negar-lhe a deidade absoluta. Aqui Jesus devia dizer-lhes, se êle fôsse apenas profeta, ou filósofo ou sociólogo: «Senho-res, há equívoco. Eu não sou Deus. Nunca tive tal pretensão; fui mal compreendido. Entendamo-nos. Sou homem igual a meus irmãos, nada mais.»

Mas o Jesus histórico não vacila. Não diz : «Estais enganados, eu não me faço Deus.» Com a questão tão bem definida, ele aceita a definição e

(5) "In the Days of His Flesh", p. 349, por David Smith.

C. E. J. — 23

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defende o seu direito de se chamar Deus. O Jesus deste Evangelho não é a pálida figura anti-histórica da incredulidade modernista.

34-36. E' um «argumentum ad hominem». O Salmo 82 representa Deus, o Juiz dos juízes. (Lêde o Salmo). O juiz é constituído como que em lugar de Deus, para julgar como Deus; em circunstâncias iguais, ha-via de julgar, como Deus revelou a norma do tribunal na sua Palavra. Os juízes são chamados «deuses>, (elohim) e «filhos do Altíssimo». Foi-lhes dirigida a Palavra de Deus tanto em sua chamada para sua alta carreira como para guiá-los nessa carreira. Os fariseus admitiam ser legítimos êsses termos do Salmo 82 em relação aos juízes do povo. Jesus mostra a incoerência dêles em chamar blasfêmia sua terminologia messiânica em que êle se fazia também Deus e Filho de Deus, exatamente Deus o Filho.

34, 35. «Está escrito... vossa lei... êle chamou... a Palavra de Deus». Notai e meditai bem a seqüência dessa linguagem tão instrutiva. A «vossa lei» é um Salmo. Uma das hipóteses fundamentais do criticismo radical do Velho Testamento é que há um abismo entre a lei e a profecia, entre o sacerdote ritualista e o profeta, inimigo suposto dos sacrifícios e cerimônias levíticas. Esse abismo nunca existiu. As cerimônias vieram de Deus da mesma maneira que a profecia. São partes essenciais e coe-rentes da mesma revelação e sem a parte cerimonial nunca teria existido um Israel nacional, como o predestinado invólucro nacional da vida do Messias na sua encarnação histórica e obra redentora. E' fácil encher um livro dos ensinos dos profetas em apoio da lei cerimonial. A última palavra do Velho Testamento quase que é: «Lembrai-vos da lei de Moisés.» Isaías era tão entusiasmado sabatista como Moisés. Sôbre o Velho Testa-mento neste Evangelho, vêde a discussão de 5:45, 46. O mesmo criticis-mo radical nega que a Escritura seja chamada a Palr.vra de Deus. Mas esqueceu-se dessa vital passagem ou com igual radicalismo repudia João. Jesus chama um Salmo «a lei». A idéia fundamental de AUTORIDADE DIVINA está em tôdas as partes do Velho Testamento — tudo é lei. Nessa Escritura, Deus «chamou» juízes deuses, como tendo, no momento, a fun-ção divina numa teocracia de julgar. O que a Escritura dizia era Deus fa-lando. E quem o afirma é Jesus. Então êle categõricamente classifica essa lei, Salmo, Escritura como «a Palavra de Deus». Barth e outros neo-calvinistas, mas calvinistas espúrios, têm fingido dar grande ênfase, em nossos dias, à «Palavra de Deus». Mas não é a Escritura. E' qualquer noção do subjetivismo dêles que surge como forte convicção de suas ideo-logias ou raciocínios. Vêde a nota sôbre 5:39 acêrca da reverência de Jesus para com a Escritura, e a discussão de 3:22 sôbre a necessidade de considerar o testemunho todo da Bíblia.

«A Escritura». «Pode ser afirmado como axiomático que, seja qual fôr seu valor para outros, para a Igreja Cristã essas Escrituras nunca po-derão ter menos valor do que possuiam para o Mestre da. Igreja — Cris-

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to mesmo. Crentes eruditos de todas as escolas nisso concordam.» (6) O Prof. G. A. Smith declara, no mesmo teor: «A Bíblia dos judeus no tempo de nosso Senhor era virtualmente nosso Velho Testamento. Para nós sua confirmação suprema é a que deriva de Cristo mesmo... Aquilo que era indispensável para o Redentor, indispensável é para os redimi-dos.» (7)

«Quebrada». «Significa que a Escritura não pode ser tornada inútil, lançada fora como os cacos inúteis de um vaso de cerâmica. Ela tem de ser crida» (Geerhardus Vos). «La Palabra de Jesu-Cristo vale tanto como su presencia.» (8) (Lucas diz que a Palavra veio ao Batista (Luc. 3:2) — a mais importante jornada jamais feita em benefício de alguém. A Palavra oral e a Palavra escrita (Escritura) são iguais no conteúdo. Vêde as notas sôbre 5:38.

«A Escritura não pode ser quebrada.» Significa «inspiração verbal». (°) Vêde a discussão dêsse assunto, Vol. I dêste Comentário, ps. 35-37. Notai como na hora crucial, Jesus arrisca tudo na inspiração e veracidade da Bíblia. A deidade do Filho do Homem e a veracidade das Escrituras caem juntas ou ficam de pé juntas, inabaláveis na sua fôrça da verdade.

36. «Sou Filho de Deus.» «Foi um raio brilhante do gênio religioso mais elevado unir Deut. 6:4-5 com Lev. 19:18 (amor a Deus e ao próxi-mo), como diz Montefiore. E não é menos um surto de discernimento reli-gioso da ordem máxima quando Jesus reconhecia em seu próprio caráter e na sua carreira a união do Servo Sofredor de Yave e o Filho real mes-siânico do Segundo Salmo.» (10) A doutrina da preexistência do Verbo é tão clara aqui como no Prólogo.

«Santificou,,. Vêde as notas sôbre esta doutrina em 17:19. 37. «Se eu não faço continuamente as obras do meu Pai, deixai de

crer em mim.» E' um desafio formal e bem instrutivo. Paulo nos afirma que «permanece a fé»; e êle está falando da ordem eterna das coisas, em contraste com tudo que é fugaz nesta vida (I Cor. 13:13) . Os que pen-sam que um crente pode perder sua fé em Jesus Cristo não avaliam a na-tureza da fé. E' uma confiança em Jesus Cristo, baseada no que êle é, no que êle fez na sua encarnação, paixão redentora, ressurreição e contí-nuo sacerdócio, sua obra, e suas obras que lhe servem de credenciais per-pètuamente, juntamente com as testemunhas apresentadas aqui e nos Evangelhos e Atos e nas Epístolas. E' sobrenaturalmente produzida em nós e sobrenaturalmente mantida. Sói/lente Jesus pode destruir nossa fé-confiança nêle. Se êle se mostrasse indigno de nossa confiança, então se-

(6) "The Problem of the Old Testament", p. 3, por James Orr. (7) "Modern Criticism", p. 11. (8) "Los Evangelios Explicados", Vol. IV, p. 79, por Ryle. (9) "The International Critical Commentary", sôbre êste Evangelho, Vol. II, p.

por J. H. Bernard. io) -The Theology of the Gospels", p. 149, por James Moffatt.

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ria impossível continuarmos a crer. Mas a história da obra de Jesus está consumada, nada há que acrescentar, nada que diminuir.

Mas, dirá alguém, suponhamos que um modernista destruísse nossa fé-crença na integridade, na veracidade e na inspiração das Escrituras, ainda permaneceria nossa fé em Cristo? Sim. Permanece, em mil co-rações perturbados, ao redor de qualquer universidade cética. Temos ca-sos paralelos em João Batista, nas suas dúvidas, e na angústia mental dos apóstolos durante os três dias em que Jesus estava no túmulo. Dú-vidas não são desconfiança. Jesus preveniu João Batista contra o perigo de ficar escandalizado com êle. Muitos crentes ficam escandalizados com Jesus, mas isso não mata a fé. A fé «permanece». Deus a vivifica ao seu tempo. Se um homem mostrar-se, afinal, moral e espiritualmente alheio a Jesus Cristo, é prova cabal de que êle nunca foi salvo . E' o ponto de vis-ta de muitas claras passagens da Bíblia. Jesus aqui nos mostra o que seria necessário para que alguém perdesse a fé. Sendo a fé salvadora a confiança em Cristo, então êle teria de deixar de fazer sua obra contínua de Redentor . Só êle poderia destruir nossa fé e é êle quem a sustém e garante.

Suponhamos, por exemplo, que alguém que tinha a opinião de que Jesus era onipotente, perdesse essa opinião, ou porque Jesus deixou mor. rer um ente querido por quem o escandalizado havia orado muito, ou por-que deixasse desencadear-se sôbre o mundo as terríveis guerras mundiais. Será que tal pessoa teria perdido a fé salvadora? Pelo contrário, não há evidência de que jamais tivesse tido fé salvadora. A fé salvadora não é um grupo de opiniões — opiniões não são fé-confiança, não salvam, e sua mudança ou perda não é a perda da salvação. Essas crises intelectuais DEMONSTRAM quais eram os corações crentes, quais os descrentes. Judas, sem dúvida, teve semelhante crise agudíssima. Mas a Escritura não diz, nem insinua, que Judas perdeu a salvação. Ele nunca a teve. «Judas se transviou (do apostolado) para ir ao seu próprio lugar» (Atos 1:25). A cada um que assim fizer, e são muitos através dos sé-culos, Jesus dirá: «Nunca vos conheci» (Mat. 7:23). Eu creio na sua veracidade.

37, 38. «As obras». «Jesus nunca é representado como apelan-do para os sinais que operava, mas para as obras que praticava... fi-delidade ao dever, lealdade a princípios, coragem na execução da tarefa à mão, coragem diante de perigos que ameaçam, renúncia das vanta-gens materiais em vista do interêsse nos espirituais, manifestações de compaixão, amor e entusiasmo humano por valores e interesses huma-nos... nessas simples e boas obras de cada dia estava empregada a maior parte de seu tempo. Os milagres eram as partes excepcionais de sua atividade. Quando êle falou de suas obras, êle incluia seus mi-lagres, mas êle certamente não limitou seu pensamento aos milagres. Esses surgiram de seu desejo de fazer bem aos homens, nada pediu

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em troca do milagre. Esse era prova do seu amor tanto quanto de seu poder.» (11)

Há quatro caminhos pelos quais se chega à certeza: o caminho da Autoridade, o caminho do Raciocínio, o caminho da Intuição, o cami-nho da Experiência. Todos são úteis na certeza cristã. A autoridade é de Cristo que nos afirmou ser o Velho Testamento digno de confiança e nos prometeu o Novo Testamento, uma Palavra inquebrantável de Deus. Cristo é vivo. Ainda o conhecemos pessoalmente. Não sabe-mos apenas soletrar-lhe o nome ou citar os fatos de sua história na terra há vinte séculos. Nós o conhecemos na experiência da sua graça. E nesse conhecimento há certeza. Há uma afinidade entre o espírito humano sincero e Jesus Cristo. Sabemos por intuição. Êle satisfaz. E a razão sonda e aprova o que êle afirma, mostra como são palha, e não trigo, as tradições dos homens. Não são contrárias uma a outra a autoridade, a intuição, a experiência e a razão. Cada qual contribui com seu quinhão para a certeza cristã.

38. «Se, pelo contrário, eu as estou praticando, mesmo se não es-tais dando crédito a mim, crede sempre nas obras, a fim de que decidi-damente chegueis a conhecer e continueis conhecendo que em mim o Pai vive e eu no Pai.» E' o cumulativo e cada vez mais forte testemu-nho aos dois aspectos da fé, o instantâneo e o progressivo, e às duas fases do conhecimento experimental de Deus em Cristo, a instantânea e a progressiva. Não ponhamos estas duas verdades uma contra a ou-tra, como fôrças rivais e partidárias na religião, mas creiamos em ambas, como cremos na raiz e no fruto da árvore, no crescimento e na vida de um ser humano, na aurora e no dia que a segue, no fundamento e no edifício, no manancial e no rio.

«Embora não me creiais, crêdes nas obras.» «Aqui há alguém que não cria na pessoa de Jesus, mas não o havia abandonado. Contempla-va seus milagres e estudava a sua obra. Jesus o animou: se tens dú-vida sôbre a minha personalidade, presta atenção às obras de minha vida. A árvore se conhece pelos frutos. Estuda os meus. Estou pron-to a ser julgado pelo que vivo fazendo. Fica crendo nas obras, uma a uma, e crerás no seu Autor.» (12 ) Sôbre dois sentidos do verbo crer, vêde a discussão de 5:38.

39. «Saiu da mão deles.» Possivelmente, mas não provàvelmen-te, por milagre. O silêncio era, sem dúvida, o segredo da capacidade que Jesus manifestwia tantas vêzes para se safar de uma multidão. O Mestre sabia terminar seu discurso de vez, calar e partir in continenti. Antes da turba despertar, êle já era invisível na multidão em outra par-te. Saber desaparecer é uma arte, e de muito valor!

(11) "Addresses on the Gospel of St. John", ps. 202 e 204, resumidas, por C. W. Rishell. (12) "Janelas Gregas", p. 49, por W. C. Taylor.

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João, estando morto, ainda é testemunha, na memória de Cristo

(Capítulo X, versículos 40 - 42)

40 Ora ele partiu outra vez para o lugar, além do Jordão, onde João estava quan- 41 do batizava no princípio, e ali êle demorava. I E

O Ministério na Pe- muitos foram ter com ele, e diziam: -João não ope- réia, em Resumo rou sinal miraculoso nenhum: tôdas as coisas, po-

rém, que João afirmou acerca deste homem eram ver- 42 dadeiras." I E ali muitos creram nele.

40 - 42. Alguns incluem o v. 39 neste parágrafo. Mas o sentimen-to de fuga e a atmosfera de violência cabem melhor no outro incidente. Nas duas Betânias Jesus teria paz bendita, amigos e a lealdade e o amor de crentes. A «Harmonia» de Watson e Allen cita 20 páginas dos Evangelhos sôbre êste espaço de tempo que é aqui resumido em três breves versículos. Para João servem de nexo entre duas portentosas controvérsias que reve-lam- a urdidura do drama que se apressa para seu climax, no Calvário.

40. «Onde João batizava no princípio». De Jerusalém era «além do Jordão», como já vimos. Que prazer Jesus sempre tinha em associar sua pessoa e obra com seu amado precursor. Como se simplificariam os problemas do cristianismo professo, se estivesse na mente de nossa gera-ção, como estava na daquela geração, o que realmente João fêz. Para aque-le povo era tão claro como o sol no céu que João imergia no rio principal do país «ao principio» e depois passou a imergir em outras «muitas águas». Em tôda parte a população era testemunha daquelas imersões, que presen-ciara na peregrinação às festas. Em todos os lábios estava o nome do pro-feta que Jesus chamava o maior membro de nossa raça: «João o Imersor». Passou João, mas ficou o rito da iniciação. Jesus continuou a mesma ce-rimônia, usando seus apóstolos na administração, e imergia mais do que João, e perante maiores multidões. Tudo isto é tão claro e inegável como o fato de que Jesus é filho de Maria. Qualquer cristianismo que se desviou disto é, neste ponto, uma aberração do exemplo, do ensino e da autoridade de Jesus Cristo.

E o cristianismo que Deus assim deu ao seu povo por tão grande pro-feta, pelo seu Filho e por seus apóstolos era um cristianismo de crentes batizados. Não há batismo infantil, nem sacramentos, nem sacramenta-lismo, nem superstição a respeito. O cristianismo começou puro, com ade-rentes salvos, professando a fé e a vontade de obedecer. As igrejas que iam surgindo eram compostas de crentes, «chamados santos». Forma-vam-se cada dia núcleos de futuras igrejas, destinadas a surgir depois da Ascenção do Senhor.

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Com êste versículo perdemos de vista João, neste. Evangelho, mas não «o POVO» que êle preparou para o Senhor, nem a autoridade dêste Se-nhor sôbre seu povo. E como diz o eminente Carroll, citado no Vol. I, p. 174, a razão por que o catolicismo e muito protestantismo repudiam o pre-cursor e o empurram para dentro do judaísmo da Lei é saberem êles, e muito bem, que o Batista os repudia. Querem por isso jogar os Evange-lhos dentro do Velho Testamento e começar uma «nova dispensação» no Cap. II dos Atos onde a missão e o exemplo de João e Jesus não lhes em-baraçará. E' um triste espetáculo de corrução multissecular, mas indes-culpável, do cristianismo de Cristo e sua Palavra, «para servir exigências sectárias no tocante à questão do recipiente, do ato e do desígnio do ba-tismo cristão».

Cada vez que nossa Escritura traduz «batismo», o grego diz: imersão. Cada vez que fala de «igreja», o grego diz congregação. E sempre põe a fé salvadora antes do batismo e antes da igreja. Esconder êstes fatos da população investigadora é falsificar o testemunho que Jesus Cristo e seus apóstolos nos deixaram nas suas palavras ; e é sinal de uma sectária falta de amor a Jesus Cristo, neste ponto, pois êle diz: «Quem não me ama não guarda as minhas palavras.» Essa conspiração intimida e domina tôdas as traduções modernas das Escrituras e muda as traduções de Carey e outros primitivos missionários. E se alguém tem a temeridade de verter por imersão a palavra grega que significa isso mesmo, sua obra é odiada, perseguida com nomes feios e ostracismo mordaz, até que cai em desuso e os que assim crêem têm medo e nojo da luta para manter a tradução como devia ser. Diante da triste história dêsses fatos, os tradutores e comentadores batistas acham melhor aceitar uma versão comum a todos, sejam quais forem seus defeitos, e dar o conhecimento dos fatos aos que tiverem boa vontade para conhecer a verdade, não se contentando com, o tradicional, o falso, o convencional, o espúrio e ainda o suposto dever de apoiar o erro porque «nossos pais» o advogaram. Mesmo dizer estes sim-ples fatos inegáveis é rude e cruelmente denunciado, em linguagem indig-na de cristãos, por polemistas sectários cujas seitas dependem, para sua existência, da manobra ide esconder dos seus adeptos estas verdades ele-mentares, tão evidentes nas primeiras páginas de todos os Evangelhos. Porque recuso silenciar meu testemunho sôbre êsses fatos que Deus co-locou na própria entrada do Novo Testamento, tenho sofrido pessoalmen-te por quase três décadas tôdas as sortes de vitupérios e indignidades que se poderiam amontoar sôbre minha cabeça, sem chegar ao ponto da violência pessoal. Mas dou meu testemunho de que o Espírito de Deus ou-torga bênçãos à vida cristã que faz sacrifícios para obedecer a Jesus. Vi êstes sacrifícios e seu galardão em elevada espiritualidade e poder no serviço de Jesus Cristo, como o mundo também viu na coragem de Carey e Judson e Rice, e Spurgeon e inúmeros outros que abandonaram greis aspersionistas e tudo sacrificaram para serem leais ao Senhor. Sei que

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êste Comentário ficará no Index dos livros proibidos por tais lideres sectários, mas eu seria traidor de Jesus Cristo e da sua verdade se silen-ciasse quanto ao ensino dêste último Evangelho a respeito do significado do Batista, testemunha N° 1 que seu discípulo João nos apresenta para confirmar a fé no Cristo histórico. O que ao Espírito de Deus agradou salientar, não cale a voz crente e leal em proclamar.

41. «João não fêz milagre nenhum.» Tomem nota todos que ima-ginam ser necessário fingir dons miraculosos — falar línguas ou curar sem médico ou coisas semelhantes — como condição indispensável para a espiritualidade. João estava cheio do Espírito «desde o ventre de sua mãe», mas nunca fêz um milagre, ainda que contemporâneo dos mila-gres de Jesus e dos Doze. E' o «fruto do Espírito», Gál. 5:22, e não «si-nais», que demonstra o poder do Espírito no crente. «Pelos frutos os co-nhecereis.»

«Eram verdadeiras». As ovelhas de João passam para o rebanho de Jesus, e a sagrada semente que ficara depositada em muitas mentes germinou no fim do ministério de Jesus e êle conheceu de novo onde e o que João havia semeado. Bendita continuidade da obra de revelação e de evangelização. Sôbre essa continuidade vêde as notas sobre 4:36-38.

42. «Creram nêle.» No fim do ministério de Jesus, os ouvintes crêem nêle por causa da palavra de João no princípio de sua atividade. A semente da Palavra preserva sua vitalidade por longo tempo e ger-mina em ocasião favorável.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO

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Maria, Não a Madalena, Marta, Lázaro e o Senhor da Vida

(Capítulo XI, versículos 1 a 44)

1 Ora havia um certo doente, Lázaro da Betânia, a aldeia de Maria e Marta,

2 sua irmã. 1 Foi essa a Maria que ungiu o Senhor com perfume e lhe en-

3 xugou os pés com os cabelos, cujo irmão Lázaro estava doente. I Portanto as irmãs mandaram mensageiros para êle, dizendo: "Se-

João Identifica nhor, eis que aquêle a quem tu queres bem está

Maria mal." 1 Jesus, porém, quando os ouviu, tornou: "Essa enfermidade não é para morte, mas sim é con-

forme a glória de Deus, para que o Filho de Deus por ela seja glorificado."

5— 6 1 Ora Jesus amava Marta, e sua irmã e a Lázaro. I Quando ouviu, pois, que êle se achava enfermo, mesmo neste transe ficou ainda dois dias no lugar

7 onde estava 1 Então, depois disso, diz aos discípulos: "Vamos novamente

8 para a Judéia." I Os discípulos lhe tornam : "Rabi, agora mesmo os judeus

9 estavam procurando apedrejar-te e vais para lá outra vez ?" I Jesus res- pondeu: "Há doze horas no dia, não é? Se alguém caminhar de dia, não tro-

10 peça, porque vê a luz deste mundo; I se, porém, andar de noite, tropeça por-

11 que nele não há luz." 1 Isso êle declarou, e algum tempo depois lhes infor-

12 ma: "Lázaro, nosso amigo, caiu num sono que se prolonga: eu vou, no en- tanto, despertá-lo." I Tornaram-lhe, pois, os discípulos: "Senhor, se êle

13 teve sono prolongado, será curado." 1 Jesus, porém, havia falado da morte

14 dêle; mas eles pensavam que êle falava do repouso do sono. I Nesse transe,

15 pois, Jesus lhes declarou com franqueza: "Lázaro morreu, I e por vossa causa eu folgo por não estar ali, para que vós tenhais um novo surto de con-

16 fiança em mim; mas sigamos para ele." I Então Tomé, aquêle que era cha- mado Dídimo (Gêmeo), disse aos seus condiscípulos: "Sigamos nós também,

17 para morrermos já com êle." I Jesus, pois, quando chegou, encontrou-o já

18 há quatro dias enterrado. I Ora, Betânia estava perto de Jerusalém, menos de

19 três quilômetros distante. I E muitos dos judeus tinham vindo ter com Mar-

20 ta e Maria, para as consolar acerca do seu irmão. I Marta, pois, quando ou- viu que Jesus vinha chegando, saiu ao encontro dêle; Maria, porém, ficou as-

21 O Luto de Marta sentada em casa. 1 Então Marta disse a Jesus: "Se-nhor, se estivesses presente, meu irmão não teria

22 e Sua Fé morrido. I Mesmo agora sei que Deus te con-

23 cederá quantos pedidos lhe fizeres." I Jesus lhe afirma: "Teu irmão se le-

24 vantará.." 1 Marta lhe torna: "Sei que êle se levantará na ressurreição no

25 último dia." I Jesus lhe disse: "Sou eu a ressurreição e a vida: o crente em 26 mim, ainda que venha a morrer, viverá; I e cada um que vive e confia em

27 mim nunca, absolutamente nunca, morrerá. Acreditas nisto?" I Ela lhe diz : "Sim, eu já me tornei crente e confio perfeitamente que tu és o

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362 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

28 Cristo, o Filho de Deus que estava para vir ao inundo." 1 E, dito isso, par- tiu e chamou particularmente sua irmã, Maria, e lhe disse: "O Mestre está

29 presente e te chama." 1 E ela se levantou depressa, quando soube, e ia ao 30 seu encontro. I Ora, Jesus não viera à vila, mas ainda estava no lugar onde 31 Marta o encontrou. 1 Portanto, os judeus que estavam

A Desconsolação de com ela em casa e a consolavam, quando viram que Maria e Seus Con- Maria levantou-se de repente e saiu, seguiram-na,

soladores pois tiveram o pensamento de que ela ia ao túmulo 32 para ali cair em pranto. 1 Maria, pois, quando

chegou onde Jesus se achava, ao vê-lo, prostrou-se-lhe aos pés, dizendo- 33 lhe: "Senhor, se estivesses aqui, não teria morrido meu irmão!" Por-

tanto Jesus, quando a viu soluçando e os judeus que vieram com ela em soluços também, ficou indignado em seu espírito e se comoveu profun-

34 damente; I e disse: "Onde o colocastes?" Tornaram-lhe: "Vem e vê, Se- 35 - 36 nhor." 1 Jesus começou a derramar lágrimas. 1 Diziam, pois, os judeus:

37 "Eis como o amava." 1 Mas alguns deles disseram: "Não era possível que esse homem, que abriu os olhos do cego, fizesse com que mesmo êste não mor-

38 ; resse?" 1 Jesus, pois, estando novamente indignado O Cristo, Comovido, no íntimo, vai ao túmulo. E era uma caverna, e

39 Indignado, Triun- uma pedra lhe jazia à entrada. 1 Jesus diz: "Tirai fante, Prático a pedra." Marta, a irmã do defunto, lhe torna:

"Senhor, êle já cheira mal, pois é cadáver de quatro 40 dias." 1 Jesus lhe declara: "Eu não te disse que verás a glória de Deus, 41 se surgir em ti a fé?" 1 Tiraram então a pedra. E Jesus levantou os 42 olhos ao alto e disse: "Pai! Graças te dou porque já me atendeste. E eu

bem sabia que sempre que atendes; todavia, é por causa da multidão que me rodeia, que eu falei, para que viessem a crer que tu me enviaste."

43 1 E, havendo dito essas palavras, bradou em alta voz: "Lázaro, vem para 44 fora!" I Saiu o que estivera morto ainda como fôra amarrado mãos e pés,

em faixas; e o rosto estava envolto num lenço. Jesus lhes diz: "Desatai-o e deixai-o retirar-se."

11:1. «Estava enfermo.» Uma sombra de tragédia está lançada sô-bre todo o Capítulo por êste comêço. Sôbre a realidade das doenças hu-manas, embora seja negada pela loucura da chamada «Ciência Cristã» de Mary Baker G. Eddy, vêde a discussão de 5:3.

«Lázaro». Não há nenhum motivo de associar a lepra com o nome de Lázaro. Taxar de Lázaros os leprosos, e de Madalenas as meretrizes, são duas mentiras de uma peça só.

«Betânia». «Esta Betânia está três quilômetros ao leste de Jerusalém, na vertente sudeste do Monte das Oliveiras. Aparentemente, Jesus ainda estava na outra Betânia, além do Jordão.» (1) (10:40)

(1) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 192, por A. T. Robertson.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 363

Esta amada vila, subúrbio de Jerusalém, não é mencionada senão tar-de na vida de Jesus. Parece provável que os três e Simão, o ex-leproso, eram vizinhos que eram devedores ao amor de Jesus por algum incidente do seu ministério na Judéia. Talvez quando êle curou Simão da lepra, conquistou a amizade, o amor e o discipulado leal dêsses quatro, em la-res vizinhos, constituindo um núcleo crente, um oásis nos ódios oficiais da capital e do templo, um «porto de descanso» no itinerário de suas pe-regrinações.

«A aldeia de Maria e sua irmã Marta». Marta é mencionada primeiro em outros lugares como a dona da casa. Mas, em 90 d. C., Maria era mais bem conhecida. Já se cumprira a profecia de Jesus: «Onde quer que fôr pregado o evangelho em todo o mundo, será também contado para memória sua o que ela fêz» (Mar. 14:9. (2)

2. «Maria». «E' uma referência antecipadora do incidente des-crito por João em 12:1-8. No fim do século, quando João olha para trás, tudo estava no passado, se bem que a unção se efetuou depois dos su-cessos do Cap. 11. ...O esforço para identificar Maria de Betânia com Maria Madalena e ambas com a pecadora de Luc. 7:36-50 é uma acusação gratuita e, ao meu modo de pensar, grotesca e cruel contra a memória tanto de Maria Madalena como de Maria de Betânia. Já discuti essa he-resia no terreno da crítica e da arte. Basta dizer que Maria Madalena é uma nova personagem, introduzida em Luc. 8:2 e que os detalhes dos sucessos de Luc. 7:36-50 e João 12:1-8 têm apenas similaridades super-ficiais e discordâncias graves. Aqui João não se refere à narrativa de Lucas mas à história que êle mesmo havia de narrar logo em seguida.» (8) Robertson cita Westtcot também: «A identificação de Maria com Maria Madalena é mera conjetura, não sustentada por evidência nenhu-ma, e é oposta à índole geral dos Evangelhos.»

Citamos do «Jornal do Comércio», do Rio de Janeiro, da sua seção, «Vida Católica» algumas palavras: «Santo do dia: Santa Maria Madale-na». Célebre nos Evangelhos pelo amor extraordinário que consagrou a Nosso Senhor, nos últimos anos de sua vida, era Madalena originária de Betânia, povoação situada nos planaltos de Judéia e à pequena dis-tância de Jerusalém.

«A sua família, ao que parece, possuia bens avultados e certa as-cendência sôbre a região.

«Após a morte de seus pais, Madalena retirou-se do convívio de seus irmãos, Lázaro e Marta, e foi viver livremente, em Jerusalém, tor-nando-se conhecida como pecadora pública.

«E um dia em Naim essa pecadora insigne não corou de lançar-se

(2) "The International Criticai Commentary", sôbre este Evangelho, Vol. II, por J. H. Bernard.

(3) -World Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 193, por A. T. Robertson.

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aos pés de Jesus, regá-los com suas lágrimas e os enxugar com a sua famosa cabeleira....

«Simão o fariseu, em cuja casa se deu o fato, olhava friamente essa mulher prostrada diante de Jesus. Nem a vergonha, nem a deso-lação de um coração dilacerado pelo arrependimento, comoveram a sua piedade. Ele via na pecadora um objeto infame, cujo simples contato acarretava uma mancha legal.

«O coração do divino Mestre transpirava ternura, amor, compai-xão pelo que a humanidade oferece de mais vil — a mulher de costumes perdidos. Sim, Jesus, graças às importunações freqüentes de Lázaro e Marta, soergue esta filha perdida. Não lhe restitui a inocência, por-que esta não volta mais. Coroa-a, porém, de uma glória mais austera: com a glória do arrependimento e do amor perdoado.

`Teus pecados te são perdoados... A tua fé te salvou; vai-te em paz.'

«E Madalena partiu... Partiu, não mais para procurar os prazeres da voluptuosidade, e sim, para fazer penitência. Partiu discípula fer-vorosa, apóstola ardente da doutrina de Cristo... Acompanhou a Je-sus até o Calvário e, após a sua morte, retirou-se do mundo e foi viver na solidão de uma gruta, nas proximidades de Marselha, durante 30 anos.

«Depois desta vida penitente, expirou na paz do Senhor.» — V.P. Tudo isso não passa de uma fantasia. O nome de Maria não é asso-

ciado com Naim, nem o de Simão. A única menção de Naim no Novo Testamento se acha em Luc. 7:11. E a palavra Madalena se encontra apenas doze vezes; Mat. 27:56, 61; 28:1; Mar. 15:40, 47; 16:1, 9, Lue. 8:2; 24:10; João 19:25; 20:1, 18. Verifique o leitor para si os fatos, que são radicalmente diferentes dêsses mitos inventados pelo clero.

Vêde que «paz» o romanismo dá. Só depois de uma vida de 30 anos de «penitência» é que um padre pode imaginar «a paz». Mas Je-sus disse à pecadora que erradamente identificam com a nobre Maria Madalena: «A tua fé te salvou; vai em paz.» Embora o articulista cite essas palavras, não crê nelas. Formula uma tradição medieval que só admite a paz após 30 anos sem paz. Longe de estar reclusa numa prolongada penitência, a Maria Madalena histórica e real é vista bem cedo e bem saliente, no ministério de Jesus, crente, rica, nobre, honra-da, a patrona financeira, juntamente com outras mulheres famosas e abastadas, do ministério de Jesus e seus apóstolos, Luc. 8:2. Igual-mente tornou-se a patrona zelosa do túmulo de Jesus. A única unção que ela desejou fazer do corpo do Senhor, o quanto saibamos pelos Evangelhos, ela não conseguiu realizar — por causa da ressurreição. Vede as notas sobre 19:25 e 20:1, 18. Notai a discussão de «fábulas», na página 76.

«Maria, a que ungiu o Senhor com perfume e lhe enxugou os pés

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 365

com o cabelo». A Versão Brasileira prejulga tdesnecessàriamente o caso da duvidosa identidade de Maria de Betânia com Maria de Mágdala ou com a prostituta que se convertera e como prova de gratidão adorou a Jesus e lhe cobriu os pés com suas lágrimas e os ungiu com perfume. Não há possibilidade de dúvida que duas vezes Jesus foi ungido com perfume, Luc. Luc. 7:38; João 12:2, 3. Eu acho que foram duas mu-lheres diferentes, o tradutor acha que foi a mesma mulher e impossi-bilita a hipótese de terem sido duas mulheres diferentes, visto tradu-zir os particípios aoristos, por «ungira» e «enxugara». Isso nos obriga a identificar Maria de Betânia com a meretriz convertida que apareceu na casa de Simão, o fariseu.

Ora, o grego não é responsável por essa atitude partidária e par-cial. O que diz o grego, literalmente, é: «E era a Maria, a ungidora do Senhor com perfume e a enxugadora de seus pés com os cabelos.» Em 90 d.C. o tempo do banquete era passado para João, ainda que fôra futuro para Lázaro durante sua doença fatal. E' perfeitamente natu-ral, a vista dêsses fatos, que João tivesse escrito: «E era a Maria que ungiu o Senhor com o perfume e lhe enxugou os pés com os cabelos.» Seria fácil achar casos paralelos. Basta lembrar que Judas Iscariotes em vários textos é identificado como «aquele que o traiu», muito antes do lugar na narrativa onde se havia de narrar a referida traição. O que todos os tradutores aqui devem fazer é traduzir de modo que o leitor esteja livre de entender a referência como a uma ocasião anterior ou subseqüente à doença de Lázaro, sendo ambas as ocasiões passadas quando João escreveu. Outros fatos entrarão na decisão. O tradutor não tem direito a decidir o assunto arbitràriamente, em oposição aos fatos.

Ainda há outro caso de identidade disputada. Mateus (26:6) e Marcos (11:3) narram a unção de Jesus em Betânia na casa de Simão, o Leproso, sem dúvida um leproso que Jesus havia curado. E' muito mais provável que essa unção seja idêntica à de João 12:2, do que identificar a unção de João 11:2 com a da casa de Simão, o fariseu, ou-tro Simão diferente de Simão, o Leproso. Há uma objeção: Mateus e Marcos dizem que foi ungida a cabeça de Jesus, e João salienta a unção dos pés. Mas é crível que Maria ungiu cabeça e pés, pois Jesus disse que ela o ungira para seu entêrro. O óleo na cabeça ficaria. Mas nos pés teria de ser enxugado. Se o entusiasmo dela a impulsionou a ungir-lhe os pés também, então ela estaria no momento desprevenida de toa-lha, pois vinha sômente para ungir a cabeça do Senhor. Nesse caso ela tomou seus cabelos como toalha para enxugar-lhe os pés, medida de emergência e devoção. Não há, pois, séria dificuldade para identificar as duas festas sociais como uma só. Mateus e Marcos não mencionam nem a Lázaro nem suas irmãs, pois poderia ser perigoso, em Evange-lhos destinados a circular em grandes centros de judeus, enquanto a

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família ainda vivia. Uma razão especial para identificar as duas fes-tas como sendo uma só, é que ambas se realizam em Betânia, na última semana e, especialmente, ambas são ocasiões da censura quanto à li-beralidade da dádiva da mulher.

O Dicionário de Davis, notando Marta servindo na casa de Simão o Leproso, conclui que eram casados. Perguntei ao Dr. J. R. Sampey sua opinião sôbre essa teoria e êle me disse achá-la inverossímil. Mar-ta podia ter ajudado no serviço como vizinha. A hipótese é interes-sante.

Minha própria opinião é que eles viviam, Marta, Maria e Lázaro juntos como três órfãos, não casados, Marta sendo a mais velha. Nessa vivaz e generosa mocidade Jesus achou alívio, recreação, hospitalidade pura e grato amor. Se de fato Marta era casada com Simão, como pensou Davis, talvez o fato explique vários detalhes da história: o fato do banquete dado a Jesus, sem dúvida em celebração da ressurreição de Lázaro, ser na casa mais ampla de Simão, o ex-Leproso, que também tinha seu motivo de especial gratidão ao Salvador ; ainda o fato de que os judeus confortadores parecem ter estado consolando a Maria, mais do que a Marta, v. 45. Os evangelhos nos dão êsses múltiplos da-dos sem urdi-los numa narrativa detalhada e complexa. E' lícito usá-los em harmonia, mas o dogmatismo no caso seria presunção. E' possível que dois banquetes se deram. Ungir um hóspede de honra era de se esperar em qualquer banquete. Mas harmonizam-se melhor os dados ria hipótese de um só banquete na casa de Simão (e Marta?), Maria trazendo de sua casa, que era vizinha, o precioso perfume e num rasgo de entusiasmo ungindo a cabeça de Jesus, e depois os pés também, im-pensadamente. Era impensado e, desprevenida de toalha, ela usou a cabeleira para enxugar. E esse entusiasmo e devoção impressionou tanto João que deu sua ênfase à unção dos pés, não narrada por Ma-teus e Marcos.

3. . «Aquêle que amas». Se podiam falar assim do afeto especial de Jesus para com Lázaro, não é, pois, de extranhar o especial amor de Jesus por João, que era também um jovem, nem o prazer de João em ser conhecido como «o discípulo a quem Jesus amava». E' o verbo amar usado em 20:2 e 21:15, 16, 17. Também se usa acerca do amor divino, 5:20.

4. Não é para a morte.» Poderiam negar a veracidade do Se-nhor quando Lázaro morreu. Mas quatro dias de túmulo não é «a mor-te», no que o têrmo comumente indica. E' morte que depressa foi can-celada e não existente. Dessa morte viria a glória para Jesus.

5. «Jesus amava Marta e a irmã dela.» A primazia é de Marta aqui. J. D . Jones opina que Jesus amava igualmente os temperamentos ativos e os meditativos. E sôbre a queixa de Marta a Jesus contra Maria porque esta não ajudava na cozinha, diz: «Marta não teria exi-

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 367

gido que Maria fôsse obrigada a levantar-se e servir, se tal serviço não fôra a norma de seus dias.» (4) O verbo amar aqui usado é outro, talvez mais formal, em dados contextos.

6. «Demorou-se ainda dois dias.» «João coerentemente represen-ta Jesus como quem nunca estava apressado. Ele sempre sabia quan-do chegava o tempo de agir (2:4; 7:6, 8) .» (5)

7. «Vamos seguir para a Judéia novamente.» Vêde as notas sô-bre 3:22, e como Jesus cumpria de antemão o programa da sua comissão de Atos 1:8 em termos geográficos. Esta vez êle vai ao término de sua vida, à sua vitória final, ao seu «êxodo» sôbre o qual Moisés lhe falara no Monte da Transfiguração. Sua serenidade está em vivo contraste com o terror dos Doze.

8. «Rabi, agora». Que apreciação viva do perigo se vê na mente dos apóstolos. Quase, quase viram as pedras cair sôbre o corpo inerte do seu amado Salvador, como réu de blasfêmia. Seu mêdo é magna evi-dência da gravidade da crise na vida nacional.

9. «Doze horas do dia». Livingstone disse: «Sou imortal até fin-dar meu trabalho.» «Os grandes homens sempre dispõem de tempo.» O arcebispo anglo-romanista, Cranmer, pensou em estender suas doze horas a treze, pela negação de sua fé. Mas depois prevaleceu a consci-ência e reafirmou-a «na undécima hora».

«Não são doze as horas 'do dia? Se alguém andar de dia, não tro-peça.» Era a madrugada do dia da partida dêle para Betânia e as doze horas de luz estavam, diante dêles. Podiam andar e trabalhar. Jesus fez da sua liberdade de movimentos uma parábola de sua liberdade de ação destemida enquanto não estava findado seu «dia», o prazo de sua atividade messiânica preparatória para a cruz. "Esse período do seu ministério era o prazo luminoso da vontade de Deus para sua vida. Agindo de acôrdo com a luz dêsse propósito, plano e prazo divino, êle não podia tropeçar. As doze horas de seu dia de vida ainda não esta-vam no crepúsculo.

10. «Se alguém vive peregrinando nas trevas, tropeça, porque não vê a luz dêste mundo.» E' interessante o verbo «tropeçar». E' cortar para diante, ao pé da letra. E' ambição de progresso rápido de-mais. E' o progresso além de Cristo, a Luz, resultando em andar nas trevas espirituais, sem o norte da revelação divina orientadora. Sôbre «mundo», vêde as notas sôbre 3:16 e 4:42.

11. «Caiu num sono duradouro.» Mas durou apenas quatro dias, e nunca afetou senão ao corpo. O espírito nunca dorme, mesmo em nosso sono. Conheci um estudante que resolvia no sono os mais com-

(4) “Thè Land of Life and Death", p. 41. (5) "The International Critical Commentary", sôbre êste Evangelho, Vol. II, p. 576,

por J. H. Bernard.

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plexos problemas matemáticos. Umas poucas vêzes tive igual felici-dade. Tenho organizado muitos sermões em meu sono. Os sonâmbulos andam e exercem todas as mais agudas funções mentais e físicas de maneira quase incrível, no sono. Sono é só do corpo. O espírito vive sempre consciente, ainda que não no nível de nossas atividades diurnas, durante o sono. Jesus, quando despertou Lázaro do sono, trouxe do céu de novo seu espírito para êste nivel corpóreo de atividade e do co-nhecimento próprio. Como muitas vêzes não nos lembramos de um sonho, ao acordar, Lázaro não trouxe ao nível humano consciente nada das experiências de seu espírito no além-túmulo. Um dia o veremos e saberemos o que houve de experiência naqueles quatro dias e por que Deus o fêz voltar para a glória do Filho unigênito. Que Jesus fale da morte assim é motivo de sublime confôrto — no seu pior aspeto ela é apenas um sono, e o espírito está com êle no paraíso desde o mo-mento de separação dos elementos físicos e espirituais da personalidade imortal. A tradução procura ser fiel ao tempo perfeito do verbo —«dormiu e ainda dorme».

«Vêde Atos 7:60; I Cor. 15:6, 20, 51; I Tess. 4:13-15, e meditai em II Cor. 5:1; Apoc. 14:13; João 14:1-4 ; Fil. 1:21; Col. 3:3 para ter mais luz sôbre a vida do além-túmulo.» (*)

«Nosso amigo dorme.» A Palavra «amigo» é da mesma raiz, em grego, do verbo traduzido por amar, e do substantivo beijo; contudo, seu sentido pode ser convencional, como em 19:12. Mas Jesus a enche da máxima ternura e lealdade, 15:13-15. Vede as notas sôbre 3:29 e 15:15.

12. «Será curado.» E' o verbo salvar. Será salvo do perigo físico da moléstia. Na ambigüidade dos vários sentidos possíveis de uma palavra, os torcedores da Escritura acham seu paraíso. Negando a possibilidade de salvação nesta vida e anelando adiar as responsabili-dades atuais até outra vida, no purgatório, os peritos na caiação ro-manista deste Evangelho e dos Sinóticos se esforçam para eliminar a idéia de salvação, dessa palavra, nas grandes promessas de Jesus. Se o Salvador diz : «A tua fé te salvou», êles caiam por cima: «A tua fé te curou», e limitam o alcance do verbo do Mestre ao terreno físico. Felizmente, há casos abundantes e inconfundíveis em que a pessoa a quem Jesus falou não estava doente, nem se tratava de males físicos na promessa. São casos como o de Zaqueu a quem o Senhor disse: «Hoje veio a salvação para esta casa.» A pecadora na casa de Simão, o fariseu, recebeu de Jesus, não um milagre de cura de moléstia, mas o perdão dos pecados ; e é nesta conexão que Jesus diz: «A tua fé te salvou; vai-te em paz» (Luc . 7 :50) . E em Luc . 8 :12, na parábola do semeador, Jesus fala de ouvintes que «crendo, sejam salvos». Assim

(*) "The Teacher", de fev. de 1943.

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é o sentido em João 3:17; 5:34; 10:9; Atos 4:12; 11:14; 16:31. O contexto explica o texto com absoluta clareza. Não existe a mínima desculpa para semelhante perversão da Bíblia, buscando ensejo de eli-minar a salvação desta vida. Quem não fôr salvo nesta vida nunca terá salvação alguma, como João disse em João 3:36.

13. «O repouso do sono». E' uma linda figura da morte do cren-te. «Cemitério» quer dizer, etimologicamente, dormitório. Todavia, não é o espírito que dorme, apenas o pó.

14. «Franqueza». E' o que os judeus pediram em vão, em 10:24. A franqueza com a franqueza se paga. O contrário cristão da franque-za, porém, é o silêncio ou a repreensão, não a hipocrisia.

15. «Tenhais novo surto de fé». Procuro assim dar a idéia do tempo aoristo. Quanto aos aspectos perenes da fé salvadora e santifi-cadora, já eram crentes. Mas o crente está sempre recebendo novos surtos de fé. Fé perene é como um filme cinematográfico, um compos-to de repetidas atitudes de fé, como se faz um filme por milhares de fo-tografias unidas em rápida sucessão. Deus quer que o crente venha a crer, e de novo venha a crer, e sinta outros surtos de fé, a confirma-ção da fé, dando razão ao coração em haver crido, alargando a visão e o alcance da fé, trazendo no seu horizonte e escôpo cada vez maiores problemas para resolver à sua luz, animando, corrigindo, motivando, educando a vida a cada passo com novas conquistas da fé. Pois ela é a nossa vitória, diz o mesmo apóstolo, sôbre o mundo. Como os após-tolos já possuiam o Espírito, mas haviam de receber o Espírito em funções especiais no dia de Pentecostes para sua obra de evangelizar as nações, assim os que já eram crentes receberiam repetidamente no-vos surtos de fé, estimulados pelo Salvador.

«Folgo de não me achar lá.» Bengel nota que não se fala de pessoa alguma que tivesse morrido na presença de Jesus e acha que a morte era impossível onde êle se achava.

«Para que experimenteis um surto de fé.» «Já eram crentes, pois, de outra forma, não seriam chamados discípulos; mas a fé está em cons-tante crescimento, se é viva, e os Doze bem sabiam que sua fé era sus-cetível de aumento (Luc. 7:5).» (6)

16. «Tomé». «A obra grega Acta Thomae diz que Tomé era ir-mão gêmeo de Jesus.» E' uma tradição dos homens, tão insensata como falsa. E' evidente, porém, que não causava escândalo algum no ambiente supor que Jesus tivesse irmãos. De fato, tinha, mas seus nomes eram Tiago, José, Simão e Judas (Mat. 13:15) — não havendo

( 6 ) "The International Critical Commentary", Vol. II, sôbre este Evangelho, p. 380, por J. H. Bernard.

(*) "Jornal do Comércio", Rio de Janeiro, 22 de julho de 1943.

C. E. d. — 24

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nenhum Tomé. Ele era gêmeo. Se o outro gêmeo vivia, é exemplo de corno Cristo divide, para unir consigo os seus.

«Morrermos com êle». E' o homem das dúvidas. Mas na hora da decisão o que tem dúvidas pode ter grande bravura e resolução.

«Tomé». Nas listas dos apóstolos sempre lemos Mateus e Tomé, a não ser no primeiro Evangelho das nossas Bíblias, onde a ordem é «Tomé e Mateus». Igualmente Marcos, eco de Pedro, omite muitos in-cidentes e muita linguagem que serviria para enaltecer a pessoa e a dignidade de Pedro, mas cita muitas coisas contra Pedro. Vêde o Vol. I, ps. 25, 26.

17. «Quatro dias». «Agostinho in loco faz urna alegoria dos qua-tro dias: um dia de morte pelo pecado original, um dia pela violação da lei natural, um pela violação da lei de Moisés, e outro pela trans-gressão do evangelho. Não é nem mais nem menos fantástico do que os esforços de alguns críticos modernos para achar alegorias em tôda a narrativa de João.» (8)

18. «Jerusalém». Vêde as notas sôbre 5:1. 19. «Muitos dos judeus... para consolar». Lightfoot em sua

Horai Hebraicai dá muitos detalhes curiosos sôbre as cerimônias que se efetuavam nessas reuniões nos dias de luto. Os primeiros três dias da morte eram guardados escrupulosamente e depois mais quatro dias com menos severidade, continuando com menos rigor até se comple-tarem trinta dias.

«Muitos dos judeus». Sem dúvida, de Jerusalém, talvez de notá-veis famílias, ansiosos ou de confortar aquela respeitada família enlu-tada, ou de verificar se, a despeito de sua conhecida amizade com Je-sus, nada faltava aos costumes e tradições dos seus pais. A presen-ça de tantos de Jerusalém, quer na ocasião da ressurreição de Lázaro, quer no banquete subseqüente, constituiria um perigo especial para Jesus, uma antepenúltima provocação, por assim dizer, da crucificação, sendo a entrada triunfal e a segunda purificação do templo a última e a penúltima dessas provocações.

