Europa Líquida

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Modernidade e Globalização resulta de várias entrevistas feitas a Zygmunt Bauman por Giuliano Battiston e publicadas em Itália. Nestas entrevistas, o sociólogo reflete e propõe novas leituras, alicerçadas numa perspetiva ética,sobre as profundas e rápidas transformações provocadas pela globalização na estrutura dos sistemas políticos e na organização social e a relação com o indivíduo e o exercício da cidadania.

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tituloEuropa Liquidatitulo originalZygmunt Bauman. Modernità e globalizzazioneIntervista di Giuliano BattistonautoresZygmunt BaumanGiuliano Battistondireitos reservadosPubblicato per la prima volta in italiano col titolo Zygmunt Bauman. Modernità e globalizzazione, Intervista di Giuliano Battiston© 2009 Edizioni dell’AsinotraduçãoDuarte PinheirorevisãoNova DelphidesignFBA.paginaçãoNova Delphiimpressão e acabamentoPapelmundeisbn978-989-8407-99-3depósito legal354274/13editoraNova Delphi

(Marca registada da Euthalia Editora, Lda.)

Rua da Carreira, 115/117, 9000-042 Funchal, Portugal

www.novadelphi.com

“direitos reservados” estão segundo o contrato

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europa liquida

Zygmunt Bauman

Entrevista deGiuliano Battiston

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nota à edição:

Este livro reúne uma série de entrevistas a Zygmunt Bauman realizadas

(de visu ou por correio electrónico, dai algumas variações de forma e estilo)

ao longo dos últimos dois anos. Algumas das entrevistas já foram publicadas

parcialmente no diário Liberazione, nas revistas Lo Straniero (n.º 92, fevereiro 2008)

e Lettera Internazionale (n.º 98, 2008), às quais agradecemos.

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Para a Daniela. E para Massimo Loche

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indice

11 Prefácio à Edição Portuguesa 15 Modernidade Liquida e Globalização 55 As Respostas à Globalização: Comunitarismo versus Universalismo 81 Um Oficio de Funâmbulo: O Sociólogo Entre Ética e Sociedade 113 Obama: Um Presidente Liquido? 125 Referências Bibliográficas

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prefácio à edição portuguesa

Fazer as perguntas certas é o que faz a diferença entre confiar no destino e perseguir um alvo, entre a deriva e a «viagem», diz enfaticamente Zygmunt Bauman, um dos intelectuais contemporâneos mais famosos, decano da sociologia europeia. Fazer as perguntas certas, para distinguir a viagem (cuja meta final deve ser perseguida com discernimento) — da deriva (cujo resultado é fatal-mente inevitável) parece tanto mais necessário, hoje, numa época de «vazio», suspensa entre o declinio do capitalismo dos Estados-nações e o inicio de um Estado mundializado, desde logo vitima das suas próprias ten-dências predatórias. Numa fase de interregnum, no auge da crise de legitimidade do modelo neoliberal, por tanto tempo hegemónico, enquanto cidadãos sentimos uma forte necessidade de ter coordenadas certeiras, de pontos de referência, de interpretações que nos ajudem a entender o que está a acontecer em nosso redor, a distinguir os fenómenos secundários e episódicos dos de natureza sistémica e fundamental. Estaremos erra-dos, no entanto, se ficarmos na expetativa de respos- tas últimas e definitivas por parte de Zygmunt Bauman. Ficaremos desapontados se lermos os seus livros com a secreta ambição de satisfazer todas as nossas dúvidas, de vermos resolvidas, por magia, todas as aporias da sociedade contemporânea, de encontrarmos um mape-amento que nos mostre o caminho a seguir, sem a me- nor hesitação.