20. «Marta... saiu; Maria ficou.» Condizem as atitudes com as duas mulheres, de gênios tão diferentes. Esta vez Marta é quem dei-xou para Maria as responsabilidades da casa e buscou de Jesus «aque-la boa parte» que Maria escolhera para gozar em outra ocasião (Luc. 10:42) . Os papéis são invertidos na hora do luto.

Seria impossível imaginar essa larga estima de Maria na comunidade judaica, se primeiramente a identificássemos com Maria Madalena, mu-lher eminente que morava em Mágdala, cidade distante, e ainda mais se, confundindo essas duas nobres crentes em Jesus, ainda confun-

(7) Idem, p.. 381. (8) Idem, p. 382.

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dissemos as duas com a anônima meretriz que lavou os pés de Jesus com as lágrimas de seu arrependimento. Nessa dupla hipótese calu-niadora e perversa, Maria nem teria raízes tão fortes em Betânia, sen-do de Mágdala, e nem teria o apoio social indicado por êsse círculo de amizade e estima, ainda tão carinhosa quatro dias depois do se-pultamento de Lázaro.

21. «Não teria morrido». Já é grande fé. Pois Jesus não era médico, como Lucas. Maria dirá quase as mesmas palavras, havendo uma comovedora diferença no original. O grego diz: «O irmão de mim», na linguagem de Marta. Mas na linguagem de Maria (v. 32) o pronome pessoal vem antes do verbo: «de mim não teria morrido o irmão», como se sentisse que uma parte do seu próprio ser finca rou-bada. E' toque de testemunha ocular. Esse grito lancinante e tão comovedor agitou o espírito de Jesus.

22. «Deus... Deus». Duas vêzes em tão pouco espaço é forte ênfase. Mostra que para o espírito prático de Marta, Jesus estava completamente dependente de Deus, — não sendo Deus. A sua fé nêle como o Messias e Filho de Deus não reconhecia a sua deidade . De fato, na sua humilhação Jesus ensinava sua constante dependên-cia do Pai. O que valia era que sua dependência do Pai era como a dependência de um rio caudaloso dos seus mananciais. Não lhe fal- tava nunca. Tal dependência é relativa onipotência, onipresença, onisciência. Um ser local, pela oração e comunhão, dispõe dos ade- quados recursos do Infinito e Todo-poderoso. Jesus era Filho de Deus em sentido único, Filho na Trindade. Depois da sua ressurrei-ção tornou-se cada vez mais patente que êle é Deus o Filho.

«Tudo o que pedires Deus to dará.» E' o surto de uma espécie de fé cega. Há uma vaga e indefinida esperança em Marta para esse transe, se bem que não ousasse formalmente expressar sua fé na res-surreição de Lázaro antes do dia final. Mas ela confia nos recursos de Jesus como a mãe dêle confiara quando em Cana de Galiléia e dissera aos serventes: «Tudo quanto êle vos disser, fazei-o.»

23. «Tornou-lhe Jesus». J. S. Riggs parafraseia a conversação de Jesus com Marta assim: «Não é da ressurreição simplesmente como evento futuro em que desejo que agora penses; antes medito no princípio permanente e espiritual que faz com que tôda ressurreição seja possível. isto é, da vida divina que procede de mim e por mim a todos os que crêem. Aquela vida, obtida por alguém mediante a entrega de si mesmo a mim em plena confiança, é indestrutível, eterna. Aquele que a leva no seu co-ração, quando entrar pelos portais da morte física, triunfará completa.. mente sôbre a morte. Quem a possui na vida terrena jamais a- perderá. Continua pelos séculos e pela . eternidade. E' pela vida, 'por mim outorga-da que cada alma humana pode ser vitoriosa sôbre a morte em tôdas as formas. Crês isso, Marta?» A resposta dela foi: «Sim., Senhor, eu alcan-

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cei a fé em ti, creio que tu és o Messias, o Filho de Deus, que devia entrar no mundo, e em crendo isso, eu creio também em todas as palavras que tu dizes.» (9) Riggs pensa que Maria estava um tanto abalada na sua fé pelas condolências cerimoniais dos judeus que quase a sufocavam. Marta era mais enérgica e alcançou esta vez uma fé maior e mais vigorosa, se bem que incompleta, quanto ao dom que ia receber de Jesus.

24. «Na ressurreição». Algo sôbre a natureza da ressurreição se discute nas notas sôbre 5:28-29. 'Este «eu sei» traduz a forte convicção da crença comum aos judeus, Jesus e nós. Sua máxima expansão literá-ria se acha em I Cor. XV.

25. «Eu sou a ressurreição e a vida.» «Podeis imaginar qualquer homem, meramente homem, ccm tamanha audácia para dizer semelhan-tes palavras?» (10) Vêde as notas sôbre 8:20.

«Eu sou a ressurreição.» Os homens são julgados agora, entram na vida eterna agora, experimentam uma ressurreição moral agora para an-darem por todo o porvir em novidade de vida. Que isso se deu em. nossa salvação cada um de nós professou, ao ser batizado, segundo Rom. VI e Col. II. Westcott nos diz: «A ressurreição vem em primeiro lugar porque o ensino tem seu ponto de partida da morte, mas o têrmo especial fica de vez absorvido na palavra mais profunda que a inclui — vida.»

«Crê... viverá». A vida começa no ato de ouvir o evangelho, quan-do ao ouvir é acrescentada a fé no Salvador anunciado. Vêde as notas sôbre 5:25, 40.

«Ainda que esteja morto, viverá.» Um escocês que conheci dizia: «Não importa que eu viva ou morra: se eu morrer, estarei com Cristo, e se eu viver, Cristo estará comigo.» (11)

26. «Nunca jamais morrerá.» «A morte não quebra a continuidade do gôzo da vida eterna que é o quinhão do crente. ...Embora o crente venha a morrer fisicamente, êle nunca morrerá espiritualmente, e assim não terá solução de continuidade seu gôzo da vida, eterna.» (12 ) Ryle, em seu comentário sôbre os Evangelhos, diz algures: «Jesus não permitirá jamais que uma alma que lhe tem sido entregue se estravie de todo e se perca. Ele velará sôbre ela e mantê-la-á segura, a despeito do mundo. da carne e do Diabo. Jamais será quebrado um ôsso do seu corpo místi-co... No último dia êle introduzirá na glória todo o rebanho sem que haja perdido um só cordeiro.» Sôbre a fortíssima forma da declaração, vêde as notas acêrca de 4:13. Sôbre o verbo crer e vários sentidos de fé, vêde o comentário a respeito de 4:53; 5:38; 6:29, etc.

27. «Eu creio.» Num vivo contraste com a crescente fé das duas

(9) "Messages of the Books of the Bible", in foco. (10) "The Teaeher", de fev. de 1943, num artigo de John L. Hill. (11) Idem, de urna criação de A. C. Dixon. (12) Idem, notas do redator.

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irmãs, em hora tão difícil, meditai na crescente e, finalmente, vitoriosa descrença na ressurreição, pela solidariedade da sabedoria intelectual de modernistas, como Sanday, que rejeitou afinal a historicidade dêste Evan-gelho por ter rejeitado a possibilidade do miraculoso. Vêde Vol. I, ps. 22, 23. Declarações iguais se acham em João 1:34, 41; 20:31; Mat. 16:16; 26:63-64.

28. «Em segrêdo». Não se pode duvidar de que uma pessoa prá-tica como Marta bem soubesse da perigosa hostilidade contra Jesus, que existia em muitos daqueles corações aristocráticos. Também a alma en-lutada anela por sair do palco da publicidade. Já dura quatro dias aquê-le protocolo.

29. «Depressa». Sem uma palavra. Num vivo contraste com os do conforto protocolar. Jesus eclipsou os demais consoladores.

30. «Jesus não havia entrado.» Foi a prudência que o levou à Pe-réia, e o levará logo a Efraim. Quão incompreensíveis, mas evidentes, são, a delegada onipotência do Filho de Deus e seu real perigo, na mesma hora. São fatos da encarnação do Verbo. Além disso, Jesus estava can-sado, depois de andar sete léguas, subindo, por último, a montanha. Estava exausto, como vemos em 4:6.

31. «Para prantear ali». Era a tardinha, a hora da mais pungen-te saudade.

32. «Meu irmão não teria morrido.» Alguns pensam que as irmãs receberam de Jesus, na volta dos mensageiros, a promessa que se acha no v. 4. E', porém, igualmente possível que os mensageiros fossem amigos que iam passando pelas duas Betânias e deram, de boa vontade, o recado e seguiram seu caminho. E' possível que essas palavras tivessem sido ditas aos discípulos em particular. Ademais, parece pela distância e o tempo que Lázaro morreu antes de um mensageiro ter tempo de vol-tar. Não há razão, pois, de supor existir um instante de dúvida acêrca da veracidade de Jesus. Provàvelmente as duas irmãs não sabiam das pala-vras que temos no v . 4. Suas atitudes são normais.

33. «Ficou indignado em seu espírito.» «Acompanhando-a havia muitos que vieram de Jerusalém para lamentar com as irmãs, e ainda que não possam ser classificados na categoria dos pranteadores profis-sionais, como na casa de Jairo, tampouco podem ser considerados como participando da fé e do amor que havia em Maria para com seu Senhor. Estava presente, pois, um elemento não ~ente de descrença mas de hostilidade a Jesus, uma influência malévola que teria prazer em conven-cer à Maria e sua irmã que fora a negligência da parte de Jesus que cau-sara a morte do irmão delas. Era duro de suportar.» (Autor desconhe-cido.)

«Perturbou-se.» A expressão é forte: Agitou-se a si mesmo. David Smith acompanha os antigos intérpretes gregos ao pensar que Jesus se

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indignava e se comovia diante da necessidade de Lázaro voltar a êste mun-do. Mas eu acho isso artificial e quase irreverente.

«Jesus, portanto, quando a viu em prolongado pranto e os judeus que vieram com ela em pranto contínuo, ficou indignado em seu espírito e se comoveu.» Por que a indignação? E' sempre lastimável quando os cren-tes se conformam com o mundo em suas horas de luto. Já haviam pas-sado quatro dias. O tempo de semelhante pranto devia ter acabado. Con-vinha dominar as emoções de modo a reter a violência de sua manifesta-ção pública.

O simples fato era que Marta e Maria eram judias e, como tantas pessoas hoje em dia, nunca se preocupavam tanto em estar na moda como quando estavam de luto. A moda judaica era de alto e prolongado pran-to. Os judeus no luto tinham a mesma inclinação que tinham na reli-gião — a de ostentar-se como o pavão. Vêde as descrições que Jesus mesmo deu dessa ostentação, Mat. 6:5. Não duvido da sinceridade do pranto de Maria e Marta, pois o lar das três parece ter sido de uma ter-nura e carinho mútuo, indizivelmente precioso para os três e para Jesus. 'Mas eu muito duvido da sinceridade daqueles judeus, rompendo à von-tade em prolongado pranto quatro dias depois do entêrro. Era hipocrisia, e despertou a indignação de Jesus como sempre a despertava a insincerida-de vaidosa. Vemos a mesma reação de Jesus em circunstância semelhante em Luc. 8:52 — «Todos choravam e pranteavam.» Mas era pranto «para inglês ver». Jesus mandou: «Não choreis.» «E riam-se dêle.» O riso não estava longe de seus lábios no meio dêsse mero pranto hipócrita. Al-guns até alugavam as vozes de pranteadores profissionais, e os meninos brincavam de enterros e pranto, do mesmo modo corno de casamento e canto, Luc. 11:32. Era um dos fenômenos mais comuns da sociedade. Jesus não pranteou. Sua simpatia era mais real do que a dos prante:ido-res. (O têrmo grego é masculino e indica que homens e mulheres estavam ria companhia dos que seguiam a praxe social de boa vizinhança.) Com Jesus era questão de princípios. Ele era oriental e noutra ocasião podia também chorar em voz alta e amarga. Chorou assim sobre Jerusalém, Luc. 19:41. Mas não pranteou aqui. Outro verbo se usa — «derramou lágrimas», v. 35. Deslisaram pelas faces as lágrimas da compaixão e do amor. Mas não se associou com o pranto profissional.

A primeira Epístola que Paulo escreveu teve por um dos seus fins «que não vos entristeçais como fazem os demais, que não têm esperança»,

Tess. 4:13. Nosso luto, longe de ser mera conformidade com a moda. tem de ser diferente. Certamente, nossos costumes devem modificar as praxes sociais lentamente. O que vale é a sinceridade. E' perfeitamente lícito prantear, chorar em voz alta, quando o espírito pede êsse alívio em hora de grande calamidade. Jesus fêz isso uma vez. Maria estava assim chorando em voz alta diante do túmulo vazio de Jesus, João 20:11. Pe-dro assim pranteou sozinho sua negação do Mestre, em lugar à parte como

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se fosse dia de enterro de ente querido, Luc. 22:62. Seríamos insinceros em extremo se proibíssimos a natural manifestação das grandes dores do espírito. Mas o evangelho alivia, minora, suavisa essa dor. Não sen-timos o luto do desespero nem devemos dar essa impressão. Temos es-perança viva, mesmo na hora da morte e devemos dar evidências da fé que temos. E se nos fôr natural imitar o choro silencioso de Jesus, não faz mal imitar o Mestre. A maneira por que os crentes suportam seus sofri-mentos por ocasião da morte de entes queridos e a grande consolação que temos é fonte perene de poder do evangelho.

Depois de escrever essas palavras encontrei um estudo especial dos dois verbos que descrevem a agitação de Jesus, pelo Dr. Archibald Hender-son, o principal do Seminário Teológico Presbiteriano de Glasgow, na Escócia, publicado em «The Expository Times», há muitos anos. Êle também opina que há indignação inerente no primeiro dos dois verbos. Diz: «A indignação deve ser entendida como expressa não por palavras mas pelo olhar ou gesto, como nas ocasiões narradas em Mar. 3:5 e 5: 39, 40 quando êle jogou fora os pranteadores profissionais na casa de Jairo. Uma coisa que sempre fêz ferver a ira indignada de nosso Se-nhor foi a incredulidade, na rejeição do seu evangelho, ou no antagonis-mo ao seu progresso, ou na hipocrisia que procurava desprestigiá-lo (Mat. 11:20; 17:17; 23:16, etc.). Era a causa daquele aborrecimento indigna-do agora evidente acs que o acompanhavam. A outra frase muito deba-tida, «agitou-se», é mais facilmente explanada. Às vêzes é considerada sinônimo do verbo anterior, mas os sucessivos tempos aoristos indicam progresso na narração. Este segundo verbo significa fazer surgir, des-pertar como em 5:7; e nesse sentido deve ser tomado aqui. O evangelis-ta nota a mudança visível em nosso Senhor. Êle tinha estado em simpa-tia passiva. Agora pela sua indignação é movido a agir. E essa sua re-solução de agir acha expressão na pergunta imediata: Onde o puses-te?... Êle se apressa em ir ao túmulo para fazer o que tinha vindo para efetuar e assim vindicar e confirmar a fé nêle, que estava sendo ata-cada, e por alguns dos presentes ridicularizada e rejeitada com ressenti-mento (vs. 37, 46, 48, 53) . Se entendemos assim essas palavras a his-tória inteira deste capítulo torna-se luminosa.»

33. «Em espírito». Jesus Cristo estava dotado na encarnação com um espírito humano como os nossos espíritos. E é evidente pela comparação desta e de outras passagens que se empregam as palavras espírito e alma a respeito de sua personalidade humana mais ou menos indistinguivelmente, como as empregam as Escrituras a respeito de nossas personalidades. O espírito humano de Jesus não era o Espírito Santo. Aqui vemos Jesus prêso de indignação comovedora «em seu es-pírito». Em 12:27 êle exclama: «Agora está perturbada minha alma.» E em 13:21 vemos que 'ele ficou angustiado «em espírito» de novo. Na parábola do Bom Pastor, três vêzes é a «alma» (vida) de Jesus que é

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sua eficaz oferta em benefício das ovelhas. Mas em 19:30 «rendeu o espírito». Não há sensível distinção nas duas palavras sinônimas se não em passagens raras e de sentido duvidoso. Ambas as palavras são o nome de nossa personalidade, contemplada em seu aspecto invisível e incorpóreo, quer dentro do corpo em vida ou depois da morte dêste.

34. «Vem e vê.» David Smith cita um regulamento segundo o qual um túmulo devia estar distante da aldeia uma milha. Edersheim, po-rém, opina que estava numa horta perto da residência da família. Eles chorando seguem a Jesus.

35. «Jesus derramou lágrimas.» Cada «Semana Santa» o clero faz publicar uma velha tradição de que Jesus foi muitas vêzes visto a chorar mas nunca ninguém o viu sorrir. E' uma tradição insensata. Se êle nunca sorriu, como vemos nêle tanto humorismo e ironia? Se nun-ca sorriu, como é que as crianças o cercavam com gôzo e ficavam em seus braços contentes? Se nunca sorriu, por que freqüentava banquetes, fes-tas e casamentos? Porque comia e bebia ao ponto de ser chamado glu-tão e beberrão pelos seus caluniadores? Ele chorou silenciosamente uma vez e pranteou em alta voz uma ou duas vezes (se incluirmos Getséma-lie). Mas sua vida normal era de gôzo. Se nunca sorriu então a encar-nação era incompleta. O Filho do Homem seria, nessa hipótese, menos do que homem.

«Derramou lágrimas.» Vêde as notas sôbre os vs. 33 e 38. Em Getsêmane Jesus «ofereceu preces e súplicas com forte clamor e lágri-mas ao que podia salvá-lo da morte, tendo sido ouvido pela reverência», Heb. 5:7. A alma de nosso Mestre era capaz de emoções tão fortes que êle bradou sua dor em voz alta como oriental que era. Aqui, porém, está bem senhor de si, já há dias resolvido a efetuar a ressurreição, sim-patizando em silenciosa compaixão e lágrimas misturadas de tristeza e alegria sôbre o que sucedera e ia logo suceder.

36. «Vêde como ele o amava.» Sobre o verbo amar, que se tra-duzia, em outros contextos, beijar, vêde a discussão de 21:15-17. Por êste versículo e o seguinte, julgo que a companhia, na sua maioria, era favorável a Jesus, pelo menos superficialmente, diante de suas lágri-mas. Outros, porém, houve que mesmo diante de sua emoção não o pou-param de censura.

37. «O cego». O bem notável caso, não o mais extraordinário dos milagres de Jesus, mas o que causara maior celeuma, mais intensa opo-sição. Fôra oficialmente amaldiçoado e expulso da sinagoga, que era culto, corte, centro social, escola e casa de oração para todos os judeus que dela pudessem aproveitar.

38. «Jesus outra vez movido de indignação». Este verbo se usa em Mat. 9:30; Mar. 1:43; 14:5; João 11:33, 38. Bernard opina que o ver-bo expressa «a exteriorização da energia do espírito, o efeito físico de poderosa emoção sôbre a voz. Representa os sons inarticulados, solu-

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cos que escapam de uma pessoa dominada, engolfada por grande onda de dor... é a indicação corpórea e externa de agitação e luta interna de profundo alcance espiritual.» (13) Não há dúvida. E não há dúvida tam-bém quanto ao elemento de indignação sempre latente no uso do verbo, até onde minhas investigações me informam. Outros opinam que Jesus se achava ultrajado pela própria morte, sentia o desejo e propósito de destruí-la, e indignou-se por causa do pranto que estava causando, pen-sando de como iria desaparecer pela vitória de sua ressurreição. Mas isso sentimentaliza os fatos, olvida que Deus ordenou a morte, e não tonta em conta a hipocrisia do pranto profissional dos judeus que enchia os ouvi-dos do Mestre e lhe impossibilitava qualquer palavra de confôrto que êle podia ter dirigido à Maria corno dirigira à Marta anteriormente. E' até possível que muitos judeus pranteassem ainda mais alto para afogar a voz de Jesus. Essa segunda indignação dêle é causada por uma censura que insinuavam contra êle, v. 34, visando envenenar as relações de pre-ciosa amizade de Jesus com Maria e Marta. O verbo indica indignação e forte emoção. E' evidente em ambos os contextos que foi provocada a indignação de Jesus. Não há razão para repudiar o sentido do verbo. E o tempo é de contínua atitude, durante tôda a jornada ao túmulo. Vê:ie as notas sôbre v. 33.

«Caverna... pedra». A Palestina é terra calcárea e entre a multi-dão de grutas e covas, muitas são aproveitadas como túmulos. Urna pedra vasta serviria de proteção contra feras, que subiam do vale do Jordão no tempo das enchentes, e poderia ser selada, dando tanta segu-rança quanto higiene, em maior grau. A um povo com este princípio as catacumbas de Roma não deviam ter sido lugares estranháveis como se-pulcros e mesmo lugares de reuniões religiosas.

Falando num cemitério, o Dr. Rendell Harris disse, na grande ci-dade comercial de Birmingham, Inglaterra: «Este cemitério é o lugar mais vazio em tôda a Birmingham. Não está aqui ninguém, absoluta-mente ninguém.»

39. «Tirar». E' o mesmo verbo usado pelo Batista a respeito do Cordeiro que toma sôbre si e tira de outros o pecado do mundo. As duas idéias estão aí. E' mister tomar a pedra para si, a fim de tirá-la do seu lugar de obstáculo para a ressurreição do ente querido. Jesus fêz algo infinitamente parecido, para a expiação de nossos pecados.

«E' cadáver de quatro dias.» Ou «do quarto dia». A viagem de quem trouxe o recado sôbre a doença de Lázaro levou um dia. A volta de Je-sus gastou outro dia. O Mestre demorou dois dias, antes de partir. Há muitas tradições, não facilmente verificadas, (pois é muito provável a confusão das tradições de uma época antiga com época posterior ou anterior, mas porventura melhor documentada), tradições, digo, sôbre

(13) "The International Critical Commentary", sôbre este Evangelho, Vol. II, p. 393.

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os costumes dos judeus quanto aos funerais. Autoridades respeitáveis afirmam que era praxe aguardar por três dias a possível volta do espí-rito (talvez real, em certos casos, do estado de coma). Ao quarto dia, se o morto não mostrava sinais de vida, o pranto definitivo de desespero começava e durava ainda três dias, pois o luto dos judeus, como o dos romanistas, geralmente tornava o aspecto anti-bíblico do «último adeus».

40. «Eu te disse que, por um rasgo de fé, verás a glória de Deus, não é,?» Se não encontramos precisamente essas palavras nos versícu-los em cima, não é sinal que não foram proferidas. Não encontramos menção também do fato de que Jesus mandou chamar Maria, senão de-pois do término do diálogo, no v. 28. Vêde o Vol. I, ps. 36, 37 ainda, sôbre como os diálogos e discursos de Jesus forçosamente tiveram de er resumidos, numa obra de limitado número de páginas de papiro r.n-

tigo. Não pensemos, pois, que faltasse fé naquele grupo. Pelo menos em Jesus existia a fé até ao ponto da certeza, do feito já consumado, pelo qual êle podia dar graças em antecipação.

41. «Graças». E' a palavra de que vem, etimologicamente, nossa palavra «eucaristia», que é um termo nunca encontrado no Novo Testa-mento grego em sentido sacramentalista ou de mais remota referência à Ceia do Senhor, como nome dessa ordenança. Sôbre êste fato, vede os comentários a respeito de 6:11, 23. Jesus deu graças pelo que estava para receber. Encetava sua obra com o espírito triunfante de louvor. Sôbre a simplicidade desta oração, Bengel diz: «Nomina dei non sunt eu-mulanda in oratione.»

42.«Sempre me ouves.» Então foi ouvido em Getsêmane. Aliás, é o que a Epístola aos Hebreus afirma : «tendo sido ouvido pela sua reve-rência». Também as orações de sua Intercessão Pontifical (Cap. XVII) foram ouvidas. Seus crentes, que o Pai lhe deu, são guardados, santifi-cados, conservados em união espiritual com Cristo numa só família de Deus (que não é nada eclesiástica), e glorificados, tudo no progresso normal na vida cristã. E' por isso que êle diz: «Eu não rogo pelo mun-do.» Jesus não fazia orações sentimentais, não pedia à toa. Pedia sem-pre segundo a vontade de seu Pai. e, portanto, em calma e absoluta cer-teza podia dizer: «Sempre me ouves.» Uma oração de Jesus que não fosse ouvida, um pedido do Filho que o Pai se recusasse a atender, seria uma divergência na Trindade, anarquia no universo. A súplica no Cal-vário, «Pai, perdoa-lhes», tem sua resposta abundante no batismo de três mil salvos, no dia de Pentecostes, e na subseqüente conversão de muitos sacerdotes.' Este fato nos outorga a certeza da soberania final. do Juiz e Rei Jesus sôbre as nações, como é descrita no Salmo II.

43. «Clamou em alta voz.» Por que? O cadáver aí está à frente dele. Se é para despertá-lo do sono dos restos físicos, basta falar. Não. A alta voz clama ao espírito distante, que não estivera no túmulo nos três dias. O pó dorme, o espírito voltará a Deus. Jesus falou a Deus

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primeiro. Tem a segurança de que o Pai ouviu e fará voltar a alma imortal. E para esta é sua simbólica chamada e ela toma de novo sua residência no pó reanimado e se levanta e vai a Jesus.

«Lázaro». Epifânio nos transmite a lenda de que. Lázaro tinha trin-ta anos e ainda viveu trinta anos. Se fôsse assim estaria vivo quando Mateus, Marcos e Lucas escreveram e a inclusão desta narrativa poderia pôr sua vida em perigo. Quando João escreveu, já morrera de novo 11:1 trinta anos. Conheci um professor da Escola Dominical que se apegou literalmente ao texto de Heb. 9:27, «é ordenado aos homens que morram uma só vez», e asseverou que Lázaro, Dorcas e os demais ressuscitados por Jesus e os apóstolos nunca mais morreram. E' uma especulação fú-til. Se não tivessem morrido, antes fôssem arrebatados como Enoque, é provável que tivéssemos menção do fato, até neste próprio Evangelho. A ênfase de Heb. 9:27 é perfeitamente clara, sem necessitar de ser tor-cida assim.

44. «Atado mãos e pés com faixas». Com faixas, notai bem. Não diz: «com uma só faixa». A incredulidade vai ao ponto de oferecer ob-jeções à veracidade de João, e a possibilidade do milagre, insistindo ern que um cadáver envolto em mortalha não podia andar. O verbo é singu-lar: êle estava atado e ficou como fora, até que mãos amigas viessem de-satá-lo. Mas não era uma só faixa que envolvia mãos e pés. Cada parte do corpo seria envolta, com especiarias, em panos separados. Não era uma múmia. Se fôsse, não teria já cheirado mal. Até Agostinho nutre essa ilusão, dizendo que Jesus fêz um segundo milagre para que Lázaro Pudesse andar, envolto como estava. Mas não era o andar ridículo de uma múmia saltando milagrosamente qual bola de borracha. Nada frí-volo e fútil mancha a história como é realmente narrada. Lázaro andou, quase com a falta de liberdade de movimentos que um escafandrista sen-tiria na terra. Mas andou. E João nos permite ouvir .a ordem prática de Jesus e deixa a cortina cair sôbre a cena.

«Desatai-o e deixai-o ir.» Como é notável o grau em que toda a ar-tificialidade está ausente do espírito do nosso Senhor! Nada de «Ale-Tílias». Nada de gritarias «Glória a Deus», no mesmo oco formalismo doA prantos profissionais que o deixaram indignado. O Sermão do Monte nos mostra que êle sempre se indigna contra todo o formalismo, a prá-tica de atos religiosos, a postura religiosa -para ser vista pelos homens, uma religiosidade de fachada, profissão, em atos e não em palavras, de sentimentos que não se sentem. Tudo isso é motivo de repugnância e indignação para aquele com quem temos de tratar, em nossa vida espiri-tual. Nos outros casos, ele mandou imediatamente dar comida ao ressus-citado. A Lázaro não levantou com o estômago cheio. Tratar disso é prazer para os que amam o ente querido e êle permite ao amor tomar formas práticas.

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Num rasgo de raiva um sacerdote vê a Vítima Expiatória

(Capítulo XI, versículos 45 - 53)

•3 O Reino Cresce I Muitos dos judeus, pois, que vieram ter com Ma-

pela Fé ria e contemplaram o que ele fêz, se tornaram cren- 46 tes nele. 1 Alguns dentre eles, porém, foram-se 47 embora para os fariseus e lhes contaram as coisas que Jesus fêz. 1 Os sumos

sacerdotes, e os fariseus, pois, reuniram em assembléia o Sinédrio, e diziam: "Que é que estamos fazendo diante do fato de que êsse homem está operando

-18 muitos sinas miraculosos? 1 Se nós assim o tra-

A Descrença é Into- tamos com tolerância, todos se tornarão crentes

lerante da Fé nele; e os romanos virão e tirarão nossas prerro- 49 gativas, tanto de lugar como de raça." 1 E um

dentre eles, um certo Caifás, por ser sumo-sacerdote aquêle ano, lhes decla- rou: "Vós outros não sabeis nada, 1 nem estais

O ódio sacerdotal tomando em consideração que é de nosso interesse

e o amor divino que um único homem morra em lugar do POVO e 51 concordam na ne- que a raça inteira não se perca." 1 Isso ele disse,

cessidade da mor- porém, não de si mesmo; pelo contrário, por ser 52 te vicária de Jesus sumo-sacerdote aquêle ano, ele profetizou que Jesus

Cristo ia morrer em lugar da raça, 1 e não sOmente em lugar da raça, mas para que também ele congre-

53

gasse de vez, em unidade, os filhos de Deus que vivem qual Dispersão. I Desde êsse dia, pois, tramaram matá-lo.

45 - 53. Uso neste trecho a tradução «raça», da palavra grega ethnos, da qual temos nossa palavra étnico, etc. De fato, nem raça nem nação verte totalmente a idéia do têrmo. Em certo sentido, a raça judaica era a nação, e a nação era a raça. Aliás essa é a idéia de tôdas as ideolo-vias totalitárias. Mudam as fronteiras da nação, do govêrno da nação, da cultura, educação, compromissos e tudo mais da vida nacional. Engolem outras nações da mesma raça ou que sirvam para os fins raciais. RAÇA é a grande palavra do racismo-nacionalismo que crucificou Jesus e sempre procura crucificar, guilhotinar, enforcar, «liquidar», esmagar todo ser livre que não lhe curva a cerviz para o jugo do domínio total e em ab-soluto do homem — corpo, alma, mente, espírito, consciência, cultura, in-fância, mocidade e velhice. O RACISMO judaico engendrou muitos imita-dores, através dos séculos entre os inimigos dos judeus. O crente não pode ter sociedade com tais anti-cristos. Estará crucificando de novo para si o Filho de Deus e expondo-o à ignomínia.

«Maria». A Vulgata acrescenta: «Marta», sem iustificação textual. E' realmente de admirar que João represente que a visita dos judeus fôs-

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO

se única ou especialmente para Maria. Mas tôda a narrativa de João separa Marta da visita. (Se ela estava casada com Simão, como supõe o Dicionário Bíblico de Davis, explica-se fàcilmente). Psicologicamente, o gênio ativo de Marta e a indisposição meditativa de Maria podem ex-plicar que Maria necessitaria mais do confôrto e da companhia das pes-soas amigas, enquanto Marta fugia para os deveres do momento. Seja como fôr, as visitas eram, em sentido especial, para Maria.

Frei Damião Klein, na sua excelente Versão Franciscana com notas, nos outorga fruto maduro de sua interpretação bíblica dos fatos sôbre esta Maria. (Há seis Marias em o Novo Testamento.) O Frei Damião distingue as três mulheres, Maria Madalena, Maria de Betânia e a peca-dora que apareceu na casa de Simão o fariseu. Comentando João 11:2, o franciscano diz: «O v. faz ver que, no tempo do evangelista, Maria era conhecida na igreja como aquela que ungiu o Senhor, o que alude ao que o próprio Jesus predissera a respeito dela; Mat. 26:13; Mar. 14:9.» (1) Comentando Luc. 7:37 (o incidente na casa de Simão o fariseu) essa nova versão tem o seguinte esclarecimento: «O seguinte fato não se acha re-gistrado nos demais Evangelhos. Alguns intérpretes antigos identifica-vam-no com a unção de Jesus em Betânia, v. João 12:1 ss; Mat. 26:6 ss; Mar. 14:3 ss, dizendo ser a pecadora a mesma personagem que Maria, irmã de Lázaro, o que hoje já não é sustentado por ninguém. Outra ques-tão, ainda hoje discutida, é se ela é a mesma que Maria Madalena.» (2 ) Ainda sôbre Luc. 8:2, lemos: «Essas piedosas mulheres... acompanha. vam o Senhor e os apóstolos... Dentre elas destaca o evangelista, em pri-meiro lugar, Maria Madalena, isto é, natural de Mágdala, pequena cidade à margem ocidental do mar galileu. Segundo o texto, havia sido possessa de sete, isto é, de muitos demônios. Há teólogos que, entendendo com S. Agostinho a possessão demoníaca em sentido figurado, identificam a Madalena com a pecadora do capítulo antecedente, o que faz também a li-turgia romana desde os tempos de S. Gregório Magno. Do próprio tex-to, porém, não se pode tirar argumento algum[ que prove essa hipótese ; e a liturgia grega distingue, claramente, as duas personagens, celebrando a festa da pecadora em 31 de março, e a da Madalena em 22 de julho. (3) Somos gratos a êsse testemunho insuspeito do eminente tradutor, teólogo e educador católico romano. Não sei que literatura êle lê, porém, já pensa que a identificação de Maria de Betânia com a meretriz que un• giu o Senhor na casa de Simão o fariseu é um pensamento «que hoje não é sustentado por ninguém». E', entretanto, teoria querida dos romanistas em tôda parte do mundo. O próprio «Missal Quotidiano», traduzido por D. Beda Keckeisen, lá da Bahia, também nos diz: «Santa Maria Mada-

(1) Vol. I, págs. 280, 281. (2) Idem, págs. 175, 176. (3) Idem, págs. 177.

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lena. 'Porque muito lhe foi perdoado, muito amou,' é o resumo de sua vida. A liturgia identifica Maria Madalena com Maria de Betânia, irmã (e Lázaro e de Marta, que ungiu os pés de Jesus e com a pecadora pú-Ulica e ainda com aquela Maria que primeiro viu o Ressuscitado. Lzn-das antigas dizem que ela morreu no sul da França.» (4) Claro é que essa injustíssima e anti-histórica identificação de três mulheres diferen-tes, manchando vilmente o bom nome de duas delas, é incorporada na pró-pria liturgia e devoção romanista, e que, como tantos elementos do roma-nismo, procede de um dos mil erros graves de interpretação da Bíblia fei-tas por Agostinho. Oxalá seja profético de um dia melhor o fato de que Frei Damião Klein nos diz que essa balbúrdia insensata «hoje já não é sustentada por ninguém».

45. «Creram nele.» Ao pé da letra, creram para dentro. Crer :5 classificado pelo gramático inglês Green como verbo de «movimento éti-co», por isso toma a preposição de direção ou penetração espiritual. Não

a única tradução possível da preposição, mas é cabível e leal, tanto ao en-sino geral do Evangelho como ao gênio da língua grega. Vêde o Estudo Es-pecial, Vol. I, ps. 69-96, e notas sôbre fé nos capítulos I, III e VI, etc. Sobre esta questão diz o «Speakers Bible»: «Não a crença numa doutrina mas a fé numa pessoa foi o que Jesus pediu. Há uma diferença abismal entre as duas atitudes. Nós podemos aceitar uma doutrina como verdadeira mas não podemos confiar nela.» (6 )

46. «Alguns dêles». Dos judeus ou dos crentes? Pode ser um ou outro grupo que forneceu os informadores. Vemos até grande medo do Partido farisáico entre os apóstolos duas décadas depois da crucificação. Uns podiam ter dito com raiva, outros com fé e fervor. Vêde Atos 6:7; 15 :5 ; 21:20; 25:8; Gál. 2:11-12. Seria natural que da aristocracia ri-auns até consultassem formalmente os chefes da nação, provocando logo urna reunião do Sinédrio para tratar do assunto. Há pessoas que pensam haver no Dia de Pentecostes crentes dêste e semelhantes grupos entre os 3.000 batizados. Certamente é fácil crer nos algarismos de Lucas sôbre o crescimento rápido da novel igreja de Jerusalém.

«Os fariseus». «O perigo do farisaísmo no cristianismo é a ênfase na letra em oposição ao espírito. A letra mata, e espírito vivif.ca. Al-guns acusam Jesus de usar palavras indevidamente duras para com os fariseus, e que elas violaram seu próprio ensino sôbre o criticismo capcioso de outros (Mat. 7:1-36; Luc. 6:37) . Mas é justo dizer que o criticismo de Jesus era capcioso? E' claro e pungente, fora da possibilidade de uma dúvida e às vêzes fere como aguilhão... Foi necessário que Jesus des-mascarasse. esses líderes religiosós em seu verdadeiro caráter a fim de que o povo pudesse entender a divergência entre êles e Jesus, e a razão

(4) P. 998. (5) Vol. II, p. 23.

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do conflito. A controvérsia religiosa é uma calamidade, mas é impossí-vel evitá-la, freqüentemente, a não ser que demos ao êrro o contrôle da estrada real para a vitória. A lealdade à verdade exige que falemos a verdade em amor mesmo aos que estão em êrro... Não estou procurando mitigar a severidade da linguagem ou suavisar seu sentido real. O ódio intempestivo dos fariseus contra Jesus não gerou nêle ódio contra êles. Orou por êles e morreu por êles. Mas Jesus não encobriu a verdade a res-peito dêles. Suas palavras são um julgamento sôbre eles por suas faltas espirituais e morais. Até virtudes podem se tornar vícios mortíferos à vida espiritual.» (G)

47. «Sinédrio». «Ao ver dos sinedristas, o Messias havia de ser político e nacional. Se, pois, deixassem que Jesus ganhasse ainda mais as simpatias do povo, haveria de revolucionar a nação contra o jugo roma-no, e entre os dois poderes dar-se-ia um tremendo duelo, cujo êxito não lhes parecia incerto. O colosso romano esmagaria o povo judaico, e arrancar-Ihe-ia os últimos restos de autonomia e quiçá a própria nacionalida-de.» (7)

«Os sumos sacerdotes e os fariseus convocaram em assembléia for-mal o Sinédrio.» O verbo é a forma verbal da palavra sinagoga — «sina-gogaram», se existisse tal palavra, o Sinédrio. Este vocábulo tem lugar interessante nas Escrituras cristãs. E' usado cio espírito gregário dos genuínos crentes, em Mat. 18:20; 25:35; 38; Mar. 6:30; Luc. 11 ; João 4:36; 11:52; 18:2; 20:19; Atos 4:31; 11:26; 14:27; 15:30; 20:7, 8 ; 1 Cor. 5:4. E um substantivo congênere se usa em Heb. 10:25. Nunca houve por um só instante um cristianismo apostólico centrífugo. Desde João Batista se preparava UM POVO para o Senhor, e se contemplava o espírito gregário dêsse POVO organizando-se em congregações, as-sembléias de crentes batizados. Uma igreja é organização formal tão verazmente como era uma sinagoga ou o Sinédrio.

«Os fariseus». O Dr. Robertson acha nos fariseus as seguintes al-tas: (1) cegue'ra espiritual (João 3:1-14; 9:40) ; (2) formalismo; (3) preconceitos; (4) tradicionalismo; (5) hipocrisia; (6) blasfêmia contra o Espírito Santo; (7) rejeição de Deus ao repudiar Jesus. Ele interpre-ta muitas passagens na exposição dêstes sete pontos e assim termina .E?sse extraordinário livro. (8)

«O libelo (de Jesus contra os fariseus) é. provado e sua sentença contra êles já se concretizou na história subseqüente. Os líderes judeus trouxeram sôbre Jerusalém a desgraça que Jesus profetizou... A ati-tude apologética (dos judeus modernos para com a morte de Jesus) característico dos judeuS hediernos, e pelo menos revela um 'espirito mais

(g) "The Pharisees and Jesus", ps. 110, 111, por A. T. Robertson. 47 ) Versão do Novo Testamento com notas, Vol. I, p. 282. poé Frei' Dainifin Klein. (s) "The Pharisees and Jesus", p. 110-159.

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bondoso para com Jesus nos sucessores atuais dos fariseus. Todo cris-tão acolhe com satisfação essa nova atitude e não deseja preservar o an-tagonismo ou ressentimento de outrora. Se (os judeus modernos) dese-jam edificar monumentos àqueles que seus pais rejeitaram, nós nos re-gozijaremos sinceramente, com uma condição. Essa condição é que não se espere de nós cristãos que sejamos negadores daquilo por que êles (Cristo e os apóstolos) morreram. Ninguém se engane sôbre nossa ati-tude. Jesus... é a única esperança dos séculos em quem judeu e gentio podem ser um, pois sômente ele quebrou o muro de separação entre ju-deu e gentio, e entre eles e Deus.» (9) Vêde, em contraste, os motivos da oposição farisáica contra Jesus, enumerados na discussão de 4:1.

«Que é que estamos fazendo?" Equivalente a dizer: «Não estamos fazendo nada. Mãos à obra.» Pergunta mais provocadora do que: «Que vamos fazer?» Esta virá depois.

«Os principais sacerdotes e os fariseus». Inimigos figadais se j ua-tam contra seu maior inimigo comum, Jesus. Eram os fariseus, diz Riggs, os guardiães das espectativas messiânicas. Em contraste com Jesus, pois, eram «o lôbo» da parábola do Bom Pastor.

«Muitos milagres». Vêde a nota de A. T. Robertson sôbre 5:36. E :Obre a abundância e o propósito dos milagres de Jesus, vede a discussão de 5:7 e 20:30.

48. «Todos crerão nele.» Os piores inimigos e os discernentes in-térpretes de Jesus Cristo entendem onde está o campo de batalha. E' a fé salvadora, vital, regeneradora e santificadora em Jesus. E' o supre-mo campo de batalha no Brasil hoje, como se vê pelo livro de Leonel França, S. J., a respeito da «Psicologia da Fé», discutindo no Vol. I, ps. 69-96. Os milagres são credenciais de Jesus Cristo apresentando-o se-gundo o que ele professa ser, Deus o Filho, Salvador único e todo-sufici-ente. Todas as falsas religiões e seitas têm seu supremo interêsse aí, para ver se os homens vão crer evangelicamente, pois é o fim das falsas esperanças religiosas que os iludidos acariciam, nos seus dogmas e ritos. E' a razão por que êste Evangelho, e êste capítulo do Evangelho, são indizivelmente importantes para o cristianismo histórico. Como diz .) Dr. A. R. Crabtree: «Tomando em consideração os preconceitos de certos críticos racionalistas, é fácil entender porque eles combatem a autoria joanina do Evangelho. Negam a autenticidade da obra porque não que-rem aceitar a conclusão inevitável de que o autor conheceu pessoalmente a Cristo Jesus.» (")

«Os romanos virão e tirarão DE NÓS tanto o lugar como a raça.» E' a ordem das palavras originais. DE NÓS significa: nosso lugar e raça. mas vem fora de seu natural lugar na sentença, quase como um soluço

(9) Ide" págs. 157, 158. (10) -Introducio ao Novo Testamento", p. 141.

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de desespero ou um rouco tom de ameaça. Jesus é o supremo perigo para seus rivais que ainda querem explorar o povo.

«Nosso lugar». E' lugar mesmo — não posição ou patrimônio. A frase se encontra em II Mac. 5:19 a respeito do templo. O templo, pois é o lugar do sacerdócio, que, acima de tôdas as perdas possíveis, temiam perder.

49. «Aquele ano». «O ano de que o evangelista falava foi o ano dos anos; o ano aceitável do Senhor, como se chamava; o ano do gran-de sacrifício, a única expiação, a expiação que anulava uma vez para sempre as repetições anuais dos dias de expiação. Aconteceu que era c, dever de Caifás, como sumo sacerdote, entrar no santíssimo lugar e oferecer a expiação daquele ano. O evangelista vê, se podemos usar à frase sem irreverência, um elemento dramático no fato de que êle, de todos os homens, foi quem fez essa declaração. Por uma ironia divina, êle foi quem inconscientemente declarou a verdade, proclamando que Jesus era o grande sacrifício expiador e que êle seria a instrumentalida-de de sua oferta em prol da nação.» (11) Vêde a nota sôbre Caifás na discusão de 18:30. Caifás foi sumo sacerdote de 18 a 36 d.C.

«Vós outros nada sabeis.» Bem característica declaração de um sa-cerdote arrogante e exaltado. Até quando, Senhor, até quando permiti-rás ainda na terra tamanha insolência diante da tua face?!

50. «Morra um homem em lugar do povo.» O Dr. A. T. Robertson diz que a preposição aqui usada, no grego original, pode significar «em prol de», e que «num contexto próprio a idéia resultante é em lugar de, como aqui é evidente na cláusula seguinte, como claramente é o sentido em Gál. 3:13 concernente à morte de Cristo, e como é a interpretação natural de II Cor. 5:14-19; Rom . 5:6. Nos papiros esta preposição é comumente usada quando uma pessoa escreve uma carta em lugar de outra pessoa.»

«Morra um só homem.» O Dr. A. M. Fairbairn diz: «Para ser o Cris-to da profecia Jesus tinha de ser o Crucificado do judaísmo. Era a tra-gédia da situação: o Judeu existiu a fim de produzir o Cristo, mas uma vez chegado este, o Judeu não o conheceu, não queria amá-lo, não tinha lugar para êle, nada podia fazer senão efetuar-lhe a morte. As pala-vras de Caifás são mera versão oficial do que Jesus mesmo previu e tan-tas vezes profetizou. Sua interpretação da religião era uma contradição direta da interpretação deles; ambas não podiam viver lado a lado; e a única maneira em que eles podiam eficazmente contradizer a contradição dele foi pela morte dele. Mas neste ponto, no tocante ao efeito de sua morte, Jesus e eles radicalmente divergiam, eles pensavam pela cruz êle havia de morrer e eles teriam de viver; mas êle cria que eles pela morte

(11) "Introduction to the Litterature o/ the New Testament", p. 547, por James Moffatt, citando aqui o preclaro Lightfoot.

C. E. J. — 25

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dele não haviam de viver, mas sim morrer ... E' a suprema Nemesis da história . Que sorte senão a morte podia ser reservada para o regime que como galardão ao seu Filho mais justo lhe deu a cruz?» (12)

51. «Sendo sumo sacerdote, profetizou.» Como sumo sacerdote, diz Riggs, êle supunha que estava guardando com astúcia seu poder e as funções sacerdotais de seus colegas. De fato, êle estava precipitando o ato do Calvário que faria caducar todo o sacerdócio semelhante, acabaria com seus sacrifícios e findaria seu regime uma vez para sempre.

«Profetizou». Ele disse palavras que constituiam a verdade sublime da mais alevantada doutrina da cruz de Calvário, a doutrina da expiação do pecado do povo de Deus pela morte vicária do Servo Sofredor de Jeo-vá. «Mas êle não profetizou isso de si mesmo.» Suas palavras eram como a fala da burra de Balaão. «Havia mais na linguagem de Caifás do que êle entendia. Era profecia inconsciente, quanto a êle, e puramente aciden-tal.» (13)

52. «E não ~ente em lugar da raça (judaica), mas para que êle congregasse de vez, em( unidade, os filhos de Deus que vivem qual disper-são.» Notemos, em primeiro lugar, a tradução. Almeida, Figueiredo e a Versão Brasileira, como a Harmonia de Watson e Allen, e as versões de D. Fr. Joaquim de Nossa Senhora de Nazareth, Fr. João José Pe-dreira de Castro, e a Franciscana do Monsenhor Dr. José Basílio Pereira todas vertem «em um corpo», acrescentando a palavra corpo, e a última versão mencionada logo interpreta corno «um só aprisco», a velha here-sia tão amada pela hierarquia romanista. E' possível subentender a pala-vra «corpo», pois dará concordância gramatical, em grego. Todavia, João somente usa a palavra «corpo» sete vêzes em todos os seus cinco livros do Novo Testamento, e sempre a respeito do corpo físico. O contexto não está tratando do «corpo místico» de Cristo, nem da Igreja Geral. Parece-me duvidoso, portanto, introduzir essas idéias aqui, especialmente na tra-dução sem que João mesmo o tenha feito.

A Vulgata não vai até êsse ponto. Traduz: «congregaret in unum». Felizmente, nas muitas versões católicas, temos agora uma independên-cia de tradutores que anima. Frei Damião Klein traduz: «para reunir num todo os filhos de Deus». E R ohden, verte assim: «para congregar os filhos de Deus que andavam dispersos». «A significação aqui é, não a Diáspora (os judeus espalhados por tôda a terra), mas os que potencial-mente são filhos de Deus em todas as terras e todas as épocas que a mor-te de Cristo unirá em um.» (14) A doutrina da eleição é o alicerce da passagem.

Notemos os verbos que temos. Essa dispersão dos filhos (futuros)

(12) "The Philosophy of the Christian Religion", p. 422. (13) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 209, por A. T. Robertson. (14) Idem, p. 210.