Para o autor de Postmodernity and its discontents — que nesta longa entrevista volta a refletir e a oferecer novas pistas de leitura para as mudanças que a transição para a Modernidade Liquida trouxe aos sistemas politicos e estruturas sociais «tradicionais» — a sociologia ainda

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tem que se alimentar da ambição de explicar a reali-dade. Mas pode fazê-lo somente se ela mesma renunciar a qualquer tendência apoditica, se negar a pretensão de omnisciência. E se se confia a si mesma, para além do método epistemológico a ser mantido com disci-plina, a uma forte tensão ética; através da entrega exclu-siva ao método não pode nascer mais que um incerto murmúrio académico, frágil perante a ambivalência da realidade e afónico perante as perguntas ansiosas e insistente dos moradores de A sociedade sitiada. No entanto, a partir da tensão ética — uma tensão que surge da adesão ao tempo presente e da responsável inquie-tação pelo futuro — pode muito bem originar-se uma urgência por justiça, que nos «impede de ficarmos parados». E que impede também qualquer reflexão de se cristalizar, de se tornar doxa, de se transformar numa ideia que todos pensam, mas em relação à qual ninguém é capaz de raciocinar.

Aqui reside o poder de persuasão e, ao mesmo tempo, a força de reflexão de Bauman: a convicção de que o enraizamento no tempo presente não só não afeta a ati- vidade do observador, mas constitui — pelo contrário — uma das condições para que o seu trabalho não possa ser reduzido a um mero exercicio descritivo e compila-tório. A ideia de que, para compreender a realidade, é necessário antes de mais habitá-la, de que é necessário mergulhar nas contradições dessa mesma realidade, para tentar chegar aos principios básicos. Com a cons-ciência de que não existem soluções fáceis ao nosso dispor, a não ser as previstas pela própria ética e por parte da responsabilidade em relação aos bens comuns.

A ética e responsabilidade pública constituem-se, de facto, como as coordenadas fundamentais de toda a produção académica e ensaistica do sociólogo polaco;

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desde o texto sobre o socialismo como utopia ativa dos finais dos anos 70 do século passado, passando pelo texto fundamental Modernidade e Holocausto (em que o Holocausto não é apresentado como um desvio tem-porário no caminho da modernidade, mas como sua coerente expressão), e terminando com a série de tex- tos mais conhecidos do público em geral, produzidos em meados dos anos 90, sobre as consequências da globalização.

O método de Bauman surge, portanto, de uma pro-funda e inata disposição ética, uma abertura sincera e curiosa para o mundo e para os outros. Este método é usado para atingir um objetivo fundamental: revelar o bluff de quem é capaz de erigir muralhas poderosas em torno «do potencial humano ainda por descobrir», reconhecer o caráter incerto e contingente da ordem social apresentado como necessário e inalterável pelos guardiães do «meramente existente». Porque a tarefa do sociólogo passa por usar a cultura — uma «faca cra-vada no futuro» — para mostrar que o que parece óbvio e necessário é muitas vezes provisório e revogável. Trata-se, defende Bauman, de um reconhecimento que «pode levar-nos a atirar a toalha ao chão em vez de agirmos», mas que garante pelo menos a oportunidade de exer-cermos a nossa liberdade de seres humanos e cida- dãos, porque «para operar no mundo (em vez de ser pelo mesmo manipulado) é necessário saber como o mundo funciona».

Os elementos brevemente mencionados neste pre- fácio serão facilmente encontrados pelo leitor portu-guês nas páginas que se seguem, nas quais Zygmunt Bauman manifesta dúvidas sobre as novas formas de soberania politica, sobre os perigos do «comunita-rismo», sobre a relação entre o individuo e a sociedade,

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as respostas à globalização:comunitarismo versus universalismo

Acabou de falar no renascimento dos agressivos nacionalismos e de sentimentos tribais, fenómenos que parecem convergir em direção a um igual projeto político-social, o do comunitarismo, que funde a própria capacidade atrativa no que diz respeito à intenção de fazer ressurgir uma comunidade capaz de resolver imediatamente — e de um modo definitivo — os problemas que derivam da difícil conciliação entre liberdade e segurança. O se- nhor, por outro lado, reiterou muitas vezes, por exemplo em Community. Seeking Safety in na Insecure World (Bau- man, 2001), que tal projeto não pode deixar «de exacerbar a condição que tinha prometido curar» e «tornar a dicotomia entre segurança e liberdade ainda mais aguda e difícil de sanar»…