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de Deus se descreve com o particípio perfeito: «os que foram dispersos e continuam dispersos». O segundo verbo está no aoristo e traduzo: «congregasse de vez». Não é indispensável esta tradução. Pode o verbo contemplar, como um ponto, a prolongada obra pela qual Cristo vai sal-vando e unindo os indivíduos por tôdas as terras e todos os séculos. Mas o presente descreveria com nítida exatidão essa idéia, enquanto o aoristo é apenas uma possibilidade para dar essa idéia, como que vendo todos em bloco. Já notamos que êste verbo normalmente significa «congregar», «sinagogar», se existisse tal verbo. Por isso, parece-me mais natural pensar dessas palavras como prevendo a consumação da obra redentora de Cristo, quando realmente «congregará de vez», no céu, perante seu trono branco, com êle na glória, os inúmeros filhos de Deus, que agora andam dispersos, numa perpétua dispersão, muitos dos quais ainda não nasceram e muitos outros ainda não se converteram. Confronto, pois, esta Escritura com «a assembléia geral e igreja dos primogênitos que são registrados nos céus» (Heb. 12:23), e que um dia se congregarão ali, depois que todos nascem e nascem de novo pela graça mediante a fé. Essa igreja geral é uma realidade em ideal e comunhão agora, até onde seus membros forem salvos. Mas não é um «aprisco», uma organização eclesiástica, e essa unidade está em Cristo, não num regime sacramenta-lista e sacerdotal, de espécie alguma. O ato real de congregar TODOS os filhos de Deus nunca poderá ser realizado senão na resurreição final. E' perfeitamente natural que se veja o fim aqui, nas significativas profe-cias cegas do representante do antigo Israel, profetizando inconsciente-mente o novo Israel de Deus. Dele farão parte todos os filhos de Deus dos séculos passados e do porvir. E serão congregados por Jesus para si, mas não constituem uma congregação agora senão em sentido figura-do e em antecipação.

53. «Determinaram matá-lo.» E' a resposta dos que estão moral-mente perdidos à verdade que os deixa intelectualmente perdidos perante o povo que exploravam. A cruz, a fogueira, a Inquisição constituem a lógica dos sacerdotes sempre quando são casta privilegiada, em revolta contra o Filho de Deus.

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Jesus, fugindo da publicidade, educa seu Ministério

(Capítulo XI, versículos 54 - 57)

54 1 Portanto, Jesus já não andava entre os judeus

O Mestre ativa-se abertamente, mas partiu de lá para a região na mar-

ainda, mas como gem do deserto, para uma cidade chamada Efraim, e

55 Educador dos Doze, aí êle ficou com seus discípulos. E a Páscoa dos

principalmente judeus estava próxima, e muitos subiram da referida zona à Jerusalém, antes da Páscoa, a fim de se sub-

56 'meterem às purificações cerimoniais. I Naturalmente, procuravam a Jesus e, estacionados no templo, diziam uns aos outros: "Que

Um só tema de ple- vos parece? Ele certamente não virá para a festa,

57 beu e aristocrata heim?" I Ora os sumos sacerdotes e os fariseus haviam baixado ordens assim: "Se alguém sabe

onde está, informe já", a fim de que pudessem tomá-lo preso.

54. «Não andava Jesus abertamente entre os judeus.» Era a tar-dinha, às doze horas do seu dia (v. 9). A luz diminui. E' fácil tropeçar. Weiss diz: «Tornara-se claro para Jesus que sua missão seria logo aca-bada; mas nada podia ser feito sem a participação de toda a nação, e para isso urna oportunidade conveniente seria dada na Páscoa próxima, quan-do todo o Israel estaria outra vez congregado na capital. Cristo determi-na, pois, não cair em nenhuma cilada secreta de seus inimigos.» Era pre-ciso que o Filho de Deus, nos dias de sua carne, exercesse toda a prudên-cia humana, mesmo para morrer quando êle quisesse, «na plenitude dos tempos», na «sua hora».

«Efraim». A única menção dêsse lugar na Bíblia. Distava poucas léguas de Jerusalém, servindo bem aos propósitos do Mestre para um retiro com seus apóstolos, aos quais êle agora educava. Não devemos pensar, porém, dêste trecho como narrando os sucessos de uma residên-cia fixa. Entre sua saída de Betânia, para Efraim inicialmente, e sua volta para morrer, há incidentes na «Harmonia dos Evangelhos» (Watson e Allen) que enchem mais de uma dúzia de páginas. Aparentemente Je-sus estava, neste período, em todas as quatro províncias do país, num giro de despedida, antes de sua paixão. Embora «os judeus» fossem seus patrícios, em geral, e participantes das idéias dos seus líderes (vêde as notas sôbre 5:10), o fato de Jesus não «andar» entre êles se referia, pro-vavelmente, aos círculos na capital, onde êles, na pessoa jurídica do Siné-drio, lhe estavam tramando a morte.

«Ficou com os discípulos.» Como os chefes dos judeus, que queriam matar a Jesus, eram «os judeus», assim, por igual maneira de falar, «os discípulos» eram os que tinham sido oficialmente reconhecidos como «dis-cípulos», os Doze. Nós os vemos «comissionados» desde o comêço de seu

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ministério; por todo este tempo eram seus educandos para as responsabi-lidades de órgãos da revelação por quem ele, depois da sua ressurreição, havia de estabelecer, orientar e doutrinar o cristianismo no mundo. Vêde as notas sôbre 3:22 a este respeito.

55. «A Páscoa dos judeus». Era figura do cerimonialismo da Velha Aliança, acerca da morte redentora de Cristo. A isso se refere a frase de I Cor. 5:7. Não há absolutamente nenhuma relação, no Novo Testa-mento, com a Ceia do Senhor. E «a Páscoa dos judeus», diz João, não tem nada de cristão. No fim do século, o velho apóstolo é cuidadoso no salientar êsse fato. A Páscoa não é festa cristã. O único dia santo do cristianismo é o dia do Senhor, e principia cada semana. A Quaresma é rival da mordomia de TODO O NOSSO TEMPO perante Deus; e a sema-na santa, assim errôneamente chamada, é rival do domingo, que nos cír-culos romanistas é o dia menos santo do calendário. Caiar por cima do cristianismo genuíno todo êsse judaísmo morto e repudiado na cruz do Calvário é corromper e perder o cristianismo de Cristo. Quando alguém hoje em dia observa «a Páscoa», está praticando o judaísmo e não o cris-tianismo. Vêde as notas sôbre 6:4.

«Purificações cerimoniais». Por exemplo, por haver tocado num ca-dáver. Nossa purificação não é cerimonial, nem exterior. O apóstolo Pe-dro diz: «Uma vez que tendes PURIFICADO as vossas almas na vossa obediência à verdade que leva ao amor não fingido dos irmãos, de cora-ção amai-vos uns aos outros ardentemente, sendo regenerados, não de se-mente corrutível, mas de incorrutível, pela palavra de Deus, a qual vive e permanece» (I Ped. 1:22, 33) . E Tiago exorta: «Vós de espírito vacilante, purificai os corações» (4:8). E' o espírito, o coração, que se Purifica no cristianismo, e a Palavra de Deus é o instrumento divino. A lealdade às suas verdades nos livra das contaminações da desobediência e da vontade própria e das tradições dos homens que tudo corrompem. João descreve o processo (I João 3:3) . «Todo o que nele tem esta espe-rança, purifica-se a si mesmo como êle (Cristo) é puro.» Cristo é puro no íntimo, no caráter, na vida, na realidade. Sua pureza não procede de haver praticado uma cerimônia. Nossa pureza, pois, é continuamente renovada pela Palavra, sob o Espírito, e na virtude eficaz do Calvário, cujo sangue de nossa Páscoa única e eterna «nos purifica de todo o pe-cado» (I João 1:7) . O verbo purificar aqui está no tempo aoristo e o traduzo: «submeter-se às purificações cerimoniais», entregar-se de vez para essa faina.

«Da referida zona». E' possível, e até provável, que essa palavra possa ser traduzida por «do campo», ou da terra (de Palestina), e se re-ferir à grande leva de peregrinos que assim se antecipava à festa nacio-nal. Todavia, embora margeando o deserto, há uma população considerà-vel na zona, e seria aumentada nas pregações de Jesus ao ar livre, por

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muitos dos tais peregrinos. Chegados em Jerusalém, ficariam impacien-tes até que êle chegasse também.

«Jerusalém». Vede as notas sôbre 5:1. 56. «Não virá, hem?» O Dr. A. T. Robertson nota que Jesus, no

fim dêsse período, que João resume numa frase, tomou a estrada pela Samaria para o Norte e desceu com os peregrinos para a festa, ensinan-do especialmente aos discípulos, mas em pregação pública também, no ca-minho. Eis as palavras de Lucas: «De caminho para Jerusalém passava Jesus pela divisa entre a Samaria e a Galiléia.» E' uma época especial-mente de ensino da sua doutrina escatológica. Esses peregrinos, diaria-mente estacionados vadiando no templo, tinham colhido a impressão de que Jesus absolutamente não viria, e essa forte convicção se mostra na forma grega da pergunta. E' urna pergunta entre aspas, eco dos boatos que se multiplicavam nos corredores do templo.

57. «Se alguém sabe onde está, informe.» Outra vez ouvimos as palavras exatas dêles, como que entre aspas. Enquanto se purifica o cor-po com cerimônias, a alma se corrompe com tagarelices vãs.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 391

Um Banquete e Seus Resultados

(Capítulo XII , versículos 1 a 11)

Por isso, seis dias antes da Páscoa, Jesus foi à Betânia onde se achava Lázaro, a quem levantou dentre os mortos. 1 Por este motivo, lhe deram um banquete, e Marta servia, e Lázaro era um dos que se reclinavam à mesa com ele. 1 Maria, pois,

nardo real, de elevado preço, ungiu os pés de Jesus e os enxugou com os seus cabelos; e a casa ficou cheia do aroma do perfume. I Mas Judas Iscariotes, um dos seus discípulos, aquele que o havia de trair, co- menta: 1 "Por que motivo não foi vendido esse perfume por trezentos denários, e feita uma contri-

Ele disse isso, porém, não porque lhe importassem os pobres, mas porque era ladrão e, tendo a bolsa, furtava as entradas. 1 Jesus, pois, disse: "Deixa-a para que ela o conserve até o dia do meu embalsa-mento para a sepultura: I pois os pobres sempre os tendes convosco; mas a mim não me retendes aqui uma grande multidão dos judeus veio a saber: `Sie está lá", e afluiram, não por causa de Jesus ape-nas, mas sim para ver também a Lázaro, a quem ele ressuscitou dentre os mortos. I Mas os sumos sa- cerdotes tramaram matar também a Lázaro, 1 por-que muitos dos judeus, por causa dele, iam embora crentes em Jesus.

1 1. Cristo Ungido para seu Embai-

2 sarnento, enquan- to Vivia

3 tomou uma libra de

4 II. Um ladrão re-vela sua inveja

5 e avareza

6 buição aos pobres?"

7 III. Crentes se mul-tiplicam em tôdas

8 as rodas da so- ciedade

9 para sempre." 1 Ora

Lázaro devia mor-

10 rer, porque era

11 credencial da Dei- dade de Jesus

Cap. XII. O Prof. Carver analisa o espaço dado à semana da paixão de Jesus, nos Evangelhos, e acha que é quase trinta por cento do número dos capítulos, quase trinta e quatro por cento do número das páginas nos Evangelhos. Deixando fora da conta as partes que têm informações a res-peito dos eventos preparatórios para sua vinda, êle acha 40 por cento do espaço dos Evangelhos reservado para a última semana. «Nenhum exa-gêro é necessário para ver que os evangelistas deram às experiências e aos ensinos dêsse climax do seu ministério a máxima importância.» (1)

1 - 19. Riggs assim comenta o banquete em Betânia: «uma festa por causa de uma ressurreição em que se realizou a unção para um en-têrro». (2) Marta procurou honrar servindo; Simão, um parente, com um banquete; Maria com uma demonstração simbólica especial de seu amor e gratidão. Lázaro, conviva, — o povo olhou para êle e silenciosamente

(1) "The Self Interpretation of Jesus", p. 120, por W. O. Carver. (2) "Messages of the Books of the Bible," in loco.

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retirou-se para casa crendo, separando-se os de fé e os de contínua e cres-cente hostilidade. Zac. 9:9 é uma profecia que Jesus empreendeu cum-prir ao pé da letra. Evidência do critério seletivo do Quarto Evangelho — o único evento de três dias ocupadíssimos que João narra . Talvez os gregos queriam ver Jesus para convidá-lo a sair de Jerusalém, tão hostil. Uma arma restou a Jesus — a publicidade sem olhar as conseqüências.

1. «Betânia, onde estava Lázara». Como a geografia e uma perso-nalidade amada se confundem! Temos saudade do lugar por causa da pes-soa que o próprio nome geográfico nos faz lembrar. Betânia para Jesus significava «onde estava Lázaro». Milhares de lugares têm sua única eminência por causa de um crente que nêles morava e agia. Todo seu valor e fama na história vem de uma pessoa e seu valor.

2. «Marta... Maria». As mulheres judias não comiam com os ho-mens, em regra. Por isso Marta conseguiria estar presente e ver tudo, por ter oferecido seus competentes serviços ao vizinho que Jesus curara da lepra, e Maria seria livre para entrar e dar ao Mestre êsse supremo testemunho de fé, amor e gratidão. Só os homens estariam reclinados sôbre os sofás orientais, sustentando-se com um dos cotovelos, Lázaro tal-vez reclinando a cabeça sôbre o coração de Jesus, às vêzes, como faria João na ceia da Páscoa, na véspera da paixão do Senhor. Quando o gre-go usa o algarismo «um», é enfático, pois, não sendo enfático se suben-tende pelo contexto fàcilmente. Aqui quase podemos traduzir: «Era o conviva N9 Um, entre os companheiros de Jesus.»

3. «Maria». Sobre a identidade desta serva do Senhor, vêde as no-tas na discussão de 11:1, 2, 19, 45 e de 20:1. O testemunho de Frei Damião Klein de que ninguém hoje em dia identifica Maria Madalena ou Maria de Betânia com a meretriz perdoada na casa de Simão, o fariseu, é de altíssimo valor para a exegese bíblica. O romanismo popular, (3) po-rém, nada sabe disso, nem lhe é permitido saber que a erudição francis-cana removeu muitíssima caiação clerical da história evangélica. Eis ou-tra lenda, testemunho da coluna sôbre o «Santo do dia», no «Jornal do Comércio», do Rio de Janeiro, no dia 17 de dez. de 1943: «Os três (Mar-ta, Maria e Lázaro) depois da ascensão de nosso Senhor, perseguidos pe-los judeus, seus patrícios, postos numa barca sem vela, impelida para o mar, foram chegar à Marselha, e ficaram na França, a nação primogênita da Igreja.» Vêde a nota sôbre culto em espírito e verdade, e como é o único antídoto de «fábulas» como base de culto, p. 76. E o Dr. Alexan-

( 3) O Padre Rohden, por exemplo, que não á desprovido de conhecimentos considerá-veis da verdade, contudo escreve em seu popularíssimo "Jesus Nazareno", p. 340: "Já em outra ocasião, em casa daquele fariseu Simão, praticara ela ato semelhante. ' E acrescenta, em rodapé: "Supomos, com a antiguidade cristã, que Maria de Betânia e Maria Madalena sejam idênticas." Seria mais exato dizer: "Supomos, com a tendenciosa ignorância me-dieval, de glorificação do celibato e da virgindade artificial dos conventos como superiores ao casamento..." Vede as notas anteriores sôbre Maria, para o testemunho primitivo, contrário a essa propaganda medieval.

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der Robertson, Cavaleiro da Ordem de S. Maurício e S. Lázaro, da Itá-lia, nos informa ainda mais sôbre essas miseráveis fábulas que caiam a religião de Jesus Cristo: «Maria Madalena tem quatro cadáveres, um em Nápoles, um em Montserrat, um em Vazalar e o outro em Saint-Maxim, perto de Toulon, e, além desses, há dois meio-cadáveres dela em Roma, um na Igreja de São João Latrão e o outro na de Santa Maria del Popolo. Ademais a quantidade do cabelo dela que é preservado em centenas de igrejas daria para fazer cabelo postiço suficiente para suprir o mercado mundial por um bom prazo.» (4) Para uma religião de superstições isso não é grande coisa, pois há cinco cadáveres de Santo André e uma cabe-ça sobressalente, dez cadáveres de S. Tiago Maior, com várias cabeças de sobra; e S. Pancrácio tem doze cadáveres de todos os tamanhos e idade, todos «genuínos», atestados por bulas de papas.» (5)

«A casa encheu-se do cheiro do perfume.» Por que a casa se encheu, pergunta alguém? E' porque Maria não regateou a dádiva de seu amor. Derramou tudo. Quebrou o vaso precioso. Nada poupou para si. O bió-grafo de Henry Drummond hesitou em escrever a seu respeito, dizendo: «E' algo parecido com a biografia de um aroma.»

«Os pés». Para a harmonia do testemunho de João e os Sinóticos sô-bre a unção tanto da cabeça como dos pés, vede as notas sôbre 11:2, que se referem a êste ato, indubitavelmente.

4. «Judas». Vêde as notas sôbre 6:64, 71. O tempo do verbo trair é o presente, pois é urna prolongada série de atos e pensamentos e pa-lavras. Vêde as notas sôbre o verbo, em 6:71.

5. «Denários». Vêde o v. 7, e as notas sôbre 6:7. Jesus não é in-diferente aos pobres. Vêde as notas sôbre 4:46.

6. «As entradas». Notai mais uma vez a inconveniência, mesmo a impossibilidade, de introduzir a palavra todo onde não existe. A interpre-tação clerical de 21:15-18 procura caiar a idéia no mandamento: «Apas-centai minhas ovelhas», que interpretam audaciosamente como se signi-ficasse: «Apascentai TODAS as minhas ovelhas», dando a Pedro (e aos seus sucessores — outra caiação insolente e audaz) um pastorado universal. Não se pode inserir essa palavra. Aqui temos um caso para-lelo. Judas furtou «as entradas». Mas não é lícito dizer: «Todas as en-tradas». Isso teria sido notado. Ele precisava de fazer a provisão para as necessidades dos Doze e de Jesus. O fato de que ele podia furtar tan-to indica a liberalidade das contribuições feitas por contribuintes volun-tários para o sustento do ministério, já no princípio do cristianismo. Ti-rando pouco, com regularidade, o ladrão era desconhecido de todos, me-nos de Jesus, até ao fim.

7. «Deixa-a». E' admirável como quantas versões traduzem «Dei-

(4) "The Rornan Catholic Chunch in Italy," p. 188. (5) Idem, ps. 187, 188.

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xai-a», sem base textual nenhuma. João cita a palavra de Jesus, proferida primeiramente a Judas. Os Sinóticos citam a proibição aos Doze, quan-do a murmuração se generalizou entre êles, em urna nociva solidariedade com Judas na murmuração. Há uma linda poesia inglêsa sôbre êsse man- damento: VI

«Let her alone; the pouse is filled with perfume sweet and rare; For fragrant are the deeds of love, pervading everywhere. And fragrant to the Savior's heart, how fragrant who shall guess? The labor of success.» (De autor desconhecido).

Podemos dar uma tosca idéia do original assim: «Deixa-a; encheu-se a casa com perfume doce e raro; pois o aroma dos feitos de amor pene-tra em todos os seus cantos. E o aroma fica no coração do Salvador —quão doce, quem pode imaginar? — do labor que vence.»

«Deixai-a» é o mandamento que achamos em Mar. 14:6. Nestle, na margem do seu Novo Testamento grego (um dos melhores comentários sôbre o Novo Testamento que eu conheço) dá Mat. 26:6-13 e Mar. 14:3-9 como Escrituras paralelas. Se aceitarmos essa hipótese — e já dei razões por que eu a aceito, então temos muito mais informações sôbre o inci-dente:

(1) Mateus e Marcos nos informam de uma murmuração geral en-tre os apóstolos contra Maria. A Judas especialmente Jesus mandou: Deixa-a; a todos juntos: Deixai-a. Ora, os bons seguiam ao ladrão, ao cubiçoso, ao traidor, ao sumamente mau. João só narra a queixa de Ju-das, mas os Sinóticos, em usar o plural, «Deixai-a», mostram saber das queixas dos Doze. Quantas vêzes, quando se trata da iniqüidade de criti-car o próximo, os bons seguem impensadamente os maus na murmura-ção contra alguma devoção a Jesus fora do comum e da rotina, que nós não nos lembrávamos de mostrar nem soubemos apreciar. João nos dá a informação suplementar de que o autor da queixa era Judas. Eis que os demais apóstolos inconscientemente se tornam ecos do homem-diabo (6:70) . O hábito de murmurar, de criticar, de julgar a vida alheia, nos sujeita à tentação de pôr nossos lábios ao serviço do Diabo inúmeras vê-zes, pois nada lhe agrada melhor do que matar tôda a iniciativa de entu-siasmo, e reduzir a nossa vida religiosa a uma rotina monótona e despro-vida de qualquer sacrifício de amor ao Mestre.

(2) Aos ricos convém servir ricamente a Jesus. O banquete em nome do Senhor Jesus está em ordem. Jesus aceitou igual marca de es-tima de Mateus, o homem de negócios, quando se converteu e buscou de Zaqueu igual consagração. Há homens que dão um jantar atualmente no aniversário de sua conversão. Maria deu, num ato de louvor a Jesus, um frasco de perfume no valor de 300 denários. O denário era o preço do tra-balho de um operário por um dia — 300 denários valiam 300 dias da

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vida de um homem. Contando os sábados e luas novas e páscoas e sema-nas de tabernáculos, etc., um trabalhador teria de suar e dedicar-se a sua faina árdua mais de um ano para comprar o que Maria derramou num ins-tante, na sua devoção a Jesus.

(3) O ladrão, e os bons murmuradores que se fizeram eco dele, pa-pagaios de sua queixa, queriam limitar a contribuição aos pobres. Jesus repeliu a idéia. Esmolas não são fonte de mérito e o amor a Cristo é mui-to mais do que a esmola para mendigos. O perfume engrandeceu a Je-sus — a casa se encheu. O olfato de todos, amigos crentes, murmurado-res e frios, ou inimigos declarados, sem distinção, o olfato fêz cada um cônscio da sacrificial e amorosa adoração do Senhor do túmulo, aquele que é «a ressurreição e a vida».

(4) Em lugar de seguir ao homem-diabo na sua murmuração abo-minável, Cristo deu especial e perpétuo louvor ao sacrifício de Maria. Ela era glorificada com Jesus a quem ela supremamente glorificou. Fi-zera de seus cabelos uma toalha? Pois bem, de sua cabeça como da ca-beça de Jesus se irradiava o testemunho aromático de quanto êle era do naquela casa e aldeia. E Jesus disse: «Ela fêz o que pôde» — era o máximo sacrifício de uma considerável riqueza e se sujeitava a uma pos-sível crítica desfavorável pela sua pública dedicação a Jesus. «Ungiu an-tecipadamente o meu corpo para a sepultura.» Deu as flôres ao adorá-vel Vivo, o Vencedor da morte, o Salvador do querido irmão. Sua intui-ção feminina previa a inevitável morte de Jesus. Suas relações com a alta sociedade lhe deram informações nítidas do que ia acontecer. Jesus deu-lhe Lázaro em vida, ia tomar seu lugar no túmulo. Ela ungira há pouco um cadáver — mas este nada sentia, nem sabia. Agora, pensa ela, vou ungir com tempo, cabeça e pés, e êle apreciará em vida o que na mor-te diremos e pensaremos amorosamente dele.

(5) Jesus e Maria percebiam no meio da festa a morte e sepultura da próxima sexta-feira, e dedicaram a unção para aquela ocasião. Mas Jesus viu muito além. Viu o evangelho no seu curso missionário persis-tente através das nações até que alcançasse «todo o mundo». Há intér-pretes tão cegos, ou tão apegados a teorias incrédulas do modernismo, que afirmam que Jesus esperava a sua segunda vinda logo. E' a chamada «escola apocalíptica» de críticas. Eles têm de mutilar o Novo Testamen-to. Este versículo, começado por Jesus com as solenes palavras, «Em ver-dade», êles têm de considerar mentira. Todavia, o versículo não se acha em João, que desprezam, mas em Marcos, que enaltecem. As comissões do Cristo ressuscitado são uma e tôdas insensatas, nessa base. Para que o capítulo XXI do Quarto Evangelho, e os fatos historiados, se João de-via alcançar em vida a Segunda Vinda? Não há teoria mais destrutiva de toda a veracidade e de todo o espírito do Novo Testamento. No entanto, essa criminosa descrença já se apoderou das vastas «Igrejas» nacionais da Europa, vivendo em abominável meretrício com seus respectivos Cé-

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sares e, em grande parte, é a causa de sua conivência com a tirania que agora as esmaga. Quando podiam agir, preferiam esperar de braços cru-zados que Deus por medidas apocalípticas se manifestasse. Deus os purga agora de tão nefanda idéia. Jesus, na hora mais escura de sua vida, viu com perfeita clareza uma vasta, longa e universal extensão de sua era missionária. Haverá um cataclisma apocalíptico. Disso há certeza. Mas quereis saber quando se dará? Também nos diz: «E será pregado êste evangelho do reino por todo o mundo em testemunho a todas as na-ções, e então virá o fim» — não antes. E nesse vasto programa missio-nário, o exemplo de Maria de Betânia será narrado, para memorial de gratidão de Jesus Cristo a ela, e como exemplo do que deve ser nosso sa-crifício e contribuição generosa para a salvação dos homens. «Todo o mundo», «todas as nações», «até aos confins do mundo», «tôda a cria-tura» — é o alvo das missões que Jesus mandou. Depois de se cumprir seu propósito de amor ao mundo pelas missões virá o fim apocalíptico.

(6) Vendo tanta riqueza e não podendo guardá-la para si, porque era dedicada a Jesus, Judas, o homem-diabo, partiu zangado do banque-te em honra de Jesus. Jesus o irritou, cortando pela raiz sua murmura-ção que conseguiu sagazmente colocar na bôca dos demais apóstolos. O «Deixai-a» de Cristo tapou-lhes a bôca murmuradora e uniu o prestígio de Jesus ao de Simão e Lázaro e Maria em justificar o «desperdício». O avaro coração do apóstolo-ladrão não hesitou mais. Se as 300 moedas que êle poderia ter obtido, se esse perfume fôsse dado sem ser usado, e por êle vendido na praça, já não lhe são acessíveis, pelo menos o próprio corpo do seu Mestre, vendido como se fôsse de escravo ou de animal para o matadouro, lhe valerá trinta moedas. Basta!

8. «Os pobres sempre os tendes convosco.» Recusando-se a dar a primazia na sua religião às esmolas e em mandar que as esmolas dadas fôssem dadas em secreto, evitando a ostentação vaidosa do contribuinte, Jesus repudiou definitivamente e de antemão o sistema católico romano de promover a mendicância vergonhosamente, para explorar o povo e le-vá-lo a esperar mérito e graça salvadora em troca dos níqueis de suas es-molas. Com suas palavras divinas, nós enxergamos o dia social quando o Estado promoverá a educação universal, o treinamento manual, o empre-go geral da população na indústria e agricultura diversificadas e generali-zadas, com os sistemas de pensões e compensação justa, descanso sema-nal, férias anuais, segurança no emprego, e asilos e hospitais para os inca-pacitados. A pobreza é até agora através dos séculos um problema de-masiadamente grande para o individualismo. O clero de Roma está sem-pre condenando o individualismo. Pois condene-o na sua insuficiência para êsse vasto problema e deixe de explorar a pobreza como meio indi-reto para a falada represa de mérito que se supõe tornar-se maior cada vez que um rico lança de sua mesa uma migalha para Lázaro no meio dos cães. Removamos êsse mísero para o hospital e ponhamos uma taxa nos

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cachorros da rua. Assim será saneada a vizinhança do rico que ganha mérito ( ?) lançando migalhas, mas acorda no inferno, avaliando tarde de mais que esmolas não pagam o preço dos pecados.

Aqui vemos a influência social do evangelho. Jesus curou (cap. 9) um mendigo cego e o fêz independente, e o tornou mestre e correcionador dos sacerdotes e escribas do templo. E Jesus não admite que um avaro impeça obras de devoção a sua pessoa, colocando na primazia esmolas aos pobres. Libertando as mentes, Jesus criou a nova mentalidade que hoje em dia faz, pelo esforço unido da comunidade, tanto benefício curativo e preventivo da pobreza.

Tome nota também o obreiro social entusiasta que o Estado não é onipotente. Não é para ser idolatrado. Jesus é Profeta. Diz: «Os po-bres sempre tereis convosco.» Nenhum Estado jamais terá infalível pa-recer econômico. A caridade e a cooperação sempre serão parte essencial de nossa vida cristã. Haverá desastres e crises econômicas, e haverá aquele vasto número de pobres honrados que primam em nem pedir es-mola, nem ser pesados ao Estado. Às vezes sua sorte é mais triste e do-lorosa do que a do mendigo profissional. Com entendimento faremos à viúva e aos órfãos e a outros necessitados o serviço fraternal que tanto querem, mas nunca a ninguém revelarão. A caridade aos pobres será perpétua, mas não é parte de um sistema clerical de mérito a presta-ções e não é nem obstáculo nem substituto da devoção financeira, à adora-ção e ao serviço de Jesus Cristo, nem tem a caridade para os pobres o monopólio ou a primazia em nossa mordomia. Jesus é primeiro. O que êle quer, o que lhe agrada, seja vosso primeiro cuidado.

Da mesma maneira, Jesus curou a chaga aberta da escravatura sem jamais mencionar o assunto — pela simples medida de acolher o escravo e o livre sem distinção nas igrejas apostólicas e no amor mútuo da grei. Jesus não foi agitador socialista dos problemas econômicos ou sociais ou políticos. Semeou idéias e deu-lhes poder, o fruto do Espíri-to; e para o resto cada geração pode dizer «Demos tempo ao tempo.» Sem levantar os escravos em revolta sanguinolenta, Jesus a seu tempo os libertará econômica e politicamente como já os libertou eternamen-te na salvação quando creram. E' a maneira socializadora, moralizado-ra, em que o Cristo vivo exerce sua influência por meio do seu povo, que é sempre «a minoria do Mestre» numa «geração má e adúltera».

9. «Para verem a Lázaro». Vêde a nota de Robertson, no comen-tário sôbre 18:10.

9, 10. «Grande multidão... os principais sacerdotes». A casa dos três jovens, Marta, Maria e Lázaro, graças à posição eminente que eles tinham em Jerusalém, como que colocou Jesus num palco, na aldeia suburbana de Betânia, provisoriamente protegido contra o ódio e a vin-gança, porque estava guardado pelo amor de um grande círculo de co-rações gratos. Ali estava, pois, Jesus, aos olhos e ouvidos das crescen-

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tes turbas que vinham em romarias diárias para ver o ressuscitado e o Ressuscitado'''. Os algozes sacerdotais o têm também espreitado. E da aldeia o avaro Judas, desapontado com a riqueza de Maria, desperdi-çada «futilmente» ao ungir Jesus para sua sepultura, volta a Jerusalém desesperado e faz o negócio da traição em solene pacto.

11. «Os judeus». O Dr. Carver diz: «Correspondem aos judeus hoje em dia os católicos e outros que são parcialmente cristãos. Há muitos 'cristãos' que não conhecem a Cristo. Temos o dever de ir evan-gelizar tais 'cristãos' e os pagãos.» (6)

«Por causa dêle se retiravam e criam em Jesus.» Haveis pensado que nós não possuímos uma só palavra de Lázaro, nenhum salmo, nenhu-ma declaração maravilhosa? Ele não precisava falar. Apenas visto, era uma demonstração, um «sinal», de que Jesus era de Deus. O curioso o via, se retirava pensativo e daí a pouco ficava crendo em Jesus. Não ficava rezando um dogma ou credo. De novo ouvimos a natureza da fé•confiança, fé salvadora. Seu objetivo é Jesus Cristo.

( 6 ) "All the World in all the World", p. 45, por W. O. Carver.

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O Rei Messiânico Marcha Triunfante sôbre sua Capital

(Capítulo XII, versículos 12-19)

12 Hosana «ao que No dia seguinte, a multidão imensa que viera está para vir» para a semana festiva ouviu: "Jesus vem a Jeru-

13 salém"; I e tomou os ramos das palmeiras e saiu ao seu encontro; e clamava em alta voz: "Hosana! Que permaneça bem-aven-

14 Lurado, em nome do Senhor, 'o Vindouro', mesmo o Rei de Israel." I Ora Jesus procurou e achou um jumentinho e montou nele, de acordo com a Es-

15 critura: I "Deixa de temores, Filha de Sião! Eis aí o teu Rei está che- 16 Bando, montado sôbre um jumentinho, cria ainda da jumenta." A princípio

os seus discípulos não entenderam esses sucessos, se-Fruto do Milagre não quando Jesus foi glorificado; então se lem-da Ressurreição braram que essas coisas haviam sido escritas a seu

17 de Lázaro respeito e que lhe fizeram assim. I Então dava testemunho constante a multidão que estava pre-

sente com ele quando chamou Lázaro do túmulo e o ressuscitou dentre os 18 mortos. I Foi por este motivo também que a multidão lhe veio ao encon- 19 tro, por que ouvira que ele fizera esse sinal miraculoso. I À vista disso os

fariseus disseram uns aos outros: "Vêde só! Nada conseguis! Eis que todo o mundo se foi atrás dele!"

12. «No dia seguinte». Era domingo. A narrativa da unção de Jesus por Maria é deslocada, cronológicamente, a fim de historiar o even-to em conexão com a menção de Betânia pela última vez neste Evange-lho. E' um arranjo topical, precisamente como Lucas narra a prisão do Batista, antes de historiar o batismo de Jesus (Luc. 3:18-21) . Temos outras testemunhas e nos orientaremos por tôdas elas. Vêde a «Har-monia». (1)

«Jerusalém». Vêde as notas sobre 4:47 e 5:1. 13. «Hosana». «Exclamação de alegria religiosa.» (2) E' como

nosso «Salve!» «Hosana». Num artigo em «The Expositor», há anos, o Dr. W. H.

Steele compara as palavras Hosana e Jesus. A palavra grega Jesus é o nome hebraico Josué. A forma completa de Josué em língua hebraica é Jehoshua e significa «Jah é salvação», sendo Jah uma abreviação de Jeo-vá. Os patrícios de Jesus, falando na língua nacional, o chamariam Je-hoshua. São assim, pois, as duas palavras que estavam nos lábios da mul-tidão: HOSHIA NNA e JEHOSHUA. Omitindo o prefixo JE e o sufixo

(1) "Harmonia dos Evangelhos", ps. 147-149, 175, por S. L. Watson e W. E. Allen. (2) Dicionário Grego, p. 196, de W. C. Taylor.

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NNA, temos em HOSHIA e HOSHUA quase a mesma palavra em sen-tido e som. A semelhança não teria ficado despercebida aos ouvidos da multidão dos discípulos. Segue a conclusão de Steele.

«Quando o Senhor apareceu na sua visita tão esperada em Jerusa-lém, subitamente raiou na mente da multidão que aquêle cujo próprio nome queria dizer Salvação era o Salvador por tantos séculos almejado e, usando uma palavra familiar, de uso comum noutras ocasiões, clamavam a êle para os salvar. As formas variantes nos três Evangelhos indicam várias palavras repetidas, o significado central de todas sendo: Filho de Davi, cujo nome é Salvador, sê nosso Salvador, a repetição de palavras oscilando entre HOSHIA do Salmo e HOSHUA, nome variante daquele que agora entra públicamente na cidade.» A referência ao Salmo é ex-plicado em que «Hosana» é do Salmo cantado na Festa dos Tabernáculos. Não seria natural cantar aquêle Salmo na Páscoa. Mas o povo percebe e se deleita na similaridade entre Hosana e Jesus na língua nacional, e nesse jôgo de palavras entoa sua marcha real e espontânea da entrada triunfal.

«O Vindouro». Elemento importante da profecia, na expectativa popular.

14. «Um jumentinho». João assim esclarece o testemunho de Ma-teus. Esse evangelista, escrevendo para os judeus, cita uma poesia profé-tica. O paralelismo é a nota característica da poesia hebraica. De sorte que temos esta estrofe :

«Dizei à filha de Sião: Eis que vem a ti o teu rei, manso e montado em uma jumenta, e em um jumentinho, filho de jumenta.»

E' a Versão Brasileira. Sua tradução errada nos obriga a aceitar a im-possível teoria de que Jesus montou em dois animais de vez. Temos no total das Escrituras relativas a êste evento palavras de três gêneros usadas com referência a êsses dois animais. Eu traduziria:

«Chamai à filha de Sião: Eis, o teu Rei te vem aí, Manso e seguramente montado num jumento, Sim, em jumentinho, cria de jumenta.»

As razões são: (1) Inegàvelmente, a primeira palavra vertida «ju-mento» por mim, «jumenta» pela Versão Brasileira, pode ser masculina ou feminina — o artigo é que determina o gênero. Não há artigo aqui, portanto, é tão lícito traduzir por «jumento» como por «jumenta»; mas não é diminutivo. O paralelismo da poesia hebraica costuma declarar quase a mesma coisa na segunda linha que já foi declarada na primei-

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ra. E' o que temos: «Sim, sôbre um jumentinho.» Aqui o têrmo é mas-culino e diminutivo. E' o mesmo animal descrito nas palavras anterio-res como «jumento». E, no paralelismo, a frase é diferenciada por um único têrmo que indica filho, o termo sagrado para o Filho de Deus, mas aqui usado no sentido de cria da jumenta (palavra no neutro, que é possível em grego, onde o próprio Espírito Santo é neutro). A poesia, pois, fala de um só animal nas duas partes do paralelismo, se bem que poèticamente diga de que é «cria de jumenta». E' um passo para a so-lução dêste quebra-cabeça na harmonia dos Evangelhos. O segundo passo é verificar se Mateus realmente diz que Jesus montou em dois ani-mais. E' novamente uma questão de gênero de palavras. A Versão Brasileira traduz: «E trouxeram a jumenta e o jumentinho, e poseram sôbre êles as capas; e fizeram-no montar.» O grego da passagem real-mente diz: «Levaram a jumenta e o jumentinho e puseram sôbre êles suas capas e êle (Jesus) sentou-se sôbre elas.» Traduzo, primeiramen-te, a mesma palavra por eles com referência à jumenta e o jumento, pois é gramàticalmente masculino nesse caso, tanto em grego como em por-tuguês; traduzo por elas, na segunda vez, pois, a referência é para as capas, que em grego é neutro, em português é feminino; mas na decli-nação do pronome a forma é a mesma para todos os três gêneros, po-dendo, portanto, referir-se a qualquer um dos três, em obediência ao con-texto. Minha tradução é feita em obediência ao contexto. Jesus não montou no lombo do animal mas sôbre a sela improvisada das capas, testemunho da devoção dos discípulos. Ele montou num só animal, sô-bre uma pluralidade das capas — «elas» do texto.

Há um passo confirmativo. E' que Marcos, Lucas e João afirmam categoricamente que Jesus montou o jumentinho e que foi o primeiro a montá-lo. Sua presença amansou o animal como amansara as ondas do Mar da Galiléia quando andou por cima delas. Mas, João, lembran-do sempre de muita coisa nos Sinóticos que não historia de novo, mos-tra saber do outro animal, dizendo, «sentado sôbre o jumentinho de uma jumenta», ao pé da letra. Podemos ver agora o propósito de Ma-teus. Ele sabe que o jumentinho era tão novo que ainda andava com a jumenta como cria, e para que a cria fosse contente na procissão a jumenta teria de ir também. Levam-na, pois, e não vai sem tambérh ser coberta de capas que enfeitam tudo, mesmo o próprio chão onde ela havia de pisar, com seu «filho» e o Filho de Deus, montado. Não é para sugerir que Jesus montou em dois animais de vez que Mateus usou aquela linguagem, nem para fazer a referência profética a dois animais diferentes, pois isso não seria paralelismo. Mas é para mos-trar que a razão da presença da jumenta era contentar a inexperiente cria ao suportar o desacostumado peso de Jesus, sentado nela. Esses fatos concordam com todos os detalhes, com a linguagem dos quatro Evangelhos e com o grego original. Para que adotar outra tradução

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e uma interpretação que deixa as quatro testemunhas em estranha di-vergência, uma das quatro descrevendo Jesus como montado em dois animais de vez? As dificuldades das passagens paralelas na Bíblia desaparecem geralmente se tivermos a lealdade de olhar os fatos e dei-xar a linguagem bíblica concordar, como quer concordar.

14. «Achou um jumentinho.» «A entrada triunfal dificilmente pode ser considerada acidente ou mesmo um surto espontâneo de entu-siasmo popular», (3) diz Fairbairn, mostrando tanto o plano do sucesso por Jesus como seu apoio do que a multidão fazia (Mat. 21:1-11; Luc. 19:40) .

15. «Deixa de temores». Presente do imperativo do verbo — «não continues a temer».

«Montado sôbre jumentinho, cria ainda da jumenta». Ao pé da le-tra: «sentado sôbre potro de jumenta». Traduzo a frase elíptica confor-me o texto e o contexto revelam os fatos. Esta Escritura descreve a nor-ma de uma entrada real, pois os reis dos judeus montavam em jumentos. Os cavalos eram proibidos em Israel. O teor geral da profecia messiâni-ca identifica Jesus como o Profeta, Rei e Sacerdote que o Espírito ungiu para o povo de Deus. Pois bem. As minúcias da linguagem que descreve «O Vindouro», legitimamente se aplicam à pessoa do Cristo.

16. «Os seus discípulos». O Dr. C. B. Williams enumera quatro classes de observadores dêstes sucessos: (1) as multidões que vêem na entrada triunfal o anúncio do reino messiânico iminente; (2) os discí-pulos, que entendem ~ente depois da ressurreição; (3) os fariseus que em desespêro exclamam: «Todo o mundo foi após êle»; e (4) os gregos, primícias de milhões de crentes de todas as raças e nações.

«Os seus discípulos». Lucas diz que era a «multidão de seus disci-pulos». E eram muitos, e muitos dêles eram genuínos. Nunca achamos Marta, Maria, Lázaro, Simão ou essa multidão mencionados nenhuma vez em Jerusalém. Nunca fizeram parte da Igreja de Jerusalém. Não estavam presentes no dia de Pentecostes. Jesus localizou os cento e vinte em Jerusalém. Paulo perseguiu esta igreja. Voltou para achar «as igre-jas da Judéia». Não duvido que uma das primeiras igrejas, e das melho res, no mundo foi composta dessa boa gente de Betânia. Parecia ao prin-cípio que iam levar tudo de roldão na entrada triunfal, e sua lealdade não tinha a ambição carnal política dos cinco mil no deserto de Tiberíades Jesus anuiu e cooperou no propósito dêles — apresentou-se a Jerusalém como a capital devia ter recebido seu Rei. Mas era a aldeia contra a me-trópole, a inocência rural contra a sagacidade sacerdotal dg grande me-trópole mundial, ramos de palmeira contra espadas de soldados romanos, a piedade contra a fôrça brutal. De fato, a aldeia vence, na sua maneira

( 3 ) "The Philosophy off the Christian Religion", p. 412.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 403

imponente, por três dias. E o Rei volta aos seus súditos. Seus «Hosanas» não foram em vão. Para os que o entronizam é seu eternamente.

Mateus nos informa que romperam em «Hosanas» também «os me-ninos» no templo na ocasião da segunda purificação do templo, Mat. 21:15. Eram daqueles «pequeninos crentes», Mat. 18:6, que mais tarde também haviam de engrossar «as igrejas de Deus que estão em Cristo Jesus». Não pensemos por um instante que somente os cento e vinte de Atos I, ou os «quinhentos irmãos» da entrevista com o Cristo ressuscita-do de que Paulo fala em I Cor. XV, eram os únicos frutos do ministé-rio de João Batista e seus batizados, de Cristo e seus apóstolos, e dos Se-tenta e outros. Não. Em tôda a parte havia crentes. Se houve tantos na aldeia de Betânia, quantos não contaremos se multiplicamos êsse número por todos os lugares já evangelizados? Lá está a seara de Sicar, de Enom, de «tôdas as cidades e vilas na Galiléia», e de mil outros lugares. E' a santa semente, o Israel de Deus. A seu tempo se mostrará.

«Escritas». Sobre o Velho Testamento neste Evangelho, vêde as notas sôbre 5:45, 46 e 6:45.

17. «A multidão». Lucas nos informa que a multidão de discípulos que ia com Jesus de Betânia rompeu em «Hosanas». João narra a saída da multidão de Jerusalém. Agostinho comenta laconicamente: «Turba turbavit turbam.»

18. «A multidão lhe veio ao encontro.» E' a aldeia que puxa a me-trópole, como o rio que invade o mar e o torna colorido. Mas no dia da crucifixão, o mar reagiu e a maré encheu as aldeias de pavor, como ve-mos pelo testemunho dos dois de Emaús. Todavia, a influência das aldeias como Betânia sôbre a vida e o destino do mundo é incalculável, se Jesus fôr amado na aldeia. O túmulo vazio de Lázaro, e sua presença viva na vizinhança por onde passavam os peregrinos para a capital, empolgava o judaísmo inteiro, Capital, Províncias e Dispersão. O forte Filho de Deus é a causa de todos êsses efeitos.

19. «O mundo inteiro». O mundo deles, de fato, desmoronava por causa de Jesus. E, dentro de meio século, não restaria uma pedra sôbre outra, arquitetural ou politicamente falando. A entrada triunfal termina no templo, o Palácio do Rei da terra, e Jesus pela segunda vez o purifica, e novamente a meninada rompe em «Hosanas». Assim os Sinóticos nos informam.

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A Visão da Cruz : Sua Glória, Sua Fôrça Perene e Seu Horror

(Capítulo XII, versículos 20 a 50)

20 Ora havia certos gregos, dos que subiam para render seu culto na oca-

21 A Cruz é a Porta sião da semana festiva; I esses foram a Felipe, na- tural de Betsaida da Galiléia, e lhe faziam pedi-

para a Evangeliza- dos neste sentido : "Queríamos, senhor, ver Jesus." 22 ção dos povos. Felipe vai e informa a André; André vai com 23 Felipe e o dizem a Jesus. I Mas Jesus lhes responde nas seguintes pala-

vras: "Veio e perdura a hora para o Filho do Homem ser de vez glorificado! 24 I Num solene aviso vos declaro: Se o grão do trigo não cair na terra e

morrer, ele fica sezinho: se, porém, morrer, leva avante safra abundante .

25 I Aquele que continuamente quer bem a sua própria OS Princípios Vis- pessoa, está a destruí-la; também aquele que vive

tos no Calvário como que odiando sua própria pessoa neste mun- 26 do, a preservará para uma vida sem, fim. I Se alguém

está para me servir, siga-me constantemente, e onde eu estou, aí o servo, o meu servo, estará também. Se alguém vive me servindo, meu Pai o honrará.

27 I Agora minha alma ficou em prolongada agitação. E que hei de dizer? Direi: 'Pai, salva-me já desta hora?' Pelo contrário, por este motivo cheguei,

28 para esta hora ! I Direi : 'Pai, glorifica o teu no- As Vitórias da me!' " Então uma voz veio do céu: "Eu tanto o

29 Paixão glorifiquei como o glorificarei novamente." I A turba, pois, que estava aí estacionada e ouviu, dizia

que se dera • um trovão. Outros tornavam. "Um anjo lhe acaba de falar." 30 I Jesus deu a seguinte resposta: "Não por minha causa, mas por vossa cau- 31 sa é que esta voz tem sido ouvida. I Agora é o julgamento deste mundo. 32 agora o príncipe deste mundo vai ser jogado completamente fora: I e eu,

sendo levantado de vez da terra, puxarei todos para minha própria pessoa." 33 I E ele disse isso, dando a entender por que qualidade de morte ele havia de 34 morrer. I A multidão, pois, lhe tornou: "Nós ouvimos da lei que o Cristo

fica aqui para sempre, pois como dizes tu que é mister que o Filho do Ho- 35

mem seja levantado? Quem é esse Filho do Homem?" I Então Jesus lhes respondeu : "Ainda por um pequeno prazo a Luz

A Luz Dá à Luz está entre vós. Ide andando, enquanto possuirdes Filhos Criados à a Luz, para que as trevas não vos tomem de sur-Sua Imagem me- presa, pois o que caminha nas trevas não' sabe onde

36 diante a Fé. vai. ) Enquanto possuirdes a Luz, crede continua- mente na Luz, a fim de que vos torneis filhos da

37

Luz." Essas coisas falou Jesus e, em partir, foi escondido deles. I Mas, em- bora ele tivesse operado tantos sinais miraculosos na presença deles, nele não

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 405

33 tinham fé, para que fosse cumprida a palavra de A Descrença Chega Isaías, o profeta, que disse: "Senhor, quem creu em

ao Ponto de Satura- nossa pregação? E a quem foi revelado o braço do 39 ção nos Fariseus Senhor?" ; Por causa disto não eram capazes de 40 crer, porque novamente Isaías declarou: "Ele lhes

cegou os olhos (e ficam cegos) e tornou-lhes obtuso` o coração, a fim de que não vejam com os olhos e entendam no coração e sejam convertidos e eu os venha a

41 sarar." ; Essas coisas disse Isaías porque viu a gló- 42 Do Coração São as ria dele e a seu respeito falou. Contudo, muitas

Saidas da Vida. das autoridades também se tornaram crentes nele, de fato; todavia, por causa dos fariseus, não que-

riam professar sua fé, para que não fôssem de vez cortados da sinagoga ; 13 ; pois amaram mais a glória dos homens do que a 44 O Gênesis da Here- glória de Deus. ; Ora Jesus bradou as seguintes

sia de Atos XV, 1 palavras : "O crente em mim não está crendo em 45 mim, mas sim naquele que me enviou, I e aquêle 46 que me contempla, está contemplando aquêle que me enviou. ; Eu vim ao

mundo e aqui estou como Luz, para que cada crente em mim não tenha uma 47 morada fixa nas trevas. Ora se alguém ouvir as minhas palavras de vez

e não lhes captar o sentido, eu não o estou julgando, pois não vim para en-trar em julgamento do mundo mas para efetuar de

48 A Palavra de Cristo vez a salvação do mundo. Quem vive me rejei- é Luz, Salvação e tando e não tomando minhas palavras para si, já

Tribunal de Vida tem quem o sirva atualmente de juiz. E' a palavra Eterna. que eu falei — ela o julgará no último dia; ; por-

que eu não falei por minha própria originalidade, mas sim o Pai, que me enviou, ele mesmo me deu, e dá, instrução decretada

50 sôbre aquilo que eu falo e sôbre as palavras com que o diga. E eu sei que essa sua instrução decretada é vida eterna. Portanto, as palavras que estou proferindo, eu as assim digo, precisamente como o Pai me falou e fala.