A ideia de comunidade cria-nos confusão. Na ver-dade, a comunidade é ainda algo que consideramos positivo, pois evoca tudo o que precisamos e que sen-timos não possuir, mas que está a transformar-se cada vez mais numa comunidade à la carte, como nos restau-rantes. A comunidade tradicional era potente e sólida, os seus membros sujeitos a regras de conduta muito rigidas que eram aceites em todos os seus aspetos como se fossem um pacote tudo incluido, e que na eventua-lidade de serem transgredidas causariam sérios proble-mas aos transgressores. Ser um membro da comunidade significava ser definido, pré-determinado e implicava a renúncia a uma parte da própria liberdade pessoal. Hoje, pelo contrário, e cada vez com mais frequência, aquilo a que as pessoas se referem não são comunida-des, mas sim, redes, que diferentemente da comuni-dade são construidas tendo por base duas atividades: o ligar e o desligar. A rede é precisamente caracterizada por esta facilidade em se desligar. Basta pegarmos no

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telefone e podemos facilmente adicionar um nome e um número à lista de contactos (que é a nossa rede) como eliminar um outro. Se não quisermos que deter-minada pessoa faça parte da nossa rede, basta interrom- permos as comunicações, não lermos e nem enviarmos mensagens. A rede é, assim, um composto liquido; não tem uma estrutura clara, definida e continua, não é algo de estruturado que se herda desde o nascimento, como a comunidade, mas qualquer coisa que criamos e da qual somos gestores. Criamo-la, posteriormente voltamos a recriá-la e mudamo-la continuamente. Po- demos afirmar que, se outrora a pertença precedia a identidade, pois era o facto de pertencermos a uma comunidade que determinava a nossa identidade, hoje acontece o contrário, pois a identidade precede a per-tença: antes de mais, autoidentificamo-nos, quando decidimos o tipo de pessoa que escolhemos ser neste momento (na medida em que não podemos saber o que seremos no futuro), e depois incluimos nas nossas redes as pessoas que são relevantes em relação àquela identidade, excluindo, por oposição, aquelas que não o são. Neste sentido a pertença é o efeito póstumo da autoidentificação.

Muitos tendem a interpretar as manifestações do que define como «sentimentos tribais» — etnicismo, comunitarismo, fun-damentalismo — como uma nova forma de nacionalismo. Pelo contrário, mostra-se convencido de que, por exemplo n’A Sociedade Sitiada (Bauman 2010), etnicismo, comuni-tarismo e fundamentalismo não representam uma revivência do nacionalismo e de que «as guerras tribais são o testemu- nho cabal da falência do tirocínio do Estado-nação» (Bauman, 2010:18). Poderia explicar-nos em que sentido as guerras tri-bais são produtos da putrefação deste tirocínio?

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O objetivo do nation-building era deitar para trás das costas a fidelidade tribal e o esprit de clocher tribal. Os partidários de uma nação grande, potente e sobretudo unificada (unificada sob uma única e indivisivel auto- ridade soberana estatal), iniciaram uma guerra de des-gaste aliada a uma cruzada cultural contra tudo o que fosse local, paroquial, limitado, ancorado à tradição e, portanto, contra o tribalismo que reúne todos estes pe- cados originais. No final do projeto do nation-building já não deveriam existir os lombardos, vénetos, calabreses, sicilianos, apenas italianos; não mais os saxões, bávaros, badeneses, vurtembergueses, apenas alemães. A tribo é denegrida como uma reliquia a ser sacrificada no altar do progresso e o próprio fim torna-se num insulto. Isto é o que se esperava de um planeta divido em reinos so- beranos, no qual os direitos a um próprio reino soberano dependiam da força dos grupos que os reclamavam, da grandeza deles, do engenho, da eficácia de aspirarem à autossuficiência económica, militar e cultural.

Na sequência da «emaciação» da substância da sobe-rania, o limite das exigências baixou consideravelmente, os grupos recusados como simples tribos e eliminados da competição pela independência nacional puderam realisticamente aspirar a obter Estados próprios; além de mais, não existem limites legais ou factuais quanto ao número dos membros das Nações Unidas, exceto as dimensões do edificio nos Estados Unidos. Por isso, o redimensionamento da soberania é a condição prévia deste realismo; por outras palavras, a concretização fa- lhada do objetivo que originou o nation-building fez com que fosse possivel a ressurreição do tribalismo; aliás, tornou-o inevitável. O realismo das aspirações tribais tornou-se cada vez mais verosimil devido ao facto de as forças globais terem mostrado interesse em favorecer

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a fragmentação (e, por isso, o enfraquecimento) do Es- tado-nação existente, assim como mostraram interesse em enfraquecer ulteriormente a soberania realmente existente.

Se observarmos o que acontece neste período na Itália (mas não só), torna-se evidente que um dos métodos mais comuns para evitar a difícil tarefa de negociar as diferenças e aceitar os com-promissos é o de adotar a estratégia «antropoémica», que institui uma equivalência entre diferença e criminalidade, expele o di- verso e tenta separar territorialmente o «nós» do «eles», à procura de uma homogeneidade étnica que, na verdade, jamais existiu. Quer dizer-nos algo a propósito do risco do comunitarismo, e de como se pode transformar um «estrangeiro num “estranho” e de- pois num perigo»?

É dificil, aliás impossivel, sentirmo-nos felizes e satis-feitos quando amedrontados e atormentados pela ânsia. Usar o medo como um capital politico significa brincar com o fogo. Há sempre o risco de que o medo, usado para consolidar a posição dos que detêm o poder, possa vir a revelar-se contraproducente, que venha a incitar à discórdia e acender o rastilho da rebelião. Para preve- nir a autocombustão, o excesso de medo deve ser então devidamente canalizado, mantido longe do sistema de poder e direcionado para outros objetivos que sejam inócuos. E para evitar que a caldeira sobreaqueça e ex- ploda são necessárias algumas válvulas de segurança, através das quais se liberte o excessivo vapor, e que po- dem apresentar-se sob formas muito diversas. Por exem-plo, na forma de breves mas intensos momentos de pânico fomentados pela ameaça, grandemente publici-tada, de raptores, mendigos insistentes, mal-intenciona-dos ou pedófilos apenas libertados da prisão. Ou ainda, como ocasiões de participação pública em rituais de

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exclusão, fornecidas cortês e regularmente pelos reality shows do tipo Big Brother. Ou mesmo também sob a forma de repetidos alarmes acerca da influência dos estrangei-ros na difusão de doenças e no incremento da crimina-lidade (neste sentido os movimentos de extrema direita podem ser incluidos entre as válvulas de escape mais eficazes na proteção do sistema de dominio regido pela manipulação do medo; de facto, estes movimentos afas-tam os medos do poder e, simultaneamente, tornam mais profunda a confiança na sua omnipotência). Trata-se de instrumentos que se revelam muito eficazes quando é necessário aligeirar tensões acumuladas e mitigar a ânsia (se bem que por um breve intervalo de tempo).

Em tempos de globalização, orientar o ressentimento na direção dos migrantes é particularmente contagioso. Os migrantes encarnam, de um modo perverso, tudo o que cria ânsia e incute temor num periodo caracte- rizado por uma nova ausência de certezas e pelas in- seguranças provocadas por forças globais misteriosas, impenetráveis e imprevisiveis. Os migrantes represen-tam os temores da falta de meios de subsistência, do exilio forçado, da degradação social, da exclusão extrema, definitiva, do sermos relegados para um não--lugar, alheio ao universo da lei e dos direitos, e deste modo, encarnam todos aqueles medos existenciais subconscientes ou parcialmente conscientes que ator-mentam os homens e as mulheres de todas as sociedades liquido-modernas. Ao expulsarmos os migrantes, esta-mos a revoltar-nos contra todas as forças misteriosas que ameaçam cada um de nós com o espetro do fado que eles sofrem.

Portanto, para si, a estratégia comunitarista é ineficaz e con-traproducente e as raízes dos sentimentos de incerteza deveriam

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obama:um presidente liquido?Entrevista realizada antes da primeira eleição de Barack Obama como Presidente dos E.U.A.

Durante a campanha eleitoral [2008], Barack Obama nunca reivindicou uma identidade étnica exclusiva (posteriormente definiu-se, aliás, como uma «mixed person») e evitou adotar a também definida variante cultural da identidade, ao ponto de alguns comentadores terem visto nele o primeiro presidente pós-essencialista. Acha que a sua eleição pode ser interpretada como um sinal de que o sistema político americano está defi-nitivamente a romper a ligação entre demos e ethnos, e que os Estados Unidos estão a caminhar conscientemente para uma sociedade pós-étnica?