20. «Alguns gregos». «Eles ofereciam a Jesus um meio de escapar à cruz. Se consentisse em ir com êles para a pátria deles, ali (lhe dizem) encontraria boas vindas, amizade e atenção compreensiva.› Assim escreve o prof. J. A. Findlay, em «The British Weekly», de 18 de Julho de 1940. Confesso que o pensamento não me impressiona. Não há uma só palavra no texto ou contexto que o justifique. Psicológicamente, não vejo em seme-lhante convite da boa vontade incrédula nenhum motivo ou explicação do entusiasmo e exaltação de espírito que a nova do desejo dêles causou no Senhor. E' muito mais verossímil supor que era a fé inicial da parte dês-ses representantes do largo mundo fora do judaísmo. Jesus discernia que sua morte e sua glorificação resultariam na salvação de inúmeros gentios. Esses eram as primícias.

«Alguns gregos». Não eram helenistas, palavra que significa judeus

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que falavam grego, talvez moradores na Diáspora. Os gregos eram gentios, o povo cuja língua o mundo gentio civilizado falava. E' claro que havia gregos que ocasionalmente assistiam às festas com seriedade para adorar o Deus vivo e verdadeiro. E', pois, um pedido sincero, sério, investigador, reverente, o início de uma relação que bem podia ser a salvação dêles e de inúmeros gentios. Quem sabe? Talvez tenhamos aí a origem da primeira igreja em Roma, ou em Alexandria ou em outra capital do vasto mundo greco-romano. Os gregos desaparecem da narrativa ali mesmo. João fica entusiasmado com Jesus, que é sempre o seu Herói, e se esquece dos gregos. Viram Jesus? Creram? Qual o resultado? Ah, mil cortinas assim descem sôbre as origens evangélicas. Para usar outra figura, são como pequeninas sementes que os ventos levam para novos campos e anos depois ei-las em tôda a parte em abundância irresistível.

Talvez haja uma conexão escondida entre esses gregos e a segunda purificação do templo. A casa de Deus era destinada a ser casa de ora-ção para todos os povos. Eis aí representantes da cultura grega. Vie-ram adorar? E onde existe adoração? Acolá naquela feira de gado? No meio do mau cheiro e da gritaria infernal próprios das disputas ori-entais sôbre o câmbio de dinheiro e o preço mínimo dos animais do sa-crifício — é para ali que se convidam pessoas cultas a adorar o Deus vivo e verdadeiro? Jesus não o admite. De novo expulsa a turba avara e irreverente. Reina silêncio de novo na mágna côrte de todos os povos. Em reverência podem pôr-se em comunhão com o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.

21. «Felipe». Havia no apostolado um que fôra nacionalista fo-goso, Simão Zelotes ; um realista que estava no outro extremo da confor-midade com o domínio romano, Mateus, e dois judeus de nomes gregos : Felipe e André. Jesus dá lugar para todos, se são convertidos e chama-dos. Mas precisam, na comunhão do seu povo, subordinar suas ideolo-gias e advogá-las somente lá no campo de César. E' a razão por que um totalitário não deve ser admitido em nenhuma igreja. Esses dois nomes gregos serviam da primeira ponte entre o Salvador e o mundo gentio adorador. Há outra menção de Felipe em 1:43-48; 6:5, 7; 14:8,9.

«Queríamos, senhor, ver Jesus.» Sobre a vontade humana, como fa-tor na depravação e na salvação, na unidade da personalidade humana e na experiência da fé salvadora, vêde o estudo dêste verbo nas notas sôbre 5:40. E acêrca de «senhor», vêde o comentário sôbre 4:11.

«Senhor, queremos ver a Jesus.» «O pedido bem podia embaraçar a Felipe. Aos doze fora terminantemente proibido pregar aos gentios» (Mat. 10:5, 6). (1)

22. «Felipe... André». Feliz o André que tenha na sua vida um

( 1) "The International Criticai Commentary", sare este Evangelho, Vol. II, p. 431, por J. H. Bernard.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 407

Felipe, e o Felipe que consulta em terreno prático a um André. Sôbre André, vêde a discussão de 6:8.

23. «E' chegada a hora de ser glorificado o Filho.» «E' o paradoxo da cruz. Mas é paradoxo somente para os que não consideraram ainda sua ilustração tríplice na natureza, e na vida humana: (1) A semente precisa morrer para ser frutífera, v. 24. (2) A verdadeira vida do ho-mem é vitoriosa somente através do sacrifício (v. 25) .. (3) A vida de servir é a vida de honra e verdadeira glória.» (2)

24. «Amém, amém». Vêde as notas sôbre 5:24. «O grão tle trigo... fica só.» Parece salvo, o grão de trigo que não

saiu do celeiro. Não se angustiou, não se semeou. Não se sujou no solo. Não morreu. Não ficou «perdido»! «Felicitações, grão de trigo !» Não digas tal. Dize: «Meus pêsames, grão de trigo! Tu te perdeste nessa atitude egoísta que só visou o teu bem. Negaste tua natureza e missão. Não alimentarás os povos! Ficas feito um bairrista no celeiro! Será o teu máximo universo, teu mausoléu onde estás sepultado vivo, sem nunca teres morrido. Ai de ti, grão estéril de trigo. O grão que não morre... fica só.»

«Se o grão... não morrer». «Cristo na cruz exibiu a lei da cruz como a da seara. Haverá duplas e reduplicadas colheitas. Cristo é a se-mente, os cristãos a seara. A atividade missionária é apenas a lei da cruz em nossas vidas diárias, semeando-nos e colhendo a ceifa, espa-lhando tudo quanto somos em tôdas as esferas ao nosso alcance e rece-bendo de colheita multiplicadas vezes o poder inicial que espalhamos. A lição das biografias missionárias é de homens que se sepultaram.. a fim de que de sua consagração germinante possa ser colhido um celei-ro repleto de vidas salvas.» (3)

«Safra abundante». Sôbre o natural motivo de desejar frutos da nossa atividade cristã, vêde a discussão de 4:36.

25. «Aquele que continuamente quer bem à sua própria pessoa.» Alguns traduzem: «vida»; outros, «alma». Ambas as traduções me pa-recem inadequadas. O espírito de egoísmo, personalismo, miopia espi-ritual, em si mesmo amesquinha, reduz as proporções, retarda o cresci-mento, destrói as próprias riquezas e possibilidades da personalidade hu-mana. E prolonga sua obra destruidora para gerações sucessivas. Quan-tos pais que se tornam grandes pelos sacrifícios da mocidade heróica dizem: «Vou conseguir que sejam poupados de tais sacrifícios meus fi-lhos.» E decretam aí o aniquilamento da personalidade dos filhos e ne-tos. E' por isso que tantos filhos de crentes são os piores incrédulos, ou crentes nominais, incapazes de um sentimento nobre e heróico.

«Vive como que odiando sua própria pessoa.» E' hipérbole, COMO

(2) Idem, p. 433. (3) "Addresses on the Gospel of St. John", p. 467, p. W. C. Bitting.

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408 EVANGELHO SEGUNDO JOÃO

a Escritura sobre o dever de «odiar» pai ou mãe. Mas ao tirar a hipér-bole, o exagêro da linguagem, não tiremos a idéia do sacrifício, fonte de personalidade humana glorificada pela imitação do amor de Cristo.

«Vida eterna». O prof. W. O. Carver diz, a respeito: «A vida eter-na é diferente da vida dêste mundo na sua qualidade e, PORTANTO NA SUA DURAÇÃO» (4) (ênfase minha). E' uma verdade que testi-fico há longos anos. Vida «eterna», mas fugaz, volátil, efêmera, incons-tante não é vida de boa qualidade. Os que procuraram fugir da idéia de eternidade na vida cristã, perdem também a nobreza, a estabilidade e tôdas as boas qualidades da vida que é realmente descrita pelas pala-vras «vida eterna». Uma «vida eterna» que não fôsse eterna, seria men-tirosa nas suas pretensões, e não teria nenhuma qualidade boa. Seme-lhante noção leviana está longe dos Evangelhos e das Epístolas.

26. «Se alguém está para me servir, siga-me constantemente.» O verbo aqui traduzido por servir é da mesma raiz de que vem nossa pa-lavra diácono. E «meu servo», nesta mesma sentença, é a própria pala-vra que traduzimos por diácono. E' têrmo usado acêrca de Jesus, de es-cravos num palácio, dos empregados no casamento de Cana, do magis-trado civil, da irmã Febe, de Paulo, Timóteo, etc. A palavra pode ter três significados: (1) seu sentido usual de servo; (2) o ministério ofi-cial das igrejas; (3) o ofício do diaconato. E' claro que, em Atos 6, se trata de um novo ofício na vida organizada cristã. Lucas, o historiador inspirado do cristianismo apostólico, salienta o caso. O diaconato é, pois, um ofício de serviço nas igrejas, mas não é um «ministério» equiparado ou preparatório para o ministério oficial das igrejas. Este é chamado pelos nomes «presbíteros», «bispos», «pastores». A diferença entre o diácono e o bispo, em I Tim. 3, é que o diácono não tem de ser «apto para ensinar». E' o mesmo ideal de Atos VI. O propósito de criar o diaconato ali em Jerusalém foi para que o ministério espiritual daquela igreja não se afogasse em cuidados materialistas e responsabilidades administra-tivas: «Não é justo que nós abandonemos a Palavra de Deus e sirvamos às mesas... Nós atenderemos de contínuo à oração e ao ministério da Palavra.» Há, pois, os dois grupos de oficiais. Um não se dedica «de contínuo» à Palavra, outro sim se dedica. Um se dedica a êsse «diaco-nato» (não o ministério da Palavra), ou a êsse «serviço». Não é que êles não pregassem. Qualquer crente é testemunha do seu Salvador, e o serve. Mas deixar tudo e dedicar-se DE CONTÍNUO à Palavra é res-ponsabilidade do ministério que tem o nome de «bispos, pastôres, pres-bíteros», no ministério local das igrejas, ou «apóstolos e evangelistas», no ministério geral e itinerante. Os diáconos não têm de se dedicar DE CONTÍNUO a isso ; são leigos; não são obrigados a ser «aptos para en-sinar». Desde que o Novo Testamento esclarece nitidamente essas dis-

( 4) "The Self-Interpretation of Jesus," p. 132.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 409

tinções, é ofensa contra a Escritura baralhar tudo isso. Aproveitar a possível ambigüidade de um termo bíblico, de diversos sentidos evi-dentes, a fim de confundir o que a Bíblia distingue, ou criar do diaco-nato uma ordem no ministério, é ilícito. Nossos Novos Testamentos, em geral, traduzem nitidamente os têrmos: «servo» ou «serviço», onde a referência é assim esclarecida, «ministro» ou «ministério» onde o con-texto manifesta êsse sentido, e «diácono» ou «diaconato» onde a refe-rência é para êsses oficiais nas igrejas que não são homens ocupados DE CONTÍNUO com o ministério da Palavra. Continuemos com a «for-ma de sãs palavras». A referência aqui não é nem a bispos nem a diáco-nos, mas a todos os servos de Cristo.

«Siga-me.» «Que é êsse siga-me senão que êle me imite?» Assim dz Agostinho. Não imitar a Cristo em seguir seu exemplo e cumprir sua vontade revelada, é deixar de serví-lo e fazer-lhe um desserviço.

<Meu Pai o honrará.» Jesus e o crente se honram mutuamente. Deus promete honra ao servo de Cristo — não honra dada pelo mundo, mas nas realidades da vida cristã. Jesus esperava honra, por direito, embora reconhecendo que a familiaridade dos seus conterrâneos o pri-vava do gôzo desse direito. Vêde as notas sôbre 4:44, e sôbre 5:23, no tocante à honra que Jesus promete ao crente. As honras do crente abrangem os séculos e dois mundos, hostes visíveis e invisíveis. E o vul-to do real servo de Cristo toma proporções tais que impressiona o mun-do ; é como a sombra de uma rocha alta numa terra sêca e quente. Deus honra aos que o honram.

«O servo, o meu servo, estará». Jesus lembra ao próprio Pai êste seu propósito a nosso respeito, 17:24, e animou os discípulos com a mes-ma certeza, numa hora ainda mais sombria. Nunca será demasiada a ên-fase dada à verdade de que SERVIR, no sentido de SEGUIR, é a essên-cia da vida cristã, depois que o homem já foi salvo pela fé no Cristo cru-cificado. O Cristo levantado atrai todos para si, e êles o seguem, ser-vindo. O título de todos os oficiais do cristianismo é SERVO. E a des-crição de tôda a vida cristã é SERVIR, SEGUIR.

27. «Agora minha alma está em perpétua agitação.» O prof. W. O. Carver traduz: «Agora minha alma está rasgada em farrapos.» (5) Estava e ainda estaria. Mas ao lado da íntima agitação do seu espírito humano, vêde a divina calma em que a personalidade indivisível de Je-sus Cristo ia, cada passo, até o fim da jornada redentora na cruz.

«Pai, salva-me já desta hora.» James Reid, eminente pregador ir-landês, diz o seguinte: «E' interessante notar as ocasiões em que Jesus chamou Deus: 'Pai'. E' de pasmar quando notamos quantas vêzes isso se deu nas horas mais desesperadoras de sua vida. Uma vez foi a oca-sião em que êle verificou que não ia ganhar o apoio e discipulado do seu

( 5) "The Self-Interpretation of Jesus", p. 132.

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povo. Tudo que fazia fora censurado. Os homens se comportavam comG crianças mal educadas. Rejeitaram tôdas as poderosas obras de Jesus e o acusaram de ser sócio do Maligno. Nesse tempo Jesus exclamou: «Graças te dou a ti, ó Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelastes aos pequeninos.» Nessa hora de desapontamento doloroso, ele achou motivo de ação de graças e de renovação de confiança... Há imenso conforto para nós neste fa-to. Nossa religião não é sómente para o tempo bom, quando os céus es-tão sorridentes e brisas suaves sopram. Quando o temporal ruge e as coisas desmoronam ao redor de nossos ouvidos, podemos chamar a Deus: Pai, mesmo quando o ar está cheio de morte e de crueldade. Jesus nessas horas sombrias se dirigia a Deus com plena confiança na vitória, cheio de fé e amor. Semelhante fé é indestrutível, a única que a destruição não pode destruir.» (6 )

28. «Glorifica teu nome.» Nome: «por um emprego essencial-mente hebráico, o nome se usa por tudo que o nome sugere, todo o pen-samento ou sentimento despertado pela menção do nome — sua posição, autoridade, interêsses, prazer, mandamentos, excelência, feitos. De Deus: sua divindade, majestade e perfeições divinas.» (7 )

«Esta hora». «E' a versão de Getsêmane segundo João.» «Concorrebant horror mortis et ardor obedientiae» (Bengel) . «En tanto o glorifiquei... glorificarei». Vêde Vol. I, p. 210, sobre

a declaração de 1:14. O milagre nas bodas de Caná glorificou a Jesus, 2:11. Em 17:1, 4, 5, 10, 22, 24 Jesus parece ter em mira toda a obra redentora — paixão, volta a Deus, ressurreição, ascensão, obra mediado-ra e autoridade no universo. Em 13:31, 32 a referência é mais iminente. Sempre o Pai abria novos capítulos no romance da glória do Filho ama-do. O universo invisível o adorou, Heb. 1:6; 2:9. Esta promessa do Pai ainda terá muitos capítulos para seu cumprimento.

29. «A turba». Podeis examinar as vezes que Deus falou do céu. Desde o pecado no Eden até o Sinai, no ministério de Jesus e na conver-são de Saulo, nunca o homem gostou da voz de Deus, nem a compreen-deu. Só aqueles a quem Deus deu a revelação, e neles preparou alguma afinidade receptora na hora, ouviram, entenderam e aproveitaram. Para os demais era algo pavoroso, mas afinal sua incredulidade reduzia o fe. nômeno a uma trovoada.

30. «Por vossa causa». A voz do céu, como a oração à beira do túmulo de Lázaro, era para a orientação do povo, dando-lhe as creden-ciais do Messias real.

31. «O mundo... o príncipe deste mundo». O Calvário é a supre-ma transação na história do universo em relação ao pecado. E não é só

(6) "The British JVeekly", 15 de abril de 1943. (7) "Dicionário Grego", p. 117, de W. C. Taylor, citando Thayer,

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 411

nosso pecado. E' um dia de juízo final. Deus julga o pecado, é reconci-liado com o homem, potencialmente com todo homem, atualmente com todo homem que crê, não lhes imputando as transgressões, mas impu-tando-as a Jesus, a quem ele «fez pecado». Mas ele põe à parte o Maligno e os anjos maus, como excluídos da redenção. Desde o Eden até o Cal-vário há uma luta entre o Bom Deus e o Maligno, o Rival de Jesus na fé e nos afetos dos homens. Houve uma tremenda transação no Calvá-rio em relação ao mundo cios espíritos, de cujo alcance temos alguns vislumbres como estas frases aqui. Satanás é reu julgado, em espera da execução da sentença dada.

«Julgamento». Sôbre os vários sentidos do termo neste Evangelho, vede as notas na discussão de 5:22 e 8:15.

32, 34. «Levantando». Vêde a nota de A. T. Robertson e a dis-cussão de 3:14, no Vol. I deste Comentário, p. 322.

32. «Levantado.» Como em 3:14; 8:28. Harnack, o teólogo in-crédulo, favorito do Kaiser, disse: «Cristo não tem lugar no evangelho que ele pregava.» Pedro desmente: «Não há outro nome» que tenha aí algum lugar. A. A. Avery assim cita o historiador alemão, e em sen-tido contrário cita Denny, o qual, respondendo à idéia de que na Pará-bola do Filho Pródigo não há expiação de pecado, declara: «Se não há expiação na referida Parábola, também não há Cristo.» Cita também o Dr. Stalker, autor da famosa «Vida de Cristo», a respeito dêsses es-forços modernistas de eliminar Cristo do seu evangelho: «Não são o sig-nificado natural dos textos mencionados. A gente fica cansada de ver essa má vontade que sempre quer dar às palavras de Jesus a idéia mais rasa e superficial possível.» E comentando tudo diz o Dr. Avery: «O método comum (entre críticos modernistas e liberais) de desacreditar a força do testemunho de Jesus a si mesmo é êste tomiar separada- mente cada passagem, geralmente isolando-a do seu contexto, e redu-zindo-a ao seu mínimo significado possível. E então declaram: o que Jesus queria dizer é sômente isso.» (8)

32, 33. «Atrairei todos a mim.» «Não poucas são as ocasiões em que alguém nos lembra que todos os esforços para a conversão das na-ções pagãs ao cristianismo, senão tiverem o apoio e o auxílio de milagres, deverão demonstrar-se inteiramente ineficazes, ou ter bem pouco êxito. Que milagres fossem necessários quando o cristianismo foi introduzido no mundo, como evidências de sua origem e descida do céu, é perfeita-mente óbvio; eram a assinatura da mão divina adicionada ao testemu-nho do Filho de Deus e de seus apóstolos. Argumentar, porém, que sua repetição é essencial nos séculos do porvir, em todos os países onde o evangelho entra pela primeira vez, significaria que um testamento, por mais confirmado que fosse, não se pode considerar válido, a não ser que

( 8) "Addresses on the Gospel of St. John", ps. 240, 246.

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as testemunhas originais que o assinaram vivam para sempre para po-der confirmar eternamente sua firma no documento», (De John Angeil James, num sermão sôbre A Atração da Cruz, em Londres em 1819, em resposta a argumentos correntes de que a evangelização do mundo é im-possível agora por nos faltarem os milagres do período apostólico). O notável pregador continuou demonstrando que se outros podem pensar assim, nós não podemos, pois a evangelização dos países ainda não des-cobertos nos tempos dos apóstolos foi efetuado sempre sem milagres apostólicos. «A exigência de interposições miraculosas, como essenciais

t propaganda do cristianismo, mal procede vindo de Protestantes, quan-do nos lembramos que não há um país Protestante sequer que não te-nha recebido o evangelho desacompanhado de sinais e maravilhas . . .. Quais, pois, são os meios com que nos dirigimos para esta alta e santa emprêsa da evangelização do mundo? Eu respondo, A DOUTRINA DA CRUZ: pois disse Cristo: «E se eu for levantado, atrairei a mim todos os homens.» (9)

«Levantado da terra». O notável teólogo e administrador missioná-rio, o Dr. Henry C. Mabie, dizia haver quatro resultados objetivos da morte expiatória de Jesus Cristo: (1) «O devido reconhecimento, na experiência de Cristo, da necessária sentença sobre o mal coletivo e or-gânico da raça humana. (2) A expulsão do princípio personalista, o ego-ísmo, que era o princípio regulador dêste mundo pelo Diabo. (3) A morte de Cristo em sentença judicial com a destruição virtual do nexo entre o pecado e a morte que até aí eram ligados na sorte humana. (4) Por essa morte, sentença jurídica, a humanidade foi reconhecida como pa-trimônio de Cristo por direito e para sempre. Em todos esses pontos a expiação era substitutiva e era mais do que vicária; era vicário-vital, visto que está sempre entendido que a obra expiatória de Cristo traz os seus beneficiários para uma união vital com Cristo mediante a fé... O julgamento efetuado por Cristo na cruz se estendeu às mais profundas realidades do universo moral nesta vida e no além-túmulo. Com efeito, antecipou toda a questão essencialmente moral que possa assustar a alma humana ao contemplar seu destino eterno. A pena das transgres-75es passadas foi potencialmente cumprida. O maior inimigo do homem, seu acusador, Satanás, foi potencialmente destruído. A morte causada pelo pecado do homem foi potencialmente cancelada. E no propósito de Deus, todos nós temos sido entregues a Cristo potencialmente, como sua possessão peculiar... A morte e a ressurreição de Jesus realmente são partes gêmeas de um fato indivisível, a expiação consumada. A ressurrei-ção não é entendida no Novo Testamento como se fôsse mera continui-dade de existência de Jesus, que foi morto; pelo contrário, é o sêlo do

(9) "The Highway of Mission Thought", ps. 79, 80 (famosos sermões sare missões. colecionados por T. B. Ray).

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céu colocado sôbre a validez da morte sentenciada que êle suportou.» (10) E' um tanto abstrusa a linguagem do Dr. Mabie, que evita o voca-bulário popular. Mas vale a pena ler de novo e assimilar suas palavras. Decerto, pela palavra «potencialmente» êle indica o oferecimento univer-sal do evangelho e seus resultados finais como estando envolvidos no Cal-vário, oferecidos a todos, mas efetivos somente para os que crêem.

«Atrairei (puxarei) para mim todos.» A cruz é o imã, ou antes a cruz não é nada. Cristo levantado sôbre a cruz é o imã. Ainda conser-vo a sugestiva tradução «puxarei», de Almeida, antes de ser emendada. Vôde a discussão de 6:44. Meu professor de Novo Testamento grego, o Dr. C. B. Willians, autor de uma Tradução do Novo Testamento, e de di-versos livros da gramática e exposição do Novo Testamento grego, num artigo em «The Southwestern Journal of Theology», em 1916, diz : «Como o sol de nosso sistema solar atrai para si e conserva em rotação ao redor de si os oito planêtas, desde Mercúrio e Venus até aos distantes Urano e Netuno, assim Cristo, o sol central do universo espiritual, pela virtude de sua cruz, atrairá o mundo para si e o conservará em rotação na sua órbita moral ao redor dele que é o centro .

«Não há possibilidade de dúvida de que a cruz do Calvário é a atra-ção principal do cristianismo. Jesus o afirmou e temos de respeitar sua afirmação como final. O próprio verbo traduzido levantar foi compreen-endido pelo povo no sentido de crucificar (v. 34) . E o autor assim o ex-plica (v. 33) . O levantar era o que os soldados romanos fariam depois de pregá-lo à cruz e elevá-lo para deixá-lo cair no buraco cavado para esse fim na rocha da Caveira — sua suspensão entre os céus e a terra para levar nossos pecados em seu corpo no madeiro.

«O levantar refere-se primordialmente a morte de Cristo na cruz, mas indiretamente indica sua exaltação última no trono mediante a cruz ... Era a cruz que havia de se tornar em trono para êle e pela qual êle havia de atrair para si os homens como súditos. Em levantar, portan-to, se bem que a referência primacial seja crucifixão, existe uma suges-tão de que êle havia de ser introduzido. (Cita Marcus Dods assim, do Expositor's Greek Testament, in loco).

«A preposição ex, fora da terra, talvez dê também um vislumbre de sua ressurreição. Jesus provavelmente pensa na sua ressurreição como complemento essencial da sua cruz, mas com absoluta certeza a ênfase, primária é sôbre a cruz como a atração principal do cristianismo, o meio mais poderoso para atrair os homens ao seu Salvador, o Senhor.

«Talvez a palavra mais difícil seja todos. Significará que ao pé da letra êle atrairá todos a êle pela cruz e assim todos os homens serão, salvos? Certamente os fatos da história não concordam com semelhante idéia. Então será que a doutrina dos universalistas é verdadeira, isto é,.

(10) "Addresses on the Gospel of St. John", pe. 230, 231.

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que toda a humanidade sente alguma fraca atração por Jesus e em sen-tido vago e impessoal todos os homens são salvos pelo Cristo crucificado? A própria palavra atrair (puxar) refuta a idéia. Cristo atrai todos, mas não em massa, senão um a um, e para relações pessoais com êle. A per-sonalidade é o maior fato na vida humana e um dos principais fatôres no plano de salvação.

«Então pode essa palavra todos predizer a atração eventual de todos por Cristo no porvir — depois de passar esta era que chamamos tempo? Não há vislumbre de sugestão por parte de Jesus de que os homens não eficazmente atraídos por êle nesta vida terão uma segunda oportunidade depois da morte, nenhuma sugestão de um segundo período de oportuni-dade e provação no além-túmulo. Luc. 16:26 positivamente contradiz a idéia de um segundo dia de salvação depois da morte.

«Então que pode significar todos? Ele queria dizer que a cruz tem poder de atrair todos os i:pos e raças de homens — gregos e romanos, como judeus. E' o que se verifica através dos séculos. Reis e rainhas. como Alfredo, o Grande, e Vitória, estadistas como Gladstone e Lloyd George, Daniel Webster e Woodrow Wilson, cientistas como Galileu, Dawson e Romanes, autores como Shakespeare, Tennyson, Dante e o casal Browning, assim como multidões de homens comuns, dos pobres e dos ignorantes de tôdas as raças, ...todos foram irresistivelmente pu-xados para e por Cristo crucificado.» Vêde ainda sôbre «todos» a dis-cussão de 3:31,32.

33. «O modo por que havia de morrer». E' para mim motivo de pasmo que muitos intérpretes, a despeito dessa linguagem clara e insofis-mável, insistam em negar que é ao Calvário que Jesus se refere aqui e acham que é ao Cristo exaltado que ê feita a referência. Não vale a pena discutir coisa tão clara. Ou cremos o que Jesus afirma ou descremos.

34. «Levantado». Que esta linguagem significa a crucifixão, e i,ão a ressurreição ou ascenção, é evidente já em 6:28 onde Jesus diz aos judeus: «Quando tiverdes levantado o Filho do Homem...» Era coisa ao alcance da capacidade humana «levantar» Jesus Cristo na cruz, mas a êles não cabia a tarefa de levantá-lo do túmulo para a dextra de Deus.

«Filho do Homem». Vêde a discussão dêste título messiânico nas notas sôbre 1:51, no Vol. I, nas ps. 267, 268. A erudição crítica em peso rejeita a teoria de um original em aramáico dêste Evangelho. Si5- mente a hostilidade ao sobrenatural se regozija com teoria tão inverossí-mel. «Filho do Homem» é título messiânico nos antigos profetas hebrai-cos e no Novo Testamento grego que é incontestàvelmente o único No-vo Testamento original. E é precisamente a mais sublime e elevada série de idéias sôbre o Messias, em ambos os Testamentos, que ficou associada e manifestada por êsse nome do Cristo prometido. E' a glória de Jesus, não sua humilhação e não primacialmente sua humanida-

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de, que está em foco quando êle é chamado «Filho do Homem». O ter-mo traz consigo sua história profética.

35. «Por um pouco». «Brevemente virá o tempo em que, como o sol no poente, a luz da verdade e vida estará no ocaso.» O mesmo autor representa Jesus aqui como que dizendo: «Tratai-me como Luz. Andai de um modo condigno com êsse fato. Procurai entender-me. Fazei isto para que as trevas não nos sobrevenham... quando tiver partido a divi-na revelação que vos é dada em mim.» (11)

36, «Crede na luz.» «Crer na luz» significa «ler a vida como a luz revela que a vida realmente é, aceitar como mau o que a luz revela ser mau, firmemente trilhar o caminho que ela ilumina para nós, ter como realidades e não como sonhos os ideais que a luz acende em nosso hori-zonte, e apressar-nos com todo o coração para seguir e realizar na vida êsses ideais... Usai-me a mim mesmo enquanto me tiverdes. Usai-me como a vossa vida.» (12 ) As palavras citadas antes do verbo «Usai» soam como uma doutrina de salvação pelas obras, pelo idealismo moral. Estou certo que Cristo não quis dizer isso. Os dois verbos de exortação ‹:Usai» estão mais de acôrda com a palavra do Mestre. E' pecar contra sua lin-guagem deixar o verbo crer sofrer total eclipse. E' em crer evangelica-mente que Cristo, a Luz, nasce sôbre a alma com os raios da salvação. Os ideais são de magna importância, mas a salvação é de primeira urgên-cia. O poeta Tennyson tinha mais compreensão de Cristo quando apon-tou para um girassol e disse: «O que o sol é para aquela flor, Jesus Cristo é para mim.»

«Filhos da luz». «O oriental contempla cada relação íntima — quer de parentesco, origem ou dependência — como relação de filiação, até na esfera espiritual.» (13) Notai que filiação, em coisas espirituais, como sempre, vem por crer evangelicamente: «crêde na luz para que vos tor-neis filhos da luz.» E 1:12 — «aos que crêem em seu nome, deu êle o poder e o direito de se tornarem filhos de Deus.»

«Foi escondido.» Como? Vêde as notas sôbre 8:33 e o esbôço de Ernest Gordon sôbre «O Templo contra Jesus», na discussão de 5:14.

37 - 50. Riggs chama êsses versículos uma recordação das lições de incredulidade dos judeus.

37. «Embora tivesse ao seu crédito... fêz». Assim procuro dar o sentido do verbo. Ele fêz os sinais e permanecia ainda o efeito, a in• fluência que dava em resultado muitos casos sucessivos de fé, e tam-bém uma crescente, confirmada e renovada descrença e hostilidade .

«Sinais». Vêde as notas sôbre 5:7 e 20:30. «Não tinham fé.» Vêde 5:38 e a discussão dos dois sentidos prin-

cipais do verbo crer, também as notas sôbre 6:64, etc.

(11) "Messages aí the Books of the Bible", p. 251, por. J. S. Riggs. (12) "The Speaker's Bible", Vol. II sobre este Evangelho, p. 51. (13) "Bible Studies", p. 161, por A. .Deissmann.

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38. «Para que fôsse cumprida». Estou traduzindo e interpretan-do João e não o que os modernistas e racionalistas hodiernos gostariam que João tivesse escrito. As idéias que devemos esclarecer são as de João. Se alguém não crê nelas, então trate de rejeitá-las francamente e não falsificando a tradução.

«A palavra de Isaías, o profeta». A passagem citada se acha em Isa. 6:1-11. João entra no espírito de Isaías e nesse espírito escreve, na interpretação de uma incredulidade geral de Israel que é humanamente incompreensível, e que constituia um problema para Isaías, como tam-bém para Paulo, como se vê pela angústia que se manifestou no cora-ção da Epístola aos Romanos, e agora mais uma vez agita o coração ame.- roso do último apóstolo, ao pensar na incredulidade do seu povo. Aos que não querem aceitar o sentido sombrio das palavras de Isaías, Jesus, Paulo e João, eu lembro um fato. Os escritos dêsses homens fazem parte de vossa Bíblia, precisamente como fazem parte da minha Bíblia. Ten-des de lhes dar uma interpretação sincera e inteligente, do mesmo modo que eu e outros crentes na Palavra de Deus, ou então perder o respeito pelas Escrituras. Não é possível discutir o assunto num vácuo: tem de ser discutido à luz do que o Senhor e seus profetas e apóstolos afirmam como revelação divina da verdade.

A profecia prediz a glória e a parcial derrota do Messias, a fé e a incredulidade a comunidade do Israel espiritual e a comunidade incrédula do Israel segundo a carne, que rejeitou seu Messias. Cada vez que al-guém crê, é uma profecia cumprida. Cada vez que alguém descrê é ou-tra profecia cumprida. Judas é o caso mais saliente e o problema mais severo. Não se podia profetizar a rejeição do Messias num vácuo. Para ter veracidade e certeza, a profecia tinha de estar de acôrdo com os pla-nes eternos da Trindade, e envolvia, de certa maneira, vontades huma-nas no drama da redenção. A alternativa é um mundo em caos, onde o próprio Deus tem de esperar até que o homem aja, para saber o que êle vai fazer, e com que planos Deus dará o remédio das iniqüidades prati-cadas. O racionalismo não tem onde fincar o pé nas Escrituras. Nelas a história humana é um plano divino, e marcha para uma consumação em que não haja mais rebelde ativo no universo. Uma parte dessa dou-trina total é a predestinação, a eleição, a providência divina. Outra par-te é o livre arbítrio, as escolhas responsáveis, as decisões pessoais, desde o indivíduo até o movimento de gerações, povos e raças, na história hu-mana. Há mistérios insondáveis no encontro dessas vontades humanas e divina, às vezes em acôrdo, em fé, em obediência e às vêzes em opo-sição. A humildade reverente crerá na realidade de ambas as vontades, a humana e a divina, na responsabilidade de ambas, e reconhecerá que nós damos a Deus pelo menos tanta liberdade de escolha e ação no seu uni-verso como admitimos no turbilhão das contraditórias vontades huma-

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nas no mundo. O fio de destino em tudo é o propósito eterno da re-denção.

39. «Não eram capazes de crer.» Não devemos acolher nem por um instante a idéia de que essa forte linguagem de Cristo e dos profetas antigos e dos apóstolos fecha a porta da oportunidade no rosto de gente bem disposta e pronta para logo mais aceitar de boa vontade o que Deus tem de oferecer. Nunca, desde Faraó até Judas, Caifás e os fariseus, se aplica essa linguagem a tais casos. Sempre é proferida com referência a pro-longada resistência, hostilidade, sagaz propaganda, e politicagem numa vasta escala, para arregimentar o sacerdócio, a aristocracia e a plebe con-tra Deus e contra seu Ungido (Salmo II) . Essa suposta boa vontade in-crédula, prestes a crer mas impedida por Deus e pela predestinação, é um mito, totalmente invisível no curso da história bíblica inteira, como é invisível em tôda a história religiosa dos homens. «A mente da carne é inimizade contra Deus? E', dessa situação que tais Escrituras tratam.

40. Lêde o resto de Isa. VI. A citação descreve Israel na sua cres-cente incredulidade.

41. «Viu a glória.» Ernest Gordon nos lembra que Isaías é o profe-ta da redenção, e acha todo o programa (14) de Cristo, em ordem, nas profecias do grande vidente do Servo Sofredor de Jeová. João aqui nos informa diretamente que Isaías proferiu essas palavras de seu cap. 6, «porque viu a glória dêle». João, pois, identifica Jesus e Jeová, nessa glória eterna, na qual êle viu; «Jeová sentado sôbre um alto e elevado trono, e as orlas de seu vestido enchiam o templo.» E o universo repe-tia como um eco a adoração de criaturas celestes: «Santo, santo, santo, é Jeová dos exércitos.» Outra vez João representará Jesus como dizen-do: «Eu Sou», 13:19. Estamos no «Santo dos santos» do universo e da história supra-mundana, quando tratamos dêste assunto. Que essa é, de fato, a idéia de João, é claro pela linguagem do Apocalipse, uma reminis-cência de Isa. VI, mas aplicada abertamente a Jesus. Os judeus achavam tudo isso blasfêmia. Nós não podemos associar-nos com a descrença deles e ainda fingir que somos crentes em Jesus. Nossa fé é expressa por João, não por Caifás e seus pares, os fariseus e saduceus. Mas o cristianismo nominal hoje em dia está eivado de pregadores que são aliados da crença de Caifás e do Sinédrio; não são crentes, com a fé que Jesus aceitou e Isaías, João e Paulo proclamaram porque lhes ardia no coração.

«Isaías viu a glória dele e dele falou.» «Foi Cristo, pois, que Isaías descreve como Senhor, sentado sôbre um trono, elevado e exaltado, o Se-nhor Jeová-Jesus, antes dos dias de sua humilhação. No quarto capítulo do Apocalipse, João tem uma visão congênere de nosso Senhor, ora sen-tado de novo no seu trono. Há criaturas também, vistas esta vez, que parecem os serafins, têm seis asas e cantam: Santo, santo, santo. Em

(14) "Notes from a Layman's Greeic Testament", ps. 7-11.

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Isaías, porém, a adoração é dada pelo coro celestial ao Verbo Criador —toda a terra está cheia de sua glória —, no Apocalipse é adorado o Verbo Encarnado, que entrou no tempo e voltou para a eternidade, aquêle que era, que é e que há de vir!

«Ora, Isaías teve por missão profetizar essa encarnação. Foi para essa incomparável mensagem que seus lábios foram purificados pelos serafins. Jerônimo nota que o ano em que morreu o Rei Uzias (Isa. 6:1) foi o ano em que se fundou a cidade de Roma. Portanto, nosso Senhor determinou anunciar sua futura encarnação, pelo seu nascimento em Be-lém, no mesmo tempo em que estavam sendo postos os alicerces daquele soberbo reino que havia de crucificá-lo. O Senhor estava na glória: Roma nos seus humildes começos. Na vez seguinte em que temos relações com Roma na história messiânica, o zênite da era de Augusto viera e se or-dena um recenseamento em todo o mundo. Entre os seus súditos, com-parece o Senhor da glória, um bebê numa mangedoura.» (15)

42. «Os fariseus». Vêde as notas sôbre 4:1. «De fato». O original multiplica palavras enfáticas sôbre a realida-

de da fé dêsses crentes às escondidas. E prova de que o batismo, o cle-ro, a igreja e a profissão pública da fé não são necessários para a salvação. Elias era crente às escondidas por longos anos e além dele havia 7.000 outros. Somente a eternidade revelará alguns crentes e provará serem fal-sos alguns professos (Mat. 7:22; 25:44). A profissão (da fé) ou a confissão (de Cristo como nosso Salvador pessoal) é a mesma coisa, e o verbo pode significar ambas as idéias. Desde o princípio a profissão de fé é um de- ver que Cristo impôs (Mat. 10:32; João 9:22; Rom. 10:9, 10) . Nesta última Escritura seria melhor traduzir: «confessa a respeito da salva-ção», porque o versículo anterior afirma que a existência da fé no cora-ção salva. A boca fala daquilo de que o coração está cheio. Também a linguagem de Mat. 10:32 não significa a perdição do crente secreto. Cris-to se envergonhará do crente covarde, públicamente se envergonhará dêle no dia final, negará que êle tenha sido fiel, bom mordomo, leal servo: «se somos infiéis, êle permanece fiel, porque não pode negar-se a si mesmo» (II Tim. 3:13) . O mesmo João nos previne da possibilidade de sermos «envergonhados na sua vinda» (I João 2:28) . Cristo não mentirá no úl-timo dia. Muitos crentes ficarão sumamente envergonhados de sua co-vardia moral, por terem procurado agradar aos homens, e não a Deus. Serão os «mínimos no reino de Deus» (Mat. 5:19) . Os crentes são todos salvos. Aos professos hipócritas ou enganados, porém, Jesus dirá: «Nun-ca vos conheci» (Mat. 7:23). Nunca haverá no inferno nenhum crente, nenhuma alma a quem o Salvador outorgou a vida eterna mediante a fé, escondida no coração.

43. «A glória». Vêde as notas sôbre 5:41, 44, a respeito da indepen-

(15) "Notes from a Layman's Greek Testament", p. 7.

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ciência de Jesus. Quanto mais cresce a cultura literária dos círculos evangelizados, tanto mais é mister que tenham parte na independência de Jesus Cristo, discordando das tradições dos homens e testemunhando a imutável verdade revelada em Cristo e nas Escrituras. (16) E' gra- víssimo pecado o que se descreve neste versículo, Gál. 1:10.

44, 46. «Bradou». A pregação de Jesus percorreu todos os terrenos do espírito humano: humorismo e tragédia, narração e exegese, parábolas e discursos, exortação e denúncias, apêlo e julgamento, lágrimas e sarcas-mo, calma e brado, entusiasmo e raciocínio, ameaças e conselhos. Nada é indigno da sublime arte de pregar o evangelho. Vêde as notas sôbre 7:28, a respeito do entusiasmo do pregador, o dever de pregar como arauto da boa nova e não conversar no púlpito.

«Crê». Vêde a discussão de 6:29 sôbre a fé perene que acompanha a vida eterna.

45. «Aquêle que me contempla» vê o Pai, 14:7-9. A Luz veio ao mundo. E', pois, para os que o contemplam com fé, a aurora do dia.

46. «Não alcance uma residência fixa nas trevas.» As decisões pró e contra Jesus decidem o destino eterno. Aqui temos um tempo aoristo, depois de um tempo presente. Quem é crente, é perenemente crente. Mas êsse fato, e a justificação que essa fé trouxe de vez a êsse crente, fazem com que sua permanência na Luz seja decidida de vez. Do mesmo modo, os decidida e finalmente incrédulos tiveram, por sua rejeição definitiva de Jesus Cristo, sua permanência resolvida de vez nas trevas. Alcança-ram, no momento da decisão contra Jesus, uma residência nas trevas e tomaram posse de vez dessa residência. Há muitas almas que fazem essas terríveis decisões. Há milhares de homens no Brasil que ouviram o evan-gelho, sabem perfeitamente que é a verdade e o único caminho da salva-ção ; mas é inconveniente aceitá-lo, quebra a unidade da família, arruina esperanças comerciais, sociais e religiosas que lhes são tradicionais. Fa-zem a mesmíssima decisão que fêz o Sinédrio contra Jesus. Nunca pisam outra vez num culto evangélico para não se perturbarem de novo com o assunto. Tomaram residência fixa nas trevas, havendo rejeitado defini. tivamente a Luz. Vêde a discussão de 3:36.

47. «Ouvir minhas palavras». Quão solene é nossa responsabili-dade diante das palavras de Jesus, que são espírito e vida, se pode ver pela conclusão do Sermão do Monte. São, como seu Autor, o Fundamento, a Rocha. Aliás, não se pode reverenciar alguém e ao mesmo tempo menos-prezar sua palavra. Sobre os sentidos de «ouvir», vêde as notas da dis-cussão de 5:25, 37.

«Salvar o mundo». A Palavra salvar se acha neste Evangelho arie-

(16 ) A. T. Robertson, em "Word Pietures in the New Testament", 'Vol. V, p. 233, diz: "Quão apropriadas são essas palavras para o caso de muitos suaves covardes hoje em dia."

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nas quatro vêzes, «salvação» uma vez, «Salvador», uma vez. A verdade da salvação é expressa por outros têrmos — especialmente por «crer» (96 vezes) e «vida» (37 vezes) . Nesta conexão vale a pena meditar nas palavras de Huberto Rohden: «Os pelagianos só admitem pecado pessoal, negando a existência de um pecado original. A natureza humana, dizem, não pecou. Pecou apenas o individuo. Como não é possível que um peque por outro, assim também não é possível que um redima outro. O homem, autor de sua queda, é também autor de seu reerguimento... Em resumo, o homem é bom por natureza, mesmo no estado atual, e a sua redenção é auto-redenção. Não é redimido, êle mesmo é que se redime...

«Para crer na impotência do Eu e na onipotência de Deus, sob a forma da graça, deve o homem passar por uma escola que fica além de Ilidas as suas experiências pessoais. Fácil é crer na física do que é na-tural — difícil é crer na metafísica do sobrenatural.

«A mais dolorosa e humilhante bofetada na face do homem, má-xime do homem moderno, ébrio das suas conquistas no domínio da ci-ência, técnica e arte, é dizer-lhe que a consecução do seu destino supremo não depende dêle, mas de um terceiro, ao menos em primeira linha. Não é o homem que se salva — é salvo por Deus... (Cuidado com êsse re-cuo: «ao menos em primeira linha». W. C. T.)

«Tão insuportável é esta idéia de Cristo-redenção a todo o homem natural que milhares de cristãos dos nossos dias, máxime entre as clas-ses intelectuais, são 'intimamente pelagianos ou semi-pelagianos, ao me-nos na zona noturna do subconsciente. Crêem oficialmente na teo-re-denção, mas secretamente crêem ainda mais na antropo-redenção. Para escalar o céu, têm mais confiança na tôrre de Babel erguida pelo pró-prio Eu do que na cruz de Gólgota levantada por Deus.» (17) O que é triste é que o clero romanista está ensinando nas escolas públicas que o homem se salva a si mesmo, «compra sua salvação» pelo preço de suas obras. Por exemplo, no «Curso de Religião», em dois grandes tornos, pelo Dr. Marcos, Padre dos Sagrados Corações, lemos: «As boas obras não são coisas de mero capricho, mas um dever imperioso; são o preço com que compramos o céu.» (18) «Somos cristãos pelo batismo. Nossa alma recebeu no batismo o caráter de filho de Deus» (19) E assim atra-vés dos dois tornos. Semelhante mentira e apostasia não têm nem pa-rentesco nem similaridade com o cristianismo de Cristo, tão claramente exposto neste Evangelho.

48. «A Palavra... juiz». E' mais claro o sentido no original. Pois palavra é logos. O Logos é o juiz, mas não se separa a lei da Legis.

(17) "Agostinho", ps. 217, 218. (18) Vol. II, p. 375. (19) Idem, Vol. I, p. 29.

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lador, no julgamento, nem a palavra daquele que é «a Palavra», o Logos. Êle julga pelo critério das suas próprias palavras.

«No último dia». O dia de juízo é o ÚLTIMO DIA, não o penúltimo dia, como alguns milenários crêem. E' o «último dia», porque o anjo de Deus terá terminado esta ordem de coisas que chamamos o tempo, como sua decisão promulgada : «Não há mais tempo.» Aquêle dia, pois, será o «último dia».

49. «Não falei por minha própria originalidade.» Vêde as notas sôbre 5:19, 30, 31.

49, 50. «O Pai mesmo, que me enviou me deu — e está em vi-gor — um mandamento para dizer e com que palavras dizê-lo. E eu sei que o referido mandamento dêle é vida eterna.» Mandamento é a mesma palavra nos dois versículos, sem artigo uma vez, com artigo a segun-da vez. O artigo a segunda vez torna a referência definitiva. Por isso, dou a tradução «o referido mandamento». Os sacramentalistas e prega-dores de salvação pelas obras humanas isolam essas palavras do seu contexto e as torcem para seus fins ignóbeis. Dizem: «Estão vendo? Cristo disse que a vida eterna vem se guardarmos os mandamentos. Logo, a salvação é pelas nossas obras.» Isso é insensatez. O mandamen-to é um só, e trata da atitude para com Jesus que salva, isto é, a fé, ver-sículos 45, 46. E' o evangelho que Jesus prega (vêde a Introdução, Vol. I, ps. 57-68) que é o mandamento do seu Pai para êle. Nem se trata de mandamentos, de espécie alguma, para nós. O Pai deu a Jesus o man-damento de anunciar a salvação por êle mesmo mediante a fé, as pró-prias palavras em que a mensagem de vida deve ser pregada, diz Jesus. No referido mandamento, do Pai ao Filho, e que êle cumpre ao anunciar o evangelho, está a vida eterna. Quando Jesus prega: «Aquele que crê tem a vida eterna», êle está obedecendo ao mandamento do Pai sôbre o evangelho e as palavras em que o evangelho deve ser anunciado por êle. Tal mandamento é nossa orientação sôbre o caminho da vida. Em obede-cê-lo, sim, há vida eterna. Mas não tiremos a linguagem do seu con-texto, mutilando sua evidente e única referência, e depois e ainda pior, aplicando-a a uma porção de sacramentos e ritual e cerimonialismo, morto e pagão, que nunca Deus mandou em lugar algum para quem quer que seja. E' a tal incessante caiação que o sacramentalismo faz, obscu-recendo a verdade de Jesus.

E' a tradução de Weymouth e Helen Montgomery que sigo, em cima. A mesma idéia se procura externar em várias maneiras de ver-ter o original. A.T. Robertson, Westcott e Meyer estão todos de acor-do que os dois verbos diferentes, assim juntos, visam indicar o conteú-do essencial da mensagem de Jesus, em primeiro lugar, e sua maneira de transmiti-la. Vêde a discussão de 3:36.

50. «O seu mandamento é a vida eterna.» E' Escritura paralela ao versículo que promete «salvação eterna para todos os que lhe obe-

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decem», Heb. 5:9, e ao outro que previne aos pecadores que «o que de-sobedece ao Filho não verá a vida, mas sôbre êle permanece a ira de Deus», João 3:36.