Permita-me que formule diversamente a questão: Obama teve cuidado em não reivindicar o poder em nome das massas calcadas e oprimidas (e por esta razão declaradas inferiores), cuja inércia e cuja ignominia, estereotipada e imposta, lhe foram dirigidas por causa do trabalho herdado étnica e racialmente. Além disso, não chegou ao poder através de uma onda de rebelião ou pela força do movimento social/politico dos calca-dos e oprimidos, como se fosse o porta-voz plenipo- tenciário e vingador. Aquilo que a sua candidatura e eleição deviam demonstrar (e com toda a probabili-dade demonstraram) é que um estigma coletivo pode ser neutralizado por alguns individuos escolhidos. Devia demonstrar noutros termos que, entre as cate-gorias dos oprimidos/discriminados, alguns indivi- duos possuem qualidades que lhes permitem ir mais além do facto de serem membros de uma inferiori- dade coletiva, categorial; qualidades que podem equi-valer, ou até exceder, as exaltadas pelos concorrentes

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que não são marcados pelo estigma da categoria. Todavia, este fenómeno não invalida necessariamente o pressuposto da inferioridade categorial e deve ser percebido (muitos percebem-no em tal sentido) mais como uma perversa reafirmação da tese inicial: eis aqui um individuo que através do próprio talento e da pró-pria energia individual, quase à Barão de Münchhau- sen10, se ergue com as suas forças do pântano não graças à sua proveniência, mas apesar dessa. Demonstra, com aquele mesmo gesto, não tanto as virtudes abundan- temente subestimadas do seu povo quanto a tolerân- cia e generosidade de todos aqueles que estão prontos a fazer exceções, fechando os olhos perante os defei- tos de natureza coletiva e fornecendo ao individuo em questão, oportunidades para os desenraizar. Trata-se, assim, de uma reafirmação indireta da infalibilidade do seguinte pressuposto: se alguns individuos tiveram êxito nesta empresa, porque procuraram zelosamente realizá-la, isto apenas demonstra que os restantes indi-viduos (uma significativa maioria falhou) naufragaram na miséria da sua própria indolência e/ou inerente in- capacidade (de resto surgiram noticias aparentemente surpreendentes — mas se pensarmos, não são assim tão surpreendentes — sobre as celebrações da vitória de Obama por parte da extrema-direita americana).

É evidente que o passo dado por Obama poderia encorajar outros individuos ambiciosos e talentosos, pertencentes à categoria discriminada, a tentar seguir

10 No original: «(…) quasi nello stile del Barone di Münchhausen». O barão alemão

Karl Friedrich Hieroymus von Munchhausen (1720-1797), também conhecido como

«barão das mentiras», foi uma figura que povoou o imaginário de diversas gerações,

sobre a qual se narram colossais atos de bravura e fantasiosas aventuras, entre as quais

a de aparentemente ter conseguido sair de um pântano por ter puxado os próprios

cabelos. (N. do T.)

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o seu mesmo percurso e, ao mesmo tempo, poderia funcionar como uma barreira às objeções e como um enfraquecimento da resistência social e politica em aceitar todos aqueles que têm sucesso na empresa. Isto, todavia, não significa que o passo deles em frente ele-vará «a categoria, em si, a posição inferior» em que se encontram, e que abrirá uma melhor perspetiva de vida e maiores oportunidades para todos os seus membros. O longo governo semi-ditatorial de Marga- ret Thatcher não trouxe igualdade social às mulheres. Aliás, disso derivou a ideia de que algumas mulheres podiam derrotar os homens no mesmo terreno de jogo deles. Embora muitos dos judeus no século xix tives- sem conseguido sair dos guetos fazendo-se passar por alemães (ou pelo menos assim acreditavam fazê- -lo), fizeram muito pouco para tirar da pobreza e da discriminação legal e/ou social os próprios «irmãos» que entretanto tinham ficado para trás. Muitos dos mais barulhentos e zelosos ideólogos e profissionais das variedades mais radicais do século xx, em concreto a dos nacionalismos virulentos (inclusive Estaline e Hitler), eram recém-chegados provenientes das mi- norias étnicas ou ainda estrangeiros naturalizados. O judeu Disraeli fez com que o Império Britânico se tornasse sólido e se fortificasse. O grito de guerra de to- dos os assimilados foi: «o que quer que faças, eu posso fazê-lo melhor». A promessa e a determinação de serem mais papistas do que o Papa, mais alemães do que os pró- prios alemães, mais polacos do que os polacos, mais russos do que os russos no que diz respeito ao enriqueci- mento da cultura deles e na promoção dos interesses nacionais deles (que em muitos casos eram direciona- dos precisamente contra os assimilados e interpreta- dos como prova da sua duplicidade e da sua intenção

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enganadora). Em todos estes casos, o indiscutivel di- reito de julgar o sucesso ou o falhanço dos esforços de assimilação era concedido aos habitantes do mundo de destino, segundo os critérios por eles estabelecidos. Entre todas as coisas que os assimilados tinham mais jeito para fazer do que os nativos, muitas vezes existia também a manifestação do desprezo e da condenação dos hábitos e das atitudes especificos da comunidade de origem dos assimilados.

Obviamente, como ocorre no caso do conhecimento das tendências estatisticas, raciocinar por analogia pode induzir-nos a pensar de um certo modo, mas não nos permite prever o que acontecerá em cada caso parti-cular. Por muito que possa ser significativa a tendên- cia estatistica que legitima quem fala num endereço ou numa regra, haverá sempre espaço para a exceção. Neste sentido gostaria que a minha resposta fosse in- terpretada como um aviso de prudência em pronunciar prognósticos irrefletidos, além de um convite para nos abstermos de tirar conclusões. «Até ao lavar dos cestos, é vindima»11 é uma forma de sabedoria popular que o tempo ainda parece honrar.

Em Identity: Conversations with Benedetto Vecchi (Bau- man; Vecchi, 2004), o senhor assume Peer Gynt, o protagonista da homónima obra de Ibsen, como o exemplo paradigmático de uma identidade positivamente elusiva e nómada, enquanto em Amor Liquido: Sobre a Fragilidade dos Laços Hu- manos (Bauman, 2006) refere-se, parafraseando Musil, ao Mann ohne Verwandtschaften, o homem sem ligações, como «o típico representante da nossa sociedade líquido-moderna».

11 No original e do semelhante provérbio italiano: «Non contare i tuoi polli prima

che le uova si schiudano.» (N. do T.)

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Nesta tipologia, onde se sentiria tentado a colocar a personagem Barack Hussein Obama com as suas múltiplas raízes e iden-tidade? Acredita que ele seja um outro representante da nossa modernidade líquido-moderna?

Sinto-me tentado a insistir, de uma certa forma, na- quilo que acabei de afirmar: é necessário sermos bas-tante cuidadosos em arquivar casos e, por oposição, analisar cada caso a partir da especificidade e unicidade desse. Em suma, e indo ao encontro da linha de pensa- mento de Max Frisch, «ter uma identidade significa precisamente recusar ser colocado em tipos ou catego-rias», e destruir todas as categorias às quais nos querem remeter aqueles que elaboram as «tipologias». «Indi- vidualidade» significa não sentir-se completamente à-vontade em nenhuma divisória definida. De qual- quer maneira, creio que tem razão porque a condição liquido-moderna, que fez com que todas as comuni- dades de pertença fossem frágeis e porosas, encoraja fortemente este tipo de individualidade. A maior parte de nós pertence simultaneamente a múltiplas comuni- dades, ou a múltiplas redes, para usar o termo com o qual pretendemos definir as formas que substituiram as comunidades. Em quase todos os casos individuais as conexões entre os membros da rede desenvolvem-se em diversas direções, indo para lá e cá das próprias fronteiras (sempre que o termo fronteira seja ainda aplicável às redes, que, como vimos, existem precisa-mente graças às incessantes dinâmicas de conexão e desconexão). E Obama, em muitos aspetos, é mais individuo do que a maioria das pessoas! De qualquer maneira, não é um outro representante da nossa mo- dernidade liquida, mas uma das suas encarnações mais espetaculares e eminentes. Não é por acaso que todos concordam em afirmar que há quarenta anos o

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Este livro foi composto em carateres New Baskervillee impresso na Papelmunde – SMG, Lda,

em papel Coral Book Ivory 80 gno ano de 2013.

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