Certamente essas escrituras não visam contradizer as inúmeras pro-messas de salvação, vida eterna, justificação, adoção, santificação em sua fase inicial e jurídica, regeneração e muitas outras fases da salvação eter-na dada ao que crê. Imediatamente antes de dizer: «O que desobedece ao Filho não verá a vida», se declara: «O que crê no Filho tem a vida eterna.» Essa é a declaração primacial, o resto do versículo está de acor-do. Quanto à «eterna salvação» de que Cristo é o autor para todos que a êle obedecem, convém notar que temos o mesmo verbo em Atos 6:7 —«também muitos sacerdotes obedeciam à fé». Sem a menor dúvida ou mistificação somos salvos pela obediência. Deus manda: «Salvai-vos desta geração perversa.» Somos salvos por obedecer a seu mandamen-to, salvando-nos como êle ordenou. Cristo pregou o evangelho: arre-pendei-vos e crêde, Mar. 1:15. Somos salvos por obedecer a seu man-damento. Seu mandamento define o que o pecador precisa fazer para ser salvo — arrepender-se e crer no evangelho. Pois obedecendo, por arrependimento e fé, somos salvos pela obediência aos têrmos divinos da salvação. A eterna salvação — notai que não há salvação efêmera, salvação por uma só vida, salvação por prestações — a eterna salvação, digo, é outorgada aos que evangèlicamente obedecem às condições esta-belecidas pela autoridade de Jesus como necessárias para sermos salvos. Ele é o Autor da salvação. Determinou no evangelho salvar o crente. A obediência que salva é crer. «Respondeu-lhes Jesus: a obra de Deus é esta, que creais naquele que êle enviou.» Não há confusão. Não é uma rotina de obediência em outros terrenos, rotina eclesiástica, sacramen-tos, méritos humanos, nada disto é obediência que salva. E' obediência no terreno do evangelho, da salvação, das condições por Cristo ordena-das como essenciais à salvação. O contexto imediato é igualmente claro, «O Pai que me enviou, esse mesmo me tem prescrito o que devo dizer e o que devo falar. Eu sei que o seu mandamento é vida eterna.» Assim diz a Versão Brasileira. Eu não posso imaginar o motivo por que a Ver-são Brasileira deu aqui essa tradução tendenciosa. Ela esconde o fato de que o mesmíssimo vocábulo mandamento está nos dois versículos su-cessivos, e a segunda vez clara e indubitàvelmente se refere à primeira . O que Jesus realmente disse é: «O pai... me deu, e está em vigor, o mandamento que devo dizer como minha mensagem, que devo pregar.» (São os dois verbos relativos a falar, em deliberado contraste.) «E eu sei que seu mandamento» é o mesmo mandamento do Pai a Jesus, defi-nindo o evangelho que êle devia dizer, pregar. Não são uma porção de mandamentos a nós sôbre uma porção de assuntos que são para nós a vida eterna. E' o conteúdo da pregação de Jesus, que êle prega por que Deus manda — eis o mandamento que é vida eterna. E' o evange-

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lho que é vida eterna para o crente. Quão iníquo é arrancar isso do seu contexto e dar aos pecadores a entender que serão salvos por uma por-ção de mandamentos eclesiásticos, inclusive mil tradições de homens, completamente alheias à Bíblia. Nada mais falso. Somos salvos deve-ras pela obediência ao evangelho, e o evangelho é o mandamento que Deus deu a Cristo ordenando-lhe que o pregasse. Obedecer aos manda-mentos evangélicos, cumprir as condições da salvação, é necessário para ser salvo. Seu mandamento assim é vida eterna. Vêde a discussão de 3:34.

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A Véspera do "Êxodo" é a Hora da Páscoa: O Mestre ainda Educa

(Capítulo XIII, versículos 1 a 30)

1 Jesus, porém, sabendo perfeitamente, antes da festa da Páscoa, que chega- ra sua hora de mudar de residência, saindo deste mundo para viver face à face

com o Pai, havendo amado os seus que estavam no 2 Amor «in extremis» mundo, os amou até ao extremo. I Ora, enquanto o

e sob provocação

jantar estava sendo servido, havendo o Diabo já me- tido seguramente no •coração de Judas Iscariotes, fi-

3 lho de Simão, a idéia de traí-lo, I ele (Jesus), sabendo perfeitamente que o Pai lhe entregara nas mãos tôdas as coisas e que ele na sua partida saira de

4 Deus e para Deus ia voltar, I levantou-se do jan- « N o b 1 e s s e tar e se despiu de suas vestes exteriores, e, tomando

5 O b 1 i g e » uma toalha, se cingiu. 1 Então pôs água na bacia que estava à mão e começou à lavar os pés dos

6 discípulos e a enxugá-los com a toalha com que se havia cingido. 1 Veio, pois, face à face ante Simão Pedro. Ele lhe observou: "Senhor! Tu me lavas

7 os pés?!" 1 Jesus lhe deu a seguinte resposta: "O que eu estou fazendo, tu não entendes agora, mas entenderás no futuro."

8 A Purificação To- I Pedro lhe tornou: "Nunca jamais, nem agora nem tal e as Lavagens na eternidade, me lavarás os pés?" Jesus lhe repli-

Parciais cou: "Se eu não te lavar de vez, não tens parte co-

9 migo." 1 Simão Pedro lhe tornou: "Senhor, não só

10 os pés, mas também as mãos e a cabeça!" 1 Jesus lhe declarou: "Aquele que tem sido totalmente banhado não tem necessidade de se lavar senão parcial-mente — os pés; mas em sentido geral está limpo. E vós estais limpos; to-

11 davia, enfàticamente, não todos vós!" 1 Pois ele sabia qual era o traidor. Por isso declarou: "Ennticamente, não estais todos vós

12 Os Servos dos Ser- limpos." 1 Quando, pois, lavou-lhes os pés e to-

VOS de Deus em mou suas vestes e reclinou-se à mesa outra vez, Mútuo e Prático ele lhes declarou: "Sabeis o que vos tenho feito?

13 Respeito I Vós me chamais : 'O Mestre' e 'O Senhor', e fa-

14 tais acertadamente, pois eu o sou. 1 Portanto, se eu, o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés, também vós deveis lavar os pés uns

15 aos outros; I pois um exemplo vos dei para que assim como eu vos fiz,

16 vós também continueis a fazer! 1 Mui solenemente vos declaro que o es- cravo não é maior do que seu senhor, nem o comissionado é maior do que

17 aquele que o enviou. I Se sabeis esses deveres, A Eleição, a Pro- bem-aventurados sois se os puserdes em prática C011-

18 feeia e a Traição tinuamente. 1 Não me refiro a todos vós. Eu sei perfeitamente quais eu escolhi; mas, para que a Es-

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tritura seja de vez posta em efeito: "Aquele que come meu pão levantou so- 19 berbamente contra mim o calcanhar..." I desde já estou vos informando, 20 antes que aconteça, para que, quando o fato se der, creiais que Eu Sou. 1 Bem

solenemente vos declaro: Se eu enviar alguém, quem o recebe está me re-cebendo a mim, e quem me recebe, está recebendo aquêle que me enviou."

21 I Ao dizer essas palavras, Jesus comoveu-se em seu

A Fiel Testemu- espirito, testificou e asseverou : "Mui solenemente 22 nha Testifica uma vos declaro que um de vós me trairá." I Os discí-

Verdade Dura e pulos olhavam uns pata os outros, perplexos aeer- 23 Pungente ca de quem êle falava. I Um dos seus discípulos,

ao qual êle amava, estava reclinado sôbre o peito 24 de Jesus. 1 A esse, pois, Simão Pedro faz sinal e lhe diz: "Pergunta quem é, 25 a respeito de quem êle está falando." 1 Esse homem encostou-se ao peito 26 de Jesus e lhe disse: "Senhor, quem é?" I Então Jesus lhe respondeu: "E'

aquêle para quem eu vou mergulhar e dar o pedaço de pão." Tendo, pois, mergulhado o pedaço de pão, êle o toma e o dá

27 «Quem fizer in- a Judas Iscariotes. 1 E, depois do pedaço de pão,

justiça faça-a ain- aí mesmo Satanás entra nêle. Jesus, pois, lhe diz:

da» e já. "o que estás para fazer, faze-o já mais depressa."

1 Mas nenhum dos convivas aí reclinados à mesa 29 entendeu com que intúito ele lhe falou; I porque alguns pensavam, em

vista do fato de que Judas levava a balsa, que Jesus

O Coice que deu O lhe estava dizendo: "Compra já as coisas de que te-

Calcanhar Ingrato mos necessidade para a semana festiva." Ou que êle 30 desse algo aos pobres. 1 Ele, pois, tomou o peda-

ço de pão e imediatamente saiu: e era noite.

Capítulos 13-17. O prof . W . O . Carver nos exorta a tomarmos em consideração êste importante trecho como um TODO. Ele afirma que Jesus tinha planejado, com especial sabedoria, ter essas horas longas com os discípulos, sem interrupção. Êle lastima que os crentes quase sempre começam o uso dêste trecho com a cap. XIV, omitindo o cap. XIII e desprezando qualquer conexão entre êle e o cap . XIV. Êle analisa êsses cinco capítulos em tôrno do seu tema principal, que não é o de «confor-to» — e êle lastima que temos dado o nome «o Confortador» ao Espí-rito Santo — mas sim o de preparo dos seus apóstolos para ser os edi-ficadores do seu reino, para tomar suas idéias, seu alvo, seu plano, sua morte, sua ressurreição — tomar sua própria pessoa — ao mundo e por em movimento a energia dessa força para regenerar a raça huma-na, criando uma nova raça. O prof. Carver pensa (1) que o discurso foi feito, em parte, na hora da páscoa (cap. XIII), outra parte depois da saída de Judas, na ocasião da Ceia do Senhor, a qual é omitida no

( 1) "The Self-Interpretation of Jesus", cap. IX.

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Evangelho de João mas ouvimos os discursos que a acompanham, no capítulo XIV. Saem, depois disso, precisamente onde João nos informa que sairam (14:31) . Assim Jesus evitou que Judas prendesse todos ali no cenáculo, ao qual provàvelmente voltou com forças armadas, primeiramente, levando-as depois ao jardim de Getsêmane. Carver pensa que a oração do cap. XVII foi dita em Getsêmane, à meia noite, logo antes da chegada dos soldados e Judas. A linguagem de 18:1, 2, porém me parece impossibilitar essa teoria do Dr. Carver. Contudo a harmonia dos quatro Evangelhos necessita que nem sempre tomemos as palavras como tendo imediata referência, senão ao trecho anterior em geral. Pode ser assim aqui. Penso, todavia, que a «oração pontifical» foi oferecida em algum canto isolado, em caminho para Getsêmane. David Smith in-dica o próprio templo como a cena dessa magna intercessão, no caminho para a horta.

1. «A. festa da Páscoa». Vêde as notas sôbre 2:23; 6:4; 12:1; 11:55; 19:14, 31, 32. Um dos pontos principais em que a descrença fo-caliza seus ataques contra as Escrituras é o que se refere à harmonia do Quarto Evangelho com os Sinóticos, no tocante ao dia da crucificação do Salvador. David Smith não era conservador na sua atitude para com a inspiração da Bíblia. Contudo, procurando interpretar os quatro Evan-gelhos simplesmente como documentos humanos, êle chegou à conclu-são de que João e os Sinóticos concordam perfeitamente em que Jesus comeu a Páscoa judaica regular na quinta-feira de nossa semana e foi crucificado no dia seguinte. Ele dedica seis páginas em tipo pequeno, com muitas notas e abreviaturas à referida discussão. Darei, em re-sumo, algumas das principais razões por que êle acha que os quatro Evangelhos são coerentes e harmoniosos no seu testemunho sôbre a se-mana da paixão redentora de Jesus Cristo.

1. O próprio nome do dia que nós chamamos «sexta-feira» era chamado «preparação», entre os judeus. A «preparação» tinha sem-pre em mira o sábado. Na Grécia até o dia de hoje chamam o dia de sexta-feira paraskeue, «preparação». Isto é claro nos Sinóticos: Mat. 27:62; Mar. 15:42 (onde o evangelista explica que «Parasceve é véspera do sábado) ; Luc. 23:54 («Era o dia da Parasceve e ia começar o sába-do»). Temos três testemunhas, pois, de que Parasceve (paraskeue) é o nome do dia de sexta-feira. Tanto nas versões de várias línguas como no grego do texto de Nestlé, a palavra principia com letra maiúscula. Agora em João vemos o têrmo três vêzes: 19:14, 31, 42. Nestlé ainda emprega letra maiúscula na palavra. Mas numa das três vezes a frase é: «A Parasceve da páscoa», v. 14. Não há dificuldade nenhuma na linguagem. E' exatamente como nós dizemos: «sexta-feira da Semana Santa» ou a «sexta-feira da Paixão». Nem por ser de uma semana no-tável e festiva passará o dia a ser um dia diferente da semana. Mas os inimigos da coerência dos Evangelhos, e alguns conservadores que lhes

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seguem as pisadas, desassociam esta única passagem (João 19:14) das cinco outras passagens de Mateus, Marcos, Lucas e João, que dão tes-temunho uníssono, e põem essa passagem única em contradição com cin-co passagens paralelas decisivas. Dão ao vocábulo Preparação (6a-feira) seu sentido etimológico. Isso é uma das maiores faltas possíveis na in-terpretação da Bíblia — fugir do sentido aceito e evidente de uma pala-vra para seu sentido etimológico. E' a ofensa número um contra o sen-tido real da Palavra de Deus. A ofensa número dois aqui é tomar a pala-vra Páscoa como nome tão ~ente da ceia pascoal. Ligam os dois erros e declaram que Jesus foi crucificado na quinta-feira (segundo João), o dia antes da ceia pascoal, que cairia assim na sexta-feira que os Sinó-ticos declaram categoricamente ser o dia da crucifixão. Assim abrem uma brecha formidável, uma divergência insanável, entre as testemu-nhas da morte de Cristo; e a veracidade do evangelho periga, diante dessa suposta contradição de suas testemunhas.

Mas é absolutamente insensato e impossível afirmar que «Páscoa,: significa a Ceia pascoal e somente a Ceia pascoal. E' o nome da semana festiva tôda. Parasceve é nome de sexta-feira, a «véspera do sábado». Pois bem. A «Parasceve» da Páscoa seria a sexta-feira da semana pas-coal. Nem vislumbre de dificuldade há no caso. A linguagem é absoluta-mente coerente, sensata, leal e histórica, em perfeito acôrdo com todas as quatro testemunhas e com o sentido demonstrado do vocabulário.

Certos conservadores mal orientados, muito escravizados ao lite-ralismo numa passagem predileta, mas cegos à passagens paralelas que deviam igualmente tomar em consideração, piscaram os olhos à propa-ganda modernista que põe João em contradição aos Sinóticos. Esses conservadores querem que Jesus ficasse exatamente 72 horas no túmu-lo, a fim de justificar uma interpretação ao pé da letra, da frase «três dias e três noites)), em Mat. 12:40. Ora, é impossível supor inteligente-mente, que Jesus ficou 72 horas no túmulo. Digamos que foi sepultado às 5 horas da tarde de quinta-feira. Teria de ressuscitar domingo de tarde. Logo, é preciso recuar, como outros fazem, para quarta-feira como o dia da crucifixão. Então Jesus se levantaria sábado, antes do pôr do sol e perdemos o domingo como o dia comemorativo da ressur-reição e os Evangelhos ficam em confusão e anarquia mental.

Além disso, «três dias e três noites» completas não condizem com o resto do testemunho — «ao terceiro dia», «depois de três dias». Se essa frase, por exemplo, fôsse igualmente torcida para significar 72 horas, então «depois de três dias» cairia «ao quarto dia», não «ao ter-ceiro». Se seguimos a liberdade e elasticidade dos cálculos de tempo entre os judeus, então sabemos que quaisquer frações de três dias dife-rentes incluem no cálculo êsses três dias; assim «três dias e três noites» seriam uma das inúmeras hipérboles usadas por Jesus. Mas quando um

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intérprete conservador quer edificar sôbre uma só Escritura uma exposi-ção tendenciosa, êle às vezes torna-se o mais obstinado cúmplice dos ini-migos da inspiração da Bíblia.

Aliás, é comum em nosso comércio considerar como três dias com-pletos, para os cálculos comerciais, qualquer fração de três dias. Meu trabalho é itinerante. Chegando a um hotel sábado de noite e saindo segunda-feira, pago três dias, em alguns hotéis. O aluguel de muitas casas é cobrado à razão de um mês inteiro por qualquer fração de mês. E já vi colégios cobrarem mensalidades de um trimestre por poucos dias de escola primária, nos meses de dezembro e janeiro, e o mês inteiro de fevereiro, nos tempos da «primeira República». Muitos podem compre-ender que «três dias» não são 72 horas, se é do seu interêsse comercial.

2. Se a palavra Páscoa se refere à semana festiva inteira, então o mêdo dos judeus da contaminação cerimonial é perfeitamente com-preensível, ainda que já tivessem, como Jesus e os Doze (ou os Onze), comido a Ceia pascoal no dia anterior. Era a suprema festa, contudo, a Ceia pascoal era apenas o prelúdio. Quem se contaminasse no dia de-pois dessa Ceia inicial, perderia uma parte de feliz camaradagem e cele-bração, com seu povo, da grande redenção nacional. Não há incoerência nenhuma, pois, no fato dos judeus temerem a contaminação cerimonial com receio de não «poderem comer a Páscoa». Haviam de comê-la ainda pelo prazo daquela «semana santa» que ainda restava. Eis a lei no caso: «Sete dias se comerão pães asmos», Êx. 13:7. «Guardarás a festa dos pães asmos: sete dias comerás pães asmos, como te ordenei», Êx. 23: 15. Josué nos diz: ««Celebraram a Páscoa aos quatorze dias do mês, à tarde, na Araba de Jericó. No outro dia comeram do produto da terra pães asmos e espigas tostadas. Cessou o maná do dia seguiinte», Jos. 5:10, 11. Jesus também comeu a Páscoa com seus discípulos na noite do dia 14 do mês Nisan, que para os judeus era o começo do dia 15, e foi crucificado no dia 15, sexta-feira. Crer outra coisa é anarquizar todo o testemunho dos quatro Evangelhos sôbre o assun-to mais importante da história. David Smith mostra que, no segun-do dia de pães asmos, havia até um segundo banquete festivo em que se comia uma rês. A Lei da Semana Pascoal mandava «sacrificar ovelhas e bois», Deut. 16:2. A ceia do segundo dia era composta de pães asmos com a carne de boi, e era chamada a Chagigah. E isso os judeus teriam de perder se ficassem contaminados cerimonialmente na sexta-feira em que Jesus foi crucificado. Smith responde a muitas ob-jeções detalhadas com perfeita coerência mas não vale a pena entrar em tantas considerações minuciosas aqui.

«Antes da festa da Páscoa». Não é um título para todo o trecho que segue. A gramática grega manda ligar uma frase preposicional com o verbo próximo. Deve ser tomada, portanto, com conhecendo —Jesus conhecendo antes da festa da Páscoa que sua hora havia chegado.

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Não é admissível se entender que Jesus omitiu a Páscoa ou a celebrou com um dia de antecedência antes do tempo regular. «Por bôca de duas ou três testemunhas tôda a questão fique decidida.» Temos três teste-munhas que afirmam categóricamente ter Jesus comido a Páscoa e to-dos citam as próprias palavras de Jesus nesse sentido. Essas testemu-nhas são Mateus, Marcos e Lucas.

E' uma questão de simples justiça investigar se há uma interpre-tação razoável da linguagem de João que não seja uma negação da vera-cidade dos Sinóticos e não nos obrigue a considerar a veracidade destes como uma impugnação da veracidade do testemunho do discípulo ama-do. Essa harmonia entre os quatro evangelistas é fácil. E' gramatical tomar a frase inicial deste capítulo com seu verbo, e não com tudo o que é narrado nos parágrafos seguintes. A outra linguagem que, to-rnada a sós, poderia servir de obstáculo à harmonia dos Evangelhos é a declaração de 18:28 — «Eles não entraram no Pretório para não se con-taminarem mas para poderem comer a Páscoa.» Se a Páscoa fôsse so-mente a ceia em que se come o cordeiro pascoal, na iniciação da semana de festividades pascoais, então claramente teríamos de concluir que quando Jesus foi processado perante Pilatos o início da Páscoa ainda era futuro, havendo a festa de começar na noite em que Jesus ja estaria no túmulo. Essa teoria, porém, vai a pique quando sabemos que a Pás-coa era o período total de uma semana comemorativa. A semana inteira era «dos pães asmos». Mateus fala do «primeiro dia dos pães asmos», (26:17). Nossa quinta-feira, cuja noite era o começo do dia 15 do mês judaico de Nisan, seria a ocasião da celebração inicial da Páscoa que Jesus realizou com seus discípulos quando os demais judeus cumpriram o mesmo dever. A Páscoa e a crucifixão cairiam no mesmo dia do ca-lendário judaico, a Páscoa na noite de quinta-feira, a crucifixão nas ho-i as de luz depois da referida noite, em nossa sexta-feira.

Mas o regime de pães asmos duraria mais seis dias. E se os judeus se contaminassem ceremonialmente, não poderiam continuar a celebra-ção. Seria interrompida a sua parte na celebração. Marcos diz: «Dois dias depois era a Páscoa e os pães asmos», 14:1. E, no mesmo capítula 12, lemos: «No primeiro dia de pães asmos quando sacrificavam a Pás-coa» — a Páscoa aí significava o cordeiro, mas os pães asmos são do período pascoal da semana inteira. Lucas diz que tôda a festa era «cha mada Páscoa», 22:1, e que «se imolava a Páscoa» no «dia de pães asmos» dedicado a essa imolação da vítima. Tiago foi morto e Pedro foi prêso nos «dias de pães asmos», Atos 12:3. Herodes matou e aprisionou du-rante a Páscoa e tencionava exibir Pedro ao povo «depois da Páscoa» —evidentemente depois de terminar a semana tôda. Paulo navegou «de-pois dos dias de pães asmos», At. 20:6. E Paulo usa duas figuras tira-das da Páscoa a respeito da vida cristã. (A) «Cristo, que é nossa Pás-coa, foi imolado.» O Calvário é o dia da imolação do Cordeiro de Deus,

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na figura. «Por isso celebremos (no ano 54 ou 55, em Corinto, 26 anos depois do Calvário) a festa, não com o velho fermento... mas, com os asmos da sinceridade», I Cor. 5:7-8. Na linguagem metafórica, o Calvá-i io é a imolação da Vítima, e tôda a era cristã é o período de «pães as-mos» em que devemos evitar o fermento da hipocrisia, do racionalismo, cio mundanismo. Claro é que Paulo pensava na Páscoa como uma época, e assim pôde compará-la a tôda a época da vida cristã. E é claro que se comiam os pães asmos — comia-se a Páscoa — durante todos os sete dias, não apenas na ceia especial do cordeiro e das hervas amargas. Os judeus, pois, evitaram a contaminação cerimonial no Pretório romano, a fim de não interromperem sua celebração diária da Páscoa. Se fôs-sem contaminados pela turba que os havia de acotovelar no pequeno tri-bunal de Pilatos, não poderiam continuar a comer os pães asmos. Teriam perdido seis dias da Páscoa. Ora, quando esse sentido da palavra Páscoa é evidentíssimo, para que adotar uma atitude hostil e arbitrária como cie quem esteja determinado a provar que a Bíblia é mentira, custe o que custar? O sentido evidente do uso duplo da palavra Páscoa põe Ma-teus, Marcos, Lucas e João em harmonia também evidente. Vêde a dis-cussão do assunto na «Harmonia dos Evangelhos», de Watson e Allen. Somente a determinação racionalista ou modernista de arregimentar os Sinóticos contra João, ou vice-versa, é que criou essa antipatia imagi-nária onde existe perfeita harmonia. Os Sinóticos narram a Páscoa e sua observância por Jesus — João nos narra isso. João sôzinho narra o contato de Pilatos, Jesus e «os judeus» fora do Pretório — os Sinóti-cos narram as brutalidades da soldadesca «no pátio» do mesmo edifício. João acrescenta a entrevista em frente do mesmo edifício no Pavimen-to — coisas não mencionadas pelos Sinóticos. O Evangelho de João é suplementar, como sempre, e não contraditório. Aliás, se João se pro-pusesse a desmentir os Sinóticos seria um esforço estranhável e mal fei-to. Se o autor fosse forjicador e hipócrita, sem dúvida, teria sido mais cuidadoso e não teria deixado seu Evangelho em franco conflito com os Evangelhos que já se achavam em circulação e uso geral. Não há con-flito. A única hipótese de conflito parte da limitação da festa da Pás-coa ao dia e ato inicial, que é falsa e insensata.

«Páscoa». Vêde a nota sôbre cronologia, na Introdução, Vol. I, ps. 39-43. E' a quarta Páscoa, e a final, do ministério de Jesus, o ano 29.

«Sua hora veio em que êle mudasse de residência, passando dêste mundo a morar face à face com o Pai.» Quão rica é a sugestão nas pa-lavras gregas que aqui traduzo. Gente de um só mundo, declara Paulo, «são dê todos os homens os mais dignos de lástima». Jesus vive na eter-nidade; assim viver envolve viver cônscio de dois mundos pois esta vida é fugaz. A morte é mudança de residência mas o residente é o mesmo. Jesus já fêz a mudança uma vez; agora volta para casa. Semelhante

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certeza enobrece os valores da vida e da personalidade humana e diminui e alivia a aparente futilidade efêmera da dignidade pessoal. Deus pôs no coração do homem a eternidade, e a vida só é vivida dignamente quando é vida eterna, vida de uma só peça e qualidade para os dois mun-dos sem solução de continuidade.

«Amou ao máximo, ou supremamente ou até o fim.» Bernard assim interpreta — 'amou-os absolutamente', ao ponto de lavar-lhes os pés na ocasião de sua maior fealdade coletiva, de seu maior mundanismo, ce-gueira e ingratidão. Demonstrou ao máximo seu amor.» (2) «Viemos conhecer o amor nisto, porque aquêle deixou (sôbre o altar em sacrifí-cio) sua alma em nosso lugar», I João 3:16. Traduziria assim porque o verbo e a preposição gregos são da linguagem costumeira de sacrifício. João é o melhor comentador de suas próprias palavras. Jesus é nosso substituto e sacrifício e preço de resgate perante Deus. Nisto há real e máximo amor.

«Amou-os até o fim.» Diz-se de um famoso ministro inglês que êle ouviu um dia um de seus filhos corrigir outro com estas palavras: «Você tem de ser bom. Senão, papai não vai amá-lo.» Incontinenti tomou am-bos em seus braços e disse ao que assim falara; «O que você acaba de falar não é verdade. Não tem uma sílaba de verdade.» A criança bal-buciou: «Mas o senhor não deixará de nos amar se formos maus?!» Veio então a tenra resposta: «Não, eu amo meus filhos quando são bons, com amor que me dá prazer, e quando são maus amo-os igualmente, com um amor que me dói; porém, não posso deixar de amar vocês, porque sou seu pai.» O amor divino não é instável. Não é termômetro que suba e desça com o calor de nossas obras.

2. «Durante o jantar». E' o banquete da Páscoa que comiam. Bernard (3) assim analisa a ordem dos eventos historiados nos quatro Evangelhos nesta última refeição de Jesus com os Doze: (1) A ceia da Páscoa começa. (2) a disputa sôbre qual seria maior, Luc. 22:24. (3) Jesus lhes lava os pés, João 13:4-10, 15-66; Luc. 22:26, 27. (4) O trai-dor anunciado, João 13:10, 11, 18, 21; Mar. 14:18; Mat. 26:21; Luc. 22:21. (5) Os discípulos perguntam qual é o traidor, João 13:22, 23. (6) Jesus diz a João, João 13:25, 26; Mar. 14:20; Mat. 26:22. (7) Dá o pedaço de pão molhado a Judas, João 13:26; Mat. 26:25. (8) Judas parte, João 13:30. (9) A instituição da Ceia do Senhor, Mar. 14:22; Mat. 26:26; Luc. 22:19. (10) Jesus prediz a paixão logo, Mar. 14:25; Mat. 26:29; Luc. 22:18. (11) Previne a Pedro, João 13:36; Mar. 14: 29 ; Mat . 26 :33 ; Luc . 22 :31.

Segundo êsse plano dos eventos, notai: (a). Que Judas não estava presente à Ceia do Senhor. Parece-me que é fato, contudo, não é ponto

(2) "The International Criticai Commentary", Vol. II sabre este Evangelho, p. 455. (3) "The International Critical Commentary", in loco.

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essencial ou de valor algum doutrinário. Se tomou a Ceia, não foi o último hipócrita que a tomou. (b) A «ceia» de 13:2 é a Páscoa. João não mencio-na a Ceia do Senhor nenhuma vez em história, doutrina ou símbolo, nem aqui, nem no cap. VI, nem em canto nenhum. Este é o Evangelho da sal-vação, por excelência, e nunca fala nenhuma vez da igreja ou da Ceia. (c) Segundo esse esquema as palavras, «não beberei do fruto da videira até que venha o reino de Deus», foram proferidas antes da Ceia, em referên-cia ao cálice da Páscoa. Lucas assim as coloca, mencionando o cálice da Páscoa, v. 17; essas palavras, v. 18; depois o pão da Ceia, v. 19; e, final-mente, o cálice da Ceia, v. 20. Lucas dá também a respeito da Páscoa a linguagem paralela relativa ao comer: «Nunca mais a hei de comer até que ela se cumpra no reino de Deus.» São da mesma peça, referem-se am-bas as declarações à Páscoa. Marcos e Mateus não historiam os dois cálices, da Páscoa e da Ceia, e, portanto, nas suas narrativas encurtadas, tais pa-lavras são citadas depois da Ceia do Senhor. Mas Lucas é mais extenso e as localiza antes. Os sentimentalistas, pois, que falam de como todos cs salvos vão comer a Ceia do Senhor juntos no céu, estão dizendo insensa-tez . A Ceia não se efetua no céu, como o batismo também ali não se rea-liza. Paulo põe um limite bem claro à Ceia: «Até que venha». Não há Ceia no céu. (d) . O estudante verá pelas notas que alguns colocam a lavagem dos pés no meio ou quase no fim da Ceia, e acham que rompeu no meio da reunião uma disputa sôbre qual seria o maior e que Jesus então levantou-se e lavou-lhes os pés como lição de humildade. Vêde o comentário adiante. E não se assuste o neófito com a dificuldade de se ter certeza da ordem dos eventos. Cada escritor tem uma ordem mais ou menos topical, e en-quanto está falando de um assunto conclui o que tem a contar, e então aborda outro assunto. Uma narrativa absolutamente cronológica é insul-sa, quase ininteligível, de fato. E nenhuma verdade ou fato é obscu-recido pela naturalidade das quatro testemunhas, a qual grandemen-te lhes aumenta o valor do testemunho.

«O Diabo havia já pôsto no coração». Quando isso começou não sabemos. A decisão se firmou na festa em Betárnia, na casa de Si-mão, o Leproso, provocada pela repreensão de Judas, e dos Doze por causa de Judas, concernente à crítica da generosidade de Maria, irmã de Lázaro. O Diabo-mor junta-se agora ao homem-diabo e se entro-niza em seu coração. «Com o coração se crê para justiça.» E com «o coração» se trai a Jesus. Nossa tradução, «havendo já metido segu-ramente», dá o sentido do tempo perfeito do verbo. «Judas». Vede a discussão das relações entre Judas e o Diabo, no comentário sôbre 6:64, 70, 71.

3. «O Pai tudo pusera nas suas mãos.» Alguém pensa que a menção de todo o poder é para salientar a humildade de Jesus em la-var os pés dos discípulos.

«Entregara» ou «pusera» é nosso verbo dar. Deus eternamente

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deu ao Filho a paixão do Calvário, seus resultados todos e a soberania para conseguí-los. Deu e ainda era de perene validez a dádiva. Vêde 3 :27 .

4. «Levanta-se». «Em certa altura da última Ceia, nosso Se-nhor um tanto abruptamente se levantou e tomou uma bacia e se ajoelhou diante de cada um de seus hóspedes — para lhes lavar os pés. Porque fêz assim não podemos dizer. E' possível que já houvesse che-gado para êle, e para os discípulos também, o momento em que me-ras palavras não seriam mais adequadas, êsse momento em que uma dor pungente demais, cortante demais, não permite que ainda se fale. Há tempos assim — quando as palavras falham. E' bom que em tais tempos tenhamos a capacidade de nos levantar e nos ativar com as mãos.» (4) Não era a Ceia do Senhor, mas a Páscoa, como se provou em cima.

4, 5. «Levantou-se... pôs água na bacia... começou a lavar os pés dos discípulos.» «Ora, por que nos admiramos de que se levantou da ceia e despiu suas vestes aquêle que existindo na forma de Deus se fêz de nenhuma reputação? Por que nos admiramos de que derramou água numa bacia para lavar os pés dos seus discípulos aquêle que derra-mou seu sangue na terra para lhes lavar da imundícia de seus peca-dos?... Para cingir-se da toalha se despira das vestes que usava; mas quando esvasiou-se de si mesmo (da sua divina glória) para assumir a forma de um servo, êle não largou o que tinha ; mas assumiu o que ante-riormente não tinha... Pois tão grande é o benefício da humildade hu-mana que até a Divina Majestade se agradou em manifestá-la pelo seu próprio exemplo; pois o homem soberbo teria perecido eternamente se êle não fôsse encontrado pelo humilde Deus.» (5) Evidentemente «a ba-cia» fôra provida, na casa de Maria Marcos, para a limpeza dos pés dos treze hóspedes.

6. «Face à face ante Simão Pedro.» E' tradução possível, mas não necessária. Emprego-a quando o contexto me parece salientar a idéia. Até chegar a Pedro, reinava silêncio e, podemos crer, vergonha. Mas Pedro fala sempre, até na hora da Transfiguração, embora não saiba o que está dizendo, como ali no monte e aqui no cenáculo. A memória dessa cena está bem viva quando Pedro escreve sua Primeira Epístola (5:5) . Bernard supõe que, ao dizer as palavras da sua pergunta-excla-mação, Pedro retirou os pés fora do alcance de Jesus e a bacia. Mas as palavras incisivas de Jesus o obrigam a uma submissão instantânea, to-tal e igualmente dramática, oferecendo mãos e cabeça também.

7. «Tu não sabes agora aquilo que eu estou fazendo.» O grande expositor escocês, o Dr. J. H. Jowett, mostra que Jesus seguia uma

(4) "The Friend on the Road'', p. 175, por J. H. Jowett. (5) Comentário de Agostinho sôbre êste Evangelho, II, 195, Versão Inglesa de J. Gibbs.

C. E. J. — 28

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sábia pedagogia nessas palavras. O verdadeiro educador, quer no lar, quer na escola, ensina palavras, verdades, fórmulas, fatos, doutrina cujo valor o educando só pode saber na experiência e madureza, nas du-ras lidas da vida. A geração entre as duas Guerras Mundiais repudiara êsse princípio pedagógico de Jesus. Diziam que o educando havia de «expressar-se», mostrar o que havia de inato e natural nêle, tomar seu caminho desconhecido sem ser guiado pela geração experimentada que o deu à luz. Resultou disso um mundo de países sem responsabilidade e de filhos sem rumo. Em conseqüência caiu a prêsa mais fàcilmente nas mãos dos exploradores e foi a geração mais fàcilmente escravizada em tôda a história humana. E precisamente sua mocidade mais culta era a mais vacilante, sem rumo, sem norte, sem mapa, sem bússola. As fa-mílias ainda cristãs, as camadas da população ainda não dominadas pe-los arregimentadores da juventude, são as que estão salvando os valo-res perpétuos da raça, o patrimônio das nações.

«Eis o processo que seguimos ao treinar nossos filhos. Têm de re-ceber muitas coisas cujos segredos interiores lhes ficam por ora veda-dos. Muitas de suas lições são pouco mais que palavras, e seus tesouros não se avaliarão senão depois de muitos anos. Nossas crianças podem suportar a lição elementar, mas não poderiam receber a explanação mais profunda. O mestre não pode abrir a fechadura das palavras para seus alunos — isso será para os anos da madureza, no porvir. E' o processo com que a vida nos enriquece com as suas revelações.» (6) Ele mostra o valor do catecismo, demonstrado por séculos e não desmentido pelo fracasso desta nossa geração sem cultura doutrinária, entre as duas Guerras Mundiais. Eu diria que demonstra ainda mais o valor de deco-rar na infância, quando é fácil, grandes trechos da Palavra de Deus que, sendo um depósito eterno na memória e na consciência, há de orientar benèficamente os filhos pela vida inteira neste mundo e na eternidade além

«Entendê-lo-ás mais tarde.» «A interpretação vem depois. As pa-lavras incidentais de Jesus hoje constituirão amanhã grande descober-ta da Igreja.» CO O mesmo comentário diz: «O incidente no cenáculo parecia de somenos importância, mas estava repleto de significação so-cial. Aquêle dia êle estava apenas lavando os pés de uns poucos discípu-los. Mas o tempo demonstra que êle estava assim libertando escravos, edificando hospitais, fundando emprêsas caridosas, inaugurando as ciên-das sociais, e educando a consciência social da humanidade.» (7 )

8. «Se eu não te lavar (com essas lavagens parciais) não tens par-te comigo.» A purificação perene é marca da salvação que Cristo nos deu da mesma maneira .que a purificação eterna e de vez. O Calva-

(6) "The Friend on the Road", p. 175, por J. H. Jowett. (7) "The Speaker's nible", Vol. 11 sôbre este Evangelho, ps., 55 e 56.

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rio tem valor e poder para purificar de vez — o banho total — e tem poder para as subseqüentes purificações parciais — da poeira da pe-regrinação. Ora o plano da salvação, o regime da graça, a Nova Alian-ça, exige tanto aquela purificação total como essas parciais. Se Cris-to não está constantemente nos ministrando sua purificação, passo a passo, não somos de sua grei não temos parte na sua salvação, não somos da Nova Aliança. Os banhos parciais são parte da experiên-cia da graça tão realmente como a purificação inicial e total, feita uma vez para sempre, e todas elas são incluídas de vez no poder do Cal-vário e vistas englobadamente no tempo aoristo deste verbo.

Isto prova que é absolutamente falsa a idéia perfeicionista, a teoria de que a santificação é perfeição moral, a ausência absoluta do pecado na vida do homem santificado. Cristo ensinou os próprios apóstolos a orar: «Perdoa-nos os nossos pecados.» E' a poeira da estrada em nossa peregrinação. Cristo cuida de remover isso, como cuidou de nos salvar. E' a fase da santificação progressiva que vem depois da justificação ins-tantânea, eterna, de vez, pela fé. Se Pedro, ou qualquer outro, não ti-vesse parte em nenhuma lavagem parcial de impureza, êle seria <thastar-c:o, e não filho», Heb. 12:8.

9. «Também as mãos e a cabeça». O verbo, porém, na mente de Pedro ainda era lavar parcialmente. Mas o Senhor mudou de verbo. Houve, no caso de Pedro, um ato de banho total, feito no passado mas de efeito duradouro agora. Foi o banho de regeneração. Assim sendo, só a recente e parcial purificação, incidental na peregrinação, era neces-sária ou permissível. Permanece o banho total. E' uma ilustração rude e plebéia, mas serviu para altos fins. Proclama a doutrina da salvação objetiva, de vez, e a vida eterna. E mostra que o mesmo Salvador eterno cuida da pureza diária da vida, como outro efeito do Calvário.

10. «Aquele que se lavou inteiramente (permanece em estado pu-rificado e) não tem necessidade (após a ligeira viagem para a casa da festa) senão de lavar-se parcialmente — os pés — pelo contrário ele todo está puro (continuamente).» O primeiro parêntese é expresso, no grego original, pelo tempo perfeito do verbo, indicando ação que se rea-lizou em tempo passado e cujos efeitos perduram na atualidade. São dois os verbos lavar — lavar inteiramente e lavar parcialmente, em uma parte ou membro do corpo. Assim traduzimos. Não temos advérbio —totalmente puro — mas sim adjetivo — êle todo, ele na sua inteira per-sonalidade, está puro.. A linguagem está - de acôrdo com os fatos exte-riores, físicos. Eles teriam tomado banho total antes de partir para o lugar da .celebração da Páscoa, .SOmente precisariam de lavar. os pés da poeira'da viagem. Estes são os fatos. Agora sua interpretação. 0, após-tolo.-é seu ,melhor intérprete e desenvolve melhor na Primeira Apiatola•o que aqui êle resume em ligeira . frase,:metafórica • pA Isvaggm totall per- feita, permanente do mitte.-é, vista em I João 1 2).1.-2; &fiel e

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justo para nos perdoar (de vez) os pecados e para nos purificar (de vez) de tôda a injustiça.» «Se alguém pecar, temos para com o Pai um Pará-dito, Jesus Cristo, o justo: êle é a propiciação pelos nossos pecados..." Eis a purificação total. No v. 7 vemos a provisão de Jesus pela pu-rificação contínua dos pecados subseqüentes à sua propiciação de vez e de eterno valor. Êle é advogado que lembra em nossa defesa a eterna eficácia do Calvário. Lavou-nos de vez e totalmente — agora lava-nos os pés em qualquer etapa de nossa peregrinação.

Temos de reconhecer nossas imperfeições, pois se as negássemos seríamos mentirosos e enganadores, v. 8. Mas se as confessamos, elas não nos perdem, pois «êle é fiel e justo para perdoar os pecados e para nos purificar de tôda injustiça.» Notai: «fiel e justo». Não diz: Êle é misericordioso e compassivo para perdoar, mas «êle é fiel e justo.» A propiciação, o Calvário, é a purificação total, jurídica, de vez, eterna, a base indestrutível de perpétuo perdão. Pois bem, Jesus tendo estabele-cido esta base eterna e imutável de perdoar o pecado, e tendo dado urra posição perpétua da alma purificada perante Deus, é apenas justo quando perdoa pecados individuais do homem salvo mas ainda imperfeito. E' como se um benfeitor comprometendo-se a pagar a vasta dívida de um falido, lhe outorgasse crédito e se fizesse sócio dêle, solidário com qual-quer déficit que pudesse aparecer e desenvolvendo sua capacidade e expe-riência. O Sócio e Advogado, tendo assumido a responsabilidade do pe-cador que estava em falência moral, quando ainda o perdoa de outros pe-cados, depois da salvação, é apenas «fiel e justo». Está apenas cumprin-do sua palavra no Calvário, o pacto eterno entre Pai e Filho, os têrrnos da propiciação. E' justiça, pois, quando Cristo perdoa ao crente. Está apenas cumprindo sua palavra de honra. E' fiel e justo para nos per-doar de nossos pecados e nos purificar de todo o pecado. O banho total é seguido pela lavagem dos pés. E ninguém pense que iremos pecando cada vez mais, nesta base da graça. Êle perdoa e purifica, juridicamente remove a culpa e cancela a pena, e intimamente regenera e santifica.

«Tu não somente perdoas, Purificas, também, ó Jesus.»

João nos dá, neste incidente, que é tanto histórico como é simbó-lico e figurado, o duplo poder do Calvário na vida cristã, purificação eterna juridicamente na justificação, com a contínua, constante e garan-tida purificação e o anterior perdão, de uma a uma, de nossas ofensas através da vida cristã, em progressiva santificação. Jesus recusou lavar a Pedro totalmente uma segunda vez. Isso se faz de vez, urna só vez, uma vez para sempre, na experiência da salvação. Então, na peregrina-ção até a «casa de muitas moradas», Jesus nos dá as parciais purifica-ções e o perdão que necessitamos continuamente. Andamos na lua do

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nosso «dia». E a poeira e contaminação da jornada do peregrino, seu Senhor as lava e purifica e perdoa. Assim prometeu. Assim pactuou. E' apenas fiel e justo, um Salvador que tem palavra, quando ele perdoa e purifica nossas faltas. Jesus tomou por base da sua lavagem dos pés dos Doze essa doutrina da graça de Deus. João a explicou plenamente na sua primeira Epístola.

«Senão te lavar os pés». «À luz de Deus, êle estava justificado, in-teiramente limpo... A lavagem dos pés simbolizou a remoção de tais manchas como a soberba deles que tornou necessário o ato amoroso de Jesus aí.» (8)

«O que se banhou não tem necessidade senão de lavar os pés.» «A clara exposição de Lucas explica mais amplamente a causa de se lhes lavar os pés à mesa (22:14). Surgiu uma contenda entre êles sôbre qual seria considerado o maior. Era um velho assunto de divergência entre êles... Jesus foi diretamente para a sede do mal que os perturbava. Todos tomaram banho antes de sair de seus aposentos para o salão da Páscoa. Em caminho, sómente os pés teriam ficado contaminados. À porta não apareceu criado para lavar-lhes a poeira dos pés quando des-calçaram as sandálias. Um e outro deles devia se ter oferecido para prestar êsse serviço. Talvez qualquer um teria boa vontade em fazer isso em prol do Mestre. Mas o momento estava demasiadamente im-pregnado de possibilidades. Ninguém queria se arriscar à perda da pri-mazia no reino, humilhando-se, ficando numa posição inferior em rela-ção aos seus pares... Lavar os pés de um condiscípulo poderia ser to-mado como confissão de inferioridade e dar como resultado uma posi-ção secundária quando Jesus distribuisse os ofícios no reino. Portanto todos foram à mesa não lavados.» (9) Será que Jesus, ao entrar, la-vou com a bacia seus próprios pés? Ou os Onze nem se lembraram de lhe prestar êsse serviço?

E' prova absoluta de que Pedro nãe■ gozava de nenhuma primazia, o fato de que todos disputavam essa posição. Se Jesus tivesse dito uma palavra sequer nesse sentido, Pedro, que não era homem tímido, teria citado a autoridade de Jesus em seu abono e obtido a confirmação do Mestre ali mesmo. Ou se o ensino da primazia de Pedro já era coisa de doutrina cristã desde a confissão em Cesaréia de Filipe (Mat . 16:18), então qualquer debate na presença de Jesus sôbre qual deles havia de exercer essa primazia seria uma impossibilidade psicológica, na pre-sença de Cristo. A discussão prova a falsidade do romanismo, como também a lição dada por Jesus repudia tôda a ambição clerical de posi-ção e mando sôbre os demais discípulos. Removamos essa caiação.

(8) "Messages o/ the Book of the Bible", in loco, por J. S. Riggs. (9) "The Self-lnterpretation of Jesus", p. 145, por W. O. Carver.

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«Enfaticamente não». Assim o grego original. Jesus vem dizen-do isso desde os eventos cuja narração temos em cap. VI.

11. «Não todos sois limpos.» Judas era sujo de coração. Faltou-lhe o banho original, fundamental; a obra de regeneração; o nascer de água e Espírito, de João 3:5; a lavagem de água pela Palavra, de Efé.s. 5:26; salvação pela lavagem de regeneração do Espírito Santo, Tit. 3:5; o efeito do Calvário em «nos remir de toda a iniqüidade e purificar para si um povo todo seu», Tit. 2:14. Ananias disse a Paulo, convertido, pu-rificado, salvo: «Levanta-te, recebe o batismo e lava os teus pecados», Atos 22:16. O batismo é a lavagem simbólica do pecado, o qual foi real e anteriormente lavado pelo sangue de Jesus. (O fato de que se usa o verbo do banho total nesse simbolismo, tanto aqui como em Heb. 10: 22. 23, é prova de que o batismo é imersão. Lavar a testa com água benta no batismo infantil pela afusão seria o outro verbo, nipto, nunca usado na linguagem simbólica batismal.) E' no batismo que o homem salvo se lava em santo símbolo. Judas teve essa lavagem exterior. Mas Judas não terá e nunca teve direito a tinir sua voz com aquêle coro dos redimidos que João ouviu cantar no céu. O anjo os identificou assim: «Lavaram as suas vestiduras e as embranqueceram no sangue do Cor-deiro.» E' o banho preparatório, total, para gozar do Cordeiro imolado, Cristo, nossa Páscoa. Judas estava sem êsse banho, essa purificação. Mas os coríntios, ainda que crentes bem imperfeitos e inexperientes, to-davia, tinham essa fundamental experiência salvadora: «mas fôstes la-vados; mas fôstes santificados, mas fôstes justificados no nome do Se-nhor Jesus e no Espírito de nosso Deus», I Cor. 6:11. A lavagem ba-tismal total é exterior, simbólica; proclama salvação anterior e interior, pela obra de Cristo na cruz e a do Espírito regenerador no crente. Se essa lavagem interior não existe, a lavagem exterior no batismo é men-tira. No caso de Paulo, êle simbólicamente lavou os pecados porque já os lavara intimamente, lá no caminho para Damasco, pela fé. No caso de Judas, Jesus disse: «Nem todos são puros.» A lavagem exterior do batismo não o incluiu entre «os limpos». Os tais «entram no batistério quais diabos enxutos e saem diabos molhados». E' a única diferença. Judas era fundamentalmente diferente dos Onze desde o princípio, como Jesus discernira sempre e, há muitos meses, tinha declarado, João 6: 63-71. Mais tarde, depois da saída de Judas, Jesus podia usar a mesma palavra de todos: «Vós já estais limpos pela palavra que vos tenho fala-do», 15:3. E' «o nascer de água e do Espírito, a lavagem com água pela Palavra», a regeneração eterna, operada pelo Espírito mediante a fé, an-tes do batismo e sem o batismo.

Bem declarou o Salvador: «O que eu faço, tu não sabes agora, mas entendê-lo-ás mais tarde», v. 7. Deveras as Epístolas estão cheias da doutrina, aqui vista por um instante, em lindo simbolismo. A interpre-tação veio depois, mas veio na sua plenitude. Ninguém tem razão de des-

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eulpar-se pelo uso do sacramentalismo. Água material não dá banho espiritual, não purifica a alma.

Se Jesus contasse com uma interpretação posterior para esclarecer essa palavra «limpos» ou «puros», não seria provável que a mesma pala-vra nas Bem-aventuranças precisasse da mesma interpretação pelas Epístolas? Há pessoas que pensam que as palavras «Bem-aventurados os limpos de coração porque eles verão a Deus» expressam alguma ine-rente e imaculada qualidade de pureza de pensamentos do homem na-tural. Duvido. O limpo de coração é o homem sobrenatural, lavado na regeneração. Se não nascerdes de água e do Espírito não vereis o reino de Deus nem vereis a Deus na visão inefável da fé salvadora.

A promessa de Jesus se cumpriu? Pedro assimilou essa verdade «mais tarde»? Ah, deveras a assimilou, mas somente depois de lições vindas do céu. Ouvi-ó a falar em Jerusalém, depois que Deus venceu seus preconceitos e o enviou para evangelizar os gentios: «Deus ...não fêz distinção entre nós e eles, purificando os seus corações pela fé», Atos 15:9. E' a mesma palavra em forma verbal. «Sois puros» — pu- rificados — disse Jesus. «Purificando os corações», diz Pedro. Êle en- tendeu mais tarde, como o Senhor previu e profetizou. Deus purificou o coração de Pedro «pela fé», deu-lhe o Espírito regenerador «quando creu», Atos 11:17. Pedro chegou a entender mais tarde. Oxalá todos venham a entender.

«Qual o traidor». Sôbre os problemas que surgem em conexão com Judas, vede as notas sobre 6:7.

12. «Reclinou-se». «Caiu>, em seu lugar, cansado, é a idéia do ori-ginal. Lavar vinte e quatro pés sujos, ao fim do dia, não é nem leve nem agradável. Êle pede apenas inteligente compreensão do ato.

13. «Chamais: 'o Mestre' e 'o Senhor'.» Até aí chegara a fé. Je-sus aprova: «Eu o sou.»

14. «Vós deveis lavar os pés uns dos outros.» O notável crente e expositor, B. H. Carroll, era pastor de uma grande igreja e foi professor da Bíblia numa grande universidade por mais de um quarto de século. Morava numa casa ampla e confortável. Construiu um «quarto de pro-feta», dando acesso ao terraço sem passar por dentro da casa. A semi-naristas, colportores, evangelistas e colegas no ministério êle dizia «Ve-nha, irmão, a qualquer hora do dia ou da noite, quando voltar de uma viagem ou precisar de descansar, suba e se faça membro da familia. O quarto está ao seu dispor.» Uma noite voltara à altas horas um colpor-tor. Trabalhara numa .zona de lama grossa e pesada e dura de limpar. Portanto, tirou as botas e as deixou no terraço ao pé da escada, e foi dormir, pensando em levantar-se cedo e limpá-las à luz do dia. Mas quando desceu eis que seu eminente hospedeiro estava terminando de engraxá-las. Contrito, o homem exclamou: «O', Dr. Carroll, o irmão está limpando essas botas cobertas de lama grossa e ainda as engraxan-

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do ?>> O discípulo de Jesus, com doce sorriso, respondeu: «Deixa estar, irmão. Eu estou lavando os pés dos santos.» Não há sensatez na ceri-mônia hipócrita de lavar os pés de gente já lavada até que os pés brilhem quando mostrados para a cerimônia ôca e fútil. E' em servir de manei-ra em que hoje em dia o serviço seja útil, que nós cumpriremos o man-damento de Jesus aqui.

15. «Eu vos dei exemplo.» Não é em vaidosamente chamar-se «servo dos servos de Deus», receber a adoração de homens prostrados ou em oferecer um anel para ser beijado pelos aduladores. E' em real-mente servir, ser útil, procurando trabalhar humilde e altruisticamente, que imitamos o exemplo de Jesus. Ele fêz uma coisa prática. Água e bacia havia e pés cobertos de pó. Devia ser bem incômodo deitar-se assim nos sofás, no maior banquete do ano. Não sei como o hospedeiro não havia fornecido um servo para prestar o serviço. Jesus se fêz êsse servo. E' o ideal de nosso cristianismo. E' alguém ministro? E' pala-vra latina que quer dizer servo. E' alguém diácono? E' palavra grega que significa servo. Ambos os ofícios de nossa religião nas suas igrejas são «servos». A êsses servos Jesus mostrou a dignidade de realmente servir. Sigamos praticamente o espírito serviçal de Jesus. Não inven-temos mais uma cerimônia.

«Para que assim como eu vos fiz, vós continueis a fazer.» Tenha-mos discernimento espiritual. Há atos sem valor em si, mas que são impostos pelo seu valor simbólico. São como a bandeira nacional ou o uniforme do soldado. Esses procedem Unicamente da autoridade divina, são de interpretação divina e devem permanecer imutáveis. Nenhum pôde ser acrescentado desde o tempo de Cristo e dos apóstolos; ou fora da revelação da vontade de Deus que temos no Novo Testamento. Não há um jugo complexo, confuso e pesado, um cerimonialismo derivado des-tas ordenanças, no cristianismo. E nem aumentam, nem diminuem, nem mudam de significação, de século em século. Tais ordenanças simbólicas são o batismo, a ceia do Senhor, o domingo como monumento da ressur-reição do Salvador, a imposição das mãos que designa um homem para uma carreira oficial. Ora tais atos em si ficam sem valor. Não ali-mentam, nem dão saúde, nem constituem medidas de natureza moral, hi-giênica, social, política, intelectual ou doméstica, nem há graça divina inerente a atos físicos ou em emprêgo de coisas materiais — tal idéia não passa de superstição. Atos simbólicos PREGAM: são mensagens da verdade; «tôdas as vêzes que comerdes este pão e beberdes este cáli-ce, ANUNCIAIS A MORTE DO SENHOR ATÉ QUE VENHA.» E' por isso que insistimos na preservação dos atos simbólicos do cristianis-mo, sem alteração de espécie alguma na sua prática ou significado. Per-dendo-se a forma, perdeu-se tudo, pois não são outra coisa senão forma. São reclamos visíveis da verdade. E' a concepção espiritual do cristia-

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nismo, em franca oposição às idéias sacramentalistas que a Idade Mé-dia carreou do paganismo e concretizou em dogma.

Há outros atos que são inerentemente morais, sociais, benfazejos. Os dez mandamentos e «o fruto do Espírito» se manifestam em atos. Há, por exemplo, uma extensa doutrina cristã acêrca de visitas. Tiago diz: «A religião pura e imaculada é... visitar... » E' em si social, benfa-zeja. Pregar, cantar, alimentar os famintos, curar os doentes são coi-sas cujo valor está no próprio ato, embora seja enaltecido em grau cada vez maior de espiritualidade.

Há ainda uma terceira qualidade de atos cujo valor vem do que sig-nificam no momento. São cortesias. Seu valor é real, aumenta o senti-mento de bem-estar, de boas vindas, de cordialidade. Em geral, dentro dos limites da moral e da autoridade divina, Cristo fazia como fazia seu povo, Paulo se fazia tudo para todos e nós devemos seguir as praxes de cortesia do nosso meio ambiente. No século apostólico as praxes eram de lavar os pés do hóspede, beijá-lo como ato de boas vindas, fazer sau-dações de elaborado protocolo ao encontrar um conhecido na estrada, e assim por diante. Hoje em dia, ninguém lava os pés de um visitante quando entra na sala de visita — seria insulto! Ninguém recebe um hós-pede com ósculo. Não prolongamos saudações ao modo oriental. Quando, pois, a Bíblia manda dar «ósculo santo», «lavar os pés dos santos», man-da ser cortês, segundo as praxes. Jesus se fazia chefe da casa, ao ob-servar a Páscoa com aquêles doze homens como se fossem uma família. Fazia-lhes, pois, o serviço que um chefe de casa mandaria fazer aos hós-pedes. E, em mandar que nós façamos o mesmo, estabelece-nos a obri-gação de manifestar o mesmo espírito e prestar semelhante serviço, nas praxes sociais de nossos dias. O bom abraço com tapinhas nos om-bros é, no Brasil, o «ósculo santo», e a boa cordialidade brasileira e amo-roso acolhimento das visitas é o lava-pés genuíno. Ficar com o ato de um tempo morto e sepultado, sem ter seu espírito preservado nos atos convenientes de nossos dias, é a loucura de guardar como coisa preciosa a casca de uma noz que outro comeu.

16. «Amém, amém, vos digo.» Vêde a discussão de 5:24. «O escravo... o comissionado não é maior.» A ostentação, a pom-

pa religiosa, o ornato ritual são marcas da apostasia. Não há imitação de Jesus Cristo em tais vaidades. O Salvador desejou nascer numa estre-baria para se identificar com os pobres. Trabalhou como carpinteiro para viver como os pobres. Fêz-se peregrino para dar o exemplo de pere-grinação para o céu como ideal da vida. Alegrou-se nas festas comuns para identificar-se com o povo em tudo que seja inocente e sadio. Mon-tou num burro na entrada triunfal. Recusou honrarias exteriores, em-bora aceitando culto em espírito e verdade. Recusou terminantemente um reino político, um reino dêste mundo. Quando fêz seu primeiro ato público, não mandou ao Batista, dizendo: «Vem cá, João, a Nazaré.

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Quero ser batizado, pois sou o Messias e não vou aí na turba para essa cerimônia.» Não. Êle humildemente foi para onde Deus havia colocado o administrador autorizado do batismo. Chegado, êle não bradou: «Eis-me aqui, o Servo dos servos de Deus. Para. Quero que me batizes antes de todos.» Não. Êle humildemente esperou até que todos tivessem a pri-mazia e por último, quando os demais estavam satisfeitos, apresentou-se em humildade a João. E agora, no cenáculo, êle manifesta o mesmo espírito. Nenhum servo de Cristo deve ter vestes especiais para se des-tacar dos seus irmãos, nem títulos de vaidade, nem trono, nem beijos de anéis, nem posição em corpo diplomático, nem quaisquer sinais desig-nativos de um reino religioso dêste mundo. Tudo isso é a caiação que a carne, o Diabo e o mundo pintaram, no exterior de um cristianismo apóstata e nocivo, enganador dos ambiciosos de «pães e peixes». Basta que o «escravo» — Paulo se deleitava em chamar-se «o escravo» de Cris-to e «o escravo» das igrejas — seja como seu Senhor. Não acumulemos as praxes da Palestina, totalmente reproduzidas agora, com um atraso mental de vinte séculos, num mero macaquear de exterioridades defun-tas, mas imitemos nosso Senhor vivo, do século XX, fazendo em nosso viver e praxes os atos que expressam a lei moral e o fruto do Espírito, prática e amorosamente. Vêde as notas sôbre 3:31, acerca da absoluta soberania de Jesus Cristo em tudo.

17. «Continuamente». E' a idéia do tempo do verbo grego. Que adianta que uma vez por ano o papa lave os pés limpinhos de meia dúzia de mendigos, previamente chamados para êsse espetáculo? E' uma hu-mildade para inglês ver. O que Cristo manda é conduta, e espírito atrás da conduta, que todos os dias, e em todos os atos e pensamentos, mani-feste o ânimo prático e benfazejo de consideração cortês e altruística Para com os outros. Assim podemos pôr em prática «continuamente» a imitação do Senhor. Vêde as notas sôbre 4:34, no tocante ao que cus-tará ao crente a determinação de fazer a vontade de seu Pai.

18. «Escolhi». Aceitai a doutrina de eleição, sem por isso negar a doutrina congênere da responsabilidade humana. Jesus é responsável em suas escolhas, e livre em seus eternos planos, precisamente corno queremos crer que o homem seja responsável e livre, diante de Deus. A livre escolha de um ser como Jesus tem de participar de sua eternidade, infinitude, preexistência, onisciência e dos outros atributos de sua dei-dade. O capítulo XVII mostrará que essa escolha corresponde a uma dádiva do Pai, feita antes da criação do mundo.

«A Escritura». Sôbre a reverência de Jesus Cristo para com a Es-critura, vede as notas de Moffatt, citadas no comentário sôbre 5:39.

19. «Estou vos informando antes que aconteça.» Jesus, na sua humilhação, teve constantemente essa orientação do Pai, pelo Espírito. E comunicava aos discípulos o que lhes era conveniente saber e o que, na fraqueza de sua fé, eram capazes de receber. Beberam apenas da super-

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ficie do manancial do SABER que o Espírito lhes ministrava. Foi pre-ciso o resto do século para completar a assimilação dessa revelação que nos deu as Escrituras cristãs, das quais os escritos de João são a pedra da abóbada.

«EU SOU.» Vede a discussão de 8:58. 20, 22. «Amém, amém, vos digo.» Vêde a discussão do duplo

amém, nas notas sôbre 5:24. «Enviar... enviou». Ambas as palavras são do mesmo tempo do

verbo, no grego original. E' uma comissão definitiva, dada de vez. Tam-bém «recebe» e «está recebendo» são do mesmo tempo presente, de ou-tro verbo, no grego original. Vale a comissão de vez, para a contínua recepção do enviado, da parte daqueles a quem foi enviado, no cumpri-mento prolongado de sua missão. Dificilmente a tradução transmite todos êsses fatos, mas são bem evidentes no original. E' o princípio do embaixador de uma soberana autoridade. Se Deus não pode ter para seus arautos, pregadores, pastôres e mensageiros, chamados e obedien-tes, o acatamento devido à autoridade divina da mensagem, então êle é inferior ao mais insignificante govêrno civil, nas suas relações diplomá-ticas. E o fato de que essa mensagem não é entregue em palácios, mas ao ouvido, e não é recebida por protocolo diplomático mas pela consci-ência, realmente intensifica a responsabilidade pessoal de ouvir a Pala-vra de Deus pregada por quem êle chamou. Jesus não está criando aqui uma casta insolente de «príncipes da igreja», competidores dos diplo-matas do mundo para honrarias e vaidades. Está autorizando a autori-dade moral da Palavra do evangelho, pregada por quem êle chamar .

21. «Testificou.» Sem dúvida, um bem desagradável testemunho era êsse de prever e formalmente avisar a quebra do sagrado grupo dos Doze, que êle congrega agora em capacidade de uma família, para co-mer o banquete doméstico da Páscoa. Jesus é «a fiel testemunha», dirá João no «Apocalipse» (1:5). E' o coração pastoral. Quemi vê o lôbo sur-gir na pele de ovelha, no meio do próprio rebanho, e não avisar, é, por sua vez, traidor. O Bom Pastor avisou o rebanho, afastou o lôbo, salvou as ovelhas, com a prudência da serpente e a inocência da pomba.. Cristo ficou na expectativa enquanto Judas estava na expectativa, agiu quando Judas agiu, mas em tempo. Paulo preveniu aos presbíteros de Efesn: «Eu sei que depois da minha partida virão a vós lôbos ferozes que não pouparão o rebanho, e que dentro de vós mesmos surgirão homens fa-lando coisas perversas, para atrair os discípulos após si. Portanto vi-giai...» (Atos 20:29, 30) . E Paulo, seguindo o exemplo de Jesus, «tes-tificou». O testemunho de iminente traição da verdade e do reino do Salvador é responsabilidade do ministério, sem pressas, sem injustiças e sem personalismos. As principais traições do cristianismo, através dos séculos, partiram do ministério cristão. E as Epístolas chamam também aos leigos e às mulheres bem doutrinadas, para a defesa da verdade. Tô-

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da a cautela é pouca. E' a Fiel Testemunha que diz a palavra dura: «Um de vós é diabo.» Testemunhas fiéis dizem a verdade urgente, não me-ras doçuras que agradem os ouvidos dos incautos. Jesus «testificou» a traição de Judas e a negação de Pedro, e ambas as vêzes com o duplo «Amém». E' Jesus, «o Profeta», quem fala. Nada parecia mais impro-vável, naquela hora pacata, do que Judas encabeçando uma companhia militar contra Jesus dentro de poucas horas, e Pedro negando que sabia quem Jesus era. Mas Jesus conhecia a natureza humana e dela «testi-ficou». Sua Palavra profética provou ser infalível.

«Um de vós me há de trair.» Riggs acha que assim Jesus deixou os outros discípulos saberem da iminência da traição e ao mesmo tempo deu a Judas sua oportunidade para sair. E' difícil imaginar o que teria sido a atitude dos discípulos se soubessem dos fatos. Pedro, por crime muito menor contra Jesus, sacou a espada e cortou a orelha de um ho-mem, num esfôrço para decepar-lhe a cabeça. Talvez o aviso velado e a saída às pressas fôssem misericórdia para com Judas. Ao mesmo tempo, êle tinha de sair, mesmo forçado. As santas horas entre a ceia da Pás-coa e o beijo traidor não eram para os olhos avaros do homem-diabo, o trai-dor-mor de todos os tempos. Os evangelistas nunca nos historiam um só ato nobre, uma só palavra digna, feita ou dita por Judas. O fim eclipsou a carreira . Vede as notas sôbre «trair» na discussão de 6:71 .

22. «Olharam uns para os outros.» «A etimologia do verbo dá a idéia de um viajante diante de um rio fundo em que não há vau, pon-te ou bote, obrigado a seguir viagem. Herodes estava assim diante do seu prêso, João Batista, Mar. 6:20. Paulo estava assim contemplando as igrejas perturbadas e enganadas por agitadores judaizantes. Os dis-cípulos ficaram assim uma vez querendo interpretar certas palavras de Jesus». (10)

«Perplexos». Nenhum cochicho até aí sôbre as roubalheiras de Ju-das ou de sua trama contra a segurança de Jesus, parece ter penetrado no círculo dos Doze. Homens que não acreditam na realidade da depra-vação humana têm procurado, nestes últimos anos, justificar a Judas, ou tecer hipóteses favoráveis ao traidor, que explicam como êle fêz aqui-lc por amor a Jesus, esperando que o Mestre reagisse com um milagre na última hora e assim fôsse forçado a inaugurar um regime de autori-dade no terreno da fôrça e da política. Tais teorias não têm um vislum-bre de apoio no Novo Testamento. São manias psicológicas. O Novo Testamento em peso não ministra lenitivos à ofensa de Judas. O seu epitáfio foi pronunciado por Pedro: «Judas se transviou para ir ao seu próprio lugar.»

Quão diferente é Jesus, de Davi! Na traição de Absalão, Davi caiu num sentimentalismo que considerava sbmente relações e afetos pes-

(10) "Janelas Gregas", p. 11, por W. C. Taylor.

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soais, e não as responsabilidades do reino. Foi preciso que Joabe lhe ad-vertisse: «Cobriste hoje de confusão o rosto de todos os teus servos que hoje salvaram a tua vida... amando aos que te aborrecem, e aborrecen-do aos que te amam. Hoje declaraste que não se te dá nem de príncipes nem de servos, pois conheço agora que, se Absalão vivesse e todos nós fôssemos mortos, tu ficarias muito contente. Levanta-te sem demora, sai e fala palavras de confôrto aos teus servos. Juro por Jeová que se não saires, nem sequer um homem ficará contigo esta noite.» Jesus não pôs as mãos na cabeça, chorando: «O' Judas, meu Judas!» O sentimenta-lismo que acaricia traidores decididos é também traição à causa. Inú-meras vêzes tenho visto igrejas de Deus quase destruídas porque um membro eminente colocou considerações da carne acima do patriotismo do reino, imitando a Davi antes que a Jesus. Jesus nos deu as mesmas ordens que êle ilustrou na vida e aqui «testificou». «Se também recu-sar ouvir à igreja seja considerado como gentio e publicano.»

23. «Reclinado sôbre o peito». Reclinados no mesmo sofá, segun-do o sistema oriental nas refeições. A arte romanista freqüentemente é tão falsa corno sua doutrina. O Dr. A. T. Robertson diz: «E' a des-crição que João dá de si mesm (o discípulo ao qual êle amava) e êle se sente orgulhoso dêsse título (19:26; 20:2; 21:7, 20) e se identifica assim como o autor dêste livro, em 21:24. A linguagem explícita de Marcos (14:17, a mesma de Luc. 22:14 também) exige que a frase des-creva um dos Doze, João, filho de Zebedeu e irmão de Tiago. Ao longo da mesa, João se achava ao lado direito de Jesus, reclinado obliqua-mente, de modo que sua cabeça descansava sôbre o peito de Jesus. O centro, o lugar de honra pertencia a Jesus. O segundo lugar, à esquerda, teria sido de Pedro (Westcott) ou de Judas (Bernard), mas disso se du-vida... Esse é o momento representado na última Ceia, de Leonardo da Vinci, mas êle igualou as pessoas na tela aos monges para quem a pin-tou.» Tais pinturas são falsas diante dos fatos, ao representarem as pessoas sentadas ; também nos rostos efeminados e no cabelo crescido sempre caluniam Jesus e João, embora muitos artistas e escultores re-presentem os outros apóstolos como tendo cabelo curto. Todos o tinham, e Jesus também. «Não vos ensina a própria natureza que se o homem tiver cabelo comprido, é para êle uma desonra?» (I Cor. 11:13). Há muita desonra caiada por cima da história apostólica pela ignorância da arte eclesiástica medieval. A Bíblia torna claros os fatos.

24. «Pergunta quem é.» O sempre curioso Pedro. Vêde 21:20, 21. 25. «Quem é?» João é até mais fogoso do que Pedro, se bem que

mais calado, geralmente. Vêde a discussão de seu caráter como «segundo violino», na Introdução, Vol. I, p. 12.

26. «Mergulhar o pedaço de pão». A tradução exata desta Escri-tura tem vasta importância no esclarecimento dos fatos da história. Essa frase identifica qual das duas ceias estava se realizando, , no mo-

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mento. Evidentemente não foi a Ceia do Senhor, mas o banquete da Páscoa, «a festa dos judeus» Não há, na Ceia do Senhor, nenhum ato de «mergulhar um pedaço de pão». Provado está, pois, que a Páscoa não havia sido terminada ainda e que estavam comendo o cordeiro, as hervas amargas, servidas com um môlho em que Jesus mergulhou o bocado que deu a Iscariotes. Judas tencionava ficar mais tempo, mas Jesus mandou fazer «mais depressa» sua nefanda obra e êle saiu imediatamente de-pois da identificação. O lugar seria insuportável para êle daí em diante. Vêde quão insensata é a doutrina romanista de jejuar antes do sacra-mento eucarístico o qual ou é a Ceia do Senhor ou não tem nada de cristão. A segunda Ceia foi Unicamente simbólica. O grupo já tinha comido um cordeiro inteiro, ervas, passas, môlho, pães, copos de vinho misturado com água, e o resto do banquete da Páscoa, «a festa dos ju-deus», antes de Cristo estabelecer «a Ceia do Senhor». Longe de je-juar, estavam fartos do lauto banquete, preparado pela mãe de João Marcos. Então Jesus quebrou um só pão e deu onze pedacinhos aos con-vivas; passou um só cálice e beberam todos um golpe. Era uma Ceia sim-bólica. Já estavam jantados abundantemente. E Paulo exige que não se venha à mesa do Senhor em jejum: «Se alguém tem fome, coma em casa» (I Cor. 11:34) . Longe de exigir jejum para a Ceia, Paulo exige que os participantes não tenham fome, mas que comam em casa. O in-tuito é que na hora da Ceia tornem apenas o pedacinho de pão, com -a mente fixa em discernir no pão partido o Calvário e, por êste memorial, comemorar o corpo de Cristo em seu sacrifício feito uma só vez. No gole do vinho lembram-se do sangue remidor, derramado uma vez para sEmpre. O exemplo e a doutrina da Escritura recomendam que os parti-cipantes da Ceia tenham comido de antemão uma refeição que lhes sa-tisfaça a fome.

«Mergulhar». E' o verbo grego bapto. E' uma desculpa com que os aspersionistas explicam sua desobediência ao mandamento de Jesus, di-zer que o verbo grego «bapto» significa, sim, imergir, mergulhar, como todo o mundo o traduz aqui, sem a menor hesitação. Mas alegam que baptizo, verbo congênere, não significa imergir, mergulhar. Ninguém tem a ousadia de dizer que significa aspergir, mas deixam o pobre verbo sem significado algum, orfanado de sentido. Para revelar a futi-lidade dessa manobra indesculpável e iníqua, enganadora do povo, bas-ta citar o notável dicionário dos papiros: «The Vocabulary of the Greek New- Testament, Illustrated from the Greek Papiri and Other Non-li-terary Sources». (11) Os eruditos autores eram Jantes Hope Moulton (metodista) e George Milligan (presbiteriano), da Inglaterta e. da Es-cócia, respectivamente. Eles- citam bapto como significando .tingir; nos papiros. Ora, passando dos antigos métodos de _tingir, ,por imersão do

(li) primeira Edição, Vol. II, 'p. 103.

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pano no líquido, para os modernos métodos de espalhar a tinta por unia máquina, os espertalhões na controvérsia atacaram a idéia de que bapti-zo signifique imergir, dizendo que pode significar outra coisa porque os métodos modernos de tingir (um dos sentidos de baptizo) não envolvem a imersão. Os que usam esse argumento insistem que bapto sempre significa imersão. Ficam, porém, em evidente derrota quando dois dos mais eminentes aspersionistas do mundo testificam que bapto e baptizo eram igualmente usados no sentido de tingir. Também os mesmos auto-res citam papiros para mostrar que bapto era também usado nos papiros a respeito do batismo! A teoria tendenciosa de uma fundamental dife-rença nos dois verbos não passa de uma puerilidade.

27. «Satanás entrou nêle.» Satanás não é um «demônio», mas o deus deste mundo e o chefe da casa dos demônios. O Diabo não é oni-presente, onisciente ou onipotente. Pode assediar uma alma com uma le-gião de demônios e deixá-los num homem como seu quartel, mas ele vai e vem. Visitara Judas em tempos idos. Volta,..2gora para a superinten- dência pessoaldoseu_ato vital W no drama do Calvário, o supremo assa) da. história do universo contra a soberania divina. Pela autoridade de Cristo mesmo, nos- sabemos que, em sua tramacontra Jesus, 'Satanás vi. sitou tanto a Judas como a Pedro. Em Judas êle achou guarida, reves• ti e fazend uma fortaleza contra o Filho de Deus. Mas fiéon dó lado de fora de Pedro, corno no caso de Jó. irando_ u-o corno trigo,: se-paran o a pa a, mas o ripo era sao, ficou inteiro. O Diabo nem o moeu nem lhe quebrou a casca. Cristo o guardou para seu celeiro. «Quem brinca com o Diabo terá essa sorte.» (12 )

«Faze-o mais depressa.» «Vede Luc. 12:50, acerca da ânsia de Jesus para que viesse sua paixão.» (13)

28. «Nenhum entendeu.» Todos são muito sábios, depois do fato acontecido. Mas nós todos somos igualmente cegos, às vezes, antes do evento. Um traidor é sempre uma surprêsa, incrível antes de manifis• tar-se, mas bem evidente depois de reconstruirmos a história da traição. lembrando detalhes que se encaixam nitidamente no sucesso, quando é passado.

29. «Para a semana festiva». A ceia da Páscoa estava terminan-do. Restava ainda uma semana da festa, com ainda outros banquetes. convivas e festividades a gozar. Não ligaram grande importância às pa-lavras, pois tinham muito em que pensar. Sendo que na noite seguinte se devia comer, não um cordeiro, mas uni jantar de carne de boi, podia estar em ordem algum arranjo de que Judas tratasse ainda. As dádivas nos pobres eram, evidentemente, uma generosidade tão comum na vida de Cristo e dos Doze, que mesmo numa hora tão signTficante não seria

(' 2 ) "Word Piete.res ir: the Nen, Testament", Vol. V,, p. 215, por A. T. Robertson. (1') Idem.

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estranhável que o tesoureiro saísse numa missão desta natureza. Eles praticavam o que Cristo pregava, davam esmola, mas sem a mão esquer-da saber o que a mão direita fazia.

«Judas era quem trazia a bôlsa.» «Foi assim que se introduziu o costume de haver dinheiro na igreja.» (14) Mas não pensemos por um instante que aquela bôlsa só levava esmolas para os pobres. Jesus or-denou, quando enviou os Doze, e de novo quando comissionou os Setenta, que o obreiro é digno de seu salário. Daquela bôlsa viviam os treze ho-mens, o Mestre e seus apóstolos. Era uma emprêsa financeira autô-noma, embora santas mulheres provessem grande parte das despesas de suas viagens missionárias. O Mestre havia perguntado se lhes fal-tara algo, e os apóstolos haviam dito que não. A provisão de Cristo para o sustento do seu primeiro ministério fôra adequada. Pedro o testifi-cou. «Assim ordenou o Senhor aos que pregam o evangelho, que vivam do evangelho.» Mestre e discípulos praticam o que o Mestre prega. Dei-xam tudo e vivem do evangelho e a bôlsa tem o suficiente. Nem mesmo as roubalheiras de Judas faziam falta.

30. «Imediatamente». Marcos, que parece um tanto impetuoso nas decisões, e é geralmente tido como secretário de Pedro ao produzir seu Evangelho, emprega esta palavra 42 vêzes. João, na velhice, escre-ve um evangelho muito maior e a emprega apenas sete vêzes. Mas aqui ação decisiva e rápida era de esperar. São interessantes os casos em que o velho apóstolo meditativo escreveu: «imediatamente» — 5:9; 6:21 ; 13:30, 32; 18:27; 19:34; 21:3.

«Saiu; e era noite.» «Ninguém expulsou Judas. Foi o pêso cumu-lativo da queda do seu coração que o impulsionou a escolher as trevas e rejeitar a luz.» (15) Acho, sim, que Jesus o expulsou. Sua palavra de au-toridade valia para tanto, sem o uso de fôrça.

(14) "Comentário de Agostinho sôbre éste Evangelho", II, 225, Versão Inglesa de J. Gibbs.

(15) "The Speaker's Bible", Vol. II sobre este Evangelho, p. 57.

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A Luz do Maior Conforto no Dia do Máximo Negrume na História Humana

(Capítulo XIII, versículo 31, até Capítulo XIV, versículo 17)

31 Portanto, quando ele saiu, Jesus declarou: "O Filho do Homem foi glo-

32 rificado agora, e Deus foi glorificado nele: I se Deus foi glorificado nele, também Deus o glorificará na própria pessoa

33 Noite e Glória dele, e o glorificará imediatamente. I Filhinhos, ainda por um pouco estou convosco: vós me bus-

careis, e, como eu disse aos judeus, assim declaro agora a vós, 'Onde eu vou,

34 vós não podeis chegar.' Uma nova qualidade de mandamento vos dou, que vós sempre vos ameis mutuamente; assim como eu vos amei, também

35 constantemente amai uns aos outros. I Nisto todos

A Nova Lei conhecerão que me sois discípulos, se continuamente

36 tiverdes amor mútuo." I Simão Pedro lhe diz: "Se- nhor, para onde vais?" Jesus tornou: "Para onde eu vou, não podes seguir-

38 me já, mas tu me seguirás mais tarde." I Pedro

Et tu, Petre lhe declara: "Senhor, por que não posso seguir-te. 37 agora? Por ti sacrificarei a própria vida." I Jesus

lhe responde: "Tua vida tu a sacrificarás em meu favor?! Bem solenemente te afirmo: De modo algum cantará o galo sem que me tenhas negado três

14:1 vezes. I Não continue perturbado o vosso cora-

Quando Vale ção: perseverai em vossa fé em Deus e em mim

2 mais o Conforto também ! I Em casa de meu Pai há muitas mora- das: e se não fôsse assim, eu vos teria declarado;

3 porque vou preparar de vez um lugar para vós; I e se eu fôr e vos pre- parar de vez um lugar, venho outra vez e vos tomarei para meu lado, face à

face comigo, para que, onde eu estou, esteja's vós tam-

4 Jesus Cristo o bém". I Aliás sabeis o caminho para onde eu vou."

5 Caminho para os 1 Tomé lhe tornou: "Senhor, nem sabemos para Céus onde vais : como podemos saber o caminho ?"

6 IJesus lhe respondeu : "Eu sou o caminho, a ver-

7 dade e a vida: ninguém se aproxima do Pai se não por mim.. I Se me co- nhecêsseis, já teríeis conhecido men Pai também. Doravante o conheceis e

8 o vistes e o vedes." I Felipe lhe diz: "Senhor, mostra-nos de vez o Pai e

9 nos basta." I Jesus lhe torna: "Tanto tempo estou convosco e ainda não me tens conhecido, Felipe? Aquele que me viu e vê, viu e vê o Pai: como di-

10 zes tu : 'Mostra-nos de vez o Pai?' I Não acreditas O Pai visto no que eu estou no Pai e o Pai está em mim? As pa-

Filho lavras que eu vos estou falando, não as profiro de minha própria inspiração. Pelo contrário, o Pai que

C. E. J. — 29

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11 permanece em mim está efetuando suas obras. I Acreditai sempre que eu vivo em união com o Pai, e o Pai em união comigo: e se isso ainda não vos

12 fôr possível, continuai a ser crentes em consideração às obras mesmas. I Com absoluta certeza vos afirmo: O crente em mim fará por sua vez as obras que

eu estou fazendo, fará até maiores obras do que 13 O Confôrto da estas, porque eu vou para o Pai: I e seja o que fôr o

Trindade que pedirdes em meu nome, isso farei, a fim de que 14 o Pai seja glorificado no Filho. I Se pedirdes algo 15 em( meu nome, eu o farei. I Se me amardes, guardareis os meus mandamen- 16 tos. E eu rogarei ao Pai e êle vos dará outro Advogado, a fim de que de 17 fique convosco para sempre, I o Espírito da verdade, que o mundo não pode

obter, porque nem o considera nem o conhece: vós o conheceis, porque êle fica ao vosso lado, sim está em união vital convosco."

31. «Portanto». Esta partícula (oun, no grego original) se acha 202 vêzes neste Evangelho, quase a metade do número de vêzes que é usada no Novo Testamento inteiro. João vê a história humana marchar na lógica divina dos eternos decretos da Providência. Nem sempre há uma imediata conexão ou inferência lógica. Às vêzes há um contraste, sob a forma da lógica. Aqui, por exemplo: «Era noite... Portanto a glória»! A luz é lançada sôbre o fundo de sombra e trevas. Judas trai... Deus glo-rifica, faz que o ódio e a ira do homem, no evento, se transformem em seu louvor e na sua suprema glória. «A linguagem semítica serve-se do tem-po pretérito para exprimir um futuro todo certo.» (1)

«Foi glorificado». "Este fato é considerado do ponto de vista da eter-nidade, cujos pianos cumpre. Por isso traduzo a palavra como Jesus a proferiu. Na sua certe2a, já êle podia dizer: «Está consumado... estou glorificado», embora Getsêmane e a via crucis estejam logo adiante, ainda por suportar.

«O Filho do Homem». Sempre, desde os dias de Daniel, é o têrmo messiânico que mais glorifica a Cristo. E' coerente, pois, a associação da frase aqui com a glória da cruz. A redenção assume suas proporções eternas, divinas, inefáveis, precisamente em conexão com a morte de Jesus por nossos pecados e com êsse título profético da sua glória. Os racionalistas procuraram em vão ver um Evangelho Aramáico, de fantasia, atrás de nosso Evangelho grego de João, repudiando o que se vê, para aceitar o que se imagina nesse Evangelho-fantasma, fazendo os títulos messiânicos de Jesus se evaporarem numa frágil controvérsia fi-lológica. A Palestina era urna província belingue do mundo greco-roma-no e, como nossos Evangelhos nos testificam a verdade, é como a verda-de era e é e sempre será. Um criticismo racionalista, baseado em docu-mentos que nunca existiram, nunca será tomado em conta, perante o

( 1) Versão Franciscana, de Frei Damião Klein, Vol. I, p. 291.

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testemunho positivo dos companheiros de Jesus, para reduzi-lo, como «Filho do Homem», a mero homem comum. Erudição neo-testamentá-ria em peso repudia essa teoria tendenciosa. Desde Daniel, «o Filho do Homem» é quem monta nas nuvens na sua soberania. Vêde Vol. I, ps. 267-269, 318-320, e várias passagens discutidas neste Vol. também. Outrossim não pense o estudante incauto que «Filho de Deus» é título que mereça mais reverência por parte de um racionalista do que o títu-lo «Filho do Homem». Pelo contrário, a seu ver, qualquer pecador é «Filho de Deus», da mesma categoria de Jesus, se bem que não no mes-mo grau. A incredulidade tendenciosa esvasia todos os títulos da dei-dade do Salvador. «Filho do Homem» é título de majestade, não de hu-milhação, e traz consigo sua história e eminência na profecia messiânica.

32.. .«Se Deus foi glorificado nêle, também Deus o glorificará nêle.» A vida terrestre de Jesus glorificou o Pai, teve êsse intuito. A morte no Calvário, com suas credenciais da ressurreição, glorificou a Jesus. Nas visões do céu, João viu «um Cordeiro como havendo sido morto», mas estava no meio do trono do universo, feito o Leão da tribo de Judá, Ora, pensemos. Qual a maior gloria de Jesus Cristo? O Sermão do Monte? Seus milagres? Sua impecabilidade? Seu caráter? A glória da cruz de Cristo eclipsa tôdas as demais luzes do universo, para nós ho-mens e para a nossa salvação. «Longe de mim o gloriar-me, a não ser na cruz», pois além de suas inerentes excelências no plano divino da sal-vação, ela ainda «me crucificou para o mundo e o mundo para mim». Isso o Sermão do Monte nunca fêz, nem os milagres, nem a majestade moral do Messias. Deus tirou da própria pessoa de Jesus, oferecida em sacri-fício vicário, a revelação da sua glória, para o tempo, para a eternidade, para o universo. Vinha ai depressa o ato e a hora em que essa glória seria consumada.

33. «Filhinhos». «Pela primeira vez Jesus emprega êsse termo de carinho. E' a única vez, que saibamos pelas Escrituras, que ouviram essa palavra da boca do Mestre, e isso impressionou a João. "Ele nunca a olvidou e era assim que êle chamava seus discípulos, muito tempo de-pois (I João 2:1, 12, 28: 3:7, 18; 4:4; 5:21) . Cabia bem no momento a ternura, pois êle tinha urna nova dolorosíssima para lhes comuni-car.» (2)

34. «Um novo mandamento.» «Se fosse só isso (que ameis uns aos outros) não teria sido 'novo', pois estava escrito na Lei antiga (Lev. 19; 18) e êle já o havia reafirmado constantemente (Mat. 5:43-46) ; Luc. 10:25-37) . Mas notai o que segue: como eu vos amei. Era um mandamento velho com um novo ideal e uma nova inspiração; e êsse ideal eles o veriam, e essa inspiração êles a sentiriam, ao contemplarem

( 2) e (3) "Commentary on the Four Gospels", Vol. 3. p. 237, por David Smith.

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sua paixão redentora como a revelação do infinito amor dele para com eles e todos os filhos dos homens.» (3)

«Uma nova qualidade de mandamento». Não é a palavra grega (neos,) que significa «novel», coisa aparecida agora. E' um antigo man-damento, verbalmente falando, mas sua qualidade é nova (a palavra grega kainos), E' o fruto do Espírito, na vida cristã. E', pois, viável pelo exemplo e poder de Cristo. Vêde a discussão da doutrina bíblica do amor, no meu Comentário sôbre a Epístola aos Gálatas, p. 258-274, e muitas relações práticas da mesma doutrina com a vida. Aqui veremos mais seu lado fundamental, suas relações com a obra da. Trindade na re-denção, na revelação e na vida resultante, tanto na sociedade cristã como no indivíduo.

O amor cristão não é a velha «caridade» do mundo. Há um vasto avivamento intelectual, hoje em dia, da doutrina absorvente e intoleran-te da «caridade» mundana. Em parte, é fruto idas manobras do jesuitis-mo, que elimina as grandes obrigações da vida pelo seu nefando probabi-lismo (Vede no Vol. I, as ps . 86, 87) . Ao lado dessa doutrina jesuíta, que analisamos logo adiante na linguagem incisiva de Pascal, surge de novo a doutrina positivista da «caridade», como capa para cobrir um quase-ateísmo, um ódio contra a verdade revelada, uma «tolerância» tendenciosa de tudo quanto seja crença, menos as convicções leais à ver-dade revelada em Cristo Jesus e no Novo Testamento, que nos preserva essa verdade em forma literária pelo testemunho do círculo apostólico. O espiritismo também pugna por essa «caridade» exterior, divorciada da verdade e vida cristã que Cristo outorga e exige. Na aurora da Primeira República passou sôbre o Brasil uma onda dessa propaganda, mormente pela preponderância da influência de Augusto Comte sôbre a época. Es-tamos num dia de educação das massas. Devemos, pelo menos nos círcu-los cristãos, ficar livre da escravidão às efêmeras idéias de um pequenino grupo de intelectuais, ecos de uma escola filosófica estrangeira. Suas idéias emprestadas são meras modas nas roupagens do espírito, sem con-tinuidade, instáveis. A tolerância para tudo menos para a verdade eter-na e imutável, a fé uma vez para sempre entregue aos santos, a doutri-na de Cristo e' seus apóstolos, é a mais cruel e nociva intolerância que possa infelicitar a mente humana. Surge agora, até nos meios evangéli-cos, essa caridade positivista rediviva. Ridiculariza tôda doutrina. Foge para o terreno econômico, identificando o «reino de Deus» com a última moda de ideologia econômica. Lança anátemas contra tôda a teolo-gia, especialmente a que é a verdade revelada no Novo Testamento. E repetindo, e sempre repetindo, a sua insistência na «caridade» que nada crê, consegue ludibriar ou confundir os incautos.

Não há nenhum amor cristão que não tenha como âncora a morte de Jesus Cristo no Calvário, a eficaz, objetiva, eterna e infinita reden-ção que Deus em Cristo operou de vez para a solução do supremo pro-

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blema do pecado. Não há nenhum amor cristão genuíno que seja natu-ral ao homem carnal; o amor de Deus é derramado em nossos corações unicamente pelo Espírito Santo que nos é dado (Rom. 5:5) . A «carida-de» da carne é espúria, oca, superficial, morta e mortífera. Não há ne-nhum amor cristão que não ame a verdade por Deus revelada. E o amor cristão é medido por Cristo conforme a obediência que presta aos seus mandamentos. Ainda mais: o amor cristão verdadeiro preza a Palavra de Deus, pois são produtos do mesmo Espírito — a Palavra e o amor que a guarda. Nada disso é novidade, ou peculiar, ou excepcional. Está aí no testemunho do apóstolo de amor, que insiste em tudo isso com quase monótona repetição, no seu Evangelho, nas suas Epístolas e no Apoca-lipse. O amor cristão é firme e inabalável na rejeição de doutrinas fal-sas e a falsa «caridade» que é sua principal arma e sócia enganadora; e, ao mesmo tempo, se empenha na defesa da liberdade religiosa, no ter-reno civil, mais do que todos os positivistas e espíritas e jesuítas no mundo. A tolerância mental de todos os erros é sempre intolerância, revoltada contra Jesus Cristo e sua verdade, e usa do ostracismo, e às vêzes da arma civil, na sua cruel perseguição. Será bem avisado cada crente sincero que saturar seu espírito e seu ambiente, tanto quanto fôr possível na base da voluntariedade cristã, com o verdadeiro ensino de Cristo sôbre o amor cristão, por seu valor positivo em si mesmo, e como antídoto divino contra a apostasia do neo-catolicismo que nos ameaça engolfar .

«Ameis». «O discurso final trata tanto do amor (a palavra se acha 24 vêzes) como do Espírito, o qual é de fato o Espírito de amor, e se encarna nos corações dos que amam.» (4) «Amai... outros». Sôbre o lugar que «outros» têm em nossa vida, vêde a discussão de 4:36, 38, onde se demonstra que nós somos herdeiros, devedores e sucessores de outros, e nosso trabalho deve caber no esquema da continuidade do que nossos companheiros na obra fizeram, fazem e farão. O mandamento de amar nunca é dado num vácuo. Sempre se trata do «próximo», daque-les com que estamos associados; enquadra-se na vida. Jesus falava aos Doze, em relação aos Doze, primeiramente. Uma outra Escritura que saiu da pena deste apóstolo diz: «Aquele que não ama ao seu irmão que viu, como pode amar a Deus, que não viu?» «Ah!» disse Vinet franca-mente, no meio das lutas dentro da Igreja Suiça, «ah ! mas é precisa-mente ao irmão a quem se viu que é tão difícil de amar!» «Mas, visto que o amor, como afeto de lealdade a Deus e a nossos semelhantes, exige reflexão e alguma pressão da vontade sôbre a natureza inferior, e visto que o amor também envolve uma compreensão controladora do fim con-templado e, freqüentemente, uma resolução determinada de não esco-lher o que seria incoerente com as lealdades superiores, portanto, o Novo

(4) "Weymouth's New Testament in Modern Speech", p. 669, nota de J. A. Robertson.

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Testamento pode dizer que Deus nos manda amar. Tal amor exige a ne-gação de nós mesmos, e para tanto temos de estar prontos, nos mo-mentos críticos. Assim se torna razoável compreender a lei do amor fraternal como mandamento, pois cumprimos essa obrigação por manter a confiança em nossos semelhantes, por recusar admitir que por sua con-duta má perderam tôdas as oportunidades, e por esforçarmo-nos, por mais desagradável e ingrata que seja a tarefa, para tratá-los de tal ma-neira que se desperte neles alguma compreensão do propósito divino nas suas vidas.» (5)

35. «Conhecerão que me sois discípulos.» Jesus não disse: que sois meus discípulos. A construção gramatical é outra, o caso indican-do, em grego, a vantagem da pessoa mencionada. E' para a vantagem de Jesus que nós somos discípulos, sim a qualidade genuína de discípu-los que na intimidade da grei manifestam amor constante para aquêles com quem trabalham na vida cristã.

«Nossa definição de amor cristão como 'a devoção aos propósitos de Deus na personalidade humana' inclui uma apreciação de nossa pró-pria personalidade e o que esta pode significar como sendo a esfera em que realizamos os propósitos de Deus Pai. Aquêle que se ama como Je-sus determinou, não é egoísta, mas deseja proteger e desenvolver as ca-pacidades de sua vida pessoal como mordomia que recebeu de Deus.') (8) E' a idéia do filósofo Kant: «Sempre trata a humanidade, quer na tua pessoa, quer na pessoa de outrem, como um fim, e nunca como o meio de atingir um fim.» Deus, porém, é o supremo fim.

«Teu amor a um amigo deve ter seu fundamento em Mim, e pelo amor a Mim deves amar qualquer um que te pareça bom e bem querido nesta vida. Sem Mim, a amizade não floresce e não permanecerá; nem é verdadeiro o amor que não seja tecido por Mim.» (7)

«Foi dado ao homem o mandamento de amar a Deus de todo o seu coração, de tôda a sua alma e de tôdas as suas fôrças, isto é, com tudo quanto êle é, com tudo quanto sabe e com tudo quanto pode fazer. Nem foi Deus injusto em exigir para si mesmo seu próprio trabalho e dons. Como pode a obra deixar de amar o Operador, quando tem o poder para tanto? E por que não totalmente, visto que nada pode senão pelo dom dêle?» (8)

«Não foi apenas do tempo quando fomos reconciliados com êle pelo sangue do seu Filho que êle começou a amar-nos ; êle nos amou desde a fundação do mundo... Não seja o fato de nossa reconciliação com Deus, pela morte de seu Filho, interpretado como se significasse que, quando Deus nos reconciliou consigo, foi naquele tempo que êle começou a amar

(5) "Louve in the New Testament", ps. 61, 62, por James Moffatt. (6) "Love in the New Testament", p. 97, por James Moffatt. (7) "De Imitatione. Christi", iii, 42, versão de James Moffatt. (8) "Liber de diligendo Deo", v.-vi. 2, de Bernardo, tradução de James Moffatt.

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os que outrora havia odiado, de modo que daí em diante se tornassem amigos, e o amor mútuo suplantasse a inimizade anterior; de forma algu-ma, antes nós fomos reconciliados com aquele que já nos amava.» (9) Vêde a discussão dêsse dom sobrenatural, na vida santificada do crente, nas notas sôbre 5:42.

36. «Tu me seguirás mais tarde.» E' a promessa da morte, e do destino depois da morte que êle logo esclarecerá. E' profundamente estranhável que certos crentes mornos procedem como se tivessem de fi-car neste mundo para sempre. Por que não dizemos estes fatos subli-mes e certos a nós mesmos freqüentemente ? Por que a morte de um ente querido nos surpreende, como se fôsse uma novidade estranha no universo, dando-nos motivo para nos queixarmos amargamente ? Por que nos entristecemos como os que não têm esperança? Na morte ape-nas seguimos Jesus para estarmos imediata e eternamente com ele.

37. «Agora». A separação é que provoca a angústia, em todos os casos de morte que nos invadem a experiência. Pedro estava perdendo a presença visível de Jesus, de fato no dia seguinte, mas havia de ganhar o que vale infinitamente mais, a presença invisível, constante, eterna, presença de que Cristo havia de dar certeza aos Doze, mostrando-se vivo nos intervalos, mas conservando-se invisível, a maior parte do tempo dos quarenta dias depois da sua ressurreição.

«Por ti sacrificarei a própria vida.» Pedro é citado ainda assim: «Ainda que todos te abandonem, todavia eu não te abandonarei.» «Essa palavra de orgulho era bastante sincera, simpática e superficial. Dita numa plataforma, teria provocado palmas da platéia. Mas Jesus co-nhecia os homens. Ele descontou as palavras. Ele as pesou. Logo veio o dia de horror e de humilhação, em que Pedro ficou sepultado numa cova mais profunda do que o túmulo de Cristo. E' a sorte de humilhação que é reservada para uma fé limitada e fácil. A única esperança dos tais é a luz que se derrama sôbre uma cruz pela janela de uma ressurrei-ção.» (10 )

38. «Amém, amém». Vêde as notas sôbre o duplo amém, na dis-cussão de 5:24. O solene aviso da negação que seria pronunciada por um crente na hora da magna tentação, segue, dentro da grei, ao aviso da traição já dado ao apóstolo incrédulo. O amor não esconde os fatos. Nisto a Bíblia não é romance, pois declara as faltas de todos os seus heróis. Não separemos o que o Espírito ligou. A despeito desse aviso, e à luz de sua tragédia, é que Jesus disse logo em seguida as grandes pa-lavras de confôrto do crente.

13:38 e 14:1. «Não cantará o galo até que me negares três vêzes.

(9) "In Johnnis Evangelium Tractatus", cx. 6, por Agostinho, tradução de James Mo ffatt

(10) "The Person and Place of Jesus Christ", p. 53, por J. T. Forsyth.

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Não seja turbado o vosso coração. Credes em Deus, crede também em mim.» O prof. J. A. Findlay opina que a divisão de capítulos é muito infeliz aqui. «Tenho dado ênfase a essa conexão porque desejo que meus leitores meditem no fato surpreendente mas indisputável que Jesus, que às vêzes se irara contra seus discípulos quando o seguiam dedicada-mente (Mar. 7:17; 9:19; 10:14), parece ter ficado absolutamente sere-no acêrca da sua relação para com êles quando um o havia de negar e todos o haviam de abandonar. Nem é limitada ao Quarto Evangelho essa idéia, pois Luc. 22:31, 32 a confirma. Mesmo quando se comportavam mal, êle tinha apenas palavras confortadoras (Luc. 22:24, 28) . Esta-vam-se aproximando da maior humilhação de suas vidas. Não havia meio de se encerrarem dentro de sua própria vida íntima, pois dentro de vinte e quatro horas tudo lhes seria arrancado, tudo com uma excep-ção. A mão firme de Jesus sôbre êles, nem a própria deslealdade dêles seria capaz de afastar ou mesmo de enfraquecer. A base da certeza cristã não é nenhuma segurança que haja em nossa fortaleza, nem é es-capatória em nosso proveito, permitindo-nos fugir da realidade que nos cerca. Temos certeza, não de nós, mas sim de Jesus. Vós credes em Deus, pois crede também em mim ... Os discípulos podiam viver atra-vés da sexta-feira da paixão e o domingo da ressurreição porque ainda criam em Deus e amavam a Jesus. De sorte que, quando êles mesmos pensavam que tinham perdido a esperança, não era verdade. Pois, do contrário, êles teriam saído de Jerusalém sexta-feira da paixão, de noi-te, e voltado cada qual ao seu ofício com que ganhava antes o pão, to-mando de novo o fio de suas vidas velhas. O que os salvou de colapso não era nada que houvesse nêles, mas sim o que Jesus havia feito neles e ainda fazia em prol dêles.» (11) Há muita psicologia cristã para se aprender aqui de Jesus. Superintendente de Escola Dominical, nunca inculpes os presentes pela ausência dos ausentes. Vá dizer isso aos pró-prios negligentes. Aos fiéis, sômente o bom ânimo. Irmão pastor, nun-ca desanimes os bons com diatribes contra os maus. E' loucura e pecado. Pais, anciosos sôbre os filhos, com muito menos censura darieis melhor disciplina. A Palavra de Deus manda: «E vós, pais, não provoqueis à ira a vossos filhos», Efés. 6:4. «Maridos, amai a vossas mulheres e não as trateis asperamente. Pais, não irriteis a vossos filhos, para que não fiquem desanimados», Col. 3:19, 21. Aprendei, guias de homens, a lou-var, a confortar, a vêr o fundamento aí no coração e sôbre êle edificar de modo construtivo e eficaz. Não abrais um abismo entre o capítulo do desvio e o capítulo do confôrto. Deus, pela inspiração, os juntou. O que Deus juntou, o homem não separe. Precisamente na hora de sua queda e desânimo e negação é que o crente precisa de ânimo e confôrto e Cris-to. E todos os pastôres espirituais procurarão animá-lo à conversão —

(11) "The British Weekly", 24 de Março de 1938.

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qualquer crente deve ter muitas conversões — e a confortar e fortalecer outros desviados depois de igual experiência dolorosa. João XIV é o confôrto dos discípulos soberbos, disputadores da primazia, prestes a abandonarem o Senhor. Jesus os avisa: «Coragem. Voltareis a ser fir-mes.» E' a consolação moralizadora da segurança do crente. E tendo o crente «vida eterna», é de confôrto a promessa da volta do Senhor e da comunhão celestial, mesmo na hora da mais negra tentação. Sejamos discípulos da psicologia de Jesus. Culpemos menos. Louvemos mais. Animemos sempre.

Capítulos XIV a XVI. Vinet descreve êste trecho do Evangelho como «uma confusão divina». E F. L. Anderson o considera como «frag-mentos preciosos de uma conversação que tinha a simplicidade das crian-ças num diálogo de perguntas e respostas.»

«Poucos são os críticos capazes de dizer que o autor inventou essas altas e santas palavras ou que elas não representam fielmente o coração de Cristo em relação aos apóstolos nessa noite de climax. Eles sentirão a falta da sua presença, mas êle voltará para buscá-los e levá-los ao seu lar no céu com o Pai, quando ficarão com Jesus para sempre. Este é o mais nobre retrato do céu dado ao homem, sim o de João XIV — em casa com Jesus.» (12)

14:1. «Não continue perturbado o vosso coração.» «Lockhart, em sua biografia de Sir \Valter Scott, narra como, perto do fim de sua vida, ele mandou que o colocassem em sua cadeira na sua biblioteca em Ab-botsford, em frente da janela central para que pudesse olhar para o Rio Tweed. Êle meditou no cenário, que tanto amava e que tornara famoso nos seus livros, e depois disse: 'Lê'. Lockhart olhou para as fileiras de livros e perguntou de que livro êle queria ouvir a leitura. 'E' necessário perguntar? Há um só', foi a resposta. E Lockhart leu o cap. 14 de João. 'Êle escutou com devoção meiga e disse, quando eu terminei: Bem. De-veras é de grande confôrto.' E assim têm pensado miríades de homens agonizantes.» (13)

«Não continue turbado o vosso coração: credes em Deus, crede em mim também.» Não desliguemos as palavras do contexto anterior. O nosso confôrto não vem de nossa constância, mas as nossas fraquezas inconstantes não constituem justificação de pessimismo, mau humor ou amargura. Com o mesmo Pedro que o negou e pranteou amargamente em voz alta, Jesus fêz várias reuniões preciosas, fêz por sua sugestão um novo apóstolo e fêz a glória do Dia de Pentecostes. Não sei de coisa mais urgente do que nas horas negras de nossas falhas haver quem nos diga compassivamente: «Não continue turbado o vosso coração. Cre-des... crede.»

(12) "Epochs in the Life of Sinzon Peter", p. 121, por A. T. Robertson. (13) "Contmentary on the Fowr Gospels", Vol. 3, p. 240, por David Smith.

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A tradução pode ser «Credes em Deus e credes em mim», ou «Cre-de em Deus e crede em mim», ou «Credes em Deus: crede em mim tam-bém», ou «Crêde em Deus e (assim) credes em mim.» E' bem forte a ênfase sôbre a fé em Cristo — «crede para dentro de mim». E' com o coração que se crê e de novo Cristo quer que a fé resida no âmago da personalidade, nas veras da alma, em interpenetração, intercâmbio, au-xílio mútuo — pois na margem de Getsêmane Jesus anhelava profunda-mente pela fé dos apóstolos. E' um apêlo que nos causa dó ouvir, é uma quase súplica: «Crede em mim.» Entrai em íntima união e compreensão e simpatia comigo, crendo. Acho, pois, que o segundo uso do verbo crer é imperativo — a forma grega é a mesma para o indicativo ou o impe-rativo. Jesus manda, em beneficio dêles na sua negra hora de perple-xidade, e suplica a fé na sua hora ainda mais dolorosa. E' «Crede em mim» que êle ordena e pede. Da palavra «coração», o Dr. A. T. Ro-bertson diz: «Não é o órgão físico da vida (Luc. 21:34) mas a sede da vida espiritual (a alma, o espírito), o centro de emoção e fé (Rom. 10: 10), o foco da vida religiosa (Vincent), assim como em Mat. 22:37... Jesus sabia o que era a experiência de ter um coração turbado (11:33; 13:31) e o mesmo verbo é usado com referência a êle. Evidentemente, os corações dos discípulos estavam agitados como ondas numa tormenta. por causa das palavras de Jesus em 13:38.» (14)

«Credes em Deus». «Eu, quanto a mim, escolho. Determino crer em Deus» (De William James) . «Ver o mundo debaixo da grande abó-bada do propósito de Deus, isso é felicidade e religião» (Do Professor Hocking) .

«Se credes, crêde resolutamente como quem faz penetrar sua es-pada até ao punho. Aquêle que crê o que crê, verá o que verá. Creia-mos, pois, sem medida e sem reserva. Façamos depender nosso tudo da verdade de Deus.» (15)

«Crêde em Deus e em mim estais crendo» é a versão siríaca antiga da passagem. E' possível essa idéia, pelo fato de que a palavra grega é a mesma para crêde e credes. (E' o mesmo problema que surge ao tra-duzir: Examinai as Escrituras, ou Examinais... ). Seria uma declaração do mesmo teor daquela outra: «Quem me vê a mim, vê o Pai.» Ensina-ria que fé genuína em Deus envolve fé em Jesus Cristo.

«Crêde em mim.» E' para continuar na crise, renovar, na supre-ma provação, a fé que sentiam em Jesus desde os dias de João Batista. «Continuai a crer em mim» — para dentro de mim. Haja intercâmbio de personalidades, interpenetração espiritual. «O apóstolo se refere a Jesus, que é o objeto verdadeiro da fé..., Jesus como Filho de Deus, Jesus como de uma só natureza essencial com o grande Pai; não mera-

(14) Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 248, por A. T. Robertson. (15) "The Treasury of the New Testament", Vol. II, p. 73, por C. H. Spurgeon.

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mente um em caráter moral, mas um em caráter ideal, de modo que êle é divino, e assim, é capaz, por exemplo, de ressuscitar-se dentre os mor-tos e subir à glória, poderoso para salvar completamente mesmo o principal dos pecadores que lhe escute a voz quando lhe diz: Vem para mim, e assim põe nêle a fé. E' Jesus como êsse Filho de Deus em quem vemos a imagem expressa do Pai.

«Nossa fé atravessa estas etapas que o pensamento cristão se de-leitou em discriminar: Credit Christum; acredita que êle é o mesmo que se revelou ser — verdadeiro Filho do Homem e Filho de Deus, sô-bre todos os seres criados. Credit Cristo; aceita com confiança as pro-messas de Cristo, assim como Abraão creu na palavra de Deus a des-peito de toda sua aparente impossibilidade de realização, iluminando para si o caminho dêste para o outro mundo por essas promessas. Credit in Christum; lança a alma totalmente sôbre sua salvação, des-cansa sôbre sua morte expiatória pela remissão dos pecados e sôbre sua graça pela redenção da escravatura do mal, e aí acha a unidade com Deus que é a vida eterna. Em cada uma dessas etapas nossa fé tem seu acesso por êle (Cristo) ao seio de nosso Pai no céu, e assim a vida espiritual é escondida com Cristo em Deus.» (16) Alguém disse: «Je-sus não confessa sua fé, precisamente como não confessa pecado.»

«Crêde». «Nós não cremos com êle mas em êle. Cremos em êle; e em êle é que temos poder para crer. Êle não é apenas o objeto da fé, mas é o mundo da fé. Êle se torna nosso universo que sente, sabe e nos constitui o que somos.» (17 ) Sobre a fé perene que obtém e acom-panha a vida eterna, vêde as notas sôbre 6:29.

2. «Na casa de meu Pai, há muitas moradas.» O enérgico e brus• co Carlyle, depois da morte da esposa, leu estas palavras e exclamou: «Sim! Se tu és Deus, tu tens o direito de dizer isso. Mas se tu és ape-nas homem, que sabes tu mais do que nós outros?»

O Dr. MacDaniel, autor de «As Igrejas do Novo Testamento», de-clarava: «O mundo além das portas da morte, eu penso, e um lugar muito mais parecido com o nosso lar, para aqueles que lá vão, do que êste mundo é para nós que aqui ficamos.»

Alguns alegam que as muitas moradas são astros para a futura habitação dos homens (em reincarnações sucessivas, segundo espíritas e teosofistas) — teoria que expande a palavra excessivamente; outros limitam-lhe demais o sentido. Alegam que se trata de novos corpos que recebemos imediatamente depois de morrer, como invólucros para nos-sos espíritos, tornados incorpóreos na morte aqui. Alguns interpretam II Cor. 5:1-4 no mesmo sentido. Acho muito mais sensata e prová-vel essa teoria do que a interpretação que declara ser «a casa do Pai»

(16) "The Christian Doctrine of Faith", p. 104, por James Hastings. (17) "The Person and Place of Jesus Christ", p. 56, por P. T. Forsythe.

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o universo, e as moradas «astros», exegese absolutamente arbitrária, Contudo, nem precisamos nem temos luz sôbre o estado intermediá-rio de nossos espíritos redimidos. E' melhor deixar esta Escritura em seu sentido figurado geral do que identificar «as moradas» com ou-tros orbes ou com outros corpos. Nela o que se afirma é continuidade ininterrupta de vida.

Que vamos por Jesus, o Caminho, para o lugar onde êle na sua glória se manifesta em seu corpo humano ressuscitado, é certo. Que Jesus chamava a esse lugar, com antecipação e saudade, «a casa de meu Pai» é certo e confortador. E que lá somos benvindos, e gozamos a hospitalidade — estamos em casa ali, em nossa casa, com nossa fa-mília «nosso Pai», nosso Senhor e Salvador, isso sim é a verdade. E' melhor gozar as relações pessoais com Pai e Filho, no lugar onde esta-remos «em casa» com êles e os domésticos da fé, do que confecionar uma nova astronomia celeste em nossa imaginação, ou uma nova fisio-logia celeste, de nossa autoria. Nem astros nem corpos estão no hori-zonte dêste versículo. O Pai, o Filho, nós, moradia, boas vindas en-chem a paisagem. Pois enchem nossa visão e fé também. Basta.

«Moradas». . . «lugar» . . . «para que onde eu estou estejais vós também.» Se continuarmos assim até que Jesus termine a declaração de seu propósito, nos livraremos de falsas doutrinas. Os espíritos e teosofistas querem destinar-nos a alguma estrela distante, até voltar-mos em outra encarnação. Mas Jesus nos destina a permanecer com êle no centro do universo, onde êle exerce sua soberania sôbre o mesmo uni-verso. Não importa onde. E' para ali que vamos. E' lugar, e será nossa moradia, e êle será nosso companheiro.

Também há intérpretes cristãos que insistem em que «moradas» sejam apenas pousos para a noite, etapas em uma jornada, como os ranchos do vaqueiro no alto sertão. Mas não concordo em que a vida celeste seja alto sertão nem que nossa morada celeste seja rancho. E' a casa do Pai. E' morada permanente, eterna, de Jesus. Êle nos pre-para hospitalidade com a família de Deus.

A palavra vertida por morada é da mesma raiz que o verbo per-manecer. Poderia significar uma permanência breve, mas a idéia de permanecer está implícita na raiz. E é o retrato geral que João nos his-toria na sua revelação. Êle assim descreve os mortos benditos: «Bem-aventurados os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, para que descansem de seus labôres (as fadigas de traba. lho aqui nesta vida) ; porque as suas obras os acompanham.» O que fazíamos no serviço de Deus, nossa capacidade, caráter, dons, persona-lidades santificadas e enriquecidas, experiência cristã, e os frutos de nosso afã vão conosco para a eternidade. Seremos o que fomos e somos em Cristo, em grau celestial e na glória. Não se pense em «progresso» no céu como envolvendo imperfeições, uma peregrinação infinda para

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 46

a qual Jesus apenas dá um rancho ou pouso noturno. Não há noite ali. E' um dia eterno de trabalho sem cansaço. Nossas «obras nos acompanham». A residência é eterna. E seremos «os justos aperfei-çoados». Bani da mente tôda e qualquer teoria que negue, mesmo por insinuação leve, estas verdades elementares e fundamentais da vida de Jesus.

«Na casa de meu Pai há muitas moradas.» Como os espíritas que-rem invadir o cristianismo e apoderar-se dessa fortaleza do espírito hu-mano, para seus fins partidários, assim o clero romano também, para seus fins de caiação sectária. Desejam sugar dessa Escritura um con-fôrto apostólico que sua doutrina do purgatório repudia formalmente. Diz a Versão Franciscana com Notas, do Dr. José Basílio Pereira: «Jesus exorta os discípulos a terem plena confiança em Deus Padre e nêle. No reino de Deus há lugar para muitos: Jesus entrará primeiro, e depois virá tomar seus escolhidos e os fará entrar. Se poucos fossem os lugares a preencher pelos escolhidos, Jesus, que amava tanto aos seus, não o teria dissimulado.» (18) E o purgatório? Teria Jesus «dis-simulado» ou tergiversado ou deixado em dúvida seu povo sôbre o pur-gatório, se existe tal lugar? Como podem os franciscanos roubar o confôrto dessa Escritura em que eles não crêem um instante de sua vida? Seriam herejes, diante de sua própria doutrina de purgatório. Aqui alegam que a «entrada dos escolhidos» é no «reino de Deus» onde Jesus entrou. Mas o purgatório, então? Não é suficiente para turbar o coração? Não é para onde vão os bons franciscanos quando mor-rem, e os bons papas e as boas freiras? Como podemos acreditar na veracidade de Jesus se existisse purgatório e êle o «dissimulasse», não falando uma só sílaba de semelhante tormento?

A êsse confôrto evangélico, hereticamente roubado pelos francisca-nos, comparai a real crença dos romanistas, no mesmo livro, p. 21, sô-bre o mandamento de Cristo de reconciliar-se alguém com o adversá-rio depressa, nesta vida, antes que êle «te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao ministro, e sejas metido no cárcere». Não há em tal Escri-tura nem menção nem vislumbe de sugestão da morte, do purgató-rio, da vida além-túmulo ou de coisa semelhante. Contudo os francis-canos têm a audácia de afirmar: «Estas palavras de Cristo provam claramente a existência do purgatório, pois êle refere-se a um lugar em que depois desta vida se recebe um castigo temporário, e onde se expiarão aquelas faltas, mesmo leves, que não tenham sido perdoadas na terra.» Qual prova? Qual clareza? Qual purgatório? Qual referên-cia nessa passagem a lugar algum «depois desta vida»? Quais «faltas veniais»? Nada disso está na passagem, de maneira nenhuma, por mais remota que seja. Na Palestina, os homens eram lançados no cár-

(18) Vol. I, p. 390.

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cere até pagarem as dívidas. Jesus os exorta, pois, a conciliar o credor em lugar de provocá-lo com irascível controvérsia. E' melhor inter-romper o culto no templo e cuidar da reconciliação com um judeu ir-mão, do que negligenciar isso e cair no cárcere. Tudo trata dessa vida. Nem a morte nem o purgatório nem a expiação nem os supostos peca-dos «veniais» recebem menção nem estão no horizonte da passagem in-teira. A temeridade de meter tudo isso indevidamente nessa Escritu-ra simplesmente mostra a completa incompetência dêsse suposto ma-gistério infalível para a mais elementar interpretação da Bíblia. E' outra caiação católica sôbre a formosura e pureza do evangelho.

Ao real confôrto de João 14:3, os franciscanos dedicam estas pou-cas palavras: «As palavras virei outra vez não aludem à última vinda de Jesus Cristo no fim dos tempos, como pensam alguns intérpretes, mas ao acolhimento amável que fará a cada um de seus amigos, no momento da morte deles.» Boa doutrina. Mas não é doutrina do roma-nismo. Diante dêsse sistema, é heresia e mereceu anátemas, nos credos medievais. O purgatório é «acolhimento amável>) ? Não desejo seme-lhante amabilidade. Vêde as obras de arte nos templos mais famosos do romanismo com damas nuas nas chamas do purgatório, e muitos pa-dres ao seu lado. E a Virgem com ternura, diante de Jesus que tem ar de ju'z, arrasta das chamas uma vítima, de acordo com o dinheiro que cair no cofre em baixo.

Para justificar essa fábula pagã, os franciscanos dizem ainda: «E' certo e de fé que no céu não entrará quem não estiver limpo de tôda a culpa.» (A infidelidade do clero é em não acreditar que «o sangue de Jesus Cristo, seu Filho, nos purifica de todo o pecado» e que «o sangue de Cristo que pelo Espírito eterno se ofereceu sem defeito a Deus puri-ficará a nossa consciência de obras mortas», Heb. 9:14. Tal paganismo riem é «certo» nem é «de fé», mas é a pior infidelidade e descrença das palavras de Jesus Cristo.) «E' certo e de fé que no céu não entrará quem não estiver limpo de tôda a culpa, e é também certo que não será condenado por tôda a eternidade quem só tiver culpa leve.» Ora, essa história de culpa leve é outra invencionice clerical. A Palavra de Deus repudia a idéia tendenciosa que visa comercializar a religião, vendendo o perdão de pecados «veniais». Nada que seja pecado é «venial» ou «leve» ante os olhos puros de Deus. Paulo diz: «Não há distinção por-que todos pecaram e necessitam da glória de Deus, sendo justificados gratuitamente... », Rom. 3:22, 23. Tiago diz: «Pois quem guardar a lei tôda e tropeçar em um só ponto tem se tornado culpado de todos», Tiago 2:10. Se é «culpado de todos» os pontos em ter violado um só, como haverá «culpa leve»? Não há pecados cuja culpa seja leve. Quem o ensina é cúmplice do réu. E em negar a condenação eterna do incré-dulo, o franciscano de novo nega a veracidade de Jesus. Já em João 3:16-18 Jesus garante a vida eterna de «todo aquêle que crê», tenha

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faltas leves ou pesadas — todos as têm, e bem pesadas, mas o san-gue de Cristo levou êsse pêso ao Calvário e fêz expiação eficaz, de vez e eternamente, pelas culpas grandes e leves. Se o Calvário é suficiente para as grandes culpas, não será também para «as culpas leves»? Os franciscanos abrem nas suas portas um buraco para os gatos e outro buraco para os gatinhos? Onde passa o gato, não passarão os gati-nhos também? Se alguém fica sem a vida eterna que Cristo dá ao cren-te, então será condenado eternamente, embora todos os franciscanos do mundo o neguem. «Seja Deus verdadeiro embora todos os homens sejam mentirosos», exclama Paulo. Inúmeras vêzes neste Evangelho, o crente é declarado ser possuidor da vida eterna e o incrédulo estar condenado eternamente pela sua incredulidade. São as duas classes em que Deus divide os homens e são os dois destinos únicos. Esse de um terceiro é caiação clerical imposta sôbre a verdade do evangelho. Continuam os franciscanos: «Logo há um lugar em que o homem se purifica dos pecados veniais que cometeu e sofre a pena temporal de que se não remiu durante a vida; e êsse lugar é o que a Igreja chama o purgatório, e onde os solváveis pagam suas dívidas até o último cei-til.» (19) Sim, a Igreja (Romanista) diz isso do purgatório, mas Cris-to não diz uma sílaba de semelhante mentira, nem o dizem as igrejas de Cristo. A Bíblia não fala do purgatório, nem sôbre êle doutrina ne-nhuma vez. Não há mais razão de meter a palavra purgatório aqui onde Cristo disse cárcere do que há de torcer João 3:16 de modo a ler: «Deus amou o mundo de tal maneira que deu Maomé para que todo o que o siga não pereça mas tenha um harém eterno lá nos céus.» O pur-gatório está tão completamente fora do Sermão do Monte como Mao-mé e o harém sonhado pelo guerreiro muçulmano está fora de João 3:16. Quem «acrescenta» uma coisa e outra à Palavra de Deus recebe a maldição do Apocalipse e de outras Escrituras que proibem mudar o que Deus diz.

Fala-se aí que êsse homem de «culpa leve», «pecados veniais», «se remiu, durante a vida», de alguma coisa? De que foi? Cristo puri-ficou de «todo o pecado» (I João 1:7) . Deu «eterna salvação» (Heb. 5: 9) . Deu o dom de «vida eterna» (Rom. 6:23). Ele obteve para nós «eterna redenção» (Heb. 9:12) . Paulo afirma: «aos que chamou, a êstes também justificou, a êstes também glorificou», Rom. 8:30. Não faltará nenhum, sejam leves ou graves seus pecados. Aliás todo o pe-cado é grave, e o único remédio é o Calvário onde Cristo levou os nossos pecados — graves e veniais — em seu corpo no madeiro, os expiou e nos salvou, «TODOS» os crentes, eternamente. Notai essa palavra suspeita, feia, incrédula «solváveis». Significa: «Quem tem com que pagar.» Essa é a mentira maior dos séculos. E' negação categórica

(19) Vol. I da referida Versão Franciscana, p. 21

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mais outra vez da veracidade de Jesus. Na sua grande parábola da gra-ça êle diz: «Certo credor tinha dois devedores: um lhe devia quinhen-tos denários e outro cincoenta. Não tendo nenhum dos dois com que pagar, perdoou a dívida a ambos.» Eis a parábola da salvação. Ne-nhum tem com que pagar. A única salvação é de graça, dada ao crente; é eterna, e Jesus a deu à mulher penitente e crente, dizendo: «A tua fé te salvou; vai-te em paz.»

Ainda dizem os franciscanos: «Os protestantes, negando a exis-tência do purgatório, caem num dêstes dois extremos: ou admitem que no céu, o tabernáculo da santidade, pode penetrar o pecador que ainda tem mácula de culpa, embora leve; ou condenam ao inferno até os que tiverem só pecados veniais.» Há um terceiro alvitre a que o frade está cego, aparentemente. E' a salvação pela graça mediante a fé, outorga-da por Jesus Cristo. O crente em Cristo tem a vida eterna. E' justifi-cado uma vez para sempre pela graça. Jesus disse do publicano con-trito: «Digo-vos que êste desceu para sua casa justificado», Luc. 18: 14. A Ep. aos Hebreus assim descreve o efeito jurídico imutável dessa justificação pela fé que é baseada no sacrifício nunca repetido do Calvário: «Pois, com uma só oferta (Cristo) tem aperfeiçoado para sempre aos que são santificados» (separados pela graça divina para pertencerem a Jesus Cristo). O Calvário tem valor jurídico eterno, perfeito e imutável em benefício do crente que pela fé é justificado (de-clarado livre de condenação por Deus) e santificado (separado por Deus para ser de Jesus Cristo). A perfeição do crente é a da justiça de Cris-to, imputada a nós, como nossos pecados foram imputados a Cristo, Rom. 4:3, 5, 8, 13, 22, 23, 24; II Cor. 5:19, 21; Heb. 1:3; I Ped. 2: 24; 3:18; Apoc. 1:5; I Cor. 1:30. E' o lado jurídico da justificação, isenção das conseqüências eternas do pecado. Resultado: «Nada de con-denação há para os que estão em Cristo Jesus», Rom. 8:1. E' a salva-ção objetiva. O mérito todo é de Jesus. Não é nosso; mas Jesus é nosso e «é feito para nós justiça». O pecado tem três conseqüências: a condenação da lei de Deus, a corrução da nossa natureza, a parali-zação de nossa vontade de fazer o bem, praticar o dever, obedecer à vontade de Deus. Noutras palavras, «a pena, o poder e a presença do pecado». O Calvário paga a pena de vez. Sendo paga, não tem de ser paga de novo. Somos declarados quites. Fica o poder, porém, do pe-cado. O Espírito Santo opera em nós, diminuindo, vencendo, afastan-do o poder do pecado pela sua dupla obra de regeneração e santifica-ção. Seguimos para o alvo. Fica até o fim da vida, porém, algo da presença do pecado. Mas termina na morte. O crente no momento de morrer é livre da pena, do poder, e da presença do pecado. Como sabemos? Pelo claro ensino da Palavra de Deus. A Ep. aos Hebreus nos deixa ver «a cidade do Deus vivo, Jerusalém celestial, as hostes meráveis de anjos, a assembléia geral e igreja dos primogênitos, que

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são registrados nos céus, e a Deus, juiz de todos, e aos espíritos dos justos aperfeiçoados», 12:22-23. Eram justos pela fé aqui, progressi-vamente justos pelo caráter na santificação aqui e, passando para o céu, se tornaram «justos aperfeiçoados». Sabemos isto pelos cânticos dos redimidos, no Apocalipse. Não há um só que se gabe de méritos próprios, ou de tesouros de méritos eclesiásticos, ou de mérito da igreja ou pelos sacramentos ou pelo purgatório. São puros, sempre e somente pelo sangue do Cordeiro. E ainda sabemos, porque temos uma demons-tração dada no Calvário. Um malfeitor, que era blasfemo na própria cruz, se arrependeu e creu. E' salvo. Não vai purgar seus pecados grandes ou pequenos no purgatório. Sem mérito, sacramentos, igreja ou boas obras vai ao paraíso. Salvo na terra e no céu no mesmo dia. E' amostra dada por Jesus aos séculos. Nem êle entrou no céu, impuro nem teve de ir ao purgatório por culpas veniais . O evangelho procla-ma outro alvitre. Jesus salva na terra. O justo vive pela fé, alcançan-do até a vida eterna. E Cristo o torna um «justo aperfeiçoado» no pa-raíso de Deus, no momento da morte. Com a carne que despiu ficou aqui a carnalidade.

«Na casa de meu Pai há muitas moradas.» Os espíritas e outros in-terpretam essas palavras como significando que há no universo muitos planêtas ou astros habitáveis. Todavia a ciência não confirma essa teo-ria. A reencarnação seria a realização dessa promessa, a alma voltando a êste mundo ou a outro planeta ou astro. Pois bem. Traduzamos assim: «Na expansão do universo no qual Deus habita, há muitas terras, luas e estrêlas. Eu, Jesus, vou preparar-vos uma nova estrêla, terra ou lua, ou adaptar um astro para a moradia dos meus.» Que «casa» esquisita — um quarto de milhão de léguas distante de outro quarto e sem comu-nicação com os outros na «casa»! Isso não é insulto à inteligência?

Será que o espiritismo realmente crê nisso ? Crê que Jesus criou novos orbes celestes? Êle é Deus? Se é, por que os espiritas não crêem na sua Palavra e não confiam na sua obra redentora no Calvário? Se êle não é Deus, como pode preparar um orbe terrestre ou celeste para seus discípulos? Êle vai com o discípulo para a reencarnação nessa nova terra ou estrêla ou lua? Corno sabe que estarão juntos ? Como pode afir-mar que será realizado seu propósito de voltar e levar os discípulos, «para que onde eu estiver vós estejais também»? Jesus, segundo essa teoria, saiu da terra. Fêz nova terra ou lua ou estrêla? A astronomia nos his-toria a criação de novas estrêlas nesses últimos séculos? Notai as via-gens. Jesus vai à casa de seu Pai — mas se essa «casa» é o universo, portanto, já estava onde ia. Todos nós estamos no universo. Mas vai. Ali cria novo orbe celeste ou prepara um para a residência de sêres hu-manos. Volta a esta terra e busca os discípulos. Leva-os para a nova residência, nova encarnação. Desde que êles estarão com êle, então êle também fica ali reencarnado ? Êle é soberano sôbre a criação ou prepa-

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ração de orbes celestiais ? E' o Senhor das reencarnações? E' o guia dos vi vos para a morte e dos mortos para outra vida, em outro mundo material? Parece que o Jesus do Espiritismo vai ser o Deus real, vivo e verdadeiro, para cumprir a interpretação espírita dessa gloriosa pro-messa. Há, porém, várias objeções à hipótese. A vida que nós já temos em Cristo é «vida eterna». Não é uma infinidade de novas vidas em re-encarnações. Logo a interpretação espírita se choca com todo o Evange-lho de que o cap. XIV é parte integrante. Se o crente «tem a vida eter-na», muito mais teria Jesus, de quem procede essa vida. Êle não está sujeito a esses vaivéns e viravoltas da reencarnação, um mito que não está no horizonte nem dessa Escritura nem de todo o Novo Testamento. Mesmo, se o espírita, para usurpar em seu favor essa Escritura, atri-buísse a Jesus veracidade no que diz e poder de fazer o que promete, já teria feito de Jesus um Deus, Criador, Senhor da vida, morte, e reencar-nação. Eles não crêem em semelhante Jesus. Fiquem ali, pois, com Alan Kardec e Conan Doyle e Oliver Lodge. Não venham furtar do cris-tianismo a Bíblia e Jesus, o eterno Verbo, uma vez feito carne para o resgate de nossas almas, agora resuscitado em vida humana glorificada, imutável, sendo êle o mesmo ontem, hoje e para sempre. «Em verdade, em verdade, vos digo: O que não entra pela porta no aprisco das ove-lhas mas sobe por outra parte, êsse é ladrão e salteador.» O espiritismo nada tem com a Bíblia, com Jesus Cristo, com o cristianismo. Não rou-be, pois, nosso Cristo ou nossa Bíblia .

«Na casa de meu Pai há muitas moradas.» A palavra casa descreve, não um prédio material, mas a felicidade doméstica de Pai e Filho, Ir-mão e outros filhos. O acolhimento que esperava o Filho unigênito não seria para êle só . Êle mesmo cuidaria que fôsse estendido aos seus no-vos irmãos que nunca viram êsse lar celeste. Iria preparar para êles lu-gar na sua companhia eterna. Analisemos os elementos da promessa e suas verdades. 1. Jesus nos assevera a realidade invisível, além do véu que separa a nossa vida atual e as fases da nossa «vida eterna» que se estendem além do túmulo. Pai, Filho, residência localizada onde se mani-festam a anjos e santos em luz são realidades. Credes em Deus pressu-põe essas verdades. 2. Não há nuvem no horizonte de Jesus a respeito dêsse mundo que, de nosso ponto de vista na carne, chamamos o mundo dos mortos. Sheol, Hades, céu, paraíso, seio de Abraão, Nova Jerusalém, etc. Ele está cônscio de sua residência ali antes da incarnação, da gló-ria daquele estado eterno que lhe cabia por direito, e se considerava como autoridade naquela esfera, para oferecer seus cômodos e sua hospitali-dade aos seus discípulos. Estêvão o viu «de pé», como cortês hospedei-ro pronto a recebê-lo imediatamente na sua presença. Aqui êle estende um convite para sua hospitalidade eterna aos convivas que com êle co-miam o pão. 3. Qual a natureza dessa preparação que Jesus ia fazer? Ele não explica. Na verdade figurada no templo, êle ia penetrar no San-

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to dos Santos para fazer expiação dos nossos pecados com seu sangue. Esta expiação remove toda a contaminação que o pecado de anjos caídos e homens caídos fêz na ordem do próprio universo, retificou o desarran-jo causado pelo pecado, Heb. 9:23; Rom. 8:20, 21, desinfetou juridica-mente o universo contaminado. O Calvário é seguido pelo eterno sacer-dócio de Cristo. Ele «sempre vive para fazer intercessão por nós». O céu não é um regime material, logo não se trata de conserto, expansão ou remodelação de apartamentos, ao pé da letra. A nossa salvação não está completa quando cremos — uma parte ainda é futura. Cabe a Cristo essa preparação no céu. Cabe ao Espírito a parte na terra. Ambos in-tercedem, o Espírito com gemidos indizívecs. A justificacão, o perdão, a adoção, o galardão e a glorificação do crente são atos e planos concebi-dos e realizados lá no céu. São parte do processo pelo qual Jesus prepa-ra lugar para os seus ali enquanto o Espírito nos prepara aqui, pela re-generação e santificação, para nossa residência lá. Todo o trabalho da Trindade na salvação é urna necessidade eterna para a própria Trindade. Perdoar e salvar não é fácil, para o próprio Deus. Jesus «ainda traba-lha» como trabalha o Pai. 4. A ênfase no grego está sôbre «muitas». Não é só Jesus que tem lugar na família de Deus. São muitas, muitas mesmo, as celestes moradas. «Moradas muitas há», diz o original. 5. Essa palavra morada pode significar pouso, rancho. Portanto, alguns con-sideram que é figura da peregrinação. Quando eu resolvo ir a uma ci-dade, telegrafo antes e reservo cômodo no hotel, ou peço a um amigo para me preparar lugar ou Dor meio de alguma agência de turismo, con-trato o lugar que desejo. No Oriente, alguém ia adiante da caravana e arranjava os pousos. David Smith diz: «A intervalos, nas estradas reais, havia caravançarais onde os viajantes se alojavam. Nas épocas festivas, porém, acontecia às vezes, que os caminhos eram transitados por multi-dões e um viajante chegaria ao portão, sômente para ouvir que nenhum cômodo havia e ele teria de caminhar mais adiante. Há mais de trin-ta anos um viajante chegara assim a um caravançarai perto de Belém, acompanhado pela esposa, que estava para dar à luz. As dores de parto lhe sobrevieram e. todos os cômodos estavam tomados, ela teve de deitar-se no páteo no meio dos jumentos, bois e camelos. Aí deu à luz seu Fi-lho primogênito e deitou-o numa mangedoura porque não havia lugar para eles no caravançarai. E' a origem da ilustração de Jesus. Os discí-pulos são peregrinos. Ele os alegrara com seu companheirismo pelo ca-minho da peregrinação. Agora ele precisa deixá-los. Mas não os aban-donava. Apenas se apressava para prepar-lhes pouso, ao chegarem no fim da jornada.»

Smith tem razão em dizer que a palavra vertida morada tinha êsse uso. Mas é claro, certo, inegável, inconfundível, que não o tem aqui. São moradas» «na casa» do Pai de quem fala. Não é possível aplicar o ter-

mo a ranchos no sertão da vida onde o viajante passaria uma noite quase

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sem abrigo. E' o fim da peregrinação — «em casa», afinal. E Jesus se faz para o crente o que João Batista se fizera para êle. O Filho, nosso irmão, se fêz «o Precursor» para nós — esperança viva, «a qual temos como âncora segura e firme da alma, e que entra também no interior do véu, aonde Jesus, corno Precursor, entrou por nós, quando se tornou sumo sacerdote, para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque», Heb. 6:19-20. João preparou para Jesus um povo. Jesus é outro Precursor que prepara em benefício de seu povo larga recepção, amplo lugar, mo-radia eterna, do véu para dentro, no Santo dos Santos do universo, na desvendada presença de Deus Pai, Filho e Espírito Santo.

Não vem ao caso aaui, pois, a possível significação de rancho ou ca-ravançarai. O substantivo e o verbo permanecer vêm da mesma raiz. Jerônimo usou a palavra latina mansionibus a respeito das paradas dos israelitas no deserto de Arábia. Mas tal deserto não é figura do céu. E' inepta a comparação. Jesus nos receberá «em casa», não em deserto inhóspito. E' morada eterna. 6. Jesus é franco. Ele não deixará que a morte para nós seia como foi o nascimento para êle — a chegada sem boas vindas, sem previsão, sem cômodo, sem descanso. Seremos hospe-dados na melhor casa deste universo, onde Jesus mesmo achou cômodo depois da morte.

Ele nos diz que seria franco. Se ainda restasse um outro mundo, com o nome de purgatório, onde haveriam os crentes de passar meia eternidade em meio inferno, purgando nossos pecados, êle nos teria dito. Se nada nos avisou da existência do purgatório, é poraue não existe tal lugar mitológico. E' invencão clerical para ganhar dinheiro, cantando missas a fim de tirar almas de um lugar onde não estão.

Se Jesus foi e nos preparou lugar para estarmos com êle, que desi-lusão seria para nós cair no purgatório. De fato, nessa hipótese Jesus nada teria preparado senão mais dor. mais fogo, mais calamidade, mais perdição. Nem vale nada o que já fêz no Calvário. Seu sangue não é capaz de nos purgar. Temos de onerar nossa própria purificação pelos nossos próprios sofrimentos. O Calvário foi um fracasso. Mas, onde o Calvário fracassou, nós teremos êxito, nos purgando a nós mesmos no purgatório. E' a lógica da teoria. E' afronta ao Salvador crucificado.

Sem uma sílaba sequer de autoridade na Palavra de Deus, sem uma revelação sôbre o assunto, a Igreja Romana impõe êsse mito pagão sôbre sua grei e a escraviza por esta vida e mais outra, Jesus nos promete coisa bem diferente. Seu sangue «nos purifica de todo o pecado» — não resta nada para o purgatório purgar, mesmo se existisse. Os justificados tam-bém são «glorificados». Nós nos unimos à companhia dos santos em luz, aos «justos aperfeiçoados». Oh, se assim não fôra, Jesus nos teria dito com tôda a franqueza. Ele foi preparar-nos lugar. E o lugar não é o maldito, mitológico e explorador mundo clerical do purgatório. E' a

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casa do Pai e a camaradagem de Jesus. Crêde na veracidade de Jesus e descrereis do purgatório e de todas as mentiras semelhantes.

7. «Voltarei.» E' promessa da segunda vinda ou da vinda de Jesus ao crente na hora da morte? Talvez ambas as idéias estejam aí' incluídas. E' característico da profecia que lhe falta perspectiva. A distinção não estava nitidamente no horizonte dos discípulos, nem eram ainda capazes de entender todo o alcance da promessa. O início de seu cumprimento se verifica na ocasião da morte do crente, mas sua consumação é na res-surreição final e no estabelecimento da ordem eterna por Cristo, como Juiz sôbre os povos.

Há outra Escritura que nos ensina que na morte Jesus vem bus-car o crente e que volta a nós em nossa agonia? Sim. Enquanto Jesus estava aqui no mundo êle representou Abraão como o hospedeiro no céu. Os anjos vieram buscar Lázaro e êle reclinou-se, como hóspede de honra, sôbre o seio de Abraão, no banquete da sua recepção de boas vindas no céu, privilégio igual ao que João teve na Ceia que Cristo deu na véspera de sua paixão. A morte de Estêvão é narrada como uma transação entre êle e Jesus, diretamente. Jesus tirou o véu, aniquilou os espaços, vê-se de pé à dextra de Deus. Estêvão, no meio das pedras que caem, se acha à porta da sala, do trono do universo e pede: «Senhor Jesus, rece-be o meu espírito.»

Isso está de acôrdo com outra palavra de nosso João, em seu Apo-calipse. Jesus ali é apresentado como o Chaveiro do destino humano: «tenho as chaves da morte e do Hades.» E' outro mito insolente e in-crédulo do romanismo a fábula de que Pedro tem as chaves da entrada do céu. Jesus, na sua última revelação, diz: «Eu tenho as chaves.» E' o Chaveiro. Abre a porta da morte para nós e nos dá nossa entrada no Hades, o mundo dos mortos (no nosso ponto de vista terreno). Acho que Cristo volta para buscar o crente. E' o Pastor de nossas almas e nos guiará todo o caminho, inclusive no vale da sombra da morte. Para Pau-lo «o partir» é «estar com Cristo», Fil. 1:23. Nenhum passo da jorna-da faz a sós. «Eu nunca te desampararei», é a promessa, e inclui a mor-te. Num mundo onde nossas leis físicas não regem, vir e voltar são ter-mos relativos. A concepção mesmo da Segunda Vinda de Jesus é sua parousia — «presença». Pois é o que vemos na morte de Estêvão e na esperança de Paulo e João — a presença de Jesus na agonia e na morte do crente. Sendo presente, «vai» com êle à casa do Pai.

Há um certo ciúme pela «Segunda Vinda» de Jesus, no pensamento de alguns intérpretes da Bíblia, e é tão forte que não toleram qualquer outro sentido para a palavra vir ou voltar senão a vinda majestosa, pú-blica, gloriosa, final que rematará esta era da história do universo. Essa intolerância, porém, é intolerável. Não há possibilidade de negar que em vários sentidos Jesus prometeu vir e voltar. Teremos logo a exposi-ção dessas promessas em 14:18, 23. João declara que Ele prometeu vir

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às igrejas, para castigá-las, Apoc. 2:5, 16. Essas vindas para comu-nhão, disciplina, ou conforto são «vindas» de Jesus que se verificam cada dia na vida de seu povo. Estão de acordo com a promessa de Deus à Sara, Rom. 9:9 — «Por êste tempo virei e Sara terá um filho.» Deus veio com providências benéficas ou destrutivas na época patriarcal: Cristo «vem» assim agora. Pois bem. A sua vinda final é o zênite de uma série infinda de vindas. A Bíblia nunca fala da «segunda» vinda de Jesus — nenhuma vez, embora Heb. 8:28 tenha linguagem que justi-fique a frase entre nós. Mas o Novo Testamento ensina muitas e cons-tantes vindas de Pai e Filho e Espírito Santo e nós nesta vida, na mor-te e na parousia final. Não rejeitemos ou odiemos, pois, o confôrto de João 14:1-3. E' poderoso para a vida e para a morte.

«Há muitas moradas no céu correspondentes aos diversos graus de merecimentos de cada um», diz J. B. Claire, na Versão da Pia Sociedade S. Paulo. Nada mais falso oue isso. Que lugar teria o malfeitor que Jesus salvou na cruz e levou consigo ao paraíso — que lugar teria êle no céu na base de merecimentos? Semelhante linguagem revela uma deter-minação de não crer nem no caminho que Jesus é. ou na verdade do evan-gelho que êle pregou ou na vida eterna pela graça que êle outorga.

«Mansões». «Decerto foi isto que tu, Senhor, significaste pela pre-paração daquelas mansões, que o justo viva pela fé. (Como quem confia num Senhor ausente, mas ativo onde está, em nosso benefício.) Que o Se-nhor vá e fique escondido para que a fé seja real. Assim, Senhor, pre-para o que estás preparando, pois tu estás nos preparando para ti mesmo, porquanto estás preparando um lugar tanto para ti em nós mesmos como para nós em ti.» (20)

3. «Virei outra vez.» «Não é seu segundo advento, mas a hora da morte, a qual é, para o crente, a ocasião de uma visita do seu Senhor para levar seus servos para casa, a fim de que onde êle está seu servo esteja também... A esperança de imortalidade é instintiva no seio humano; e, se fosse ilusão, êle não lhes teria permitido ainda acariciá-la... A fé em Deus não é suficiente; pois é possível crer em Deus e descrer da imortali-dade da alma como a história da religião e da filosofia demonstram. Não é suficiente, pois, crer em Deus. Precisamos crer em Deus por Cris-to. (21)

«E se eu fôr e preparar-vos lugar, venho outra vez e vos tomarei para meu lado, face à face comigo, a fim de que onde eu estiver estejais vós também.» O Dr. A. T. Robertson pensa que é promessa da segunda vinda de Cristo mas que é cumprida, primeiramente, na ocasião da morte de todos os crentes que não viverem até a volta final do Salvador ao mun-do, no fim.

(20) Comentário de Agostinho siibre este Evangelho, II, 249, Versão de J. Gihbs. (21) "Comentary on the Foto- Gospels", Vol. 3, p. 246, por David Smith

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Vs. 2, 3, 4, 5, 6, 12, 28; 16:5, 7, 22-23. «Vou». Notai a simples de-claração de rumo, de partida, de destino, tantas vêzes repetida na inti-midade daquela santa hora. Ir, vir, voltar, ver — que soma de revelação está nesses quatro curtos verbos, nestes quatro capítulos. James Moffatt diz: «A Paixão não é nenhum curso de desleixo. E' escolha, de olhos abertos. E' avanço real.» (22)

4. «Sabeis o caminho...» «A fase mais extraordinária de suas pa-lavras, em suas relações com a última noite, ... é sua calma decisão com que tomou para si a absoluta autoridade de interpretar Deus e de co-mandar as atividades do Espírito Santo. Êle nos diz a natureza, os ideais, os planos, os propósitos de Deus com uma finalidade que não trai nenhum sentido de ousadia, ou presunção na sua parte. Êle até diz: Quem me vê a mim vê o Pai.» (23)

5. «Não sabemos para onde vais. Como saberemos o caminho?» Alvo e meios, porto de destino e escala, meta e carreira, goal e plano, ru-mo e etapas da jornada são coisas intimamente relacionadas. Um líder precisa ter todos em mira. E dificilmente nos inspira lealdade a respeito do objetivo último se não evidencia que êle, pelo menos, sabe as medidas práticas para alcançá-lo. Em Jesus podemos confiar cegamente, pois te-mos a dupla certeza de que êle sabe seu rumo e o nosso, e todos os meios e todas as dificuldades. Mas os líderes humanos não nos peçam fé cega. Não há magistério infalível ou absoluto, e todo o fingimento nesse sentido é usurpação das prerrogativas do Senhor Vivo, é insolência con-tra seu povo. Antes aprendam os líderes religiosos aos pés de Jesus. Êle revela para onde vai e o caminho a seguir. Volta ao Pai, via Calvário, o túmulo e a ressurreição. Tudo êle já ensinara tantas vêzes a êsses onze homens. Queria que êles chegassem ao mesmo destino pelo mesmo caminho — a cruz do Calvário e a subseqüente vida triunfante dêle, entronizado no universo. Êle, pois, é o caminho para o Pai — rumo celestial dêle e nosso.

Como podia Tomé dizer que não sabiam nem rumo, nem caminho, nem objetivo, nem meios? Era o esquecimento da incredulidade. Como Pedro, ouviu mas não acreditou, logo não assimilou o testemunho, Mat. 16:22, 23. O que não assimilamos pela fé, olvidamos pela negligência. Outro dia vi uma nova palavra — nova para mim. Insisti em que nunca a tinha ouvido nem visto. Mas uma vez assimilando seu significado e in-corporando-o na memória e no vocabulário prático, eis que deparo com a mesma palavra em literatura que já havia lido e descubro que era palavra relativamente comum. Sómente nos lembramos daquilo que assimilamos. O ensino de Jesus fora amplo, mas êle o renova e amplifica cada vez mais. Há muita incredulidade nos crentes. Há dois casos aqui em seguida. Tomé supõe nada saber nem do rumo, nem das etapas de Jesus na carreira

(22) "Introduction to the Literatura of the New Testament", p. 526. (23) "The Self-lnterpretation of Jesus", p. 158, por W. O. Carver.

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messiânica. E' a ignorância de não crer. Felipe quer «ver o Pai». E' a ignorância de quem não sabe que tesouro tem. Quer voltar à madru-gada no dia da revelação, alegrar-se com a estrêla, e não com a luz do sol, ver uma revelação antropomórfica, fugaz, feita e desfeita num ins-tante. E eis que tem o próprio Jesus como Amigo, Mestre e Guia todos os dias do seu apostolado. Incrível encredulidade. Westcott diz: «Filipe creu sem confiar, Tomé sem esperança.» (24)

«Como?» «Todo o esqueleto dêste capítulo é uma série de pergun-tas e respostas. Indubitavelmente o discurso é leal aos fatos e as pró-prias palavras são leais à verdade.» (25) O mesmo autor pensa que temos nesse intervalo o resumo de uma série de pequenos discursos por umas duas horas.

Quantas vêzes surgiu essa pergunta: «Como?» João mesmo his-toria uma dúzia de ocasiões em que Jesus ouviu essa palavra duvidosa, espantada ou queixosa. E o Mestre fêz a mesma pergunta aos homens. Fiz agora um estudo prolongado sôbre o intercâmbio de perguntas en-tre Jesus Cristo e os homens. Estes lhe dirigiram 107 perguntas; mas o Salvador, por sua vez, fêz 195 perguntas, no seu ministério, que nos são preservadas. E, neste simples terreno, a mente de Jesus, julgada pelas perguntas que êle fêz, é tanto mais alta do que a mente humana decaída quanto o céu é mais alto do que a terra. As perguntas dos ho-mens podem ser sinceras, argumentativas, evasivas, hipócritas ou me-ramente curiosas, ociosas e futilmente curiosas sôbre a operação divina que não é da sua conta nem à altura de sua compreensão. As perguntas de Jesus tocam nas grandes realidades do universo, ou são provocado-ras da mentalidade investigadora ou são defensivas. Sempre encer-ram matéria de valiosa revelação ou disciplina. Êle começou sua vida investigadora aos doze anos de idade, fazendo perguntas e dando res-postas no templo, na roda dos doutores da Lei. E, perante o Sinédrio, êle queixou-se, na sua última hora no templo: «Se eu vo-lo disser, não o crereis; e se eu vos interrogar, não me respondereis», Luc. 22:68. Trazei vossas perguntas a Jesus, pois na sua divina revelação temos tôda a verdade que precisamos ou podemos saber e assimilar. Mas de-morai-vos para ouvir as perguntas de Jesus, pois são de mais valor para vosso espírito que a vossa própria curiosidade.

6. «O Caminho, a Verdade, a Vida». O prof . W. O. Carver diz: «Os primeiros onze versículos do cap. XIV, especialmente, salientam a necessidade de aceitar a Jesus como o verdadeiramente completo, úni-co representante de Deus Pai, para a humanidade. Se cremos em Deus, precisamos crer também em Jesus. Êle é o caminho para Deus, o ca-minho de Deus, o caminho de um homem piedoso. Se alguém quer sa-

(24) "The Gospel According to St. John", Vol. II do Comentário, p. exlix. (25) "Messages of the Bible", in loco, por J. S. Riggs.

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ber o que é um verdadeiro homem em caminho para Deus, ei-lo aqui. Ele é a Verdade de Deus, do homem, da religião, do dever, da interpre-tação do universo. Se alguém quer aprender a pensar de acôrdo com a verdade, que aprenda a pensar conforme a íntima consciência de Je-sus de Deus, do universo, do pecado, do destino. Ele é a Vida, a vida de tudo que vive, a vida eterna de todos que viverão. Não é com ciú-me exclusivista que êle exclama: 'Ninguém vem ao Pai senão por mim', como se não desejasse que outros achassem o caminho, ou o palmi-lhassem pelo auxílio de outro. E' porque somente êle conhece e mostra o Pai; pois não há salvação em nenhum outro.» (26)

«O caminho, a verdade, e a vida». «Sem o caminho não se vai. Sem a verdade, não se sabe. Sem a vida, não se vive» (De Tomás à Kempis).

Um guia africano, quando um missionário novo perguntou a res-peito do caminho que teriam de seguir através da selva, apontou cal-mamente para si mesmo e disse: «Eu sou o caminho.»

Uma senhora aristocrática da índia, crente na religião Budista disse: «Buda é uma janela, Jesus é uma janela e Maomé é uma janela e o sol brilha por tôdas elas.» Seu intérprete, um cristão da tribo parsi, replicou: «Sou obrigado a discordar. Jesus não é mera janela. E' o sol que brilha nas janelas abertas.» (27)

«Eu sou o caminho.» «Qual a condição mais indispensável para o Progresso moral? E' que saibais qual o caminho a seguir. Se estais sempre mudando de direção, nunca progredis, e eis aí a razão por que os últimos cinqüenta anos têm sido tão estéreis, no sentido de qualquer progresso político eficaz. E' porque tanta gente está sempre mudan-do de direção.» (28)

«Caminho». Vede a nota sôbre 1:51, em relação aos anjos «subin-do» por Jesus, e a discussão de 10:9, onde Jesus faz uma declaração con-gênere: «Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim, será salvo; e en-trará, sairá e achará pastagem.» Jesus não é apenas o ponto de partida na salvação — é tôda a estrada real, até a casa do Pai lá no céu. Não é a fase inicial; é a salvação inteira e eterna. A ovelha entra por êle, é salva por ele e nele tem sua vida diária com Deus. Jesus não é uma tabuleta nas encruzilhadas da vida apontando a direção ao peregrino isolado. Ele é o caminho todo em que o peregrino anda, o Pastor que o guia, o Amigo que o acompanha, a Verdade que o orienta, a Vida que êle vive na terra e no céu. Temos de verter em termos de personali-dade tôda essa linguagem em que vemos os valores de Jesus para nós.

«A verdade». «Depois da fé em Cristo crucificado e ressuscitado. talvez o poder nos homens do qual mais dependem, quanto ao futuro

(26) "The Self-Interpretation of Jesus", p. 146, por W. O. Carver. (27) "The Speaker's Ilible", Vol. II sôbre este Evangelho, p. 72. (28) "'Christian Faith and Life", p. 26, pelo arcebispo anglicano, William Temple.

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do bem-estar humano, é uma fé inabalável na verdade» (De F. J. A. Hort). O leitor verá esta palavra chave de João em 1:14, 17; 3:21; 4:23, 24; 5:33; 8:22, 40, 44, 45, 46; 14:17; 15:26; 16:7, 13; 17:17, 19; 18:37, 38 e a discussão de Vidas essas passagens está relacionada com êste magno versículo. E ainda vêde na discussão de 5:19 o fato salien-tado de que Jesus não era nem filósofo nem teólogo, mas o Revelador da Verdade por ser a Verdade.

«Eu sou a verdade.» oftle se comporta como ser divino quando de-liberadamente formula de novo a Lei Divina. Procurai conceber o que significava, para um judeu devoto, tomar a Lei de Moisés e formular de novo seus preceitos.» (29) Realmente Jesus não fêz isso. Ha 2.386 mandamentos do Pentateuco e Jesus não «formulou de novo» nem uma dúzia dêles. Simplesmente ignora a vasta maioria dêles, e, por si mesmo e de acordo com sua Nova Aliança, dá aos seus discípulos a ori-entação de suas vidas. Por estabelecer sua autoridade pessoal sôbre a consciência, sendo êle «o caminho e a verdade», implicitamente êle abrogou todos os mandamentos de Moisés, executados os que interpre-tou mais amplamente e reafirmou. Assim Paulo entende o efeito de sua vida e morte, Col. 2:14. A história, a devoção, a profecia messiânica , a vida santa e heróica, as lições de disciplina, a interpretação da histó-ria que o Velho Testamento nos legou, tudo é apoiado por Jesus. E' precisamente no terreno da lei que êle não apoiou o Velho Testamento.

«Eu sou a Vida.» E' a vida espiritual Vida, o novo nascimento e a vida eterna, raiz e fruto, a Videira de que somos parte integral e que vive em nós em tudo que agrade a Deus em nosso pensamento, caráter e obras. E' outro da grande trindade de títulos de Jesus aqui que é salien-tado em todo o Evangelho. Vêde a discussão de 1:4; 3:15, 16, 36; 4:14, 36; 5:24, 26, 29, 39, 40; 6:27, 33, 35, 40, 47, 48, 51, 53, 54, 63; 68; 8:12; 10: 10, 28; 11:25; 12:25, 50; 17:2, 3; 20:31, e ainda as págs. 57 a 67 do Vol. I. Como na própria Trindade, êstes títulos têm seu valor pessoal e seu va-lor coletivo, um expandindo-se em outro. Jesus é a ressurreição e a vida, a luz da vida, o pão da vida (elemento vital da nossa existência espiri-tual e sua nutrição perene), vida que é a luz dos homens, vida inerente que êle pode emitir, transmitir, fazer viver em outros, vida em abun-dância, o Caminho, a Verdade e a Vida. Cada título do Salvador ajuda outro título a despir-se do material, da roupagem do simbolismo, do ex-terior, e assumir diante de nossos olhos a essência das magnas, infini-tas, eternas realidades de Deus em nós e de sua salvação inesgotável.

o0 princípio fundamental da própria existência do crente é que sua fé está sempre saindo de si mesmo e alicerçando seus, atos de fé em con- ,

(20) "Christian Paia and Life", I). 33, por William Templo..

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fiança no Filho de Deus, e o crente tem o multiforme testemunho disso no seu íntimo.» (30)

«Ninguém vem ao Pai senão por mim.» «Se a morte expiatória de Jesus não fosse de um alcance demasiadamente largo para nossa com-preensão intelectual, seria um fundamento demasiadamente estreito para nossas necessidades espirituais.» (31)

«Ninguém vem ao Pai senão por mim.» «Se tu desejas vir ao Pai, não sejas tardio em amá-lo, pois não é com os pés, senão com os afetos que tu corres. Se tu crês e amas, tu vens enquanto ficas onde es-tás.» (32)

«Ninguém se aproxima do Pai senão por mim.» E' o ultimato do evangelho. Há urna só porta. Quem não entra por Cristo é ladrão e sal-teador, destinado a ser jogado para fora logo que sua identidade fôr descoberta. Há um só Pastor Universal das ovelhas. Ligai-vos a êle, sêde do rebanho espiritual dele, ou não sois ovelhas da grei de Deus. Há uma só Água da Vida: bebei ou perecei. Há um só Pão da vida: co-mei ou sofrei fome. Há um só que é a ressurreição e a vida: crede ou permanecei na morte eterna. Há uma só Verdade:* conhecei-a ou ficai nas trevas. Há uma só Rocha em que fundamentar a esperança e a vida: edificai a vossa fé e vida nela ou cedei ao embate do dilúvio da per-dição. Há um só caminho: ficai nêle, Cristo Jesus, todo o vosso curso de vida cristã e encontrai nêle todos os valores desta vida, ou Deus vos será eternamente inacessível. A divina cidadela só se atinge por uma senda. O caminho único e todo é Jesus. Vêde as notas sôbre 5:23, onde há outra estupenda declaração como esta. Vêde as notas sôbre 4:2 acêr-ca do cristianismo de Cristo em contraste e negação categórica do falso cristianismo do sacramentalismo. Vir para Deus por Cristo é graça e dever. Deus e o pecador se encontram em Cristo, a histórica pessoa de Jesus, o Filho da encarnação, o Sacrifício da paixão redentora, como viajantes que se encontram na estrada e daí por diante andam juntos na mesma estrada. A reconciliação consumada se põe em execução e operosidade por Jesus; êle põe mão divina sôbre nós e mão humana sô-bre o Pai e nos une em amor indissolúvel pela fé; e como Mediador anda com Deus e conosco, sendo também o Caminho em que vamos, a Ver-dade em cuja realidade nos orientamos, e a Vida em que pensamos e agimos e peregrinamos até alcançar a casa das muitas moradas. Por tudo e para todos os fins e para todo o tempo e eternidade, Jesus é o Ca-minho. Por êle, nêle, por via dele nós caminhamos, alcançamos de vez o Pai quando cremos e vivemos nossa vida de diária comunhão com o Pai, orando em nome -de Jesus, chegando constantemente ao trono da

(30) "The Bxpoiltor's Bible", Vnl. sabre I Jeá'o, p. ãl, por Willián Atexander. (31) "The Speaker's Bible", Vol IY àôbré este Evangelho. p. 9. (32) "Comentário de ;4-gostirtho"` sObre este Evangelho, 1, 477, Versão de J. Gibbs.

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graça por Jesus, o Caminho, a fim de achar socorro e alívio na hora da necessidade. Todos os elementos da vida cristã são tráfego espiritual que passa pela estrada real que se chama Jesus Cristo. «Todos os ca-minhos conduzem à Roma», mas há um só caminho para Deus. E' o ultimato do evangelho.

«Por mim», por via de minha pessoa, pelo canal seguro em que se faz tôda a jornada entre a fé e a glorificação, pela avenida tanto da jus-tificação, como da santificação e da glorificação, por aquele que em si é o fim e os meios. Nesta preposição grega dia há tôda uma doutrina, a doutrina do canal em que mana a graça de Deus ao pecador e o trs, fego em sentido contrário também, as orações, a gratidão, as súplicas. a intercessão, a comunhão espiritual, a dependência perene do crente de seu Deus. Jesus é o Caminho longo entre a fé e a glorificação. Êle é o Canal do Panamá que une os dois oceanos da eternidade antiga e a eternidade futura. Êle é o leito do rio da graça e o rio de água da vida que corre.

A idéia sacramentalista, em suas mil formas, concebe do cristia-nismo como uma reprêsa de mérito. E' uma idéia totalmente anti-evan-gélica que foi proibida por Jesus Cristo. Nós somos servos de Deus e Jesus pergunta se o senhor «agradece ao servo, por ter este feito o que lhe havia ordenado. Assim também vós, depois de haverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis, fizemos o que víamos fazer», Luc . 17:10. Assim Jesus demoliu de vez tôda essa suposta reprêsa de mérito. O sacramentalista é um guarda-livros suma-mente esquisito. Êle registra seus pagamentos, mas não registra suas dívidas, que são vastissimamente mais do que o pouco que pagou. F2z as entradas de seu HAVER mas não toma em consideração o DEVE . A suposta reprêsa de mérito dos santos, no caso de todos eles, é um «déficit» pessoal. E quantos déficits somados constituem um saldo? E' totalmente pagã a noção sacramentalista de reprêsa da graça, na base de mérito, com suas águas inacessíveis ao homem sedento, sendo tudo ministrado por uma hierarquia eclesiástica pelo encanamento da Igre-ja, com o homem embatinado ao pé de cada torneira, para cobrar tan-to por gôta. Se existe um anti-cristianismo no mundo, aí está, a ne.- gação em absoluto do evangelho da graça que corre direta e Unicamente por Jesus Cristo para o crente. A salvação vem tanto DE Jesus Cris-to como POR Jesus Cristo, e a verdade de uma preposição é tão essen-cial como a da outra. Vêde ainda a verdade revelada no uso de uma terceira preposição, discutida no Vol. I, ps. 78-82. Ainda estudaremos esta preposição e seu uso. Como esta sentença do discurso final do Senhor aos seus apóstolos antes de sua paixão ficou na memória e no coração do seu povo é evidente no livro dos Atos. st O Caminho» é o primitivo nome dado à esperança cristã: Atos 9:2; 19:9, 23.

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«A bênção apostólica começa com 'a graça de nosso Senhor Jesus Cristo' porque ninguém vai ao Pai senão pelo Filho.» (")

7. «Doravante estais começando a conhecê-lo e o vistes em visão que permanece.» «Pois haviam visto a Jesus que é o Filho de Deus, a Imagem de Deus, e parecido com Deus (1:18) . E' afirmativa corajosa e ousada da deidade. A única inteligível concepção de Deus é precisa-mente o que Jesus aqui declara. Deus é semelhante a Cristo.» (34) «Vis-tes e vêdes» ou «vistes em visão que permanece» é a idéia do tempo per-feito do verbo usado aqui. Vem ao caso, na situação que enfrenta-vam os leitores dêste Evangelho em Éfeso, no fim do primeiro século, salientar que no Filho se vê o Pai. O bispo anglicano, William Alexan-der, diz, nesta conexão: «O gnosticismo ambicionava, de uma vez, acei-tar e transformar o credo cristão, elevando a fé para a categoria de urna filosofia... (Para os gnósticos) a redenção era um drama cujo herói era uma sombra, um fantasma de redentor pregado ao fantasma de uma cruz.» (35) A resposta de Jesus cai sôbre ouvidos moucos. Felipe lhe pede incontinenti: «Mostra-nos o Pai.» A verdade não pode penetrar em mentes fechadas por pressuposições falsas, ainda que o pregador seja Jesus Cristo mesmo.

«Isso nos basta.» Não. Quem vive da fé em milagres sempre quer ver mais um.

8. «Mostra-nos o Pai.» Riggs pensa que Felipe queria, além dos inúmeros outros sinais que Jesus lhes dera, uma manifestação antro-pomórfica de Jeová, como as manifestações feitas a Adão, Enoque, Moisés, Josué e outros. Foi-lhe negado o pedido, e por uma razão mui-to simples. Os incrédulos exigiram de Jesus coisa semelhante, na si-nagoga de Cafarnaum, 6:30-36. Passara aquela época preparatória e fragmentária. Deus Pai avançou, na marcha da revelação, para o es-tágio em que se fêz incarnar na pessoa e vida humana do Filho. Vol-tar a revelações antropomórficas, seria buscar as folhas de janeiro de um calendário quando já estamos em junho, para viver tais dias de novo. Agora viam o Pai no Filho. E nossos dias são ainda mais fe-lizes.

9. «Tem visto o Pai.» «O Cristo vivo, o Filho de Deus, o Fi-lho do Homem, é a manifestação do Pai, a mensagem das boas novas da união de Deus e da humanidade, a fonte da união de Deus com cada homem que está nêle.» (")

«Como dizes tu?» A educação teológica que Jesus dera a êsses pri-meiros seminaristas, seu primeiro ministério para servir a seu povo,

(33) "The Expositor's Bible", Vol. sôbre I João, p. 177, pelo bispo anglicano William Alexander.

(34) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V., p. 250, por A.T. Robertson. ( 85 ) -Expositor's Bible", Vol. sôbre I João, ps. 43, 44. (") "Some Lessons of the Revised New Testament", p. 198, por B. F. Westcott.

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tinha provisõriamente fracassado. Vêde as notas sôbre 3:22. Mas a vinda do Espírito traria à memória dêles as revelações e ensinamen-tos do discipulado em que Jesus, pessoalmente, lhes servira de Mestre e faria que essa educação ainda fôsse adequada e eficaz. Demos tempo ao tempo, para a assimilação da verdade. O sol reaparece depois do eclipse .

A Palavra «Tu» é enfática, como se Jesus se surpreendesse e res- sentisse, especialmente porque Felipe não compreendesse o ensino co-letivo («vós») que todos os Doze receberam. «Tu», o próprio apóstolo que dissera no comêço: «Temos achado aquêle de quem escreveu Moi-sés na Lei e de quem falaram os profetas», — pasma ver que tu, cuja fé assim se alicerçou nas Escrituras, agora exija uma teofania material e visível, ao modo patriarcal.

«Não me conheces?» «Semelhante ignorância mental era indes- culpável em Felipe. Pois êle era um dos cinco discípulos que o Senhor ganhara na manhã do seu ministério (1:43) e que o havia acompanha-do em comunhão diária todos êsses anos benditos; mas êle nunca havia reconhecido a maravilha que estava continuamente ante seus olhos —Deus manifestado na carne.» (37)

10. «O Pai». Diz o notável expositor, Ernest Gordon: «Jesus veio para revelar o Pai. O nome Pai é o título distintivo dado a Deus no Novo Testamento, pelo menos até chegarmos ao Apocalipse, onde não é achado, fato de alta significação. Acha-se o nome Pai maior nú-mero de vezes num capítulo do Evangelho de João, no quinto ou no dé-cimo quarto ou no décimo quinto, por exemplo, do que no Velho Tes-tamento inteiro.» (38)

«As palavras». Não desassociemos a revelação que Jesus deu de si mesmo da formal interpretação de sua pessoa contida nas suas pa-lavras, e da doutrina e do valor desta mesma pessoa, e da sua obra redentora, em nossa salvação. Pedro disse a Cornélio «palavras» pe- las quais êle e sua casa foram salvos, Atos 11:14, e foram salvos no ato de ouvir, e veio em demonstração da realidade divina da sua sal-vação o milagre de falarem línguas naquele instante. «Pedro não pre-gou salvação pelo caráter, isto é, por cumprir a Lei ou ganhar mérito pela prática de boas obras, mas salvação por meio de palavras, (rhe-mata). 'As palavras, rhemata, que vos digo são espírito e são vida.' Pedro diz também: Tu tens as palavras de vida eterna. Palavras, en-sino, doutrina, profecia — eis o que traz a salvação.» (39) Vêde as notas sôbre 3:34; 12:50.

«Não as profiro de minha própria inspiração.» Pela infalível di-reção do Filho pelo Espírito, mesmo durante a encarnação, a humilha-

(37) "Commentary on the Four Gospels", Vol. III, p. 248, por DaNid Smith. (38) "Notes From a Laymon's Greek", p. 137. (39) Idem, p. 167.

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ção, a kenosis, o eterno Verbo gozava adequadamente da onisciência do Espírito. O Espírito canalizou pelo Filho, tanto em sua essencial natureza divina como na sua palavra doutrinadora e na sua obra reden-tora, a plenitude da revelação do Pai. Vêde as notas sôbre 5:19, 30, 31, a respeito do mesmo assunto.

«O Pai está efetuando suas obras.» Incluem o ensino, os milagres e a paixão e ressurreição de Jesus. Vêde a discussão de 5:20 para ver como os milagres foram dados pelo Pai ao Filho, para confirmar sua certeza na humilhação redentora que o levava para a cruz, e como aquilo que convenceu o homem Jesus a respeito de si mesmo vale para confir-mar a nossa fé também. Vêde também as notas sôbre 9:3, para verifi-car o fato de que milagres não esgotam o significado das palavras «obras», e a discussão de 5:36 a respeito de «empreendimentos». A cada passo da encarnação vemos a energia total da Trindade indivisível.

11. «Acreditai sempre.» E' o tempo presente, Continuai a crer. Vêde o v. 1 e as notas sôbre 5:38 a respeito dos dois sentidos do verbo crer aí discutidos. Jesus pede fé na base da sua união mística com o Pai na Trindade. Mas se alguém não está à altura de ver esta grande realidade, por sua própria comunhão com o Deus trino, Jesus ainda ape-la para que seja continuamente crente, por causa da demonstração uma vez para sempre dada pelos credenciais de seus milagres. São provas objetivas, cuja realidade é confirmada a nós por testemunhas oculares dessas «muitas provas infalíveis». A fé tem nelas base firme.

12. «Amém, amém, vos digo.» Vêde a discussão de 5:24 sôbre o «duplo amém» de Jesus.

«Fará as obras que eu estou fazendo.» Como êle fêz aquela mesma noite ao lavar-lhes os pés, em ensino, exortação, denúncia do traidor. Getsêmane, coragem perante o perseguidor, conforto aos fracos, comu-nhão com a grei. Como êle fêz, em Sicar, da Samaria, uma obra mara-vilhosa embora passando dois dias sem um milagre. Como fêz o Batista, sem jamais operar milagre. E mesmo seus milagres seriam, nas pró-ximas décadas, repetidos e superados pelos Doze, na extensão geográfi-ca, no alcance espiritual, e especialmente no fruto evangelístico; e novos milagres apareceriam, como o dom de línguas e terremotos que liberta-riam apóstolos presos, a morte de Ananias e Safira, juízo divino minis-trado segundo a palavra de Pedro, a larga e abundante revelação por profetas cristãos, e visões do Cristo entronizado concedidas a Paulo, a Estêvão e a João em Pátmos. Nada sofre o miraculoso dos apóstolos em comparação com o da vida terrestre de Jesus; e Jesus continua sua ação pessoal na terra, nos sinais de sua ressurreição, ascensão e derrama. mento do Espírito no Pentecostes e no ministério do evangelista Felipe. Vêde as notas sôbre 4:34, 38 a respeito da obra redentora de Jesus, que Paulo descreve como «um ato de justiça» — um único ato do gênero ; e sôbre nossas obras servindo a Jesus e a necessidade de zelarmos a fim

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de que não haja solução de continuidade entre nosso trabalho e o que foi feito antes de nós e o que se seguirá a nós. Jesus conservou a conti-nuidade com o Batista, antes dêle, e com os apóstolos e as igrejas de-pois dêle. Continuidade de obras. Ele nem consentiu em originalidade, em relação ao seu Pai.

«Maiores». «Não necessariamente maiores milagres nem obras es-pirituais maiores em qualidade; maiores, porém, em quantidade. Vêde Pedro no dia de Pentecostes e as viagens missionárias de Paulo.» (40)

«Maiores». «Orar em o nome de Jesus não significa usar o nome dêle como talismã a que o Espírito seria incapaz de resistir. E' orar corno seus representantes. Jesus ia lhes entregando a responsabilidade de trabalhos maiores e foi nesse transe que prometeu o que temos nos versículos 13-26.» (41)

13. «Em meu nome». «Na língua hebraica, o nome de Deus é a revelação de Deus; assim o nome de Cristo significa a revelação de Deus em Cristo. O uso do nome ao orar quer dizer a aceitação e a lealdade a essa revelação, um discipulado sério e eficiente. A oração é feita no nome de Jesus somente quando fôr tanto a expressão como o exercício da fé de um discípulo.» (42)

«O que pedirdes em meu nome, isso farei, a fim de que o Pai seja glorificado no Filho.» E' ilimitada a promessa; mas, inerentemente, ficou limitadíssima, pois os termos «em meu nome» limitam da minha parte qualquer pedido que Jesus Cristo mesmo não faria, qualquer sú-plica que não seja de nexo visível com a glória do Pai na pessoa e no nome do Filho. O ideal corrige, pois, nossas orações, as descentraliza, e remove o centro do nosso universo do EU para o real centro do uni-verso e da vida, Jesus Cristo. Ele é «o Caminho» da oração.

«Em meu nome» é cheque com a assinatura de Jesus, sacando em nosso favor as riquezas do céu, mas Jesus da esses cheques no desem-pênho de seu programa, em que nosso lugar é o de servos que sabem, amam e obedecem à sua vontade, revelada em sua palavra. E tudo isto está no contexto do discurso desta noite, e repetidas vêzes.

O fim da oração é que, sendo feita Unicamente no nome de Jesus, redunda em glória a Deus, o Doador, e a Cristo, único Mediador. O ro-manismo está em desacôrdo flagrante, pois suas orações são «rezadas» em nome da Virgem e de mil «santos» que canonizou em Roma, e vi-sam glorificar o nome da Virgem e do «santo» invocado. O ultimato do evangelho aplica-se à oração: «Ninguém se aproxima do Pai senão por mim.» As demais orações, oferecidas em outros nomes, são nulas e pecaminosas, e, segundo esta Escritura, repudiadas por Jesus. Aqui

(40) "Word Pictures in the New Testai:iene'. Vol. V, p. 291, por A. T. Robertson. (41) "All the World in all the Word", p. 56, por W. O. Carver. (42) "The Speaker's Bible", Vol. II sare este Evangelho, p. 79.

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principia a doutrina do NOME que tudo vale em oração. Vêde também 15:16.

14. «Se me pedirdes qualquer coisa em meu nome, eu o farei.» «Desperta-te, pois, crente, e dá atenção cuidadosa a essa declaração, em meu nome: porque nessas palavras êle não diz qualquer coisa que, pe-dirdes, de qualquer maneira, mas em meu nome (nome de quem é Sal-vador e Rei).» (43)

«A igreja, nos seus dias melhores, nunca orou — 'Jesus, ora por nós.' A intercessão dele é interpretativa, contínua, sem solução de con-tinuidade. Em tempo é eternamente válida, eternamente presente. Em espaço se estende tão longe como a necessidade humana abrange todo lugar.» (44)

15. «Se me amardes». «Os entusiasmos raras vezes sobrevivem à geração que os viu nascer, e um entusiasmo morto, salvo na qualidade de um fingimento de seita ou setor, nunca ressuscita. Mas o homem tem sido fiel por sessenta gerações a um entusiasmo que jamais se es-tribou em paixão sórdida ou terrena; é o entusiasmo que Paulo chama: o amor de Cristo. O amor é tão antigo quanto é o homem, e assim Cristo não o inventou; consentindo, porém, em ser alvo e objeto Ele lhe deu novo caráter, novas qualidades, uma nova função e novos fins.» (45) Fairbairn escreve uma rica literatura sôbre o amor, na vida e na reli. gião, e analisa nossa religião assim: «O amor a Cristo é a nova lei. O Redentor é o Legislador. Seu ideal traduzido em sua pessoa é a lei.» (45) Não fique o amor a Cristo em palavras ornamentais, porém, por-que êle o espera em obediência aos seus mandamentos. Jesus e a alma não são apenas Noivo e noiva, mas Senhor e súdito, Senhor e servo, o Salvador e o salvo, o Criador e a criatura. E' legítimo, pois, que o amor a Jesus se traduza em obediência aos seus mandamentos, pois êstes «não são penosos», diz nosso apóstolo do amor divino.

15. «Guardareis os meus mandamentos.» Há três declarações a respeito, feitas na intimidade daquela noite na véspera da paixão. O amor a Cristo resulta em querer obedecer-lhe e efetuar essa obediência com gôsto, 14:15. Essa atitude obediente nos dá os mandamentos de Jesus como patrimônio precioso, para «guardar» — observando-os e transmitindo-os com fidelidade. Nesse espírito leal amamos a Cristo e seremos amados por Jesus e pelo Pai e êstes se manifestarão ao crente amoroso e obediente, 15:21. E essa atitude se desenvolve, na vida de sucessivas obediências de amor, em permanente gôzo desse amor mútuo entre Cristo e o discípulo que lhe obedece porque o ama. E' o velho princípio: «Semeai um ato e colhereis um hábito; semeai um hábito e colhereis um caráter.» Oh, que cada ato do crente seja uma conscien.

(43) Comentário de Agostinho sôbre este Evangelho, Versão de J. Gibbs, II, 271. (41) "The Expositor's Bible", sôbre I João p. 103, por William Alexander. ( 45) "The Philosophy of the Christian Religion", p. 508.

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ciosa obediência à vontade de Jesus, concretizada em seus mandamen-tos. Recusando a obediência a Cristo, está provado que pouco o ama-mos, ainda que sejamos crentes e muito amados por êle. A obediência com gôsto é a medida de nosso amor. O caminho divergente, a vontade própria, no terreno dos mandamentos de Jesus Cristo, é a vereda tor-tuosa que leva ao desamor do Senhor que nos comprou.

«Se me amardes, guardareis os meus mandamentos.» «Oh, senho-res, quão grande massa de religião é lançada fora por êsse texto como coisa de nenhum valor.» (46) E Spurgeon salienta bem os pronomes: «Se ME amardes, guardareis os MEUS mandamentos.» E está certa a ênfase. Aliás, é em procederem da autoridade do Amado que os seus «mandamentos não são penosos» (I João 5:3) mas são o prazer de nossa vida cristã obediente. Esse prazer é religião e é sociabilidade fraternal, pois João diz: «Por isso sabemos que amamos aos filhos de Deus quan-do amamos a Deus e guardamos os seus mandamentos, pois este é o amor de Deus que guardemos os seus mandamentos», I João 5:2, 3. Filial e fraternal é a duplamente bendita obediência.

«Meus mandamentos.» «Não como o Talmud com seus 70.000 pre-ceitos.» (47) Os mandamentos de Jesus são diferentes tanto na qualida-de como na quantidade. São mandamentos, porém, e «tôda a autorida-de no céu e na terra» os promulgou. Vede as notas sôbre 5:42 para um estudo do fato de que é sobrenatural todo o amor cristão genuíno.

«Se me amais guardareis os meus mandamentos.» O Dr. A. T. Ro-bertson diz: «Se persistis em me amar (presente, ativo, subjuntivo) ... Compare-se com v. 23... O amor contínuo previne contra a desobedi-ência.» (48)

Depois do evangelho de salvação pela graça, pregada na sua simpli-cidade e pureza, não há nada em nossos tempos mais urgente do que in-sistir na obediência ao Senhor Jesus. A sua Grande Comissão nos obri-ga a ensinar, perpetuar e insistentemente, em tôdas as nações e a tôda, a criatura que podemos evangelizar, o dever perene dos discípulos de Cristo de guardar todos os seus mandamentos. E' a vida cristã, santa e espiritual. O mesmo apóstolo João nos assevera: «Pois êste é o amor de Deus, que guardemos os seus mandamentos; e os seus mandamentos não são penosos», (I João 5:3) . Há tantos hoje que os acham penosos e sentem desdém pela obediência, que vão ao ponto de taxar de «orgu-lhosos» os que persistem em obedecer, em ensinar a obedecer, tudo quan-to Cristo mandou.

Convém examinar por que essa é uma acusação tão fácil e tão fre-qüente. De que é «orgulhoso» quem insiste na obediência aos manda-mentos de Jesus Cristo? Desaparece a calúnia inteiramente se distingui.

(46) "The Treasury of the New Testament", Vol. II, p. 522, por C. H. Spurgeon. (47) "The Expositor's Bible", o Vol. sôbre I João 109, por William Alexander. (48) "Word Pictures in the New Testament", Vol. V, p. 252.

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mos entre o alvo e o atirador, entre a meta e aquêle que faz a carreira, entre a perfeição da lei e a humildade de quem a toma por norma de vida. Não é orgulho algum insistir na perfeição de Jesus como Mestre, Autoridade, Exemplo, Orientador e Guia do crente. Ele é o «bom Mes-tre» porque é Deus. Não há bom entre nós, pois êle afirma: «Ninguém é bom senão Deus.» Dizer que Deus é bom, que Jesus é bom Mestre, que sua vontade revelada é santa e viável, não é dizer que nós somos bons ou perfeitos ou impecáveis ou infalíveis. Um crente espiritual pode muito bem pensar que a vontade de Cristo é lei perfeita, mil vê-5,es superior à vontade de papas ou reformadores ou de concílios ecle-siásticos ou de fundadores humanos de seitas. Não é orgulho nenhum insistir em dizer que Cristo é bom Legislador para a consciência. E' o cristianismo segundo João XIV, e segundo I Cor. XIII, pois o amor cristão «regozija-se com a verdade». Taxar de «orgulho» a disposição reverente de entender e obedecer aos mandamentos de Jesus é urna cilada tendenciosa e exploradora, esfôrço sectário para silenciar a con-sciência cristã e igualar a obediência a Cristo e a submissão às tradições dos homens. Dizer que é «orgulho» insistir no privilégio e dever de obe-decer a Cristo é insolente calúnia. A Palavra de Deus a repudia como falsíssima, indigna, nociva. «Se me amais, guardareis os meus manda. mentos... guardareis as minhas palavras... guardareis a minha pala-vra.» João isiste em dizer que a consciência íntima de amor real a Deus e do mais sincero amor fraternal é a obediência aos mandamentos de Deus, I João 5:2-4. A desobediência não é amor a ninguém, se bem que goste de vestir-se hipócritamente com a toga da «caridade». E' antifra-ternal, cismática, sectária, nociva. Não há nada de sectário em obede-cer a Jesus. E' a vida santa e amorosa para com Deus e para com os homens de boa vontade. Vêde os vs. 23, 24.

Nem pense pessoa alguma que a obediência a Cristo seja um de-senfreado individualismo, um pietismo pacifista que viva dentro de si sem ofender a ninguém e cultive a meditação e atitude antidoutriná-rias . A obediência cristã tem suas fases individuais — «o arrependi-mento e a fé», por exemplo. E tem suas fases sociais em que nenhum indivíduo sózinho é capaz de obedecer a Deus.

O casamento é doutrina de Cristo, mas ninguém obedece a esse en. sino a sós. Dois são necessários. E' ato, vida, obediência de um casal. Seguem outros atos, vida, obediência de família. Ao indivíduo isolado não cabe a promessa: «Se dois de vós concordarem em pedir alguma coisa, ser-lhe-á feito por meu Pai que está nos céus. Pois onde dois ou três estão congregados em meu nome, ali estou eu no meio dêles.» A promessa é realizável ~ente nos «congregados». Milhões de reuniões de oração verificaram a Presença. Nenhum indivíduo é capaz de uma <:reunião», &ninho no seu individualismo.

O batismo é ato social, não individualista. Cristo mandou batizar

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e mandou ser batizado. E' uma responsabilidade social, coletiva. A Ceia do Senhor é ato social também, como o é a vida das igrejas, a disciplina dos membros pela grei, a eleição de diáconos (Atos VI), a cooperação das mesmas igrejas. O cristianismo obediente é absolutamente impossí-vel numa base de desenfreado individualismo. Se há «orgulho», é nessa alma isolada que se levanta contra a vontade revelada de Jesus Cristo.

Deus enviou João Batista para «preparar um povo» para o Senhor. E' dever inalienável de todo crente fazer parte de um povo e acompanhar este povo no ideal da obediência, no serviço a Deus e aos homens e na cooperação no reino de Cristo sob a sua autoridade em tudo. Ter isso por ideal não é «orgulho». E' amor a Cristo. Ele o diz: «Se alguém me ama guardará a minha palavra.» O desobediente é quem «não tem ca-ridade». «Quem não me ama, não guarda as minhas palavras.» Todas das são preciosas para o crente humilde em cujo coração o amor a Deus fôr derramado pelo Espírito Santo.

«Advogado». Meu Dicionário Grego assim define o têrmo: «Advo-gado, Ajudante, Intercessor, Consolador, Defensor. 'A idéia de Advoga-do, Patrono, um que apela, argumenta, convence, numa grande contro-vérsia, que tanto fortalece como defende, vencendo ataques formidáveis, é a única idéia adequada.' — Westcott.» Vêde como o Espírito havia sido para eles, como é para os demais crentes, o próprio sêlo da sua fé, na discussão de 3:33.

«Ele vos dará outro Paráclito para que esteja para sempre convos-co.» Notai o contexto — o amor guardando os mandamentos de Jesus, v . 15. Do outro lado é a identificação do Paráclito com «o Espírito da verdade», a verdade que Jesus é, a verdade que Jesus revelou — asse vos ensinará tôdas as coisas, e vos fará lembrar de tudo o que eu vos disse», v. 26. Estas últimas palavras constituem a promessa do Novo Testamento, cujo fundamento e pedra augular é o que Cristo é, fez e disse. O Espírito havia de completar a revelação, acrescentando o que Cristo não podia dizer nos dias de sua carne por causa da cegueira e in-capacidade do meio ambiente, o apostolado. Este não era e nunca che-gou a ser nenhum magistério infalível. O Espirito é o Paráclito Infalí-vel. Deu o resto da verdade revelada, a revelação do primeiro século cristão, do círculo apostólico. Outrossim, pela obra de inspiração, su-perintendeu a produção do Novo Testamento, de modo que nos seja fiel transmissão das verdades reveladas, a fé uma vez para sempre entregue aos santos, e não um depósito de tradições esotéricas. Tais tradições, entregues a um sacerdócio falível e pecaminoso, servem como nariz de cera, através dos séculos, para dar ao cristianismo qualquer novo rumo que fosse de seu bel-prazer.

A obra do Espírito é um campo fértil, mas bem cercado com os man-damentos de Jesus, o amor que os guarda, e a verdade imutável que nos revela, no Novo Testamento, o que devemos crer como doutrinas e fazer

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como deveres. Nunca um texto foi mais bem guardado por seu con-texto.

A obra do Espírito nunca vai degenerar em nossa suficiência pró-pria, vontade própria, ou orientação própria. No terreno da verdade di-vina a voz de Jesus Cristo já falou e sua revelação foi-nos preservada pelo Espírito da Verdade no Novo Testamento. E' triste fenômeno que muitos que mais se gabam de conhecer o Espírito Santo têm tão pouco res-peito pela autoridade de Jesus, e sua verdade revelada, como tinham seus próprios crucificadores. Convém ouvir o magno intérprete e pastor, Spurgeon, sôbre êste assunto : «Tomai cuidado para nunca imputar as vãs imaginações de teu cérebro ao Espírito. Já vi o Espírito Santo des-onrado por pessoas — eu gostaria de crer que estavam desequilibra-das — que alegavam ter essa ou aquela revelação que lhes fôra dada. Por muitos anos não passou sôbre minha cabeça uma única semana em que eu não tenha sido molestado com as revelações de hipócritas e maníacos. (De fato, duas vêzes entraram no escritório de Spurgeon loucos que lhe declararam que Deus lhes revelara que deviam matá-lo. A um êle apontou um detalhe inexato da suposta revelação e desnor-teou-o de tal maneira que o homem saiu todo incerto para estudar mais o assunto. A outro êle espantou com um salto e o jogou fora da por-ta. W. C. T. ). Nunca pensei que o curso dos eventos vos foi revelado do céu ou podereis chegar ao mesmo estado dos idiotas que ousavam imputar ao Espírito Santo suas loucuras. Se sentis coceira na língua para proferir palavras de insensatez, atribui êsse impulso ao Diabo e não ao Espírito de Deus. Tudo aquilo que tiver de ser revelado a qual-quer um de nós pelo Espírito de Deus já se acha na Palavra de Deus. O Espírito não faz acréscimos à Bíblia nem jamais o fará.» (49)

«Advogado». David Smith insiste que o têrmo Paráclito não pode significar o Confortador, pois é uma forma passiva, em grego, e signi-ficaria: o confortado, não o Confortador. Sua necessária tradução é Ad-vogado, e assim é... traduzido em I João 2:1 — um têrmo forense, o correlativo de acusador, significando um que foi chamado para • a defe-sa, num tribunal, para sustentar uma causa e defendê-la perante o juiz. «... E' significativo que Filou deu o têrmo como nome do Verbo Divi-no que seria o Mediador entre Deus e o mundo.» (50)

14:16, 26; 15:26; 17:7. «Paráclito». E' assim que várias versões traduzem. A idéia é complexa, e «paráclito» é uma palavra que nada significa, em português. Portanto, procurei traduzir a complexidade. Vaie a pena. De outro modo, o revelado na Palavra fica tão vendado como se nunca fôsse tirado o véu na revelação dada. Vêde o estudo espe-cial sôbre o assunto no Vol. I, nas ps. 144-151. Diz B. F. Westcott,

(49) "The Treasury o) the New Testament", Vol. II, p. 31. (50) "Comentary on the Four Gospels", Vol. II, ps. 252, 253.

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a respeito: «Passo a passo a relação entre o Paráclito e Cristo é esclare-cida: (1) Rogarei outro Paráclito; (2) O Pai o enviará em meu nome; (3) Eu o enviarei; (4) Se eu fôr, o enviarei. Outrossim sua obra é de-finida. com cada vez maior exatidão: (1) Estar convosco sempre; (2) ensinar-vos todas as corsas que eu disse; (3) testificar de mim; (4) pro-duzir no mundo convicção do pecado; (5) guiar a toda a verdade». (51)

«Fique... para sempre». Vêde a discussão de 6:56. A vida do crente é «eterna», o pão da vida é duradouro (6:27), a presença de Je-sus é íntima, o discipulado é permanente (8:31) . Outrossim a camara-dagem do Espírito Santo é perene na vida dos crentes, mesmo antes do Pentecostes. O evangelho sempre anuncia ca salvação eterna» e to. dos os seus valores permanecem. Vêde a discussão de 6:27.

17. «O Espírito da verdade». Veremos as três definições da ver- dade, na discussão da pergunta de Pilatos: «Que é a verdade?» Jesus já disse: «Eu sou a verdade.» Dirá: «A tua Palavra é a verdade.» E João escrevera: «O Espírito é a verdade.» Aqui a verdade é seu caracte-rístico fundamental e sua revelação e aplicação à consciência e à vida é função fundamental do Espírito.

«O mundo não o pode obter» ou «tomar», ou «receber». O mundo só vê com os olhos da cabeça; está cego dos olhos do coração, Eles, 1:18. Não enxerga realidades invisíveis, as verdades supremas e eternas. Daí a confiança popular em imagens, cerimônias, sacramentos e religiosidade exterior. Vêde 5:21 e o comentário aí sobre a obra da. Trindade em sal-var durante a encarnação do Filho de Deus.

«Vós o conheceis.» Antes do Pentecostes descrito em Atos II, Jesus afirma que êsses crentes já conhecem o Espirito Santo pessoalmente, e que êste fica ao lado dos Doze e está em união vital com êles.

«Está em vós.» «Vêde como esta experiência é gerada em nós. Co- meça com o amor a Cristo. E Bunyan diz que muitos amam a Cristo apenas como 'o lamber da língua. O amor prático é melhor', é deveras o único amor genuíno. Pois onde realmente amamos, forçosamente te-mos de servir. 'Se me amais' — não se diz 'guardai' — 'guardareis os meus mandamentos', antes 'observareis os meus mandamentos...' Um coração amoroso é coração obediente, e semente em semelhante coração permanecerá o Espírito Santo.» (52)

«Vós o conheceis, ele está ao vosso lado, sim está em vós.» Dou-trina mais ampla e clara da obra do Espírito durante o ministério terres-tre de. Jesus seria impossível formular em linguagem humana. Sigo o texto de Westcott e Hort. Nestle tem o tempo futuro do verbo: «es-tará ,em vós». Mesmo com êsse texto, a afirmação de íntimo conheci-mento do Espirito, na experiência, e de boa camaradagem, na sua obra,

(51) "The Gospel accotding to St. John", Vol. I, p. cxxi. (52) "Commentary ma the Four Gansas", Vol. III, p. 254, por David- Smith.

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TRADUÇÃO E COMENTÁRIO 487

é forte e ampla. Jesus dirá que os apóstolos têm sido testemunhas dele desde o princípio, 15:27. O Espírito virá em novo poder para a conti-nuação do testemunho — e para todos os povos.

«Está». O pêso do testemunho dos antigos manuscritos é quase igual a favor de «está» e «estará». Que nenhuma versão tenha seguido Westcott e Hort, traduzindo: «Está em vós», mostra o forte preconcei-to que procura impor a idéia de que o Espírito Santo, se existia na terra, todavia estava virtualmente inativo na vida cristã até o dia de Pente-costes. Essa determinação de fazer o Novo Testamento principiar em Atos II, em lugar de Mat. I, decapitando a revelação cristã, e aceitando somente o tomo (de Atos II a Apoc. XXII) como norma da vida cristã, tem como efeito banir o Cristo histórico de sua religião, e pôr em seu lugar um Espírito Santo, criado na imagem das idéias «dispensacionais». Nada desonra mais ao Senhor da nossa vida do que limitar sua gestão e autoridade a uns trinta e três anos de sua humilhação, substituindo-o depois de 30 d. C. pelo Espírito. Nós estamos em plena «dispensação' de Jesus Cristo. «Eis que eu estou convosco.» Lucas produziu dois to-rnos de sua história do movimento cristão, e o segundo tomo afirma logo no princípio que, nos eventos narrados no Evangelho de Lucas, Jesus apenas «COMEÇOU» a fazer e ensinar sua vontade e verdade, nos dias de sua carne, mas que êle continuou a agir depois de sua ascen. são, derramando «tudo que se viu e ouviu», no dia de Pentecostes, rece-bendo o espírito de Estêvão no céu, capturando o rebelde Paulo, apare-cendo e dirigindo os apóstolos em visões e revelações, salvando, santifi-cando, chamando e fazendo tôda a obra competente de um Salvador e Senhor da vida. Procurar banir Cristo do cristianismo, sob o pretexto de assim honrar ao Espírito, é dupla desonra ao Espírito e a Jesus.

A favor da lição «está», são enumerados por Tischendorf (Novum Testamentum Graece, editio octava critica maior) os antigos MSS: — BD, 1,22,69, e outros cursivos, duas antigas versões siríacas, e as ve-lhas versões latinas, antes da Vulgata (a itálica «e» tendo: est in aeter-num, a respeito da residência do Espírito nêles, já naquele tempo e em diante) e algumas outras versões antigas. «A magna obra do Espírito consiste em dar testemunho de Cristo. Ele não veio para dar testemunho de si mesmo; veio para falar de Jesus. Muita confusão da nossa parte seria evitada, quanto ao caráter e trabalho do Espírito Santo, se tão sê-mente nos lembrássemos disso. O afã dos discípulos teria de ser o mes-mo afã do Espírito. Haviam de testemunhar a respeito de Cristo.» (52 ) Nossa religião é o cristianismo, não um espiritismo, seja de quem fôr. Somos unidos com o Espírito quando nosso supremo amor, tema, evan-gelho e poder é Cristo vivo, o mesmo ontem, hoje e para sempre. Glo-rifiquemos a Cristo no Espírito.

(. 53 ) "John's Gosper, p. 149, por R. E. Speer.